6
Geografia e P olítica Internacional ABRIL 1993 ANO 1 - N o 2 “A economia, panaca!” . Um cartaz com esse alerta adornou o comitê central de campanha do candidato Bill Clinton à Presidência dos Estados Unidos. Clinton chegou à Casa Branca empurrado pela impaciência dos cidadãos com o desemprego e a recessão. A América rejeitou Bush e suas glórias no front externo – da queda do Muro de Berlim e decomposição da União Soviética à vitória militar nas areias do Kuait e céus de Bagdá – para curar as suas feridas no front interno. Mas, poucos meses de pois da posse de Clinton, o agravamento da crise da Rússia, do caos étnico nos Bálcãs e na Comunidade de Estados Independentes (CEI) fazem soar o alarme. O front externo volta a atormentar a América. Durante as quatro décadas que antecederam a queda do Muro de Berlim (novembro de 1989), o sistema bipolar da Guerra Fria assegurou a estabilidade européia. O jogo empatado das superpotências nuclares envolveu a Europa numa dupla armadura, formada pela Otan e pelo Pacto de Varsóvia. A ditadura comunista sufocou paixões nacionalistas e tensões étnicas disseminadas no leste europeu e na antiga URSS. Mas o colapso do império vermelho liberou a torrente represada, que ameaça destruir o edifício de Estados e fronteiras erguido entre as duas grandes guerras. O vazio de poder aberto pelo fim do comunismo é preenchido pelo caos e pelo conflito armado. A Rússia, envolvida no turbilhão da crise, encara com ansiedade temor o crescimento da desordem étnica no Cáucaso, enquanto a sombra do Islã amplia-se na Ásia central. Na Bósnia em chamas, desenrola-se um novo ato inesgotável catástrofe balcãnica. Boris Ieltsin presidente russo apoiado pelo Ocidente, vacila sob o impacto do conflito de poderes com o Parlamento. A “pax americana”- uma nova era de estabilidade mundial baseada na hegemonia dos Estados Unidos - , proclamada apressadamento por Bush, faz água por todos os lados. Clinton, querendo ou não, será levado a redefinir prioridades no sentido oposto ao preconizado por sua campanha. “A política externa, panaca!” . (LEIA MAIS SOBRE AS CRISES NA ANTIGA URSS E NA BÓSNIA ÀS PÁGS. 4 E 5) AGONIA SOCIAL-DEMOCRATA QUESTIONA EQUILÍBRIO EUROPEU O Partido Socialista Francês, de François Mitterrand, obteve menos de 18% dos votos nas eleições parlamentares, em março. É o prenúncio de um desastre eleitoral e político que deverá afetar a social-democracia européia, um dos pilares do equilíbrio político no pós-Guerra. J. B. Natali, cor- respondente do jornal Folha de S. Paulo em Paris entre 1974 e 1982, conta como foi a eleição de Mitterrand, em 1891, e faz um balança do socialismo francês. Pág.3 TAMBORES DA GUERRA SOAM DE NOVO NAS COLINAS DE JERUSALÉM A expulsão de 415 palestinos de Israel, em dezembro, estimulou os conflitos entre tropas israelenses e manifestantes da Intifada, num processo que pode degenerar em guerra civil. É a reversão das perspec- tivas de paz, abertas com o fim da Guerra Fria, com a derrota, em Israel, do radical Likud de Yitzhak Shamir, e tendo Washington ampliado seu poder militar direto de exigir a formulação de um acordo estável, mediante a ocupação militar do Golfo após a guerra contra Sadam Hussein. Pág. 7 NOVA CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA Em texto comovente e inédito no Brasil, o mundialmente respeitado intelectual palestino Edward Said, chefe da cadeira de Inglês da Columbia University de Nova Iorque, narra uma recente visita que fez a Jerusalém e aos territórios ocupados de Cisjordânia e Gaza. Ao saber-se portador de um incurável câncer sanguíneo, Said quis voltar, pela última vez, à terra em que nasceu. Pág. 6

afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

  • Upload
    halien

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

Geo

gra

fia e

Po

líti

ca

Inte

rnacio

nal

ABRIL1993

ANO 1 - No2

“A economia, panaca!”. Um cartaz com esse alerta adornou o comitê central de campanha docandidato Bill Clinton à Presidência dos Estados Unidos. Clinton chegou à Casa Branca empurrado

pela impaciência dos cidadãos com o desemprego e a recessão. A América rejeitou Bush e suasglórias no front externo – da queda do Muro de Berlim e decomposição da União Soviética à vitória

militar nas areias do Kuait e céus de Bagdá – para curar as suas feridas no front interno. Mas, poucosmeses de pois da posse de Clinton, o agravamento da crise da Rússia, do caos étnico nos Bálcãs e naComunidade de Estados Independentes (CEI) fazem soar o alarme. O front externo volta a atormentar

a América. Durante as quatro décadas que antecederam a queda do Muro de Berlim (novembro de1989), o sistema bipolar da Guerra Fria assegurou a estabilidade européia. O jogo empatado das

superpotências nuclares envolveu a Europa numa dupla armadura, formada pela Otan e pelo Pacto deVarsóvia. A ditadura comunista sufocou paixões nacionalistas e tensões étnicas disseminadas noleste europeu e na antiga URSS. Mas o colapso do império vermelho liberou a torrente represada,

que ameaça destruir o edifício de Estados e fronteiras erguido entre as duas grandes guerras. O vaziode poder aberto pelo fim do comunismo é preenchido pelo caos e pelo conflito armado. A Rússia,

envolvida no turbilhão da crise, encara com ansiedade temor o crescimento da desordem étnica noCáucaso, enquanto a sombra do Islã amplia-se na Ásia central. Na Bósnia em chamas, desenrola-seum novo ato inesgotável catástrofe balcãnica. Boris Ieltsin presidente russo apoiado pelo Ocidente,

vacila sob o impacto do conflito de poderes com o Parlamento. A “pax americana”- uma nova era deestabilidade mundial baseada na hegemonia dos Estados Unidos - , proclamada apressadamento porBush, faz água por todos os lados. Clinton, querendo ou não, será levado a redefinir prioridades no

sentido oposto ao preconizado por sua campanha. “A política externa, panaca!”.

