ACRE - Etnomapeamento Da Terra Indígena de Mamoadate (2007)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Etnomapeamento Da Terra Indígena de Mamoadate (2007)

Citation preview

  • Presidente da RepublicaLuis Incio Lula da Silva

    Ministra do Meio AmbienteMarina Silva

    Governador do Estado do AcreJorge Viana

    Vice-governador Arnbio Marques

    Secretrio de Meio Ambiente e Recursos NaturaisPresidente do IMACCarlos Edegard de Deus

    Secretario dos Povos IndgenasFrancisco da Silva Pinhanta

    Coordenao Geral - SEMA

    Gerente do Zoneamento Ecolgico-EconmicoMagaly Medeiros

    Equipe tcnica SEMA

    Gerente do EtnozoneamentoTerri Valle de Aquino Txai Terri

    Coodenadora de Assuntos IndgenasRosngela Maria Cezino da Silva

    Engenheira AgrnomaMarlia Lima Guerreiro

    Tcnico em GeoprocessamentoCsar Duetti

    Estagirio SEMA/IMACLucas Mana

    ConsultoresCloude de Souza CorreiaAntroplogo

    Eliza LozanoCincias Sociais

    Jorge VivanEngenheiro Agrnomo

    Wladimyr Sena ArajoAntroplogo

  • Governo do Estado do Acre

    Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais

    Instituto de Meio Ambiente do Estado do Acre

    Secretaria Extraordinria dos Povos Indgenas

    Rio Branco Ac

    2006

  • Apoio

    SEE - Secretaria de Estado e EducaoSEATER- Secretaria de Estado de Assistncia Tcnica e Extenso AgroflorestalSEPI - Secretaria Extraordinria dos Povos IndgenasPrefeitura Municipal de Assis Brasil-ACFUNAI - Fundao Nacional do ndioCPI - Comisso Pr-ndio do Acre

    Fotos

    Equipe de ConsultoresLucas Mana SEMA/IMACCarla Guaitanele IBAMAAlexandre Almeida

    Projeto Grfico

    GKNoronhaAlexandre Almeida

    Reviso Lngua Portuguesa

    Eurilinda Figueiredo

    Capa

    GKNoronha

    Agradecimentos

    OCAEJ - JaminawaMapkaha - Manchineri

  • ndice

    Apresentao 7

    Metodologia 9

    A TI Mamoadate e seus habitantes 19

    Mapa de ocupao histrica 24

    Migraes Manchineri 26

    Migraes Jaminawa 29

    Migraes Manchineri e Jaminawa na TI Mamoadate 34

    Mapa de vegetao 37

    Mapa de hidrografia 39

    Mapa de caada 43

    Locais de caadas 43

    Classificaes e tcnicas de caada 45

    Caas, crenas e costumes 48

    Escassez de caa 50

    Mapa de pesca 53

    Locais de pesca 53

    Classificaes e tcnicas de pesca 56

    Escassez de peixe 58

    Mapa de extrativismo 61

    Recursos florestais na alimentao 61

    Recursos florestais para habitao e transporte 63

    Artesanato 63

    Escassez de recursos florestais 65

    Mapa de ocupao humana 65

    Agricultura 69

    Sistemas Agroflorestai 69

    Criaes 72

    Mapa de ameaa 79

    Indicativos de Plano de Gesto Ambiental e Territorial 81

    Indicativos elaborados pelos Manchineri 82

    Indicativos elaborados pelos Jaminawa 88

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 7

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 7

    O etnozoneamento da Terra Indgena (TI) Mamoadate, localizada nos municpios de Assis Brasil e Sena Madureira, um instrumento de planejamento dos povos indgenas para a gesto dos seus territrios. Ele foi realizado de forma participativa com os Manchineri e Jaminawa, considerando a presena de ndios isolados. Seu propsito tem sido contribuir com o processo de autonomia dos povos indgenas Manchineri e Jaminawa, respeitando a diversidade cultural. O etnozoneamento procurou ater-se s especificidades de cada povo indgena, produzindo e sistematizando informaes documentais, bibliogrficas e empricas consideradas relevantes por eles no processo de gesto dos seus territrios. Os dados produzidos so de natureza cultural, social, poltica, econmica e ecolgica. Com as informaes resultantes deste etnozoneamento pretende-se subsidiar esses povos e o governo do estado para tomadas de decises.

    A seleo da TI Mamoadate para a elaborao do etnozoneamento deve-se ao fato da mesma fazer parte de um conjunto de terras impactadas pelas rodovias BRs 364 e 317. A proposta de realizao do etnozoneamento nessa TI resultou, em grande medida, do constante no componente indgena do Plano de Aes Mitigadoras dos impactos gerados pelas BRs 364 e 317 e dos indicativos do Zoneamento Ecolgico - Econmico (1 fase). A demanda pela realizao do etnozoneamento em diversas terras indgenas no estado estimulou o governo a criar a Gerncia de Etnozoneamento, no novo organograma da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. As aes relacionadas com o etnozoneamento foram inseridas no Plano de Governo e compatibilizadas com o Programa de Desenvolvimento Sustentvel para o Estado do Acre

    Apresentao

    Ig. Samarr

    RIO

    IACO

    Ig. ya

    Ig. Iphinawa

    Ig. Marcia

    Hapha

    Ig. gua Preta

    Ig.Bananal

    IgarapMamoadate

    Ig.H

    otaw

    akalu

    Ig. Kuniwaya

    Peji HaphaIg. gua

    Boa

    Ig. K

    hlihapha/SantaTereza

    Ig. Salo/Yapaya

    Ig.Wii Itxapa

    Ig. chotwhapha

    Ig. Katsinnihapha

    Ig. Salo/Bakesuya

    Anta

    Anta

    Cutia

    Veado

    Veado

    Nambu

    Veado

    VeadoJacar

    Jabuti

    Jabuti

    Jabuti

    Jabuti

    Jabuti

    Capelo

    Capelo

    Capelo

    Capelo

    Capelo

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    Queixada

    QueixadaPorquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Porquinho

    Macaco Prego

    Macaco Prego

    Macaco Zogue

    Macaco Preto

    Macaco Preto

    Macaco da Noite

    Macaco de Cheiro

    6950'0"W

    6950'0"W

    1030'0"S

    1030'0"S

    TERRA INDGENA MAMOADATE

    Peru

    Bolivia

    AM

    AC

    Mamoadate

    ACMamoadate

    Assis Brasil

    Sena Madureira

    1:70.0000 1.070 2.140535

    MT

    Legenda

    HidrografiaPermanente

    Intermitente

    Terra Indgena

    Posio do Ultimo Abate

    aldeia

    Betel

    Salo

    Cujubim

    Peri

    Boca do Mamoadate

    Jatob

    Santa Cruz

    Laranjeira

    gua Boa

    Alves Rodrigues

    Cumaru

    gua Preta

    Lago Novo

    Extrema

    Francisco Monteiro

  • 8 E t n o z o n e a m e n t o

    (BID 1399 OC/ BR). Em parte, a implementao dessas aes ocorreu atravs do Projeto de Apoio s Populaes Indgenas, no mbito do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentvel para o Estado do Acre, financiado com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social - BNDES. Atualmente, o etnozoneamento est sendo executado como parte do ZEE/Acre - 2 fase, com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

    As atividades realizadas no etnozoneamento da TI Mamoadate esto parcialmente vinculadas a outras aes desenvolvidas pelo governo do estado em terras indgenas, como os diagnsticos e a proposta de etno-levantamentos dos recursos naturais financiados pelo Projeto de Gesto Ambiental Integrada PGAI, no mbito do Subprograma de Polticas de Recursos Naturais SPRN. Os primeiros trabalhos de etno-levantamento foram desenvolvidos nas Terras Indgenas Cabeceira do Rio Acre e Campina/Katukina, atravs do Projeto de Apoio s Populaes Indgenas.

    Para a devida realizao do etnozoneamento da TI Mamoadate e de outras terras ocupadas por povos indgenas, vrias instituies foram envolvidas no processo de articulao poltica, execuo e monitoramento. A instituio executora foi a SEMA, sendo que toda articulao poltica foi desenvolvida pela SEPI, e as atividades de monitoramento e tomadas de decises pelo Grupo de Trabalho (GT) do Etnozoneamento, composto pela SEPI, SEMA/IMAC, FUNAI, UNI, CPI, UFAC, FEM, OPIAC, AMAAIAC, Mapkaha e OCAEJ.

    Para um melhor entendimento do processo de elaborao deste etnozoneamento preciso considerar que o mesmo teve incio com a obteno do consentimento prvio dos Manchineri e dos Jaminawa. Confirmado o interesse de ser desenvolvido o etnozoneamento da terra por eles ocupada, diversas reunies de planejamento foram realizadas com eles e com as instituies envolvidas no processo. Aps o planejamento, tiveram incio vrias atividades na TI, todas elas contando com a participao de ambos os povos. Dentre as atividades desenvolvidas podem ser destacadas reunies, oficinas, entrevistas e elaborao de mapas. A maior parte dessas atividades contou com a participao de professores, lideranas, representantes das organizaes dos povos Manchineri e Jaminawa, agentes de sade, agentes agroflorestais, agentes ambientais, agentes sanitrios indgenas, parteiras, pajs e muitos outros indivduos dos povos Manchineri e Jaminawa.

  • 8 E t n o z o n e a m e n t o

    Metodologia

    As atividades relacionadas com o etnozoneamento da TI Mamoadate iniciaram em fevereiro de 2004 e se estenderam at setembro de 2005. Elas podem ser divididas em, pelo menos oito etapas, para facilitar a compreenso:

    1) Elaborao da proposta de trabalho;

    2) Produo e organizao de informaes secundrias;

    3) Produo de mapas temticos preliminares e informaes gerais (I oficina);

    4) Digitalizao dos mapas temticos preliminares e organizao das informaes gerais;

    5) Correo e complementao dos mapas e das informaes gerais (II oficina);

    6) Digitalizao dos mapas complementados e corrigidos;

    7) Nova correo e complementao dos mapas e das informaes gerais (III oficina);

    8) Elaborao dos mapas e documentos finais.

    Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 9

  • 10 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 11

    Na primeira etapa, foram realizadas diversas reunies objetivando melhor definir o plano de trabalho e ampliar o entendimento dos envolvidos sobre os propsitos do etnozoneamento. Essas reunies propiciaram uma considervel articulao poltica e contaram com a participao de representantes de instituies governamentais e no-governamentais, que atuam junto aos povos indgenas, de representantes Manchineri e Jaminawa e dos consultores. As instituies que disponibilizaram representantes para colaborar com essa etapa foram: SEMA/IMAC, SEPI, CPI-Acre, AMAIAC, OPIACRE, UNI, FEM, FUNAI, Mapkaha e OCAEJ, todas integrantes do GT do Etnozoneamento da TI Mamoadate. As reunies foram importantes para se discutir de uma forma mais ampla o etnozoneamento, procurando evitar aes isoladas.

    Em muitas reunies discutiu-se a reviso do componente indgena, os impactos da BR 364 e 317, a autonomia indgena, os etnolevantamentos das Terras Indgenas Cabeceira do Rio Acre e Katukina e a relevncia de plano de uso para as terras indgenas. Tambm foram levantados alguns problemas existentes na TI Mamoadate, como as madeireiras peruanas e a necessidade de polticas internacionais. Nas reunies, o etnozoneamento foi considerado um instrumento de planejamento para os povos indgenas tomarem suas decises e depois gerarem planos de uso, gesto, gerenciamento, etc.

    Em outras reunies dos consultores com representantes Manchineri e Jaminawa, foi possvel uma maior reflexo sobre o que eles esperavam do etnozoneamento e sobre o entendimento deles acerca das atividades. Nesse momento, obteve-se o consentimento prvio informado dos dois povos e levantaram-se informaes sobre logstica, infra-estrutura, transporte e organizao poltica.

