62
ACIONISTAS DO NADA QUEM SÃO OS TRAFICANTES DE DROGAS. ORLANDO ZACCONE D'ELIA FILHO Editora Revan Sumário PREFÁCIO 7 AGRADECIMENTOS 9 CAPÍTULO 1 Introdução: Definindo os traficantes de drogas ilícitas 11 CAPÍTULO 2 Controle social, discurso jurídico e seletividade punitiva no tráfico de drogas ilícitas 27 2.1. As teorias da reação social 41 2.2. O estereótipo e a estigmatização 56 2.3. Os olhares revisionistas 62 CAPÍTULO 3 Drogas maquiavélicas - quando a política cria a guerra 75 3.1.A proibição das drogas 79 3.2. Lei e Ordem: a guerra contra as drogas 88 CAPÍTULO 4 A indústria da criminalização das drogas 105 4.1.A sociedade pós-moderna e a guerra contra as drogas 109 4.2. O traficante: um ser do mal - o imaginário social 118 CONCLUSÃO 5 Limitando a violência seletiva na criminalização das drogas ... 127 PREFÁCIO Este livro de Orlando Zaccone aprofunda o debate sobre os efeitos da nossa política criminal de drogas numa perspectiva inovadora. Do lado mais duro da trincheira do capitalismo de barbárie, trabalhando como delegado de polícia no Estado do Rio de Janeiro, Zaccone lança o olhar crítico sobre o maior vetor de criminalização dos novos tempos: o comércio de drogas ilícitas. Seu trabalho, carregado da verdade dolorosa do dia-a-dia, é impregnado de imaginação sociológica e sensibilidade histórica, tudo aquilo que falta em grande parte nas ciências sociais ao abordar o assunto. Não é interessante constatar que a intelligentsia policial pode assegurar uma visão crítica da questão criminal, enquanto a sociologia politicamente correta se "policiza"? Talvez Orlando Zaccone tenha compreendido mais do que ninguém (porque o fez com a própria pele) as diferentes atribuições de estigmas quando o assunto é drogas. Que outra razão explicaria a concentração de registros de ocorrência de tráfico de drogas de uma região para outra? Ele explica e comprova através da sua experiência na aplicação do direito penal nas delegacias do Rio: nas áreas pobres o comércio varejista de drogas ilícitas é exercido por traficantes, nas áreas ricas é aplicada a solução abolicionista de respostas à situação problema. Em Jacarepaguá o jovem favelado aparecerá hediondamente, como inimigo público número 1, sujeito às penas mais duras, nas condições mais adversas; na Barra da Tijuca o tráfico fluirá com baixas taxas de criminalização, com pouquíssimos inquéritos policiais. Este sistema desigual de atribuições de estereótipos, descrito magistralmente por Rosa del Olmo, é demonstrado pelo trabalho de Zaccone, que realiza uma atualização das teorias do labeling approach no Brasil, retomando as trilhas sábias de Augusto Thompson. Tanto Thompson como Zaccone aproveitaram a penosa prática da gestão da segurança pública para produzir uma teoria revigorada e encarnada, na perspectiva do realismo marginal proposto pelo nosso ministro Raúl Zaffaroni. Alessandro Baratta já havia nos ensinado sobre a importância do rotulacionismo como ponto mais avançado da criminologia liberal, tendo produzido uma ruptura criminológica com os paradigmas positivistas e funcionalistas que o antecederam o labeling approach,

Acionistas Do Nada Quem So Os Traficantes de Drogas

Embed Size (px)

Citation preview

ACIONISTAS DO NADA

QUEM SÃO OS TRAFICANTES DE DROGAS.

ORLANDO ZACCONE D'ELIA FILHO

Editora Revan

Sumário

PREFÁCIO 7

AGRADECIMENTOS 9

CAPÍTULO 1

Introdução: Definindo os traficantes de drogas ilícitas 11

CAPÍTULO 2

Controle social, discurso jurídico e seletividade punitiva no

tráfico de drogas ilícitas 27

2.1. As teorias da reação social 41

2.2. O estereótipo e a estigmatização 56

2.3. Os olhares revisionistas 62

CAPÍTULO 3

Drogas maquiavélicas - quando a política cria a guerra 75

3.1.A proibição das drogas 79

3.2. Lei e Ordem: a guerra contra as drogas 88

CAPÍTULO 4

A indústria da criminalização das drogas 105

4.1.A sociedade pós-moderna e a guerra contra as drogas 109

4.2. O traficante: um ser do mal - o imaginário social 118

CONCLUSÃO 5

Limitando a violência seletiva na criminalização das drogas ... 127

PREFÁCIO

Este livro de Orlando Zaccone aprofunda o debate sobre os efeitos da nossa política criminal de drogas

numa perspectiva inovadora. Do lado mais duro da trincheira do capitalismo de barbárie, trabalhando como

delegado de polícia no Estado do Rio de Janeiro, Zaccone lança o olhar crítico sobre o maior vetor de

criminalização dos novos tempos: o comércio de drogas ilícitas. Seu trabalho, carregado da verdade dolorosa do

dia-a-dia, é impregnado de imaginação sociológica e sensibilidade histórica, tudo aquilo que falta em grande

parte nas ciências sociais ao abordar o assunto. Não é interessante constatar que a intelligentsia policial pode

assegurar uma visão crítica da questão criminal, enquanto a sociologia politicamente correta se "policiza"?

Talvez Orlando Zaccone tenha compreendido mais do que ninguém (porque o fez com a própria pele)

as diferentes atribuições de estigmas quando o assunto é drogas. Que outra razão explicaria a concentração de

registros de ocorrência de tráfico de drogas de uma região para outra? Ele explica e comprova através da sua

experiência na aplicação do direito penal nas delegacias do Rio: nas áreas pobres o comércio varejista de drogas

ilícitas é exercido por traficantes, nas áreas ricas é aplicada a solução abolicionista de respostas à situação

problema. Em Jacarepaguá o jovem favelado aparecerá hediondamente, como inimigo público número 1, sujeito

às penas mais duras, nas condições mais adversas; na Barra da Tijuca o tráfico fluirá com baixas taxas de

criminalização, com pouquíssimos inquéritos policiais.

Este sistema desigual de atribuições de estereótipos, descrito magistralmente por Rosa del Olmo, é

demonstrado pelo trabalho de Zaccone, que realiza uma atualização das teorias do labeling approach no Brasil,

retomando as trilhas sábias de Augusto Thompson. Tanto Thompson como Zaccone aproveitaram a penosa

prática da gestão da segurança pública para produzir uma teoria revigorada e encarnada, na perspectiva do

realismo marginal proposto pelo nosso ministro Raúl Zaffaroni. Alessandro Baratta já havia nos ensinado sobre

a importância do rotulacionismo como ponto mais avançado da criminologia liberal, tendo produzido uma

ruptura criminológica com os paradigmas positivistas e funcionalistas que o antecederam o labeling approach,

ou rotulacionismo, produziu a criminologia da reação social com um deslocamento de seu objeto, do

"delinqüente" ou do desvio para a "definição do delito", recuperando o melhor do penalismo liberal. Essa

importante escola demonstrou que a questão criminal só pode ser analisada através da ação do sistema penal,

pela reação das instâncias oficiais às situações problemáticas e por seu efeito estigmatizante. Para o

rotulacionismo o criminoso não é um ponto de partida, mas sim realidade socialmente construída, implicação do

processo social intitulado de criminalização secundária. No paradigma da reação social a intervenção penal não

tem efeito reeducativo, mas determina a consolidação da identidade desviante.

Através das conclusões dos estudos dos crimes de colarinho branco realizados por Sutherland,

apareceram as cifras negras, as distorções estatísticas, o falso quadro da distribuição da criminalidade,

concentrada sempre nos mais pobres e/ou resistentes. Entre a criminalidade latente e a perseguida, um

poderoso filtro vai atribuir diferentes significados, estereótipos e respostas penais.Trata-se de compreender a

ação seletiva das instâncias penais com um grande dispositivo de criminalização.

É esta discussão e essa prática que aparece renovada pelo trabalho de Orlando Zaccone. Ele demonstra

que, ao contrário do que apregoam os preconceituosos "policiólogos", a intelectualidade da polícia pode estar na

vanguarda da reflexão criminológica quando alia a verdade e o conhecimento da sua realidade com a reflexão

crítica sobre o sistema penal e suas funções para o desenvolvimento do capital neoliberal. A criminologia de

Orlando Zaccone apresenta todos os elementos e possibilidades para a construção de outras políticas de

segurança, com uma polícia menos vulnerável, menos exposta, mais qualificada e mais próxima do seu povo.

Vera Malaguti Batista Rio de Janeiro, junho de 2006.

AGRADECIMENTOS

O ser humano é capaz de tudo, até de uma boa ação. Não é, porém, capaz de imparcialidade. Só

acredito na isenção do sujeito que declarar que a própria mãe é vigarista.

(Nélson Rodrigues)

A pretensão de imparcialidade do conhecimento científico nos é transmitida, ainda quando meninos,

nos bancos escolares. Os métodos positivistas, entre eles o experimental, nos fazem acreditar que a realidade

existe, para o bem ou para o mal, enquanto um dado pré-constitucional à própria produção científica, e que o

conhecimento não pode estar atrelado a nenhum interesse político, sob pena de contaminação e distorção.

Enfim, a pureza da imparcialidade científica!

No campo das políticas de segurança pública o delírio positivista faz com que as estatísticas ganhem

terreno autônomo na análise do fenômeno criminal e até na aferição da produtividade policial. O crime, o

criminoso e a própria polícia passam a ser observados pela "letra fria" dos números. Não é por menos que os

gestores da segurança pública ao se lançarem candidatos a cargos eletivos enumeram as apreensões de armas, as

prisões e até as mortes resultantes das ações policiais como um dado inquestionável de eficiência. Esquecem os

defensores da realidade intocável que os números não existem independentes de uma análise interpretativa, de

que somente os homens com seus interesses historicamente construídos podem concluir acerca, por exemplo, de

um crescimento no número de pessoas encarceradas, no aumento da quantidade de armas apreendidas e,

principalmente, nos elevados índices de cidadãos mortos, de todos os lados, nos confrontos com a polícia. Ponto

a favor ou gol contra? Eficiência ou fracasso? Dever ou desvio? Estas conclusões dependem, inexoravelmente,

de uma tomada de decisão política.

O presente trabalho não se pretende imparcial na análise dos números e da realidade que envolve a

chamada "guerra contra as drogas" na cidade do Rio de Janeiro. Muito pelo contrário, analisa as práticas

punitivas na repressão ao tráfico de drogas ilícitas partindo da premissa de que esta política criminal é irracional

ao produzir danos maiores do que aquilo que pretende proteger', ocultando sua verdadeira função de punir os

pobres, ao segregar os estranhos da era do consumo. É neste ponto que quero chegar. Sou eternamente grato aos

professores Nilo Batista e Vera Malaguti Batista, que, mesmo remando contra a maré, conseguiram estabelecer

e coordenar, no período entre 1999 e 2005,0 curso de mestrado em ciências penais da Universidade Cândido

Mendes, capaz de fornecer um aparato de conhecimento crítico para aqueles que, sem perder a ternura jamais,

ainda sonham em continuar a exercer alguma atividade no chamado sistema penal. Não fossem eles, nada seria

revelado.

Neste momento histórico, em que nosso país se vê diante de crescentes demandas punitivas, criadas e

reforçadas por um sentimento de insegurança desenvolvido a partir da falência do atual modelo

socioeconômico, o pensamento e a liderança dos professores Nilo Batista e Vera Malaguti Batista são como

uma trincheira de resistência para aqueles que ainda ousam defender a verdade dos oprimidos.

BATISTA, Nilo. "Política Criminal com derramamento de sangue". In: Discursos Sediciosos n2-' 5/6.

Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 77.

CAPÍTULO 1

INTRODUÇÃO:

DEFININDO OS TRAFICANTES DE DROGAS ILÍCITAS

A delinqüência, ilegalidade dominada, é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes. (Michel

Foucault)

O Fundo Monetário Internacional calcula que o chamado crime organizado movimenta, por ano, 750

bilhões de dólares, sendo que 500 bilhões de dólares são gerados pelo "narcotráfico"2. No comando deste

grande negócio é identificada, em seu aspecto político e legal, a figura do "narcotraficante", cujo estereótipo,

construído pelo discurso oficial e divulgado pela mídia, aponta para o protótipo do criminoso organizado,

violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa legislação

outrora como "entorpecente" e hoje, genericamente, como "droga".

Toda a atual política de repressão ao comércio de drogas ilícitas está voltada a combater este "inimigo"

da sociedade que, já no final dos anos noventa, representava em torno de 60% da população carcerária no

Estado do Rio de Janeiro3.

Como delegado de polícia, atuando há pouco mais de seis anos na capital, acabei por encontrar uma

realidade diversa daquela que nos é apresentada, diariamente, enquanto "verdade". Os criminosos autuados e

presos pela conduta descrita como tráfico de drogas são constituídos por homens e mulheres extremamente

pobres, com baixa escolaridade e, na grande maioria dos casos, detidos com drogas

______________________________________________________________ 2

ROCCO, Rogério. O que é legalização das drogas? São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 72. 3

Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1998, p. 236. Do total de 12.072 presos no regime fechado,

7.398 tinham por motivo da condenação o tráfico de entorpecentes.

portar nenhuma arma. Desprovidos do apoio de qualquer "organização", surgem, rotineiramente, nos distritos

policiais, os "narcotraficantes", que superlotam os presídios e casas de detenção.

O sistema penal revela assim o estado de miserabilidade dos varejistas das drogas ilícitas, conhecidos

como "esticas", "mulas", "aviões", ou seja, aqueles jovens (e até idosos) pobres das favelas e periferias cariocas,

responsáveis pela venda de drogas no varejo, alvos fáceis da repressão policial por não apresentarem nenhuma

resistência aos comandos de prisão.

O fato de a imprensa e de as autoridades públicas darem grande destaque às prisões dos chamados

"chefes" do tráfico, dedicando as primeiras páginas dos jornais e muitos esforços à captura dos "donos" do

negócio relativo ao comércio de drogas, demonstra, por si só, a existência de um escalonamento. De um lado

"grandes" traficantes, como Fernandinho Beira-Mar, e pouco mais de uma dezena de nomes considerados

delinqüentes de alta periculosidade, para os quais são reservadas algumas celas nos presídios de segurança

máxima; do outro, milhares de "fogueteiros", "endoladores" e "esticas" que, junto dos "soldados"- única

categoria armada e responsável pela segurança do negócio - , assemelham-se mais à estrutura de uma empresa

do que a de um exército, lotando as carceragens do estado.

Apesar de a própria Secretaria de Segurança admitir diferentes níveis de delinqüência ao tratar do

tráfico4, a conduta de quem dispara fogos de artifício para avisar da chegada da polícia recebe o mesmo

tratamento penal de quem tem o comando do negócio no varejo, bem como dos grandes produtores e daqueles

respeitáveis

______________________________________________________

A Subsecretaria de Inteligência da SSP/RJ passou a adotar, após o término da Operação Rio, em maio de 1995,

a "Teoria dos 3 Níveis ou do Iceberg Invertido", desenvolvida pelo cel. Romeu A. Ferreira, que classifica a

criminalidade no tráfico de entorpecentes em diferentes categorias.A teoria reconhece que o comércio ilícito de

drogas nas favelas é a ponta de um iceberg invertido onde se concentra o maior número de pessoas que ficam

expostas à repressão (criminalidade de nível 3), ao passo que os "novos ricos" e "os cidadãos acima de qualquer

suspeita" estariam situados na criminalidade de níveis 2 e 1, que ilustrariam a ponta submersa (oculta) do

iceberg invertido.

empresários que financiam a produção e o comércio destas substâncias com todos respondendo, em abstrato,

pelo mesmo crime.

Outra grande constatação ocorreu quando da minha transferência como delegado adjunto da 41' DP

(Jacarepaguá) para a 16' DP (Barra da Tijuca). Em Jacarepaguá, responsável péla circunscrição que inclui

comunidades como a da Cidade de Deus e a do Morro do São José Operário, a cada plantão realizava, no

mínimo, um flagrante de tráfico, com diversas apreensões de drogas e armas pelo Batalhão da Polícia Militar.

Ao contrário, em quase um ano como delegado de plantão na Barra da Tijuca, só lavrei um flagrante de tráfico

que resultou na prisão de uma senhora de quase 60 anos.

A "delinqüente" revendia pequenas quantidades de maconha para alguns consumidores em Vargem

Grande, dentro da sua própria residência, um casebre simples da região. O fato se tornou ainda mais peculiar,

uma vez que a ocorrência foi conduzida por policiais militares, residentes na localidade, que, no seu dia de

folga, resolveram proceder na luta contra o crime, pois não queriam aquele "tipo de comércio" próximo a suas

moradias.

Diante dos fatos, se um pesquisador tivesse acesso às estatísticas policiais no Rio de Janeiro, chegaria à

conclusão de que não existe tráfico de drogas ilícitas na Barra da Tijuca. O sistema penal realiza, assim, um

duplo processo seletivo presente não só na questão das drogas, bem como na persecução de todos os demais

comportamentos delitivos.

Inicialmente o Estado define em lei as condutas consideradas como crime, para, imediatamente após,

selecionar as pessoas que irão responder por estes fatos. Exemplo dessa dupla seletividade nos é fornecido pelo

ilustre criminólogo e penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, ao relacionar a prática do crime de falsidade

ideológica a juízes que, diariamente, subscrevem declarações como prestadas na sua presença e nas quais jamais

estão presentes'.

Em razão do cargo que ocupo, posso afirmar que boa parte dos autos de prisão em flagrante, lavrados

nas delegacias de nosso

_______________________________________

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte

Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997,p. 58.

estado e assinados pelas autoridades policiais, não tem a presença dessas mesmas autoridades, tipificando a

conduta prevista no crime de falsidade ideológica. Porém, quantos juízes ou delegados de polícia respondem

por esse crime?

Não estou com essa afirmação clamando pela punição dos delegados e juízes que, muitas vezes, por

força do acúmulo de serviço, não podem estar presentes em todos os atos exigidos pela lei. Mas é o óbvio

ululante, o óbvio dos óbvios, na expressão de Nélson Rodrigues, que o crime de falsidade ideológica não foi

previsto para alcançar essas condutas.

No tocante ao delito de tráfico de drogas a seletividade punitiva pode, além da observação empírica, tal

como na minha passagem pelas delegacias de Jacarepaguá e Barra da Tijuca, ser comprovada pelas estatísticas

de registros desse crime nas diversas unidades de polícia judiciária do Rio de Janeiro.

Para se ter uma idéia, no ano 2005, entre os flagrantes lavrados para apurar a conduta de tráfico de

drogas ilícitas na Capital e Baixada Fluminense, todas as delegacias da zona sul reunidas, incluindo Botafogo,

Copacabana, Ipanema, Leblon e Gávea, somadas à Barra da Tijuca (zona oeste), atingem aproximadamente um

terço dos registros realizados somente na 34a DP, em Bangu. Observemos:

Mapa de ocorrências por detalhamento de delito tráfico de entorpecente (2005

DELEGACIA

(ÁREA)

FLAGRANT

ES 34ª DP (Bangu) 186 36ª DP (Santa Cruz) 89 21ª DP (Bonsucesso) 83 32ª DP (Jacarepaguá) 73 62ª DP (Imbariê) 67 17ª DP (São

Cristóvão)

63 TOTAL 561

ZONA SUL 15ª DP (Gávea) 17 10ª DP (Botafogo) 15 12ª DP (Copacabana) 14 ª DP (Leblon) 9 13ª DP (Ipanema) 5 16ª DP (Barra da Tijuca) 3 TOTAL 63

É mais do que evidente que os registros realizados pela polícia não correspondem à realidade da

circulação e comércio de drogas ilícitas no Grande Rio; caso contrário, deveríamos acreditar que em Bangu

existe um movimento de drogas três vezes maior que em toda a zona sul carioca e Barra da Tijuca, ou que em

São Cristóvão circula a mesma quantidade de drogas que em todos os bairros da zona sul mais Barra da Tijuca.

Os números, no entanto, revelam algo muito mais concreto do que a própria realidade. A partir do

mapa de registro, apresentado anteriormente, podemos estudar a opção política do Estado ao tratar da maior

demonstração do exercício de poder a sua disposição, ou seja, o encarceramento. A isto nos referimos como

seletividade punitiva.

Todas as sociedades contemporâneas que institucionalizam ou formalizam o poder (estado) selecionam

um reduzido número de pessoas que submetem à sua coação com o fim de impor-lhes uma pena. Esta seleção

penalizante se chama criminalização e não se leva a cabo por acaso, mas como resultado da gestão de um

conjunto de agências que formam o chamado sistema pena16.

Na lição de Zaffaroni e Nilo Batista, o poder punitivo penal se traduz num processo seletivo de

criminalização que se desenvolve em duas etapas denominadas, respectivamente, primária e secundária.

_______________________________________________________

ZAFFARONI, Eugenio Raid e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro.

*Fonte do ISP (Instituto de Segurança Publica) Primeiro volume. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003, p. 43.

A criminalização primária, exercida pelas agências políticas (poder legislativo), é o ato e o d'eito de

sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-se de um

programa de punição a ser cumprido pelas agências de criminalização secundária (policiais, promotores, juízes,

advogados, agentes penitenciários).

A criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que se desenvolve

desde a investigação policial até a imposição e a execução de uma pena e que, necessariamente, se estabelece

através de um processo seletivo.

A seleção punitiva ocorre uma vez que é impossível para os gestores da criminalização secundária

realizarem o projeto "faraônico" de criminalização primária previsto em todas as leis penais de um país. Ou

seja, não é possível ao sistema penal prender, processar e julgar todas as pessoas que realizam as condutas

descritas na lei como crime e, por conseguinte, as agências penais devem optar entre o caminho da inatividade

ou da seleção. "Como a inatividade acarretaria o seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda burocracia e

procedem à seleção", concluem Zaffaroni e Nilo Batista, ressaltando que esse poder de seleção corresponde,

fundamentalmente, às agências policiais.

Opera-se, portanto, uma inversão total da estrutura formal do aparelho repressor.A magistratura e o

Ministério Público passam a ter delimitadas as suas faixas de atuação pela polícia, que, na realidade das práticas

informais, decide quem vai ser processado e julgado criminalmente:

Exatamente ao reverso do que apregoa a ideologia, é a policia quem controla a atividade do Judiciário,

pois este só trabalha com o material concedido por aquela. Graças a isto pode o Judiciário manter uma

aparência de isenção e pureza, uma vez que a parte ostensivamente suja da operação discriminatória se realiza

antecedentemente à sua atuação'.

___________________________________

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Amen Júris, 1998, p. 87.

Em se tratando de segurança pública, não são os índices que determinam a política, mas a política que

determina os índices. Assim, os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia

judiciária do que a realidade criminal, conforme observação do coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira ao

destacar o comentário de Lola Anyar de Castro de que a cifra oculta da criminalidade enfraqueceu o papel das

estatísticas como fonte precisa de interpretação do fenômeno criminal : "Uma multiplicação de delitos nas

estatísticas pode significar somente uma multiplicação de esforços por parte da polícia e maior eficiência dos

tribunais e não que a delinqüência tenha aumentado".

Todavia, de que forma o sistema penal realiza a seleção das pessoas que vão responder pela conduta

prevista como tráfico de drogas ilícitas?

A criminologia crítica incumbiu-se da análise da chamada "cifra negra", isto é, do estudo daqueles

delitos cometidos na sociedade que nunca chegam ao conhecimento das autoridades constituídas e de outros

que, apesar de gerarem um procedimento investigatório, não resultam em processo criminal.

Quem melhor explica a categoria "cifra oculta da criminalidade" é a criminóloga venezuelana Lola

Anyar de Castro, que, em seu livro Criminologia da reação social, distingue a criminalidade legal da aparente e

da real. A criminalidade legal seria aquela que aparece registrada nas estatísticas oficiais, já a criminalidade

aparente é toda aquela que é conhecida por órgãos de controle penal (polícia, Ministério Público, juízes etc.),

ainda que não apareçam nas estatísticas por diversos motivos, como, por exemplo, a falta de sentença, a

desistência da ação, autoria não identificada, arquivamento, entre outros. Por fim, temos a criminalidade real,

que é a quantidade de delitos verdadeiramente cometidos em um determinado momento. Afirma Lola Anyar:

_________________________________________

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. °futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova policia. Rio de janeiro:

Freitas Bastos, 2001, p. 227.

Entre a criminalidade real e a criminalidade aparente, há uma enorme quantidade de casos que jamais

serão conhecidos pela polícia. Esta diferença é o que se denomina cifra obscura, cifra negra ou delinqüência

oculta. A diferença entre a criminalidade real e aparente seria, pois, dada pela cifra negra.9

Quatro fatores preponderantes servem para explicar o fenômeno, como nos mostra o criminólogo

brasileiro Augusto Thompson". São eles: a visibilidade da infração; a adequação do autor ao estereótipo do

criminoso construído pela ideologia prevalente; a incapacidade do agente em beneficiar-se da corrupção ou

prevaricação; e a vulnerabilidade à violência.

O espaço em que se opera a venda de drogas ilícitas na zona sul e Barra da Tijuca é completamente

distinto de outras regiões, como Jacarepaguá, Bangu e Bonsucesso. Os grandes pontos de venda de drogas

ilícitas na Barra, por exemplo, se localizam em áreas residenciais de acesso privado, como apartamentos e

condomínios, espaços onde a polícia não tem entrada franqueada. Imagine a proposta de se policiar

ostensivamente as entradas e saídas dos grandes condomínios da Avenida das Américas para "combate" ao

tráfico de drogas!

De forma distinta encontra-se o espaço onde circula a mercadoria ilícita nas favelas do Alemão e

Cidade de Deus, onde a polícia, ainda que de forma limitada, tem acesso livre às vielas e becos onde ocorre o

comércio ilegal das drogas. A polícia não enxerga um palmo além do espaço público! - como conclui

Thompson:

As classes média e alta tendem a passar a maior parte do tempo em locais fechados; os indivíduos

marginalizados vivem a céu aberto. Compreende-se, por isso mesmo, haver muito mais probabilidade de serem

os delitos dos miseráveis vistos pela polícia do que os perpetrados pela gente de posição social mais elevada.

Como conseqüência, idênticos comportamentos, dependendo do estrato a que pertence o sujeito, mostrarão

variações quanto a gerar o reconhecimento de serem criminosos.

____________________________________________________ 9

DE CASTRO, Lola Anyar. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 68. 10

THOMPSON, op. cit., p. 60.

Também responsável pela "cifra negra" é a adequação do autor ao estereótipo do criminoso. Crime e

miséria têm sido constantemente associados. Setores ditos progressistas consideram, ainda hoje, a pobreza como

causa do crime, sendo que o primeiro traço definidor da imagem do delinqüente é o seu status social. Afirmar

que o criminoso é caracteristicamente pobre facilita inverter os termos da proposição para afirmar que o pobre é

caracteristicamente criminoso".

No que concerne ao crime definido como tráfico de drogas ilícitas, um breve olhar sobre os registros de

ocorrência desse delito revela a posição social dos seus autores, como bem demonstrou o rapper MV Bill,

morador da Cidade de Deus, ao desabafar: "Reparem nas roupas e nos dentes de todos os presos e dos detidos

como traficantes nas favelas. São dignos de dó"12.

Lembro-me da passagem em que um delegado do meu concurso, lotado na 14 DP (Leblon), autuou, em

flagrante, dois jovens residentes da zona sul pela conduta descrita para o usuário, porte de droga para uso

próprio, por estarem transportando, em um veículo importado, 280 gramas de maconha. Para se ter uma idéia do

que isso representa em termos quantitativos, um bom cigarro de maconha tem um grama, segundo Bob Marley,

o que equivaleria a 280 "baseados" do estilo jamaicano.