(LEIA MAIS SOBRE AS CRISES NA ANTIGA URSS E NA BÓSNIA ÀS PÁGS. 4 E 5)

AGONIA SOCIAL-DEMOCRATA QUESTIONA EQUILÍBRIO EUROPEUO Partido Socialista Francês, de François Mitterrand, obteve menos de 18% dos votos nas eleiçõesparlamentares, em março. É o prenúncio de um desastre eleitoral e político que deverá afetar asocial-democracia européia, um dos pilares do equilíbrio político no pós-Guerra. J. B. Natali, cor-respondente do jornal Folha de S. Paulo em Paris entre 1974 e 1982, conta como foi a eleição deMitterrand, em 1891, e faz um balança do socialismo francês. Pág.3

TAMBORES DA GUERRA SOAM DE NOVO NAS COLINAS DE JERUSALÉMA expulsão de 415 palestinos de Israel, em dezembro, estimulou os conflitos entre tropas israelenses emanifestantes da Intifada, num processo que pode degenerar em guerra civil. É a reversão das perspec-tivas de paz, abertas com o fim da Guerra Fria, com a derrota, em Israel, do radical Likud de YitzhakShamir, e tendo Washington ampliado seu poder militar direto de exigir a formulação de um acordoestável, mediante a ocupação militar do Golfo após a guerra contra Sadam Hussein. Pág. 7

NOVA CRÔNICA DE UMAMORTE ANUNCIADA

Em texto comovente e inédito no Brasil,o mundialmente respeitado intelectualpalestino Edward Said, chefe da cadeirade Inglês da Columbia University deNova Iorque, narra uma recente visita quefez a Jerusalém e aos territóriosocupados de Cisjordânia e Gaza. Aosaber-se portador de um incurável câncersanguíneo, Said quis voltar, pela últimavez, à terra em que nasceu. Pág. 6

Page 2: afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

2

ABRIL DE 1993 MUNDO

SEM FRONTEIRASEsta seção acolherá cartas de alunos e professores conten-do opiniões e críticas e não apenas a respeito dos assuntostratados no boletim, mas também sugestão sobre sua for-ma e conteúdo. Só serão aceitas cartas portando o nomecompleto, endereço, telefone e identidade (RG) do remeten-te. A Redação reserva-se o direito de não publicar cartas,assim como o de editá-las para sua eventual publicação.

Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país, além de umou dois estrangeiros, para preparar-me para o vesti-bular. Já naquela época, livros e apostilas se ressenti-am da impossibilidade de acompanhar as mudançasdo mundo. Vinte e três anos depois, Mundo veio pre-encher a lacuna. O Colégio Mater Dei recebe comentusiasmo a iniciativa, e já considera o boletim ma-terial pedagógico complementar indispensável.(Walter Puccini, Diretor Pedagógico do 2o Grau)

***A decisão de assinarmos oboletim Mundo deve-se afatores importantes:*o alto nível profissionaldos redatores, já bastanteconhecidos por nosso cor-po docente e por nossosalunos, tanto por suasobras publicadas quantopor palestras;*A dificuldade de acesso,de maneira sistemática, aesse tipo de informação. A

opinião de nossos alunos é unânime no sentido de elo-giar a clareza das informações. Com sua leitura, os alu-nos podem contemplar uma excelente formação nacompreensão do momento histórico, além de melhorse preparem para o vestibular.(Marco Antônio dos Santos, diretor do Anglo de S. J.do Rio Preto)

***

EXPEDIENTE

MUNDO - Geografia e Política Internacional éuma publicação de PANGEA - EDIÇÃO ECOMERCIALIZAÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICOLTDA. Distribuída para as escolas conveniadas

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,Nelson Bacic Olic, José Arbex Jr. (editor)Jornalista Responsável: José Arbex Jr.Diretor Comercial: Arquilau Moreira RomãoEndereço: Rua Brasílio Taborda, 158, CEP 05591-100, São Paulo, SP - Fones 813-2570 (SP), (016)634-8320 (Ribeirão Preto)Fax: (016) 623-5480 e Telex 164518 (Ribeirão Preto)A Redação não se responsabiliza pela opiniãoou informação veiculadas em matériasassinadas por eventuais colaboradores

A maior ameaça contra os Estados Unidos não é um grupo de malucos no OrienteMédio. É o que nós fazemos nós mesmos com drogas e com armas. Nós somos umdos povos mais violentos do mundo, porque nós escolhemos fazer isso contra nós

mesmos. O que me deixa triste é que nós somos os nossos piores inimigos.

(Mario Cuomo, governador do Estado de Nova Iorque, comentando o atentado, emmarço, contra o World Trade Center, O Estado de S. Paulo, 08/03/1993, pág. 7)

O governador critica um hábito muito arraigado na cultura americana, de julgar o “mal” comoalgo exterior ao seu país e à sua cultura.

MUNDO NO VESTIBULAR1) (PUC) A maioria dos governos dos países do mundo diz aceitar uma série de normasinternacionais, entre as quais: I – todos os povos têm direito a um território; II – não se aceita a conquista de territórios pelo uso da força.Responda agora o seguinte:a) Qual argumento você usaria para acusar Israel de não estar cumprindo a norma I?b) Qual argumento você usaria para acusar Israel de não estar cumprindo a norma II?2)(Casper Líbero)Em 1948, tivemos a criação oficial de um Estado que possibilitou aaglutinação de um povo histórico em uma base geográfica, mas lançou no desterro umpovo também antigo.Falamos da criação: a) da Tchecoslováquia b) da Polônia c) de Israel d) do Vietnã3) (Casper Líbero) Sobre a criação do Estado de Israel NÃO podemos afirmar que: a) surgiu da fundação, pela Inglaterra, do Lar Nacional Judeu b) seu território foi formado com a compra por entidades sionitas de terrenos na Palestina c) a ONU somente reconheceu a sua criação após ter obtido o acordo de árabes que habitavam

a Palestina d) responsável, em grande parte, pela situação de beligerância no Oriente Médio, aproveitou-se