  • 10 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 11

    Reunies mais especficas, voltadas para a elaborao do plano de trabalho, ocorreram entre os consultores e representantes da CPI-Acre. Como esta instituio desenvolve etnomapeamentos em oito TIs no Acre, o propsito desses encontros foi aproximar a metodologia utilizada pela CPI-Acre da que seria desenvolvida no etnozoneamento da TI Mamoadate. Em grande medida, a metodologia do etnozoneamento aproxima-se da utilizada nos etnomapeamentos.

    Outras reunies voltadas para a elaborao do plano de trabalho ocorreram entre os consultores e representantes do IMAC, nas quais foi sinalizada a necessidade de incorporar a esse plano os pontos ressaltados pelo GT do etnozoneamento. Ao longo das discusses, o etnozoneamento foi considerado um desdobramento do plano de mitigao, entendido como um instrumento que pode ajudar a manter a gesto do territrio. Para isso, foi frisado que ele seria traduzido para as lnguas indgenas, devendo ser realizado junto com a comunidade, por ser um documento dos povos indgenas Manchineri e Jaminawa. A compreenso nesse momento sobre o etnozoneamento era a de que ele poderia gerar, posteriormente, um plano de gesto da TI.

    Depois de estabelecido minimamente um plano de trabalho, teve incio a segunda etapa, com a consulta de documentos e de fontes bibliogrficas sobre os Manchineri, os Jaminawa, os ndios isolados e a TI. Nesta etapa do etnozoneamento foram obtidas diversas informaes secundrias junto a CPI-Acre, tendo sido consultada parte do Acervo Txai que estava sendo organizado pela instituio, o qual possui diversos documentos doados pelo antroplogo Terri Aquino. A pesquisa documental e bibliogrfica foi realizada ainda, nas seguintes instituies: SEMA/IMAC, SEPI, AER-RBR, FEM, Patrimnio Histrico, Museu da Borracha e Biblioteca Estadual. Durante o perodo de levantamento das informaes secundrias, ocorreram outras reunies com os representantes do IMAC e com os professores Manchineri, para fazer alguns ajustes no plano operacional e planejar melhor os trabalhos de campo que seriam realizados em julho de 2004. Como parte dessa segunda etapa, os consultores sistematizaram e organizaram as informaes produzidas.

  • 12 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 13

    Cerca de quatro meses depois, a terceira etapa foi iniciada. Os consultores voltaram a ser reunir na cidade de Rio Branco visando preparao dos ltimos detalhes para os trabalhos de campo. Como parte das aes que antecederam as atividades na TI, realizou-se uma reunio com o prefeito de Assis Brasil, visando ao mesmo tempo, conquistar o seu apoio e mant-lo informado sobre as atividades previstas. Alm de reunies, esta etapa contou com a realizao da I oficina, momento em que foram integrados equipe: Marlia Guerreiro, tcnica e agrnoma da SEMA/IMAC (ento cedida para a SEPI), e o antroplogo Terri Aquino1.

    Na TI, a equipe foi dividida temporariamente para viabilizar as oficinas que foram feitas com os Manchineri e os Jaminawa, separadamente. A cientista social Eliza Costa, juntamente com o antroplogo Terri Aquino, foram para as aldeias Jaminawa. Cloude Correia antroplogo e os agrnomos Jorge Vivan e Marlia Guerreiro, para as aldeias Manchineri. Posteriormente, o antroplogo Terri Aquino participou da oficina com os Manchineri e a engenheira agrnoma Marlia Guerreiro daquela realizada com os Jaminawa, propiciando, assim, um certo intercmbio de informaes sobre as duas etnias. Ao final das oficinas, durante trs dias, todos os participantes Manchineri e Jaminawa foram reunidos para a apresentao e discusso dos mapas.

    1 A colaborao de ambos foi fundamental durante os trabalhos realizados na TI Mamoadate. Deve ser destacada, tambm, a contribuio de Renato Gavazzi, da CPI-Acre, com quem pudemos obter diversas informaes sobre os Manchineri e sobre o etnomapeamento desenvolvido pela CPI-Acre em terras indgenas localizadas no Juru. Inclusive, os mapas produzidos em campo foram baseados naqueles do etnomapeamento, com suas devidas adequaes.

  • 12 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 13

    A realizao de oficinas separadas, uma com os Manchineri na aldeia Extrema e outra com os Jaminawa na aldeia Betel, ocorreu com o intuito de respeitar as diferenas culturais entre ambos os povos. Por isso, a metodologia utilizada com os Manchineri foi distinta da utilizada com os Jaminawa. A produo de mapas e de informaes junto a estes ltimos foi realizada por aldeias, separadamente, e no com representantes de todas as aldeias (ao mesmo tempo), como aconteceu com os Manchineri. As implicaes resultantes do uso de metodologias distintas refletiram na qualidade dos mapas, de modo que surgiu a necessidade de nivelar as informaes e os mtodos usados, o que ocorreu na quinta etapa. Aps varias reunies entre consultores e representes da SEMA/IMAC, decidiu-se por seguir a metodologia que havia sido utilizada junto aos Manchineri. Por esse motivo, abaixo so descritas as atividades de elaborao de mapas e de produo de informaes desenvolvidas com os Manchineri.

    A oficina realizada na aldeia Extrema contou com a presena de lideranas, agentes agroflorestais, professores, agentes de sade, agentes sanitrios indgenas, agentes ambientais e representantes da Organizao do Povo Manchineri do Rio Iaco, denominada Mapkaha (Manchineri Ptohi Kajpaha Hajene), alm de muitos outros indivduos do povo Manchineri e Jaminawa. Na oficina, primeiramente foi apresentado o etnozoneamento e as diversas atividades programadas. Em seguida, escreveu-se em um quadro negro o que os participantes da oficina entendiam por etnozoneamento. Cada um dizia uma ou duas palavras sobre o etnozoneamento. Com a chuva de idias, vrios aspectos relacionados ao etnozoneamento foram levantados. Esta atividade foi importante, pois permitiu a todos visualizarem o amplo horizonte de informaes com o qual o etnozoneamento est relacionado. Em seguida, os participantes foram organizados em grupos compostos por representantes das aldeias. Depois, escreveram em uma folha em branco o que cada aldeia entendia por etnozoneamento. Um integrante de cada grupo, representando uma aldeia, lia e explicava para os demais o que entendiam por etnozoneamento. Dessa forma, foi possvel alinhavar um pouco mais os diferentes entendimentos sobre o etnozoneamento.

  • 14 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 15

    Terminada esta atividade, teve incio a elaborao de mapas mentais dos recursos hdricos. Os participantes foram divididos em grupos, formados com um ou mais integrantes de cada aldeia, de modo a formar grupos com pessoas que conheciam diversos locais da TI. Para esta atividade foram fornecidos lpis de cor, cartolinas e canetas coloridas, a fim de que eles desenhassem um mapa com todos os rios, igaps, igaraps e lagos existentes na TI, incluindo o nome deles na lngua indgena e em portugus, quando existisse. Os igaraps que no possuem nenhuma nominao permaneceram assim. Solicitamos, ainda, que fizessem uma legenda contendo: rio Iaco, igaraps, lagos e igaps. Obtemos com essa atividade, trs mapas mentais, o que foi fundamental, pois os incompletos podiam ser complementados com os outros.

    Com base nos mapas mentais, alguns integrantes dos grupos copiaram as informaes para um papel vegetal, com a malha hdrica da TI impressa nele em uma escala de 1:80.000. Com essa atividade, foi possvel obter o mapa dos recursos hdricos. Quando o mapa com a malha hdrica, impressa no papel vegetal, no correspondia com a realidade local, eles faziam as devidas correes. Aps o mapa ficar pronto, os representantes de cada aldeia checavam as informaes e, em seguida, o grupo responsvel por sua elaborao o apresentava para todos os demais, ocasio em que algumas informaes eram complementadas2.

    A elaborao do mapa de recursos hdricos passou por quatro fases:

    1) Produo de trs mapas mentais,

    2) Produo de um nico mapa no papel vegetal,

    3) Correo de equvocos,

    4) Apresentao e discusso do mapa com todos os participantes para complementao.

    Paralelamente produo do mapa de recursos hdricos, foram feitos mapas mentais das aldeias, com informaes sobre residncias, roados, pastos, criaes, demografia, cacimbas, escolas, postos de sade e outros.

    2 As apresentaes e discusses dos mapas eram realizadas na lngua indgena e depois traduzidas para o portugus.

  • 14 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 15

    O mapa de recursos hdricos foi elaborado antes dos demais por conter informaes que so referenciais geogrficos para os Manchineri. A partir do mapa de recursos hdricos foram elaborados os outros mapas: caada, pesca, extrativismo, ocupao histrica, vegetao, ocupao humana e ameaas. Para a elaborao do mapa de caada os participantes foram divididos em grupos por aldeia, porque o conhecimento sobre as caas e os locais onde so encontradas est vinculado a elas. Um morador de determinada aldeia, em geral, conhece muito pouco dos locais de caa das outras. Por isso, em um primeiro momento, um grupo de cada vez colocava no mapa as informaes sobre caa. Ao trmino do mapa, ele foi apresentado e discutido pelos participantes, na lngua materna e em portugus. Um representante de cada aldeia expunha os principais problemas enfrentados por eles e descrevia seus piques e acampamentos de caa. Depois de concludo o mapa de caada, com o mesmo procedimento adotado para a elaborao dele, iniciou-se a feitura do mapa de pesca.

    Devido ao grande tempo despendido na elaborao desses mapas, adotou-se outro procedimento para a confeco dos mapas de pesca, extrativismo, vegetao, ocupao histrica, ameaa e ocupao humana. Os participantes foram organizados em grupos por aldeias, ficando duas aldeias responsveis por um mapa. Quando os representantes das duas aldeias terminavam de colocar as informaes em um determinado mapa temtico, passavam a fazer o mesmo em outro. Ou seja, aps a introduo das informaes de duas aldeias em um mapa, os seus representantes passavam a trabalhar em outro mapa, de modo que foi dinamizada a atividade de confeco dos mapas, que se tornou bastante produtiva.

    Finalizadas as atividades de elaborao dos mapas, eles eram apresentados a todos os presentes, gerando discusses sobre as informaes neles contidas. Paralelamente elaborao, e depois de seu trmino, a equipe responsvel pelo etnozoneamento realizou um levantamento de informaes gerais sobre o povo. Aps todos os mapas confeccionados e com diversos dados gerais, a equipe passou a apresentar o resultado dos trabalhos em cada aldeia, sendo este um momento para corrigir e complementar informaes com aqueles que no estiveram presentes na oficina. Quando a equipe chegava em uma aldeia, procurava (sempre que possvel) conhecer os roados, os SAFs e realizar entrevistas.

  • 16 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 17

    Para finalizar as atividades da terceira etapa do etnozoneamento, foi realizada uma grande reunio na aldeia Jatob, com a participao dos dois povos que residem na TI Mamoadate, como mencionado acima. Durante esta reunio, os mapas produzidos foram apresentados e discutidos pelos Manchineri e Jaminawa. Assim, foi possvel complementar ainda mais os mapas, fazer novas correes e levantar mais informaes para o etnozoneamento. Ao todo, essa etapa teve a durao de 20 dias no interior da TI.

    A quarta etapa, voltada para a digitalizao dos mapas temticos preliminares e para a organizao das informaes gerais, foi desenvolvida fora da TI. Os integrantes da equipe, ao longo dessa etapa, estiveram sempre em contato, discutindo as informaes produzidas e sinalizando as lacunas existentes. Nesse momento tambm ocorreram os preparativos para o retorno s aldeias, tendo sido decidido que seria utilizado com os Jaminawa a mesma metodologia empregada junto aos Manchineri, por ter essa se mostrado mais eficiente. Por esse motivo, os mapas produzidos com os Jaminawa na etapa anterior no chegaram a ser digitalizados.

