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AÇÕES AFIRMATIVAS: UMA PROPOSTA DE SUPERAÇÃO DO RACISMO E DAS DESIGUALDADES.
Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva.
1
RESUMO Desde as últimas décadas do século XX, a sociedade brasileira se vê às voltas com um debate crescente sobre desigualdades étnco-raciais e definição de políticas públicas de ação afirmativa. Questões explicitadas, especialmente, a partir da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em setembro de 2001 em Durban, na África do Sul, onde os países signatários do documento final se comprometeram a promover políticas anti-racismo e de correção das desigualdades. Em algumas nações da Ásia, das Américas e na África do Sul, as políticas públicas para inclusão de minorias étnicas e sociais são adotadas ao longo do século XX, a partir suas articulações internas. No Brasil, entretanto, o componente étnico-racial das políticas públicas tem provocado reações diversas em um debate teórico e emocional de equívocos e acusações, fundamentado nas concepções de mestiçagens e democracia racial. Este artigo traz uma contribuição a esse debate, contextualizando as ideologias da mestiçagem e da democracia racial como entraves à implantação de políticas de ações afirmativas para as minorias étnico-raciais no país. Palavras chave. Ação afirmativa, Políticas públicas, Mestiçagem, Democracia racial. AFFIRMATIVE ACTIONS: A PROPOSAL TO EXCEED RACISM AND INEQUALITIES. SUMMARY Since the last decades of the twentieth century, Brazilian society has been faced with a growing debate about ethnic-racial inequalities and the definition of affirmative action public policies. Particularly in the wake of the Third World Conference against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance, held in September 2001 in Durban, South Africa, where the signatory countries of the final document pledged to promote anti- Racism and the correction of inequalities. In some nations of Asia, the Americas, and South Africa, public policies for the inclusion of ethnic and social minorities are adopted throughout the twentieth century from their internal articulations. In Brazil, however, the ethnic-racial component of public policies has provoked diverse reactions in a theoretical and emotional debate of misunderstandings and accusations, based on the conceptions of racial miscegenation and democracy. This article brings a contribution to this debate, contextualizing the ideologies of mestiçagem and racial democracy as obstacles to the implementation of affirmative action policies for ethnic-racial minorities in the country.
1 Departamento de Sociologia e Antropologia e Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Maranhão. Email: [email protected]
Key words. Affirmative action, Public policies, Mestizaje, Racial democracy.
No final do século XIX, os pensadores brasileiros apoiavam-se nos
referenciais teóricos apresentados pelos cientistas ocidentais, isto é, europeus
e americano, para quem a ideia da mestiçagem servia, tanto para “estragar e
degradar a boa raça”, como um meio para reconduzir a espécie a seus traços
originais. Neste sentido, as idéias da degenerescência da mestiçagem,
arquitetadas pela especulação cerebral ocidental repercute com todas suas
contradições no pensamento racial da elite intelectual brasileira..
A elite brasileira vai buscar na Europa, os referenciais explicativos para
justificar a situação racial do país e, ao mesmo tempo, dar sustentação a um
projeto de construção de nação sustentado pelos ideais do branqueamento
genético e cultural, criando a figura do mulato, como uma “raça intermediária”
que serviria para diminuir as tensões raciais no país.
As concepções dominantes no período colonial definiam os não
brancos como não civilizados, suas características fenotípicas expressas nas
diferenças de tipo físico e de cor de pele, foram associadas à idéia de
inferioridade biológica, equacionando com a condição de não humanos, cuja
humanização se daria através de um longo processo “civilizatório” trazido pela
escravidão.
Este processo civilizatório por sua vez, assentado, inicialmente em
concepções religiosas (séculos XVI e XVII) e, posteriormente, em concepções
científicas que preconizavam a existência de raças superiores e inferiores,
forjou, desde o início do século XIX no Brasil, um projeto ideológico de nação
mestiça e cordial, sugerindo a predominância de relações harmoniosas entre
raças e culturas diferentes, que seria convencionalmente definido como
democracia racial (FREYRE, 2003). Entretanto, segundo (SILVÉRIO, 2004, p.
41) A „harmonia racial‟ tinha como pressuposto a manutenção das hierarquias
raciais vigentes no país, onde as matrizes brancas européias eram
consideradas o pólo principal e dominante, o ideal a ser alcançado pela nação
ao menos em termos comportamentais e morais.
Segundo Santos (2005, p. 150) o mestiço passaria a ser o ponto de
equilíbrio da sociedade brasileira e o caráter miscigenado da população é
valorizado, como meio de engrandecimento inigualável. O Brasil seria o solo
propício para uma sociedade mais democrática em termos raciais, visto ser
fundada sobre a mestiçagem.
Se, por um lado, a mitificação da mestiçagem, proporcionou que
algumas barreiras fossem ultrapassadas pelo reconhecimento das
contribuições da cultura africana na formação do povo brasileiro, por outro lado,
sob a égide da democracia racial, inúmeros preconceitos e estereótipos contra
os negros e mestiços, se perpetuaram na cultura brasileira.
Munanga (1999, p. 29) acresce que a mestiçagem, primeiramente, no
contexto da colonização, é vista como uma nova categoria ameaçadora do
sistema maniqueísta branco/negro – mestre/escravo, sendo o mulato (o
mestiço) um elemento perturbador da ordem sociorracial. O autor sustenta que,
na verdade, “originariamente o mulato foi o produto de estupro da mulher
africana pelo português e não o resultado de um casamento tradicionalmente
consagrado.” (MUNANGA, 1999, p. 92).
A partir de 1889, início da fase republicana, até meados do século XX,
a mestiçagem é tida como caminho de salvação para construção da nação
brasileira, em que o mestiço representaria o símbolo nacional tanto de
“harmonia racial” quanto a possibilidade de embranquecimento paulatino da
nação. Segundo Silvério (2004, p. 42)
“a tensão existente entre harmonia racial e embranquecimento é acirrada pela impossibilidade/incapacidade de reconhecer horizontalmente a igualdade entre todos no interior de uma pluralidade de raças e cores tratadas e pensadas hierarquicamente”.
Um projeto deliberado, segundo Abdias do Nascimento (1978; 2002) de
extermínio do negro afro-brasileiro, seja do ponto de vista teórico, com a
adoção de concepções científicas que os definiam como raça inferior, cuja
emancipação somente seria possível, através, da assimilação dos valores
culturais europeus. (Nascimento 2002:113)
“Situado no meio do caminho entre a casa grande e a senzala, o mulato prestou serviços importantes à classe dominante. (...) o erigiram como símbolo da nossa „democracia racial‟. Nele se concentraram as esperanças de conjurar a „ameaça racial‟ representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil”.
Paradoxalmente, entretanto, essas mesmas teorias imputavam aos
mestiços, uma incapacidade de contribuir com o desenvolvimento sociocultural
do país, e, principalmente, de contribuir positivamente com a construção de
uma identidade nacional, pois, devido à sua constituição de raça inferior, não
teriam condições mentais para assimilar os valores culturais, morais e
religiosos da civilização ocidental.
“Como transformá-los em elementos constituintes da nacionalidade e da identidade brasileira quando a estrutura mental herdada do passado, que os considerava apenas como coisa e força animal de trabalho, ainda não mudou? Toda a preocupação da elite, apoiada nas tórias racistas da época, diz respeito às influências negativa que poderia resultar d herança inferior do negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira”.
Uma contribuição fundamental em defesa da mestiçagem como
alicerce da democracia racial brasileira foi apresentada pelas obras de Gilberto
Freyre, Casa Grande e Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), onde o
“Senhor de Apipucos” sugere que no Brasil, a escravidão não teria produzido
efeitos tão danosos como nos Estados Unidos da América do Norte,
estabelecendo relações “mais cordiais” entre os senhores e os seus cativos.
Segundo Freyre, as relações entre brancos e negros no escravismo do
Brasil se deram de forma paternalista, marcadas pela intimidade e
cumplicidade afetiva, fundamento à idéia da democracia racial brasileira. Não
podemos ignorar, entretanto, que tanto as intimidades quanto o paternalismo
não alteraram a estrutura violenta e brutal e nem o lugar ocupado pelos
descendentes de africanos na sociedade escravocrata, pois, se os filhos dos
senhores tinham os negros como iniciadores na vida sexual, amas de leite e
primeiros amigos, nem por isso eles eram iguais, permaneciam limitados pelas
fronteiras das senzalas, enquanto os meninos brancos usufruíam das
liberdades da casa grande.
Movimento Negro e a Contestação à Democracia Racial
Adotado como ideologia oficial após a abolição, a idéia de democracia
racial, serviu durante muito tempo, para explicar as relações de raça entre
brancos e negros no Brasil. Em função delas, os brasileiros eram vistos como
um povo excepcional, cuja principal característica seria a convivência
harmoniosa entre pessoas de origem européia, africana e indígena. A
ideologia da democracia racial ultrapassou, portanto, as fronteiras territoriais
brasileiras resultando na “Missão da UNESCO” na década de 50 do século XX.