das guerras que lhe moveram seus vizinhos árabes para aumentar seu território.4)(FUVEST) A chamada Ásia Ocidental constitui importante área de encontro de trêscontinentes: Ásia, África e a Europa. É marcada, principalmente pela instabilidade doslimites políticos, diversidade étnica da população e multiplicidade das crenças religio-sas. Três grandes religiões têm sua “Cidade Santa” na Ásia Ocidental. São elas: a) fetichismo, islamismo e judaísmo. b) budismo, hinduísmo e maometísmo. c) judaísmo, cristianismo e islamismo. d) cristianismo, bramanismo e islamismo. e) budismo, judaísmo e islamismo.5) (FUVEST) Os Tratados de Paz assinados ao fim da Primeira Guerra Mundial “aglutinaramvários povos num só Estado, outorgaram a alguns o status de ‘povos estatais’ e lhesconfiaram o governo, supuseram silenciosamente que outros povos nacionalmente com-pactos (como os eslovacos na Tchecoslováquia ou os croatas e eslovenos na Iugoslávia)chegassem a ser parceiros no governo, o que naturalmente não aconteceu e, com igualarbitrariedade, criaram com os povos que sobraram um terceiro grupo de nacionalidadeschamadas minorias, acrescentando assim aos muitos encargos dos novos Estados o pro-blema de observar regulamentos especiais, impostos de fora, para uma parte de suapopulação (…) Os Estados recém-criados, por sua vez, que haviam recebido a indepen-dência com a promessa de plena sabedoria nacional, acatada em igualdade de condiçõescom as nações ocidentais, olhavam os Tratados das Minorias como óbvia quebra de pro-messa e como prova de discriminação”

(Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo)A alternativa mais condizente com o texto é:

a) após a Primeira Guerra, os Tratados de Paz estabelecidos solaparam a soberania e estabeleceramcondicionamentos aos novos Estados do Leste europeu através dos Tratados das Minorias, o quecriou condições de conflitos entre diferentes povos reunidos em um mesmo Estado.b) o surgimento de novos Estados-nações se fez respeitando as tradições e instituições dos povosantes reunidos nos impérios que desapareceram com a Primeira Guerra Mundial.c) os Tratados de Paz e os Tratados das Minorias restabeleceram, no mundo contemporâneo, o siste-ma de dominação característico da Idade Média.d) apesar dos Tratados de Paz estabelecidos depois da Primeira Guerra teriam tido algumas caracte-rísticas arbitrárias em relação aos novos Estados-nações do Leste europeu, o desenvolvimento his-tórico destas regiões demonstra que foi possível uma convivência harmoniosa e gradativamenteocorreu a integração entre as minorias e as maiorias nacionais.e) os Tratados de Paz depois da Primeira Guerra conseguiram satisfazer os vários povos do Lesteeuropeu. O que perturbou a convivência harmoniosa foi o movimento de refugiados das revoluçõescomunistas.

1-A) O governos israelense não estaria cumprindo esta norma quando nega-se a aceitar qualquer negociação que trate dacriação de um estado palestino nos territórios de Gaza e da Cisjordânia.1-B) Durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel conquistou uma série de territórios dos países árabes vizinhos. DoEgito, Israel conquistou a Faixa de Gaza e a Península do Sinai da Jordânia, conquistou a Cisjordânia e da Síria, as Colinasde Golã. De todos esses territórios, o único que foi devolvido foi a Península do Sinai, em função dos acordos de CampDavid.2) C3) D4) C5) A

Fui informada sobre o boletim pela minha professorade Geografia. Achei muito importante, pois preocupa-dos com outras matérias, a maioria dos alunos não en-contra tempo para ler jornais diários, e o Mundo foi asolução.(Priscilla Ferreira de Souza, 3o Colegial do Colé-gio Orion de S. João da Boa Vista)(NR – Priscilla não conta, por modéstia ou timidez, queem sua escola partiu dela a iniciativa de fazer uma listade colegas interessados no boletim. Parabéns, e nos-sos agradecimentos)

***No Colégio Santo Américo, o boletim Mundocomplementa as aulas de geografia, ilustrando os con-ceitos trabalhados em sala de aula, com fatos relevan-tes da política internacional. Além do processo de apren-dizagem, à medida que desperta a curiosidade para arealidade mundial contemporânea.(Regina Araújo, professora de Geografia do Colé-gio Santo Américo)

***Palavra politizada, que transforma o relevo em polêmi-ca viva. A investigação como método apurado de críti-ca, aproximando as fronteiras do instante e do ato re-cente. Futuro incertos são dissecados por dedos há-beis… O boletim é a liga perfeita de materiais diversosque arrebentam os elos da atualidade mostrando car-nes, terras e homens de outros mundos.(Lucília Maria de Sousa Romão, curso de Reda-ção Tantas Palavras de Ribeirão Preto)

SEÇÃO PAPO CABEÇA

Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo

(Ludwig Wittgenstein, 1889-1951)

Respostas:

Page 3: afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

3

ABRIL DE 1993PANGEA

SOCIALISMO AGONIZA E EUROPAINDAGA O SEU FUTURODesastre eleitoral na França prenuncia colapso da social-democracia

As eleições parlamen-tares francesas de marçoconfirmaram as previsõesmais catastróficas para ossocialistas do presidenteFrançois Miterrand. Noprimeiro turno, menos de18% dos votantessufragaram os candidatosdo PS, contra perto de40% da coalizão conser-vadora UFP. Cerca de30% dos eleitores abstive-ram-se. O PSF foi reduzi-do a uma minoria quasemarginal.

Reconstruído porMiterrand em 1971, noCongresso de Épinav, oPartido Socialista Francêschegou ao poder dez anosdepois, cavalgando umaavalanche de esperançasreformistas (veja matériade J. B. Natali). Doze anosde governo separam aque-le momento da catástrofede março. Mais que a per-da do poder, a derrotaanuncia a morte do própriopart ido.Michel Rocard,presumível candidato soci-alista à Presidência em1995, já empunha abadeira do “big-bang”, aauto-imploão do PS. O“big-bang” poderá se es-tender a outros tradicionaispartidos social-democrataseuropeus. O PSOE (Parti-do Socialista Operário Es-panhol), no poder desde1982, corre o risco de per-der as eleições de 6 de ju-nho para uma direita pre-cária, de origem franquista. O PS italiano foi pararno noticiário policial, envolvido no mar de lama queabala Roma.

O movimento socialista originou-se nas últimasdécadas do século XIX, junto com os grandes sin-dicatos e indústrias. Gradualmente, abandonou aidéia de revolução, trocando-a pela luta por refor-mas democráticas. Essa substituição gerou a rup-tura entre socialistas e comunistas. No século XX,por duas vezes, a social-democracia renasceu dascinzas. Golpeada pela emergência dos naciona-lismos, à época da 1a Guerra (1914-18), ressur-giu na crista da prosperidade efêmera da décadade 20. Demolida pelos nazifascistas, ressurgiuacomodando-se à Guerra Fria e à divisão do continente em blocos geopolíticos.