O meu amigo se convenceu de que a quantidade não era determinante para prendê-los no tráfico, uma

vez que a forma com que a droga estava condicionada, dois volumes prensa dos, bem como

______________________________________________________

THOMPSON, Augusto. "Reforma da polícia: missão impossível". In: Discursos Sediciosos- Crime, Direito e

Sociedade n21

9/10. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 244. 12

MV BILL. "Quanto custa uma vida?". In: Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 11 junho, p.12.

o fato de os rapazes serem estudantes universitários e terem emprego fixo, além da folha de antecedentes

criminais limpa, era indiciário de que o depoimento deles, segundo o qual traziam a droga para uso próprio, era

pertinente. O delegado lavrou o flagrante e, em quatro páginas, fundamentou sua decisão, que autorizou a

concessão da fiança e a liberdade provisória dos detidos, conforme a lei em vigor naquele momento.

O fato criou grande repercussão em nosso grupo, uma vez que o representante do Ministério Público

após receber o inquérito resolveu denunciar os dois jovens no crime de tráfico de drogas, expedindo oficio à

Corregedoria de Polícia Civil requisitando instauração de procedimento apuratório em relação à conduta do

delegado. O tempo passou e o juiz competente para o processo, na sentença, condenou os dois réus,

desclassificando do delito de tráfico para aquele previsto para o usuário, seguindo o mesmo raciocínio da

fundamentação do flagrante feito pelo delegado.

Ainda hoje tenho muito respeito por esse companheiro de profissão, já falecido, pela coragem

demonstrada na apreciação do fato, mas ainda me pergunto: será que a mesma postura seria por ele adotada se

os jovens fossem negros e estivessem transportando a droga para uso próprio em um ônibus, ainda que

comprovassem trabalho e tivessem a ficha sem anotação?

Por ironia do destino, na realidade da prática policial, a comprovação de renda, ao contrário do que se

poderia imaginar, é indício de que a pessoa que é detida portando drogas corresponde à figura do usuário e não

à do traficante. Não estou aqui fazendo nenhuma proposta de maior punição aos usuários que tenham renda

suficiente para armazenarem grandes quantidades de drogas para consumo próprio. Como bem nos ensinou o

professor Juarez Tavares, não se pode resolver injustiça social com injustiça pernil'. Caso contrário, estaremos

nos enquadrando no comportamento a que a

______________________________________________ 13

TAVARES, Juarez. "Os limites dogmáticos da cooperação penal internacional". In: Princípios de

Cooperação Judicial Penal Internacional do protocolo do Mercosul. Revista dos Tribunais, 2000, p.174.

genial juíza Maria Lúcia Karam denominou "esquerda punitiva"". Porém, não podemos deixar de observar que

o traficante tem uma cara predefinida.

O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador da

favela, próximo do tráfico de drogas vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de

poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda. Observa a

criminóloga Vera Malaguti Batista'', que em seu livro Difíceis ganhos fáceis, consegue desvendar a seletividade

punitiva nos arquivos do extinto Juizado de Menores. Aos jovens consumidores da Zona Sul aplica-se o

paradigma médico, através de atestados médicos que garantem soluções correcionais fora dos reformatórios, ao

contrário do destino dado aos jovens das classes baixas, para os quais se aplica o paradigma criminal.

Outro fator utilizado na discriminação seletiva daqueles que se enquadram como traficantes é a

incapacidade do agente em beneficiar-se da corrupção ou prevaricação. Conforme nos ensina Thompson, "só

pode subornar quem dispõe de recursos (corrupção); só pode pedir para ser atendido quem goza de prestígio

(prevaricação)"6. Talvez esse fator seja o que melhor explica o fato da captura dos chamados "chefes" do tráfico

nas favelas ser tão comemorado pelo poder. "Quanto vale uma cabeça" é jargão utilizado com freqüência nos

meios policiais e fazem referência ao valor a ser pago por um gerente ou "dono" do comércio de drogas nas

comunidades pobres quando preso.

Entretanto, o poder econômico não protege a grande maioria dos envolvidos com o comércio de drogas

ilícitas nas favelas e periferias da cidade. A partir dos anos 1980, com a sedi-

___________________________________________________ 14

KARAM, Maria Liicia."A esquerda punitiva". In: Discursos Sediciosos- Crime, Direito e Sociedade, n° 1.

Rio de Janeiro: Relume-Durnará, 1996, p. 79. 15

BATISTA,Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis - Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 28. "THOMPSON, op. cit., p. 245.

mentação da política de "guerra" contra as drogas, a divisão do trabalho no comércio ilegal fez surgir a figura

do "estica", aquele que resolve participar do negócio ilícito como revendedor da mercadoria.

Este "sacoleiro" das drogas ocupa a mesma posição dos camelôs e pivetes, sendo considerado bandido

de 31 classe, uma vez que é sobre ele que recai a repressão punitiva. Isso explica, por exemplo, o aumento do

número de mulheres e crianças envolvidas com o narcotráfico. Para ser "sacoleiro" de drogas não é preciso

portar nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organização criminosa. Basta ter crédito junto aos

fornecedores.

Autônomo no comércio ilegal, o "estica" é presa fácil, uma vez que não apresenta nenhuma resistência

às ordens de prisão e passa a participar do negócio ilegal oferecendo a sua própria liberdade como caução.

Desprovido do capital necessário para fazer parte como acionista do negócio ilícito, o "estica" se transforma em

revendedor comissionado no comércio de drogas, oferecendo o único bem de valor que lhe resta, qual seja, sua

própria liberdade de ir e vir. Uma breve pesquisa nos registros de flagrantes de tráfico de drogas revela, por

exemplo, que muitas das prisões são realizadas quando a droga está circulando, estando o agente desarmado no

interior de um ônibus'.

O espaço público, embora não citado por Thompson, também constitui fator de seletividade punitiva.

Vemos que o Estado escolhe políticas de segurança levando em consideração não somente a incidência

estatística da criminalidade. A política bélica de combate às drogas na favela da Rocinha - situada entre os

bairros da Gávea e São

________________________________________________ 17

R. O. 01174/2002 da 25' DP - Engenho Novo. 27/03/2002. Dinâmica do fato: Narra o comunicante que, na

noite do dia 26/03/2002, cerca de 21:45h estava participando de uma blitz na Rua Ana Néri, no bairro São

Francisco Xavier, juntamente com outros policiais militares, quando decidiu revistar a bolsa da nacional Leila

Maria Gomes, que se encontrava no interior do ônibus 474 Jacaré - Jardim de Alá, logrando encontrar um

tablete de maconha prensada na bolsa da conduzida.

Conrado, caminho obrigatório para quem vai da zona sul à Barra da Tijuca - não pode ser a mesma das

favelas do Alemão e Juramento, localizadas nos subúrbios cariocas.

A escolha em relação às pessoas que são atingidas pela prática da conduta descrita como tráfico de

substância entorpecente é algo irrefutável. Um simples olhar pelos milhares de presos condenados por esse

crime revela que, apesar de participarem do comércio ilegal de substância entorpecente, não passam daquilo que

o criminólogo norueguês Nils Christie denominou de "acionistas do nada'.

Ocupando a ponta final do comércio de drogas proibidas, "esticas", "mulas" e "aviões" ficam tão-

somente com uma parcela ínfima dos lucros auferidos no negócio, quantia esta que nunca os levará a possuir

participação real nas empresas que atuam no mercado ilegal das drogas. Sem propriedade, afastados de uma

rede social que os proteja e privados até da própria honra, os varejistas das drogas ilegais, em nossa cidade,

formam um contingente perigoso, levando o mesmo criminólogo a concluir: "Em todos os países

industrializados a guerra contra as drogas reforçou concretamente o controle do Estado sobre as classes

potencialmente perigosa s" 19•

Não é difícil, para um observador crítico, concluir pela concentração do capital gerado pelo

narcotráfico nas mãos dos grupos conhecidos como máfias ou cartéis internacionais. O estudo da geopolítica

das drogas, no entanto, aponta para outra premissa irrefutável: é impossível que um negócio, que movimenta

mais de um bilhão de dólares ao dia, beneficie tão-somente meia dúzia de narcotraficantes internacionais.

Surge, então, um problema: onde circula e quem se beneficia dos bilhões de "narcodólares" produzidos nesse

mercado proibido?

______________________________________________ 18

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 56.

19 Idem, p. 61.

Os jornalistas José Arbex Jr. e Cláudio Júlio Tognolli retratam com brilhantismo o casamento entre

capital e drogas":

O banqueiro saudita Gaith Pharaon, à época um dos quinze homens mais ricos do mundo, declarou, em

Buenos Aires, que todos os grandes bancos lavam dinheiro do narcotráfico, incluindo instituições como o First

Bank of Boston e o Credit Suisse. Pharaon se ressentia do fato de que apenas o seu Bank of Credit and

Commerce International, estopim de um grande escândalo financeiro em 1992, fosse citado com freqüência por

suas vinculações com o narcotráfico. Pharaon era também dono de uma cadeia de supermercados na França,

acionista da rede mundial do Club Mediterranee e da rede de hotéis Hiatt, de cinco estrelas. Entre seus amigos

estavam homens ilustres, como o presidente Carlos Menem, da Argentina. Tudo isso faz com que suas

declarações adquiram uma importância especial e permite que se vislumbre um pouco da hipocrisia dos

capitalistas que se comportam, publicamente, como donzelas indignadas contra o crime organizado e as drogas.

Quando o assunto é o comércio de drogas ilícitas, o legal e o ilegal aparecem mesclados de forma

indivisível e, como diz o mestre Eugenio Raúl Zaffaroni, a seletividade punitiva não é de toda arbitrária e se

orienta pelos padrões de vulnerabilidade dos candidatos à

criminalização, que, nesse caso, são as empresas mais

débeis, presas fáceis da extorsão2' e, na cidade do Rio de Janeiro, são representadas pelo tríduo PRETO-

POBRE-FAVELA.

Segundo o criminólogo e penalista argentino, esta seletividade exerce uma função de excluir da

competitividade do mercado este

______________________________________ 20

ARBEX JR. Jose e TO

GNOLLI, Cláudio Júlio. O século do crime. São Paulo: Boitempo Editorial, 1996, p.

213.

21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. "Crime organizado: uma categorização frustrada". In: Discursos Sediciosos -

Crime, Direito e Sociedade, n2 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p. 45.

setor debilitado, convertendo o sistema penal num fator de concentração econômica, que não importa na

exclusão das atividades ilegais do mercado, senão somente sua concentração junto às atividades legais. Assim, o

atual modelo repressivo acaba por realizar uma função de intervenção no mercado. Os varejistas são retirados

da competitividade do comércio ilegal, aumenta-se a corrupção na periferia e concentram-se os lucros do

negócio ilícito junto às atividades legais, responsáveis pela lavagem do dinheiro obtido com o comércio das

drogas proibidas.

Ainda sem considerar os interesses transnacionais presentes no atual modelo bélico, que assegura a

presença militar americana nos países do eixo-sul, em especial naqueles em cujos territórios encontra-se a

Floresta Amazônica, a atual política criminal de "combate" às drogas, longe de eliminar o comércio das

substâncias consideradas entorpecentes, acaba por reforçar e concentrar o grande negócio do tráfico nas mãos

dos grandes grupos econômicos e financeiros.

Com efeito, temos diante da seletividade punitiva da "guerra" contra as drogas aquilo que o sociólogo

Zygmunt Bauman denomina criminalização dos consumidores falhos, ou seja, daquela massa de excluídos que

não tem recursos para acessar o mercado de consumo - "aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos"22

.

Nesse ponto reside a única racionalidade do modelo bélico de repressão ao tráfico de drogas ilícitas: punir os

pobres, segregando os "estranhos" do mundo globalizado.

______________________________________________

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 57.

CAPÍTULO 2

CONTROLE SOCIAL, DISCURSO JURÍDICO E SELETIVIDADE PUNITIVA NO

TRÁFICODE DROGAS ILÍCITAS

Uma mentira deles, dez verdades. (Sabotage - rapper paulista)

Nesse capítulo ficarei adstrito em nível de definição da criminalizaçáo secundária, qual seja, aquela em

que os órgãos executivos do sistema penal selecionam as pessoas que irão responder pelas condutas definidas

como tráfico de drogas ilícitas, para no capítulo posterior descrever o processo de criminalização primária,

através do estudo histórico da legislação e das políticas de criminalização destas substâncias, e no terceiro

capítulo analisar os efeitos dos processos de criminalização do tráfico de drogas na sociedade pós-industrial,

quando, então, poderemos observar a contribuição da criminologia crítica na compreensão das verdadeiras

funções exercidas pelo modelo proibicionista.

Entendo que essa ordem segue a mesma direção das teorias deslegitimadoras do sistema penal que, a

partir dos dados reais observam a verdadeira incompatibilidade entre o discurso jurídico e as funções declaradas

do sistema punitivo com as suas funções reais, manifestas. Aliás, foi da observação do recrutamento pelo

sistema penal dos "acionistas do nada", ou seja, daqueles que integram a parte mais enfraquecida do tráfico de

drogas, auferindo lucros insignificantes em face do montante do negócio, que surgiu a idéia da presente

pesquisa.

O controle social, entendido como a 'Influência delimitadora do âmbito da conduta do indivíduo"23

, é

fenômeno intrínseco a toda sociedade. No interior de qualquer grupamento humano en-

_________________________________________________ 23

ZAFFARONI e PIERANGEL

I, op. cit., p. 61.

contraremos grupos mais próximos e mais afastados dos centros de decisão, sendo que para Lola Anyar de

Castro o controle social não passa de predisposições de táticas, estratégias e forças para a construção da

hegemonia, ou seja, para a busca da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão

forçada daqueles que não se integram à ideologia dominante24.

O controle social da conduta humana, no entanto, "não só se exerce sobre os grupos mais distantes do

centro do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar a sua própria

conduta para não se debilitar"25

. Dessa forma, independentemente do estrato social ocupado pelo indivíduo na

sociedade, o controle social é exercido sob todos os seus membros, inclusive aqueles responsáveis pela

imposição das normas comportamentais, tais como os deputados, juízes, policiais, padres e professores, que

também sofrem um controle rigoroso do sistema.

Um bom exemplo do controle daqueles que estão mais próximos dos centros de decisão reside no

escândalo provocado quando juízes, delegados de polícia e outras autoridades são "flagrados" desfilando em

uma das escolas de samba no carnaval carioca. Muito embora o evento seja organizado pela própria prefeitura,

como parte integrante do calendário oficial da cidade, a imprensa considera aviltante o fato de um magistrado,

por exemplo, participar da festa como folião.

O papel desempenhado pelo direito penal no controle social é distorcido pela dogmática que confere ao

Estado, com exclusividade, o direito de punir. A lição é curta e simples: a norma penal incriminadora cria para o

Estado, seu único titular, o direito de punir, configurando crime o exercício arbitrário das próprias razões,

conforme previsto no Código Penal Brasileiro. Contudo, até que ponto o Estado detém o monopólio da

violência física?

___________________________________________________

24 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 22.

25 ZAFFARONI e PIERANGELI, op. cit , p. 61.

Não haveria também exercício do poder punitivo na conduta de pessoas que internam seus ascendentes

em clínicas geriátricas contra a vontade destes? E o serviço militar obrigatório? Ainda podemos observar que o

controle social nem sempre é exercido pela via punitiva, uma vez que a família, a escola, a medicina, a religião,

os meios de comunicação de massa, por exemplo, definem padrões de comportamento

, induzindo condutas sem

serem percebidos como instituições de controle.

Afirmam Zaffaroni e Pierangeli que o sistema penal não tem a importância no controle social que o

discurso jurídico ordinário lhe atribui, sendo ainda mais modesto o lugar que cabe ao direito pena126

.Assim, o

âmbito do controle social é amplíssimo, sendo que, na classificação dos citados mestres, pode ser difuso (meios

de comunicação de massa, família, preconceitos) ou institucionalizado (escola, hospital psiquiátrico, polícia,

tribunais).

O controle punitivo, portanto, é tão-somente uma das modalidades de controle social, para o qual o

sistema penal presta relevante serviço ainda que de forma não exclusiva, uma vez que existem controles

punitivos, como certas práticas psiquiátricas (internação à revelia), que se apresentam formalmente como não

punitivas.

A perversão do discurso jurídico-penal faz com que se recuse, com horror, qualquer vinculação dos

menores (especialmente os abandonados), dos doentes mentais, dos anciãos e, inclusive, da própria prostituição

com o discurso jurídico-penal, embora submetam-se todos esses grupos a institucionalizações, aprisionamentos

e marcas estigmatizantes autorizadas ou prescritas pela própria lei que são, num todo, semelhantes - e,

freqüentemente, piores - do que as abrangidas pelo discurso jurídico penal 27.

_____________________________________________________________________

26 Idem, p. 68. 27

ZAFFARONI, Eugenio RaUl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 22.

De acordo com o ministro do Supremo Tribunal da Argentina, o discurso jurídico-penal exclui de seus

requisitos de legalidade o exercício de poder através de diversas práticas de controle punitivas e não punitivas,

tais como "o poder de seqüestro e estigmatização que, sob pretexto de identificação etc., fica a cargo de órgãos

executivos, sem intervenção efetiva dos órgãos judiciais"28

. Ocorre assim o fenômeno do poder configurador,

positivo, do sistema penal. Antes mesmo de reprimir, função que realiza com mediação do órgão jurisdicional,

operando tão somente um limite legal estabelecido pelo órgão legislativo, o sistema penal atua para além da

legalidade restringindo direitos e garantias constitucionais.

Os órgãos do sistema penal exercem, segundo o jurista argentino, um controle social disciplinar,

militarizado e verticalizado, distinto da função meramente repressiva, sendo exercido sobre a maioria da

população de forma substancialmente configuradora da vida social. Este poder configurador positivo exerce

controle sobre uma infinidade de comportamentos, ainda que essas condutas não estejam previstas na lei penal

como crime.

No que diz respeito ao poder exercido pelos órgãos do sistema penal no controle da circulação de

drogas ilícitas, a função repressiva é apenas uma das facetas do exercício desse poder. Prender, processar e

julgar os indivíduos que realizam as condutas descritas na lei como tráfico de drogas é tão-somente uma parcela

do controle social na questão envolvendo estas substâncias proibidas. O controle sobre as populações pobres e,

principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, das áreas ocupadas por essa população, conhecidas por "favelas", é

o exemplo mais gritante do exercício do poder configurador positivo.

Para além da função de reprimir a circulação destas substâncias, o sistema penal exercita um poder de

vigilância disciplinar, de uso cotidiano, nas áreas carentes, seja restringindo a liberdade de ir e vir naquelas

comunidades, através das prisões para averiguação, ou restringindo reuniões e o próprio lazer das pessoas, como

na ___________________________________________________________________________________________

28 Idem, p. 22.

30

proibição dos "bailes funks", que a pretexto de reprimir a "apologia ao narcotráfico", traduz o poder de controle

exercido sobre as populações pobres. Não é por menos que a historiadora Gizlene Neder, citada pela

criminóloga Vera Malaguti Batista, conclui: "a eficácia das instituições de controle social se funda na

capacidade de intimidação que estas são capazes de exercer sobre as classes subalternas"29.

Praticamente, não existe conduta - nem mesmo as ações mais privadas - que não seja objeto de

vigilância por parte dos órgãos do sistema penal ou daqueles que se valem de sua executividade para realizar ou

reforçar seu controle, embora se mostrem mais vulneráveis as ações realizadas em público, o que acentua a

seletividade da vigilância em razão da divisão do espaço urbano que confere menores oportunidades de

privacidade aos segmentos mais carentes 30.

O poder configurador ou positivo cumpre a função disciplinadora do sistema à margem da legalidade,

revelando um sistema de controle informal no âmbito dos órgãos do sistema penal que torna ínfimo o exercício

do sistema penal formal.

Para Michel Foucault, a partir do século XIX ocorre uma mudança que vai estender o exercício do

controle social para além do poder judiciário.

Chega-se, assim, à contestação da grande separação atribuída a Montesquieu, ou pelo menos formulada

por ele, entre o poder judiciário, poder executivo e poder legislativo. O controle dos indivíduos, essa espécie de

controle social punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça,

mas por uma série de outros poderes laterais, à

__________________________________________________________

BATISTA,Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 37.

ZAFFARONI, op.cit., p. 25.

31

margem da justiça, como a policia e toda uma rede de instituições de vigilância e de correção - a policia para a

vigilância, as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas e pedagógicas para a correção. É

assim que, no século XIX, desenvolve-se em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função

de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão

enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou

psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia etc. Toda essa rede de um poder que não &judiciário deve

desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos

indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades31.

Assim, para o filósofo francês: toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto

sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer,

do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer32.

É nesse momento histórico que se introduz, a partir da criminologia, a noção de "periculosidade"na

teoria penal, fazendo com que o indivíduo passe a ser considerado pela sociedade no nível de suas virtualidades

e não no nível dos seus atos.

Aparece a idéia de uma penalidade que tem por função não ser uma resposta a uma infração, mas

corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos, de suas atitudes, de suas disposições do perigo que

apresentam, das virtualidades possíveis.

___________________________________________________ 31

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC-RJ e Nau Editora, 2001, pp. 85 e

86. 32

Idem, p. 85.

32

Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos, de penalidade que procura corrigi-

los pela reclusão e pelo internamento não pertence, na verdade, ao universo do Direito, não nasce da teoria

jurídica do crime, não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria. Essa idéia de uma penalidade que

procura corrigir aprisionando é uma idéia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça, em uma

prática dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder.

Definindo o poder punitivo a partir da norma penal, mas o exercendo efetivamente a partir de práticas

extra-penais, o poder configurador positivo do sistema revela uma incompatibilidade entre a teoria penal, que

programa um certo número de ações através de um discurso jurídico e, por outro, uma prática real, social, que

conduz a resultados totalmente diversos, numa espécie de processo "esquizofrênico", onde o sistema penal

obtém sua (auto) legitimação através da lei, mas não consegue atingir a legitimidade social, entendendo-se por

legitimidade a "qualidade que se pode predicar ao sistema pela relação de congruência entre programação

(normativa e teleológica) e operacionalização e, por legitimação, "o processo mediante o qual se atribui esta

qualidade ao sistema.

Assim, ao mesmo tempo em que o Estado moderno encontra no sistema penal um dos seus

instrumentos de violência e poder político, de controle e domínio, necessitou formalmente desde seu nascimento

de discursividades ("saberes" e "ideologias") tão aptas para o exercício efetivo deste controle quanto para a sua

justificação e legitimação35.

__________________________________________ 33

Idem, p. 99.

PEREIRA DE ANDRADE,Vera Regina. A Ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2003, p. 181. 35

Idem, p. 176.

33

Podemos, de acordo com a professora Vera Regina Pereira de Andrade, distinguir duas dimensões e

níveis de abordagem na estrutura do moderno sistema penal: uma dimensão definicional ou programadora do

controle penal que define as regras do jogo para suas ações; uma dimensão operacional que deve realizar o

controle penal com base naquela programação. Surge aqui a pergunta que irá modificar definitivamente o

paradigma criminológico:

Em que medida têm sido cumpridas as promessas da dogmática Penal na trajetória da modernidade?

Tem a dogmática Penal conseguido garantir, com sua metaprogramação, os direitos humanos individuais contra

a violência punitiva? Tem sido possível controlar o delito com igualdade e segurança jurídica?36

Impõe-se, assim, a necessidade de uma análise relacional apta a contrastar a programação normativa e

a metaprogramação dogmática do Direito Penal com a operacionalidade do sistema penal enquanto conjunto de

ações e decisões. Pois é esta análise constrastiva que possibilita emitir juízos de (in)congruência entre

operacionalidade ("ser") e programação (“dever-ser"), entre o acontecido socialmente e o postulado jurídica e

dogmaticamente (...) 37

.

O discurso jurídico penal contratualista clássico "foi construído sob a égide da laicização do direito

(delito) e moral eclesiástica (pecado)"38.A caracterização e delimitação do direito penal surgem com a

definição de princípios gerais. "Toda legislação positiva pressupõe sempre certos princípios gerais do direito",

afirmou Kaufrnann, citado por Nilo Batista". Os princípios gerais do direito penal constituem assim os alicerces

para a definição do discurso jurídico legitimante.

_________________________________ 36

Idem, p.170. 37

Idem, pp.169-170.

38 CARVALHO, Sallo de. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de

Janeiro: Ltimen Júris, 2001, p. 69.

39 BATISTA, op. cit., p. 61.

34

O princípio da lesividade, corolário do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, transporta

para o terreno penal a questão da distinção discursiva entre o direito e a moral.

Assim sendo, desde o seu nascimento o discurso jurídico penal traz a noção de tutela a um bem

jurídico - como nos ensina Roxin, citado por Nilo Batista:

Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é

simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (...) o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica

externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos

cidadãos40.

Partindo de um conceito material de delito, o discurso-jurídico entende o crime como um desvalor da

vida social, ou seja, uma ação ou omissão que se proíbe e se procura evitar, ameaçando- a com pena, porque

constitui ofensa (dano ou perigo) a um bem, ou um valor da vida social.

O objeto principal da proteção penal nos crimes de tráfico e uso indevido de drogas ilícitas é a saúde

pública (Menna Barreto)41

. Assim, todas as condutas punidas pela lei têm por escopo a proteção de algo que

poucos juristas conseguem definir, mas que revela a necessidade da autolegitimação do sistema penal a partir da

criação da norma jurídica - "A tarefa imediata do direito penal é, por tanto, de natureza eminentemente jurídica

e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empenhado todo o ordenamento jurídico",

afirma Francisco de Assis Toledo42

. Entretanto o que é saúde pública? Seria tal bem jurídico uma ficção?

_______________________________________

40 Idem, p. 91.

41 JESUS, Damásio de E. Lei antitóxicos anotada. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 11. 42

TOLED O, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 13.

35

Qual seria a tarefa do direito penal ao reprimir o tráfico de drogas ilícitas? A resposta da ciência penal

a essas perguntas revelará a falácia do discurso jurídico penal no que diz respeito à tão divulgada "guerra contra

as drogas", àquilo que Nilo Batista chamou de "política criminal com derramamento de sangue" 43

.

Realmente, o interesse jurídico concernente à saúde pública, de natureza difusa, não é fictício. Não

constitui meramente referência abstrata criada pelo legislador. É um bem palpável, uma vez que se encontra

relacionado a todos os membros da coletividade e a cada um considerado individualmente (...) de modo que;

quando lesionados, interferem na vida real de todos os membros da sociedade ou de parte dela antes de haver

dano ou perigo de lesão individual. Resulta que os delitos de tráfico e uso indevido de entorpecentes e drogas

afins têm a saúde pública como objeto jurídico principal (imediato), entendida como "o estado em que o

organismo exerce normalmente todas as suas funções" (Dicionário da Real Academia Espanhol) . (Grifo nosso)

Outro conceito de saúde pública pode ser encontrado no dicionário de direito penal do ministro do STJ

Vicente Cernicchiaro: "interesse do Estado de preservação e normal funcionamento do organismo dos membros

da sociedade".

A irracionalidade decorrente da distância entre a programação jurídico- discursiva e a realidade

operacional do sistema nos é então revelada:

Imaginemos a surpresa do pesquisador que um dia comparar o número de pessoas mortas pelas drogas,

por overdose, debilita-

________________________________________________

43 BATISTA, Nilo. "Política criminal com derramamento de sangue". In: Discursos Sediciosos, na 5/6. Rio de

Janeiro: Freitas Bastos, 1998,p. 77. 44

JESUS, Damásio de. Op. cit., p. 12.

45 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Dicionário de direito penal. Brasília: Universidade de Brasília, 1974, p.

447.

36

ção progressiva ou qualquer outro motivo, com o número de pessoas mortas pela guerra contra as drogas" .

A atual política criminal da chamada "guerra contra as drogas" evidentemente ofende mais à saúde

pública que à própria circulação destas substâncias. Se é verdade que o direito busca, ao reprimir as condutas

descritas como tráfico de drogas, proteger "o estado em que o organismo social exerce normalmente todas as

suas funções" (saúde pública), como entender que a violência criada pela guerra contra o tráfico no Rio de

Janeiro tenha atingido níveis de homicídios superior aos da guerra de Bush no Iraque?"

O número de mortes causado pelos sistemas penais latino- americanos aproxima-se e, às vezes, supera

o total de homicídios de "iniciativa privada", segundo Zaffaroni48

Já no início da década de 90, pesquisas

apontam que do total de homicídios registrados no espaço público, aproximadamente 70% envolvem a chamada

"guerra ao narcotráfico",49

contabilizando "baixas" entre policiais e traficantes, que, coincidentemente, são

oriundos dos mesmos estratos populares de nossa sociedade, levando alguns rappers nacionais a se referirem

aos policiais militares como "o ze povinho fardado".