(TELLES, 2003, p.59)
Por volta da década de 50, o Brasil havia
adquirido reputação internacional por sua democracia
racial. Por isso, a UNESCO encomendou uma série de
estudos para compreender o segredo da reputada
harmonia racial do Brasil, num mundo marcado pelos
horrores do racismo e do genocídio. Florestan Fernandes,
da Universidade de São Paulo, fora nomeado o principal
pesquisador brasileiro do projeto da UNESCO. Suas
conclusões surpreenderam seus patrocinadores por
constituírem a primeira contestação de peso à imagem de
democracia racial no Brasil, levando a uma primeira
ruptura clara com as idéias de Freyre.
Ainda assim, mito conseguiu manter-se como pensamento hegemônico
até os anos 70, acobertando ou dissimulando as práticas preconceituosas e
racistas que se impuseram aos descendentes de africanos no Brasil. Com o fim
do regime militar e o início da “redemocratização” do estado brasileiro, o
movimento negro ressurge com uma crítica à transposição do uso da
mestiçagem no plano biológico para o plano sociojurídico e político ao
denunciar as discriminações raciais e, como conseqüência, conseguir
incriminar constitucionalmente o componente ideológico e racista daquelas
discriminações, isto é, o racismo. (SILVÉRIO, 2004, p. 43)
As transformações sociais que compuseram o cenário mundial desde
os anos 60, influenciaram no processo de organização do movimento social
negro brasileiro, especialmente, a partir das lutas pelos direitos civis nos EUA e
pela independência dos países africanos sob o domínio português. Nos anos
setenta do século XX, surge no cenário político brasileiro um novo tipo de
militância negra que se aproveitava, entre outras coisas, da abertura de
horizontes num mundo em acelerado processo de globalização, ações que se
refletiriam, também, na produção de pesquisas acadêmicas, dedicadas a
estudar as questões do racismo, do preconceito e das desigualdades raciais,
fundamentadas em estatísticas comensuráveis.
Desde esse período, o movimento negro no Brasil, mesmo
considerando a ampla diversidade de suas organizações, assumiu uma postura
explicita de denúncia contra as práticas racistas e discriminatórias, bem como
de reivindicação dos direitos de cidadania, passando a dialogar
qualitativamente, também, com outras instâncias do movimento social e com
setores diversos da sociedade brasileira.
No plano acadêmico, as questões relacionadas à população negra
ganharam maior visibilidade através de estudos e pesquisas sobre religião,
processos de exclusão e participação política, identidade étnica mobilizações
culturais, etc., exigindo novas formulações, sobre as especificidades afro-
brasileiras. Também a partir desse período, alguns pesquisadores, (Nelson do
Vale Silva, Carlos Hasenbalg, Moema Teixeira, entre outros) passaram a
demonstrar, através dos dados estatísticos produzidos pelo IBGE e pelo, IPÉA,
entre outras agências, que os efeitos do racismo estavam, mais do que nunca,
presentes na sociedade brasileira, exigindo o comprometimento do Estado na
definição de políticas públicas de superação das desigualdades raciais no país.
A Conferência de Durban e as Ações Afirmativas
A partir da aprovação da Declaração e do Plano de Ação da III
Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerâncias Correlatas, ocorrida em setembro de 2001 em Durban, na África
do Sul, os países que mantiveram serem humanos em regime de escravidão
nos processos coloniais deveriam se comprometer com a implantação de
programas de ações afirmativas que propiciassem a correção das
desigualdades raciais e a promoção da igualdade de oportunidades aos grupos
que sofreram mais drasticamente os efeitos dessas ações.
Na Declaração de Durban, a escravidão e especialmente o tráfico
transatlântico de escravos são definidos como crime de lesa humanidade,
constituindo-se em uma das principais fontes de manifestações de racismo e
de intolerância, cujos efeitos ainda são sentidos por várias gerações de
africanos e afrodescendentes nas Américas.
13. (...) reconhecemos que a escravidão e o tráfico de escravos, especialmente o tráfico transatlântico de escravos constituem e sempre deveriam ter constituído, um crime de lesa humanidade e são uma das principais fontes e manifestações de racismo, discriminação racial, xenofobia e formas conexas de intolerância, e que os africanos e os afrodescendentes, os asiáticos e as pessoas de origem asiática e os povos indígenas foram vítimas desses atos e continuam sendo de suas conseqüências; 14. (...) Reconhecemos os sofrimentos causados pelo colonialismo e afirmamos que onde e quando quer ocorreram, devem ser condenados e há que impedir-se que ocorram de novos. Lamentamos também que os efeitos e a persistência dessas estruturas e práticas sejam considerados entre os fatores que contribuem para as
desigualdades sociais e econômicas duradouras em muitas partes do mundo de hoje; 18. Realçamos que a pobreza, o subdesenvolvimento, a marginalização, a exclusão social e as desigualdades econômicas estão estritamente vinculadas com o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e as práticas conexas de intolerância e contribuem para a persistência de atitudes e práticas racistas, que por sua vez geram mais pobreza (ONU, 2001, p.7-8, tradução e grifo nosso).
Resulta então dessa Conferência, a exigência de comprometimento do
Estado brasileiro com a implantação de programas de ações afirmativas
voltadas para a reparação dos danos causados pela desumanização imposta
pela escravização dos africanos e seus descendentes, com a adoção de um
sistema de cotas raciais para o acesso, tanto ao mercado de trabalho como ao
ensino superior, além da aprovação das Leis federais 10639/03 e 11645/08, de
obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e
indígena nos currículos do ensino básico.
Reafirmando o reconhecimento da empreitada colonialista como uma tragédia
com proporções abomináveis de genocídio praticado contra índios e africanos, a
comunidade internacional definiu o artigo 104 de sua declaração, instando os Estados a..
“estabelecerem, com base em informações estatísticas,
programas nacionais, inclusive programas de ações afirmativas
ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de
grupos de indivíduos que são ou podem vir a serem vítimas da
discriminação racial nos serviços sociais básicos, incluindo
educação fundamental, atenção primária a saúde e moradia
adequada” (p.60).
Neste sentido, as ações afirmativas ganham proporções de extrema
significância, não apena nas lutas contra o racimo, promovendo ações de superação das
barreiras de exclusão e recuperação da autoestima aos descendentes de africanos
escravizados, mas fundamentalmente, na luta internacional pelos direitos humanos.
De acordo com o jurista Joaquim Barbosa Gomes:
As ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de
políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo
ou voluntário, concebidas com vistas ao à discriminação racial,
de gênero, de origem nacional, bem como para corrigir os
efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo
por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade acesso
a bens fundamentais como a educação e o emprego.
Diferentemente das políticas anti discriminatórias tradicionais
baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se
singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente
instrumentos de caráter reparatório e de intervenção ex post
facto, as ações afirmativas tem natureza multifacetária, e visam
evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente
conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de
aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos
informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais
e no imaginário (GOMES, 2001, p. 40).
Sem dúvidas, políticas dessa natureza constituem-se um compromisso
com os ideais da democracia e do reconhecimento da igualdade na
diversidade, definindo ações de inclusão a grupos que sofrem mais diretamente
as consequências do racismo e da discriminação por suas especificidades
sócio-raciais, ultrapassando a retórica constitucional de que "todos são iguais
perante a lei”, uma vez que, a igualdade formal perpetua efetivamente as
desigualdades.
Embora tenham adquirido visibilidade somente após a conferência
Durban em 2001, desde o final dos anos oitenta, começou a ganhar força o
movimento pela adoção de ações afirmativas para negros no Brasil com o
intuito de proporcionar condições reais de superação de desigualdades raciais
em diversos aspectos da vida nacional.
Vistas dessa forma, as ações afirmativas vêm reafirmar a persistência
das práticas discriminatórias na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,
sugerir medidas capazes de superá-las, através de ações de ordem
pedagógico-preventiva, desconstruindo no imaginário social as noções
estereotipadas de inferioridade “natural” de determinados grupos, devido à sua
condição de raça, classe ou gênero (Gomes 2001).
Propõem ainda, a aplicação de cotas percentuais para acesso à
educação e ao mercado de trabalho, como forma de assegurar igualdade de
oportunidades, a indivíduos ou grupos historicamente excluídos por questões
étnicas, de gênero, ou por qualquer outra característica que os tenha
desqualificado socialmente, bloqueando suas possibilidades de auto
realização.
Encontramos em Borges (2002:67) uma metáfora denominada “corrida
de obstáculos” na qual supõe uma disputa entre dois corredores, tentando
explicar “o conceito de ação afirmativa frente às reações que o tema desperta
entre grupos diversos”.
Imaginem dois corredores, um amarrado e outro solto. É claro que o corredor solto ganha sempre. Mas um dia a platéia dessa competição imaginária chega à conclusão de que essa situação é injusta. À custa de muita pressão, consegue-se convencer os organizadores a cortar as cordas que prendiam um dos corredores. Só que ele continua perdendo. Motivo: seus músculos estão atrofiados pela falta de treinamento. Se tudo continuar como está, a tendência é de que ele perca sempre. Que fazer para promover a igualdade de condições entre os dois corredores? Alguns sugerem que se dê um treinamento especial ao corredor que estava amarrado. Pelo menos durante algum tempo. Outros defendem uma medida mais radical: por que não lhe dar uma vantagem de dez metros em cada corrida? Logo se ouvem vozes denunciando que isso seria discriminação. Mas há quem defenda: discriminação, sim, mas positiva porque visa promover a igualdade, pois tratar igualmente os desiguais é perpetuar a desigualdade.
