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Acreditando nas pessoas de olhos fechadosTHE ECONOMIST31 Outubro 2015 | 05h 29
A tecnologia por trás do bitcoin, que permite que indivíduos que nem se conhecem possam confiar uns nos outros, está indo muito além da criptomoedaEm 2009, quando a polícia hondurenha apareceu para despejá-la, fazia
trinta anos que Mariana Catalina Izaguirre morava em sua casinha
humilde. Ao contrário de muitos de seus vizinhos na capital Tegucigalpa,
ela tinha até uma escritura atestando que o terreno lhe pertencia. Mas
nos livros do Instituto de la Propriedad, o imóvel estava registrado em
nome de outra pessoa também — e essa pessoa convenceu um juiz a
assinar a ordem de despejo. Quando o embrulho jurídico finalmente foi
desatado, a casa de Izaguirre tinha sido demolida.
Esse é o tipo de coisa que acontece diariamente em lugares onde os
registros de imóveis são mal conservados, mal administrados e/ou
corruptos — vale dizer, em grande parte do planeta. A fragilidade dos
direitos de propriedade é fonte endêmica de insegurança e injustiça.
Também dificulta o uso de uma residência ou de um terreno como
garantia na contratação de empréstimos, restringindo os investimentos
e a criação de empregos.
Tais problemas parecem completamente alheios ao universo do bitcoin,
uma moeda baseada em engenhoso sistema de criptografia que conta
com um grupo dedicado de seguidores entre geeks em sua maioria
ricos, com frequência animados por ideologias anti-estatais e, por vezes,
criminosos. Mas a tecnologia por trás do bitcoin, chamada de
“blockchain” (literalmente, corrente, ou cadeia, de blocos), tem
aplicações que vão muito além daquelas a que se presta uma moeda,
oferecendo a pessoas que não se conhecem, nem confiam umas nas
outras, a possibilidade de criar um registro que, especificando quem é
proprietário de quê, obriga a anuência de todos os envolvidos. É uma
maneira de estabelecer e preservar verdades.
Daí que os políticos que querem reformar o Instituto de la Propriedad
de Honduras tenham solicitado à startup americana Factom o
desenvolvimento de um protótipo de registro de imóveis baseado na
tecnologia blockchain. A ideia atraiu o interesse da Grécia, onde não há
cartórios de imóveis propriamente ditos e apenas 7% do território é
mapeado.
A
tecnologia blockchain nasceu na cabeça de Satoshi Nakamoto,
pseudônimo do criador do bitcoin, até o momento não
identificadaUm lugar no passado. A blockchain, assim como
tecnologias similares, que também funcionam como “livros-razões
distribuídos”, pode ser empregada com muitas finalidades: de frustrar a
ação de ladrões de diamantes a modernizar e simplificar o
funcionamento das bolsas de valores: a Nasdaq em breve adotará um
sistema baseado na blockchain para registrar transações com ações de
empresas de capital fechado. O Banco da Inglaterra, cujo entusiasmo
por novidades tecnológicas nunca foi dos maiores, dá sinais de
empolgação: a instituição conclui uma nota de pesquisa divulgada no
fim do ano passado afirmando que os livros-razões distribuídos
constituem uma “inovação significativa”, com possíveis “implicações de
longo alcance” para o setor financeiro.
Os engajados em atividades políticas veem a blockchain indo mais longe
que isso. Em maio, quando cooperativas e esquerdistas se reuniram em
Paris no OuiShare Fest para debater de que maneira organizações
sociais poderiam combater repositórios gigantes de dados, como o
Facebook, foram raros os discursos que não citaram a blockchain. Os
ultraliberais sonham com um mundo onde as regulamentações estatais
sejam cada vez mais substituídas por contratos firmados entre
indivíduos, contratos que, graças a programações baseadas na
blockchain, devem se encarregar de garantir seu próprio cumprimento.