    Na quinta etapa, voltada para a correo e complementao dos mapas e das informaes gerais (II oficina), a equipe foi modificada. A cientista social Eliza Costa e o antroplogo Terri Aquino no puderam participar das atividades, tendo a primeira se desvinculado completamente das atividades de etnozoneamento por questes de ordem pessoal. Portanto, o retorno a TI foi realizado pelo antroplogo Cloude Correia e pelos agrnomos Jorge Vivan e Marlia Guerreiro. Nessa etapa, a equipe contou com a colaborao do tcnico agrcola Adriano Dias, da CPI-Acre, que acompanhou e auxiliou a equipe durante todas as atividades, por ocasio de sua viagem rea para trabalhar com os AAFI.

    A correo e complementao dos mapas e das diversas informaes produzidas iniciaram-se com uma oficina na aldeia Betel, habitada pelos Jaminawa. Estiveram presentes lideranas, agentes agroflorestais, professores, agentes de sade, agentes sanitrios indgenas, agentes ambientais e muitos outros Jaminawa. Adotando uma prtica semelhante a da oficina anterior, realizada com os Manchineri, os participantes foram divididos em grupos compostos por integrantes de cada aldeia que se revezavam na tarefa de elaborao dos mapas, aproveitando (sempre que possvel) informaes produzidas anteriormente, com a outra metodologia. Aps a confeco dos mapas, corrigindo e complementando as informaes j existentes, representantes de cada aldeia Jaminawa apresentavam e discutiam o resultado de seu trabalho.

    Ainda nessa etapa comearam a ser elaborados os indicativos do Plano de Gesto Ambiental e Territorial da TI Mamoadate. Para tanto, os participantes da oficina foram organizados em grupos, por aldeias, de modo a discutir os temas mais relevantes como: recursos florestais, mata ciliar, caa, criao, pesca, quelnio, roado, praia, sistema agroflorestal, artesanato, recursos hdricos, aldeia, vigilncia, fiscalizao e entorno. medida que iam discutindo, registravam no papel os acordos estabelecidos por aldeia. Resultou dessa atividade um consenso sobre o uso dos recursos naturais, a criao de animais, os plantios, as aldeias e a fiscalizao da terra.

    Depois de encerradas as atividades com os Jaminawa, a equipe promoveu outra oficina, agora com os Manchineri. Adotou-se a mesma metodologia usada com os Jaminawa, tanto para a produo dos mapas quanto para a elaborao dos indicativos do plano de gesto ambiental e territorial da TI Mamoadate. Ao final dessa oficina, os mapas e informaes gerais haviam sido corrigidos, e complementados. Tambm foram produzidos documentos de cada aldeia com diversos acordos sobre o uso dos recursos naturais, a criao de animais, os plantios, as aldeias e a fiscalizao da terra.

    Encerradas estas atividades, comeou a ser desenvolvida a sexta etapa, com a digitalizao dos mapas elaborados pelos Jaminawa e dos complementados e corrigidos pelos Manchineri. Nesse momento, as informaes produzidas foram sistematizadas, especialmente aquelas constantes nos

  • 16 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 17

    indicativos do Plano de Gesto Ambiental e Territorial da TI Mamoadate. Como s neste momento os mapas dos Jaminawa foram digitalizados, surgiu a necessidade de um terceiro retorno a campo para a correo e complementao dos mesmos. Era necessrio, ainda, unificar os indicativos do plano de gesto por povo, agora estabelecendo acordos mais amplos, entre as aldeias.

    Na stima etapa, ento, nova correo e complementao dos mapas e das informaes gerais (III oficina) foram realizadas, assim como a elaborao dos indicativos do plano de gesto ambiental e territorial da TI Mamoadate. Novamente a equipe sofreu alteraes. Dessa vez, contando com os antroplogos Cloude Correia e Terri Aquino, com a agrnoma Marlia Guerreiro e com o estagirio da SEMA/IMAC, Lucas Mana. Nesse retorno s aldeias, fez-se uma oficina com os Jaminawa e outra com os Manchineri. A metodologia adotada foi exatamente a mesma empregada na quinta etapa.

    Com os mapas dos Jaminawa e dos Manchineri corrigidos por eles, as informaes sistematizadas e um documento produzido sobre a gesto do territrio de cada um dos povos envolvidos, a oitava etapa esteve direcionada para a elaborao da verso final dos mapas, do relatrio final e do documento sntese, todos submetidos avaliao do GT do Etnozoneamento, durante o Seminrio de Validao, realizado em julho de 2006, na cidade de Assis Brasil.

  • A TI Mamoadate e seus habitantes

  • 20 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 21

    A TI Mamoadate, localizada no rio Iaco, afluente da margem direita do rio Purus, est situada nos municpios de Assis Brasil e Sena Madureira, sendo ocupada por Manchineri, Jaminawa e ndios isolados, totalizando uma populao aproximada de 754 indivduos, excluindo-se os ltimos. Ela foi identificada em 1977, demarcada em 1986 e homologada em 1991, com uma superfcie de 314.647 ha. Os limites oeste so contguos fronteira com o Peru. A parte sul limita-se com a Estao Ecolgica do Rio Acre e sudeste est localizada a TI Cabeceira do Rio Acre. Ao norte, est situado o Parque Estadual do Chandless. No confrontando com os limites da TI Mamoadate, mas na sua proximidade, localiza-se a Reserva Extrativista Chico Mendes.

    Todas estas terras indgenas e unidades de conservao compem o Corredor Ecolgico do Oeste da Amaznia e esto localizadas principalmente nos municpios de Assis Brasil ou de Sena Madureira, onde os Manchineri e Jaminawa mantm diversas relaes sociais, econmicas e polticas. Parte das relaes estabelecidas entre os Manchineri e Jaminawa residentes na TI Mamoadate e os ocupantes das outras reas esto associadas ao acesso a suas aldeias. Este pode ser realizado pela cidade de Sena Madureira, subindo o rio Iaco, ou pela cidade de Assis Brasil, atravessando o ramal do Icuri, com uma extenso de aproximadamente 70 km. Por Sena Madureira o trajeto feito de barco, por Assis Brasil, at a localidade denominada Icuri, pode-se ir de carro, mula ou a p at determinado trecho, depois do qual o deslocamento feito de barco at as aldeias.

    Estas esto distribudas na TI ao longo do rio Iaco, sendo as aldeias Manchineri, em ordem de descida do rio: Extrema, Lago Novo, Cumar, Senegal, Alves Rodrigues, gua Preta, Laranjeira, Santa Cruz, Jatob e Peri3. Todas as aldeias Manchineri localizam-se na margem esquerda do rio, com exceo da aldeia Senegal. J as aldeias Jaminawa, em menor nmero, so: gua Boa, Boca do Mamoadate, Cujubim, Salo e Betel. Todas esto na margem esquerda do rio, exceto a aldeia Boca do Mamoadate. Em ambas as margens do rio Iaco existem as chamadas colnias, que podem ser entendidas como moradias, ou residncias (vinculadas ou no) a uma aldeia. O termo colnia, muitas vezes, utilizado pelos Manchineri como uma diferenciao em relao aldeia, ou seja, um local onde poucas famlias moram, onde no h infra-estrutura como escola, ou profissionais como professores, agentes de sade, agentes agroflorestais, etc. Algumas colnias possuem nome, outras no. Cada uma pode ser composta por uma ou mais casas, mas no so reconhecidas como aldeias pelas instituies que atuam na TI, nem pelos Manchineri em geral. Entre os Jaminawa, no h a prtica de separar moradias de aldeias, no existindo nenhuma colnia. O nmero de casas em cada aldeia, conforme levantamento realizado em 2004, pode ser visualizado no quadro abaixo:

  • 20 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 21

    Manchineri JaminawaAldeia/Colnias Casa Aldeia CasaPeri 8 Betel 23

    Jatob 20 Cujubim 6

    Santa Cruz 7 Salo 6

    Laranjeira 6 Boca do Mamoadate 6

    gua Preta* ? gua Boa 4Alves Rodrigues 2 Total 45Senegal* ?

    * No perodo em que essas informaes foram produzidas as aldeias gua Preta e Senegal ainda no estavam em processo de formao, o que s comeou a ocorrer em fins de 2004. Por isso, suas residncias foram contabilizadas nos dados referentes s colnias.

    Cumar 4

    Lago Novo 9

    Extrema 31

    Colnias 22Total 109

    Em relao ao nmero de casas, a maior aldeia Manchineri a Extrema, enquanto a maior Jaminawa a Betel. Em toda a TI existem 87 residncias Manchineri em aldeias e mais 22 em colnias, tendo gua Preta e Senegal sido contabilizadas como colnias em 2004, pois somente no ano seguinte essas aldeias comearam a ser formadas. Portanto, na TI existem 109 residncias Manchineri e 45 Jaminawa, totalizando 154 moradias.

    3 As aldeias Cumar, gua Preta e Senegal estavam em processo de formao quando os trabalhos do etnozoneamento iniciaram. As duas ltimas aldeias comearam a ser formadas no final de 2004, dificultando o levantamento de informaes sobre elas.

  • 22 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 23

    Conforme levantamento realizado, em 2004, por meio de mapas mentais durante o etnozoneamento, residem na TI 754 indivduos, sendo aproximadamente 582 Manchineri4 e 172 Jaminawa. Analisando os dados populacionais, possvel afirmar que a maior aldeia a Extrema, seguida da aldeia Jatob e Betel, dentre um total de 15 aldeias, 10 delas Manchineri e 5 Jaminawa. Essas informaes so melhores visualizadas na tabela a seguir:

    Manchineri JaminawaAldeia/Colnia Populao Aldeia PopulaoPeri 46 Betel 83

    Jatob 113 Salo 28

    Santa Cruz 10 Cujubim 33

    Laranjeira 23 Boca do Mamoadate 24

    gua Preta* ? gua Boa 4Alves Rodrigues 10 Total 172Senegal* ?

    * Os dados populacionais das aldeias gua Preta e Senegal foram includos naqueles referentes s colnias, pois essas aldeias ainda no estavam formadas quando do levantamento demogrfico.

    Cumar 14

    Lago Novo 43

    Extrema 182

    Colnias 141Total 582

    4 No stio da organizao indgena Mapkaha, consta uma populao de 937 Manchineri, como pode ser conferido no endereo eletrnico http://www.mapkaha.org.br/, acessado em 17/05/2006.

  • 22 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 23

    Grande parte dessa expressiva populao Manchineri e Jaminawa que habita essas aldeias bilnge, falam em portugus ou em Manchineri, uma lngua da famlia lingstica Aruak, ou ainda em portugus ou em Jaminawa, uma lngua da famlia lingstica Pano. Muitos sabem escrever em sua lngua materna, e poucas crianas falam o portugus. Isto porque primeiramente os Manchineri e os Jaminawa so socializados na lngua materna e s depois aprendem o portugus. Entre eles, no costumam falar em portugus, o que outro fator decisivo para manter o Manchineri e o Jaminawa como lnguas vivas. Entretanto, com o intenso convvio com a sociedade envolvente, muitos termos em portugus so utilizados por no existir traduo para a lngua deles.

    Man

    chin

    eri

    Jamin

    awa

  • 25Mapa de ocupao histrica

  • 25Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e

  • 26 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 27

    Migraes Manchineri

    A ocupao dos Manchineri na bacia do rio Purus remonta h vrios sculos passados. Para os Manchineri, esse era o tempo em que seus antepassados residiam em malocas e mantinham diversos costumes associados ao uso dos recursos naturais, prprios de uma poca anterior ao contato com uma sociedade industrializada. Neste tempo, os Manchineri relacionavam-se apenas com outros povos indgenas e migravam pelas regies de vrias bacias hidrogrficas. O estabelecimento dos Manchineri na regio do rio Iaco ocorreu possivelmente na segunda metade do sculo XIX.