A incongruência entre a operacionalidade

do sistema penal ("ser") e sua programação ("dever ser")

também reside no fato de as

_____________________________

46 BATISTA, op. cit., p. 90.

47 'Guerra do tráfico mata 14 num só dia". Reportagem de capa do jornal O Globo do dia 23/01/2004, quando

cinco traficantes do Complexo da Maré foram mortos em confrontos com a polícia e nove pessoas foram

mortas por traficantes em Santa Cruz.

48 ZAFFARONI, Eugenio R.a61. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 39. 49

No Rio de Janeiro, em 1992, três quartos dos homens vítimas de homicídio eram assassinados em espaços

públicos e dois terços das vítimas o eram em função do tráfico de drogas (Luiz Eduardo Soares, Violência e

política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, pp. 241-2)

50 MV Bill e Chorão.

37

drogas lícitas causarem resultados lesivos em números reconhecidamente maiores do que as drogas ilícitas. "O

álcool e o fumo, que são drogas lícitas, causam mais danos à saúde pública do que as ilícitas, como maconha e

cocaína", alerta da Organização Mundial da Saúde em recente relatório lançado em Brasília e divulgado pelos

jornais51

. De acordo com a OMS, entre os dez fatores de risco de se adquirir doenças evitáveis, o tabaco figura

em quarto lugar, seguido pelo álcool, em quinto. Cigarros e bebidas alcoólicas contribuíram com 4,1% e 4%,

respectivamente, para as causas de doença em 2000, enquanto substâncias ilícitas foram associadas a 0,8%.

Evidentemente a saúde pública, enquanto bem jurídico tutelado, não corresponde ao somatório das

saúdes individuais. Reconhecendo que a saúde dos membros do corpo social seja algo distinto da saúde dos seus

integrantes, conforme nos ensina a dogmática, entendendo-se ainda que os crimes envolvendo drogas ilícitas

atinjam não somente à qualidade de vida da população, bem como coloquem em risco e causem lesões efetivas

aos seus habitantes, como explicar que drogas permitidas produzam danos socialmente relevantes em

quantidade superior às substâncias proibidas? Basta nos centrarmos nos acidentes de trânsito provocados pelo

uso de álcool para concluirmos pela impossibilidade do discurso jurídico- penal em explicar, para além do

campo normativo, a distinção entre drogas lícitas e ilícitas.A imprecisão, longe de caracterizar falha científica,

surge como uma arma:

Um livro sobre narcotráfico é uma obra de política, uma reflexão sobre relações e jogos de poder, e não

sobre drogas no sentido farmacológico ou técnico. Desse modo não cabem discussões prolongadas sobre as

propriedades químicas das drogas

__________________________________________

51 "Drogas lícitas matam mais que as ilegais", reportagem do Jornal O Globo de 19/03/2004, coluna Ciência e

Vida, p. 36.

38

e seus efeitos no corpo e na mente. No entanto, há que se enfrentar de saída uma importante questão: a

nomenclatura das drogas como uma relação de poder.52

Drogas, tóxicos, narcóticos, entorpecentes, são diferentes nomenclaturas imprecisas para designar

substâncias de circulação proibida em nossa legislação. Considerando que muitos medicamentos são

distribuídos pelas chamadas "drogarias", podemos observar que, ao contrário da nomenclatura policialesca, a

palavra droga significa, no plano médico, aquilo que chamamos de remédio. Inseticidas e outros venenos

utilizados nas produções agrícolas são produtos que estavam fora do objeto de proteção da "lei de tóxicos",

como ficou conhecida a revogada lei 6.368/76 e, por fim, narcóticos e entorpecentes são designados

genericamente como drogas ilegais, embora não haja consenso no seu significado.

Estas más aplicações, que reúnem as drogas ilícitas sob nomenclaturas imprecisas, devem parte de sua

existência a práticas e atos classificatórios que se reproduzem, mas que também, da perspectiva política, acabam

cumprindo uma função importante, que consiste em condensar em um único bloco substâncias que são alvo de

perseguição governamental. Assim, o inimigo fica agrupado, fato que torna mais simples a declaração de guerra

às drogas53.

Em razão desses fatos, o professor Nilo Batista alerta para uma "trágica metáfora" ocorrida na Bolívia

e narrada por seus alunos bolivianos do curso de mestrado: "nas áreas em que os fuzileiros navais norte-

americanos despejaram suas poderosas drogas, que arrasam as plantações de coca e adjacências, começam a

nascer agora crianças deformadas” 54.

____________________________________________

52 RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desativo, 2003, p.18. 53

Idem, p. 21.

54 BATISTA, NILO. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 62.

39

Em seu artigo "Novos caminhos para a questão das drogas", a professora Maria Lúcia Karam assinala:

Talvez seja, neste tema das drogas, onde mais fortemente se manifeste a enganosa publicidade do

sistema penal, apresentado como um instrumento capaz de solucionar conflitos, como o instrumento capaz de

fornecer segurança e tranqüilidade, através da punição dos autores de condutas que a lei define como crimes".

Destinada a erradicar do globo todo um leque de compostos psicoativos, as diretrizes proibicionistas

terminaram por produzir um efeito contrário: organizações ilegais fortaleceram- se, uma variedade maior de

drogas ilícitas ficou à disposição dos interessados, e a violência que acompanha todo o negócio ilegal não

cessou de crescer. Essas observações procedem e, diante delas, até mesmo um leitor francamente contrário ao

uso de qualquer substância psicoativa estaria em condições de questionar o proibicionismo aplicado até hoje56.

A perda da legitimidade do sistema penal resulta assim de um processo de revelação de dados reais,

gerando um "impulso desestruturador", designado por Stanley Cohen como o conjunto de ataques - críticas,

demandas, visões, teorias, movimentos de reforma etc - que constituíram, desde a década de 60 como um

assalto continuado às próprias fundações (ideológicas e institucionais) do sistema de controle penal da

modernidade, cuja hegemonia perdurava há dois séculos57.

__________________________________________

55 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993, p. 21.

56 RODRIGUES, op. cit., p. 107. 57

PEREIRA DE ANDRADE, Vera Regina. A ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2003, p. 182.

40

Este "impulso desestruturador", na concepção do professor Zaffaroni, não foi produzido de forma

abrupta, mas resultou de um longo processo de revelação de dados reais, acompanhado de um paralelo

empobrecimento filosófico do discurso jurídico-penal" que culminou na crítica historiográfica, sociológica e

criminológica do moderno sistema penal, orientando movimentos de políticas criminais alternativas e de

reforma, que somente puderam ser penados a partir da desconstrução.

2. 1. As TEORIAS DA REAÇÃO SOCIAL

Os estudiosos do fenômeno da deslegitimação do sistema penal e do desprestígio dos discursos

jurídico-penais, no entanto, são unânimes em admitir que, embora diferentes dimensões analíticas tenham

participado desse movimento crítico, a crise do discurso jurídico-penal foi obra, principalmente, do saber

sociológico, que culminou na mudança do paradigma criminológico realizado pelas "teorias da reação social",

ou labelling approach, que operou "uma revolução científica no âmbito da sociologia criminar", com a seguinte

tese central:

(...) desvio - e a criminalidade - não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica

preconstituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos

através de complexos processos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e

seleção. Uma conduta não é criminal "em si" ou "per si" (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu

autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade (patologia). O caráter criminal de uma conduta e

atribuição de criminoso a seu ator depende de certos processos sociais de

_____________________________________________ 58

ZAFFARONI, op.cit.,. p. 45 59

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e critica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.

1999.p. 85

41

"definição", que atribuem à mesma um tal caráter, e de "seleção", que etiquetam um ator como

delinqüente 60.

Esta direção da pesquisa, na lição do professor Alessandro Baratta, parte da consideração de que não se

pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal:

(...) o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias

oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado

o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é

considerado e "tratado" como delinqüente" .

Assim, a criminologia da reação social experimenta uma troca de paradigmas, deslocando o interesse

desenvolvido pela criminologia positivista na investigação das "causas" do crime e, conseqüentemente, no

estudo do criminoso, para a reação social da conduta desviada. Ao invés de indagar, como a criminologia tradi-

cional,"quem é criminoso?","por que é que o criminoso comete crime?", o labelling passa a indagar quem é

definido como desviante?, por que determinados indivíduos são definidos como tais?, em que condições um

indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?, que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?, quem

define quem? e, enfim, com base em que leis sociais se distribui e concentra o poder de definição?62

Definir politicamente algumas condutas como delitivas; selecionar e estigmatizar criminosos, essas são

as reais funções exercidas pelo sistema penal na dimensão estabelecida pela criminologia da reação social, que

rompe definitivamente com o paradigma etiológico da criminologia positivista, a qual investiga as causas da

___________________________________________

60 PEREIRA DE ANDRADE, Vera Regina, op. cit., p. 205.

61 BAR.ATTA, op. cit. p. 86

62 DE ANDRADE, op. cit., p. 207.

42

criminalidade a partir de definições antropológicas e patológicas centradas no "criminoso". O objeto de estudo

da criminologia se desloca do crime para a criminalização ao acentuar que a criminalidade não é o objeto, mas o

produto da reação social. O labelling, assim, acentua o papel que o controle social realiza na construção da

realidade social, de forma que "as agências controladoras não detectam ou declaram a natureza criminal de uma

conduta, a geram ou produzem ao etiquetá-las assim' .

Precursor das teorias do "etiquetamento" e "rotulação", das quais provem a própria denominação do

labelling, Howard S. Becker sintetiza a dimensão do poder na definição de regras sociais, onde se inclui os

crimes:

As diferenças de habilidade para fazer regras e aplicá-las a outras pessoas são essencialmente

diferenças de poder (tanto legal como extralegal). Estes grupos cuja posição social lhes dá armas e poder estão

em melhor capacidade para implantar suas regras. Distinções em idade, sexo, étnicas e de classe estão todas

relacionadas com diferenças de poder. Além de reconhecer que o desvio é criado pelas respostas da gente

perante um particular tipo de conduta e por etiquetar esta conduta como desviante, nós devemos também ter em

mente que as regras criadas e mantidas por esta etiqueta não são universalmente aceitas. Ao contrário, estas são

objetos de conflito e desacordo, parte do processo político da sociedade."

Os estudos desenvolvidos pela criminologia da reação social rompem com o pensamento comum às

escolas clássica e positivista de que o delito e um dano para a sociedade e de que os interesses protegidos pelo

direito penal são comuns a todos os cidadãos, conforme orienta Alessandro Baratta ao identificar e analisar a

"ideolo-

_______________________________________ 63

Pablos Molina, apud Vera Regina Pereira de Andrade. Op. cit., p. 206. 64

Da obra de Becker "Los extrafios", 1971, Buenos Aires, apud Vera Regina Pereira de Andrade.

43

gia da defesa social" 65. O questionamento do consenso, neste contexto, pode ser observado como um dos

alicerces da teoria rotulacionista de Becker:

A questão sob qual o propósito ou meta (função) de um grupo e, conseqüentemente, que coisas

ajudarão ou retardarão a realização daquele propósito, é muitas vezes uma questão política. Facções dentro do

grupo discordam e manobram para ter aceita a sua própria definição da função do grupo. A função do grupo ou

organização, então, é decidida no conflito político, não dado na natureza da organização. Se isso é verdade,

então é provavelmente verdade que as questões quanto a quais regras deverão ser impostas, qual o

comportamento deve ser encarado como desviante e que pessoas devem ser rotuladas como marginais devem

também ser consideradas políticas”66.

O principio do interesse social e do delito natural, como um dos postulados da ideologia da defesa

social, apresentada por Baratta67, é questionado pelas teorias do conflito que, desenvolvidas sobre a base do

labelling approach, tratam de localizar as verdadeiras variáveis do processo de definição nas relações de poder

e nos grupos sociais, tomando em conta a estratificação social e os conflitos de interesse. A criminologia da

reação social "assenta, pois, na recusa do monismo cultural e do modelo de consenso como teoria explicativa da

gênese das normas penais"68.

A legitimação tradicional do sistema penal como um sistema necessário à tutela de condições

essenciais de vida de toda a sociedade civil, além da proteção de bens jurídicos e de valores

____________________________________________

65 BARATTA, op.cit., p. 41.

66 BECKER., Howard. Marginais e desviantes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 58. 67

BARATTA, op. cit., p. 42.

68 PEREIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 208.

44

igualmente relevantes para todos os consórcios, é fortemente problemalizada no momento em que se passa -

como é lógico em uma perspectiva baseada na reação social - da pesquisa sobre a aplicação seletiva das leis

penais à pesquisa sobre a formação mesma das leis penais e das instituições penitenciárias69.

O labelling aproach apresenta, assim, três níveis explicativos para o fenômeno criminológico,

consoante a professora Vera Regina Pereira de Andrade70:

a) um nível orientado para a investigação do processo de definição da conduta desviada, ou criminalização

primária, que corresponde ao processo de criação das normas penais, em que se definem os bens

jurídicos protegidos, bem como as definições informais apresentadas pelo público, onde se pode incluir

a mídia (definições de senso comum);

b) um nível orientado para a investigação do processo de atribuição do status criminal, ou processo de

seleção ou criminalização secundária, sendo tal o processo de aplicação das normas penais pela polícia e

pela justiça, sendo este o momento da atribuição da etiquetas ao desviante (etiquetamento ou rotulação),

que pode ir desde a simples rejeição social até a reclusão de um indivíduo em uma prisão ou manicômio;

c) por fim, um nível orientado para a investigação do impacto de atribuição do status de criminoso na

identidade do desviante, definindo o chamado "desvio secundário", onde se estuda as "carreiras

desviadas", evidenciando que a intervenção do sistema penal, em especial a prisão, ao invés de exercer

um efeito reeducativo sobre o delinqüente, acaba na grande maioria dos casos consolidando uma

verdadeira carreira criminal.

______________________________________ 69

BARATTA, op. cit., p. 42.

70 PEREIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 208.

45

Esses três níveis explicativos podem nos ajudar a entender como a criminalização das drogas, ao invés

de proteger a saúde pública, acaba por criar uma rotina punitiva de "cartas marcadas", que se inicia no projeto

legislativo de aumento de penas e restrições às liberdades individuais daqueles que são escolhidos para

responder pela conduta definida como "tráfico de drogas", bem como a criação de carreiras criminais no sistema

penitenciário para estes "selecionados".

O ponto de partida das teorias da reação social para explicar o processo de criminalização secundária,

presente na escolha de somente uma parcela das pessoas que realizam as condutas definidas como desviantes

(entre elas o crime), reside na observação de que o desvio é criado pela própria sociedade.

Não quero dizer com isto o que se compreende normalmente, ou seja, que as causas do desvio estão

localizadas na situação social do desviante ou nos "fatores sociais" que induzem a ação. Quero dizer mais do

que isso, que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas

regras a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Deste ponto de vista, o desvio não é uma

qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outras pessoas de regras e

sanções a um "transgressor". O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso;

comportamento desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal 71.

Importante na definição do desvio é, portanto, a resposta dos outros àquele comportamento. O fato de

alguém infringir uma regra, na lição de Becker, não significa que os outros reagirão como se isso tivesse

acontecido, bem como o fato de alguém não violar uma regra não significa que não será ameaçado, em algumas

circunstâncias, como se o tivesse feito.

____________________________________________ 71

BECKER, Howard. Urna teoria da ação coletiva. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 60.

46

O mesmo comportamento pode ser uma infração das regras num momento e não em outro; pode ser

uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra; algumas regras são

quebradas com impunidade, outras não. Em resumo, se um determinado ato é desviante ou não depende em

parte da natureza do ato (ou seja, se ele viola ou não uma regra) e em parte do que as pessoas fazem em relação

a ele72.

A teoria da rotulação de Becker prossegue ao definir diferentes graus em que outras pessoas reagirão a

um ato dado como desviante. O primeiro tipo de variação da resposta encontra-se no fator tempo, pois "uma

pessoa que se acredita haver cometido um determinado ato “desviante' pode, num momento, receber uma res-

posta muito mais indulgente que em outro momento"73

.A reação à posse de drogas é um bom exemplo desta

variação de respostas no tempo, que vão de um modelo sanitarista ao atual modelo bélico, como nos ensina o

professor Nilo Batista74

Para se ter uma idéia, a conduta de quem tem a posse destas substâncias proibidas para uso próprio, em

nossa legislação, já foi fato atípico, fato equiparado ao tráfico, sendo hoje considerada infração de menor

potencial ofensivo; ao passo que as condutas definidas como tráfico de drogas ilícitas ganharam relevância

punitiva ao serem equiparadas a crimes hediondos a partir da Constituição Federal de 1988.

Citando o conceito de crime do colarinho branco, crime White-collar, desenvolvido por Sutherland,

quais sejam aqueles crimes co-

_______________________________________________ 72

Idem, p. 64. 73

Ibidem. 74

Segundo o professor Nilo Batista, as legislações e políticas criminais relativas às drogas ilícitas no Brasil

podem ser agrupadas em dois modelos: de 1914 a 1964 predomina o modelo sanitário, em que se controlava o

fluxo destas substâncias, ao passo que de 1964 em diante passamos a adotar um modelo bélico, no qual a

política repressiva deixa de lado o controle sobre a circulação e distribuição das drogas.

47

metidos através de grandes corporações econômicas que acabam sendo processados como ilícitos civis e não

como crimes, Becker observa que "o grau em que o ato será tratado como desviante depende também de quem

cometeu o ato e de quem sente que foi prejudicado por ele"75

, fazendo com que as regras tendam a ser aplicadas

mais a algumas pessoas do que a outras.

Meninos de áreas de classe media não sofrem um processo legal que vá tão longe quando são presos

como garotos das favelas. É menos provável que o menino de classe media, quando apanhado pela polícia, seja

levado ao posto policial; e menos provável, quando levado ao posto policial, ele seja fichado; e é extremamente

improvável que seja indiciado e julgado. Essa variação ocorre mesmo se a infração original da regra for a

mesma nos dois casos 76.

Vera Malaguti Batista, ao estudar os "dificeis ganhos faceis" a que se sujeita a juventude pobre no Rio

de Janeiro envolvida no comércio de drogas ilícitas, retrata a seletividade punitiva em nosso país no período da

ditadura militar, quando da aplicação do antigo Código de Menores. Nos arquivos do extinto Juizado de

Menores, entre 1968 e 1988, a criminóloga desenvolveu um estudo qualitativo de cento e oitenta fichas

envolvendo processos relativos a menores, mostrando a diferença de tratamento na criminalização por drogas

destes "inimputáveis".

W.O. 17 anos, 2º

científico, morador em apartamento na Rua Prudente de Morais, detido com quatro

gramas de maconha em 06/01/73, passa pelo circuito criminal mas também volta rapidamente ao circuito

privado/domestico no encaminhamento de seu caso. Dois dias após o flagrante e entregue ao seu responsável,

que quatro dias depois apresenta um atestado me-

____________________________________________

BECKER, op. cit., p. 63. 76

Idem, p. 63.

48

dico particular ao Juizado. Vinte dias depois seu caso está arquivado. Esse caminho se repete em outros casos e

vemos que, apesar de entrarem no circuito policial, os processos relativos a jovens de classe media tem em seu

desdobramento percurso bem diferente dos seus contemporâneos das classes subalternas. R.O.M., por exemplo,

não tem a mesma sorte.Aqui se aplica o estereótipo criminal. Preto, 17 anos, morador da favela em Rocha

Miranda, margeador gráfico, foi detido em 18/02/73 com dez cartuchos de maconha. Declarou na delegacia que

"e viciado há cerca de dois anos; que resolveu vender maconha para ajudar sua genitora financeiramente; que

seus pais não sabem que se encontra na venda de maconha". É internado no Instituto Padre Severino em

fevereiro de 73, foge, e recapturado, foge de novo e tem seu caso arquivado em outubro de 19747 77.

A criminalização desigual das condutas definidas como tráfico de drogas é o exemplo vivo da

seletividade qualitativa (em razão da qualidade da pessoa ou até mesmo dos países), na lição da professora

Maria Lúcia Karam:

A distribuição desigual do status de criminoso determina a idéia de criminalidade como um

comportamento característico de indivíduos provenientes daquelas camadas mais baixas e marginalizadas,

levando à identificação das classes subalternas como classes perigosas. No caso das drogas, pense-se, por exem-

plo, nas favelas do Rio de Janeiro, em relação às quais se passa a idéia de uma ligação generalizada de seus

moradores com o tráfico, reproduzindo-se a mesma linha que, internacionalmente, cria o já mencionado

estereótipo delitivo latino-americano Neste caso de países perigosos, basta lembrar que, quando se fala de

drogas, não se pensa, por exemplo, na Suíça, lavando

________________________________________

77 BATISTA,Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998, p. 79.

49

mais branco, mas apenas na Colômbia com seus cartéis, ou na Bolivia, com suas folhas de coca'''.

Na perspectiva da criminologia da reação social, o papel criador das agências do sistema penal

(Polícia, Ministério Público, Judiciário) ao definir a criminalidade é um dos fundamentos básicos.

Os teóricos da reação social sustentam que a definição da conduta desviada não se resolve

definitivamente no momento normativo. Nem a aplicação das definições ao caso concreto é um problema

secundário, de lógica formal (subsunção). Ao contrário, a lei penal configura tão somente um marco abstrato de

decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam ampla margem de discricionariedade na seleção

que efetuam, desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter "definitorial" da criminalidade.

Nada mais errôneo supor (como faz a Dogmática Penal) que, detectando um comportamento delitivo, seu autor

resultará automaticamente e inevitavelmente etiquetado. Pois entre a seleção abstrata, potencial e provisória

operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização secundária,

medeia um complexo e dinâmico processo de refração 79.

O fato de 66,5% da comunidade carcerária no Rio de Janeiro ser recrutada entre negros e mulatos, ao

passo que na cidade eles representam 40,2% da população 80 ,passa a ter um novo significado. A clientela do

sistema penal é constituída na sua maioria de negros e pobres não porque tenham uma maior tendência para

delinqüir, mas sim por terem maiores chances de serem criminalizados. As

________________________________________ 78

KARAIVI, op. cit., p. 60. 79

PEREIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 260.

80 Estudo do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, divulgado na reportagem "População

carcerária é jovem, negra e sem religião", no jornal O Globo em 01/06/04, p. 14.

50

possibilidades de uma pessoa ser etiquetada como delinqüente, com todas as conseqüências que isso implica,

encontram-se desigualmente distribuídas.

O professor Alessandro Baratta alerta, no entanto, que os processos de definição que se tornam

relevantes dentro do modelo teórico em exame não podem se limitar àqueles realizados pelas instâncias oficiais

de controle social, mas, antes, se identificam em primeiro lugar, com os processos de definição do senso comum

81.

Alessandro Baratta cita John I. Kitsuse, que formulou o problema nos seguintes termos:

O desvio é um processo no curso do qual alguns indivíduos, pertencentes a algum grupo comunidade

ou sociedade: a) interpretam um comportamento como desviante,b) definem uma pessoa, cujo comportamento

corresponda a esta interpretação, como fazendo parte de uma certa categoria de desviantes, c) põem em ação um

tratamento apropriado em face desta pessoa82.

Não é, portanto, o comportamento, por si mesmo, que desencadeia uma reação no sentido de distinguir

entre o "normal" e o "desviante", mas "somente a sua interpretação, que torna esse comportamento uma ação

provida de significado 83.

O fato crime é algo que se aprende através da reação social diante de um comportamento. É no

contexto em que um ato é interpretado como criminoso, de modo valorativo, como que se desencadeia a reação

social, sendo necessário que este ato seja capaz de perturbar a percepção habitual.Tal comportamento é

percebido como oposto ao comportamento "normal", sendo a normalidade

________________________________________ 81

BARATTA, op. cit., p. 94. 82

Idem, p. 94. 83

Idem, p. 95.

51

representada por um comportamento predeterminado pelas próprias estruturas, segundo certos modelos de

comportamento "correspondente ao papel e à -posição de quem atua" e que, violados, geram a quebra da

"realidade tomada como dada".

Portanto, a análise do processo de etiquetamento dentro do senso comum mostra que, para que um

comportamento desviante seja imputado a um autor, e este seja considerado como violador da norma, para que

lhe seja atribuída uma "responsabilidade moral" pelo ato que infringiu a routine (é neste sentido que, no senso

comum, a definição desvio assume o caráter - pode-se-ia dizer - de uma definição de criminalidade), é

necessário que se desencadeie uma reação social correspondente: o simples desvio objetivo em relação a um

modelo, ou a uma norma, não é suficiente84.

A partir dessas informações oferecidas pela teoria rotulacionista, podemos entender o motivo pelo

qual, até o ano de 2004, apenas um acusado de praticar a conduta definida como crime de lavagem de dinheiro

tenha sido condenado em definitivo pela Justiça brasileira, embora a lei 9.613/98 estivesse há mais de seis anos

em vigor" , ao passo que em rebelião ocorrida no sistema penitenciário carioca no dia 29/05/2004, "dos 20

mortos na Casa de Custódia de Benfica identificados até agora pela polícia, 17 tinham praticado crimes de baixo

poder ofensivo, dois eram acusados de homicídio e um de assalto a mão armada' .

Essas notícias trazidas pela imprensa revelam que a reação às condutas previstas como crime são

diferentemente conduzidas pelo sistema penal, que programa um sistema igualitário de distribuição

________________________________ 84

Idem, p. 96

85 Reportagem "Crime sem castigo". In: jornal O Globo do dia 21/06/2004, p. 3. 86

Reportagem "No lugar errado, na hora errada". In: jornal O Globo do dia 20/06/2004, p. 31.

de penas para "todos" aqueles que praticam os comportamentos definidos como delito, mas executa uma seleção

daqueles que efetivamente sofrerão a resposta punitiva.

A criminalidade desta maneira, viria a ser um resultado de uma série de situações estruturais (conflito

social), que seriam responsáveis por sua distribuição diferencial nos diferentes níveis sociais; distribuindo-se

"como um bem negativo", da mesma forma como se distribuem diferencialmente os "bens positivos" na

sociedade.A criminalidade seria, pois, o "estado oposto ao privilégio 87.

Entre os autores da criminologia da reação social, citado pela criminóloga Lola Anyar de Castro,

aquele que mais se destaca na elaboração teórica do processo de criminalização de indivíduos é Austin Turk,

segundo o qual "a criminalização não é alguma coisa que alguém faz, mas alguma coisa que acontece no curso

da interação entre várias partes 88, incluindo todos os que fazem as normas, os intérpretes, os que a executam e

finalmente os infratores. Turk parte da idéia de que é necessário que se crie um conflito entre os encarregados

de cumprir a lei e quem viola a norma para que se criem as possibilidades da criminalização, sendo as

probabilidades de conflito maiores na presença ou ausência de algumas variáveis, identificadas pelo sociólogo

como organização e sofisticação, entendendo-se a última como "o conhecimento dos padrões de conduta dos

demais, conhecimento este que pode ser utilizado para manipulá-los 89.

Essas variáveis podem ser consideradas simultaneamente, produzindo quatro tipos diferentes de

combinação: a) organizados sem sofisticação (gangs de delinqüentes); b) desorganizados sem sofisti-

____________________________________________ 87

ANYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 111. 88

Idem, p. 115. 89

Idem, p. 116.

53

cação (sindicatos do crime); c) organizados sofisticados (sindicato do crime); d) desorganizados sofisticados

(estelionatários profissionais). Para Turk o conflito é mais provável quanto mais organizados estejam aqueles

que realizam atos ilegais, uma vez que serão mais resistentes às mudanças para padrões de conduta das

autoridades, sendo improvável o conflito havendo sofisticação dos sujeitos desviantes, uma vez que estes serão

mais cuidadosos em avaliar a força ou fraqueza da sua posição em relação às autoridades.

No seu entender, a sofisticação é mais importante - por sua capacidade de evitar o conflito - que a

organização. Assim, pois, o conflito entre as autoridades e sujeitos é muito mais provável se os sujeitos estão

altamente organizados e não são sofisticados; ainda menos provável se são organizados e sofisticados; e menos

provável se são desorganizados e sofisticados 90.