A tecnologia blockchain nasceu na cabeça de Satoshi Nakamoto, o
brilhante, pseudônimo e até o momento não identificado criador do
bitcoin – “uma versão puramente peer-to-peer de dinheiro eletrônico”,
como ele o descreveu em artigo de 2008. Para que pudesse funcionar
como dinheiro, o bitcoin tinha de trocar de mãos sem correr o risco de
ser desviado para a conta errada e não podia ser gasto duas vezes pela
mesma pessoa. Além disso, para que um sistema descentralizado, como
o sonhado por Nakamoto, ganhasse vida, era preciso que tais abusos
fossem coibidos sem o auxílio de terceiros dignos de fé, como os bancos
que oferecem respaldo aos sistemas de pagamentos convencionais.
É a blockchain que faz as vezes desses terceiros dignos de fé. Por ser
um banco de dados que contém o histórico de pagamento de cada
bitcoin em circulação, a blockchain comprova quem é proprietário de
quê. Esse livro-razão distribuído é replicado em milhares de
computadores – os nodes (“nós de ligação”) do bitcoin – espalhados pelo
mundo, e pode ser consultado por qualquer pessoa. Mas, apesar de toda
transparência e acessibilidade, também é confiável e seguro. Isso é
viabilizado por uma mistura de perspicácia matemática e força bruta
computacional, incorporada a seu “mecanismo de consenso” — o
processo por meio do qual os nodes entram em acordo sobre como
atualizar a blockchain à luz das transferências de bitcoins de uma
pessoa para outra.
Digamos que Alice queira pagar a Bob por serviços que ele prestou a
ela. Ambos têm “carteiras” de bitcoins – um software que acessa a
blockchain quase como um navegador acessa a internet, mas sem
identificar o usuário para o sistema. A transação começa com a carteira
de Alice propondo que a blockchain seja modificada, passando a indicar
que agora ela própria tem menos bitcoins e que a carteira de Bob ficou
um pouco mais cheia.
A rede realiza uma série de passos para confirmar a modificação. À
medida que a proposta se propaga, os vários nodes da rede verificam,
por meio de consultas ao livro-razão, se Alice tem mesmo os bitcoins. Se
tudo parecer correto, nodes especializados, chamados “mineiros”,
juntarão a proposta de Alice a outras transações igualmente dignas de
crédito a fim de criar um novo bloco para a blockchain.
Isso implica a alimentação contínua de dados por meio de uma função
“hash” criptográfica (aplicação de um algoritmo a um conjunto de
caracteres, sem levar em consideração seu significado), que transforma
o bloco numa sequência de dígitos de determinada extensão. Como é
comum em criptografia, esse hashing é uma via de mão única. O
caminho que vai dos dados a seu hash é fácil de ser feito, mas não há
como percorrer o caminho de volta, que vai do hash aos dados. Apesar
de não os conter, o hash é único em relação aos dados. A alteração mais
mínima no bloco — a mudança de um único dígito de uma transação,
por exemplo — produz um hash diferente.
Rodando na sombra. O hash é inserido, junto com alguns outros
dados, no cabeçalho do bloco proposto. Esse cabeçalho torna-se, então,
base de um complicado enigma matemático, que envolve mais uma vez
a utilização da função hash, e que só pode ser solucionado por tentativa
e erro. Os mineiros da rede se põem a processar trilhões e trilhões de
possibilidades, à procura da solução. Quando um deles chega a ela, os
outros nodes rapidamente começam a verificá-la (aqui, mais uma vez, a
via é de mão única: solucionar o enigma é difícil; verificar se a solução
está correta é fácil) e o bloco é então atualizado por cada um dos nodes
que confirma a solução. O hash do cabeçalho passa a ser a sequência
que identifica o novo bloco, e esse bloco agora faz parte do livro-razão.
O pagamento de Alice a Bob, e todas as outras transações contidas no
bloco, está confirmado.