Aqueles que permaneceram presos, ao longo de varais gerações,
pelas barreiras do racismo e da discriminação, mesmo depois de libertos
dessas amarras, permanecerão ainda por muito tempo, sofrendo os efeitos
desse processo desigual, as ações afirmativas têm por fim superar essas
desvantagens, através de programas específicos que visem promover a
igualdade de oportunidades entre os diferentes grupos.
Ações Afirmativas em Outras Nações
Embora esse debate seja ainda insipiente e carregado de controvérsias
no Brasil, os povos de outras partes do mundo já convivem com essas políticas
desde meados do século XX, podendo ser identificadas experiências de
iniciativa do Estado em benefício de segmentos discriminados por questões de
classe, como na Índia, desde 1949; por questões de raça, como nos Estados
Unidos, desde a década de sessenta; por questões de gênero e minorias
étnicas, no caso de diversos países europeus, desde os anos setenta. Borges
(2002), Carvalho (2005), D‟Adesky (2001), Medeiros (2004).
Na Índia fortemente marcada por suas castas sociais que se apropriam
de forma extremamente diversa e desigual dos recursos nacionais, há previsão
constitucional, desde 1949, para a adoção de medidas especiais em favor das
classes desfavorecidas, sendo obrigatórias no serviço público, na educação e
em todos os órgãos estatais. Segundo Medeiros ((2004 p. 122) nos Estados
Unidos a expressão ação afirmativa apareceu pela primeira vez em um decreto
presidencial em 1961 com a Executive Order 10. 925, aplicada especialmente
ao mercado de trabalho. Citando Paulo Lucena de Menezes o autor mostra
que:
O contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido à raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará uma ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, credo cor ou nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação, o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado.
Efetivamente, a Executive Order 10. 925 foi o primeiro de uma série de
decretos de diversos governos norte americanos, visando normatizar a inclusão
das minorias étnicas no sistema produtivo do país, ordenando que os
empregadores contratassem e promovessem sem levar em conta os
pertencimentos grupais.
Após a decretação da Lei dos Direitos Civil de 1964, tendo os negros
como o grupo principal em 1965 (Menezes 2001) o presidente Kennedy editou
a Executive Order n.o 11.246, que exigia, em todos os contratos entre
empresários e o governo federal, a eliminação das práticas discriminatórias e o
estabelecimento de medidas efetivas por meio de recrutamento, contratação,
níveis salariais e benefícios indiretos às minorias étnicas e raciais, com a
finalidade de corrigir as iniqüidades decorrentes de discriminações presentes
ou passadas.
Devido à sua projeção em meio à efervescência das luas pelos direitos
civis, a iniciativa dos Estados Unidos norteou a aplicação de ações afirmativas
em outros países como opção para garantir a democracia inclusiva e vem
sendo utilizado como paradigma pelos ordenamentos jurídicos da maioria dos
países que integram o sistema das Nações Unidas.
No Canadá adoção de políticas afirmativas se deu no início dos anos
sessenta (Menezes 2001, p. 128) em virtude da influência norte-americana, e
sob o impacto da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela
Organização das Nações Unidas. Após intensos debates em seu parlamento,
esse país acabou aprovando a Canadian Bill of Rights, introduzido em nível
infraconstitucional.
No entanto, grande parte dos direitos e das liberdades individuais
prevista naquele ato legislativo foi introduzida no sistema constitucional do
Canadá por meio do Ato Constitucional de 1982, que introduziu o Charter of
Rights. A partir desde momento a Constituição do Canadá, em seu parágrafo
primeiro do art. 15, estabeleceu o princípio da igualdade de todos perante a lei,
proibindo qualquer discriminação baseada em situações particulares do
indivíduo. O parágrafo segundo desse mesmo artigo 15, por sua vez,
estabelece expressamente uma cláusula de ação afirmativa, determinando em
quais hipóteses serão admitidas exceções à cláusula geral de igualdade.
A subseção (1) não impede qualquer lei, programa ou atividade que tenha como seu objeto a melhoria das condições de indivíduos ou grupos desfavorecidos, incluindo aqueles que estão em desvantagem devido à
raça, origem étnica ou nacional, cor, religião, sexo, idade ou deficiência física ou mental". (MENEZES, 2001, p.129).
O que se percebe, tanto no Canadá como em outros países que
adotam as políticas de ações afirmativas é uma tendência de se
constitucionalizar sua previsão, almejando com isso, uma atenção maior à
redução das desigualdades e diminuindo a resistência daqueles que vêem no
próprio princípio da igualdade o impedimento para a adoção de tais programas.
A África do Sul experimentou desde o início do século XX, um longo processo
de segregação racial (apartheid) fundamentado no controle político da sociedade pela
minoria branca que incorporava os ideais da supremacia racial. Os brancos que
constituíam apenas 10% da população do país detinham 87% das terras, enquanto os
negros, que representavam 90% da população, tinham 13% delas. Essa exclusão se
estendida também, à educação, à economia e à política.
No início dos anos noventa, a partir das lutas anti racistas, várias
soluções foram sugeridas, visando o reconhecimento da maioria negra e a
redefinição do seu lugar na estrutura sócio-política daquele, país. E m 1991,
em relatório apresentado pela South African Law Commission privilegiava o
princípio da igualdade proibindo a discriminação baseada em critérios de raça,
sexo, religião, o por outras características sociais. (MENEZES, 2004)
Em 1993, o partido Congresso Nacional Africano, formulou o Programa
de Reconstrução e Desenvolvimento implementado e chegou ao poder, em
1994, após as primeiras eleições democráticas pós apartheid, quando o CNA
assumiu o poder. Foram promovidas então, diversas reformas para dar poder
aos negros, que estavam excluídos de todas as possibilidades de participação
na vida sócio-política do país. As ações afirmativas tiveram papel decisivo no
processo de transformação ainda em curso naquele país, assegurando que
brancos ou negros, adultos e crianças, homens e mulheres tenham acesso aos
benefícios dos serviços sociais necessários aos valores da cidadania.
O Debate Atual no Brasil
No Brasil, a experiência de o Estado intervir, por intermédio da
legislação, para favorecer a integração de determinado segmento da população
já ocorrera desde o século XIX. Portanto, a dimensão racial dessa ação estatal
não deveria causar tanto incômodo entre os setores sociais do país. A política
imperial de estímulo à imigração de colonos brancos ao longo do século XIX e
também a política de imigração da incipiente República brasileira
demonstraram que a dimensão racial era priorizada na formulação de políticas
públicas, sem que em nenhum momento de nossa história tivesse sido argüida
a sua inconstitucionalidade na suposta violação do princípio isonômico.
Em 1930, época em que muitas empresas de propriedade de
imigrantes se instalavam no Sul e Sudeste do Brasil com mão de obra
predominantemente européia, discriminando trabalhadores nativos, foi
implantada a chamada Lei dos Dois Terços, para garantir a participação
majoritária de trabalhadores brasileiros.
Várias outras iniciativas foram criadas em relação ao ingresso de
deficientes físicos nas empresas (cinco por cento naquelas com mais de mil m
empregados) e 20 por cento nos concursos públicos, em relação às mulheres,
a definição de trinta por cento de cotas nas listas de candidatos dos partidos
político. Além de outras medidas importantes, com a finalidade de dispensar
tratamento diferenciado a determinados grupos visando à inclusão social e
diminuição das desigualdades.
O que ainda causa incômodo no Brasil, é a definição do adjetivo étnico-
racial aos beneficiários dessas políticas, e aí se manifestam diversos
argumentos contrários citando inclusive a Constituição, sugerindo que, aos
descendentes de africanos escravizados, não se reconhecem as injustiças
históricas, não havendo, pois necessidade de políticas específicas.
Novo também é o descrédito definitivo na democracia racial, com
ativistas do movimento negro, homens, mulheres, quilombolas, entre outros e
outras, reivindicando o protagonismo de suas histórias, ou seja, novo ainda,
aos olhos da sociedade brasileira, a presença de um número, já significativo
pela qualidade, mas inda crescente, de intelectuais negras e negras produzindo
conhecimento sobre si mesmo e sobre os vários aspectos da vida sócio-culural
brasileira, associando concepções teóricas com experiências do cotidiano.
De uma forma geral, seja ao nível do senso comum, seja nos meios
acadêmicos, esse debate ganha corpo e, especialmente os profissionais da
educação, seja no ensino básico ou no ensino superior, ainda se mostram
arredios a idéia da reparação dos danos causados historicamente à população
negra. Entretanto, para as organizações do movimento social negro, a
elaboração e implantação de políticas de promoção da igualdade racial
significam o reconhecimento pelo Estado brasileiro, de que o racismo é um dos
principais elementos de entrave às oportunidades de acesso ao trabalho, a
condições dignas de moradia, saúde e educação.
A luta anti-racismo é uma exigência da modernidade, uma via
importante para garantir qualidade de vida à população brasileira,
especialmente à população negra, vitimizada pela colonização, pela
escravização e pelas políticas de imigração, responsáveis pela sua exclusão da
vida social do país após a abolição.