A reconstrução européia do pós-Guerra, iniciada com o Plano Marshall, formou o ambienteda reconstituição dos PGs, ancorados em bases parlamentares e sindicais. Desde os anos 60,a estabilidade da política européia assentou-se na alternância de poder entre os social-demo-cratas e os conservadores. Na década de 80, o ciclo econômico inverteu-se. Sob o impacto danova revolução tecnológica e da especulação financeira, as indústrias tradicionais entraramem crise. Os sindicatos perderam seu poder de pressão, enquanto crescia o desemprego (vejao gráfico). O neo-liberalismo iniciou a destruição das leis sociais erguidas nos trinta anos prece-dentes. Os socialistas curvaram-se aos novos ventos, abandonando as raízes reformistas.

Na França e na Espanha, revelaram-se neo-liberais extremados, aplicando meticulosamen-te a política dos outros. Vítima da depressão econômica e do caminho que escolheu, a social-democracia arrasta na sua agonia o conjunto do sistema partidário europeu do pós-Guerra.

Em Paris, produtores protestam contra a política de preços;Washington quer que a França corte subsídios à agricultura(março de 1993)

A década de 80 promoveu uma alteração de patamar nos índicesde desemprego na Comunidade Européia. Sob o impacto da con-corrência internacional, as empresas européias tiveram que seadaptar aos níveis de produtividade impostos por japoneses eamericanos. A crescente unificação dos mercados no quadro daCEE impulsionou essas transformações, voltadas para a concen-tração dos capitais e redução da oferta de empregos. Os PSs fran-cês e espanhol romperam com os sindicatos para aplicar o neo-liberalismo. Já seus primos na Alemanha e Grã-Bretanha, por es-tarem for a do poder, puderam preservar os vínculos com os sindi-catos. Por isso, são exceções no panorama de desagregação dosocialismo europeu.

“EM 1981, A ESQUERDA FES-TEJOU A VITÓRIA COMO SE

FOSSE A COPA DO MUNDO”J. B. NATALI

A esquerdana França temuma históriaquase apenasde derrotas. Épor isso que emmaio de 1981 aeleição deF r a n ç o i sMiterrand à Pre-sidência foi co-memorada nasruas pelo eleito-rado socialistacom a mesmaalegria comque, no Brasil,comemoraría-mos a vitória naCopa do Mundo. Eu estava lá. Era correspon-dente da Folha de S. Paulo, e cobri os mo-mentos mais importantes da campanha. Cor-ri o país em caravanas que atravessavam flo-restas da região dos Vosges, passavam porplanícies da Bretanha e cidades como Lyon.

No início, Miterrand aplicou um programacom duas características básicas. A primeiraconsistia em fazer com que o Estado partici-passe mais da economia. Foram nacionaliza-dos os bancos e os oito principais conglome-rados industriais. A segunda foi social: as fé-rias passaram de quatro para cinco semanaspor ano e a jornada semanal de trabalho caiude 40 para 39 horas. Mas, estatizar a econo-mia era nadar contra a maré. A partir de 1986,parte dos bancos e fábricas que o governohavia encampado voltou ao setor privado. Asconquistas trabalhistas foram mantidas. O sa-lário mínimo aumentou mais rapidamenteque a inflação e é superior a Cr$25 milhões(cerca de mil dólares). Os desempregados(10% da mão de obra ativa, muito para a Fran-ça mas nem tanto para o Brasil: em SP, o de-semprego vitima 15%) ganham por 30 mesesuma mesada correspondente a 60% de seussalários, e os destituídos de meios de sobre-vivência – 400 mil dos 57 milhões de habitan-tes – recebem mesada de Cr$12milhões.

A divergência entre a esquerda e a direitaestá entre outras coisas na maneira como semelhoraria o padrão de vida. A direita acredi-ta que o mercado possui uma “mão invisível”que redistribui riquezas quando elas são acu-muladas. A esquerda acha que o Estado devedar uma mãozinha. Há alguns anos as dife-renças eram bem mais radicais. A esquerdaqueria fazer uma revolução socialista, e a di-reita estava disposta a tudo para impedi-la.Instituiu uma ditadura, com ajuda dos nazis-tas na 2ª Guerra.

Eu não acompanhei os detalhes da experi-ência socialista. Voltei ao Brasil em 1982. Masdeu para saber o que se passava. Penso quevaleu a pena para os franceses. Eles são umpaís do 1° Mundo, os serviços públicos funci-onam e, no fim das contas, a opção entre di-reita e esquerda foi só uma ligeira inflexãono rumo de uma vida de qualidade cada vezmaior.

SERVIÇO:

• O Que É Socialismo e O QueÉ Comunismo, de ArnaldoSpindel, Primeiros Passos,Brasiliense, SP

• Revolução e Guerra Civil naEspanha, Angela Mendes, TudoÉ História, Brasiliense, SP

• Recomenda-se, além disso, aleitura dos “clássicos”(KarlMarx, Vladimir Lênin, LeonTrostsky, Rosa Luxemburgo)

Page 4: afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

ABRIL DE 1993MUNDO PANGEAABRIL DE 1993

CRISE ÉTNICA E RELIGIOSA NA“GRANDE RÚSSIA” PROPAGA ÓDIOS NACIONAIS

54

surgiram 15 Estados independentes. Adiversidade de povos libertou-se do poderde Moscou. Iniciou-se o caótico processode afirmação das particularidades étnicas.

A população de origem russa quehabita os novos Estados foi transformadaem minoria étnica e fonte de conflitos comas populações locais (v. o mapa“Populações russas na antiga UniãoSoviética). Na Moldova e na Geórgia,russos étnicos protagonizaram conflitosarmados com os governos locais,empunhando a bandeira do separatismo.No Báltico, (que não faz parte da CEI), sãoimplantadas leis contra russos étnicos.