A etapa do enigma introduz três elementos que contribuem
imensamente para a segurança do bitcoin. Um deles é o acaso. Não há
como prever qual dos mineiros solucionará o enigma, de modo que é
impossível predizer qual deles será responsável pela atualização do
bloco em determinada ocasião. A única coisa que se pode afirmar é que
será um mineiro diligente, e não um intruso aleatório. Isso dificulta
fraudes.
A segunda contribuição diz respeito à história. Cada novo cabeçalho
contém um hash do cabeçalho do bloco anterior, que, por sua vez,
contém um hash do cabeçalho precedente, e assim por diante, até
chegar ao cabeçalho do primeiro bloco, o chamado “bloco gênese”. É
essa concatenação que dispõe os blocos numa corrente. Partindo-se de
todos os dados contidos no livro-razão é fácil reproduzir o cabeçalho do
último bloco. Mas, experimente-se fazer uma mudança em qualquer
lugar, e o cabeçalho do bloco que foi alterado será diferente, o que
significa que o cabeçalho do bloco seguinte também se modificará e
assim como os blocos subsequentes. O livro-razão não estará mais de
acordo com o identificador do bloco mais recente, e será rejeitado.
Há alguma maneira de contornar isso? Imagine-se que Alice muda de
ideia em relação a pagar Bob e tenta reescrever a história para que os
bitcoins permaneçam em sua carteira. Se fosse uma mineira
competente, ela seria capaz de solucionar o enigma e produzir uma
nova versão da blockchain. Mas enquanto fizesse isso, o restante da
rede teria acrescentado novos blocos à blockchain original. E os nodes
sempre trabalham com a versão mais longa da blockchain. Essa regra
impede que os momentos em que dois mineiros encontram quase
simultaneamente a solução para um enigma produzam algo mais grave
do que uma bifurcação temporária na corrente. Também evita fraudes.
Para obrigar o sistema a aceitar sua nova versão, Alice teria de
encompridá-la mais, e a um ritmo mais veloz, do que o restante do
sistema faria com a versão original. Sem controlar mais da metade dos
computadores da rede – algo que no jargão do meio é chamado de
“ataque dos 51%” –, isso não é possível.
Os sonhos às vezes são contagiantes. Deixando de lado as dificuldades
enfrentadas por quem queira tentar subverter a rede, a questão é: por
que se dar o trabalho de participar dela? Porque o terceiro elemento
que a etapa da solução de enigmas acrescenta ao sistema é um
incentivo. Novos blocos geram novos bitcoins. O mineiro vencedor
recebe 25 bitcoins, os quais, pela cotação atual, valem US$ 7,5 mil.
Em si mesma, essa engenhosidade toda não faz do bitcoin uma moeda
particularmente atraente. Sua cotação é instável e imprevisível; o
montante total em circulação é deliberadamente limitado. Mas o
mecanismo da blockchain funciona muito bem. Segundo o site
blockchain.info, que registra esse tipo de coisa, diariamente são
acrescentadas, em média, mais de 120 mil transações à blockchain, com
cerca de US$ 75 milhões trocando de mãos. Atualmente há 380 mil
blocos; o livro-razão tem quase 45 gigabytes.
A maior parte dos dados contidos na blockchain diz respeito a bitcoins.
Mas não precisa ser assim. Nakamoto criou o que os geeks chamam de
“plataforma aberta” — um sistema distribuído cujo funcionamento está
aberto a exame e elaborações. O paradigma desse tipo de plataforma é
a própria internet; outros exemplos incluem sistemas operacionais como
o Android ou o Windows. Assim, é possível desenvolver aplicativos que
façam uso de características básicas da blockchain sem que seja
necessário pedir autorização ou pagar a alguém por esse privilégio. “A
internet finalmente tem um banco de dados público”, diz Chris Dixon,
da empresa de capital de risco Andreessen Horowitz, que financiou
diversas startups de bitcoin, incluindo a fornecedora de carteiras
bitcoin Coinbase e a 21, que produz hardwares de mineração de
bitcoins para leigos.