Entre as mobilizações do movimento social negro brasileiro no final
século XX, é possível destacar o movimento pela reparação às vítimas da
escravidão, lançado em São Paulo em novembro de 1993 objetivando
aprofundar a reflexão sobre a impunidade às formas de expropriação aos
direitos e à vida dos negros no Brasil, especialmente aos atos praticados pelo
Estado e seus agentes diretos e indiretos. Trata-se de um movimento
reivindicativo, de reparações indenizatórias às injustiças cometidas pelo Estado
brasileiro contra os africanos e seus descendentes e de reconhecimento às
contribuições deixadas por estes, ao processo de construção da sociedade
brasileira.
Esse movimento trouxe como proposta (D‟Adesky, 2001), aprofundar a
reflexão sobre a impunidade de autores de atos atentatórios aos direitos dos
negros no Brasil, especialmente pelo o Estado e seus agentes diretos e
indiretos. Teve ainda uma importância, na instauração de um debate sobre a
adoção de políticas afirmativas como reparação mais adequada aos danos
causados pela escravização às gerações subseqüentes de descendentes de
africanos no Brasil. Nessa perspectiva, a adoção de ações afirmativas pelo
Estado, além de reparar danos atuais e prestar contas com a história, promove
a inclusão, a integração e o convívio entre os diferentes, firmando um
compromisso do Estado com a valorização efetiva da diversidade e da
pluralidade.
A Declaração de Durban reconhece que a diversidade cultural é um
elemento valioso para o desenvolvimento e bem-estar da humanidade em
geral, enriquece a sociedade, e que a preservação e o fomento da tolerância,
do pluralismo e do respeito à diversidade podem produzir sociedades mais
abertas. (ONU, 2001, p. 3 e 6).
Segundo d‟Adesky (2001, p. 236),
O reconhecimento da pluralidade de culturas no seio das sociedades e a instauração de medidas concretas para promover a participação social e econômica dos grupos culturais minoritários ou das comunidades étnicas depreciadas, como demandas do multiculturalismo democrático, visam exatamente que a diversidade étnica e cultural da população seja respeitada e garantida, sem implicar tentativas de depreciar ou eliminar esses grupos. Em termos de pessoa humana, o multiculturalismo possibilita que o indivíduo venha a se identificar segundos seus próprios critérios, de forma que possa ser reconhecido pelo que é sem ser obrigado a se fazer passar pelo que não é.
Sem dúvidas, positivação das ações afirmativas no Brasil, assunto que
vem sendo objeto de calorosos debates no Parlamento, na academia, nos
meios jurídicos, e na própria sociedade, fará com que o Estado brasileiro inicie
o processo de reparação e dê os primeiros passos que estão ao seu alcance
para a consolidação de uma sociedade multicultural e verdadeiramente
democrática.
Mais do que o simples pagamento de uma indenização pecuniária que
direciona erroneamente o instituto da responsabilidade civil do Estado para
uma perspectiva civilista, a adoção compulsória de políticas públicas
específicas em benefício dos negros tem a nítida vantagem de proporcionar
condições para o desmonte, mediante processos educativos e de
comunicação, do estigma de inferioridade que carrega a população negra no
Brasil e, dessa forma, contribuir efetivamente para a instituição de uma
sociedade mais igualitária, pluriétnica e democrática, em que sejam
reconhecidas as especificidades de cada grupo a eles seja conferido o mesmo
grau de importância.
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A HISTÓRIA DA ÁFRICA E CULTURA AFROBRASILEIRA NA FORMAÇÃO DO CURSO DE
TURISMO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
Prof. Ms. Maria da Graça Reis Cardoso
2.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo, mostrar a importância da Inclusão de conteúdos relacionados à História da África e Cultura Afro-brasileira enquanto componente Curricular no Curso de Turismo da UFMA. Tal inquietação surgiu a partir da nossa vivência na condição de Professora do curso supracitado, diante da não abordagem da História da África e cultura afro-brasileira no curso, uma vez que existe uma abordagem apenas sobre cultura popular, porém desprovida da categoria da etnicidade. O percurso metodológico tem se concretizado através do exercício da docência na sala de aula com abordagem da Cultura Afro-brasileira através de uma disciplina de ementa aberta intitulada tópicos III para alunos do 8º período, e pesquisa bibliográfica que permeia todo o trabalho. Destacamos que inicialmente tal abordagem causou estranhamentos e várias indagações, no entanto os alunos entenderam a necessidade e importância da visibilidade positiva da cultura afro-brasileira bem como seu valor econômico, histórico e sociocultural no mercado turístico principalmente no segmento de turismo étnico afro-brasileiro. Palavras-chave: Turismo; Currículo e Cultura afro-brasileira.
ABSTRACT
The present work aims to show the importance of the inclusion of content related to the history
of Africa and Afro-Brazilian culture as a curricular component in the course of Bachelor‟s
Degree in Tourism at the Federal University of Maranhão. Such concern arose from our
experience as professor of the aforementioned course, whose curriculum does not approach
the History of Africa and Afro-Brazilian culture since there is only approach to popular culture
lacking in the category of ethnicity. The methodological way has been accomplished through the
exercise of teaching with an approach to Afro-Brazilian Culture through an open school subject
entitled Topics III for 8th semester students (senior), and bibliographical research that
permeates all the work. We highlight that, initially, such approach caused strangeness and
several inquiries; however, the students understood the necessity and importance of the
positive visibility of Afro-Brazilian culture as well as its economic, historical and sociocultural
value in the tourism market mainly in the Afro-Brazilian ethnic tourism segment.
Keywords: Tourism, Curriculum and Afro-Brazilian Culture.
1 INTRODUÇÃO
A necessidade de se discutir questões de caráter étnico racial se faz cada vez
mais presente na sociedade brasileira, principalmente no ambiente acadêmico. Com o advento
2 Prof. Ms. Maria da Graça Reis Cardoso.
das redes sociais estamos vivenciando a materialização de manifestações de cunho racista
como nunca percebido com tamanha grandeza.
E o ambiente acadêmico não está imune ao racismo, ao contrário, por ser um
espaço historicamente marcado pela presença de pessoas não negras, tem se revelado um
espaço de poder racista para além do racismo individual, ou seja, um racismo enraizado
institucionalmente.
Em Janeiro de 2003, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva sancionou a Lei
Federal 10.639/03, legitimando uma luta histórica dos movimentos sociais negros no Brasil. A
referida lei versa sobre a obrigatoriedade da Inclusão dos componentes curriculares sobre
História da África e Cultura Afro-brasileira na educação básica brasileira e dá outras
orientações de abordagens para os cursos de licenciaturas no sentido de garantir o
conhecimento dos professores.
No entanto, compreendemos que esta é uma questão de tamanha grandeza que
deve se estender a todas as áreas de conhecimento do ensino superior seja licenciatura ou
bacharelado no Brasil e todas as sociedades construídas a partir da diáspora. Nesse sentido
vislumbramos a necessidade dessa abordagem também nos Cursos de graduação em Turismo
da universidade Federal do Maranhão em São Luís. O recorte para o Curso de Turismo da
UFMA em São Luís deu-se em função da inviabilidade metodológico de acesso ao curso de
Turismo no Campus de São Bernardo Maranhão.
O turismo enquanto área de conhecimento possui um caráter multidisciplinar.
Dentre as diversas tipologias destaque para o turismo cultural. Este por sua vez possui
subsegmentações a exemplo do turismo étnico, que se caracteriza pela etnicidade presente na
sociedade brasileira e por sua vez nas manifestações culturais que compõem a cultura
brasileira.
Diante desse contexto, que defendemos a inclusão de conteúdos relacionados à
história da África e Cultura afro-brasileira no currículo do referido curso no sentido de
construção de um currículo multicultural. Desde 2012 ministramos uma disciplina intitulada
tópicos III, que de acordo com o Projeto Político Pedagógico do Curso de turismo, trata-se de
uma disciplina com ementa aberta com conteúdo flexível. Diante dessa flexibilidade vem sendo
desenvolvida a proposta de abordagem dos conteúdos de História da África e Cultura Afro-
brasileira. No entanto, esta flexibilidade não garante a efetivação da inclusão curricular dos
referidos conteúdos.
Para alcançarmos os resultados desta pesquisa trilhamos um percurso
metodológico que se caracteriza por uma pesquisa de caráter qualitativo de cunho bibliográfico
que norteia todo o trabalho e pesquisa empírica, com base na nossa vivência enquanto
docente do curso de turismo.
A pesquisa possui o seguinte desdobramento: na segunda parte abordamos a
relação entre turismo cultural e etnicidade. Em seguida, a importância do Currículo multicultural
no curso de Turismo e por fim as considerações finais.
2 TURISMO E ETNICIDADE
O turismo tem se mostrado ao longo do tempo até os dias atuais como uma
atividade econômica rentável e cada vez mais necessária na vida das pessoas, pois apresenta
sustentabilidade em todos os aspectos, bem como econômico, social, cultural ambiental dentre
outros, de acordo com sua segmentação. A Organização Mundial do turismo –OMT, define o
turismo como um fenômeno cujas atividades realizadas pelas pessoas durante suas viagens e
estadas à lugares distintos da sua moradia, num determinado tempo inferior a um ano para fins
de lazer, negócios ou outras motivações que não estejam ligadas às atividades laborais
remuneradas nos lugares visitados (OMT, 2005)
O desenvolvimento do turismo tem movimentado muitas economias do local ao
global. “O turismo consolidou-se nos primeiros anos do século XXI, como um dos mais
importantes fenômenos da sociedade contemporânea. [...] O deslocamento das pessoas para
lugares até então desconhecidos e o consumo das singularidades das culturas alheias
propiciou ao turismo ser considerado como um dos principais geradores de riqueza do mundo”.