Na Ásia central, de maioria muçulmana,cresce a influência política do Islã. Vizinhasdo Irã e Paquistão, essas repúblicaspoderão adotar regimes fundamentalistas.Em Moscou, o caos étnico e o islamismosão vistos como ameaça e alimentam onacionalismo imperial da Grande Rússia.A independência das repúblicas jamais foiintegralmente aceita pelos grupos quehoje disputam o poder. A manutenção detropas do antigo Exército Vermelho nasrepúblicas da CEI revelou a insatisfaçãorussa diante da fragmentação territorial.A crise institucional paralisa, ou atenua,as reações da Rússia diante do caos. Masos sinais de perigo se multiplicam. Tropasrussas estacionadas na Geórgia sãoacusadas pelo governo local de prestarajuda às milícias separatistas dos russosétnicos. A recentralização do império, quesó poderia ser imposta à custa da força ede conflitos sangrentos, aparece comoalternativa cada vez mais concreta.

A crise na Rússia é uma incógnita quenão se esgota nas suas fronteirasterritoriais. Os eventos na Rússia acabamafetando o equilíbrio mundial – por suasdimensões continentais e poderio bélico.Um exemplo é o conflito nos Bálcãs. Laçose alianças militares consagrados unem oEstado russo, em particular a cúpulamilitar, à Sérvia (como ilustra a frase deKissinger).

A política russa obedece a um ritmopróprio, quase a um padrão. Períodoscalmos, às vezes longos, são interrompidospor erupções descontroladas de paixões,sem que se possa identificar o eventodetonador. Esse padrão deu sinais de vidano final do último inverno, que transcorreusob o signo de um silêncio tenso, pontuadopor atos neocomunistas.

Em março, a trégua entre o presidenteBoris Ieltsin e o Parlamento foi substituídapor um braço de ferro que levoumanifestantes às ruas, alimentou a tensãomilitar e provocou movimentaçõesdiplomáticas em Washington, Bonn eTóquio. O confronto – aparentementecentrado na repartição de poderes entre aPresidência e o Parlamento, e navelocidade das reformas econômicas –revelou a fragilidade das instituições de umEstado que permanece parcialmenteregido pelas leis da antiga URSS. A mídiamundial, presa a esquemas simplistas,descreveu o confronto como mais umembate entre reformistas (Ieltsin) eneocomunistas (o Parlamento, deKhasbulatov). Mas o cerne da crise é oproblema da reorganização do poder deEstado, que foi pulverizado com o fim daURSS, em dezembro de 1991.

O poder central autoritário foi oinstrumento de formação da Rússia, desdeos primeiros czares. Moscou e SãoPetersburgo expandiram os territóriosimperiais e subjugaram povos da Sibéria,Ásia central, Cáucaso e Europa. ARevolução de 1917 preservou o império,mas com as roupagens do comunismo. Ofim da URSS abriu o caminho para aliquidação do império. No seu lugar,

BÓSNIA RELEMBRA “PURIFICAÇÃO” NAZISTAO governo da Rússia, que já está sendo atacado por negligenciar seus interesses nacionais e

por uma excessiva subserviência aos EUA, não está em posição de fazer pressão sobre a Sérvia.É concebível que Moscou ajude na aceitação do plano Vance-Owen (…) Mas a idéia de um votoda Rússia em favor do “castigo” à agressão sérvia ou de soldados russos combatendo sérvios

vai por água abaixo em face da História. A participação da Rússia teria como objetivo proteger,não punir a Sérvia (…) Eu seria contra a presença militar russa num caldeirão de tal magnitude.

Para chegar lá, as forças russas teriam que atravessar a Ucrânia, a Hungria, a Polônia ou aRomênia, movimento que causaria calafrio em países que já sentiram a dificuldade de se verem

livres das tropas russas.(Henry Kissinger, ex-secretário da Defesa dos Estados Unidos, O Estado de S. Paulo, 02 de março de 1993)

SERVIÇO

Para saber mais sobre a crise na Rússia, consulte:• Perestroika, Mikhail Gorbatchov, BesteSeller, SP,1987• A Segunda Morte de Lênin, José Arbex Jr.,Folha, SP, 1991• O Novo Mapa do Mundo, Demétrio Magnoli,Moderna, SP, 1993 Vídeo:• Táxi Blues, Pavel Lounguine, França/ URSS, 1989• A Pequena Vera, Vasili Pichul, URSS, 1988• A Fera da Guerra, Kevin Reynolds, EUA, 1988

“A Bósnia era um país pequeno, multi-étnico. Seu povo defendia o direito de viver junto, damesma forma civilizada que viveu durante séculos. Sempre houve casamentos interétnicos lá. Se

fossem dividir Bósnia e Herzegovina em regiões étnicas, a linha divisória passaria dentro dosquartos de dormir.”

(Ejup Ganic, vice-presidente da Bósnia-Herzegovina, O Estado de S. Paulo, 31 de janeiro de 1993, pág. 12)

Em função dos rumos tomados pelo conflito na Bósniaem 1992, os países da Comunidade Européia e os EstadosUnidos, depois de muita hesitação, resolveram propor umplano de partilha para o país. Esse plano, conhecido comoVance-Owen, previa a criação de dez províncias com grandegrau de autonomia, embora sem representatividade ao níveldas relações internacionais.

Caso o plano venha ser implementado, ele estará fadadodo fracasso, pois contempla ganhos territoriais, principalmente sérvios, obtidos à força em 1992. Essapartilha ainda cria verdadeiros enclaves de uma minoria no interior de uma área onde outra etnia édominante. Os maiores beneficiados pelo plano serão a minoria sérvia, que, com sua política de“purificação étnica”, tomou para si cerca de 70% do território, embora o plano Vance-Owen lhe reservecerca de 50%. Ao mais prejudicados foram os muçulmanos, sobre os quais mais duramente recaiu apolítica de “purificação étnica”.

Um ano de guerra civil na Bósnia produziuincontáveis mortos, feridos e refugiados, masnão permitiu que se avançasse um centímetrono caminho da paz. Não é para menos. A Bósnia,em vários sentidos, reúne todas ascaracterísticas presentes na “questão nacional”que atormenta a Europa.

Por sua localização, os Bálcãs sempre foramcenário da disputa entre impérios. A Iugoslávia –em particular, a Bósnia – sofreu os reflexos deséculos de guerras e cruzamento de culturas eetnias. Muitos dizem que a Bósnia e a “Iugosláviada Iugoslávia”. Depois de quase quatro séculossob o domínio turco e décadas sob o austro-húngaro, a Bósnia mudou sua condição ao finalda 1ª Guerra, em 1918 (v. mapa “As origens daIugoslávia”). Com o fim do Império Austro-Húngaro, ela passou ao Reino dos Sérvios,Croatas e Eslovenos – a futura Iugoslávia.