Por ora, as possibilidades de utilização com base na tecnologia
blockchain resumem-se a três categorias. A primeira tira partido do fato
de que a blockchain permite transferências de qualquer tipo de ativo. A
Colu, uma das startups que aposta nessa ideia, desenvolveu um
mecanismo para “marcar” transações extremamente pequenas de
bitcoins (chamadas “poeira de bitcoin”), acrescentando dados adicionais
a fim de que possam representar títulos de dívida, ações de empresas
ou unidades de metais preciosos.
A proteção a escrituras de imóveis é um exemplo da segunda categoria:
aplicativos que usam a blockchain como uma espécie de máquina da
verdade. As transações de bitcoins podem ser combinadas com
pequenos extratos de informação adicional que, dessa forma, também
se incorporam ao livro-razão. Servem, portanto, como registro de
qualquer coisa que valha a pena acompanhar de perto. A Everledger
usa a tecnologia blockchain para proteger artigos de luxo, introduzindo,
por exemplo, dados sobre as características de determinada pedra
preciosa, o que oferece prova inquestionável de sua identidade, caso ela
venha a ser roubada. A Onename armazena informações pessoais de
uma maneira que torna dispensável o uso de senhas; o CoinSpark
funciona como tabelião. Observe-se, porém, que nessas utilizações, ao
contrário do que ocorre com as transações de bitcoin puras, faz-se
necessário algum grau de confiança; a pessoa precisa acreditar que o
intermediário armazenará os dados com precisão e fidedignidade.
É a terceira categoria que inclui as utilizações mais ambiciosas:
“contratos inteligentes” que se executam a si mesmos, de forma
automática, em determinadas circunstâncias. O bitcoin pode ser
“programado”, de modo a se tornar disponível somente sob certas
condições. Um dos usos dessa funcionalidade é a postergação dos
pagamentos a que os mineiros têm direito por solucionar um enigma,
até que outros 99 blocos sejam acrescentados — coisa que oferece mais
um incentivo para manter a blockchain em bom estado.
O Lighthouse, projeto iniciado por Mike Hearn, um dos principais
programadores do bitcoin, é um serviço descentralizado de
crowdfunding que faz uso desses princípios. Se determinado projeto
recebe recursos em quantidade suficiente, ele é executado; se a meta
não é alcançada, não sai do papel. Hearn diz que o esquema é mais
barato do que o de concorrentes que não fazem uso da tecnologia
bitcoin, além de ser mais independente, sendo impossível para
autoridades governamentais bloquear um projeto pelo qual não tenham
simpatia.
A Everledger usa a
tecnologia blockchain para proteger artigos de luxoA energia
contamina. O advento de livros-razão distribuídos abre “um quadrante
inteiramente novo de possibilidades”, diz Albert Wenger, da empresa
nova-iorquina de capital de risco USV, que investiu em startups como a
OpenBazaar, um mercado peer-to-peer sem intermediários. No entanto,
por mais aberta e empolgante que seja a tecnologia blockchain, os
céticos argumentam que não há como excluir terminantemente a
possibilidade da ocorrência de falhas. E dizem também que talvez seja
inviável conferir escala a seus procedimentos. Embora funcione para o
bitcoin e alguns outros fins específicos, a tecnologia pode não ter
condições de suportar milhares de serviços diferentes com milhões de
usuários.
Até o momento, o design engenhoso de Nakamoto tem se mostrado
inexpugnável, mas pesquisadores identificaram táticas que um mineiro
ardiloso, com bolsos fornidos, poderia utilizar para comprometer a
corrente de blocos mesmo sem controlar 51% da rede. E já não parece
tão improvável que alguém seja capaz de assumir o controle de uma
fatia significativa dos recursos da rede. Se até algum tempo atrás, a
mineração de bitcoins era uma atividade de diletantes, agora é
dominada por “cooperativas”, em que pequenos mineiros compartilham
esforços e recompensas, e por operadoras de grandes centros de
processamento de dados, muitos deles sediados em regiões da China,
como a Mongólia Interior, onde eletricidade é barata.