O conflito também será definido de acordo com a organização e sofisticação das autoridades. Embora a

variável organização deva estar sempre presente neste caso, "a experiência demonstra que a sofisticação é

variável segunda as agências de controle social":

Demonstra também que quanto menos sofisticadas são, mais tendem a confiar em seu poder de coerção

e menos capazes são de manejar o potencial de conflitos mediantes táticas alternativas de evitação, persuasão e

compromisso. Portanto, a possibilidade de conflito é maior 91.

Iniciado o conflito, entretanto, surgem ainda algumas condições para que aqueles que violem as regras

possam se converter em criminosos, pois, para Turk, ser criminoso não é realizar atos delituosos, mas o produto

da interação entre autoridades e sujeitos, bem como outras variáveis sociais que irão marcar definitivamente

_________________________________ 9° Idem, p. 117.

91 Ibidem.

54

o status criminal, entre elas, algumas apontadas por Lola Anyar de Castro: em primeiro lugar, a prioridade e

significação que tenha para as autoridades a norma social ou legal violada; a maior significação que tenha a

norma da oposição para seus componentes; a ofensividade da conduta da ótica policial, uma vez que as

autoridades de maior nível (juizes e promotores) estão mais limitadas para definir quem será criminalizado, bem

como para incidir na decisão da polícia; por fim, as diferenças de poder entre as autoridades e opositores, uma

vez que embora a princípio as autoridades possam parecer sempre mais poderosas, em determinadas situações

os desviantes podem apresentar igualdade de recursos, poder, organização e até mesmo armas.

Mas se a norma em questão é de significação especial para a autoridade, mas perigoso se considerará o

inimigo e aumentam os riscos de criminalização. Neste caso, a criminalização se converterá, diz Turk, mais em

uma técnica para enfraquecer um opositor forte do que um assunto de simples rotina na manutenção do controle

social. Tratar-se-á de perseguir e criminalizar o maior número de pessoas; nestes casos, às vezes, a vitimização

de inocentes aparece mais como uma forma de uso deliberado de terrorismo oficial, como técnica de controle

social, do que como erros autênticos das autoridades92.

O pensamento de Turk reflete a realidade da lógica policial quando o assunto é o comércio de drogas

proibidas. O tráfico de drogas é considerado pelas agências penais, em especial pela polícia, como a principal

causa da violência urbana no Rio de Janeiro, fazendo com que a "guerra" ganhe dimensões para além do

simples procedimento repressivo ao comércio ilegal de drogas. Os varejistas das drogas, organizados sem

nenhuma sofisticação, passam a ser o alvo das principais ações policiais, enquanto empresários financiam e

lavam dinheiro dos distribuidores nas favelas. Estes, por serem

_______________________________ 92

Idem, p.120.

55

muito mais sofisticados, conseguem, na lição de Turk, não serem atingidos pela ação policial.

A "guerra contra as drogas", enquanto tática de controle social, não se deslegitima ao provocar um

número maior de mortes do que aquelas provocadas pelas próprias substâncias proibidas. Na apreciação de

Turk, o uso deliberado do terrorismo oficial não é desvio de poder, mas seu legítimo exercício, quando o

assunto é combater indivíduos tão "perigosos".

2.2. O ESTEREÓTIPO E A ESTIGMATIZAÇÃO

Os efeitos do processo de criminalização seletiva e a condição dos indivíduos selecionados também são

objetos de estudo da Criminologia da Reação Social. As teorias da estigmatização (Goffman) e do estereótipo

(Chapman) apresentam-se como marco introduzido dentro de um panorama conceitual de crítica das chamadas

instituições de controle total (manicômios, cárceres, hospitais e asilos).

Goffman ao estudar a "identidade deteriorada" tratou de definir o criminoso (desviante) como um

indivíduo estigmatizado, portador de um atributo profundamente depreciativo, que o torna diferente dos outros.

A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados comuns e

naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de

pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes esta-

belecidos nos permite um relacionamento com "outras pessoas" previstas sem atenção ou reflexão particular.

Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os

seus atributos, a sua "identidade social" - para usar um termo melhor do que "status social", já que nele se

incluem atributos como "honestidade", da mesma forma que atributos estruturais, como "ocupação" (...)

56

Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o

torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma

espécie menos desejável - num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim,

deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal caracte-

rística é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande 93.

No entanto, para Goffman, embora o termo estigma seja usado em relação a um atributo

profundamente depreciativo, ele é na realidade um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. Assim,

para definir um estigma, é preciso uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza

alguém pode confirmar a normalidade de outrem; portanto, ele não é em si mesmo nem honroso nem desonroso.

O estigmatizado, segundo Goffman, é um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social

quotidiana, mas possui um traço que pode impor-se à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a

possibilidade de atenção a outros atributos seus.

Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com

base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar,

reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua

inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada

em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado,

bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e repre-

________________________________________________ 93

GOFFMAN, Erving. Estigma - Notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1975, pp. 11-12.

57

sentação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original".

O "traficante", a partir dos anos 80, passa a ser utilizado como termo estigmatizante capaz de reduzir a

compreensão acerca de um indivíduo. Se nos anos 700 "comunista" era o responsável por "degustar

criancinhas" em nosso país, hoje o "traficante" é responsável até por estimular o surgimento de favelas. Não é

exagero (meu), mas foi assim que o editorial de um dos jornais de maior circulação do país analisou o processo

de favelização na cidade do Rio de Janeiro, ao se referir à invasão de um terreno federal no bairro de Benfica

com o título "Tráfico pode estar estimulando o surgimento de favelas":"(...) a rapidez com que o tráfico

dominou essa pequena comunidade gera a suspeita de que toda a invasão-relâmpago tenha sido uma operação,

senão comandada, pelo menos instigada pelo crime organizado".

Não é preciso se aprofundar na carga estigmatizante que o termo "traficante" revela, mas é bom

lembrar que os chamados "autos de resistência", inquéritos instaurados a partir da morte de pessoas em conflito

com a polícia, são muitas vezes arquivados quando se descobre que as vítimas têm em suas fichas criminais

alguma"passagem" ou condenação no tráfico de drogas. O traficante estigmatizado, ou seja, aquele que apre-

senta uma relação entre o atributo presente na venda de substância entorpecente e o estereótipo do criminoso

(preto, pobre, favelado) é um verdadeiro passe livre para as ações policiais genocídas.

Se tiver pega de carro não vai ser o pegueiro, vai ser o jovem que dirigia o carro tal, tem nome, mas

traficante não, virou uma categoria fantasmática, é uma categoria policial que migrou para a academia, pro

jornalismo, pra psicologia e que não tem cara, não é mais humana. É uma coisa do mal".

______________________________ 94

Idem, p. 15.

95 Editorial "Batalha Perdida". In: Jornal O Globo do dia 07/07/2002,p. 6. 96

Todo crime é político". Entrevista com o professor Nilo Batista na revista Caros Amigos, n2 77.

58

Observa a criminóloga Vera Malaguti Batista.

Porém, é com a tese de Denis Chapman sobre o estereótipo do delinqüente que a Criminologia da

Reação Social definitivamente rompe com as teorias da passagem ao ato', ou seja, com aquelas teorias

etiológicas que buscam as causas do-crime entendendo o fenômeno criminológico com pré-constituído. Para

Chapman todo comportamento desaprovado pode-se manifestar também em formas objetivamente idênticas que

são, no entanto, aprovadas ou recebidas com indiferença. Não há assim maior diferença entre criminosos e não

criminosos do que a condenação. Na lição do criminólogo norte-americano, o comportamento criminoso é

geral, mas a incidência diferencial das condenações é em parte devida à sorte, em parte a processos sociais que

dividem a sociedade em classes criminosas e não criminosas, correspondendo as primeiras às classes pobres e

dominadas.

A grande inovação de Chapman encontra-se no redimensionamento do delito enquanto componente

funcional do sistema social. A tese de Chapman é assim resumida pela professora Lola Anyar de Castro:

Na sociedade, existem vários estereótipos: o do alcoólatra, que seria um maltrapilho embrutecido pela

bebida e deve, portanto, ser objeto de medidas violentas, ou sanções médicas, psiquiátricas e legais, cujo

estereótipo serve para justificar a existência e o comportamento - agressivo e impune - dos alcoólatras das

classes média e superior. O estereótipo do jovem hippie, drogado, sujo e amoral, serve para justificar à "gente

de bem" burguesa a sua repressão contra os grupos de jovens politizados, considerados perigosos para as classes

no poder. Ainda assim, a imagem do ladrão refere-se de preferência ao do pequeno assaltante e se contrapõe à

do especulador, cujo comportamento acaba ratificado pela admiração e o êxito (...) O criminoso estereotipado é,

pois, função do sistema estratificado e concorre

____________________________________________ 97

As teorias da passagem ao ato buscam identificar causas para o crime.

59

para mante-lo inalterado. Isto permite à maioria não criminosa, redefinir-se com base nas normas que aquele

violou e reforçar o sistema de valores de seu próprio grupo 98.

A funcionalidade do crime é então manifestada no momento em que o delinqüente estereotipado

converte-se em "bode expiatório" da sociedade. Entre muitos que praticam as condutas definidas como crime,

apenas os mais vulneráveis estarão sujeitos a serem observados e detidos, recaindo sobre eles toda a carga

agressiva da sociedade, reduzindo-se assim as tensões sociais. "Sendo a classe pobre mais vulnerável, pela sua

falta de privacidade, a sua carência de recursos e de instruções e às vezes por ser parte de um grupo de

estrangeiros imigrantes, é lógico que sejam estes os únicos criminosos conhecidos", conclui a professora Lola

Anyar99.

A existência de "grandes" criminosos, que surgem através dos noticiários como símbolos do tráfico à

corrupção, parece revelar a funcionalidade do "bode expiatório" numa sociedade repleta de drogas e pautada

pela corrupção da administração pública, na brilhante visão do professor Nilo Batista:

O Fernandinho Beira-Mar é estratégico porque a passagem dele pela Colômbia seria esse elo político

fundamental para compactar os discursos de droga e os discursos de repressão à guerrilha colombiana que

domina 40 por cento do território e é uma questão política, um estado de guerra civil. Portanto, o olhar

internacional deveria ser completamente outro. Esse é o problema: a criminalização usada como expediente de

desqualificação política, ou de repressão política, a pretexto do que aparece como crime comum (...)

Soma Silveirinha, Nicolau e Maluf e compara com a dívida externa. Sem embargo de que o desvio

criminoso de recursos públicos deva ser pontualmente investigado, a publicidade em

______________________________________________ 98

ANYAR DE CASTRO, op. cit., p. 126. 99

Idem, p.132.

60

torno desses casos é também estratégica. Um branco rico preso constitui elemento precioso para demonstrar que

o sistema penal é igualitário, isonômico e não seletivo. Pouco importa que ele seja o único branco rico preso

naquele momento, a espiga de milho no cafezal da penitenciária. Só ele está aparecendo no- Jornal Nacional e é

a prova de que a justiça penal é igual para todos. Paralelamente vai uma implícita lição de mobilidade social

pelo avesso. Mas, principalmente, imola-se o bode expiatório: nossas dificuldades não são estruturais, não é o

serviço da dívida que nos sangra, e sim aquele safado ali 100.

Guardadas suas especificidades analíticas internas, observa a professora Vera Regina Pereira de

Andrade que existe um ponto de aproximação fundamental entre a criminologia da reação social e a genealogia

desenvolvida pelo filósofo Michel Foucault e outros autores responsáveis por clássicas obras de "histórias

revisionistas", onde se destacam os trabalhos de Rusche e Kircheimer, Melossi e Pavarani. Segundo a doutora

da Universidade Federal de Santa Catarina, a tese da produção (diferencial ou seletiva) da criminalidade pelo

sistema penal, então caracterizado como instrumento de gerência diferencial das ilegalidades por Foucault, ou

como instrumento de criminalização seletiva pelos pensadores do labelling aproaá, traduz a operacionalidade

do sistema penal enquanto uma lógica de funcionamento.

E é precisamente esta lógica seletiva de operar radicada na construção do universo da criminalidade

mediante a diferenciação ou seleção de pessoas que Foucault põe em evidência desde a fundação do sistema

penal que ocupará, da criminologia da reação social à criminologia crítica, por isso mesmo chamada em seu

conjunto de "criminologia da seleção” 101.

_______________________________________________

100 Todo crime é político". Entrevista com o professor Nilo Batista na revista Caros amigos, n2 77.

101 PEREIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 259.

61

Ao lado das teorias desenvolvidas pelos teóricos da criminologia da reação social, a "crítica

historiográfica materialista", a partir de um enfoque materialista-marxista, representado pelas obras de George

Rusche e Otto Kirchheimer, Melossi e Pavarani, bem como de um enfoque materialista político-econômico, na

obra de Foucault, ou funcionalista, com o trabalho de David J. Rothman, na lição da professora Vera Regina

Pereira da Andrade, contribuem para o impulso desestruturador no moderno sistema penal e a mudança de

paradigma em criminologia.

2.3. 05 OLHARES REVISIONISTAS

O ponto de encontro dessas teorias reside na desconstrução da história oficial da emergência do

moderno sistema da justiça penal, representada pelo discurso jurídico declarado, que até hoje considera o direito

penal como um produto da evolução progressiva da "barbárie" ao "humanismo", superando o "Antigo Regime".

Assim, o discurso jurídico penal passa a considerar todas as ações "bárbaras" como um eventual fracasso,

interpretando como um desvio na realização liberal e humanista. "A história oficial se apóia, assim, sobre uma

negação ou neutralização estrutural do poder e da dominação"02

, sintetiza a doutora Vera Regina.

O sistema penal, a partir das "histórias revisionistas",já não pode mais ser compreendido como

realidade autônoma, mas como parte do sistema social concreto no qual se insere e a partir da conexão

funcional que guarda com ele; ou seja, de suas funções reais.

A negligência da sociologia dos sistemas penais pode provavelmente ser atribuída, primeiramente, pelo

fato de que o problema é geralmente abordado sob a ótica da teoria penal. Nenhuma das teorias da punição, nem

absolutista nem a teleológica estão aptas a explicar a introdução de certos métodos de punição no interior da

totalidade do processo social (...) Ademais,

____________________________________________ 102

Idem, p. 190.

62

como estas teorias consideram a punição como algo eterno e imutável, elas se opõem a qualquer tipo de

investigação histórica. A punição precisa ser entendida como um fenômeno independente seja de sua concepção

jurídica, seja de seus fins sociais (...) Todo o sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem

às suas relações de produção103.

Rusche e Kirchheimer abrem caminho com o livro Punição e Estrutura social para uma abordagem da

pena para além do enfoque jurídico abstrato, formulando uma tese central na sua historiografia das penas: "E,

pois, necessário pesquisar a origem e a intensidade das práticas penais, uma vez que elas são determinadas por

forças sociais, sobretudo pelas forças econômicas e conseqüentemente fiscais"104

Portanto, se uma economia escravista acha que o suprimento de escravos é insuficiente e a demanda

pressiona, não se despreza a penalidade da escravidão. No feudalismo, por outro lado, não apenas esta forma de

punição cai em desuso, quanto nenhum outro método foi descoberto para o uso da força de trabalho do

condenado. O retorno para antigos métodos, pena capital ou corporal, foi então necessário, uma vez que a intro-

dução de pena pecuniária para todas as classes era impossível em termos econômicos.A casa de correção foi o

ponto alto do mercantilismo e possibilitou o incremento de um novo modo de produção. A importância da casa

de correção desapareceu, entretanto, com o sistema fabril. Estes temas formam parte do tema do presente

trabalho 105.

As investigações dos autores da Escola de Frankfurt seguem na direção de que a população criminal se

recruta, predominante-

____________________________________________

103RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de janeiro: Freitas Bastos, 1999,

pp. 16-18. 104

Idem. 105

Idem, p. 19

63

mente, entre as classes mais baixas da sociedade. Ao descrever a origem do instituto da fiança na Baixa Idade

Média, presente até hoje em nossa codificação penal, Rusche e Kirchheimer observam o caráter classista do

direito penal muito antes do aprisionamento, que só veio a ser estabelecido como pena autônoma no século

XVII.

A principal dissuasão para o crime era o medo da vingança pessoal da parte injuriada. O crime era

visto como uma ação de guerra (...) A preservação da paz era, portanto, a preocupação primordial do direito

criminal. Como resultado deste método de arbitragem privada, atuava-se pela imposição de fianças (...) A fiança

era cuidadosamente graduada, segundo o status social do malfeitor e da parte ofendida. Apesar desta diferenci-

ação de classe afetar primeiramente somente o grau da fiança, ao mesmo tempo constituía-se no principal fator

na evolução do sistema de punição corporal A incapacidade dos malfeitores das classes subalternas de pagar

fianças em moeda levou à substituição por castigos corporais. O sistema penal tornou-se, portanto, pro-

gressivamente restrito a uma minoria da população106.

O controle diferenciado das ilegalidades nos distintos estratos sociais é percebido como um dado

constante na "evolução" dos sistemas punitivos.Assim, certos castigos eram descartados para os representantes

do clero e da nobreza, sendo substituídos por outros, ou eram aplicados com modificações para membros de

classes superiores. Enquanto aqueles que tinham recursos para pagar estavam aptos a comprar a liberação da

punição, a grande maioria dos delinqüentes, que não tinham meios, era impotente para pôr-se à salvo do

tratamento severo.

Quanto mais empobrecidas ficavam as massas, mais duros eram os castigos, para fins de dissuadi-las

do crime. O castigo físico começou a crescer consideravelmente por todo o país, até que finalmente tornou-se

não apenas suplementar, mas a forma

________________________________

106 Idem, p. 22.

64

regular de punição (...) Execução, banimento, mutilação, marcação à ferro e açoites, mais ou menos

exterminaram uma gama de transgressores profissionais, de assassinos e ladrões a vagabundos e ciganos. Com o

crescimento em número de criminosos profissionais entre as classes subalternas na Baixa Idade Média, esta

justiça arbitrária, de acordo com Schmidt, tornou- se cada vez mais difundida e produziu uma transformação

profunda em toda a administração da justiça criminal 107.

O crescimento extraordinário do número de sentenças para a pena de morte ao longo do século XVI é

bastante conhecido, levando à morte nas fogueiras bruxas e judeus hereges, que já naquela época exerciam a

função de "bodes expiatórios", uma vez que "as classes subalternas desafogavam a fúria e a dor nos representan-

tes dos poderes sobrenaturais na Terra, ou seja, naqueles suspeitos de lidarem com magia negra” 108. No

entanto, era a população empobrecida, que se voltava para a prática da "ladroagem" que caracterizou esse

período, aquela que mais sofreu com os castigos físicos, mutilações, tortura e diferentes execuções.

Criminosos fora da lei, mais que as bruxas ou os judeus, eram as presas legítimas para qualquer desejo

a ser satisfeito com requintes de crueldade pela sociedade que os controla. A grande variedade de punições

produzia as compensações (...) Os ladrões eram freqüentemente pendurados no ar e queimados de forma que

todos pudessem vê-los e temer um destino semelhante109.

Os métodos de punição começam a sofrer mudança gradual a partir do século XVI, com o

mercantilismo. A exploração do trabalho dos prisioneiros, tal como na escravidão das galés, e castigos de

trabalhos forçados foram gradualmente introduzidos. "Estas mu-

__________________________________________

107 Idem, pp. 32-33.

108 Idem, p. 35.

109 Idem, p. 36.

65

danças não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento econômico que

revelava o valor potencial de uma massa de material humano completamente à disposição das autoridades"110

observam Rusche e Kirchheimer.

Inspirado nos pensadores da Escola de Frankfurt, Michel Foucault passa a estudar a relação poder-

saber penal, trilhando o caminho da tese segundo a qual a transmissão da antiga para a moderna Justiça Penal

não significou a passagem da barbárie ao humanismo,"mas de uma estratégia de punir a outra, mediante um

deslocamento qualitativo do seu objeto (do corpo para a mente) e objetivos (minimização dos custos econômico

e político e maximização da eficácia))2111.

Para Foucault, o controle diferencial das ilegalidades explica a funcionalidade do sistema penal.

Centrando seu estudo na história do surgimento da prisão como marco do sistema penal moderno, o filósofo

francês conclui que o aparente fracasso da pena privativa de liberdade serve para explicar a sua própria

existência (utilidade):

Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o fracasso da prisão; qual é a

utilidade desses diversos fenômenos que a crítica, continuamente, denuncia: manutenção da delinqüência,

indução em reincidência, transformação do infrator ocasional em delinqüência.Talvez devamos procurar o que

se esconde sob o aparente cinismo da instituição penal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena,

continua a segui-los através de uma série de marcações (vigilância que era de direito antigamente e o é de fato

hoje; passaporte dos degredados de antes, e agora folha corrida) e que persegue assim como "delinqüente"

aquele que quitou sua punição como infrator? Não podemos ver aí mais que uma contradição, uma

conseqüência? Deveríamos então supor que a prisão e de uma maneira geral, sem dúvida, os castigos, não se

__________________________________________ 110

Idem, p. 39.

111 PEREIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 259.

66

destinam a suprir as infrações, mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las; que visam, não tanto tornar

dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgressão das leis numa tática

geral de sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância,

de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar

estes, de tirar proveito daqueles. Em resumo, a penalidade não "reprimiria" pura e simplesmente as ilegalidades,

faria sua "economia" geral. E se podemos falar de uma justiça não é só porque a própria lei ou a maneira de

aplicá-la servem aos interesses de uma classe, é porque toda a gestão diferencial das ilegalidades por intermédio

da penalidade faz parte deste mecanismo de dominação. Os castigos legais devem ser recolocados numa

estratégia global das ilegalidades112.

Dessa forma, Foucault observa a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de

fraude, com a implantação do sistema capitalista, ocasião em que ocorre uma verdadeira reestruturação da

"economia das ilegalidades", que é correlata a uma nova "economia do poder de castigar". A "ilegalidade dos

direitos" é separada da "ilegalidade dos bens", entendendo-se esta como a criminalização das condutas

contrárias à propriedade privada, que passa a assumir uma posição de destaque em relação aos crimes contra a

vida, liberdade etc. (ilegalidade dos direitos).

A reforma e o nascimento do direito penal iluminista devem ser entendidos não sob a ótica da

humanização das penas, mas sim como uma nova estratégia do poder punitivo, que se resume na criação da

delinqüência enquanto ilegalidade isolada e fechada através do sistema carcerário. A prisão, assim, contribui

para estabelecer uma ilegalidade visível, marcada, irredutível a um certo nível e secretamente útil - rebelde e

____________________________________________

112 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 226.

67

dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir

simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou deseja tolerar"'.

A implantação das redes de prostituição no século XIX é característica a respeito: os controles da

polícia e de saúde sobre as prostitutas, sua passagem regular pela prisão, a organização em longa escala dos

lupanares, a hierarquia cuidadosa que era mantida no meio da prostituição, seu enquadramento por

delinqüentes- indicadores, tudo isso permitia canalizar e recuperar, através de uma série de intermediários, os

enormes lucros sobre um prazer sexual que uma moralização cotidiana cada vez mais insistente votava a uma

semiclandestinidade e tornava naturalmente dispendioso; na computação do preço do prazer, na constituição de

lucro da sexualidade reprimida e na recuperação desse lucro, o meio delinqüente era cúmplice de um

puritanismo interessado: um agente fiscal ilicito sobre práticas ilegais. Os tráficos de armas, os de álcool nos

países de lei seca, ou mais recentemente os de droga, mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da

"delinqüência útil"; a existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas ilegais, sobre o

qual se chega a exercer controle e a tirar um lucro ilicito por meio de elementos ilegais, mas tornados

manejáveis por sua organização em delinqüência. Esta é um instrumento para gerir e explorar as egalidades114.

A gestão diferencial das ilegalidades, de acordo com o pensamento de Foucault, atinge diretamente as

classes desfavorecidas, uma vez que "a delinqüência própria à riqueza é tolerada pelas leis e, quando lhe

acontece cair em seus domínios, ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa"15

. O

filósofo

______________________________________

113 Idem, p. 230. 114

Idem, p. 232.

115 p. 239.

68

francês parece chegar a mesma conclusão dos teóricos da Criminologia da Reação Social:

Não há então natureza criminosa, mas jogo de força que, segundo a classe a que pertencem os

indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão: pobres, os magistrados de hoje sem dúvida povoariam os

campos de trabalho forçado; e os forçados, se fossem bem nascidos, tomariam um assento nos tribunais e aí

distribuiriam justiça116.

A justiça penal, dessa forma, não se destina a punir todas as práticas ilegais. Ela tão-somente opera um

controle diferencial das ilegalidades, utilizando-se da polícia como auxiliar e da prisão como instrumento

punitivo. Na concepção de Foucault, a polícia e a prisão formam "um dispositivo geminado"; realizando em

todo o campo das ilegalidades a diferenciação, o isolamento e a utilização de uma delinqüência manejável.

A operacionalidade do sistema penal se apresenta, desta forma, a partir de uma lógica seletiva radicada

na construção da criminalidade mediante a diferenciação ou seleção de pessoas. A investigação da

criminalização secundária, entendida como o momento em que as agências penais operam o projeto legislativo,

é marco teórico irreversível na compreensão da realidade criminal. O estudo da seletividade no seu aspecto

quantitativo e qualitativo abre caminho para uma interpretação que evidencia o seu nexo funcional com a

desigualdade social nas sociedades capitalistas, abrindo caminho para os teóricos da Criminologia Crítica, cujo

pensamento pode ser assim resumido:

O aprofundamento da relação entre Direito/sistema penal e desigualdade conduz, em certo sentido, a

inverter os termos em que esta relação aparece na superfície do fenômeno descrito. Não apenas as normas

penais se criam e se aplicam seletiva-

____________________________________________ 116

Idem, p. 240.

69

mente e a distribuição desigual da criminalidade (imunidade e criminalização) obedece geralmente à desigual

distribuição do poder e da propriedade e à conseqüente hierarquia dos interesses em jogo (estrutura vertical da

sociedade), mas o Direito e o sistema penal exercem, também, uma função ativa de conservação e reprodução

das relações de desigualdade117.

O sistema punitivo se apresenta, no contexto da criminologia crítica, como um subsistema reprodutor

das relações de poder e propriedade existentes, sendo um instrumento que vai muito além da tutela de interesses

e direitos dos indivíduos.Todos os sistemas penais, na lição de Zaffaroni, apresentam características estruturais

próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico penal.

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a

corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações

horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício do poder de todos

os sistemas penais"8.

Se, como bem observou Foucault, a mudança na "economia das ilegalidades", com a passagem de uma

"ilegalidade de sangue" para uma "ilegalidade de bens", refletiu uma mudança na "economia das penas",

podemos observar que o atual estágio do sistema punitivo volta-se para uma "ilegalidade de mercado". O tráfico

de drogas ilícitas aparece como um delito cuja repressão se opera muito mais pela ótica econômica do que pela

suposta saúde pública que se pretende defender no discurso jurídico. Talvez no plano econômico se possa enfim

entender a criminalização das drogas enquanto estratégia de poder, voltada para o encarceramento (controle)

das classes perigosas, bem como para fomento da ilegalidade das classes dominantes.

________________________________________

117 PEREIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 283.

118 ZAFFARONI, op. cit., p.15.

70

Então, há uma lógica bem verdadeira na qual a política de proibição absoluta - posta em vigor pela

maioria dos países que importam drogas ilegais - criou um paralelo econômico controlado pelo crime

organizado. Os rendimentos gerados pelo narcotráfico precisam de lavagem, e estendem o alcance dos

traficantes a outras atividades legais. Essa também é uma economia global 118.

Existe, portanto, no atual modelo repressivo, uma estreita ligação entre a seletividade punitiva e a

intervenção no domínio econômico, a ponto do professor Zaffaroni observar que, por trás do discurso que

incorpora a categoria "crime organizado", existe "uma política criminal intervencionista em uma economia de

mercado,120 Conceituando o crime organizado como "o conjunto de atividades ilícitas que operam no mercado,

disciplinando-o quando as atividades legais ou o estado não o fazem' , o ilustre penalista e criminólogo

argentino observa que embora o chamado "crime organizado" não possa ser entendido como uma categoria

jurídica, pois se perde numa noção difusa, podemos explicá-lo através de um paradigma empresarial, cuja

função econômica seria a de abranger as áreas de capitalismo selvagem que carecem de um mercado

disciplinador.

