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7/25/2019 Adaptao Literria Para o Cinema
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A ADAPTAO LITERRIA PARA CINEMA ETELEVISO
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por Jorge Furtado
29/08/2003
Palestra na 10 Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo/RS
O tema do nosso encontro hoje a transposio da literatura para a linguagem
audiovisual. Vou comentar o assunto sob dois pontos de vista: o primeiro, tcnico ou
esttico. O segundo, tico. Quanto aos aspectos estticos, h muitas diferenasentre a linguagem escrita e a linguagem audiovisual. Eu vou tentar lembrar aqui trs
dessas diferenas.
A primeira e mais evidente diferena que na linguagem audiovisual toda a
informao deve ser visvel ou audvel. Isto parece uma obviedade ululante mas
quem j tentou fazer um roteiro sabe como difcil evitar a tentao de escreve r: Joo
acorda e lembra de Maria. Isso muito fcil escrever e muito difcil de filmar. Palavras
como pensa, lembra, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em qualquer
romance, so proibidas para o roteirista, que s pode escrever o que visvel.A
literatura, que a todo momento nos remete ao fluxo de conscincia dos personagens,
pode utilizar todas essas palavras. Mas no necess ariamente precisa utilizar todas
essas palavras, o que faz com que alguns textos sejam muito mais facilmente
adaptveis do que outros.
A segunda diferena fundamental, e que tambm diz respeito natureza dess as
linguagens, pode ser analisada a partir de uma frase de que Umberto Eco: "toda a
narrativa se apia paras iticamente no conhecimento prvio que o leitor tem da
realidade". A metamorfose de Kafka comea com a seguinte frase: Ao despertar
aps uma noite de sonhos agitados Gregor Sams a encontrou-se em sua prpriacama transformado num inseto gigantesco. Esta frase, talvez a melhor primeira
frase da histria do romance, diss e tudo que preciso saber para que a his tria
comece. Cada um de ns , leitor, imaginou a sua prpria cena, o escritor nos informa
apenas aquilo que ele julga ser necess rio, o leitor imagina todo o resto.
J os cineastas - e os roteiristas - precisam fazer grande parte do trabalho do leitor.
Qual a cor do inseto? uma cama de madeira ou de m etal? Qual a cor das paredes
do quarto? Como a luz do quarto? H uma janela? A luz entra pela janela? Atravs
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da persiana ou atravs das cortinas? Como o piso desse quarto? de madeira ou
est coberto por um tapete? A cama tem lenis? H outros mveis no quarto?
Mesmo que muitas dess as perguntas sejam respondidas na seqncia do livro o
cineasta precisa imediatamente tomar essas decises, adiadas pelo autor. Lendo,
cada leitor crias suas prprias im agens, sem cus tos de produo e limites de
realidade. natural que se decepcione quando veja as imagens criadas pelo
cineasta e diga: "gostei mais do livro".
A ordem em que as in formaes so liberadas no cinema ou na literatura sointeiramente diferentes. Lembro de um trecho de um livro de Dashiel Hammet, o
mais filmvel dos romancistas, em que Sam Spade descreve sua entrada numa
casa: "Havia duas mulheres na sala. As duas es tavam nuas mas s uma estava
morta". A frase de Hammett nos s urpreendente pela avalanche de informaes.
Hammet primeiro nos informa que h duas mulheres na sala, depois nos informa
que esto nuas e em terceiro lugar nos informa que uma delas est morta. A
adaptao desta cena para o cinema quas e que inevitavelmente perde o carter
surpreendente desta escolha ao revelar sim ultaneamente a existncia das duas
mulheres, o fato de estarem nuas e o fato de uma delas estar morta.
O terceiro aspecto tcnico a ser cons iderado que o cinema, como a m sica, uma
forma de expresso em que o tempo de apreenso das informaes definido
exclusivamente pelo autor. Cada um de ns estabelece o prprio ritmo de leitura.
Cada um de ns passa o tempo que quiser observando um quadro. Mesmo no
teatro, o ator pode esperar que o pblico pare de rir de uma piada para dar seqncia
ao texto. Mas um filme de 1 hora e 32 minutos visto por qualquer espectador em 1
hora e 32 minutos.