    Nesse tempo, tido pelos Manchineri como tempo dos antigos, no havia um povo denominado, ou autodenominado, Manchineri. De acordo com o Manchineri Luiz Cabral Brasil, que se denomina Wenejeru, existiam nas proximidades do rio Iaco os Wenejeru, os Kjiwutatu-neru, os Kochitshineru e os Haham-luneru. Os Wenejeru moravam no Igarap Abismo, afluente da margem direita do rio Iaco. Os Kjiwutatu-neru (nao de cabea, de cabeceira) moravam na regio do Chandless-Ch e no igarap Tlokanahapha (igarap da Capivara), na margem esquerda do rio Iaco, tendo sido dizimados por bolivianos e peruanos. Os Kochitshineru (nao de passarinho mesmo que Piro) no se sabe exatamente onde tinham suas malocas, mas se encontram hoje misturados com Manchineri na aldeia Santa Cruz e em outros locais da TI. Os Haham-luneru (nao de cacete de matar queixada) tambm estavam nas cabeceiras do Iaco, mas o local preciso no foi mencionado. O termo Manchineri (hoje nao de Inhar - uma rvore) no existia para se referir a uma nao. Era apenas a denominao de uma das brincadeiras do ritual do Yikaklu, a

    qual marca a passagem para a vida adulta dos jovens de ambos os gneros

    (Luiz Brasil Cabral Benjamin, 26/07/04, Peri).

    Seguindo Luiz Brasil, seria possvel dizer que muitos dos grupos, ou sub-grupos, que habitavam a regio do Iaco, tanto no Brasil como no Peru, tiveram sua populao drasticamente reduzida, sendo outros exterminados. Como resultado, possivelmente organizaram-se como um povo hoje denominado Manchineri. Diferente desses sub-grupos sabe-se que na regio do rio Iaco habitava um povo com lngua e costumes consideravelmente distintos dos Manchineri, os Catiana (nao de milho). Estes seriam, para Luiz Brasil, outro povo, que no fazia parte dos sub-grupos, mas hoje parte deles residem entre os Manchineri, na aldeia Extrema. Estariam misturados com os Manchineri Como dito pelo professor Lucas Artur Brasil

    Manchineri, ao traduzir a fala de Luiz Brasil para o portugus:

    (Luiz Brasil, aldeia Peri, 26/07/04)

    O povo Manchineri, Kjiwutatu-neru e Haham-luneru eram falantes s em uma lngua s. Eles tinham esse contato. S os Catiana que era outro povo, que nem ns Manchineri entendamos eles. Os Haham-luneru habitam mais as cabeceiras do rio Iaco. A cabeceira do Abismo era o povo Wenejeru, tudo habitava nessa regio. O povo Manchineri habitava desde a cabeceira do rio Iaco at o Guanabara. Para baixo eram os Catiana. Ento eles viviam ali. Os Kjiwutatu-neru ficavam na regio do Chandless-Ch. Aqui perto mesmo, s que eles falavam igual a nossa lngua, mas tinham um sotaque mais puxadinho um pouco. Ento ele estava contando isso a. Os Kochitshineru o mesmo Manchineri, se chama os ndios Piro que vivem no

    Peru

    (Lucas Artur Brasil Manchineri, aldeia Jatob, 14/07/2005).

  • 26 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 27

    No Mapa Histrico, observa-se que as antigas malocas mudaram de localidade por vrias vezes. Como diz a liderana tradicional da TI Mamoadate, conhecida como Z Barro:

    Pela informao que o pai e a me contam, eles moravam aqui, no rio Iaco. Justamente aqui no lugar da pista (na Extrema) j foi maloca, j foi moradia dos ndios Manchineri. E no igarap l em cima, no igarap do mutum. Era moradia, era outra maloca. L que ona matou meu av. Saiu de l e moraram no igarap Monteza, l dentro do Monteza. Aqui nessa regio dessas matas, tudinho j foi moradia dos Manchineri, antes deles conhecerem os brancos. Onde no tinham mais caa, eles iam afastando. Quando passava dois,

    trs anos, eles iam mudando para outro lugar

    (Jos Sebastio Manchineri, 19/07/04, Extrema).

    Na memria dos atuais Manchineri h referencia maloca dos Kjiwutatu-neru, localizada no igarap Tlokanahapha (igarap da Capivara), na margem esquerda do rio Iaco. Os Manchineri residentes nessa maloca teriam sido dizimados por caucheiros bolivianos e peruanos, em fins do sculo XIX. No se sabe ao certo se existiram sobreviventes, e para onde eles teriam ido. Nas palavras da liderana tradicional:

    Os peruanos maltrataram muito, judiaram. Os peruanos acabaram com meus parentes todinhos, matavam e faziam o que queriam. Mandavam rolar um paxiubo, trazia no muque e mandava bater no

    terreiro para fazer o assoalho da casa dele. E se o cara no fizesse isso ele pegava e aoitava

    (Jos Sebastio Manchineri, 19/07/04, Extrema).

    Outra referncia s malocas antigas, inserida no mapa, evidencia um processo de migrao dos Manchineri. De acordo com Jos Sebastio Manchineri, eles tambm habitaram na maloca Phinputuru. Esta maloca estava localizada prxima de onde est hoje a aldeia Extrema, mais precisamente nas margens do igarap Yomletshi hapha5, afluente da margem esquerda do Iaco. Eles saram deste local porque morreu um tuchaua. Era costume entre os Manchineri mudarem de maloca aps o falecimento de um ente querido que residisse entre eles, seja uma liderana, um paj ou um parente.

    Depois de abandonarem essa localidade foram para a maloca Manxiplupokputu, situada na margem esquerda do rio Iaco, acima do igarap Paulo Ramos e abaixo dos trs lagos. O motivo da retirada deles deste lugar j no foi mais cultural, mas sim devido a intervenes externas. Conforme relatam, peruanos e bolivianos estavam perseguindo os habitantes dessa maloca, possivelmente para utiliz-los como mo-de-obra na extrao do caucho (Castilloa elstica). Formaram, ento, a maloca Paktsha poklu, nas cabeceiras do igarap Paktshaha, afluente da margem esquerda do rio Iaco. Neste local nasceu Joana Bejamim Manchineri, me da liderana tradicional da Extrema, Z Barro. Dessa maloca saram porque uma ona matou o pai dela. Ele era tuchaua e paj, de nome Bejamim.

    Em seguida, foram para a maloca Katsotalha poktshi, no igarap Jorimagua, afluente da margem direita do Iaco. Abandonaram a maloca porque peruanos e bolivianos mataram vrios Manchineri devido resistncia deles frente aos extratores de caucho. Passaram a morar, depois, na maloca Katslu-ha ywaha, nas margens do igarap Katsluksuha (Abismo), afluente da margem direita do Iaco:

    Foi se mudando, foi se mudando at que chegaram a morar l em cima mesmo, no abismo. Eles moraram l. Foi l que o doutor Avelino Chaves conseguiu aparecer l. E at hoje ainda estamos no meio de vocs, dos brancos. Naquele tempo o doutor Avelino Chaves chegou l na praia, eles tinham feito um

    papiri

    (Jos Sebastio Manchineri, 19/07/04, Extrema).

    5 Na carta topogrfica utilizada no constava este igarap, introduzido pelos Manchineri que muito bem conhecem os afluentes do Iaco.

  • 28 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 29

    Esta nova moradia, segundo os Manchineri mais idosos, no era exatamente uma maloca, apesar deles chegarem a considerar como tal, em funo de estar associada a um perodo em que eles se encontravam vinculados extrao de caucho. Residiam neste local Manchineri, Piro e Amauaca, todos extraindo caucho para os peruanos. Os Piro e Amauaca vieram do Peru e para l voltaram. Os Manchineri deixaram a localidade quando o patro Avelino Chaves, que subiu o Iaco em fins do sculo XIX, os contratou para brocar roados, carregar mercadorias e limpar campo no Seringal Guanabara, por ele desbravado.

    Aps anos trabalhando para esse patro, foram para a maloca Homha, localizada no rio homnimo, que desgua na margem direita do Iaco. Avelino Chaves os entregou aos cuidados do Dr. Assis. Sob a guarda deste novo patro, trabalhando para ele, bolivianos e peruanos os atacaram nesta maloca, tendo o Dr. Assis derrotado os estrangeiros. Depois desse conflito, Avelino Chaves os levou para o Seringal Guanabara e continuou a amansar os Manchineiri, ensinando-os a falar em portugus e a cortar seringa. Sabendo falar portugus e cortar seringa, se dividiram por vrios seringais ao longo do rio Iaco:

    At que espalhou, um bocado morava em Tabatinga, um bocado morava em Guanabara, um bocado morava em Amap. Tudo era seringal. Icuri, Petrpolis, ali na fazenda. Do Boa Esperana para c habitava

    mais os ndios

    (Jos Sebastio Manchineri, 19/07/04, Extrema).

    Em fins do sculo XIX e incio do XX, muitos foram os antigos que viveram essas migraes, as quais ainda hoje esto presentes na memria coletiva dos Manchineri. Um dos antigos foi o Tenor, que viveu na regio antes dos Manchineri vincularem-se aos seringais, tendo morrido por causa de uma ferida na perna. Gaspar e Monteza, que viveram em malocas, foram residir nos seringais com a idade j avanada. O primeiro morreu com barriga dgua e, o segundo, com um tiro dos brancos. J Artur Tenor nasceu nas malocas, mas foi para o seringal quando era rapaz. Sebastio Tenor (pai do Z Barro), Anania Batista, Luiz Emdio, Luizinho, Sara e Jos Avelino de Souza (filho da Joana Bejamim Manchineri) nasceram na maloca e quando ainda eram crianas passaram a viver nos seringais.

    Outros Manchineri nasceram nos seringais e trabalharam na extrao do ltex da seringueira (Hevea brasiliensis), indo depois para aldeias na TI. Gondim, liderana da aldeia Jatob, nasceu no seringal Guanabara, depois foi para o seringal Tabatinga, para o Peri e, em seguida, para o Jatob, onde era terra devoluta. Quando chegou no Jatob ainda no existia a TI. Ele trabalhava por dirias e vendia carne de caa para o patro da fazenda Petrpolis, conhecido como Canizo Brasil, que era dono dos seringais Petrpolis, Tabatinga e Santa Luzia. Tambm fazia empeleita, um trabalho pago conforme o preo do servio.

    Depois de trs anos, em 1976, chegaram representantes da FUNAI na regio. Estes incentivaram o deslocamento de diversos Manchineri, e tambm de Jaminawa, para a formao da aldeia Extrema e posteriormente para a regularizao da TI. Como relata Gondim, ele e sua famlia no quiseram ir para a recm formada aldeia Extrema, porque j tinham suas vidas organizadas no Jatob. Dois anos aps terem se estruturado no Jatob, por volta de 1975, instalou-se entre eles a Misso Novas Tribos do Brasil, que j havia realizado contato com os Jaminawa do Betel anos antes. Nesse novo tempo, da presena de missionrios e representantes da FUNAI na regio, outro processo de migrao passou a ocorrer, principalmente no interior da TI identificada em 1977.