(MACHADO, 2007, P 65).
Portanto, podemos conceber o turismo como uma atividade que possui na sua
essência, lugares, pessoas e culturas, logo se trata de um fenômeno essencialmente além de
econômico, territorial e sociocultural. Dentre as diversas segmentações do fenômeno turístico
destaca-se o Turismo Cultural.
Segundo Simão (2006), há certa dificuldade em definir o turismo em virtude da
diversidade de variáveis que o compõe – são elas, econômicas, geográficas, sociais, culturais,
sociológicas, urbanísticas, políticas, antropológicas, administrativas, direito e marketing. Dentre
essas variáveis, damos ênfase neste momento à cultural por ser uma das grandes motivações
para os deslocamentos no turismo, este por sua vez é um grande instrumento que pode ser
utilizado para reabilitação e valorização de culturas, através do segmento de turismo cultural
que tem sua existência condicionada ao patrimônio histórico.
O turismo se consolidou como um grande negócio que desconhece fronteiras. Mas
é bem mais que isso. Trata-se de “um convite à convivência entre pessoas, etnias e culturas
diferentes.” (PANOSSO, 2009, p.49).
Nesse contexto, vale ressaltar que os aspectos étnico-culturais estão cada vez
mais despertando interesse da demanda turística em escala global e suscitando debates no
ambiente acadêmico acerca da necessidade de aprofundarmos estudos sobre a etnicidade.
D‟Adesky, adverte para a dificuldade de compreensão de etnicidade. Para o autor
a noção de grupo étnico não se deixa captar com facilidades. “Não é possível reter como
elementos exclusivos de definição, a existência de um único idioma, de uma única raça, de
uma religião, nem mesmo a existência de um território comum”. (D‟ADESKY, 2001, p.39).
Mas, apesar da complexidade que envolve o conceito de etnicidade. O autor
revela que no geral elementos podem ser identificados como a raça, a religião e a língua como
fatores fundamentais, os processos históricos como epicentro de uma herança cultural comum,
o território e categoria de permanência, a noção de pertencimento e o desejo de viver
coletivamente como expressão de certa comunidade cultural.
O Brasil já vivência diversas experiências turísticas pautadas na etnicidade de
correntes migratórias europeias e japonesas, de culturas nativas como as indígenas e da
sociedade afro-brasileira, sobretudo na Bahia, Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e
Comunidades Quilombolas em várias partes do país, dando início a um segmento do turismo
cultural intitulado turismo étnico.
Quanto à cultura afro-brasileira, vale lembrar que durante toda a diáspora foi
duramente repreendida e até os dias atuais encontra-se invisibilizada pela sociedade brasileira
e o próprio estado que não dispõe de uma política cultural de valorização dessa cultura.
Entretanto diante de todas essas dificuldades existem demandas turísticas interessadas em
conhecê-las.
Daí, a real e urgente necessidade de uma discussão acerca da inclusão dos
componentes curriculares de História da África e Cultura Afro-brasileira na formação de
Bacharéis em Turismo na Universidade Federal do Maranhão. O Estado do Maranhão destaca-
se como um dos maiores estados do país cuja maioria da população é negra, tanto no cenário
urbano quanto rural. Portanto detentor de grandes expressões culturais que evidenciam
aspectos étnicos afro-brasileiros e peculiaridades afro-maranhenses. A exemplo do Tambor de
Crioula, Reggae, Bumba-meu-boi e religiões de matriz africana.
3 CURRÍCULO MULTICULTURAL NO CURSO DE TURISMO DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO MARANHÃO EM SÃO LUÍS.
O espaço educacional se configura como um campo político onde se dá uma
correlação de forças, constituindo assim uma relação de poder. Entende-se por campo político
um espaço com variáveis econômicas, sociais, culturais e políticas.
Na concepção de Bourdieu, (2002, p.164):
O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os
agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas,
programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais
os cidadãos comuns, reduzidos ao status de “consumidores”, devem
escolher, com probabilidades de mal-entendido tanto maiores quanto mais
afastados estão do lugar de produção. (BOURDIEU, 2002, p.164).
A relação de poder é imanente à relação humana, entre dois ou mais atores
sociais, ela sempre se evidencia em todos os campos da sociedade, portanto não se difere no
campo da educação. A função do poder é alcançar a produção do que é desejado e pode
assumir três formas: poder físico, poder psicológico e poder mental. Este último, “se exerce
através da persuasão e da dissuasão e tem a sua forma elementar, presente em todas as
sociedades na educação”. (RUSSELL, 1938, apud BOBBIO, 2010, p. 77).
Essa relação de poder se faz presente em todas as formas de educação, desde a
familiar concebida como educação primária até outras etapas do processo educativo, seja ele
informal ou formal. No campo da formalidade destaque para a escola que no dizer de Althusser
se constitui em um poderoso instrumento de dominação nas sociedades capitalistas.
Desde a pré-primária, a escola toma a seu cargo todas as crianças de todas
as classes sociais e a partir da pré-primária, inculca-lhes durante anos [...]
saberes práticos envolvidos da ideologia dominante [...] por volta dos
dezesseis anos uma enorme massa de crianças cai na produção [...] a outra
parte escolarizável continua [...] uma última parte consegue ascender ao
cume quer para cair no subemprego intelectual quer para formar além dos
intelectuais do trabalho coletivo, os agentes da exploração capitalistas [...] os
agentes da repressão e os profissionais da ideologia [...] cada massa que fica
pelo caminho está recheada de ideologia que convém ao papel que ela vai
desempenhar na sociedade de classe. (ALTHUSSER, 1985, p. 64-65).
A escola não é o único espaço de reprodução ideológica. Existem outros como as
religiões, as diversas mídias: da televisão às redes sociais e outros espaços de socialização.
Porém é no ambiente da escola que se dá maior poder de saturação ideológica pelos anos de
permanência. Pois o processo de seletividade dos conteúdos curriculares, o currículo oculto, a
invisibilidade e o recalque da imagem e cultura de atores sociais sem prevalência na
sociedade, são alguns dos mecanismos produzidos para a hegemonia da ideologia dominante.
Nesse sentido o Currículo é o instrumento legítimo para a manutenção e
reprodução de hegemonias, uma vez que é através dele que as decisões acerca de que
conteúdos deverão ser legítimos. “O currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um
universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai construir
precisamente o currículo.” (SILVA, 2013, p.15).
Bem mais significativo do que conceituar o currículo é compreender o quê será
selecionado por esse currículo, que pessoas pretendem formar. O currículo tem sempre
pretensões em modificar as pessoas.
Qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa ajustada e competitiva dos atuais modelos liberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais
existentes preconizadas nas teorias educacionais críticas? A cada um desses „modelos‟ de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo. (SILVA, 2013, p. 15).
Portanto, indubitavelmente o currículo não pode ser compreendido apenas como
um instrumento que busca formar um ser humano eficiente e competitivo, nem tampouco traz
no seu cerne categorias psicológicas com base na aprendizagem e desenvolvimento e muito
menos uma estrutura curricular ou lista de conteúdos. Naturalmente que o currículo contém
todas essas categorias. Porém, é incontestável a sua definição como um espaço de poder. “O
conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de
poder. O currículo é capitalista. O currículo reproduz – culturalmente as estruturas sociais.[..]”.
(SILVA, 2013, p. 147).
Nesse sentido, o currículo é determinante na reprodução das desigualdades
sociais e raciais nas sociedades capitalistas. Portanto reiterando o que foi dito anteriormente, o
currículo é uma aparelho ideológico do estado capitalista, um instrumento de transmissão da
ideologia dominante, ou seja, o currículo é um terri- tório político.
O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é auto-biografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja uma identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 2013, p.150).
A questão aqui é que como está posto, o currículo representa apenas uma
identidade e não identidades. No que diz respeito à sociedade brasileira que na sua formação
foi submetida a processos históricos sociais e culturais diferenciados, sobretudo a população
negra. Esta não se vê amplamente representado nos currículos nas escolas e universidades
em geral.
Especialmente no Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão em
São Luís, objeto central deste artigo, o currículo ora em vigor não contempla componentes
curriculares de suma importância para a formação acadêmica do bacharel em Turismo, como
história da África e Cultura afro-brasileira. Como já foi dito anteriormente a atividade turística
trabalha dentre os mais diversos segmentos, a cultura. Mas da forma como esta categoria esta
posta no currículo do curso não contempla conteúdos que abordem os processos históricos
sócios cultuais da população negra brasileira. Logo se configura uma aprendizagem
homogênea alicerçada na branquitude.
É sabido que o ideal de branquetude é um fator de alienação. Objetiva fragilizar a
percepção de práticas racistas. Este ideal é produto de um racismo assimilacionista. Como
adverte D‟Adesky, (2001, p. 173).
Ele se apresenta como um anti-racismo que preconiza a mistura inter-racial. Porém não passa de uma variação do racismo universalista, cuja lógica profunda submete os grupos étnicos à assimilação de um modelo cultural preferencial e à homogeneização racial, em que o tipo ideal branco tem a primazia por estar situado no topo de uma escala de valores, supostamente única e absoluta.