Alm destas trs, poderamos lem brar ainda de muitas outras diferenas. O cinema,ao contrrio da literatura, um evento, um ritual para o qual nos vestimos , samos de
casa e pagamos ingresso, um ritual compartilhado com outros espectadores. O
cinema um trabalho coletivo, ao contrrio do texto, quase sempre expresso de um
indivduo. A linguagem cinematogrfica, ao contrrio do texto, intuitiva, ningum
precisa ser alfabetizado para entender um filme. Mas im portante lembrar que o
cinema no s literatura. Ele mis tura fotografia, teatro, msica, dana pintura e
literatura, criando a s ua prpria linguagem, que es t em cons tante transformao,
como qualquer linguagem. Muitos outros elementos, no presentes na literatura so
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utilizados pela linguagem do cinema, como os movimentos de cmera, os
enquadramentos, a ms ica, a cor e a luz. Cabe ao roteirista agregar ess es
elementos ao filme de modo a ser fiel - ou no - ao esprito do texto.
A linguagem audiovisual, tendo como base a literatura ou no, tem dado, neste
sculo de existncia, uma enorme contribuio ao acervo do conhecimento humano.
Eu no precisaria aqui lembrar de como o cinema e tambm a televiso contriburam
para compartilhar as diferentes vises de mundo, de diferentes pocas e pases.
Vrios livros sagrados nos alertam do perigo de criar imagens, mas qualquerraciocnio no s entido de uma contra-revoluo da imagem acaba, em extremo, na
imperdovel exploso das esttuas de Buda no Afeganisto.
As relaes entre o cinema e a literatura so antigas e nem sempre amis tosas .
Antes da inveno do direito autoral, em 1910, os cineas tas simplesmente roubavam
histrias dos livros. Em 1911, Gabriele d'Annunzio vendeu toda a sua obra, j escrita
e futura, para uma em presa cinematogrfica italiana. Desde l, milhares de livros
tm sido adaptados para o cinema. Segundo Ely Azeredo, a Bblia o livro campeo
de adaptaes, com incontveis filmagens. O s egundo lugar de Sir Arthur Conan
Doyle, com mais de 200 verses de Sherlock Holmes. Em terceiro lugar aparece oDrcula de Bram Stoker.
Esta uma platia de leitores e professores, mas duvido que algum de vocs j
tenha ouvido falar em Cornell Woolrich. No comeo dos anos 50 ele publicou numa
revista barata de contos policiais uma his tria intitulada "Tinha que ser as sassinato".
Em 1954 o conto de Woolrich se tornaria um dos maiores clss icos da his tria do
cinema, adaptado por Alfred Hitchcock com o ttulo de "Janela Indiscreta". Isso no
me faz concordar com a divertida afirmao de Hitchcock de que "livros ruins que
do filmes bons". Dashiell Hamm et e James Cain eram grandes escritores e seuslivros deram timos filmes . James Ellroy um timo es critor e seu livro Los Angeles,
Cidade Proibida virou um timo filme. Shakespeare, para citar o maior dos autores,
j foi transformado em pelo m enos trs grandes filmes : Ran (baseado em Rei Lear)
e Trono manchado de s angue (baseado em Macbeth), duas adaptaes de Akira
Kurosawa, alm do Hamlet de Laurence Olivier.
Mas certo que a boa literatura no necess ariamente d bons filmes. William
Faulkner, alm de nunca ter virado um bom filme, trabalhou em Hollywood e foi um
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roteirista medocre. Dostoievski, Kafka, Cervantes, Proust, Machado de Assis ou Ea
de Queirs ainda no entraram para a histria do cinema.
A literatura uma forma de expresso muitss imo mais complexa que o cinema, no
s pelo seu acesso fcil ao inconsciente alheio, mas tambm porque comeou
quatro ou cinco mil anos antes . Se achamos que "Cidado Kane" um clss ico por
ter sido o seu "valor posto prova do tempo", o que dizer de Homero, Aristteles,
Montaigne, Shakespeare e Cervantes?