O estatuto da Bósnia sofreu nova alteração em1941, quando o Reino da Iugoslávia (nome que oReino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos passou ater a partir de 1929) foi invadido por nazistas. ABósnia foi anexada pelo Estado da Croácia, aliadodos alemães (v. mapa “A ‘partilha’ daIugoslávia”). Com a derrota nazista, a Iugosláviase transformou num país socialista, dirigido porJosip Broz Tito. A Bósnia passou a ser uma de suasseis repúblicas, até o início dos anos 90.

A passagem dos impérios sedimentou umacomposição étnica bastante complexa.Basicamente, três grupos formam a Bósnia:muçulmanos (43,7%), sérvios (31,3%) e croatas(17,3%). Essa particularidade populacional chegacolocar em dúvida a existência de umanacionalidade Bósnia.

A ditadura de Tito (1945-80) sufocou a tensãoétnica. Os primeiros grandes conflitos eclodiramlogo após sua morte, e se agravaram no final dosanos 80, como reflexo da crise do socialismo. Em

1991, a declaração de independência da Eslovêniae Croácia gerou um processo desintegrador do país.

Os sérvios da Bósnia temiam a criação de umestado muçulmano-croata, que poderia repetirmassacres praticados na 2ª Guerra. Muçulmanos ecroatas temiam que o tradicional imperialismosérvio colocasse em prática o plano da GrandeSérvia – unir num só território a população da Sérviae as minorias sérvias da Croácia e Bósnia. O conflitona Bósnia eclodiu no primeiro semestre de 1992,após um plebiscito para definir o futuro da região.Os sérvios boicotaram a consulta, que se definiupela independência da Bósnia. Era a guerra civil.

Os conceitos de “raça”, “etnia” e “nação”são polêmicos, e serviram, muitas vezes,para justificar genocídios (como opraticado contra os judeus) ou o racismo(como o apartheid sul-africano). Apolêmica é maiôs quando se discute suarelação com o Estado. Descrevemos, emseguida, o que se entende usualmentecom esses conceitos.Raça: designa uma realidade bio-antropológica: é formada por indivíduosque têm em comum certas característicashereditárias e culturais, como cor da pele,a conformação do crânio e do rosto, o tipode cabelo e a herança lingüística.Nação: indivíduos de uma ou mais raçasque vivem num território organizadopoliticamente e que são ligados por laçosculturais, históricos e econômicossedimentados ao longo do tempo.Compartilham uma compreensão comumsobre seu passado e as projeções para ofuturo.Etnia: Embora às vezes seja usada comosinônimo de raça, define gruposhumanos que desenvolveram certaunidade cultural.

SERVIÇO

• A Autoquestão Iugoslava, Bertino N. deQueiroz, Brasiliense, SP, 1982• Leste Europeu - A revolução democrática,Jayme Brener, Atual, SP, 1990• Nacionalismo - Desafio à “Nova Ordem”pós-Socialista, José Arbex, Scipione, SP, 1993

Page 5: afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

6

ABRIL DE 1993 MUNDO

BUSCAR A PAZ É A ÚNICA ALTERNATIVAPARA ISRAEL E PALESTINA, AFIRMA SAID

“Numa sexta-feira, 12 de junho de 1992,cerca de 7h45, meu avião tocou o aero-porto Bem Gurion de Tel Aviv. Mai do quenunca, fiquei ansioso. Nasci em 1935 emTalbia, então um próspero bairro árabe deJerusalém. No final de 1947, às vésperasda tomada de Talbia por forças judaicas,parti com minha família para o Cairo. Qua-renta e cinco anos de minha vida se pas-saram, e eu finalmente voltava. A Palesti-na que deixei aos 12 anos era muito dis-tinta de Israel à qual acabava de chegar. APalestina árabe foi destruída em 1948, eseu povo, exceto 120 mil deles, deixou opaís ou foi forçado a um terrível êxodo. Umnovo Estado judeu, Israel, nascera, e nasdécadas seguintes as guerras, novastecnologias e mudanças demográficasmudaram o Oriente Médio (…)

Faço parte de uma geração que não re-conhecia Israel. Essa estranha premissa,de que Israel não existia, possibilitou umapolítica de não-reconhecimento, um vazioque ergueu um muro em torno de si mes-mo, permitindo que Israel e os líderes ára-bes fizessem de tudo em nome da segu-rança. Até 1967, o mundo árabe, incluindoos milhões de palestinos no exílio, quaseesqueceram seus compatriotas que perma-neceram em Israel depois de 1948. Até1967 era quase impossível usar a palavra“Israel” na escrita árabe. Isso, hipotetica-mente, tiraria de Israel legitimidade e con-vicção, como se ao não o reconhecermos,o Estado deixaria de existir. Claro que issonão aconteceu (…)

Haifa, prima de Rashid Khalidi, nos con-vida para o almoço.. vive na Velha Jerusa-lém, com seus velhos pais e um tio, numacasa que há gerações pertence à sua fa-mília. Seu principal problema é que um doslados da casa é limitado pelo Muro dasLamentações, e por isso é cobiçada porcolonos judeus que tentam transformar aJerusalém Oriental árabe numa nova cida-de judaica. Rotineiramente, ela enfrenta fa-náticos que espreitam sua casa, ameaçan-do, aos gritos, tomar-lhe a propriedade.