  • 28 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 29

    Migraes Jaminawa

    Tambm ocupantes da regio do rio Iaco, os Jaminawa possuem um vasto histrico de migrao. Todos contam sobre os vrios lugares por onde as muitas famlias se estabeleciam durante algum perodo. O passado referido como um tempo em que no tinham lugar certo. Nesse tempo, eles ainda no eram denominados Jaminawa. Como dito por uma das lideranas desse povo, conhecida como Z Correia:

    Na realidade, s existia trs troncos e desses trs troncos que vieram, que so: Shawanawa (ou Shawdawa), Sapanawa (ou Sapadawa) e o Yawanawa (ou Yawadawa). Hoje, todas as comunidades Jaminawa que existem, vm desses trs nomes. Tinha um grupo tambm de Kaxinawa (Kaxidawa), porque Kaxinawa para ns no so esses Kaxinaw (Huni Kuin) do Jordo, Tarauac, Muru, Humait e Envira. Esses a ns chamvamos esse grupo de Sainawa (Saidawa). Saidawa significa que um povo que gosta muito de comer, aqueles que comem com fartura. Ento, hoje ns conhecemos esses Huni Kuin como Kaxinaw. No sei a forma como conseguiu esse nome, mas pegou esse nome Kaxinaw. Da mesma forma que pegou esse nome Jaminawa entre o nosso povo, pegou Kaxinaw com eles tambm. Na realidade, esse nome Jaminawa pra ns no existe. Mas uma coisa que, por outra parte, foi bom porque assimilou todas

    esses quatro grupos que ns tinha, pegando um nome s

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Esses vrios troncos, hoje denominados apenas por Jaminawa, migraram por diversas regies at se estabelecerem na regio do rio Iaco. Na memria coletiva dos Jaminawa, eles vieram das cabeceiras do rio Juru e foram migrando at se estabelecerem no rio Iaco, provavelmente ao longo do sculo XIX e XX:

    Primeiramente o povo Jaminawa morava no rio Juru. Primeira maloca que eles viveram. O povo Jaminawa morava na mesma aldeia. Que era na cabeceira do rio Juru. Nesse rio Juru j se encontravam outros povos, que eram os Kaxinaw, Yawanawa, que viviam s brigando. Ns Jaminawa tambm, ramos guerreiros, queramos matar outros povos. Nesse tempo, no existiam nordestinos que vieram do Amazonas. No sculo no sei quando, os nordestinos vieram para o estado do Acre. Mas os Jaminawa moravam ainda no rio Juru. Nesse rio Juru, os Jaminawa brigavam muito com Kaxinaw e Yawanawa, com outros povos. Com essas brigas os Jaminawa se espalharam para aqui. Os Jaminawa se espalharam pelas cabeceiras dos rios. Primeiramente dizem que vieram para o rio Xamuiaco, rio Curanja, por todos os rios. Uns no Estado do Acre, outros foram para o Peru. Eles no sabiam, pensavam que era no Brasil ainda. Do Curanja vieram para outro rio, no Peru. Moraram dez anos l, da espalharam tudo. Da vieram para o rio Tarauac, cabeceiras do rio Tarauac. Depois vieram para o alto Purus e o resto para o alto Iaco. Do alto rio Iaco foram para as cabeceiras do Chandless. Da do Chandless foram para as cabeceiras do Acre, foram para a Bolvia, no

    Tauamano. Um bocado foi para o alto rio Purus, que ainda fica no Peru

    (Josimar Barreto Mariano Jaminawa, 10/10/05, Betel)

    Nessas migraes diversos conflitos intertnicos ocorreram, acentuando os deslocamentos do Juru para o Purus, como fica evidente na fala de uma das lideranas Jaminawa, Z Correia:

    Da cabeceira do Juru eles toravam para cabeceira do Purus, cruzavam o Purus e iam bater at nas cabeceiras do Madeira, que o Madre de Dis, aqui em cima, que eles chamavam de Ruwiya. Eles rondaram pra l tambm. S que para l eles tiveram um tempo muito curto. Por l parece que tiveram um problema, tiveram uma briga com o povo Shipibo. O povo Shipibo queria matar eles, a deram cip pra

  • 30 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 31

    eles, emporrearam eles de cip, enganaram eles que estavam bebendo: - Ah! Esses caras vo matar a gente, vamos dar um porre de cip e matar de pau. A meteram o pau pra cima e mataram um bocado de Shipibo. A fugiram de volta de novo, para as suas terras originais. E nessa andana toda, eles comearam a

    brigar entre eles. Porque tinha os Yawadawa e tinha os Shawadawa e tinha esses Sapadawa

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Devido aos vrios conflitos internos, os Jaminawa se dividiram em grupos familiares extensos. Cada um seguiu uma direo, fundando aldeias e mantendo um processo de migrao distinto. Em fins do sculo XIX, alguns Jaminawa entraram em contato com caucheiros peruanos na regio do rio Purus, sendo amansados e utilizados nas correrias:

    O velho Pasiu, quando era jovem, ele foi pego pelos peruanos, cresceu por l e como entendia a lngua, ele foi utilizado at pra fazer correria contra os outros. E quando ele voltou, um tal de Datxuba, chegaram a reconhecer, tambm tomaram outra direo, fizeram outra famlia, que era o Mapudawa, que so os Shawdawa, tomaram outra direo. S que esses trs grupos que se espalharam, a direo que tomaram, eles tomaram uma direo a, sem saber pra onde ia. Essa direo que aconteceu, eles j vieram aqui para cima, pelo Purus. O primeiro grupo j saiu aqui pelo Purus, que eram os Kaxidawa e Yawadawa. A outro grupo, os Sapadawa, j saram aqui por cima pelo Iaco e pelo prprio Tauamano e por aquele meio de mundo a. O Tauamano afluente do Madre de Dis. J outro grupo, a turma do velho Kutxamama tambm tomaram outra direo. S que essa direo vindo pra c. Nessa travessia, indo do Juru pras cabeceiras do Purus, cruzando aqui por cima, foi que o velho Kutxamama teve que matar o pai do Kuxikaike. O cara se gabava que tirava muito feitio, aquela histria toda. A ele meteu a flecha no bucho do cara, a deu uma infeco por causa da taboca e a ele morreu. A se dividiram de novo, de trs grupos j se espedaaram em quatro. A nesse trajeto todo, veio um grupo puxando e bolando por a. Foram parar no Retegro para trabalhar com um peruano chamado Delfim, que o pai da mulher do velho Pascoal, que mora aqui no So

    Paulino. Esse peruano trabalhava nas cabeceiras do rio Chandless

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Possivelmente o contato dos Jaminawa com caucheiros peruanos ocorreu por volta das dcadas de 1940 e 1950. Mesmo aps o contato com o peruano Delfim, os conflitos internos permaneceram, gerando novas cises entre os Jaminawa. Ainda no Chandless.

    Outros Kaxidawa, que da famlia do velho Martim, teve um problema srio. Mataram um tio meu, que era o filho mais velho da velha. A mataram, cortaram o pescoo, moquearam, mas isso no pra comer, mas por perversidade. E por causa dessa histria, eles tambm mataram o pai do Z Pequeno na cabeceira do Chandless. Ento o que aconteceu? A se separaram e se espedaaram mais uma vez, se espedaaram em

    cinco grupos j. Entre eles prprios brigavam e se dividiam de novo

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Ao longo das vrias cises entre os Jaminawa, o contato com os peruanos foi aumentando. Nesse processo, algumas famlias que haviam se separado juntavam-se novamente. Um outro grupo, que era liderado por Maxico, chegou a estabelecer contatos com os peruanos nas cabeceiras do rio Iaco, aps terem se unido a uma outra famlia Jaminawa:

  • 30 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 31

    A turma do velho Maxico, essa turma toda, foram buscar eles aqui pelas cabeceiras do Iaco. Ento, j comearam a se juntar de novo e vieram trabalhar com um branco, que morava no Senegal, chamado Joo Tibrcio. Foi o primeiro contato com os brancos aqui pelo Iaco, porque os Jaminawa tiveram vrios contatos

    iniciais com os brancos. Foram vrios contatos, porque os Jaminawa no vieram tudo de uma vez s

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Como o contato dos Jaminawa com os peruanos foi espordico, outra famlia deparou com eles na regio do Xamuiaco, momento em que decidiram trabalhar com os brancos:

    Por l um tal de Estevo Meireles, um explorador de madeira no alto rio Xamuiaco, um afluente do rio Purus, acima de Esperanza muito. E por l esse Estevo Meireles trabalhava com uns ndios que tambm falavam a mesma lngua nossa, que j tinham contato primeiro com esse pessoal, os peruanos, que eram os Sharanawa e os Marinawa. Trabalhando junto viram os rastros e tudo, e foram atrs e pegaram um coitado que parece que andava at pescando. Eles pegaram na marra e foi um rolo danado, o finado Napoleo e os outros se alvoroaram pra matar branco e aquela histria toda. A o finado Napoleo disse: olha, vocs no matem mais brancos, porque de hoje em diante eu no quero mais viver na mata. Eu vou me embora, trabalhar com os brancos agora. E a vieram amansar os brancos. A vieram trabalhar com esse Estevo

    Meireles, que um peruano

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    No perodo em que estavam trabalhando para o peruano Estevo Meireles, os Sapanawa e os Sharanawa, hoje denominados apenas Jaminawa, entraram em conflito devido morte de dois Sapanawa, gerando uma nova leva migratria. Tempos depois, o Jaminawa Napoleo foi para a boca do Xamuiaco e ficou sabendo que parte de seus parentes estavam no Chandless. Seguiu para o Chandless e se uniu com as famlias que l estavam estabelecidas.

    Por l tambm comearam a se unificar de novo. Apareceu a turma do velho Kutxamama, a turma do finado Trugoso, nesse tempo o velho Pasiu no tava mais vivo, j era o velho Trugoso e comearam a se ajuntar por l tambm. Enquanto isso, os Yawadawa souberam por l tambm e entraram pra dentro do Chandless. E por l teve outro conflito de novo, mataram o pai do Z Pequeno, foi um rolo danado tambm e a se espedaaram tudo de novo. A a turma do finado Napoleo desceu e foi embora trabalhar no Sardinha, aqui no seringal Sardinha no Purus. Por l, diz que um branco matou um irmo desse Pascoal, matou l de martelo, sei l, eles no sabe nem explicar direito. Saram de l pela mata, nesse tempo no

    existia estrada, e foram sair no seringal Mercs, l no Iaco

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Do rio Iaco deslocaram-se para o rio Caet, onde trabalharam na extrao de caucho. Um dia fizeram uma compra grande com o patro e mudaram para o Macau, indo posteriormente para o Iaco, no local denominado Santa Clara:

    E de l atiaram no rumo de cima. A foi l e toparam o pessoal de novo. J os Yawadawa, naquela poca, tambm tinham feito esse rodo aqui e tinham entrado no Iaco e j estavam morando na Asa Branca. Era um grupo danado, era um monte de gente. A misturaram tudo de novo, foi aquele rolo danado. Depois de um tempo no deu certo, a eles se mudaram mais pra baixo e vieram morar no Baturit. Por l teve

    outro conflito entre eles tambm, casaram-se entre Yawadawa

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

  • 32 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 33

    Os Yawandawa migraram em seguida para o Novo Areial, permanecendo nessa localidade por pouco tempo. Outros Jaminawa que residiam no Baturit e Sacado, foram embora desse lugar para as cabeceiras do rio Iaco, na Extrema:

    E o outro grupo que trabalhava com o pessoal do Pioca, ali no Baturit e Sacado, tambm foram se embora. Dizem que foram procurar o Clementino e esse pessoal todo. A foram pras cabeceiras do Iaco, morar na Extrema. Tinha outro grupo que morava bem acima. E nessa histria toda conviveram ali e a foi quando nasceu o Chico Leite e aquele bolo danado. E o que aconteceu? Quando desce pra baixo tiveram outro conflito entre eles de novo. A o velho Napoleo mais o velho Manoel Batista mataram o finado Trigoso. A eles voltaram de novo pro Chandless. A um bocado foram pro Chandless e outro bocado foram

    para as cabeceiras do rio Acre

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Uma das famlias Jaminawa que retornaram para o Chandless era liderada por Napoleo, tendo ficado por pouco tempo na regio. Logo foram para o Icuri:

    A foram pro Icuri. Nesse tempo o patro do Icuri se chamava finado Sabaneque, que no cheguei a conhecer, arrumou um lugar para eles na boca do Balseirinho. A moraram muito tempo ali e esse patro morreu, foi na poca que o Cansio Brasil era comboeiro, eram trs irmos comboeiros no seringal Guanabara, e a eles foram e abriram uma colnia para eles l em Petrpolis, que depois seria a futura Fazenda Brasil. Foi uma colnia que eles abriram e foram para l tomar de conta. Tinha poucas colocaes nesse Petrpolis, mas os irmos Brasil no incio nem chegaram a movimentar essas colocaes e suas

    estradas de seringa

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Quando foram para a regio do Icuri, provavelmente na segunda metade da dcada de 1960, os Jaminawa tiveram contato com os missionrios da instituio religiosa Novas Tribos do Brasil.