O cinema sempre aprendeu com a literatura, no s filmando suas his trias mas
tambm reproduzindo seu procedimentos narrativos. Usando como guia o livro
"Mimes is", de Erich Auerbach, poderamos fazer um paralelo entre os modos de
representao da realidade na literatura e no cinema. De Homero o cinema
aprendeu o flash-back e a idia de que cronologia vcio. De Petrnio, o poder
dramtico da prosdia e a subjetividade do discurso. De Dante, a vertigem dos
acontecimentos, a rapidez para mudar de assunto. De Boccaccio, a idia da fbula
como entretenimento. De Rabelais, os delrios visuais e certeza de que a arte tudo
que a natureza no . De Montaigne, o esforo para registrar a condio humana. De
Shakespeare, Cervantes (e tambm de Giotto) a corporalidade do personagem e opoder da tragdia. Da comdia de Molire o cinema aprende que a histria uma
mquina. Voltaire ensinou a decupagem, a tcnica do holofote e o hum or como forma
avanada da filosofia. De Goethe o cinema (e tambm a televiso) aprendem o
prazer do sofrimento alheio. De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narrao off e o
autor como personagem. De Flaubert, vem a imagem dramtica e o roteiro como
tentativa de literatura. Brecht o pai do cinema-teatro e a idia de que realismo tem
hora.
Eu, claro, no fui o primeiro a buscar na literatura a chave para a compreenso dosprocedimentos narrativos do cinema. Eisens tein foi fundo sobre o tema no seu texto
"Dickens, Griffith e ns":
"Deixemos Dickens e toda a pliade de antepassados, que remontam inclus ive aos
gregos e a Shakespeare, lhes lembrarem m ais uma vez que ambos, Griffith e nosso
cinema, provam que noss as origens no so apenas as de Edison e seus
companheiros inventores, mas s e baseiam num enorme pass ado cultural; cada
parte deste passado, em seu momento da histria mundial, impulsionou a grande
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arte da cinematografia. Que este passado s eja uma reprovao s pessoas
inconscientes que trataram com arrogncia a literatura, que contribuiu tanto para esta
arte aparentemente sem precedentes e , em primeiro lugar, e no mais importante: a
arte de observar - no apenas ver, mas observar." Eisenstein, em "A Forma do Filme".
Claro, disso que se trata, no cinema, na literatura ou em qualquer forma de
expresso: a arte de observar. Observar a vida e traduzi-la em obra, seguindo o
conselho de Stravisky: "arte requer comunho".
Para falar sobre o os aspectos ticos da relao do cinema com a literatura, eu
comeo lembrando uma frase de Thomas Edison, um dos pioneiros do cinema:
"estou trabalhando numa inveno extraordinria e em pouco tempo as crianas no
precisaro ler nenhum livro".
Este encontro em Pass o Fundo, e o interesse das milhares de crianas que
participam da Jornadinha, uma prova de que a profecia de Edison, felizmente, no
se cumpriu. Mas certo que a necess idade de ouvir histrias e contar histrias, que
at o sculo dezenove era em grande parte suprida pela literatura (e, para a maioria
analfabeta, pelo teatro) foi substituda em grande parte pelo cinema e depois pelateleviso. Quem tem filhos sabe da dificuldade de convenc-los a enfrentar a longa,
silenciosa e solitria leitura de um romance. Mas quem ama realmente seus filhos e
j sentiu pelo menos um a vez o prazer da leitura, no desiste de tentar. E quase
sempre tem sucesso.
O cinema aprofundou uma transformao chamada por Daniel Boorstin de "a
revoluo grfica". Ela comeou nos EUA no sculo dezenove. Graas s novas
tecnologia de impresso de fotos, os jornais foram inundados de im agens. Alguns
crticos comearam a se queixar do excesso de ilustraes da im prensa. O cinema,
surgido no final do sculo dezenove e desenvolvido no incio do sculo vinte, elevou
os efeitos desta revoluo ao cubo. Na opinio de Boors tin, o que esta enchente de
imagens tem de mais preocupante que ela possa incentivar apenas o pensamento
imagtico, "pensar em termos de uma imitao ou representao artificial da forma
externa de qualquer objeto e, sobretudo, de uma pessoa".