Outra preocupação é o impacto ambiental. Sem dispor de outros meios
para se certificar da honestidade dos mineiros, a arquitetura bitcoin os
obriga a realizar grande volume de operações computacionais
complexas; essa “prova de trabalho”, sem a qual não há recompensa,
garante que todos os envolvidos estejam comprometidos com o bom
funcionamento do sistema. Mas a consequência é que, em busca da
solução para os enigmas propostos, procede-se a quantidade imensa de
processamento inútil. Segundo o site blockchain.info, os mineiros da
rede hoje experimentam 450 mil trilhões de soluções por segundo. E em
cada um desses cálculos gasta-se energia.
Como os mineiros mantêm as características de seus equipamentos de
hardware em segredo, ninguém sabe quanta energia a rede consome.
Se todos usassem os equipamentos mais eficientes, é possível que o
consumo anual de eletricidade fosse de dois terawatts-hora — pouco
mais que a energia consumida pelos 150 mil habitantes de King’s
County, na Califórnia. Mas, fazendo-se suposições mais pessimistas em
relação à eficiência dos mineiros, a conta pode chegar a 40 terawatts-
hora, quase dois terços do que consomem os 10 milhões de habitantes
do condado de Los Angeles. Esse número certamente superestima o
problema; mesmo assim, quanto mais disseminada for a utilização do
bitcoin, maior será o desperdício de energia.
Apesar dessa prodigalidade toda, porém, o bitcoin permanece limitado.
Como Nakamoto optou por restringir o tamanho dos blocos a um
megabyte, ou o correspondente a cerca de 1,4 mil transações, apenas
sete transações são processadas por segundo, bem menos que as 1.736
mil transações por segundo que a operadora Visa realiza nos Estados
Unidos. Seria possível ampliar o tamanho dos blocos; porém blocos
maiores levariam mais tempo para se propagar pela rede, aumentando
os riscos de bifurcação.
Plataformas anteriores superaram problemas semelhantes. Nos anos 90,
quando a invenção dos web browsers permitiu que milhões de pessoas
passassem a navegar online, alguns especialistas previram que a
internet acabaria completamente congestionada: eppur si muove. Da
mesma forma, o sistema bitcoin não está se imobilizando. Há
computadores especializados em mineração extremamente econômicos
no consumo de energia; e alternativas, em que o uso de energia é
menor, têm sido propostas ao mecanismo da prova de trabalho. Os
desenvolvedores também trabalham numa extensão chamada
“Lightning”, que se encarregaria de processar grande quantidade de
transações menores fora da blockchain. Conexões mais velozes
permitirão que a propagação de blocos maiores seja tão rápida quanto a
dos atuais.
O problema, porém, é menos a falta de alternativas, do que o fato de
que o “processo de aperfeiçoamento do bitcoin” dificulta que uma delas
seja escolhida. As mudanças dependem da aprovação da comunidade de
usuários, os quais, no caso, não são do tipo que chegam com facilidade
a consensos. No momento, por exemplo, há uma guerra civil em curso
por conta do tamanho dos blocos. Um dos lados receia que seu aumento
repentino leve a uma concentração ainda maior no setor de mineração,
transformando o bitcoin num sistema de processamento de pagamentos
mais convencional. O outro lado argumenta que, se nada for feito, há o
risco de que o sistema entre em pane já no ano que vem, com as
transações passando a levar horas para serem efetivadas.
Uma pausa na batalha. Hearn e Gavin Andresen, outro maioral no
universo bitcoin, lideram o grupo favorável a blocos grandes. Os dois
fizeram um apelo às empresas de mineração para que instalassem uma
versão nova do bitcoin, que suporta tamanhos de blocos muito maiores.