    Isso foi em 1968, mais ou menos, de 1965 para 1968. A ficou uma misso na Asa Branca e foi outra misso para o Betel. Foi quando aquela turma l de cima voltaram todos e comearam a unificar essa turma todinha. E ficou um grupo nas cabeceiras do rio Acre, que no quis vir de jeito nenhum, que era a famlia do velho Kutxamama. A os que ficaram no Iaco foram tocando, foram tocando, a depois teve um

    problema, que foi essa epidemia de sarampo, que morreu muita gente

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Na dcada de 1970 a FUNAI passou a atuar no Estado do Acre, entrando em contato com os Jaminawa que residiam no rio Iaco em 1976. A partir de ento, teve incio o processo de regularizao da TI Mamoadate:

    Em 1975, chega a FUNAI no Acre, nesse tempo se chamava AJACRE, subordinada a Porto Velho, e veio um senhor, primeiro homem que veio pra c na Ajudncia, Jos Porfrio Carvalho. Quando ele veio pra c, trouxe um indigenista, que era o Luis Henrique. Ele foi o primeiro servidor da FUNAI, que teve com o povo Jaminawa de Betel. S que o Luis Henrique demorou muito pouco tempo, porque ele foi transferido, pra onde eu no sei, e na poca o Meirelles ainda trabalhava com os ndios Urub l no Maranho. S l pelo meio do ano de 76 que a veio o Meirelles. A foi que comeou a surgir toda aquela histria. Na AJACRE, o quadro de servidores era bem pequeninho. Era o Tio Figueiredo como motorista, a Maria Fanhosa l como cozinheira e na poca o Posto Indgena da FUNAI ficava dentro da comunidade. Foi quando o Meirelles

  • 32 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 33

    comeou a falar dessa histria que a gente ia ter uma terra. Quando ele chegou e disse que era da FUNAI, eu achei estranho porque no sabia o que era a FUNAI. At eu perguntei pra ele: - Meirelles, o que a FUNAI? A ele disse era isso e aquilo outro, s faltou dizer que a FUNAI era um rgo que ia deixar os

    ndios no cu. Que beleza!

    (Jos Correia da Silva, 04/01/06, TI Caet).

    Com a atuao de representantes da FUNAI na regio, os Jaminawa, bem como os Manchineri, foram incentivados a fundarem a aldeia Extrema, em uma regio no ocupada por moradores no indgenas. Nesse novo perodo da histria dos Jaminawa, uma srie de outras migraes ocorreu.

  • Migraes Manchineri e Jaminawa na TI Mamoadate

    Com a formao da aldeia Extrema e com a identificao da TI Mamoadate, muitos Manchineri e Jaminawa abandonaram os seringais e foram morar nesta aldeia. Uma etnia ficou de um lado da pista de pouso recm construda e, a outra, do outro lado. O deslocamento progressivo dos Manchineri e Jaminawa dos seringais para a aldeia Extrema contou com a atuao do indigenista Meireles, que em 1976 comeou a viabilizar a regularizao fundiria da TI, identificada no ano seguinte.

    Nesse perodo, havia na TI apenas as aldeias Extrema, Jatob e Betel, ocorrendo depois uma migrao interna dos Manchineri e Jaminawa. Diferentemente dos Manchineri, que teriam tido grande envolvimento com a empresa seringalista, so poucos os Jaminawa que contam ter trabalhado durante perodos seguidos como seringueiros. Mas tanto os Jaminawa quanto os Manchineri trabalharam por dirias na fazenda Petrpolis, contgua a TI. Eram empregados eventuais que caavam, abriam roados e campos de gado. Tambm comercializavam peles de fantasia (ona pintada e gato maracaj) e peles secas (veado, porquinho, queixada, lontra e ariranha). Aps terem se estabelecido na aldeia Extrema, os vnculos com a fazenda foram consideravelmente reduzidos. Com o passar dos anos, vrias colnias e aldeias foram formadas ao longo do rio Iaco, sendo interessante notar as mudanas de local dessas moradias.

    Como pode ser visto no mapa histrico, muitas aldeias Manchineri mudaram de lugar. A aldeia Extrema uma das excees, pois sempre esteve prxima foz do igarap homnimo, afluente da margem esquerda do rio Iaco. A aldeia Lago Novo foi formada primeiro na margem direita do Iaco, fora dos atuais limites da TI6. Depois seus moradores estabeleceram-se onde ela se encontra hoje, na margem esquerda do rio Iaco, prxima ao igarap Lago Novo. A aldeia Cumar localizava-se na margem esquerda do Iaco, junto ao igarap Pollihapha, sendo transferida para o outro lado do rio, na margem direita do rio Iaco, igarap Tshawoknahapha. A aldeia Alves Rodrigues esteve situada na margem direita do Iaco, igarap Homha, deslocando-se depois para a outra margem do rio, nas proximidades do lago Limawopowha.

    E t n o z o n e a m e n t o34

    6 No local onde hoje reivindicada a reviso dos limites da TI, como ser mostrado adiante.

  • Quanto aldeia Laranjeira, por um perodo esteve abaixo do igarap Joo Cascudo, na margem direita do rio Iaco, prximo de onde hoje est a aldeia Extrema. Em seguida, seus moradores migraram para a margem esquerda do Iaco, acima do igarap Sokluhapha. A aldeia Santa Cruz sempre esteve na margem esquerda do rio Iaco, primeiro junto foz do igarap gua Boa e, depois, abaixo do igarap Sokluhapha. A aldeia Jatob, tambm sempre esteve na margem esquerda, tendo seus moradores sado das proximidades do igarap gua Preta e formado a nova aldeia um pouco mais acima dele. Por fim, a aldeia Peri foi formada onde anteriormente era a aldeia Jatob, na foz do igarap gua Preta, e l sempre permaneceu.

    Cabe observar que o movimento migratrio dos Manchineri ao longo do rio Iaco ocorreu de forma intensa, desde o perodo em que residiam nas malocas, passando pelos seringais, at este momento mais recente, em que se encontram vivendo nas aldeias e nas colnias. Com exceo das aldeias Peri e Extrema, todas as outras ocuparam dois lugares nas margens do rio Iaco, ao longo de sua histria.

    Distintamente dos Manchineri, em 1987, alguns Jaminawa saram da aldeia Extrema e foram para a aldeia Senegal, no rio Iaco, nica regio da TI com incidncia de seringueiras. Neste local, tinham com a FUNAI um projeto para a produo de borracha, que durou pouco tempo. Moraram ali durante cinco anos, quando algumas brigas provocaram separaes, sendo que algumas famlias foram para a aldeia Betel, e outras, seguindo a liderana de Jos Correia, em 1989, foram para o rio Acre, onde outros Jaminawa j moravam e onde hoje a TI Cabeceira do Rio Acre.

    A aldeia Betel permaneceu na mesma localidade, saindo delas algumas famlias que fundaram as aldeias Cujubim e Salo. J a aldeia Boca do Mamoadate, resultou da migrao de famlias Jaminawa que residiam na localidade denominada Guajar. Mais recentemente, o governo estadual, atravs da SEPI, apoiou um processo de mudana de moradores Jaminawa do Municpio de Brasilia para a nova aldeia gua Boa. Escolhido o lugar na TI Mamoadate, a SEPI providenciou a essas famlias equipamentos para a construo de casas, para a agricultura, pesca, caa; doando tambm botas, motor para uma canoa e a estiva bsica de sal, arroz e farinha.

    Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 35

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 37Mapa de vegetao

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 37

    Mapa de vegetao

    A TI Mamoadate contm vrios tipos de vegetao, classificados pelos Manchineri e Jaminawa como: mata fechada de terra firme, mata aberta, baixo do rio, flexeral, igap, capoeiras e campo. Esses sete tipos de vegetao esto associados a solos distintos e a plantas diferentes. Na mata fechada de terra firme, local onde no ocorrem inundaes, encontra-se: aguano (mogno), cedro, cumaru, embaba-da-terra-firme, sororoca-da-terra-firme, ouricuri, jarina, envira, cagaa, envireira, cabelo de cotia, laranjinha, citim, timb, frej, murmuru, pama, pato, caj, jenipapo, jenipapinho, assacu, guariba, jatob, bacuri, bacuri mido, berib, maaranduba, intaba, cerejeira, mulateiro, gameleira, pupunha nativa, maraj, jaracati, sapota, mo de ona, cacau, biorana, cajarana, caj, cajuzinho, azeitona, sanago, cip (ayahuasca), caucho, machiceiro, tamburim, carapanaba, tipi, canela de velha, abiu, canela de velha, palheiras, espinheiro, sapota, louro chumbo, andiroba, amarelo, blsamo.

    Dentre as duas principais regies fitoecolgicas da Amaznia, quais sejam, a Floresta Ombrfila Densa e a Floresta Ombrfila Aberta, a predominncia na TI Mamoadate desta ltima, o que acompanha a caracterstica do Estado do Acre. Os tipos vegetacionais predominantes descritos para a TI Mamoadate, de acordo com o ZEE, so, para a margem esquerda do Iaco, Floresta Aberta com Palmeira + Floresta Densa; Floresta Aberta com Bamb + Floresta Aberta com Palmeira. Para a margem direita, Floresta Aberta com Palmeira + Floresta Aberta com Bamb Dominante. Maiores detalhes da estrutura, composio e distribuio destas formaes podem ser encontrados no ZEE, no Volume I, cap. 12.

    Os relatos nos transectos mentais identificam a maior parte de formaes da Ombrfila Densa, identificada como Restinga no mapa de vegetao, como coincidente com setores ao longo do Rio Iaco. Esta a zona mais conhecida, j que nela que as populaes que dependem do rio encontram meio de deslocamento, gua para consumo (nas cacimbas), alm de frutas e madeiras demandadas. A Ombrfila Densa tambm acompanha assim o Baixo do Rio: estas so reas de alagamento ocasional, como solos de melhor qualidade em termos de nutrientes (aluviais), onde espcies madeirveis, frutferas e caa so abundantes. Tambm neste primeiro degrau de subida do relevo da TI, no sentido do afastamento da margem, que esto as reas com a mistura adequada de silte, areia e depsito orgnico (areia preta) que a tornam ideal para o plantio de Manihot esculenta. Aqui, o nome macaxeira e aipim classificam na ordem crescente de presena de cido ciandrico (HCN) as variedades, sendo que as macaxeiras so as que podem ser consumidas apenas com o cozimento, enquanto os aipins tem toxicidade elevada, e que assim s podem ser consumidos passando pelo processamento que resulta na farinha. Finalmente, fica a questo de uma identificao mais apurada que avalie se estas terras pretas ao longo do Rio Iaco tm uma contribuio de origem antropognica, como o caso em muitas regies da Amaznia.