Este pensamento nasce custa do pensamento ideal: "pensar em termos de
alguma idia o valor ao qual se pode aspirar." Neal Gabler afirma que "a profuso de
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imagens nos direciona para o aqui e o agora, para algo imediatamente til. O ideal
nos direciona para algo acima e alm, para algo cuja utilidade no aparente de
pronto". Para Boorstin a revoluo grfica foi tambm uma revoluo moral porque
subs titua a aspirao pela gratificao.
Neil Postman acrescenta uma obs ervao a isso: o texto impresso exige raciocnio.
Empregar a palavra escrita significa seguir uma linha de pensam ento que exige um
poder considervel de classificao, de inferncias e argumentao. Uma sociedade
baseada sobretudo no texto escrito seria aquela em que a lgica, a ordem e ocontexto predominam. Numa s ociedade baseada em imagens , por outro lado, lgica
e contexto perdem terreno para a gratificao imediata. A revoluo da imagem
transformou nossa m aneira de pensar. No seria o caso de afirmar, como Godard,
que o cinema foi um erro, mas fundamental reconhecer que ele supre parcialmente
nossa necessidade de compartilhar histrias e ocupa um espao antes preenchido
pela literatura.
importante lembrar, a favor da transpos io da literatura para o cinema ou para a
televiso, que todas as obras adaptadas aumentam em muito suas vendas. Eu no
sei se as pess oas lem os livros mas sei elas compram os livros, o que bom.Certamente, algumas lem os livros. O sim ples fato de incentivar a leitura justifica as
adaptaes. E j que o tema da Jornada a incluso, preciso lembrar que somos
o pas de maior concentrao de renda do mundo, o campeo planetrio da
desigualdade. E se temos sem -terras, sem-teto e sem-emprego, temos tambm
milhes de sem-livros e de sem -cinema. A televiso, presente em quase todas as
casas bras ileiras, assume assim um papel fundamental de difuso cultural. pena
que seja to raramente utilizada com qualidade. Os milhes de bras ileiros, sem
livros e s em cinema, merecem, pelo menos, uma televiso melhor. Como afirma
Jean-Claude Bernardet, fundamental "entender a dramaturgia como um laboratriosocial porque atravs dela que pesquisaremos e aprofundaremos as nos sas
relaes com o social". na sua produo cultural que um povo se reconhece e, se
reconhecendo, pode se transformar.
Para terminar quero deixar registrado, especialmente aos pais presentes, de que as
narrativas audiovisuais , por melhores que s ejam, no subs tituem a importncia e o
prazer da leitura. S a leitura produz escritores e s a leitura produz bons cineastas.
O cinema e a televiso criam imagens, a leitura cria imaginao.
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Jorge Furtado
Passo Fundo, 29 agosto de 2003.
Bibliografia:
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representao da realidade na literatura universal.
Editora Perspectiva, 1992.
AZEREDO, Ely. A tentao da literatura na tela. Texto para o Jornal do Brasil, Rio deJaneiro, 2002.
BERNARDET, Jean-Claude. A prtica da dramaturgia como laboratrio social. Texto
para o jornal O Estado de So Paulo, 8 de s etembro de 2002.
BOORSTIN, Daniel J. Os Criadores. Civilizao Brasileira, 1995.
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bos que da fico. Companhia de Letras, So
Paulo, 1994.
ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1984.
ECO, Umberto. Lector in Fbula. Coleo Narratologia, Editora Perspectiva, So
Paulo, 1976.
ECO, Umberto. Sobre literatura. Editora Record, So Paulo, 2002.
EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Jorge Zahar, 2002.
GABLER, Neal. Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade.
Companhia de Letras, So Paulo, 2000.
MAMET, David. Trs usos da faca: sobre a natureza e a finalidade do drama.
Civilizao Brasileira, 2001.
POSTMAN, Neil. Technopoly: the surrender o f culture to technology. New York, 1992.
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Textos sobre cinema acima A CHUVA, O CINEMA E A CARA-DE-PAU DO MALUF
XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematogrfico. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1977.
(C) Jorge Furtado
agosto de 2003
Casa de Cinema de Porto Alegre . Rua Miguel Tostes 860 . Porto Alegre/RS . 90430-060 . Tel/Fax: +55 51 3316-9200 BrasilDesenvolvido por Brod Tecnologi a e Dobro Comunic ao, util izando o Drupal.
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