Alguns efeitos econômicos, na lição de Zaffaroni, acabam por se operar quando o sistema penal

interfere no mercado: crescimento desmesurado da renda do proibido, que se traduz em raro protecionismo;

concentração de renda para aqueles que detêm a inversão dos negócios ilegais em negócios legais (lavagem de

dinheiro); o sistema penal, mais corrupto na periferia, monopoliza a atividade extorsiva do empresariado mais

vulnerável por sua debilidade, que acaba sendo excluído do mercado.

__________________________________

119 COYLE, Diane. Sexo, drogas e economia. São Paulo: Futura, 2003, p. 29.

120 Eugenio Rafil. "Crime organizado: uma categorização frustrada". In: Discursos Sediciosos, n21. Rio de

janeiro: Relume-Dumará Editores, 1996, p. 57. 121

Idem, p. 53.

71

O tráfico de drogas, entendido como "ilegalidade de mercado", nos conduz a uma análise econômica

do fenômeno crimino- lógico, onde a concentração da renda dos negócios se realiza junto às máfias

internacionais e financiadores do tráfico, que operam no sistema financeiro e nas empresas legais.

Paralelamente, produtores andinos e do agreste brasileiro, bem como pobres varejistas da periferia dos grandes

centros urbanos são criminalizados e eliminados do mercado através do encarceramento, do extermínio, além da

"dificuldade de competir frente às grandes corporações e ao custo agregado da proteção extorsiva"122.

A incapacidade da atual política de "combate" às drogas em destruir o "narcotráfico" e suprimir o

consumo de drogas ilícitas é apenas aparente. A suposta impotência da "guerra" contra as drogas mostra um

outro lado vitorioso, revelado na seleção criminalizante dos traficantes "escolhidos" e no reforço do negócio

junto ao mercado legal.

Mas qual seria a ligação explícita entre proibicionismo e controle social? A ligação começa a ficar

mais evidente quando se percebe quais foram os indivíduos que ocuparam os papéis de traficante e de usuário.

Desde os momentos mais antigos da proibição às drogas, as atividades de produção e venda de psicoativos

ficaram a cargo de indivíduos postos à margem do sistema econômico-social dominante. Na ilegalidade, a

economia das drogas convocou os indivíduos que não tinham espaço no mundo legal: analfabetos, pobres e

marginalizados foram recrutados pelo nascente narcotráfico. Esta mesma classe de indivíduos já era alvo das

políticas de contenção social; eles já eram os principais corpos a superlotarem os sistemas penitenciários.

Capturados por ameaçarem os costumes e a propriedade dos "homens de bem", esses indivíduos, tidos como

desviantes, passaram a ser rastreados também por negociarem "perigosos venenos". Antigos preconceitos foram

redirecionados, dando à

___________________________________________ 122

Idem, p. 57.

72

Proibição a característica especial de instrumento para encarcerar aqueles que deviam ser encarcerados'23.

As supostas dificuldades e empecilhos encontrados para se investigar o financiamento e a lavagem de

dinheiro no "narcotráfico" antes de caracterizar um obstáculo no enfrentamento da base econômica do negócio,

revela uma verdadeira intervenção no mercado, excluindo os pequenos empresários da competição e concen-

trando o negócio mais lucrativo na passagem do ilegal para o legal, que estão sempre de mãos dadas quando o

assunto é a "ilegalidade de mercado".

Por tudo isso, só nos resta tentar desvendar o conteúdo político e econômico que se esconde nas

políticas de drogas, a sua face oculta, na lição da criminóloga Rosa Del Orno, para ao final entendermos quais

as reais funções exercidas pela atual "guerra" contra as drogas.

______________________________________

123 RODRIGUES, op. cit., p. 109.

73

CAPÍTULO 3

DROGAS MAQUIAVÉLICAS - QUANDO A POLÍTICA CRIA A GUERRA

No caso das drogas se oculta o político e econômico, dissolvendo-o no psiquiátrico individual. (Rosa

Dei Orno)

Em termos gerais, a existência da guerra é pensada como um retumbante fracasso da política. Podemos

imaginar que as falhas na diplomacia e no diálogo são responsáveis pela violência, como uma saída

indesejáve1124

. Esse pensamento levou Clausewitz, teórico do século XIX, a afirmar: "a guerra é a política

prolongada por outros meios". Nosso pensamento, no entanto, pode ser direcionado para o extremo oposto. Na

esteira da genealogia de Foucault, que defende serem os embates de força e as disputas de idéias verdadeiras

formas de conflito, onde o saber se produz através de relações de poder, chegaremos à conclusão de que a

sociedade vive um estado de guerra permanente, que impõe vitórias e derrotas aos seus diferentes grupos em

disputa. Desse modo, afirma Foucault: "a política é a guerra prolongada por outros meios".

E é somente nessas relações de luta e de poder - na maneira como as coisas entre si, os homens entre si

se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder -

que compreendemos em que consiste o conhecimento. Pode-se então compreender como uma análise desse tipo

nos introduz, de maneira eficaz, em uma história política do conhecimento, dos fatos de conhecimento e do

sujeito do conhecimento 125.

________________________________ 124

Idem, p. 12.

125 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Op. cit., p. 23.

Todo saber é, portanto, inventado, sendo "a luta, o combate, o resultado do combate e

conseqüentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento"126

. O saber jurídico-penal, desta

forma, é construído a partir deste quadro de conflito, levando o filósofo francês a concluir: "o direito é,

portanto, a forma ritual da guerra" 127 .

A legislação sobre drogas e as políticas criminais que lhes são paralelas serão objeto de análise nesse

capítulo, na perspectiva de que não há oposição entre o direito e a guerra. O encarceramento de milhares de

jovens que comercializam "perigosos venenos", respeitando os comandos da lei e o devido processo legal, faz

parte da mesma guerra que mata e extermina outros milhares de jovens policiais ou traficantes em conflito nas

favelas e periferias cariocas. Ao lado dessas sanções lícitas ou ilícitas, o controle penal do comércio e circulação

destas substâncias proibidas também é exercido, conforme visto no capítulo 1, através do poder configurador

positivo, ou seja, de práticas policiais que são exercidas como forma de vigilância, à margem da autorização

legal. Em se tratando de drogas ilícitas, este poder de vigilância pode se manifestar, por exemplo, quando um

policial obriga alguém a cuspir ou quando cheira os dedos das mãos de uma pessoa na tentativa de identificar

um possível consumo de drogas ilícitas, ou ainda quando as "batidas" policiais impõem verdadeiros "toques de

recolher" nas comunidades pobres.

A guerra apresenta, no entanto, diferentes ângulos na história da humanidade e, muitas vezes, o lado

em que alguém se posiciona passa a ser um mero "detalhe". A Igreja chegou a cobrar impostos sobre a cocaína,

sendo a produção desta planta estimulada pelos espanhóis no período colonialista, observação feita pelo

historiador uruguaio Eduardo Galeano, no seu famoso livro As veias abertas da América Latina, citado por

Maria Lúcia Karam.

Os espanhóis estimularam intensamente o consumo de coca. Era um negócio esplêndido. No século

XVI, gastava-se tanto,

__________________________________________ 126

Idem, p.17. 127

Idem, p. 57.

76

em Potosí, em roupa européia para os opressores como em coca para os índios oprimidos. Quatrocentos

mercadores espanhóis viviam, em Cuzco, do tráfico de coca, nas minas de Potosí, entravam anualmente cem mil

cestos, com um milhão de quilos de folhas de coca. A Igreja cobrava impostos sobre a droga. O inca Garcilaso

de laVeja nos diz, em seus "comentários reais", que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais

ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto

enriqueciam a muitos espanhóis 128.

As primeiras "guerras" envolvendo a questão das drogas foram disputas a favor do livre comércio

destas substâncias. As "guerras do ópio", em 1839 e 1856, respectivamente, trazem a marca de uma política que

vislumbrava uma enorme lucratividade no comércio legal do ópio. Os ingleses realizavam grandes lucros com o

fomento da produção de ópio na costa oriental da índia e, especialmente, com a exportação do produto para a

China, onde cerca de dois milhões de pessoas chegaram a se tornar opiómanas e as vendas do ópio, promovidas

pela East India Company, chegaram a representar a sexta parte do total das rendas da índia Britânica129

. Isto

sem falar nos "opiários", espécie de botequins do século XIX, disseminados nas principais cidades da Europa,

onde as pessoas consumiam livremente o ópio.

Todavia, na história ocorre sempre o inesperado. O imperador chinês Lin Tso-Siu decidiu,

provavelmente em nome da saúde pública chinesa, apreender e destruir um carregamento de 1.360 toneladas de

ópio, que resultou na primeira declaração de guerra da Inglaterra à China, sob o fundamento do "livre

comércio". A rainha da Inglaterra considerou uma "injustiça" contra os seus súditos e o Parlamento inglês

autorizou o envio de tropas para obter "reparações", culminando com a guerra vencida pela Inglaterra,

__________________________________________ 128

KAR.AM, op. cit., p. 34. 129

Idem, p. 35.

77

que obtém, além de uma indenização, a cessão de Hong-Kong, para ali instalar sua base naval e comercial,

embora a maior vitória tenha sido "a sobrevivência do Estado-devedor e dos consumidores de ópio que haviam

criado aquele mercado aparentemente infinito"' .

Se as guerras do ópio traziam consigo a marca de uma política voltada para o livre comércio das

drogas, a atual política internacional de drogas, que se estabeleceu de forma proibitiva, a partir da Convenção de

Haia, em 1912, no entanto, traz a marca da guerra no plano interno e internacional, "onde a droga é vista como

'inimiga' e o traficante - objeto central de interesse deste discurso - como 'invasor', 'conquistador', ou mais

especificamente como `narcoterrorista' e `narcoguerrilheiro"31

. Muita coisa mudou quando o assunto é droga.

Dos declarados interesses políticos e econômicos dos ingleses, quando na segunda guerra do ópio,

iniciada em outubro de 1856, contou com o apoio da França, "que até a primeira metade do século XX, também

realizou seus lucros com a importação, produção e venda de ópio na Indochina, onde tinha, desde 1899, o mo-

nopólio estatal daquelas atividades"132

, chegamos aos interesses ocultos na atual declaração de guerra contra as

drogas. As reais funções sociais desenvolvidas pelas recentes políticas criminais no trato das substâncias

psicoativas só poderão ser desvendadas através de uma análise crítica e histórica, afastando os estereótipos

médico, moral e criminoso que, na lição da professora Rosa Dei Olmo "só contribui para reforçar a confusão

reinante e para ignorar suas reais dimensões psicológicas e sociais, assim como políticas e econômicas"133.

_________________________________________

130 BATISTA, Nilo. "Política criminal com derramamento de sangue". In: Discursos Sediciosos, n9-1, 5/6. Rio

de Janeiro: Freitas Bastos, 2001, p. 78. 131

DEL OLMO, Rosa. Aface oculta da droga. Rio de Janeiro: R.evan, 1990, p. 27. 132

KARAM, op. cit., p. 35.

133 DEL OLMO, op. cit., p. 25.

78

3.1. A PROIBIÇÃO DAS DROGAS

E um dia proibiram algumas drogas...

Com o início da revolução industrial, que necessitava de uma mão-de-obra produtiva, disposta a

trabalhar por mais de 12 horas diárias, as drogas "entorpecentes", como o ópio e seus derivados (morfina e

heroína), eram substâncias indesejáveis em seus efeitos. A letargia,"esta do de profunda e prolongada

inconsciência"134

, como efeito do uso do ópio e seus derivados já não era mais interessante do ponto de vista

econômico. A Liga das Nações - embrião da atual ONU (Organização das Nações Unidas) - convoca uma reu-

nião para a formação da Comissão de Xangai para tratar da questão do ópio em 1909, sendo que as resoluções

acordadas referiam-se, especialmente, ao ópio fumado, sendo que os alcalóides dele derivados, tais como a

heroína, a morfina e a codeína, permaneciam fora das recomendações restritivas. A política de proibição, desde

o início, já revelava as condicionantes sócio-econômicas da reação ao uso e comércio de algumas drogas.

O criminólogo alemão Sebastian Sheerer nos demonstra, por exemplo, em seu interessante trabalho

sobre a história do ópio nos Estados Unidos, como seus distintos modos de consumo - fumá-lo, comê-lo ou

injetá-lo - foram objeto de uma criminalização diferenciada (leia-se proibição) (...) "O tipo menos perigoso de

consumo em termos de saúde, isto é fumá-lo, foi rapidamente sujeito à criminalização, enquanto o mais

perigoso (injetar-se heroína) foi o último a ser definido publicamente como problema social". A explicação é

muito clara neste caso: era preciso deslocar a mão-de-obra chinesa - únicos fumadores da época - quando se

tornou ameaçadora sua competição no mercado de trabalho. Assim observamos como para a sua criminalização

predominou o interesse econômico sobre o médicos.

____________________________________________________________

134 Sinônimo de letargia no Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

135 DEL OLMO, op. cit., p. 26.

79

Os Estados Unidos, um dos protagonistas do desenvolvimento do capitalismo moderno, eram o Estado

mais interessado em frear o desenvolvimento inglês, liderando - através de um apelo moralista de resgate aos

bons costumes - a convocação da Convenção de Haia, com o fim de ratificar a proibição realizada na Comissão

de Xangai. O próprio criminólogo Sebastian Sheerer aponta este interesse econômico imediato, ao observar que

a iniciativa americana se limitava a um acordo internacional que se destinaria a salvar o povo chinês do vício, o

governo chinês da colonização e o mercado chinês dos monopólios europeus, interrompendo as exportações

anglo-indianas de ópio para a China e seus vizinhos. "Não era intenção dos americanos ir além do ópio e, se

possível, seus derivados", afirma Sheerer136

Prejudicados com a proibição do comércio de ópio, os ingleses condicionaram a sua participação na

Convenção de Haia à inclusão de outras substâncias no ternário do evento, tais como os derivados do ópio e a

própria cocaína, fazendo com que o ônus econômico da proibição recaísse também sobre outros países, a

exemplo da Alemanha, Holanda e França, que comercializavam a cocaína através da emergente indústria

farmacêutica. Apesar de algumas resistências, o acréscimo das demais substâncias foi aprovado, dando início ao

controle internacional das drogas, e marcando, até hoje, a nomenclatura "narcótico" e "entorpecente" para

designar diferentes substâncias psicoativas, haja vista que a cocaína é um estimulante; a maconha um

alucinógeno, sendo somente o ópio e seus derivados substâncias entorpecentes, mas que por encabeçarem a

proibição passaram a identificar as demais substâncias por essa designação equivocada e, como já visto no

capítulo anterior, funcional em sua imprecisão.

Até a Segunda Guerra Mundial, a proibição não foi muito eficaz. Com a inclusão principalmente da

cocaína na lista de substâncias

__________________________________

136 SHEERER, Sebastian."Estabelecendo controle sobre a cocaína (1910- 1920). In: Drogas: é legal? Um

debate autorizado. Rio de Janeiro: Imago, 1993, p.172.

proibidas pela Convenção de Haia, a Alemanha, buscando ganhar tempo, insistiu na ratificação do encontro por

outros importantes Estados da Europa e América, sendo que o início da Primeira Guerra Mundial atrasou por

dez anos a validade da convenção que, somente em 1921, entra em vigor, criando-se a Comissão Consultiva do

Ópio (e demais "substâncias nocivas"). A diversidade de interesses fez com que a reação às resoluções

proibitivas fosse diferente em cada pais. Mas foi nos EUA que a proibição se transformou e até hoje o é, por

diferentes razões, em prioridade política, temperada e mascarada pelo conservadorismo da moralidade e dos

bons costumes.

Desde o fim da guerra civil americana (1861-65) começaram a se organizar grupos aglutinados em

torno das igrejas e associações protestantes que clamavam por ações do governo para coibir a produção, o

comércio e o uso de substâncias psicoativas, incluindo o álcool.

O movimento proibicionista tinha raízes na tradição puritana do protestantismo, interpretação do

cristianismo radicalmente contrária à busca do prazer em vida e que pregava uma conduta extremamente severa.

Dentre os grupos formados, vale destacar o Anti-saloon League, fundado em 1893, e que dirigia seus ataques

aos sallons, estabelecimento que concentrava três dos maiores vícios na concepção de seus associados: jogos de

azar, prostituição e consumo de álcoo1137.

O inicio da proibição das drogas no EUA tem relevância no entendimento de alguns pontos do atual

estágio da política internacional de repressão, entre eles a difusão do estereótipo moral, cujas conseqüências se

revelam não só no "distanciamento cada vez maior entre drogas permitidas e proibidas, mas, sobretudo, entre os

que consomem umas e outras"38

, bem como a criação do estereótipo médico, com a distinção entre usuário e

traficante, que surge em 1914, com a aprovação nos EUA do Harrison Narcotic Act.

___________________________________________________ 137

RODRIGUES, op. cit., p. 26.

138 DEL OLMO, op. cit., p. 24.

81

O governo estadunidense utilizou, de forma estratégica, a assinatura do Convênio de Haia para

pressionar o Congresso Nacional a adaptar as leis nacionais, consideradas pelo Poder Executivo ainda frágeis e

restritas.A tática era simples: nós (os EUA) ao nos comprometermos internacionalmente, iniciando novas

normas sobre o controle de drogas, temos o dever de adequar nossas leis internas, tornando-as mais rígidas.

Bem sucedida, a manobra auxiliou na aprovação, em 1914, do Harrison Narcotic Act, lei mais complexa e

severa que os acordos internacionais já assinados e que investia na proibição explícita de qualquer uso de

psicoativos considerados sem finalidades médicas. Da Lei Harrison deve se mencionar uma importante

novidade: o texto criava as figuras do traficante e do viciado, respectivamente aquele que produz e comercializa

drogas psicoativas irregularmente e aquele que consome sem permissão médica. O traficante deveria ser preso e

encarcerado; o usuário, considerado doente, deveria ser tratado (mesmo que compulsoriamente) 139

. a nova norma, a classe médica era restringida no ato de receitar psicoativos, mas ganhava o monopólio

para lidar legalmente com essas substâncias. O consumo, apesar da lei, não se restringiu aos tratamentos

médicos, persistindo usos hedonistas e a automedicação. "Estava legalmente inaugurado o mercado ilícito de

drogas, desenhava-se os primeiros passos da economia do narcotráfico"140

A reprovação moral ao uso de substâncias psicoativas - expressão adotada por Thiago Rodrigues para

unificar toda a diversidade de substâncias proibidas sob a denominação equivocada de "narcóticos"- na esteira

do que foi por nós observado quando do estudo da Criminologia da Reação Social e do processo de

etiquetamento e seleção das classes criminosas, foi tradicionalmente acompanhado pela associação entre

determinadas drogas e grupos sociais.

________________________________________________

139 RODRIGUES, op. cit., p. 30. 140 Idem, p. 30.

82

Os chineses, vindos em larga escala para trabalhar na construção das estradas de ferro no oeste dos

EUA, trouxeram o hábito de fumar ópio e a esse psicoativo foram ferrenhamente associados. A maconha era

considerada, em princípios do século XX, droga de mexicanos, grupo visto pelos brancos estadunidenses como

indolentes, preguiçosos e, por vezes, agressivos. Aos negros, parcela da população lançada em miseráveis

condições de vida, atribuía-se o uso de cocaína, prática que supostamente os tornava sexualmente agressivos.

Por fim, o álcool era percebido como uma droga que era abusada pela comunidade de imigrantes irlandeses.

Nos quatro casos, a mesma lógica: minorias e imigrantes portavam comportamentos moralmente reprováveis

que ameaçavam valores profundos dos EUA. Segundo Passetti (1991), Escohotado (1998) e McAllister (2000),

essas comunidades eram tidas pelo cidadão norte-americano, branco, de origem anglo-saxônica como entidades

exógenas, estranhas e de hábitos perigosos, que traziam venenos e disputavam empregos com aqueles

estabelecidos na América há gerações141.

Os estereótipos morais e médicos, presentes desde o início das políticas de proibição no território

americano, apresentavam um alvo seleto, que associava substâncias perigosas às classes perigosas, colocando

sob suspeita toda uma faixa da população que, por seus hábitos e sua pobreza, já costumava ser vigiada e

controlada pelos aparatos repressivos do Estado. A associação de negros, hispânicos, chineses e irlandeses,

percebidos como "anormais", com as drogas que passavam à ilegalidade criava a possibilidade de controle

destas populações, sob a justificativa de combate ao tráfico. Todo este mecanismo de criação de estereótipos

criminais, controle punitivo das classes perigosas e repressão ao tráfico de drogas ainda se encontra presente no

modelo atual. Guardadas as especificidades históricas de cada momento, os agricultores da coca na Bolívia e os

favelados do Rio de Janeiro, passaram a ser alvos dessa política específica de controle.

_________________________________

141 Idem, p. 31.

83

O controle sobre a população "perigosa", nos EUA, ganhou impulso com a aprovação da lei seca, em

1919. A proposta, aprovada pelo Congresso através da 18' emenda à Constituição, instituiu a proibição total da

produção, circulação, estocagem, importação, exportação e venda de bebidas alcoólicas em todo o território

estadunidense, criando a primeira grande rede de traficantes e organizações, que se dedicaram a suprir o

mercado ilícito criado em conseqüência da Lei Seca.Assim como hoje, a proibição não diminuiu o consumo e,

até ser revogada em 1933, a Lei Seca foi responsável pelo fortalecimento do crime nos EUA, bem como expôs a

sua população ao consumo de bebidas muito mais nocivas à saúde.

O recuo quanto à proibição do álcool nos EUA não significou uma reavaliação global das políticas de

proibição. A lista das substâncias psicoativas proibidas foram mantidas e ampliadas e, na década de 30, chegava

a vez da maconha. O Manjuana Tax Act (Lei Tributária sobre a Maconha), promulgada por Frankilin Roosevelt,

em 1937, proibia o cultivo e comercialização de cannabis em solo estadunidense. A grande depressão

americana parece ter sido o impulso econômico para a criminalização da maconha, que era usada naquela época

de forma muito restrita pela população dos EUA, mas que tinha grande aceitação e consumo junto aos

mexicanos que, a partir da quebra da bolsa de valores norte-americana, passou a ser mão-de-obra competitiva,

não desejada em razão da crise econômica.

A Conferência de Genebra, em 1936, marca o panorama da proibição internacional com a imposição

do modelo americano, que obrigava os países signatários a criarem departamentos próprios de repressão ao

tráfico de drogas, nos moldes daqueles criado nos EUA, tais como o Food and Drug Administration (FDA) e o

Federal Bureau of Narcotics (FBN).

Nas décadas de 40 e 50, em linhas gerais, o consumo de drogas não causava grande inquietação, não

havendo choque entre a postura dos EUA e dos países europeus, restringindo-se o enfrentamento norte-

americano aos Estados considerados produtores de matéria- prima, como a Turquia e o Irã. Começa a se

desenhar uma geopolítica das drogas, que irá se aprofundar no decorrer das décadas: os países

84

industrializados de ponta exigem maior rigidez no controle de opiáceos, maconha, cocaína, produzidos pelos

países menos desenvolvidos, enquanto as substâncias sintéticas, produzidas nas indústrias farmacêuticas dos

EUA e Europa (barbitúricos e anfetaminas) sofrem pouca regulamentação. Essas divergências geopolíticas, no

que diz respeito ao tipo de psicoativo e ao país produtor, continuam presentes na lição da professora Rosa Dei

Olmo.

Algunas de las divergencias más notorias son ias siguientes: em primer lugar, sedai el tipo de droga.

Aunque en ia actualidad existen 174 substancias psicoactivas sometidas a fiscalización internacional, de Ias

cuales 167 son específicos sintéticos o derivados producidos por ia industria farmacêutica, los esfuerzos

represivos están dirigidos fundamentalmente hacia las siete substancias restantes que provienen de tres plantas:

ia coca; la amapola y el cannabis. Pero a su vez, incluso estas tres últimas reciben en la práctica un trato

diferencial, pudiendo observar- se como la retórica, así como las políticas de control, se concentran en ia coca y

sus derivados142.

____________________________________________

142 DEL OLMO, Rosa. "Geopolítica de ias drogas". In: Revista Análisis. Medellín. 1998,p. 63. 143

RODRIGUES, op. cit., p. 37.

85

Rosa Dei Olmo também observa a existência de divergências geopolíticas segundo o país, dando o

exemplo do México que, desde o início dos movimentos de proibição norte-americanos, mesmo sendo o país

responsável pela maior entrada de heroína nos EUA, o primeiro produtor mundial de maconha, bem como ocu-

par um lugar fundamental no tráfico da cocaína, recebe tratamento menos repressivo que a Colômbia.

"O impulso proibicionista parecia dirigir-se para os psicoativos tradicionais, e não para as novas drogas

devidamente patenteadas e que ocupariam o espaço a ser deixado pelas substâncias perseguidas"43. Durante a

década de 50, duas novas leis foram editadas para combater o comércio de heroina.A droga, produzida a partir

do ópio, tornara-se mais acessível e seu consumo crescera, principalmente entre a parcela marginalizada da

população, notadamente os negros, que viviam em grandes centros urbanos como NovaYork e Chicago.

O aumento do uso de heroína entre negros foi o estopim para uma nova e difusa associação entre

depravação moral e degradação fisica. O fervilhante mundo do jazz e os guetos de negros passaram a ser vistos

pela América branca como antros de cultivo ao vício. O clima de histeria aná-heroína foi importante para

alavancar a aprovação de duas leis, o Boggs Act, de 1951, e o Narcotics Control Act (Lei de Controle dos

Narcóticos), de 1956, que condensavam as leis antidrogas aprovadas desde a Lei Harrison de 1914 e instituíam

medidas severas como, por exemplo, previsão de cinco anos para traficantes primários (sem antecedentes

criminais) e pena de morte para traficantes maiores de idade que vendessem drogas ilícitas a menores de dezoito

anos144.

Foi, no entanto, no curso dos anos 60 que se produziram as grandes modificações na política

internacional de drogas. Naquela década é estabelecido e difundido o modelo medico-sanitário, considerando a

droga como sinônimo de dependência145

. Uma série de acontecimentos sociais e políticos contribuiu para essas

mudanças, como observa Rosa Del Olmo:

Era o início da década da rebeldia juvenil, da chamada "contracultura", das buscas místicas, dos

movimentos de protesto político, das rebeliões dos negros, dos pacifistas, da Revolução Cubana e dos

movimentos guerrilheiros na América Latina, da Aliança para o Progresso e da Guerra doVietnã. Estava- se

transformando o "American Way of Life" dos anos anterio-

________________________________________ 144

Idem, p. 38. 145

DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga, op. cit., p. 33.

86

res; mas sobretudo era o momento do estouro da droga e também da indústria farmacêutica nos países

desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos. Surgiam as drogas psicodélicas como o LSD com todas as

suas implicações, e em meados da década aumenta violentamente o consumo de maconha, já não só entre os

trabalhadores mexicanos, mas também entre os jovens de classe média e alta' .

A Convenção Única sobre Estupefacientes de 1961, que resulta num protocolo assinado, em 1972,

pelos Estados participantes, inicia a "ideologia de diferenciação"147

a partir do modelo médico-jurídico que,

segundo Rosa Dei Olmo, tem como principal característica distinguir o traficante, definido como criminoso, do

consumidor, tratado como doente. Novos personagens haviam ingressado no cenário das drogas - "o consumo

já não era próprio dos guetos urbanos nem dos negros, porto-riquenhos ou mexicanos, pobres e/ou delinqüentes,

mas também dos jovens brancos da classe média norte-americana” 148 .

O problema da droga se apresentava como uma "luta entre o bem e o mal", continuando o estereótipo

moral, com o qual a droga adquire perfis de "demônio"; mas sua tipologia se tornaria mais difusa e aterradora,

criando-se o pânico devido aos "vampiros" que estavam atacando tantos "filhos de boa família". Os culpados

tinham de estar fora do consenso e ser considerados "corruptores", daí o fato do discurso jurídico enfatizar na

época o estereótipo criminoso, para determinar as responsabilidades; sobretudo o escalão terminal, o pequeno

distribuidor, seria visto como o incitador ao consumo, o chamado pusher ou revendedor de rua. Este indivíduo

geralmente provinha dos guetos, razão pela qual era fácil qualificá-lo como "definqüen-

_____________________________________ 146

Idem. 147

Idem. 148

Idem. p. 34.