    A faixa mais distante do rio apresenta, por sua vez, um mosaico de tipos vegetacionais descritos em diferentes gradientes, que esto relacionados a relevo, umidade e tipo de solo. Conforme as avaliaes do ZEE, estas formaes esto basicamente condicionadas por fatores edficos, e se distribuem por um relevo predominante de colinas, com lapas pouco convexas separadas por vales em V, e eventualmente por vales de fundo plano. Em menor escala, se encontram cristas, com lapas contnuas e aguadas, separadas por vales em V e eventualmente por vales de fundo plano. Sem dvida, o mapa de vegetao indica um caminho de reviso, consolidao, complementao e aprofundamento das informaes para o tema, que se relaciona fortemente com os outros mapas temticos e fundamental para qualquer iniciativa de uso sustentvel e conservao da biodiversidade.

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 39Mapa de hidrografia

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 39

    Mapa de hidrografia

    Os recursos hdricos so de extrema importncia para os Manchineri e os Jaminawa, sendo um dos principais referenciais geogrficos. Com base nos rios, igaraps e lagos ambos os povos conseguem localizar as residncias, os locais de pesca, os piques de caa, os acampamentos de caa, a vegetao e outros. Por meio dos recursos hdricos eles garantem gua potvel, higiene pessoal, higiene de roupas e utenslios, transporte e alimentao.

    Grande parte dos alimentos est ligada aos recursos hdricos. No rio Iaco, nos igaraps e nos lagos eles conseguem diversos peixes, jacars e quelnios para a alimentao. A gua potvel consumida pelos Jaminawa e Manchineri obtida no rio Iaco, nos igaraps ou nas chamadas cacimbas. Os lagos no servem como fonte de gua potvel e os igaraps so pouco utilizados para esta finalidade. O uso de cacimbas mais freqente para esse fim, especialmente entre os Manchineri, que no costumam beber ou usar gua para cozinhar os alimentos de outras fontes.

    A higiene pessoal realizada com freqncia nas cacimbas ou no rio Iaco, praticamente no ocorrendo nos igaraps, a no ser que seja muito prximo das residncias. Os lagos de forma alguma so usados para a higiene pessoal, to pouco para a limpeza das roupas e dos utenslios domsticos. Em geral, roupas, panelas, pratos e talheres so lavados nas cacimbas ou no rio Iaco.

    Este a principal via de transporte de pessoas e produtos, ligando as aldeias entre si e com as demais localidades freqentadas pelos Manchineri e Jaminawa. Para se deslocarem at outras aldeias, ou para as cidades prximas, usam o rio Iaco, seja no vero ou no inverno. No vero o deslocamento pelo rio mais trabalhoso, por ficar muito seco, sendo este um perodo em que podem se deslocar com mais facilidade a p ou com animais de montaria, no interior ou fora da TI.

  • Conforme consta no mapa de hidrografia, os Manchineri nominam 19 igaraps e 2 lagos da margem esquerda do rio Yaco e 37 igaraps, 2 afluentes de igaraps e 2 lagos (com nico nome) na margem direita do rio. Isto totaliza 56 igaraps nominados, 2 afluentes de igaraps e 4 lagos. Para uma visualizao mais precisa dessas informaes, segue abaixo o nome dos igaraps em portugus e na lngua indgena.

    Igaraps (hapha) e lagos (hipowha) da margem esquerda (sentido de subida): Ig. Mamoadate, Ig. Kahlihapha (Santa Tereza), Ig. Hotawakalu, Lago (sem nome para Manchineri, os Jaminawa denominam lago dos Sete Morcegos), Ig. Kopejiruhapha, Ig. Homha (Senegal), Ig. Tshawoknahapha, Ig. Hsutsatko, lago Hektuhatupowha, Ig. Wsunuhapha, Ig. do Joo Cascudo, Ig. Monteza, Ig. Champohapha, Ig. Kotshikloha, Ig. Hsohapha, Ig. Katsotalha (Jurimgua), Ig. Rio Branco, Ig. Pahomtahapha, Ig. Katsluksuha (Abismo), Ig. Kokchitsh-hapha e Ig. Glria

    Igaraps e lagos da margem direita (sentido de subida): Ig. Salo, Ig. Salo (dois igaraps com mesmo nome), Ig. Ksajhalu (gua Preta), Ig. Sokluhapha, Ig. gua Boa, Ig. Chotwahapha, Ig. Mtshirhapha, Lago Limawopowha (Lago do Limo trata-se de dois lagos), Ig. Konruhapha (Seringa), Ig. Hicheyokapowha (da engenhoca), Ig. Komlohapha, Ig. Pollihapha, Ig. Machonnihapha, Ig. Tsholnihapha, Ig. Katajhalu, Ig. Mtshirnihapha, Ig. Hektuhatu, Ig. Hektuhatuwhene, Ig. da Bicheirinha, Ig. do Lago Novo, Ig. do Americano,

    E t n o z o n e a m e n t o40

  • Ig. Kahyoha (Ig. do Neguinho na margem direita dele tem dois afluentes, o Ig. Represa e o Ig. Tshkotuhapha), Ig. Chechewohapha, Ig. Extrema, Ig. Yoletechihapha, Ig. Naponihapha, Ig. Paktshaha, Ig. do Santana, Ig. Poltaha (Paulo Ramos), Ig. Jinripowhahapha, Ig. Sotluswahapha, Ig. Ktathalu (Marilene), Ig. Suwhapha, Lago Moa Powha, Lago Tlokanapowha, Ig. Tlokanahapha (Ig. da Capivara), Ig. Mowawhene (Moinho) e Ig. Moa.

    Alguns igaraps da margem esquerda no constavam no mapa oficial e foram acrescentados pelos Manchineri, sendo eles: Engenhoca, Komlo hapha, hektuhatuwhene, Bicheirinha, Lago Novo, Yomletshi hapha e Napnihapha.

    Ao observar o mapa de recursos hdricos fica evidente que os Manchineri nominam muito mais igaraps e lagos existentes na terra indgena que os Jaminawa. Entre estes, constam 21 igaraps e 1 lago na margem esquerda e 10 igaraps e 1 lago na margem direita. Ao todo so 31 igaraps com nomes e 2 lagos.

    Os igaraps da margem esquerda (sentido de subida) so: Ig. Outxuya, Ig. Bakeshya, Ig. Yapaya, Ig. Kuniwaya, lago Ixa, Ig. Caucho, Ig. Wii Itxapa, Ig. Shuaya, Ig. Shaena, Ig. Deshuya, Ig. Senegapa, Ig. Wima, Ig. Samarr, Ig. Mutum, Ig. Paulo Ramos, Ig. Cascudo, Ig. Rio Branco, Ig. Salo, Ig. Ipuxa, Ig. San Francisco, Ig. Marilene e Ig. Moua. Os da margem direita (sentido de subida) so: Ig. Mamoadate, Ig. Santa Tereza, Ig. gua Boa, Ig. do Mauro, Ig. Senegal, Lago da Engenhoca, Ig. Shesha pa, Ig. Monteza, Ig. Buenos Aires, Ig. Jurimagua e Ig. Abismo.

    Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 41

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 43Mapa de caada

  • Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 43

    Mapa de caada

    Locais de caadas

    Os Manchineri e os Jaminawa caam dentro e fora dos limites da TI. Dentro da terra eles caam nos piques de caa, nos acampamentos, nos barreiros, na beira dos rios e igaraps, nos aceiros dos roados e nas proximidades de rvores cujos frutos so alimentos para os animais. Fora da TI as caadas ocorrem nos piques de caa que existem na margem direita do igarap Mamoadate e em ambas as margens do igarap Mrcia hapha, ambos afluentes da margem direita do rio Iaco, conforme destacado no mapa de caa. Esses piques de caa so utilizados mais pelos Manchineri das aldeias Peri e Jatob e pelos Jaminawa das aldeias Cujubim e Betel. Os Manchineri da aldeia Jatob possuem um outro pique de caa que ultrapassa os limites da TI, definidos pelo igarap Riozinho, mais precisamente na margem esquerda do mencionado igarap, portanto, fora da TI.

    A gente vai para l olhar a divisa l (no Riozinho) e tambm j vai caar, pescar. Sempre l arranja mais um pouco, mas no essas coisas no. Daqui l so trs horas. Esse pique no antigo no, mas o

    do Peri antigo

    (Francisco Napoleo Manchineri, 13/09/2005, Jatob).

    Os moradores da aldeia Betel caam no igarap da margem direita do Iaco, denominado Samarr, que marca o limite entre a Reserva Extrativista Chico Mendes e a Fazenda Petrpolis. Ainda fora da TI, os Jaminawa do Betel caam em uma outra localidade dentro da fazenda, na margem esquerda do Iaco, como pode ser observado no mapa.

    Os demais piques de caa esto dentro dos limites da terra, sendo eles distribudos por aldeias. Cada aldeia possui vrios piques. Alguns seguem margeando os igaraps e, outros, passam pelos divisores de gua destes. Os piques comeam nas aldeias e se estendem, geralmente, at as cabeceiras dos igaraps. A extenso deles variada, sendo calculada pelos Manchineri em horas, no em quilmetros. Os piques mais longos levam cerca de 5 horas de caminhada, no ritmo de um caador, que no costuma ser muito rpido por estar atento a todos os indcios da presena de animais. As caadas realizadas nos piques costumam no exceder um dia, o caador sai da aldeia pela manh e retorna para dormir em casa.

    As caadas que extrapolam o dia so aquelas realizadas nos acampamentos, onde constroem papiris para se abrigarem. Existem alguns pontos especficos utilizados pelos Manchineri para fazerem acampamentos de caa. Como observado no mapa de caa, os caadores das aldeias Jatob e Extrema acampam na beira do rio Iaco, acima dos igaraps Moa e Glria, prximo fronteira com o Peru. Esta regio constitui territrio dos ndios isolados. Por isso, existe uma certa periculosidade nos acampamentos localizados nesta rea. Os Manchineri, das aldeias Peri e Jatob, tambm fazem acampamentos de caa nas margens dos igaraps Katsluksuha (Abismo) e Marilene, por onde h indcios de trnsito dos ndios isolados. Estes acampamentos, talvez devido ao risco de se depararem com os ndios isolados, e certamente por causa da distncia das aldeias, no so muito utilizados pelos Manchineri. Eles caam nestes locais quando necessitam de uma grande quantidade de carne, para realizarem festas, adjunto (mutires), grandes reunies, etc. J os Jaminawa, por estarem suas aldeias distantes da rea de trnsito dos ndios isolados, praticamente no se deslocam at essa rea para caar.

  • 44 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 45

    Dentre os lugares de acampamentos, dois esto fora da rea utilizada pelos ndios isolados, sendo explorados com mais freqncia. Um deles se encontra na foz do igarap Jorimagua, usado pelos Manchineri das aldeias Peri, Jatob e Laranjeira. O outro, de uso dos moradores da aldeia Peri, situa-se fora dos limites da TI, nas cabeceiras do igarap Mamoadate, onde acampam por cerca de dois dias7. Os acampamentos feitos neste igarap so os nicos realizados nas cabeceiras, pois nos demais a abundncia de caa torna desnecessrio subir muito pelo curso dos igaraps para acampar. Em oposio aos Manchineri, os Jaminawa no possuem o costume de fazerem acampamentos para caar. Em geral, eles retornam no mesmo dia de suas expedies de caa, mesmo se no tiverem alvejado nenhum animal.

    Conforme os Manchineri e Jaminawa, alm dos piques de caa e dos acampamentos, existem outros locais bons para caar. Estes so basicamente: os roados, os barreiros, as margens do rio Iaco e as proximidades de rvores cujos frutos servem de alimentos para os animais. Nestes locais, assim como nos piques de caa e nos acampamentos, a diversidade de animais caados considervel.