No entanto, alguns dos mineiros que fizeram isso parecem estar sendo
alvo de ciberataques. E, no que parece ser um esforço concertado para
expor a necessidade, ou os perigos, de tal upgrade, um número imenso
de transações minúsculas tem feito o sistema operar em seu limite
máximo de capacidade.
Tudo isso emprestou novo vigor às tentativas de criar uma alternativa
ao bitcoin, com o desenvolvimento de uma blockchain voltada antes
para o armazenamento de livros-razões distribuídos, do que para a
circulação de uma criptomoeda. Produto da Coin, outra startup do
segmento, a MultiChain mostra que isso é possível: trata-se de uma
plataforma que permite ao usuário desenvolver sua própria blockchain.
Além de oferecer as ferramentas para a criação de uma blockchain
pública, como a do bitcoin, a plataforma pode ser utilizada para criar
correntes de blocos privadas, abertas apenas a usuários cuja
confiabilidade tenha sido previamente atestada. Se todos os usuários da
rede são confiáveis, então a necessidade dos mecanismos de mineração
e de prova de trabalho é reduzida, ou mesmo eliminada, e a associação
de uma moeda ao livro-razão passa a ser um acessório opcional.
É bem capaz que o primeiro setor da economia a adotar esses filhotes
da blockchain seja o mesmo cujas falhas serviram de motivação original
para o trabalho de Nakamoto: o financeiro. Nos últimos meses, os
banqueiros têm demonstrado entusiasmo com a possibilidade de usar
blockchains privadas para manter livros-razões à prova de
manipulações indevidas. Um dos motivos, ironia das ironias, é que essa
tecnologia, nascida do ultraliberalismo antiestatal, pode facilitar o
cumprimento de exigências regulatórias que obrigam os bancos a ter
um conhecimento mais aprofundado de seus clientes, além de auxiliar
na observância das normas contra a lavagem de dinheiro. Mas há um
apelo mais profundo.
Historiadores econômicos observam que é frequente que o surgimento
de novos potenciais anteceda em muito o desenvolvimento dos
processos que melhor uso farão deles. Em seu relatório sobre moedas
digitais, o Banco da Inglaterra vê algo parecido prestes a acontecer no
setor financeiro. Graças ao barateamento do poder de processamento,
as instituições financeiras tornaram digitais seus procedimentos
internos; mas ainda não mudaram suas organizações de maneira
correspondente. Os sistemas de pagamentos ainda são
majoritariamente centralizados: as transferências são compensadas por
autoridades monetárias. Quando duas instituições financeiras fazem um
negócio entre si, o trabalho pesado envolvido na sincronização de seus
livros-razões internos pode levar dias para ser concluído, obstruindo
capital e aumentando o risco.
Livros-razões distribuídos que processam transações em minutos ou
segundos podem contribuir muito para solucionar esse tipo de problema
e realizar a grande promessa de tornar as atividades bancárias
efetivamente digitais. Também podem ajudar os bancos a economizar
muitos recursos. Segundo o Santander, até 2022 esses livros-razões
permitiriam aos bancos reduzir seus custos em até US$ 20 bilhões por
ano. Os fornecedores de blockchains ainda precisam dar mostras de que
seriam capazes de lidar com taxas de transações muito mais elevadas
do que a do sistema bitcoin; mas os grandes bancos já pressionam pela
adoção de parâmetros que moldem a tecnologia emergente. Um deles, o
UBS, propõe a criação de uma “moeda de compensação” padrão. A
primeira tarefa da R3 CEV, uma startup de blockchain que recebeu
investimentos do UBS — assim como do Goldman Sachs, JPMorgan e
outros 22 bancos — é desenvolver uma arquitetura padronizada para
livros-razões privados.
Essa ordem de problema não afeta apenas instituições financeiras.