87

te". O consumidor, em troca, como era de condição social distinta, seria qualificado de "doente" graças à

difusão do estereótipo da dependência, de acordo com o discurso médico que apresentava o já bem consolidado

modelo médico-sanitário'''.

O discurso jurídico passa a ser influenciado por um discurso médico e, conforme observação da

criminóloga venezuelana, desse encontro se difundiu o estereótipo da dependência para o consumidor, com o

qual se inicia a experiência de diferentes tratamentos ao longo da década. Em fevereiro de 1966 foi aprovado

nos EUA o Narcotic Addict Rehabilitation Act, pelo qual se permite ao consumidor no curso de um processo

penal, optar por uma espécie de "medida de segurança" ao escolher entre um tratamento médico ou a prisão.

Nessa lei encontra-se a origem da recém descoberta "Justiça Terapêutica", que vem "encantando" magistrados e

promotores de justiça como a grande novidade do século XXI, mas que na realidade nada mais faz do que

confirmar a "ideologia da diferenciação" estabelecida nos anos 60: para o consumidor, um médico, um psi-

cólogo e um assistente social; para o traficante, um carcereiro.

3.2. LEI E ORDEM: A GUERRA CONTRA AS DROGAS

É com base neste modelo médico-jurídico, na distinção entre consumidores e traficantes que se

delineia o modelo jurídico-político que irá se estabelecer a partir da década de 70, culminando com a declaração

de guerra às drogas e a explosão dos movimentos de lei e ordem nas décadas seguintes, quando o traficante é

visto como o "inimigo", enquanto ao usuário são oferecidas alternativas descriminalizantes, que vão da multa ao

tratamento médico compulsório.

O consumo de substâncias psicoativas passa a ser tratado como questão de segurança nacional,

enquanto o discurso médico-jurídico se sobrepõe sobre o discurso moral, uma vez que já não se podia aceitar

que tantos jovens americanos fossem desprovidos de

_________________________________ 149

Idem.

88

virtudes. A massificação do consumo de drogas só poderia ser encarada como doença contagiosa, como explica

Rosa Del Olmo:

O consumo de drogas não podia ser visto como uma simples "subcultura", a droga e seus protagonistas

haviam mudado. Tinha de ser visto como um "vírus contagioso". A maconha coletivizava o consumo ao ser

usada em ato público, compartilhado e comunitário. Deve se lembrar, por exemplo, dos hippies e do consumo

maciço de maconha nos festivais de música ao ar livre como o famoso Festival de Woodstock. Era a arma por

excelência que os jovens haviam encontrado para responder ao desafio da ordem vigente nos países

desenvolvidos. Não é estranho então que se começasse a falar da droga em matéria de segurança, como o

inimigo interno'".

O Brasil, assim como outros países da América do Sul, como a Colômbia e Venezuela, passam a

assumir o novo discurso médico- jurídico dos EUA, muito embora as suas realidades fossem totalmente

distintas. Em 10 de fevereiro de 1967 é editado em nosso país o Decreto-lei 159 que fazia referência expressa às

"substâncias que produzam dependência", sendo o segundo Estado no mundo a considerar tão nocivo o uso de

entorpecentes como o de anfetamínicos e alucinógenos. Contudo, até então, continuava em vigor o disposto no

art. 281 do Código Penal Brasileiro, com a seguinte redação, que não distinguia às condutas do traficante e

usuário:

Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer

consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou de qualquer maneira entregar ao consumo substância

entorpecente.

A lei 4.451/64 introduz ao tipo do art. 281 do C.P. a ação de plantar, mas é quinze dias após a

decretação do AI-5 (Ato

_________________________________________

150DEL OLMO, op. cit., p. 36.

89

Institucional n° 5), pela ditadura militar brasileira, que ocorre modificação substancial na política de

repressão nacional, conforme orientação do advogado e criminalista Salo de Carvalho:

aos Estados Unidos porque eram "doentes" e seriam sujeitos à tratamento, de acordo com o discurso

médico tão em moda153.

(...) vigorava, até então, a interpretação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, cujo

entendimento era de que o art. 281 do Código Penal não abrangia os consumidores, pois em seu parágrafo 32

previa a punição do induzidor ou instigador. A interpretação era de que, sancionando o induzidor ou o

instigador, estaria excluído o usuário, visto que bastaria a regra geral do art. 25 do Código Penal de 1949 para a

configuração da co-autoria151.

Como bem orienta Rosa Del Olmo, a "ideologia da diferenciação" não poderia ser levada a cabo pelos

países do cone sul, uma vez que o tratamento médico para os usuários/dependentes urgia investimento e

recursos não disponíveis. "A conseqüência deste duplo discurso, importado sem as adaptações à realidade

sócio-econômica e cultural dos países da América Latina, foi de gerar estereótipos bem definidos" 152.

... tudo dependia na América Latina de quem a consumia. Se eram os habitantes de favelas,

seguramente haviam cometido um delito, porque a maconha os tornava agressivos. Se eram "meninos de bem",

a droga os tornava apáticos. Daí que aos habitantes das favelas fosse aplicado o estereótipo criminoso e fossem

condenados a severas penas de prisão por traficância, apesar de só levarem consigo um par de cigarros; em

troca, os “meninos de bem", que cultivavam a planta em sua própria casa, como aconteceu em inúmeras

ocasiões, eram mandados para alguma clínica particular para em seguida serem enviados

__________________________________________ 151

CARVALHO, Saio de. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Luam, 1997, p. 24. 152

Idem, p. 35.

90

Assim, empurrado por uma política de combate às drogas, cuja descriminalização do usuário pela via

jurisprudencial criava preocupações no âmbito da repressão'', foi editado o Decreto-lei 385/68 que alterava a

redação do Código Penal, estabelecendo a mesma sanção para traficante e usuário, com a seguinte redação para

o parágrafo único do art. 281: "Nas mesmas penas incorre quem ilegalmente: III - traz consigo, para uso

próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica".

Durante três anos as condutas do consumidor e traficante foram equiparadas, com ambos respondendo

pelas mesmas penas, fato que levou muitos juristas a criticar o Decreto-lei 385/68. Mena Barreto, citado por

Salo de Carvalho', foi enfático ao considerar tal legislação vexatória, tornando-se inoperante e inaplicável pelos

tribunais, que acabavam por absolver réus primários e/ou dependentes, ao invés de aplicar-lhes "equilibradas

condenações". Futuro idealizador do projeto da Lei de Tóxico (Lei 6.368/76), Mena Barreto revela a

incorporação do modelo médico-jurídico em seu discurso, que reforça a ideologia da diferenciação, ao exigir

tratamento penal severo para traficantes e "equilibradas condenações" para usuários.

A lei 5.726/71 fez com que o Brasil ingressasse, na década de setenta, "em perfeita sintonia com a

orientação internacional no que diz respeito às legislações anti-drogas", marcando total autonomia da disciplina.

No que diz respeito ao discurso médico-jurídico, a nova legislação deixa de considerar o dependente como

criminoso, mas não diferenciava o experimentador ou usuário eventual do traficante, sendo considerada apenas

uma passagem entre o modelo repressivo anterior e a nova legislação, que se encontra em vigor até hoje no país.

__________________________________________ 153

DEL OLMO, op. cit., p. 46. 154

Idem, p. 46. 1"

Idem. p. 27.

91

Esta legislação ainda preserva o discurso médico-jurídico encontrado na década anterior e sua notória

conseqüência de definir usuário habitual como dependente - estereótipo da dependência - e traficante como

delinqüente - estereótipo criminoso.Apesar de trabalhar com esta falsa realidade, distorcida e extremamente

maniqueísta ao dividir a sociedade entre os "bons" e os "maus", a lei 5.726 representa real avanço em relação ao

Decreto pretérito e inicia o processo de substituição do modelo repressivo, que atingirá seu ápice na lei

6.368/76156.

Os anos setenta revelam uma alteração no enfoque das políticas de repressão. A guerra do Vietnã traz à

tona o consumo de heroína por militares e ex-combatentes norte-americanos, servindo para iniciar o "discurso

político" sobre as drogas, como nos mostra Rosa Dei Olmo 156. Para a criminóloga venezuelana, o boom da he-

roína fez substituir o "inimigo interno" pelo "inimigo externo", referindo-se particularmente ao tráfico. Através

deste novo discurso o consumo de drogas no "Mundo Livre" é associado a um país "inimigo", discurso este que

se difundiria em outros países naquela época. O discurso político das drogas faz com que não só os EUA, bem

como os demais países do continente, passem a tratar a questão das drogas como um problema de segurança

nacional.

Na visão de Rosa Dei Olmo, o novo discurso é condicionado por um fator geopolítico específico

daquele momento que foi a guerra contra a subversão comunista, que "ameaçava" a democracia. Para

estabelecer a vinculação entre ambas as guerras e a conexão entre os dois "inimigos principais" (comunistas e

traficantes), se difundiu os termos "narcoguerrilha", "narcoterrorismo" e “narcosubversão". Em 1972, em

pronunciamento, o então presidente Richard Nixon identifica os psicoativos ilícitos como inimigos n°1 da

América e, em conseqüência, declara guerra às drogas.

______________________________________

156 Idem. p. 28. 157

Idem. p. 40.

92

Essa guerra, longe de ser apenas uma metáfora, significava a intenção de aprofundar as medidos

repressivas por meio de crescimento das ações policiais de busca e apreensão de drogas ilegais e do combate a

grupos clandestinos e redes de tráfico 158.

Aceita-se oficialmente a existência de países produtores de drogas ilícitas e países consumidores,

atitude que cumpria o papel de exteriorizar o problema do tráfico de drogas, colocando Estados e regiões do

então Terceiro Mundo como agressores e os Estados Unidos na posição de vítima: criminosos asiáticos e latino-

americanos levariam heroína, cocaína, maconha e LSD para corromper a juventude americana159.

O discurso político deflagrou significante reforma nas organizações repressivas, em especial com a

criação nos EUA, em 1974, da Drug Enforcement Agency, posteriormente renomeada como Drug Erdorcement

Administration (DEA),ligada ao Departamento de Justiça, que funcionaria como órgão centralizador de toda a

política de proibição, no território norte-americano e internacional, que iria se desenvolver a partir de meados da

década de 70 até os nossos dias.

A partir de 1976, uma substância específica passa a ocupar com destaque o discurso de proibição,

dando novos contornos à declaração de guerra.A cocaína é observada como droga em ascensão no que diz

respeito ao consumo e disponibilidade nos EUA, superando a heroína. A indústria da coca estava se instalando

nos países andinos, adquirindo características próprias e criando para todo o continente um novo alarde, aos

moldes dos que ocorreram com a maconha (anos 30) e heroína (anos 50). Estava criado o estereótipo da

cocaína, que preparava novos "inimigos externos" para a guerra que já havia sido declarada na década anterior.

Assim chegamos à década de oitenta.

En la década de los ochenta, la atención central estuvo dirigida hacia la cocaína, industria que había

comenzado a florecer a

___________________________________________

158 RODRIGUES, op. cit., p. 42.

159 Idem, p. 42.

93

mediados de los setenta, y muy pronto seria considerada como un peligro económico y una amenaza a la

estabilidad politica y social. Ai serAmérica Latina, y concretamente los países andinos, la única región

productora de cocaína en la actualidad, muy pronto estos se convirtieron en cl principal campo de batalla160

.

Ao entrar na década de oitenta, os EUA apresentavam o maior número de consumidores de droga de

toda a sua história161

. Os aspectos econômicos e políticos do tráfico de cocaína passam a ser o centro do

discurso proibicionista , transformado agora em discurso político. As fugas de capital em direção às contas

bancárias nos paraísos fiscais faziam conexão com o novo negócio bilionário, criado a partir de um atrativo

mercado consumidor, em condições geopolíticas que facilitaram o boom da cocaína e o surgimento de

organizações e redes de poder.

Ao lado do imenso mercado consumidor e da tecnologia bancária, que faz com que os "narcodólares"

sejam lavados em transações financeiras, sendo reaplicados em outros negócios clandestinos ou não,Thiago

Rodrigues aponta outros fatores determinantes para a expansão do mercado da cocaína na década de oitenta: a

sedução econômica para faixas pauperizadas das populações latino- americanas - "dos camponeses andinos aos

miseráveis urbanos, o negócio ilegal do tráfico de drogas tornou-se, a despeito de qualquer reprovação moral, o

mais rentável trabalho a se dedicar"162

; as

condições preexistente na América Latina, tais como as de natureza

geo-climáticas, bem como de natureza social - "como a cultura milenar da folha de coca nos Andes e os

tradicionais circuitos de ilegalidade (como o contrabando e o tráfico de pedras preciosas) que constituíram

know-how para as organizações narcotraficante que se formavam" 163

______________________________________ 160

DEL OLMO, op. cit., p. 6. 161

Idem, p. 55. 162

RODRIGUES, op. cit., p. 51. 163

Idem, p. 51.

94

Paralelamente à ascensão do "narcotráfico", o socialismo dava sinais de falência no início dos anos 80,

assim como as ditaduras militares latino-americanas apoiadas pelos EUA. A ideologia da Segurança Nacional,

surgida no período pós-Segunda Guerra Mundial, quando o mundo ficou dividido em dois "blocos", estava

ameaçada. Como justificar a intervenção americana no plano internacional com o fim do comunismo? "O vácuo

que a queda progressiva da ameaça comunista deixava seria gradativamente ocupado por um novo perigo

identificado pelo governo norte-americano: o narcotráfico"164.

O ponto de transição em que as duas ameaças (comunismo e narcotráfico) convivem pode ser

demarcado em meados da década de 1980, mais precisamente 1985, quando o então embaixador dos EUA na

Colômbia, Lewis Tambs, afirma haver nesse país uma associação direta entre guerrilhas marxistas, em luta pelo

poder no pais desde os anos 1960, e as organizações narcotraficantes. No pronunciamento, Tambs classificou tal

associação como narcoterror. A posição do diplomata foi reforçada com a edição de um documento (a National

Secury Decision Directive - NSDD 221) pelo presidente Ronald Reagan, já em 1986, que registrava

oficialmente que, para o governo, comunismo e narcotráfico agiam em conjunto para minar a democracia e a

saúde das populações 165.

Tal posição põe em marcha políticas de militarização que se destinam ao combate do "narcotráfico" e

das "guerrilhas", vistos como "males conectados". Com o novo discurso jurídico-político, a intervenção

americana nos países do eixo-sul ganha novo fundamento, com repercussão não só no plano militar norte-

americano de ocupação da Amazônia, através da "guerra" declarada contra as organizações narcotraficantes

colombianas, bem como no recru-

_______________________________ 164

Idem, p. 73. 165

Idem.

95

descimento das políticas criminais de drogas nos países sul-americanos. Do "narcoterrorismo" chega-se à

"narcosubversão".

A imposição de uma política criminal intolerante, que se manifesta na declaração de guerra às drogas,

na lição de Saio de Carvalho, é estabelecida a partir da conjunção das ideologias da Defesa Social e da

Segurança Nacional, que irão preparar o terreno para os movimentos de "Lei e Ordem".

Apesar de ter como objetivo especifico a eliminação do "inimgo interno" - o aller"subversivo" que

questiona o establishment -, a ideologia da Segurança Nacional, agregada à ideologia da Defesa Social,

estabelece pauta de ação especifica em relação ao "combate à criminalidade"166.

As ideologias da Defesa Social e da Segurança Nacional não apresentam identidade ideológica,

cumprindo objetivos próprios de cada modelo. O criminólogo Alessandro Baratta observa a ideologia da Defesa

Social como uma concepção comum às escolas clássica e positivista do direito penal.

Desde o surgimento da ciência do direito penal, com o garantismo contratualista, iniciado por Beccaria

entre outros, passando pelo pensamento de Lombroso e Garóffalo, até chegar aos nossos dias, incorporado não

só pelos representantes do aparato penal penitenciário, mas também no pensamento do homem de rua, a

ideologia da Defesa Social se apresenta através de uma série de princípios, definidos pelo criminólogo italiano,

entre os quais gostaria de destacar três: 1) Princípio da legitimidade, através do qual o Estado se apresenta

como representante da maioria dos integrantes da sociedade, estando legitimado, através das agências de

controle social, a reagir, reprovando e condenando os comportamentos delitivos; 2) Princípio do bem e do mal,

pelo qual o delito é visto como um dano à sociedade. "O delinqüente é um elemento negativo e disfuncional do

sistema social. O desvio criminal é, pois, o

___________________________________________

166 CARVALHO, op. cit., p. 143.

96

mal; a sociedade constituída, o bem 167; 3) Princípio do interesse social e do delito natural, segundo o qual os

interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos e representam ofensa de

interesses fundamentais, de condições essenciais à existência de toda sociedade.

Já a ideologia da Segurança Nacional tem sua gênese no período pós-Segunda Guerra Mundial, "com a

instauração da 'Guerra Fria' e a bipolaridade entre leste e oeste (polarização ideológica)"', quando se constrói

um mundo dividido em dois poderes antagônicos, separando-se as nações em blocos políticos. É justamente na

estrutura conceitual da bipolaridade política, nas décadas de 60 e 70, que as ideologias da Defesa Social e

Segurança Nacional vão se encontrar para a declaração de guerra não só aos inimigos externos, mas também aos

inimigos internos, criando a figura do "subversivo","estabelecendo Política Criminal beligerante, estruturada a

partir da idéia de guerra total - interna e externa'''.

Se o mundo está dividido e esta divisão representa pólos anacrônicos em franco conflito, a Nação

também se altera, separando a população entre fiéis cumpridores da lei e aqueles que a corrompem. Desta

forma, a visão universal, de mundo desagregado, é incorporada pelos teóricos sul-americanos e, conse-

qüentemente, invade o panorama interno do país. Além da avaliação da existência de um inimigo externo, que

pretende corromper a "democracia" e os valores morais cristãos da sociedade nacional, haverá,

indubitavelmente, um inimigo interno, com as mesmas intenções, que também deve ser eliminado 170.

Essa estrutura bipolar, do bem contra o mal, conseguiu reunir traficantes, usuários de drogas e presos

políticos nos mesmos presí-

___________________________________________

167 BARATTA, op. cit., .p. 42.

168 CARVALHO, op. cit., p. 144.

169 Idem, p. 148. 170

Idem, p. 145.

97

dios em nosso país, no primeiro período do regime militar, uma vez que a partir do Decreto-lei 385 de 1968,

passando pela lei 5.726 de 1971, e só terminando com a edição da lei 6.368/76, a conduta dos usuários de

drogas foi equiparada em suas penas à conduta dos traficantes. Um "comunista", um "traficante" e um

"maconheiro" representavam o mesmo perigo para os valores estabelecidos pela ditadura militar, período em

que a heresia se expressava na insubordinação.

O Estado de Guerra é instaurado e qualquer movimento que venha a questionar sua legitimidade é

enquadrado em determinado rótulo (inimigo) e considerado subversivo em potencial (criminoso). Desta forma,

tanto os revolucionários, quanto os criminosos comuns, são encarados como inimigos a serem eliminados pelo

sistema repressivo171

.

As ações do poder em tempos de guerra e em conjuntura política, em que pese seus vínculos estreitos,

apresentam notórias diferenças na lição de Zaffaroni'72

. A começar pelo inimigo, cuja identificação e tratamento

na guerra se reveste de mecanismos distintos daqueles empregados no campo político.

O ato de poder em conjuntura política é também massivo, mas não se trata de aniquilar, vencer ou

vender o inimigo, e sim de conter uma considerável maioria, impedindo-a de coligar-se ou organizar- se. Os

inimigos aqui são todos os integrantes dessa maioria, se bem que não no sentido de "inimigos de guerra", mas

de "inimigos políticos", ou seja, de outro tipo de exercício do poder 173.

O jurista argentino orienta, ainda, que o "inimigo de guerra" é todo aquele que pertence ao lado

contrário, enquanto "o sistema

_________________________________________

171 Idem, p. 147. 172

ZAFFARONI, op. cit., p. 225. 173

Idem.

98

penal seleciona uns poucos 'inimigos políticos' e os exibe como 'inimigos de guerra' da maioria"174

. A

vinculação da guerra ao sistema penal passa a ser muito mais complexa do que aquela que identifica o delin-

qüente como um inimigo da pátria, uma vez que o processo de seleção de apenas alguns criminosos, conforme

visto no capítulo anterior ao analisarmos as teorias da Criminologia da Reação Social, se traduz não num

processo de identificação, mas sim de criação da delinqüência, cujos atores serão rotulados e condicionados

para que se comportem e sejam considerados "inimigos de guerra".

O fato é que em situação de guerra o inimigo é representado por uma facção mais ou menos coesa que

combate acirrada- mente, ao passo que, em se tratando de conflito político, existe uma maioria inimiga não

organizada para a luta política (quer dizer para derrotar a hegemonia minoritária e operar segundo interesses

autônomos e não centrais), em cujas fileiras é alimentada a confusão, de forma a não permitir a sua organização

e conseqüentemente tomada de poder. Isto se consegue "fabricando" falsos "inimigos de guerra" para que hajam

como tais e, com isso, se possa fabricar uma espécie de "guerra"; dito mais claramente: isto serve para difundir

uma espécie de "doutrina de segurança nacional de conjuntura política", equivalente à sua análoga do tempo de

"guerra suja” 175

O novo modelo repressivo bélico passa a estabelecer sistemas penais potencialmente genocidas na

América Latina, que ganham força a partir do incremento dos Movimentos de Lei e Ordem, os quais

estabelecem o fomento do medo e terror para legitimar a "ideologia da diferenciação", onde o traficante de

drogas passa a ser considerado inimigo público número um, ao mesmo tempo em que a seletividade punitiva

escolhe, através de estereótipos, alvos para as ações do sistema penal. Assim, a posição precária no merca-

__________________________________________ 174

Idem. 175

Idem, p. 229.

99

do de trabalho, as deficiências de socialização familiar, o baixo nível de escolaridade, muito antes de se

constituírem como causas da criminalidade, aparecem como características desfavoráveis, que identificam seus

portadores com o estereótipo do criminoso.

No caso de crimes relativos a drogas, o peso negativo destas características aparece claramente,

inclusive no que se refere à distinção entre consumidor e traficante. É comum encontrar casos em que a única

"prova" do tráfico é o desemprego ou o subemprego daquele que é surpreendido na posse de drogas, visto como

naturalmente traficante, por se supor que, estando desempregado ou subempregado, não teria condições de ad-

quirir a substância para uso pessoal 176.

A legislação referente a drogas no Brasil, da revogada lei 6.368 de 1976 até a edição da lei 11.343, em

vigor desde 23/08/2006, é resultado da "ideologia da diferenciação", que se traduz na distinção das condutas

previstas para traficantes e usuários, a partir de um elemento subjetivo, definido pela dogmática penal como um

"especial fim de agir". Inicialmente tal distinção se traduziu nas penas, sendo o tráfico crime inafiançável

punido com reclusão, ao passo que para o usuário era prevista pena detenção, admitindo-se a fiança.

Com o passar dos anos a resposta penal às condutas definidas para o "traficante" e "usuário" vem

aumentando, considerando-se o primeiro como autor de uma conduta "equiparada" a crime hediondo, com

garantias individuais restringidas, através da proibição da liberdade provisória, anistia, graça e indulto; e o

segundo como autor de uma "infração de menor potencial ofensivo", não mais sujeita à pena privativa de

liberdade.

Assim, a ideologia da diferenciação vem ganhando grande impulso em nosso país desde a Constituição

de 1988, que dispensou tratamento penal rigoroso para o crime definido como tráfico de entorpecentes,

restringindo algumas garantias individuais, como

__________________________________

176 KARAM, op. cit., p .58.

100

acima exposto, e chegando a admitir em seu art. 5°, inciso LI, a extradição de brasileiros naturalizados, quando

do envolvimento com o tráfico de entorpecentes, nos seguintes termos: "Nenhum brasileiro será extraditado,

salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado

envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei".Tal dispositivo constitucional

"alça o tráfico à principal categoria delitual, encontrando-se, em plano repressivo, superior a qualquer outro tipo

de crime” 177, no entendimento de Salo de Carvalho.

As valorações político-criminais, próprias do Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order), iniciado

nos EUA a partir de meados da década de 70 e que atingiu seu ápice de divulgação, principalmente nos países

do eixo-sul, em meados da década de 80, se fizeram presentes à retaguarda do posicionamento assumido pelo

legislador constituinte 178. Difundindo a idéia do medo, com forte apelo nos meios de comunicação de massa,

de que a comunidade se encontra refém de ações criminosas organizadas, que atentam contra a ordem

democrática, sem que seja possível dominá-las através dos meios jurídicos tradicionais, fomenta-se a auto

proteção da vítima à margem da lei com risco de notórios excessos defensivos, desencadeando-se uma política

criminal com rigor desmedido no apelo à pena, com manipulação do medo e terror como forma de se mobilizar

"movimentos" legislativos de redução de garantias e exacerbação das penas, como bem explica García-Pablos

de Molina, citado por Alberto da Silva Franco:

Uma oportuna invocação ao perigo e a sentimentos irracionais de alarme ou temor - e a inculpação de

certos grupos ou minorias desviados como agentes do mesmo - é um reclamo poderoso. Concita-se a atenção

geral e a orienta deliberadamente até alguns objetivos atraentes; distrai e desvia aquele de outros pro-

1"

CARVALHO, op. cit., p.108.

'" SILVA FRANCO, Alberto. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2000, p. 78.

101

blemas sociais, sem dúvida prioritários, que passam a um segundo plano, projeta a agressividade e

emoções coletivas sobre minorias e marginais coletivos (bodes expiatórios) com o conseqüente reforço da

coesão e solidariedade social (função integradora do delito) e, sobretudo, propicia reações hostis e passionais,

que darão impulso a uma politica criminal rigorosa. A experiência demonstra, ademais, que a espiral do temor

infundado prejudica sempre os mesmos: as classes sociais deprimidas.

O Movimento da Lei e Ordem reforça, no campo da política criminal de drogas, a matriz da

"diferenciação penal" que, a partir do caminho aberto por Nilo Batista, tem sua origem na tradição ibérica e

pode ser caracterizado como "exacerbação penal de autor, que consiste em cominar a lei penas mais severas

para o mesmo crime quando cometidos por servos ou pessoas a eles assimiláveis'.

A dicotomia bem/mal, existente na "Ideologia da defesa social", se transmuta na dicotomia

amigo/inimigo quando da "Ideologia da Segurança Nacional" e, com o fim da Guerra Fria, diante da

globalização econômica e política, abre as portas para um novo fundamento que divide o mundo entre

consumidores e não consumidores.

(...) o sistema penal tem que empreender uma bipartição - na qual ressoa a matriz da "diferenciação

penal", que herdamos da milenar tradição ibérica - para atender a dois clientes distintos, aos que

caricaturalmente chamamos o bom delinqüente e o infrator perigoso (...) O bom delinqüente é um consumidor,

que deve ser preservado enquanto consumidor, evitando-se seu ingresso na penitenciária e o chamado "contágio

prisional"; o argumento econômico (custo do preso) funciona para ele (...) Para o infrator perigoso-réu de

extorsão mediante seqüestro, roubo qualificado, furto habitual de veículos ou tráfico de

_________________________________________

179 Idem. p. 82.

189 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p.128.

102

drogas - o argumento econômico cede ao argumento da segurança, e recomenda-se a maior permanência

possível sob o "contágio prisional", é ele o verdadeiro objeto do sistema penal, e os medos que a partir da sua

figura são produzidos permitem a expansão do sistema e a policialização das relações sociais181.