Infelizmente ainda é recorrente a presença do racismo em toadas as áreas da
sociedade brasileira e não é diferente no âmbito acadêmico. Este fato valida nossa inquietação
ao questionar o currículo do curso do turismo. A preocupação esta para além das negações ou
reconhecimento de identidades de alunos negros e não negros, mas, sobretudo por se tratar de
uma unidade da federação que abriga na sua formação uma das maiores populações negra do
país. Portanto evidenciam-se no Estado do Maranhão diversas expressões culturais de cunho
afro, tanto de caráter lúdico quanto religioso, que constituem grande parte do patrimônio
cultural imaterial brasileiro a exemplo do Bumba – meu- boi e Tambor de Crioula, dentre
citadas anteriormente.
A pergunta inegável é; como os profissionais de turismo irão lidar com a
comercialização de produtos turísticos étnico-culturais de tamanha grandeza, uma vez, que
desconhecem a história da África de da Cultura Afro-brasileira? Esse fato remonta às
indagações curriculares acerca de quais profissionais queremos formar: profissionais que
reproduzam desigualdades sociais e raciais ou profissionais conscientes do valor político e
sociocultural da diversidade para a promoção de políticas de equidade?
O perfil profissional do bacharel em Turismo pretendido no Projeto Político
Pedagógico (PPP) em vigor não faz referência a essas questões. Vejamos:
O Bacharel em Turismo egresso da UFMA deverá ser capaz de exercer as seguintes atividades:- Participar na elaboração e execução das políticas de turismo nacional, estadual e municipal; - Elaborar, analisar e operacionalizar planos, programas e projetos de desenvolvimento turístico nacional, estadual e municipal; - Planejar o uso sustentável dos recursos turísticos naturais e culturais; - Determinar e analisar os impactos provocados pela atividade turística, propondo alternativas para maximizar os positivos e minimizar os negativos; Elaborar inventários da oferta turística, identificando as oportunidades de negócios e de desenvolvimento turístico de núcleos; - Desenvolver campanhas de marketing turístico para núcleos e empresas do setor; - Propor e executar campanhas de conscientização turística junto aos diversos segmentos da sociedade; - Interpretar legislação pertinente às atividades desenvolvidas no setor turístico; - Planejar e desenvolver as atividades necessárias ao processo de abertura de empreendimentos turísticos; - Desenvolver projetos de consultoria e assessoria tanto para o setor público quanto privado; - Gerenciar empreendimentos turísticos públicos e privados; - Planejar, avaliar e operacionalizar programas e projetos estratégicos em empreendimentos turísticos; - Desenvolver programas de qualidade para os serviços e produtos turísticos; - Elaborar e analisar projetos de identificação e de desenvolvimento de oportunidades de negócios; - Utilizar a metodologia científica no desenvolvimento de estudos e pesquisas básicas e aplicadas; - Planejar e desenvolver estudos que identifiquem a viabilidade econômico-financeira de empreendimentos e projetos turísticos; - Elaborar pesquisas de mercado no setor turístico; - Desenvolver pesquisas de demanda turística; - Desenvolver ações voltadas para a capacitação dos recursos humanos no setor turístico; - Planejar e ministrar cursos e treinamentos nos vários segmentos do mercado.
No que diz respeito, à estrutura curricular, as disciplinas tanto as básicas como as
específicas não contemplam nenhuma abordagem sobre a diversidade étnica- cultural
brasileira. Na atualidade essa abordagem está sendo realizada através de uma disciplina
intitulada, Tópicos III, que temporariamente trabalha com a seguinte ementa: definições das
categorias Raça e Etnia; Relação entre turismo e Etnicidade; Turismo Étnico afro-brasileiro e
afro maranhense; Contribuições históricas, sociais e culturais do Negro africano e afro-
brasileiro; Território étnico afro-brasileiro urbano; Comunidades negras quilombolas. Patrimônio
afro-maranhense.
Entretanto, de acordo com o Projeto Político Pedagógico do curso de Turismo em
vigor (2008), as disciplinas intituladas tópicos possuem ementas abertas e variáveis e poderão
incluir atividades como mini-cursos e conferência, além da participação de professores
visitantes e convidados. Esse caráter de flexibilidade de conteúdos não garante a continuidade
da abordagem ora realizada, fazendo-se necessário uma reforma curricular que garanta a
obrigatoriedade e permanência desses conteúdos, que contemplam a história da África e
Cultura afra brasileira.
Vale ressaltar que a Lei Federal 10.639/03, não faz referência aos cursos
superiores. Ela trata especificamente da educação básica. Torna a obrigatoriedade nos
estabelecimentos públicos e privados do ensino fundamental ao ensino médio, o ensino de
História da África e Cultura Afro-Brasileira. “Art. 26-A - Nos estabelecimentos de ensino
fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História da
África e Cultura Afro-Brasileira”. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2004, P.35).
No entanto, também não há nenhum impedimento legal que impossibilite uma
reflexão acerca da inclusão da História da África e Cultura Afro-brasileira nos cursos de ensino
superior, sejam licenciaturas ou bacharelados. O que se pretende é chamar a atenção para a
concepção de um currículo multicultural que contemple a aplicabilidade da lei Federal 10.
639/03 no sentido de construção de um espaço acadêmico menos racista, que possa de fato
formar profissionais que respeitem e valorizem as diversas culturas e etnias presentes na
sociedade brasileira, sobretudo a cultura negra.
O multiculturalismo, na cultura contemporânea, se configura como um movimento
legítimo de reivindicações de grupos culturais dominados no interior de determinadas
sociedades que lutam pelo seu reconhecimento e representação na cultura nacional. Porém
apesar da diversidade das formas culturais terem adquirido um lugar comum na
contemporaneidade, pode ser paradoxal, até certo ponto, na medida, em que apresenta
nuances de ambiguidade. “[...] pode ser visto, entretanto, também como uma solução para os
„problemas que a presença de grupos raciais e étnicos coloca no interior daqueles países que a
cultura nacional dominante.” (SILVA, 2013, p. 85).
Mas, apesar desse possível caráter de ambiguidade, ou até mesmo em virtude
dessa suposta ambiguidade o multiculturalismo significa um instrumento legítimo de luta
política, à proporção, que transfere para o campo da política, uma percepção da diversidade
cultural até então inviabilizada pela história oficial de cada país.
É nesse sentido, que se vislumbra a discussão de um currículo multicultural para
o curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão, que possibilite a percepção das
formas assimétricas como os conteúdos abordados não dão visibilidade às diferenças
presentes no interior da sociedade maranhense e consequentemente brasileira.
4 CONSIDERACÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho abordou-se a importância do fenômeno do Turismo na
atualidade, com destaque para o Turismo Cultural que se materializa a partir das motivações
das demandas por culturas diferentes de seu lugar de origem e nesse contexto a importância
da etnicidade enquanto característica marcante na cultura brasileira, dando origem á
ramificação do Turismo Cultural, intitulada Turismo Étnico. Dada à diversidade étnica da
sociedade brasileira este trabalho deu destaque a etnicidade afro-brasileira, peculiaridade da
maior parte da cultura brasileira, sobretudo no Estado do Maranhão.
Nesse sentido, foram levantadas reflexões acerca. da formação dos bacharéis em
turismo da Universidade Federal do Maranhão em São Luís, tais reflexões pautaram-se no fato
do currículo vigente do Curso de turismo não contemplar o ensino de História da África e
Cultura Afro-brasileira, considerando o Estado do Maranhão detentor de grande parcela do
patrimônio histórico brasileiro, inclusive com expressões culturais reconhecidas pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - .IPHAN, como Bumba-meu Boi e Tambor de
Crioula.
Nesse contexto, abordou-se o papel do currículo como instrumento de poder a
serviço da ideologia dominante e possibilidades de construção de um currículo multicultual,
cuja vertente, mostra o multiculturalismo como um movimento legítimo em defesa da
visibilidade das culturas oprimidas e principalmente as decorrentes da diáspora no interior das
sociedades. Nessa perspectiva um currículo multicultural traz para o ambiente acadêmico,
atores sociais até então invisibilizados pelo racismo enraizado nas Instituições brasileiras, ou
seja, um racismo institucional.
Esta pesquisa, além de bibliográfica também é reflexo da nossa prática docente
no referido Curso de Turismo em estudo. Então, no sentido de quebrar essas estruturas
racistas, vem se desenvolvendo temporariamente no curso, abordagens de conteúdos
referentes à História da África e Cultura Afro-brasileira. Com o objetivo de efetivar a
obrigatoriedade curricular, propomos a inclusão dos referidos conteúdos. Tal proposição
encontra-se em processo de construção na reformulação do Projeto Político Pedagógico do
Curso por uma comissão de docentes do Curso de Turismo.
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LETRAS DA LICENCIATURA INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS AFRICANOS E AFRO-
BRASILEIROS
Prof. Ms. Richard Christian Pinto dos Santos3
Resumo
O trabalho utiliza a Análise de Conteúdo (Bardin, 1977) para discutir a
presença da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e Educação das
Relações Étnico-Raciais nos currículos das disciplinas da área de Letras da
Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da
Universidade Federal do Maranhão. A Lei 10.639 (BRASIL, 2003) e
referências das disciplinas como Fanon (2010), Césaire (2010) e Ki-Zerbo
(2010), dentre outras, fundamentam teoricamente o estudo. Concluiu-se que
a inserção dos referidos componentes curriculares atende às exigências
legais de formação inicial de profissionais para implementar as Diretrizes
Curriculares da temática na Educação Básica.