Depois do almoço, sou apresentado auma velha viúva cuja casa fora sumaria-mente tomada por colonos. Ela vive agorano porão, cujo interior escuro e abafadoera úmido e superpovoado –miraculosamente, acomodava seis ou setepessoas. Uma de suas filhas usava um se-cador de cabelos para enxugar roupas.“Eles não permitiriam que pendurássemosnossas roupas no lado de fora. Sempre quetentamos faze-lo, eles jogam lixo e águasuja”. Outra família contou-me que, certa

Ao saber-se portador de câncer incurável no sangue, em meados de 1992, EdwardSaid, professor de inglês na Columbia University, em Nova York, e articulista do TheNew York Times, resolveu rever a terra natal, Jerusalém, 45 anos após ter emigradocom seus pais. Acompanhado de sua mulher, Mariam, e de seus dois filhos, Said fez

uma viagem com profundo sentimento existencial – mergulho no passado eindagação sobre o futuro. O valor humano de seu relato, publicado pela revista

Harper’s (de Nova York), em dezembro, é realçado pelo porte intelectual de seu autor.Seus livros, Orientalism (com edição brasileira), The Question of Palestine,

Culture and Imperialism (recém lançado nos EUA) e outros são mundialmentereconhecidos como indispensáveis a qualquer reflexão séria sobre o Oriente Médio.Said não é e não pretende ser “neutro”. Entre 1977 e 1991, foi do Conselho Nacional

Palestino (reconhecido por 120 países como o governo da Palestina no exílio), edefende a criação de um Estado palestino nos territórios da Cisjordânia e Gaza, desde1967 sob a ocupação israelense. A Redação de Mundo, como tal, não se posiciona em

relação ao conteúdo da questão. Por sugestão da representação palestina no Brasil,publicamos trechos do relato de Said, esperando que auxilie a compreender uma

questão complexa. Oportunamente, Mundo divulgará outras opiniões.

noite, encontraram um judeu nos aposen-tos. Indagado sobre o que fazia ali, disseque estava conhecendo a “minha casa”.Estes episódios estão no oração da ques-tão palestina, que é, essencialmente, geo-gráfica e territorial. Pouco efeito tiveram asconversações de paz contra o avanço len-to e incansável de Israel cobre o espaçopalestino. Além da ocupação militar, há apresença constante do colono. Pode-se versombrias colônias na maioria das colinasem torno de Jerusalém. As colônias, apa-rentemente, são criadas em duas fases.Primeiro, um grupo monta e passa a viverem casas pré-fabricadas. Depois, vêm ascasas na terminadas, vazias (às vezes, nãopassam de trailers). Seu número éindeterminado, mas não a razão de suaexistência. Elas estão ali para adensar ascolônias, para impor a presença israelen-se em território árabe. Assim, quando Bushaceitou emprestar US$ 10 bilhões a Israel,em troca de um “congelamento” da coloni-zação, as casas vazias foram aceitas comojá existentes, implicando maiores perdasao território palestino. Cisjordânia e Gazasomam, juntas, só 22% do total da Palesti-na que deixei 45 anos antes. Cerca de 50%destes 22% foram expropriados desde1967 por israelenses (…).

Os 850 mil palestinos de Israel – nãome refiro aos 2 milhões de palestinos daCisjordânia e Gaza, onde, como um povo,reclamamos o direito a um Estado sobera-no – são cidadãos de segunda classe. Bas-ta ler os dados do Escritório Central de Es-tatísticas de Israel para concluir que judeuse não-judeus (árabes em Israel, 18,2% dapopulação) são separados em duas clas-ses, uma das quais tem sempre um statusmuito inferior. Isso se reflete em níveis decuidados com a saúde, educação, desem-prego, qualidade de vida (…)

Quando descemos a Gaza, assaltaram-me as memórias de uma recente viagem àÁfrica do Sul. Em 1991, fui convidado a darpalestras na Universidade da Cidade doCabo, pelo Congresso Nacional Africano eduas universidades. Visitei Soweto e ou-tras comunidades negras na Cidade doCabo. Nada que vi na África do Sul pode

se comparar a Gaza em termos de misé-ria, de confinamento e discriminação raci-al, de pura opressão.

Em Gaza proliferam casamatas milita-res, quilômetros de fios de arame farpado,e os soldados “bancos” em patrulha. O diaem que deixamos Jerusalém rumo a Gazacomeçou com uma rara tempestade. Quan-do chegamos, duas horas depois, lodaçaistornaram a travessia extremamente suja,em particular no campo de Jabalaya, queapresenta a maior densidade habitacionaldo mundo. Em Gaza, um posto militar fron-teiriço que permanece fechado à noite con-fere à região a aparência de um enormecampo de concentração. Soldados paramcada carro, os passageiros descem, ospasses são conferidos. Jabalaya é o localmais desolado que já vi. Criançassuperlotam ruas sem esgoto, o mau chei-ro provoca náuseas. As estatísticas cau-sam pesadelo: terríveis índices de mortali-dade infantil, desemprego (…) Não ouvi pa-lavras de esperança. A frase mais freqüen-te era “mawt batiq” , morte lenta.

O prazer da vida é pequeno em Israel eterritórios ocupados. Os dois povos estãonisso juntos, sem simpatias, mas juntos, etalvez muito lentamente melhorem a rela-ção. Seria muito difícil viver ali: o exílio meparece uma situação mais livre, mas souprivilegiado e posso dar-me ao luxo de ex-perimentar mais os prazeres do que o pesodo exílio. Ainda assim, sinto que precisá-vamos ter a certeza que a Palestina e ospalestinos sobreviveram – e isso agora sa-bemos. Eu precisava da chance de, meta-foricamente, enterrar os mortos, aquilo quea Palestina era para mim através de umconjunto de associações fúnebres. Masposso sentir e, às vezes, até enxergar umfuturo distinto – como não podia antes.

Nada do que vi naÁfrica do Sul pode-se comparar a Gaza,em termos demiséria,confinamento,discriminação racial,de opreção.

Os dois povosestão nisso juntos,sem simpatia masjuntos. Talvez,lentamentemelhorem suarelação

Page 6: afia e Política nacional - clubemundo.com.br1993\mundo0293.pdfglórias no front externo ... Em 1969, um professor do cursinho Equipe recomen-dou-me ler os principais jornais do país,

7

ABRIL DE 1993PANGEA

SONHOS DE DOIS POVOS SE CHOCAM NA PALESTINAExpulsão de 415 palestinos de Israel, em dezembro, reabriu feridas e, de novo, lançou a sombra da guerra