A guerra contra as drogas, que havia nas décadas anteriores definido inimigos à democracia ocidental,

faz ressurgir o conceito de inimigo interno, deslocado da criminalidade política para a criminalidade comum. A

proposta neoliberal de um Estado mínimo, não intervencionista na ordem econômica, se reveste no controle

social máximo da crescente massa de excluídos, incluindo-se nesta expressão o conjunto multifario de grupos

sociais que, dos desempregados aos imigrantes ilegais, passa pelos mendigos e se espraia nos sub-empregados

da economia informal, oponham-se eles às posturas municipais ou ao próprio Código Penal - camelôs,

barraqueiros, flanelinhas, bicheiros, prostitutas e rufiões, agiotas, receptadores, traficantes etc.182

Ainda que a prisão, processo e julgamento de grandes produtores ou atacadistas de drogas ilicitas seja

completamente excepcional, a intervenção cotidiana que mata ou prende "aviões", "vapores", "mulas" e

"esticas" introduz sondas investigatórias e repressivas em estratos sociais excluídos, onde se amontoam os

inimigos internos do projeto neoliberal 183.

Bem-vindos à criminalização da pobreza!

__________________________________

181 BATISTA, Nilo. "A violência do estado e os aparelhos policiais". In: Discursos Sediciosos, n2 4. Rio de

Janeiro: Freitas Bastos, 1997, p. 147. 182

Idem. 183

Idem, p. 152.

103

CAPÍTULO 4

A INDÚSTRIA DA CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS

Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como

menos úteis e potencialmente mais perigosas da população... (Nus Christie)

Muito se discute acerca das mudanças introduzidas pela sociedade pós-industrial. Do sonho

modernista, vivido nos "anos dourados" de pleno emprego e segurança, ao atual modelo de incerteza, fruto do

individualismo, bem como da "redução do trabalho primário, expansão do mercado de trabalho secundário e

criação de uma subclasse de desempregados estruturais"184,

entramos no século XXI com o mundo "de pernas

pro ar” 185.

A diminuição do trabalho seguro qualificado e de salários estáveis, acompanhado de uma reengenharia

de otimização dos serviços, com a introdução de programas de computador, como no setor bancário e de

comunicações, por exemplo, acabam por engendrar "um sentimento de precariedade nos que antes estavam

seguros” 186. O Estado já não mais interfere na ordem econômica e o capital deve circular livremente. Chegou

a vez do Estado mínimo, sendo antigas conquistas dos trabalhadores vistas como "assistencialismo", expressão

de cunho pejorativo, onde "um exercício de direitos do cidadão transforma-se no estigma dos incapazes e

imprevidentes 187.

_______________________________________ 184

YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 24. 185

Titulo do livro de Eduardo Galeano (1999, Ed. LP&M), autor de As veias abertas da América Latina. 186

YOUNG, op. cit., p. 25. 1"

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1997, p. 51.

105

O "desmantelamento das normas rígidas de trabalho"", com a conseqüente flexibilização deste

mercado, apresenta o desemprego não como um problema da nova ordem econômica, mas sim como a sua

verdadeira solução:

As melhorias econômicas já não anunciam o fim do desemprego. Atualmente, "racionalizar" significa

cortar e não criar empregos, e o progresso tecnológico e administrativo é avaliado pelo 'emagrecimento' da força

de trabalho, fechamento de divisões e redução de funcionários189.

Houve um tempo, entretanto, em que a indústria proporcionava trabalho, subsistência e segurança à

maioria da população, enquanto os custos marginais da corrida do capital pelo lucro eram divididos socialmente

através do "Estado do bem-estar social". Da previdência ao auxílio desemprego, o Welfare State garantia, como

forma de seguro coletivo, uma série de direitos aos trabalhadores empregados ou não, que desaparecem com a

"modernidade recente", na expressão do criminólogo inglês JockYoung.

A transição da modernidade à modernidade recente pode ser vista como um movimento que se dá de

uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente. Isto é, de uma sociedade cuja tônica estava na

assimilação e na incorporação para uma que separa e exclui 190.

Paralelamente, o individualismo, emergente no bojo da sociedade de consumo, troca antigos valores

como a família e o trabalho, projetos de longo prazo, pelo imediatismo da auto-realização através 188

Expressão

utilizada em 1996 por Hans Tietmeyer, presidente do banco central alemão, citada por Zigmunt Bauman

(Clobalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 111).

____________________________________ 189

BAUMAN, op. cit., p. 50. 190

YOUNG, op. cit., p. 23.

106

de expectativas materiais, cujo resultado é o aumento da demanda instrumental de sucesso monetário e status 191

a níveis inimagináveis.

Se o consumo é a medida de uma vida bem-sucedida, da felicidade e mesmo da decência humana,

então foi retirada a tampa dos desejos humanos: nenhuma quantidade de aquisições e sensações emocionantes

tem qualquer probabilidade de trazer satisfação da maneira como o "manter-se ao nível dos padrões" outrora

prometeu: não há padrões a cujo nível se manter - a linha de chegada avança junto com o corredor, e as metas

permanecem continuamente distantes, enquanto se tenta alcançá-las 192.

A revolução cultural dos anos 60, ao estabelecer a cultura do individualismo, e a crise econômica

mundial, que se iniciou nos anos 70 e se estabeleceu na década de 80, conhecida como os "anos perdidos" sob o

ponto de vista econômico, são os pontos de partida na transição da sociedade moderna para a sociedade pós-

industrial, consoante lição do criminólogo JockYoung. Passamos a viver num mundo onde o sucesso é medido

pelas conquistas materiais sem limites, ao passo que o trabalho já não mais remunera o cidadão.

Na esteira comparativa das recompensas oferecidas pela sociedade pós-moderna, podemos, por

analogia ao boxe, dividir os cidadãos em três categorias de consumidores: peso-pesado; médio-ligeiro e peso-

pena. Para se pertencer à primeira categoria a remuneração deve ser realizada através do capital, única fonte de

acumulação de riquezas; já "as classes médias, contentes no passado, viram seu mundo tornar-se precário e

transitório"193

, tendo por destino se fixar na segunda categoria, cuja competição ocorre nas regras do crediário;

por fim, a grande maioria das populações, principalmente nos países periféricos, são colocadas à margem do

verdadeiro mercado de consumo, vivendo em condições precárias para a aquisição de produtos

___________________________________________ 191

YOUNG, op. cit., p. 29.

192 BAUMAN, op. cit., p. 56.

193 YOUNG, op. cit., p. 24.

107

indispensáveis, grande parte componentes da cesta básica. Tal situação parece irreversível, razão pela qual o

Congresso Nacional Brasileiro, durante alguns meses, concentrou seus esforços em acirradas discussões a cerca

do valor do salário mínimo, cujos patamares oscilavam entre R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais), propostos

pelo governo, e R$ 275,00 (duzentos e setenta e cinco reais), defendido por outros setores. Venceu a proposta

do governo, sob o argumento de que a estabilidade do capital deve ser preservada.

A recompensa está cada vez mais restrita ao capital, sendo o talento e o esforço do trabalho

pouquíssimo recompensados, gerando tanto uma privação relativa entre os pobres, que dá lugar ao aumento da

criminalidade, como uma ansiedade precária entre aqueles em melhor situação, a qual é caldo de cultura de

intolerância e imputabilidade dos que descumprem a 16'94.

A exclusão de grande parcela da população do mercado de consumo, faz surgir na sociedade pós-

moderna os "consumidores falhos", aqueles a que o sociólogo Zygmunt Bauman denominou "os estranhos da

era do consumo” 195. Excluídos como trabalhadores e estimulados como consumidores estes novos estranhos -

"aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos" 196,formam a nova clientela do sistema penal.

Dada a natureza do jogo, as agruras e tormentos dos que dele são excluídos, outrora encarados como

um malogro coletivamente causado e que precisava ser tratado com meios coletivos, só podem ser redefinidos

como crime individual.As "classes perigosas" são assim redefinidas como classes de criminosos. E, desse modo,

as prisões agora, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições do bem-estar” 197

______________________________________ 194

YOUNG, op. cit., p. 25. 195

BAUMAN, op. cit., p. 49. 196

Idem, p. 57. 197

Ibidem.

108

O sistema penal neoliberal apresenta, assim, o seguinte paradoxo:"pretende remediar com um 'mais

Estado' policial e penitenciário o 'menos Estado' econômico e social que é a própria causa da escalada

generalizada de insegurança objetiva e subjetiva em todos os países". No que diz respeito à insegurança

objetiva, nota-se um aumento da criminalidade, que não pode ser detida pelo aparelho policial, já no tocante à

insegurança subjetiva cria-se um comportamento público de evitação199

, através de um mapa intrincado de zo-

nas proibidas e permitidas, que separa e confronta até os próprios excluídos. "A dialética da exclusão está em

curso” 200.

Desse modo, os excluídos criam divisões entre eles mesmos, com freqüência sobre bases étnicas,

muitas vezes quando à parte da cidade em que se mora, ou, mais prosaicamente (ainda que para alguns

profundamente, para que time de futebol se torce...). Eles são excluídos, criam uma identidade que é rejeitadora

e excludente, excluem outros mediante agressão e dispensa, e são, por sua vez, excluídos e dispensados por

outros, sejam diretores de escolas, seguranças de shoppings ou supermercados, cidadãos "honestos" ou o

policial em sua ronda 201.

4. 1 . A SOCIEDADE PáS-MODERNA E A GUERRA CONTRA AS DROGAS

É nesse contexto que a guerra contra as drogas se desenvolve. Numa dialética que confronta, de um

lado, jovens policiais na luta para se manterem no nível mínimo de consumo, iludidos pela ostentação

materializada em cordões de ouro; do outro, grupos de jovens excluídos do mercado de consumo que, armados,

lutam em-

_________________________________________________ 198

WACQUANT, Ldic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 7.

199 YOUNG, op. cit., p. 37. 200

Idem, p. 31.

201 Ibidem.

109

tre si e contra a polícia para se estabelecerem como "empresários" no mercado ilícito das drogas, identificando

seus inimigos para fora do campo político.

Ao contrário do que se costuma sugerir, é limitada a articulação entre o "movimento" das grandes

favelas do Rio. As supostas "organizações" como o CV (Comando Vermelho), CVJ (Comando Vermelho

Jovem), Terceiro Comando, ADA (Amigo dos Amigos) não mantêm um vínculo entre os seus membros capaz

de ações planejadas. Cada um desses grupos, na melhor (ou pior) das hipóteses, consegue dar apoio com

homens e armamentos, quando da disputa por territórios de venda, e se organiza tão somente para a aquisição

das substâncias proibidas.

Longe de organizar ações integradas, esses grupos acabam por reproduzir divisões entre si. Os

excluídos da era de consumo geram uma cultura de intolerância, por vezes, maior do que aquela que lhes é

dirigida. Podemos notar tal "dialética da exclusão" no fato de jovens, que residem em localidades onde o

comércio de drogas ilícitas é promovido por grupos rivais, serem proibidos de se relacionar. Um rapaz que

reside numa comunidade na qual atua o CV não pode namorar uma menina que reside na localidade de atuação

do Terceiro Comando, por exemplo. A "dialética da exclusão" chega ao extremo na proibição de moradores de

determinadas comunidades usarem camisas da cor vermelha, por ser símbolo de facção criminosa rival.

A responsabilidade pela situação humana foi privatizada e os instrumentos e métodos de

responsabilidade foram desregulamentados. Uma rede de categorias abrangente e universal desintegrou-se. O

auto-engrandecimento está tomando o lugar do aperfeiçoamento socialmente patrocinado e a auto-afirmação

ocupa o lugar de responsabilidade coletiva pela exclusão de classe. Agora, são a sagacidade e a força muscular

individual que devem ser estirados no esforço diário pela sobrevivência 202.

________________________________________ 202

BAUMAN, op. cit., p. 54.

110

O aumento da corrupção policial e o crescimento da criminalidade são faces distintas da mesma moeda

no cenário cultural pós-moderno, que representa sem dúvida a ascensão de uma cultura que "está muito menos

propensa a aceitar imposições de autoridades, tradições ou comunidades, se estes ideais forem frustrados"203.

Veículos de comunicação, empresários e alguns sociólogos tentam explicar o "fracasso" no controle da

criminalidade, principalmente na questão do tráfico de drogas, a partir da corrupção policial e da

impunidade.Tal concepção faz esconder que o descontrole (fracasso) do Estado em relação à corrupção policial

e ao comércio de substâncias ilícitas tem raiz na mesma origem: o fim da autoridade. Esse fato, muito ao

contrário do que se poderia esperar, acaba por engendrar um aumento do encarceramento das classes perigosas,

sendo a impunidade uma retórica desprovida de sentido para esta parcela da população, como veremos adiante.

Através de disposições previdenciárias vistas como certidões de nascimento do cidadão e não como

caridade para com os menos capazes, inválidos ou indolentes, essa imagem irradiava uma confiança

reconfortante no seguro coletivo contra o infortúnio individual. A sociedade era imaginada como um pai

poderoso, rigoroso e às vezes implacável, mas sempre pai, alguém a quem sempre se podia recorrer em busca

de ajuda em caso de problemas. Tendo desde então dispensado, ou tendo sido roubada de muitos dos eficientes

instrumentos de ação que manejava nos tempos da soberania inconteste do Estado- nação, a "sociedade" perdeu

muito de sua aparência "paternal". Pode algumas vezes ferir, e dolorosamente; mas no que diz respeito ao

suprimento de bens necessários para uma vida decente e para enfrentar as adversidades do destino, ela parece

perturbadoramente de mãos vazias. Por isso as esperanças de

______________________________________

203 YOUNG, op. cit., p. 30.

111

salvação que podem vir das torres de controle (adequadamente tripuladas) da "sociedade" definham e se esvaem

204.

Órfãos, passamos a viver num mundo de incertezas e medo, cujas dimensões, segundo o sociólogo

Zigmunt Bauman, podem ser observadas a partir de alguns fatores responsáveis, entre eles: a nova desordem do

mundo, que cria um quadro de imprevisibilidade econômica, política e social; a desregulamentação universal,

expressa "na desatada liberdade concedida ao capital e às finanças às custas de outras liberdades"205

; o

enfraquecimento das outras redes de segurança, tais como a família e a vizinhança; a fluidez dos valores, onde

"a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que qualquer arte de memorizar, em que

esquecer, mais do que aprender, é a condição de contínua adaptação 206.

A disseminação do medo, com as conseqüentes políticas criminais da exclusão dos novos "estranhos",

passa a ser estabelecida através da busca pela segurança perdida, agora definida sob novos parâmetros de

"pureza". Regidos pelos princípios da desregulamentação do mercado econômico e da flexibilização do

trabalho, mergulhados no individualismo temperado pelas incertezas de valores fugazes, vivemos o medo

global, na visão poética de Eduardo Galeano:

Os que trabalham têm medo de perder o trabalho / Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar

trabalho / Quem não tem medo da fome, tem medo da comida / Os motoristas têm medo de caminhar e os

pedestres têm medo de ser atropelados / A democracia tem medo de lembrar e a linguagem tem medo de dizer /

Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo de falta de armas, as armas têm medo da falta de

_______________________________________ 204

BAUMAN, Zigmunt. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p.101. 205

Idem, p. 30. 20

' Idem, p. 36.

112

guerras / É o tempo do medo / Medo da mulher da violência do homem e medo do homem da mulher sem medo

/ Medo dos ladrões, medo da polícia / Medo da porta sem fechaduras, do tempo sem relógio, da criança sem

televisão, medo da noite sem comprimidos para dormir e medo do dia sem Comprimidos para despertar / Medo

da multidão, medo da solidão, medo do que foi e do que pode ser, medo de morrer, medo de viver 207.

Eis a grande distinção que se opera entre a sociedade moderna e a pós-modernidade.A idéia de

civilização, criação exclusiva da modernidade, traz consigo a noção de ordem. Ao tratar do mal- estar da

civilização, Freud correlaciona a idéia de civilização a uma ordem imposta à humanidade, naturalmente

desordenada. A sociedade moderna resolveu limitar a liberdade em nome da segurança: "Freud, ao utilizar os

termos compulsão, regulação, renúncia, estaria se referindo ao mal-estar decorrente do 'excesso de ordem” 208 .

Associada à idéia de coisas certas nos lugares certos, encontra-se o ideal de pureza e higiene que se opõe à

sujeira e à desordem 209 a sociedade pós-moderna, ou da modernidade recente, abre mão da segurança em troca

da liberdade consumista.A "ordem", no entanto, se mantém como meta inatingível, identificando fronteiras para

os novos "estranhos", ou seja, aqueles que ameaçam o novo modelo social.

Num mercado totalmente organizado em torno da procura do consumidor e numa sociedade

interessada em manter essa procura permanentemente insatisfeita, os consumidores falhos são os novos

impuros, já que o novo critério de pureza, ou de reordenamento, é a aptidão e a capacidade de consumo.

____________________________ 207

GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. Porto Alegre: LP&M, 2001, p. 83. 208

BATISTA,Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 78. 209

Idem, p. 78.

113

Esta nova ordem traz estratégias de privatização e desregulamentação junto "à preservação da pureza

da vida consumista", produzindo exigências políticas contraditórias porém complementares: por um lado, a

exigência de incremento das liberdades do consumidor e, por outro, o discurso de "lei e ordem" para as vítimas

do processo de privatização e desregulamentação, os consumidores falhos. "O ideal de pureza da pós-

modernidade passa pela criminalização dos problemas sociais"210.

A pobreza, segundo Bauman, deixa de ser um exército de reserva de mão-de-obra, tornando-se uma

pobreza sem destino,"precisando ser isolada, neutralizada e destituída de poder"211

. Estes resultados, ainda na

lição do criminólogo polonês, seriam alcançados através da "estratégia bifurcada da incriminação da pobreza e

da brutalização dos pobres", conforme observou Vera Malaguti Batista.

O aumento do encarceramento constitui uma realidade mundial a partir do incremento da sociedade

pós-moderna. Para se ter uma idéia, nos EUA a população carcerária pulou de 380 mil presos, em 1975, para 2

milhões, no final de 1998. "Se fosse uma cidade, o sistema carcerário norte-americano seria hoje a quarta maior

metrópole do país"212

. O alvo seleto do sistema penal norte-americano é observado pelo sociólogo

LdicWacquant, ao constatar que, nos presídios dos EUA, seis em cada dez presos são negros ou latinos; menos

da metade tem emprego em tempo integral no momento de ser posta atrás das grades e dois terços provinham de

famílias dispondo de uma renda inferior à metade do "limite de pobreza" (norte-americano) 213.

De NovaYork, a doutrina da "tolerância zero", instrumento de legitimação da gestão policial e

judiciária da pobreza que in-

______________________________________

210 Idem, p. 79.

211 p. 84. 212

WACQUANT, Ldic. As priséres da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 81.

213 p. 83.

114

comoda - a que se vê, a que causa incidentes e desordens no espaço público, alimentando, por conseguinte,

uma difusa sensação de insegurança, ou simplesmente de incômodo tenaz e de inconveniência - propagou-se

através do globo a uma velocidade alucinante 214.

O alarme provocado pelos discursos do aumento da criminalidade gera aquilo que o sociólogo norte-

americano Barry Glassner denominou "cultura do medo"215

.A política deixa de ser um instrumento para gerir as

diferenças, provocando uma ansiedade difusa e dispersa deslocada para a questão da segurança: "A frag-

mentação e a dispersão do desamparo fazem com que o espaço público seja construído sobre o discurso do

medo"216.

No Brasil, a "guerra contra as drogas" é o carro-chefe da criminalização da pobreza, através dos

discursos de lei e ordem disseminados pelo pânico. Bala perdida, roubo de veículos, queima de ônibus e até o

comércio de produtos por camelõs217

são diferentes práticas ilícitas imputadas aos "traficantes", que passam a

constituir "uma categoria fantasmática, uma categoria policial que migrou para a academia, para o jornalismo,

para a psicologia e que não tem cara, não é mais humana. É uma coisa do mal" 218.

Do total de processos que chegaram à Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Rio de

Janeiro, de janeiro de 2003 a junho de 2004, o tráfico de drogas ocupa 37% dos processos entre os homens,

perdendo apenas para o roubo, com 44%; ao passo que

______________________________

214 p. 30.

215 Barry. Cultura do medo. São Paulo: Francis, 2003. 216

BATISTA, op. cit., p. 97. 217

Em reportagem do jornal O Globo, no dia 30/11/2002, página 17, o prefeito César Maia acusou os camelôs

de estarem recebendo o apoio do tráfico de drogas: "Segundo ele, vendedores de mercadorias roubadas estariam

sendo financiados por traficantes, que descobriram nesse ramo um negócio mais lucrativo do que as drogas".

_______________________________ 218

Entrevista com Nilo Batista e Vera Malaguti Batista. In: Caros Amigos. Agosto de 2003.

115

entre as mulheres, 60% das condenações são por tráfico, seguido de longe pelo roubo (23%) e furto (13%)219.

Em sua dissertação de mestrado, intitulada A criminalização por drogas numa perspectiva de gênero,

Patrícia Maria Dusek observou através de pesquisa de campo, com base no relato de mulheres condenadas no

tráfico de drogas presas no Complexo Penitenciário Frei Caneca, que 100% das prisões apontam para a

participação secundária das mesmas no tráfico de entorpecentes.Vale salientar, que algumas eram

transportadoras, outras embaladoras ou vendedoras, mas nenhuma participava de qualquer atividade que

necessitasse de violência.

Em uma das suas entrevistas a pesquisadora pôde ouvir da presa D.D., 37 anos, moradora do Morro do

Fubá:"Não sou bandida. Bandidas são aquelas mulheres que ficam perto dos traficantes com arma na cintura

fazendo presença. Gostava de ficar de longe. Se a senhora passasse nem dizia que eu estava no movimento". De

acordo com a entrevistada, a mesma recebia 130 "sacolés" ao valor de R$10,00 cada - "Ficava com dez, dez era

do gerente, dez era do responsável e cem era da casa", contabilizou a presidiária.

A concentração da repressão penal na última ponta do comércio de substâncias entorpecentes, ou seja,

naquele setor mais débil, incapaz de reagir aos comandos de prisão, é uma realidade. Os veículos de

comunicação e a própria polícia, ao difundirem a cultura do medo, têm por hábito relacionar o aumento das

prisões e da participação de alguns estratos sociais no tráfico de drogas ao aumento da violência. Tal correlação

não se faz presente.

Hoje, a grande maioria dos presos no tráfico de drogas é formada pelos chamados "aviões", "esticas",

"mulas", verdadeiros

__________________________________________ 219

Fonte: "Diretoria Geral de Tecnologia da Informação do Tribunal de Justiça". In: jornal O Globo de

08/08/2004, p. 22.

116

"sacoleiros" das drogas, detidos com uma "carga" de substância proibida, através da qual visam obter lucros

insignificantes em relação à totalidade do negócio. Estes "acionistas do nada", na expressão de Nils Christie, são

presos, na sua imensa maioria, sem portar sequer um revólver.

Dos 1.708 flagrantes, lavrados nas delegacias da capital do Rio de Janeiro, no ano de 2000, apenas 95

armas foram apreendidas. No ano de 2001, as estatísticas apontam para a apreensão de 145 armas nos 1.810

flagrantes de tráfico. Já no ano de 2002 foram 89 armas apreendidas num total de 1.625 flagrantes'''. Menos de

10 % dos presos no tráfico de entorpecentes portam arma de fogo, o que nos leva a concluir que a chamada

"guerra contra as drogas" tem como alvo o setor mais fraco e inofensivo do comércio ilícito de drogas.

Na prática, a guerra contra as drogas abriu caminho para a guerra contra as pessoas tidas como menos

úteis e potencialmente mais perigosas da população, aquelas que Spitzer chama de lixo social, mas que na

verdade são vistas como mais perigosas que o lixo. Elas mostram que nem tudo está como devia no tecido

social, e ao mesmo tempo são uma fonte potencial de perturbação. Na terminologia de Spitzer, elas se tornam

ao mesmo tempo lixo e dinamite221.

Vera Malaguti Batista, ao estudar o medo na cidade do Rio de Janeiro, observa que "a guerra contra as

drogas tem sido um recrutador eficaz de clientela para a letalidade do nosso sistema penal":

Os novos inimigos da ordem pública (ontem terroristas, hoje traficantes) são submetidos diuturnamente

ao espetáculo penal, às visões de terror dos motins penitenciários e dos corredores da morte. Não é coincidência

que a política criminal de

_________________________________________ 220

Fonte: ASPLAN (Polícia Civil do Rio de janeiro).

221 CHRISTIE, op. cit., p. 65.

117

drogas hegemônica no planeta se dirija aos pobres globais indiscriminadamente: sejam eles jovens favelados do

Rio, camponeses da Colômbia ou imigrantes indesejáveis no hemisfério norte 222.

O "estranho" da sociedade de consumo, de acordo com Zygmunt Bauman, passa a ser visto como o

"viscoso", referido por Jean-Paul Sartre em sua obra intitulada Being and Nothingness - "o viscoso é como um

líquido visto num pesadelo, em que todas as suas propriedades são animadas por uma espécie de vida, e volta-se

contra mim"223.

4.2. CI TRAFICANTE: UM SER DO MAL. - O IMAGINÁRIO SOCIAL

Assim, surge o "traficante" no imaginário da sociedade. Um homem ou mulher sem nenhum limite

moral, que ganha a vida a partir de lucros imensuráveis às custas da desgraça alheia, que age de forma violenta

e bárbara, ou seja, uma espécie de incivilizado, aos quais a prisão é destinada como metáfora da jaula. O

"traficante" é sempre um ser perigoso e seu encarceramento se justifica para além da realização do direito, como

uma verdadeira necessidade face à sua natureza de "fera". O discurso do medo ganha retoques inquisitoriais

com a "demonização" do traficante, fato esse que encontra na mass mídia a força do verdadeiro "empresário

moral”224.

"Eles não têm Deus no coração" - a frase da menina Ana Luiza do Carmo de Souza, 9 anos, foi

estampada na capa do jornal O Globo, na edição de 30/05/2002.A reportagem refletia, nas palavras de uma

criança, uma explicação para uma troca de tiros entre

________________________________

222 BATISTA, op. cit., p. 84. 223

Idem. 224

O termo "empresário moral" é utilizado por Howard Becker para definir os impositores das normas sociais

que se utilizam de verdadeiras cruzadas para atingirem seus propósitos.

118

a polícia e "traficantes" do Morro da Mineira, no Catumbi.A "guerra que desce o morro", conforme a

reportagem, resultou numa bala perdida que acabou por ferir Ana Luiza no ombro, quando a mesma se

encontrava refugiada na capela da escola em que estudava. O trabalho jornalístico reflete, de forma indiciária,

aquilo que o professor Nilo Batista denominou "guerra santa contra as drogas", em que se constrói a figura do

"traficante herege", combinando elementos morais e religiosos.

O discurso moral é agora restabelecido na perspectiva da teoria da diferenciação, levando o papa Bento

XVI, em recente visita ao Brasil, mandar um recado aos traficantes: "Deus vai-lhes exigir satisfação", conforme

divulgou o jornal O Globo de 13/05/2007. A reportagem fazia referência ao discurso do papa para jovens de-

pendentes químicos em recuperação numa fazenda do interior de São Paulo, no qual afirmou: "aquele que vende

drogas espezinha a dignidade humana".

Associando a imagem do "traficante" à de um ser violento e cruel, ao contrário da real dimensão

daqueles que são selecionados para ingressar no sistema penal pela prática do delito de tráfico, o discurso moral

na perspectiva da diferenciação (traficante X usuário) passa a exercer um papel relevante no sistema penal.

Enquanto a imensa maioria de traficantes desarmados e não violentos são encarcerados, os veículos de

comunicação justificam as ações do sistema penal através do chamado "combate à violência". Cria-se assim

uma verdadeira presunção de violência, sem previsão legal, para aqueles autuados no tráfico de drogas. Não é

por menos que o entendimento jurisprudencial, a prevalecer no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, era o da

inadmissibilidade da aplicação de penas alternativas para os condenados a menos de quatro anos no tráfico de

drogas. Um dos argumentos utilizados seria o de que a "culpabilidade" do agente não indicaria a substituição da

pena privativa de liberdade, como se todos aqueles que respondem pelo delito de "tráfico de entorpecentes"

fizessem parte de uma única categoria "herética" e violenta por "natureza". Recepcionando o clamor

público/midiático a atual lei 11.343/06 aumentou a pena mínima

119

para o delito de tráfico (art. 33) para 5 anos, inviabilizando em definitivo a conversão da pena privativa em

penas alternativas.