Palavras-chave: Educação das Relações Étnico-Raciais, Formação de
Professores, Currículo.
Abstract
The paper uses Content Analysis (Bardin, 1977) to discuss the presence of
African and Afro-Brazilian History and Culture and Ethnic-Racial Relations
Education in the curriculum of the Language area of the LICENCIATURA
INTERDISCIPLINAR EM ESTUDOS AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS
of Universidade Federal do Maranhão. The federal law 10.639 (BRAZIL,
2003) and the references of the disciplines such as Fanon (2010), Césaire
(2010) and Ki-Zerbo (2010), among others, theoretically base the study. It
was concluded that the insertion of said curricular components meets the
legal requirements of initial training of professionals to implement the
Curricular Guidelines of the subject in Basic Education.
Keywords: Ethnic-Racial Relations Education, Teacher Training, Curriculum.
1. INTRODUÇÃO
3 Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Federal do
Maranhão. Email: [email protected]
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (CNE/CP, 2004) foram definidas
a fim de institucionalizar as determinações da lei n° 10.639/2003. Dentre um dos aspectos
fundamentais que se relacionam à construção de uma educação que valorize a diversidade
étnica da sociedade brasileira.
O Curso também atende determinações do Plano Nacional de Implementação das
Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2009) prevê que as referidas instituições devem
trabalhar no sentido de garantir questões como a inclusão de conteúdos e disciplinas
relacionados à temática para a garantia de formação adequada aos(às) professores(as) de
modo a desenvolver as habilidades e atitudes que possibilitem produção e análise critica de
materiais didáticos e paradidáticos. Além dessas ações relacionadas ao âmbito do ensino, a
legislação também determina a promoção de pesquisa, desenvolvimento e inovações
tecnológicas sobre o tema a serem socializadas por meio de ações acadêmicas, encontros,
jornadas e seminários para promover relações étnico-raciais positivas para seus(suas)
estudantes.
O Decreto nº 6.755/2009, que institui a Política Nacional de Formação de
Profissionais do Magistério da Educação Básica, disciplina a atuação da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) no fomento a programas de formação
inicial e continuada, tendo como uma de suas determinações a promoção de uma formação
docente que contemple a perspectiva dos direitos humanos, da sustentabilidade ambiental e
das relações étnico-raciais, com vistas à construção de um ambiente escolar pautado pela
inclusão e pela cooperação.
O presente artigo pretende discutir como as disciplinas da área de Letras do que
compõem o currículo do curso atuam no sentido de cumprir essas determinações legais,
exercendo o importante papel de explicitar aquilo que é proposto no projeto político
pedagógico. Essas disciplinas têm papel fundamental no cumprimento da lei 10.639, que atribui
ênfase (dentre outras disciplinas) à disciplina de Literatura Brasileira. Neste sentido, as
disciplinas sobre as literaturas africanas e afro-brasileira contribuem para formar docentes
aptos a implementar tal temática no prática pedagógica na educação básica de maneira
interdisciplinar.
As Diretrizes Curriculares Nacionais da temática (MEC, 2004) colocam a literatura
como parte da produção artística contemporânea da população negra que deve compor os
currículos. Também determina a promoção de ações educativas de combate ao racismo e à
discriminação que encaminhem à visão crítica acerca das representações dos diversos grupos
étnico-raciais nos textos presentes no ambiente escolar, o que demanda uma competência de
leitura, categorização e análise textual, algo que as disciplinas de Linguística do curso tendem
a apresentar uma contribuição neste sentido instrumentalizar para essa interpretação.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (MEC,
2012) definem que o ensino deva ter como fundamento uma formação específica do quadro
docente para exercerem uma pedagogia que contemple elementos como a memória coletiva,
as línguas reminiscentes e os acervos e repertórios orais, algo que na Licenciatura também se
encontra no âmbito do conteúdo programático das disciplinas de Linguística.
As Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais (SECAD,
2006), publicação com subsídios teórico-metodológicos para a implementação da temática
identificam a linguagem africano-brasileira como marco cultural da emergência da resistência
cultural da população negra contra etnocentrismo. Enfatiza, pois, que esta constitui elemento
identitário cuja centralidade deve ser enunciada no processo educativo de modo entrelaçado
aos diversos saberes que compõem o currículo. Novamente a Linguística surge para
desenvolver a percepção dos docentes no sentido de estabelecerem relações de aprendizado
que possibilitem um maior entendimento dos educandos sobre essa complexidade cultural.
Traz também a Literatura tanto como uma dessas expressões da linguagem por parte dos afro-
brasileiros quanto como recurso didático para dar suporte ao professor.
Desta forma, as disciplinas obrigatórias e optativas da área de Letras subdivididas
para fins deste estudo em disciplinas de Literatura (a saber: Literatura Africana e Afro-Brasileira
I, Literatura Africana e Afro-Brasileira II e Eixo Literatura Africana e da Diáspora) e
Disciplinas de Linguística (Leitura e Produção Textual, Linguística Afro-Brasileira e África e
suas Linguagens) (cf. UFMA, 2017).
2. DISCIPLINAS DE LITERATURA
O curso possui em sua estrutura curricular três disciplinas voltadas para a
compreensão da produção literária: Literatura Africana e Afro-Brasileira I, Literatura Africana e
Afro-Brasileira II e Eixo Interdisciplinar Literatura Africana e Afro-Diaspórica, sendo as duas
primeiras obrigatórias e a segunda optativa. As ementas e referências apontam no sentido da
abordagem interdisciplinar e que privilegie autores(as) negros(as), demarcando uma dupla
diferenciação epistemológica com o currículo hegemônico da Academia, majoritariamente
estagnado na compartimentalização por áreas de conhecimento e drasticamente eurocêntrico.
A disciplina Literatura Africana e Afro-Brasileira I, prevista para o 2º período do
curso, se propõe a discutir a conceituação de literatura afro-brasileira e de literatura negra com
base na produção literária de autoria negra no período colonial no Brasil e em África. Também
problematiza as representações de personagens negros(as) apresentadas pela literatura
canônica (de autoria majoritariamente branca) em oposição às auto-representações feitas pela
produção literária de negros(as) na África e na Diáspora (NASCIMENTO, 1994) . O panorama
histórico das literaturas africanas e afro-brasileira e o processo de formação de um cânone
negro (REIS, 2004; MACHADO DE ASSIS, 2009).
O trabalho nesta disciplina busca problematizar uma produção literária que
representa uma tomada de consciência contra o escravismo, o colonialismo, o racismo e as
conseqüências decorrentes destes sistemas para a população negra. Neste sentido, promove a
reflexão acerca das influências do movimento da Negritude, movimento literário cuja
centralidade consistia na valorização do legado cultural de matriz africana e no enfrentamento
do eurocentrismo predominante nos textos da época (CÉSAIRE, 2010).
As diferentes formas de representação da África e dos africanos, bem como de
todos os elementos a eles relacionados, como seus descendentes na Diáspora, sua produção
cultural, sua religião, seu pensamento, e, evidentemente, sua literatura, têm recorrentemente
baseado-se em estereótipos hierarquizantes. Ao trazer em suas referências as formas
africanas de auto-representação a disciplina amplia os horizontes simbólicos e científicos,
superando a análise etnocêntrica para dar espaço à crítica do essencialismo que traga uma
(auto-)afirmação de África (cf. MBEMBE, 2001).
No âmbito das literaturas africanas de expressão portuguesa, um dos conceitos
importantes apresentados é o da Consciencialização, proposto pelo cabo-verdiano Onésimo
Silveira (SILVEIRA, 2015) para contrapor a retórica de valorização de um hibridismo cultural e
a busca pelas características que aproximassem os africanos em geral (e o povo de Cabo
Verde de modo particular) das ex-metrópoles coloniais européias. A corrente propunha um
pensamento contra-hegemônico no sentido de visibilizar as especificidades africanas e de
reforçar a postura política dos escritores contra a imposição dos referenciais externos.
O panorama histórico das literaturas africanas (FERREIRA, 1977) e afro-brasileira
(SOUZA; LIMA, 2006) de autoria negra demonstram que mesmo em contextos marcados pela
exclusão social desta população houve uma intensa e crescente produção escrita desses
indivíduos no sentido de reivindicar seus direitos, externar suas idéias, apresentar
publicamente suas demandas, conclamar seu grupo étnico à organização, ou simplesmente
afirmar sua humanidade apesar da coisificação a que eram (ou ainda são?) estigmatizados por
conta do racismo. Obstáculos como a escravidão, a pobreza, a dificuldade de acesso à
alfabetização, a censura, a precariedade da estrutura editorial e o pouco interesse de publicar
obras de autores afro-descendentes não foram suficientes para impedir os(as) escritores(as)
negros(as) de trazerem à luz suas obras, sendo o estudo não só dessas obras, mas da própria
biografia destes(as) um importante registro das diversas formas de organização implementadas
historicamente.