Até meados de dezembro, o Oriente Médio parecia ter dian-te de si um período de novas perspectivas. Havia indícios deque as negociações por uma Conferência Internacional de Paz,iniciadas em Madri, em meados de 1991, esta-va isolando os radicais de todos os lados. Ofim da Guerra Fria afastara o “fantasma comu-nista” do Oriente Médio, e a vitória de GeorgeBush contra Sadam Hussein, em janeiro de1991, dava a Washington condições para exi-gir um acordo por um equilíbrio estável. Alémdisso, em Israel o governo do radical Likud, de Yitzhak Shamir,cedera lugar ao governo Yitzhak Rabin, do Partido Trabalhis-ta, em tese mais flexível. Mas esse processo sofreu um revéscom a inesperada expulsão de 415 palestinos para o sul doLíbano, em 17 de dezembro, por ordem de Rabin. De novo,tambores de guerra soaram nas colinas de Jerusalém. Nosmeses seguintes, as lutas entre judeus e palestinos deram um

salto. A intransigência de Rabin ganhava novo alento, estimu-lando a Intifada – “revolta das pedras” árabe. O símbolo daIntifada, iniciada espontaneamente em dezembro de 1987, tra-

duz plasticamente a sua essência: com pause pedras, jovens palestinos lutam contra for-ças israelenses que desde 1967 ocupam osterritórios da Cisjordânia e Gaza. A Intifada jácausou centenas de mortes (no seu primeiroano, 300 palestinos morreram e 6 mil foramenviados a campos de confinamento), milha-

res de feridos e de deportados para países árabes vizinhos. AIntifada reclama a criação de um Estado soberano com basena Cisjordânia e Gaza. Israel não aceita. Mas a crise não re-flete um suposto ódio judaico-palestino, e sim um conjunto defatores: interesses de Washington, arrogância de Israel, indi-ferença dos Estados árabes e fanatismo islâmico. Entre pa-lestinos e judeus não há vencedores.

“Sejam quais forem os nossosconflitos antigos, os rios nãorespeitam fronteiras, as chuvasnão passam pela alfândega.”(Shimon Peres, chanceler de Israel, O Esta-do de S. Paulo, 08 de fevereiro de 1983)

Até o início do século XX, a Palestina era parte do ImpérioOtomano. Com o término da 1ª Guerra (1914-18), franceses e britâ-nicos se apossaram do espólio geopolítico dos otomanos. A Pales-tina foi cedida a Londres, que teve que enfrentar o problema damigração judaica para a região. Já a Palestina aumentara muito,como reflexo do sionismo (veja o Box). Ainda assim, no início doséculo XX os judeus eram apenas 10% da população. Após a 2ªGuerra (1939-45), o fluxo de judeus aumentou espetacularmente,até atingir 30% da população. Isso foi resultadoconjugado do sionismo com o genocídio nazis-ta. Os sobreviventes passaram a acreditar quesó estariam seguros num Estado judeu.

Em vão, Londres tentou conter o fluxo migra-tório. Logo começaram os choques entre as duascomunidades, e delas com a administração bri-tânica. Em 1946-47 os conflitos adquiriram pro-porções de guerra civil. Impotente, Londres re-solveu se “desfazer” da Palestina, e passou o pro-blema à ONU. Em novembro de 1947, a ONU apre-sentou um plano de partilha da Palestina em doisEstados, árabe e judeu (v. mapa “Partilha daPalestina proposta pela ONU (1947)). A divi-são baseava-se na repartição geográfica das po-pulações que não distribuíam de forma homo-gênea pretendida pela ONU. O plano foi aceitopelos judeus com a mesma rapidez com que foirejeitado pelos árabes. Em maio de 1948, o pla-no foi aprovado por uma Assembléia-Geral daONU. Imediatamente os judeus proclamaram onascimento de seu Estado. Os árabes da Palesti-na e dos países vizinhos foram à guerra. Com otérmino do conflito, vencido por Israel, ocorre-ram importantes mudanças territoriais. O Esta-

MILÊNIOS DE HISTÓRIA DEIXARAM LEGADO DE CONFLITOSdo palestino proposto pela ONU simplesmente desapareceu, poiso território a ele destinado foi dividido entre a Jordânia (Cisjordânia)o Egito e Israel. Aos palestinos sobrou a “escolha” de ficar em Israel– como cidadãos de segunda classe – ou migrar para os países ára-bes, e viver em campos de refugiados.

Um dos mais importantes conflitos entre árabes e judeus foi aGuerra dos Seis Dias (de 5 a 10 de junho de 1967). Com ataquesurpresa, Israel derrotou Egito, Jordânia e Síria, ocupando a Penín-

sula do Sinai e Gaza (do Egito), a Cisjordânia eas Colinas de Gola (da Síria) – v. mapa “Con-quistas israelenses na Guerra dos Seis Dias(1967). A ONU exigiu, várias vezes, a devolu-ção dos territórios, mas apenas a Península doSinai foi restituída ao Egito, como resultado dosacordos celebrados em 1979 em Camp David,local de descanso dos presidentes americanos,perto de Washington. Os acordos, patrocinadospor Jimmy Carter, foram assinados porMenahem Béguin (Israel) e Anuar Sadat (Egito).De certa forma, a Intifada prolonga a Guerra dosSeis Dias: os mesmos territórios estão em dis-puta.

Localizada junto ao Mar MeditterâneoOriental, na encruzilhada entre o mun-do ocidental e o árabe-muçulmano, aPalestina sofreu ao longo dos séculosmúltiplas influências. No ano 2000 a.C.,os hebreus (antigo nome dado aos ju-deus) ali se estabeleceram. A Palestinajá era habitada pelos filisteus, antepas-sados dos árabes que ainda vivem naregião. No início da era Cristã, a Palesti-na era parte do Império Romano. Umarevolta dos judeus contra Roma resul-tou na sua expulsão da Palestina, fatoque passou à História como diáspora.Os judeus perderam seu território naci-onal, mas mantiveram sua cultura. Nofinal do séc. XIX, foi criado o movimen-to sionista na Europa, que, alegando di-reito histórico, propunha a formação deum Estado judeu na Palestina. Criou-se,então, o quadro de tensão entre emi-grantes judeus e palestinos. O confron-to entre os direitos históricos dos judeuse os adquiridos pelos palestinos é oponto central da Questão Palestina.

SERVIÇO

• Oriente Médio – Uma região de conflitos, Nelson Bacic Olic, Moderna, SP, 1991• O Que É a Questão Palestina, Helena Salem, Brasiliense, SP, 1982• Orientalismo, Edward Said, Companhia das Letras, SP, 1990Vídeos:• Lawrence da Arábia, David Lean – Inglaterra, 1962• O Embaixador, J. Lee Thompson – EUA, 1984• Exodus, Otto Preminger – EUA, 1960