Uma especial vinculação entre a mídia e o sistema penal constitui, por si mesma, importante

característica dos sistemas penais do capitalismo tardio. Tal vinculação, mareada por militante legitimação do

(ou, para usar um termo da moda, "parceria" com o) sistema penal - "parceria" na qual as fórmulas bisonhas do

editorial ou do espaço cedido aos "especialistas" concorde são menos importantes do que as mensagens

implícitas, que transitam da publicidade às matérias esportivas - tal vinculação levou Zaffaroni a incluir, em

seu rol de agências do sistema penal, as "agências de comunicação social", e os exemplos que ministrou ("rádio,

televisão e jornais") deixam claro que não se referia aos serviços de relações públicas de tribunais ou

corporações po1iciais225.

O homicídio que vitimou o repórter Tim Lopes fez surgir, no ano de 2002, uma série de reportagens

vinculando o tráfico de drogas à desestabilização do Estado democrático."Narcoditadura"; "Estado paralelo";

"República do tráfico" são alguns dos termos usados como referência ao comércio de drogas ilícitas nas favelas

do Rio. A ameaça de uma "narcofederação"226

, foi assim descrita em editorial do jornal O Globo de 26/06/02:

Pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (Nesa), da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e publicada pelo Globo, chegou a uma conclusão alarmante: um entre cada

quatro jovens favelados cariocas, na faixa entre 10 e 19 anos de idade, tem alguma ligação com o tráfico.

_____________________________________ 225

BATISTA, Nilo. "Mídia e sistema penal no capitalismo tardio". In: Discursos Sediciosos, n° 12. Rio de

Janeiro: Revan, 2002, p. 271. 226

Termo utilizado no editorial "Risco Brasil", na coluna Opinião do Jornal O Globo de 26/06/2002.

120

Quer dizer, 25% dos jovens favelados da cidade já trabalham para o crime organizado. Como há 1

milhão de favelados no Rio, conclui-se que está em formação um exército de marginais.

A idéia da formação de um "exército de marginais" através do comércio de drogas ilícitas é tão

fantasiosa como a existência de armas químicas no Iraque. Pode até servir para justificar uma guerra, mas não

se comprova através de dados reais. A imensa maioria das pessoas envolvidas no tráfico de drogas ilícitas

ostenta uma realidade distinta de uma organização paramilitar voltada para a destruição do Estado e das

instituições democráticas, conforme propõem as campanhas deflagradas pelos veículos de comunicação.

"As forças armadas do tráfico" foi o título da reportagem da edição de 03/02/2002 do jornal O Globo,

onde é relatado o processo de militarização das favelas do Rio: "Em toda a cidade, pelo menos 15 ex-militares

treinam bandidos, num total de 265 jovens, o equivalente à metade de um batalhão do Leblon", comparou o

repórter. Se for verdade, conforme publicou o editorial do mesmo jornal, que 250 mil pessoas (25% de 1 milhão

de moradores da favela) estariam envolvidas com o "narcotráfico", 265 jovens representariam uma proporção

insignificante, de pouco mais de 0,1%, a receber treinamento militar.

Podemos, portanto, observar que a mídia organiza o mundo dando a este um sentido, aquilo a que a

pesquisadora Sylvia Moretzsohn chamou de "recriação do caos":

Jornais, já se disse, são uma forma de mapear o mundo. Um mapeamento muito particular, porém:

trabalho ativo de produção de sentido, resultante da interação dos elementos verbais e não-verbais no espaço da

página e nas edições de rádio e TV. Como dizTodd Gitlin,"os enquadramentos dos media, que em grande parte

são tácitos e não admitidos, organizam o mundo tanto para os jornalistas que o descrevem como, num grau

muito importante, para nós que confiamos nas suas descrições. Os enquadramentos de media são padrões

persistentes

121

de cognição, de interpretação e de apresentação, de seleção, de ênfase e de exclusão, através dos quais os

manipuladores de símbolos organizam habitualmente o discurso, seja ele visual ou verbal"227.

A relação entre o tráfico de drogas e violência é um sentido construído pelos media, produzindo a idéia

de que todas as pessoas envolvidas no comércio de drogas ilícitas são "bárbaros" e insuscetíveis de recuperação,

sendo o recrudescimento penal o único caminho possível para o Estado na questão das drogas.Vejamos alguns

editoriais recentes do jornal O Globo ao tratar do assunto:

A violência é uma praga nacional, e, como se sabe, tem como principal combustível o tráfico de

drogas. Pela sua topografia e distribuição espacial, São Paulo, com exceções como o bairro do Morumbi, não

tem grandes favelas às portas das classes média e alta. Mas estas não deixam de padecer dos efeitos do tráfico;

são elas alvo preferencial de seqüestros-relâmpago, assaltos, furtos e roubos das mais diversas

modalidades.Tudo ou quase tudo com a finalidade de levantar fundos para, de alguma forma, financiar o

comércio de drogas. O exemplo de São Paulo se estende para toda cidade brasileira de algum porte. (O Globo,

editorial "Projeto nacional", em 14/04/04)

É com o passar do tempo que o jovem que entrou para o crime organizado, por não encontrar outra

opção, pode acabar se tornando um criminoso empedernido e irrecuperável - se tiver sobrevivido à guerra entre

quadrilhas e perseguição policial. (O Globo, coluna Nossa Opinião, tema em discussão: Menores no tráfico, em

30/12/02)

Entende-se o princípio que lastreia a legislação penal brasileira, pelo qual o criminoso é um cidadão a

quem deve ser dada a chance de recuperação. Muitos juristas chegam a defender, com

___________________________ 227

MORETZSOHN,Sylvia."A ética jornalística no mundo ao avesso". In: Discursos Sediciosos ngl

9 e 10. Rio

de Janeiro: Freitas Bastos, 2000, p. 318.

122

argumentos sólidos, que mais do que o peso das penas é importante fazer o condenado cumprir a punição,

mesmo que leve. O problema é que essa legislação e o embasamento filosófico que a lastreia são herdados de

um país que não existe mais, em que crimes violentos costumavam ser passionais; um país sem tráfico

organizado de drogas e armas, com ramificações internas e externas Assim como está evidente que sem a

participação efetiva da União será impossível conter o crime organizado, é também claro que o arcabouço legal

precisa ser reciclado para enfrentar um outro tipo de inimigo - mais profissional, bem mais perigoso. NÃO É

NOVIDADE que o país enfrenta grave crise de segurança pública, na qual o Rio, São Paulo e outras regiões

metropolitanas estão no epicentro.Também é sabido que a principal mola propulsora dessa indústria do crime é

o tráfico de drogas, uma praga mundial que, por uma série de contingências geográficas e sociais, transformou o

Brasil em um mercado consumidor e em escalada estratégica nas rotas internacionais de distribuição. E já faz

algum tempo, o comércio de drogas converteu-se no vértice da maioria dos crimes praticados no país; de

alguma maneira ele se relaciona com grande parte dos delitos do cotidiano. (O Globo, editorial "Várias frentes",

em 18/03/03.) Agora, a bancada do governo reluta em concordar com o projeto que prevê o endurecimento do

regime carcerário para presos perigosos.Alega-se que os direitos humanos podem ser violentados. Esquece

quem pensa assim que os direitos humanos de toda a sociedade estão sendo violados pela ação de quadrilhas

comandadas de dentro das prisões de segurança zero pelos chefes do tráfico de drogas. Está certo o ministro da

Justiça quando diz que está na cadeia muita gente que não deveria estar, e também muitos que deveriam estar

num regime mais duro. Este regime terá de ser implantado nos presídios federais, que deverão ser à prova de

fugas e de comunicações indevidas com o exterior. Até hoje, com exceção de Presidente Bernardes, nenhum

estabelecimento estadual conseguiu este nível de eficiência. E os federais não o atingirão se a lei não permitir a

imposição de normas suficientemente severas

123

para bandidos em relação aos quais parece brincadeira de mau gosto falar em ressocializaçâo. Como disse esta

semana o presidente da Associação Paulista do Ministério Público, José Carlos Consenzo, o Brasil tem "leis

para bandidos suíços". Hoje o sistema penitenciário dos estados não ressocializa ninguém e não protege os

cidadãos honestos de ninguém. É o que precisa ser mudado, com novas prisões e novas leis. (O Globo,

editorial"A nova prisão", em 28/03/03.)

Assim, se "como se sabe" a violência urbana tem como principal combustível o tráfico de drogas,

sendo o traficante um jovem criminoso "empedernido e irrecuperável", para o qual parece "brincadeira de mau

gosto falar de ressocialização", a única saída para reorganizar o caos passa a ser "novas prisões e novas leis".

Convence-se assim a audiência e o próprio interlocutor de que poderemos diminuir significativamente a

violência urbana enterrando todo o mal-estar decorrente da nossa liberdade consumista através do

encarceramento dos "traficantes", que passam a ocupar o espaço que outrora fora destinado a hereges, judeus e

comunistas.

Reorganizar o caos através de discursos punitivos tem sido uma constante nos veículos de

comunicação, que encontram na sociedade da era pós-industrial um caminho natural para o encarceramento dos

pobres.Tais discursos encontram eco em diferentes setores da sociedade, passando pelos partidos políticos, uni-

versidades, igrejas e conversas de bar.

A miséria talvez seja a única característica que identifica os 1.467 presos na cidade do Rio de Janeiro,

pelo tráfico de drogas ilícitas, em 2003.A cifra inclui 120 mulheres e 1.347 homens presos em flagrante no

tráfico de drogas pelas delegacias da capital. Dos 313 adolescentes e crianças infratores e 1.154 adultos, somen-

te duas possuíam curso superior completo e 210 tinham emprego229

. Talvez aí se encontre a verdadeira diferença

entre eles e os "criminosos suíços", conforme propõe o então presidente da Associação Paulista do Ministério

Público.

A atual política de guerra contra as drogas, para além de revelar um verdadeiro fracasso naquilo que se

propõe, oculta sua real função que cumpre com magnitude: o controle social das classes perigosas.

________________________________ 229

Fontes da ASPLAN da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

125

Cada vez mais ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de predisposições

ou intenções criminosas - abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe

de fazer jus a cuidado e assistência merecem ódio e condenação - como a própria encarnação do pecado228

_____________________________________ 228

BAUMAN, op. cit., p. 59.

124

5. CONCLUSÃO

LIMITANDO A VIOLÊNCIA SELETIVA NA

CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS

Responder à deslegitimação do sistema penal significa encontrar uma resposta que contribua para

diminuir a violência atual, quebrando sua curva ascendente. (Zaffaroni)

A

seletividade punitiva, que se expressa através dos processos de criminalização primária e secundária -

quando o Estado escolhe politicamente quais as condutas consideradas como crimes e quais as pessoas que irão

responder por essas condutas - revela a operacionalidade real do sistema penal. A observação destes dados reais

abriu caminho para um conjunto de críticas e teorias voltadas para a reforma e mesmo a eliminação

(abolicionismo) do direito penal, visto agora como um instrumento de legitimação de desigualdades sociais e

não mais como um sistema necessário à tutela de condições essenciais da vida de toda a sociedade.

Esse "impulso desestruturador" gerou algumas novas proposições expostas por Alessandro Baratta ao

concluir que o direito penal "é o direito desigual por excelência":

a) o direito penal não defende a todos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade

desigual e de modo fragmentário; b) a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é

distribuído de modo desigual entre os indivíduos; c) o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de

criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido

de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade230.

_____________________________________ 230

BARATTA, op. cit., p. 162

127

A programação discursiva do direito penal, que se expressa através do princípio da igualdade, é

problematizada a partir da constatação de que a igualdade na aplicação da lei penal somente ocorre formal-

mente, sendo a regra a desigualdade substancial no direito penal.

Ocorre que o poder punitivo não se realiza somente através do sistema legal. Na verdade, para se punir

alguém é suficiente a utilização de força, seja ela física ou armada.A imposição de penas pode ocorrer, portanto,

à margem do sistema legal, como no caso da pena de morte, pena ilícita que no âmbito dos países periféricos

ganha contornos de genocídio.Também à margem da legalidade, o sistema penal apresenta um poder

configurador positivo, que restringe direitos e garantias individuais sob o "manto" do exercício do poder de

polícia.

Estando o poder punitivo disseminado através de práticas legais e ilegais seletivas, o direito penal

ressurge neste momento,"em meio à tormenta punitiva da revolução tecnológica", para "reafirmar seu caráter de

saber redutor e limitador do poder punitivo" . É nesse contexto que o saber jurídico-penal pode se reconstruir,

baseando-se numa "teoria agnóstica ou negativa do poder punitivo", conforme nos propõe Zaffaroni. Para o

mestre argentino, a pena é como a guerra, imposição da força do mais forte em relação ao mais fraco, sendo que

ambas não se prestam a nenhuma função específica, revelando tão somente o exercício do poder de punir O

direito penal teria por missão reduzir os efeitos da pena, atuando da mesma forma que a Cruz Vermelha

Internacional quando se volta para a redução dos danos na guerra .

Esse saber jurídico-penal, redutor do poder punitivo, ainda conforme Zaffaroni,"deve absorver os

elementos e dados fornecidos pela sociologia e pela criminologia, especialmente acerca da operatividade real

dos sistemas penais", uma vez que "ninguém pode controlar aquilo que de fato ignora". Esse direito penal de

contenção punitiva tem como aliado o saber criminológico, que se traduz em complemento indispensável.

A atuação do poder punitivo na questão das drogas ilícitas revela historicamente o controle social sobre

as classes perigosas através da associação entre determinadas drogas e grupos sociais.

128 Chineses e ópio; irlandeses e álcool; mexicanos e maconha; colombianos e cocaína; chegamos,

com o fenômeno da globalização, à associação das drogas aos miseráveis, sejam eles pequenos produtores

rurais de Pernambuco ou atacadistas das áreas pobres das grandes capitais do país. Falar em drogas ilícitas

numa cidade como o Rio de Janeiro é associá-las às favelas.

O sistema penal, ao tratar das drogas, legitima o controle social sobre as populações pobres, hoje vistas

como "inimigas", dada a sua exclusão do mercado consumidor. Na modernidade recente, ser pobre é sinônimo

de ser "perigoso" e "criminoso". Com isso, o poder configurador positivo do sistema penal se efetiva através do

controle social exercido pela polícia sobre os guetos urbanos, seja restringindo o direito de reunião, locomoção,

lazer ou o da inviolabilidade domiciliar, sob a chancela discursiva do direito penal na "guerra contra as drogas".

A questão das drogas revela ainda, de forma explícita, duas políticas criminais distintas na era do

capitalismo tardio. De um lado consumidores de drogas e mercadorias, do outro os excluídos do mercado,

aqueles que só podem acessar o consumo através das atividades ilegais, os "consumidores falhos", como

observa Zigmunt Bauman. Para os primeiros, penas alternativas e institutos despenalizadores, já para os

excluídos da era do consumo, penas elevadas e restrição das liberdades individuais. Nunca a "ideologia da

diferenciação", que separa usuários de traficantes, esteve tão bem definida, oferecendo aos consumidores

tratamento médico (ainda que compulsivo) e, aos traficantes, longas privações de liberdade ou execuções

sumárias.

Ao mesmo tempo, o negócio ilícito das drogas concentra o capital junto às atividades legais (mercado

financeiro; empresas de lavagem de dinheiro etc.), ao passo que a repressão estatal se concentra na parte mais

débil do mercado ilícito, ou seja, naquelas pessoas que não podem oferecer resistência aos comandos de prisão.

Assim, a justiça penal, consoante Foucault, não se destina a punir todas as práticas ilegais, operando tão

somente um "controle diferencial das ilegalidades".Tal fenômeno não é uma característica conjuntural, mas

estrutural do exercício do poder em todos os sistemas penais.

129

A seletividade punitiva, em tempos de ilegalidades de mercado, acaba por caracterizar uma política

criminal intervencionista no domínio econômico que, segundo Zaffaroni, se traduz num raro protecionismo

através do crescimento desmensurado da renda do proibido, da concentração dessa renda para aqueles que

detêm a inversão dos negócios ilegais em legais, excluindo do mercado o empresariado mais vulnerável pela

sua debilidade.

Este "empresário falho" no negócio ilícito das drogas, designado por Nils Christie como "acionista do

nada", é selecionado pelo sistema penal para ostentar uma etiqueta:"traficante".Tal atributo depreciativo revela

"soldados","aviões","mulas" e "esticas" como seres estigmatizados, diferentes das outras pessoas e até de outros

criminosos (como os "suíços", por exemplo). O atual modelo bélico de repressão às substâncias psicoativas

proibidas cumpre assim uma função: o encarceramento das populações excluídas do mercado consumidor.

Tal processo é desencadeado pelas agências executivas do sistema penal, onde se inclui a polícia, o

Ministério Público, o Poder Judiciário, o sistema penitenciário, e mesmo os veículos de comunicação que, além

de reforçarem os estereótipos criminalizantes, chegam à sofisticação de exercerem atividade de persecução

penal, como no programa Linha Direta, da Rede Globo de Televisão, apresentando-se como "instância de

serviço público que tende a corrigir as insuficiências do sistema penal"

A criminalização da pobreza é um fenômeno mundial que no Rio de Janeiro ganha destaque através da

"guerra contra as drogas". Os altos índices de encarceramento revelam uma decisão política do Estado, que

trocou a responsabilidade coletiva pela exclusão de classe pela privatização da segurança, sob o signo do medo.

A crescente magnitude do comportamento classificado como criminoso, antes de ser um obstáculo no caminho

para a sociedade consumista, é seu natural acompanhamento e pré-requisito, como informa Bauman:

É assim, reconhecidamente, devido a várias razões, mas eu proponho que a principal razão, dentre elas,

é o fato de que os "excluídos do jogo" são exatamente a encarnação dos "demôni-

130

os interiores" peculiares à vida do consumidor. Seu isolamento em guetos e sua incriminação, a severidade dos

padecimentos que lhes são aplicados, a crueldade do destino que lhes é imposto, são - metaforicamente falando

- todas as maneiras de exorcizar tais demônios interiores e queimá-los em efigie. As margens incriminadas

servem de esgotos para onde os eflúvios inevitáveis, mas excessivos e venenosos, da sedução consumista são

canalizados, de modo que as pessoas que conseguem permanecer no jogo do consumismo não se preocupem

com o estado da própria saúde. Se, contudo, esse for, como sugiro ser, o estimulo primordial da atual

exuberância do que o grande criminologista norueguês NI Christie denominou "industria da prisão", então a

esperança que o processo possa ter a marcha abrandada, para nem se falar em ser suspensa ou invertida, numa

sociedade inteiramente desregulamentada e privatizada, animada e dirigida pelo mercado consumidor, é vaga -

para se dizer o minimo231.

Neste quadro de imensurável crescimento do poder punitivo direcionado seletivamente, com o notório

aumento do encarceramento pelas condutas descritas como tráfico de droga, entrou em vigor a lei 11.343, em

08/10/2006. A atual legislação de drogas reforça o discurso médico-jurídico para diferenciar o usuário e o

traficante ao determinar "a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido, atenção

e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e a seu

tráfico ilícito, visando a garantir a estabilidade e o bem-estar social" (art. 42, IX). Em suma, para os usuários

prevenção, para os traficantes mais repressão. Aplica-se, assim, aos usuários um modelo de política criminal de

descriminalização, ao passo que às condutas identificadas como tráfico de drogas, dentro da estrutura seletiva

analisada anteriormente, aplicam-se os programas punitivos.

______________________________________ 231

BAUMAN, op. cit., p57

131

A alteração da atual legislação sobre drogas e a limitação da violência seletiva e física, segundo

critérios jurídicos limitadores do exercício do poder punitivo, são tarefas de programação de um direito penal

limitador e não legitimante, proposto por Zaffaroni. Infelizmente o projeto de lei n27.134 de 2002, substitutivo

aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal, que resultou na lei 11.343/06, não

incorporou as propostas encaminhadas pela criminóloga e jurista Maria Lúcia Karam, que refletiam um

direcionamento para a contenção de danos "em uma conjuntura fechada a transformações mais profundas",

conforme referido na exposição de motivos do seu projeto:

Tendo em conta a inviabilidade política conjuntural de rompimento com o proibicionismo, para a

concretização das propostas descriminalizadoras que constituem a única alternativa efetivamente comprometida

com uma racionalidade voltada para o bem-estar dos indivíduos, cuida a Proposta de caminhar numa linha de

redução de danos, para ao menos afastar o autoritário rigor punitivo, que, presente na legislação em vigor, se

reproduz no Substitutivo232.

Entre as alterações propostas no projeto de Maria Lúcia Karam destacavam-se: 1) Definição

diferenciada de condutas correspondentes às atividades empresariais e laborativas desenvolvidas na produção e

comercialização de drogas qualificadas de ilícitas, correspondendo penas mais elevadas às atividades

empresariais, caracterizadas pelo fim de obter lucro, e penas menores atribuídas às atividades laborativas ainda

podendo ser reduzidas em razão do desemprego e da pobreza; 2) Definição diferenciada de condutas

desvinculadas da atividade econômica, configurada pela entrega de drogas qualificadas de ilícitas a outrem, sem

o fim de obter proveito

__________________________________

232 KARAM, Maria Lúcia. Razões do Projeto de lei 7.134, de 2002 - Substitutivo aprovado na

Câmara dos Deputados e encaminhado ao Senado Federal.

132

econômico; 3) Eliminação do tipo de associação para o tráfico, uma vez que tal conduta já se encontra prevista

no art. 288 do Código Penal, violando os princípios da razoabilidade e da isonomia tal previsão de "associação"

específica para o tráfico.; 4) Previsão de progressão de regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade,

de sua substituição por penas restritivas de direito e suspensão condicional da execução da pena privativa de

liberdade, nos termos disciplinados no Código Penal, com revogação dos dispositivos da lei 8.072/90 aplicáveis

às hipóteses de tráfico.

Se, efetivamente, se quiser inverter essa tendência de crescimento desmensurado do número de pessoas

encarceradas, marginalizadas, excluídas e estigmatizadas como "criminosas", na imensa maioria dos casos de

forma irreversível; se, verdadeiramente se quiser implantar "penas alternativas" que sejam reais substitutivos à

prisão e não mero discurso hipócrita que visa esconder a real função ampliadora da pós-moderna vigilância e da

onipresença de um Estado autoritário, expressado em seu violento poder de punir, é preciso começar a estender

tais "penas alternativas" aos trabalhadores que, privados do emprego formal, que nesta etapa pós-industrial e

globalizada das formações sociais do capitalismo sequer se exige mais que seja dignamente remunerado, só

encontram vagas nas atividades laborativas oferecidas pelo mercado produtor e distribuidor de drogas

qualificadas-de ilícitas233.

A heresia está lançada...

___________________

233 KAR.ANI. Idem.

133

BIBLIOGRAFIA

ARBEX JR.Jose e TO GNOLLI, Cláudio Júlio. O século do crime. São Paulo: Boitempo Editorial,

1996.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,

1999.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1999

"Mídia e sistema penal no capitalismo tardio". In: Dis-

cursos Sediciosos, n2 12. Rio de Janeiro: Revan, 2002

"Política criminal e derramamento de sangue". In: Dis-

cursos Sediciosos, n 5/6. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Rio de Janeiro:

Freitas Bastos, 2000.

"A violência do estado e os aparelhos policiais". In: Dis-

cursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997. BATISTA,Vera Malaguti. Difíceis ganhos

fáceis - Drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

O medo na cidade do Rio deJaneiro. Rio de Janeiro: Revan,

2003.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1998.

BECKER, Howard. Marginais e desviantes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.

Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar Edito-

res, 1977.

CARVALHO, Salo de. A política criminal das' drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Luam, 1997.

Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli

no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

CASTRO, Lola Anyar de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

CERNICCHIARO, LuizVicente. Dicionário de direito penal. Brasília: Universidade de Brasília, 1974.

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Ofuturo de uma ilusão: o

sonho de uma nova polícia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

COYLE, Diane. Sexo, drogas e economia. São Paulo: Futura, 2003.

DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

"Geopolítica de las drogas". Medellín: In: Revista Análisis,

1998.

FOUCAULT, Michel. A verdade e asformas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC/RJ e Nau Editora, 2001.

Vigiar e punir Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. Porto Alegre: LP &M, 2001.

GOFFMAN, Erving. Estigma - Notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. Rio de Janeiro:

Zahar Editores, 1975.

JESUS, Damásio E. de. Lei antitóxicos anotada. São Paulo: Saraiva, 1997.

KARAM, Maria Lúcia. "A esquerda punitiva". In: Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade,

rf2 1. Rio de Janeiro: Relume - Dumará, 1996.

De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1993.

MORETZSOHN, Sylvia. "A ética jornalística no mundo ao avesso". In: Discursos Sediciosos, n° 9/10.

Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

135

134

PEREIRA DE ANDRADE,Vera Regina. A ilusão da segurança jurídica. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2003.

ROCCO, Rogério. O que é legalização das drogas? São Paulo: Brasiliense, 1996.

RODRIGUES,Thiago. Narcotráfico: uma guerra na guerra. São Paulo: Desativo, 2003.

RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,

1999.

SHEERER., Sebastian. "Estabelecendo controle sobre a cocaína (1910/1920)". In: Drogas: é legal?

Um debate autorizado. Rio de Janeiro: Imago, 1993.

SILVA FRANCO, Alberto. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

TAVARES, Juarez. "Os limites dogmáticos da cooperação penal

internacional". In: Princípios de Cooperação Judicial Penal Internacional do Protocolo do Mercosul.

São Paulo: Revista dos Tribunais,

2000.

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.

"Reforma da polícia: missão impossível". In: Discursos

Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, n2 9/10. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2002.

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. ZAFFARONI, Raúl Eugênio e

PIERANGELL José Henrique.

Manual de Direito Penal - Parte Geral. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1997.

e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. primeiro volu-

me. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2003.

136

"Crime organizado: uma categorizaçáo frustrada" In:

Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, n2 1. Rio de Janei-

ro: Relume-Dumará, 1996. -

Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

137

Coleção Pensamento Criminológico

O Instituto Carioca de Criminologia edita com a Revan os;títulos da coleção Pensamento

Criminológico, que inclui obras acadêmicas e trabalhos de pesquisa em ciências sociais relacionados à

criminologia e já adquiriu grande prestigio nos meios forenses e universitários.

CONHEÇA OS TÍTULOS:

Criminologia crítica e critica do direito penal. Introdução à sociedade do direito penal, de

Alessandro Barata

Difíceis ganhos fáceis. Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro, de Vera Malaguti Batista

Punição e estrutura social, de GeorgRuscbe e Otto Kircbbeimer

Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro. Obediência e submissão, de Gizlene Neder

Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro - 1, de Nilo Batista

Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos, [A onda punitiva], de Loic

Wacquant

A Sociedade Excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente, de

Jock Young

Criminologia e subjetividade no Brasil, de Cristina Rauter A América Latina e sua criminologia,

de Rosa dei Olmo Criminologia da libertação, de Lola Aniyar de Castro

Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI- XIX), de Daria Melossi e

Massimo Pavarini

A miséria governada através do sistema penal, de Alessandro Di Giorgi

Tormenta júris permissione - Tortura e Processo Penal na Península Ibérica (séculos XVI-

XVIII), de Ana Lucia Sabadell

O inimigo no Direito Penal, de E. Raúl Zfaroni

Ao leitor

Se, numa livraria, lhe disserem que um título publicado pela Revan está esgotado, ou que a Revan não

faz consignação, ou lhe derem qualquer justificativa semelhante para não ter à venda um exemplar do título

procurado, por favor, comunique-se conosco.

A Revan sistematicamente reimprime os títulos de seu catálogo, mantendo sempre em estoque todos

eles, e sistematicamente oferece seus livros aos livreiros de todo o país, para venda ou consignação, seja

diretamente, seja por meio de distribuidoras.

Procure-nos, que receberá pronto atendimento, seja por meio de nosso sítio na Internet -

www.revan.com.br - , seja por telefone, correio, reembolso postal ou portador próprio.

Editora Revan

Avenida Paulo de Frontin, 163

Rio de Janeiro - RJ - CEP: 20260-010

Tel.: (21) 2502-7495 / Fax: (21) 2273-6873

Nossos e-maus:

Editorial: [email protected]

Vendas: [email protected]

Divulgação: [email protected]