    Nos roados: a cutia, a paca e o porquinho, alm das nambus e outras aves. Nos barreiros: o veado, a anta e o queixada. Prximo a rvores frutferas, o veado e o queixada. Nos piques de caa e acampamentos: macaco, queixada e muitos outros, na beira do rio caa-se jacar, capivara, paca, veado e tatu:

    Mata mais paca, veado, tatu. Passa muito na beira. Capivara tambm, de noite tambm. Agora est ficando difcil aqui, capivara.

    (Z Paulo Alfredo Jaminawa, 09/09/05, Salo).

    7 Este mais ou menos o tempo mdio de permanncia nos acampamentos.

  • 44 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 45

    Classificaes e tcnicas de caada

    Todos os animais comestveis so classificados pelos Manchineri e Jaminawa como embiara ou caa grande. Dentre as embiaras pode-se mencionar a paca, a cutia, o tatu, o porquinho e os animais de pena. Entre as caas grandes esto a anta, o queixada e o veado. Um caador geralmente almeja uma caa grande, mas retorna para casa muitas vezes com vrias embiaras. A caa grande tida como a melhor por fornecer uma quantidade considervel de carne, capaz de alimentar mais de uma famlia. Entretanto, alguns Manchineri e Jaminawa reconhecem que a carne de muitas embiaras bastante saborosa, mais que a de algumas caas grandes. difcil precisar a predileo dos Manchineri e Jaminawa por determinadas caas em funo do sabor, visto haver uma considervel variao de gosto entre os indivduos.

    Entre os animais comestveis podem ser destacados: anta (jema), veado (kchoteru), paca (kayatu), cutia (pejri), macaco capelo (kina), quatipuru (yopixri), queixada (hiyalu), porquinho (mrixi), cutiara (ksapejri), capivara (hipetu), macaco da noite (hyamru), tatu (kchiwna), tatu rabo de couro (jixaplu), quati (kapchi), macaco de cheiro (tshkotu hanuru), macaco prego (tshkotu), macaco cairara (kletu), macaco preto (mtshira), macaco zogue (kwaha), macaco soim (puseri sero ptshijiru) e macaco barbadinho (puseri klata chaptolu).

    Entre as aves comestveis encontram-se: jacu (totumta), nambu (hiyeka), nambu galinha (yoko), cujubim (kanalu), araguar (plejnako), nambu macucal (makokawa), nambu azul (tseklu), juriti (chwiriji), rolinha (kamowa wabene), jacamim (huixixi), tucano (chicane), papagaio (hapre), arara (pamlo), periquito (himrali), guabra (yawura), ganso (saweta), jaburo (hohru), maracan (tshiratalu), galinha d`arco (katsotu), paturi (hapchi), mergulho (tsruta taye), pato (capute), galinha (katsotu), marido da galinha (hopchi) e capote (paltaya).

    O abate de embiaras ou caas grandes est associado s tcnicas de caadas utilizadas pelos Manchineri e Jaminawa, dividas em: caa a ponto (a curso), caa com cachorro, caa na espera e caa com armadilha. A caa a ponto praticada principalmente

  • 46 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 47

    nos piques de caada, mas tambm ocorre nos acampamentos. O caador costuma sair pela manh, ou de madrugada, munido de espingarda, terado e rancho. Passa longas horas na mata caminhando em um ritmo no muito acelerado. Pelo caminho, ele procura os diversos indcios da presena de animais comestveis: barulho, rastro, pich (cheiro), etc. Com essa tcnica podem abater vrias espcies de animais:

    De ponto ns matamos porquinho, capelo, macaco preto. Macaco preto difcil. mais fcil zog-zogo. Macaco Cairara perigoso. Veado ns topa. Queixada ns topa. Anta ns topa, mas s rastro, rastejando. Mas difcil ns rastejarmos. Porque tem muita gente que no sabe caar. Embiara tambm pega. Ns

    topa nambu azul, arara, nambu galinha, mutum, jacu, no muito difcil no. Cujubim difcil

    (Z Paulo Alfredo Jaminawa, 09/09/05, Salo).

    Na caa com cachorro, tambm realizada nos piques de caa e acampamentos ao longo do dia, a caminhada pode ser mais rpida, quem guia o caador so os ces. Dependendo do comportamento do cachorro, especialmente do latido, o caador consegue fazer suposies do animal que se encontra por perto. De acordo com os Manchineri e Jaminawa a caada com cachorro est diminuindo:

    No caar com cachorro. Ns sempre levamos alguns cachorrinhos para espantar as cotias. Para no acabar nossa roa, macaxeira

    (Z Paulo Alfredo Jaminawa 09/09/05, Salo).

  • 46 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 47

    A gente caa com cachorro, mas no no centro da mata, com uma hora e meia. s vezes quando o caador topa de sorte arrumar caa ele no vai nem vinte minutos buscar, ali ele j fez a feira dele, de l

    ele j volta

    (Noberto Bezerra da Silva Manchineri, 15/09/05, gua Preta).

    A caa na espera, diferentemente das outras tcnicas, praticada nos roados, nos barreiros e prximo das rvores frutferas, principalmente a gameleira. Ela mais praticada durante a noite, quando o caador, munido de rancho, espingarda, terado e lanterna, fica no alto de uma rvore esperando os animais se aproximarem. Como nas outras duas tcnicas citadas, o caador fica sempre atento aos indcios da presena do animal, preocupando-se com o sentido do vento que pode fazer com que a caa fareje o cheiro dele e no se aproxime.

    A caa na espera, praticada no roado, permite aos Manchineri e Jaminawa abaterem para o consumo algumas espcies de animais silvestres. Segundo o agente de sade da aldeia Santa Cruz, Isaas Salomo Manchineri:

    So trs tipos de bichos que comem a macaxeira e o milho, que so mais danados, em outros cantos d mais, mais aqui, no nosso caso, a cutia. A cutia um bicho sem vergonha, come macaxeira, no cerrado

    e no limpo. E a paca e o porquinho. So esses trs bichos

    (Isaas Manchineri, 25/07/04, Santa Cruz).

    Como pode ser notado nesta fala, a paca, a cotia e o porquinho costumam freqentar os roados para se alimentarem de macaxeira e milho, tornando-se alvos fceis no s para os Manchineri, mas tambm para os Jaminawa. A caa na espera tambm pode ser realizada no interior da floresta, longe dos roados. Neste tipo de caada, os Manchineri e os Jaminawa colocam uma rede de dormir no alto de uma rvore e ficam esperando para o abate a paca, o veado ou a anta. Esses animais so abatidos em locais onde costumam se alimentar. Conforme Isaas Manchineri:

    Tem vrios tipos de comida que eles gostam. A paca gosta de gameleira, gosta de coco de ouricuri, gosta de inhar. Muitos tipos de comidas. Agora, a anta, s cajarana e gameleira. O veado tambm. O veado

    inhar, gameleira e biorana.

    (Isaas Manchineri, 25/07/04, Santa Cruz).

    Na caa com armadilha so utilizadas espingardas, para caar embiaras e caas grandes, e arapucas para bichos de pena. As arapucas, em geral, so armadas nos roados para capturar animais de pena, como o jac, as nambs e outros. As armadilhas com espingardas so colocadas nos locais de trnsito dos animais, amarrando um fio de nylon entre dois suportes ligados ao gatilho. Quando a caa fora o fio para passar a espingarda acionada. A altura do fio em relao ao solo estabelece o porte do animal que ser caado, se embiara ou caa grande:

    Com armadilha pega tatu, paca, veado. Veado quem sabe fazer a armadilha. O mais principal mesmo tatu e paca, na trilha dela.

    (Z Paulo Alfredo Jaminawa, 09/09/05, Salo).

  • 48 E t n o z o n e a m e n t o

    Caas, crenas e costumes

    Todas essas tcnicas esto associadas a um universo de crena que envolve os caadores, os cachorros e os instrumentos utilizados. Para os Manchineri, mulheres menstruadas podem atrapalhar o caador. Se uma mulher menstruada andar no pique de caa os animais no aparecem. Mas a maior parte das crenas est associada ao que por eles denominado panema. Quando um caador est encontrando dificuldades para abater os animais, os Manchineri e Jaminawa dizem que ele est com panema. Acredita-se que o rompimento de alguns tabus pode deixar o caador com panema. Segundo os Manchineri Anauberto e Z Barro, alguns motivos deixam o caador com panema. Caso uma mulher menstruada toque em qualquer instrumento de caa, ou coma a carne que o cachorro acuou, o caador fica com panema. Se o caador estiver caando com cachorro, para evitar panema, ele deve, sem a ajuda do co, caar um animal para a mulher menstruada comer. Se jogar os ossos da caa no terreiro e algum fizer xixi/urinar em cima, a d panema. Se uma pessoa tiver inveja do caador, ou da sua caa, ele fica com panema. Mulher grvida no pode ficar enjoada com a carne da caa, se no d panema.

    Para os Jaminawa, se uma mulher menstruada passar por cima da arma do caador ele fica com panema. Alm disso, tambm preciso ter um cuidado especial com os ossos da caa:

    s vezes joga os ossos fora, da caa, e algum mija em cima, a panema. Tem outros tambm, baleia a caa, ela vai embora e morre longe, a o urubu come. A o caador fica panema.

    (Z Paulo Alfredo Jaminawa, Salo, 09/09/05)

    Muitos outros motivos fazem o caador ficar com panema, mas diversas tcnicas podem acabar com esse mal. Para tirar panema os Manchineri fazem uma defumao do caador, dos instrumentos e do cachorro com a folha do tipi. Alm desses conhecimentos, existe a defumao com plo de caa. Passar pimenta malagueta nas narinas do cachorro, ou defumar o caador com pimenta, outra forma de tirar panema. Na viso deles, o cachorro fica com panema porque ele um caador.

    Entre os Jaminawa, outras crenas esto associadas ao consumo de caa. Alguns animais no podem ser caados quando o pai possui filhos pequenos, pois estes passariam a correr o risco de morrer. Como falado pela liderana da aldeia Salo:

    Quando tem criana pequena de um ano, de dois anos, no pode matar macaco cairara. Ns podemos matar macaco cairara quando a criana tem de seis anos para sete anos, a pode matar. J est crescendo. Enquanto a criana no cresce no pode matar. Mutum, se tiver criana bem pequena de um ms no pode comer. O pai e a me. Depois que passou um ms a pode comer. A arraia tambm, o pai e a me no podem comer. Av, Av no tem problema. nossa cultura mesmo, a gente no pode deixar ela para

    trs

    (Z Paulo Alfredo Jaminawa, 09/09/05, Salo).

    Como parte da cultura, os caadores Manchineri e Jaminawa dividem a carne obtida conforme algumas normas sociais. O caador reparte a caa com os parentes mais prximos. A caa tambm repartida com os vizinhos, que podem ser parentes prximos ou no. O caador Manchineri ou Jaminawa costuma caar para alimentar sua famlia e seus parentes, mas pode ser por outras necessidades, como quando ele precisa de ajuda para realizar um trabalho, construir uma casa, abrir um roado. Nessas ocasies, o caador garante o rancho de todos os trabalhadores. A importncia da carne de caa para eles no se limita, portanto, alimentao. Ela est associada organizao social, s crenas e ao conhecimento tradicional.

  • 48 E t n o z o n e a m e n t o

  • 50 E t n o z o n e a m e n t o Te r r a I n d g e n a M a m o a d a t e 51

    Escassez de caa

    A falta da carne de caa para os Manchineri geraria uma desestruturao do modo de vida deles, bem mais intensa que entre os Jaminawa. Em algumas partes da TI, a dificuldade de obter caa aumentou consideravelmente. Como dito pelo caador conhecido como Chico Tampa:

    cedo a gente