A Disciplina Literatura Africana e Afro-Brasileira II, prevista para o 4º período,
debate elementos como a importância da literatura na construção das identidades nacionais no
continente africano durante os movimentos de independência. No pós-abolição e no pós-
independência, a literatura aprofunda o seu papel na construção e valorização da identidade
negra e no combate ao racismo na África e na Diáspora. Também reflete a inter-relação entre a
literatura negra e algumas expressões contemporâneas da oralidade, tais como: religiosidade,
rap, música negra, teatro. Além disso, como forma de cumprir a já referida legislação
educacional decorrente da lei 10.639, apresentando a literatura africana e afro-brasileira
empregada na prática pedagógica na Educação Básica.
Nos países africanos colonizados por Portugal (Angola, Cabo Verbe, Guiné
Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), a exemplo do que ocorreu em diferentes
contextos africanos (MAZRUI, 2010), um número significativo de escritores esteve engajado
nos movimentos de independência (AGOSTINHO NETO, 2009; AMÂNCIO, 2014; PIRES
LARANJEIRA, 2014). Essa participação levou a movimentos que ajudaram a sistematizar as
identidades nacionais, o que deixou diferentes marcas na literatura nas décadas seguintes
(ROSÀRIO, 2010), embora exista a inegável publicação de obras que expressem a cultura
tradicional na forma da oralidade, da musicalidade, dos temas religiosos, dentre outras marcas
(SEMEDO, 2010)
Como dito anteriormente, segundo o disposto nas legislações, a literatura ocupa
espaço privilegiado para o esforço de oportunizar a implementação da Educação das Relações
Étnico-Raciais em sala de aula fomenta a discussão e o pensamento crítico dos discentes
sobre as realidades das diversas sociedades africanas (HERNNANDEZ, 2005). Uma prática
pedagógica especificamente desenvolvida para transmitir conhecimentos nessa perspectiva é
um dos elementos trazidos pela disciplina (AMÂNCIO, 2008).
As duas disciplinas acima possuem atividades práticas na forma de
Prática Pedagógica como Componente Curricular, objetivando promover a
inserção e ressignificação dos conhecimentos a respeito das literaturas
africanas e da literatura afro-brasileira como componentes curriculares no
ambiente escolar da Educação Básica e em espaços não-escolares que
promovem a Educação Não-Formal (cf. SOUZA, 2013).
A disciplina optativa Eixo Literatura Africana e da Diáspora articula
de maneira mais ampla o debate sobre literatura, identidade negra e combate
ao racismo na África e na Diáspora e literatura africana e afro-diaspórica na
prática pedagógica na Educação Básica articulando-se com os conhecimentos
de outras disciplinas oferecidas no período letivo. Essa proposta inovadora
busca instrumentalizar os profissionais da educação para que atuem de forma
similar na Educação Básica.
3. DISCIPLINAS DE LINGUÍSTICA
As disciplinas desta área tencionam instrumentalizar para a análise da linguagem
verbal em suas diversas manifestações, abordando tanto a influência das relações étnico-
raciais na construção dos variados tipos de discursos quanto as contribuições linguísticas de
matriz africana tanto nos contextos africanos quanto na diáspora, bem como a aplicabilidade de
tais conhecimentos no ambiente escolar.
A disciplina Leitura e Produção Textual, prevista para o 1º Período, articula
conhecimentos sobre a linguagem enquanto processo cultural influenciado pelas
desigualdades e hierarquizações existentes na sociedade, dentre elas as desigualdades étnico-
raciais. Estratégias de construção dos processos de leitura e de produção de textos, incluindo
os de natureza científica como prática social também compões o rol de conteúdos discutidos.
Oficinas de instrumentalização para os tipos de redação científica, tais como resumo, resenha,
fichamento, artigo, projeto de pesquisa, monografia figuram igualmente dentre no programa.
Considerando a complexidade e diversidade das populações em sociedades onde
são marcantes as hierarquizações dos grupos sociais, os estudos sobre a temática apontam
para hierarquização das variedades lingüísticas utilizadas pelos grupos historicamente
subalternizados. Essas dinâmicas de preconceito e discriminação somam-se a outras
manifestações de etnocentrismo, com a particularidade de serem promovidas não apenas nas
relações inter-pessoais por meio do convívio social, sendo inerentemente realizadas nos
espaços institucionais como a escola, a universidade, o sistema jurídico, e todos os demais
espaços onde a língua escrita é a forma de comunicação privilegiada, sendo a norma padrão
da gramática normativa a única aceita (cf. BAGNO, 2002; FREIRE, 1989; GNERRE, 1991).
O pensamento de Frantz Fanon (2008) pautado na reflexão crítica sobre a
importância do fenômeno da linguagem enquanto um sistema de interação social que
compreende a dimensão identidade/alteridade explicita os efeitos das discriminações e
padronizações. Além disso, considerando a centralidade de tal discussão sobre o
pertencimento étnico-racial dos emissores enquanto critério estabelecido para hierarquizar as
variedades lingüísticas e os discursos, a disciplina dá subsídios para as problematizações que
serão promovidas ao longo de todo o curso.
Outro âmbito também abordado é o que envolve práticas de letramento acadêmico
(MARINHO, 2010), que apresenta aos graduandos algumas tipologias textuais recorrentemente
utilizadas no ensino superior. Para além da transmissão de normas técnicas (MESQUITA,
2011; MARCONI, 2010), são apresentadas tendências das pesquisas em história da África
enquanto competências linguísticas que atendem a uma demanda social (CURTIN, 2010).
A disciplina Linguística Afro-brasileira, prevista para o 5º Período, articula os
conhecimentos sobre Linguística e História da África. Os troncos linguísticos africanos, a
presença de línguas africanas no Brasil e a presença africana no português falado no Brasil
figuram como forma de compreender etno-linguisticamente a população afro-brasileira. A
importância das línguas africanas nas religiões afro-brasileiras figura ente os conhecimentos
marcados pela Etnolinguística e Etnoterminologia das populações afro-brasileiras.
Ki-Zerbo (2010) apresenta a pluralidade lingüística como um relevante referencial
para compreensão dos contextos africanos, dando subsídios para o entendimento das relações
sócio-culturais e históricas dos grupos étnicos verificados no continente, de modo tão profundo
que a tradição oral é um importante registro para a historiografia sobre África.
As influências dos grupos lingüísticos Banto (LOPES, 2012) e Yorubá
(NAPOLEÃO, 2011) na formação da língua portuguesa falada no Brasil demarcam uma
profunda contribuição dos africanos e afro-descendentes que historicamente compuseram a
população local (CASTRO, 1983; LUCHESI, BAXTER, RIBEIRO, 2009; MENDONÇA, 2012).
Esta influência está presente de modo universalizado, porém, ressalta-se também a
especificidade das comunidades tradicionais como os terreiros de matriz africana e as
comunidades quilombolas, cuja ancestralidade africana acentua essa marca lingüística (cf.
SANTOS, 2013; SILVA, 2009).
A Prática Pedagógica como Componente Curricular nesse caso tem como objetivo
inserir os conhecimentos sobre a diversidade lingüística em África e a presença das línguas
africanas na Diáspora como componentes curriculares em espaços educativos escolares e
não-escolares.
A disciplina optativa África e suas Linguagens, trabalha: as Literaturas africanas e
afro-diaspóricas; o Multilinguismo em África; a presença africana no português falado no Brasil;
A formação de línguas crioulas na África e na Diáspora; as artes negras tradicionais e
contemporâneas; a música negra no cenário mundial; A estética afro e identidade étnico-racial;
identidades e corporeidades negras; o debate sobre as relações étnico-raciais nos meios de
comunicação e nas mídias sociais (cinema, televisão, imprensa, internet). Todos esses
elementos demarcam a linguística enquanto um registro da cultura e da identidade de matriz
africana.
A ênfase é colocada aqui sobre as diferentes expressões da linguagem e suas
articulações com a cultura e a identidade africana e afro-diaspórica. Manifestações tradicionais
(HAMPATÉ BÁ, 2010; MOKHTAR, 2010) têm sua permanência analisada, em
conjunto com expressões artísticas variadas (SOYINKA, 2010), inclusive
problematizando sua presença nos espaços voltados para a patrimonialização
dos bens culturais (LODY, 2005).
Paralelamente, as heranças africanas na Diáspora são objeto de
estudo (CARDIM, DIAS FILHO, 2011), sendo lançado o olhar sobre expressões
culturais contemporâneas, inclusive aquelas que são mediadas pelas recentes
tecnologias. Assim, manifestações como a música e o cinema, cuja produção
de autoria negra desenvolveu não só temáticas, mas também abordagens
específicas (SANTOS, 2005; RODRIGUES DA SILVA, 2007).
4. CONCLUSÃO
O curso traz uma nova abordagem sociolingüística, potencializando o
conhecimento a respeito da história e da cultura africana e afro-diaspórica através da
visibilização da produção literária e das contribuições lingüísticas de autoria negra, bem como
as reflexões feitas por indivíduos destes por meio de sua própria epistemologia. A ampliação
das narrativas e a análise das mesmas é de importância fundamental para a inovação
científica.
Além disso, considerando o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana apresenta uma série de exigências, sendo o curso
um mecanismo importante de cumprimento da legislação, contemplando parte das
determinações voltadas para o Ensino Superior e formando profissionais da educação
capacitados a cumprir o exigido para a Educação Básica. Implementar esse debate por meio
das referidas disciplinas atende demandas científicas, sociais e jurídicas fundamentais para a
superação do racismo.
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