Empresas e órgãos públicos de todos os tipos penam com bancos de
dados de difícil manutenção, os quais com frequência são incompatíveis
entre si. Isso para não falar nos altos custos para fazê-los conversar uns
com os outros. Esse é o problema que o Ethereum, provavelmente o
mais ambicioso dos projetos de livro-razão distribuído, pretende
resolver. Criação do programador-prodígio Vitalik Buterin, um
canadense de 21 anos, o livro-razão distribuído do Ethereum é capaz de
lidar com mais dados do que o do bitcoin. E vem com uma linguagem de
programação que permite aos usuários elaborar contratos inteligentes
mais sofisticados, gerando faturas que se pagam por conta própria
quando a encomenda chega às mãos do cliente, ou emitindo certificados
de ações que enviam dividendos aos investidores se os lucros atingem
determinado patamar. Tamanha engenhosidade, espera Buterin,
possibilitará a formação de “organizações autônomas e
descentralizadas” — companhias virtuais que serão, basicamente,
apenas conjuntos de regras rodando na blockchain do Ethereum.
O tipo de programabilidade oferecido pelo Ethereum não permite
apenas rastrear e registrar a propriedade das pessoas. Possibilita
também que ele seja usado de novas maneiras. Chaves de carros
incorporadas à blockchain do Ethereum poderiam ser vendidas ou
alugadas segundo um sem-fim de procedimentos baseados em regras
pré-determinadas, viabilizando novos esquemas peer-to-peer de aluguel
e compartilhamento de veículos. Indo mais além, há quem fale em usar
a tecnologia para fazer com que os futuros carros autônomos não
apenas se autoconduzam, como sejam proprietários de si mesmos. Os
veículos poderiam economizar parte do dinheiro digital gerado com o
aluguel de suas chaves para cobrir custos com combustível,
manutenção e estacionamento, tudo de acordo com regras pré-
programadas.
O que Rousseau diria? Como não poderia deixar de ser, há quem
considere essas ideias excessivamente ambiciosas. A mineração do
primeiro bloco do Ethereum só aconteceu em agosto. E mesmo com um
pequeno ecossistema de startups operando a sua volta, Buterin admitiu
recentemente que o dinheiro anda curto. Não há como saber ainda quais
blockchains irão prosperar e quais naufragarão. O fato relevante, porém,
é que o entusiasmo generalizado com os livros-razões distribuídos tem
levado tanto startups, como gigantes que dominam seus respectivos
mercados, a avaliar o potencial da tecnologia.
Livros-razões que já não precisam ser mantidos por uma empresa – ou
por um governo – podem, com o tempo, impulsionar mudanças no modo
como empresas e governos operam, no que se espera deles e no que
pode ser feito sem o seu concurso. A percepção de que sistemas que
operam sem registros centralizados têm como ser tão confiáveis quanto
os que fazem uso deles pode produzir transformações radicais.
É inevitável que essas ideias despertem reações de ceticismo e
descrença — as blockchains ainda são uma novidade aplicável somente
em alguns nichos, e as dúvidas quanto a sua capacidade de se propagar
e ganhar escala podem vir a se mostrar corretas. Também não há como
evitar que as blockchains suscitem resistência. Alguns críticos do
bitcoin sempre viram na moeda digital apenas mais uma tentativa dos
entusiastas da tecnologia para divulgar certa “ideologia californiana”,
que promete a salvação por meio de descentralizações movidas a
inovações tecnológicas, ao mesmo tempo em que ignora e obscurece as
realidades do poder — e concentra riquezas nas mãos de uma elite. A
ideia de fazer da confiança uma questão de programação — e não de
política, legitimidade e prestação de contas democrática — não é
necessariamente atraente nem emancipadora.
Nem por isso os mecanismos de escrituração matematicamente imunes
a manipulação deixariam de trazer benefícios. A hondurenha Izaguirre
estaria em melhores condições; e o mesmo se pode dizer de muitas
outras pessoas em outros contextos. Se as blockchains contêm um
paradoxo fundamental, é o seguinte: ao oferecer uma maneira de gravar
o passado e o presente na pedra criptográfica, elas podem fazer do
futuro um lugar diferente.
© 2015 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS
RESERVADOS. TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO
SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM
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