Afredo Wagner Berno de Almeida. Amazônia - a dimensão política dos conhecimentos tradicionais

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    An tropologia dos A rch ivos da Amaznia

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    Alfredo Wagne r Bern o de Almeida, 2008

    capa

    Design C asa 8

    pr oje t o gr f ic o e diag r ama o

    Rmulo Nasc imento

    c as a 8

    Rua Sant a Helosa, 8 [101]

    Jardim Botnico. Rio de Janeiro r jcep 22460-020

    A447a Almeida, Alfredo Wagn er Bern o de

    a n t r opo l og i a do s a r c h i v o s da a m a zn i a .

    Alfredo Wagner Berno de Almeida. Rio de Janeiro: Casa 8/

    Fun dao Universidade do Amazonas, 2008.

    i sbn 978-85-7401-410-4

    1. Amaznia Antropologia Arquivos Amaznia i. Ttulo.

    c d u 572 : 651.52(811)

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    Sumrio

    7 apr es en t a o

    15 biol og ismos, ge og r af ismos e du al ismos: notaspara uma leitura crtica de esquemas interpretativosda Amaznia que dominam a vida intelectual

    Degradao ambiental: conceito ou noooperacional? Quem o sujeito da ao ambiental? Filsofos, naturalistas e etnlogos na prtica docolecionismo: os jardins botnicos, os hortos,os zoolgicos e os museus Verses deterministas e as polticas governamentais Quais as transformaes pelas quais passam os sujeitos da

    ao ambiental? Conhecimentos tradicionais e sujeitos sociais A Amaznia pensada segundo novas estratgias

    127 amazn ia: a d imen so pol t ic a d osc on h ec imen t ost r adic ion ais

    Os pajs e a Organizao Mundial do Comrcio

    A estratgia empresarial e o monoplio dos direitos autorais O mercado segmentado versus o mercado de commodities Os movimentos sociais e a contra-estratgia Os movimentos sociais e o processo de consolidao de ter-ritorialidades especficas

    155 ps -gr adu a o em an t r opol og ia n a a mazn ia:

    anotaes e comentrios pauta da primeira reunio daComisso Cultura, lnguas e povos daAmazniada Capes

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    SI GL AS E ABRE VIATU RAS

    a a a American Anthropological Associationa ba Associao Brasileira de Antropologia

    bid Banco Interamericano de Desenvolvimentobir d Banco Mundial

    c apes Campanha Nacional de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superiorc d b Conveno sobre Diversidade Biolgica

    c n pq Conselho Nacional de Pesquisasc n s Conselho Nacional de Seringueiros

    c o iab Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileirac o iam Confederao das Organizaes Indgenas do Amazonasc n bb Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil

    c o ppa l j Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas do Lago do Juncod a n Departamento de Antropologia da Universidade de Brasiliaf mi Fundo Monetrio Internacionalg t a Grupo de Trabalho Amaznico

    in br a pi Instituto Indgena Brasileiro de Propriedade Intelectualin pa Instituto Nacional de Pesquisas da Amazniain pi Instituto Nacional de Propriedade Intelectual

    f ape am Fundao de Amparo Pesquisa do Amazonasf e pi Fundao Estadual de Poltica Indigenista do Amazonas

    f ioc r u z Fundao Oswaldo Cruzl ac e d Laboratrio de Pesquisa em Etnicidade, Cultural e Desenvolvimento

    mpf Ministerio Pblico Federalmiq c b Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babau

    mp Medida Provisriamma Ministrio do Meio Ambiente

    mn Museu Nacionalo mc Organizao Mundial do Comrcioo ms Organizao Mundial de Sade

    ompi Organizao Mundial de Propriedade Intelectualo n u Organizao das Naes Unidas

    pn c s a Projeto Nova Cartografia Social da Amazniappg-7 Programa Piloto de Preservao de Florestas Tropicais

    s pi Servio de Proteo aos Indiosse mt a Servio Especial de Mobilizao de Trabalhadores para a Amaznia

    s e s p Servio Especial de Sade Pblicat c a Tratado de Cooperao Amaznica

    u e a Universidade Estadual do Amazonasu f am Universidade Federal do Amazonasu f pa Universidade Federal do Paru f r j Universidade Federal do Rio de Janeiro

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    A presen tao

    As trs partes deste livro no requerem maior elucidao. Devosua composio conjuno de duas intervenes em reuniescientficas e de um breve comentrio sobre os resultados de umamobilizao tnica, designada como encontro de representantesde povos indgenas. Elas compreendem textos que foram escritosentre 2003 e 2006, reescritos em 2007 e posteriormente subme-tidos a sucessivos reparos formais e achegas. A primeira parteconcerne a uma leitura crtica de esquemas interpretativos paraexplicar a Amaznia que, fundados na histrica hegemonia dascincias biolgicas, se tornaram senso comum no mundo erudito.Trata-se de uma palestra t ransformada em texto. Privilegiei comoobjeto de anlise os instrumentos de construo do inconscientecoletivo savantsubjacente s explicaes usuais da Amaznia. Opropsito maior foi descrever de maneira crtica as condies depossibilidades prprias a uma interpretao das interpretaes

    da Amaznia. A segunda parte compreende uma anlise dos resul-tados de trs encontros de representantes dos povos indgenas,realizados em So Luis e Manaus, respectivamente em 2001, 2002e 2004, para discutir a relao entre conhecimento tradicional epropriedade industrial. A terceira parte, por sua vez, se refere ainterveno realizada em reunio da Comisso Cultura, Lnguase Povos da Amaznia, da capes , ocorrida em janeiro de 2006,

    para discutir uma iniciativa de criao de curso de ps-graduaoem antropologia na Amaznia. O texto sintetiza a histria social

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    colees completas e critrios pretensamente objetivos dedefinio de identidade tnica ou regional. Rancire2 enfatiza oburlesco destas classificaes em Borges Sarajevo e aproveitopara retomar uma passagem do mesmo Jorge Luis Borges emOtras Inquisiciones3 para tambm ilustr-lo:

    He registrado las arbitrariedades de Wilkins, del desconocido (oapcrifo) enciclopedista chino e del Instituto Bibliogrfico deBruselas; notoriamente no hay clasificacin del universo que nosea arbitraria y conjetural. (Borges, 2005; 114-155; 19. ed)

    O conceito terico de archivo contribui para desvelar esta arbi-trariedade dos agrupamentos ao apontar que seu significado nose restringe a acervo, no se confunde com massa documental,com quantidade ou volume de ttulos ou com uma coleo infi-nita de objetos diversos. Em outras palavras seu significado nose confunde com repertrio de documentos ou com o catlogodos catlogos disposto a diferen tes pblicos numa base fsicaarmazenadora de bens simblicos (livros, peridicos, brochuras,ilustraes, etc) tal uma biblioteca, que no caso da Amaznia cor-responderia interminvel e hexagonal Biblioteca de Babel, deque tanto nos fala Borges.4 Ao contrrio, consiste principalmen-te, no jogo das regras que determinam em um campo intelectualdeterminado ou numa dada contingncia histrica, o surgimen-to e o desaparecimento de argumentos. Tais argumentos, umavez articulados, compem um esquema interpretat ivo tornado

    hegemnico pelos poderosos mecanismos de instancias de consa-grao de museus e sociedades cientficas desde finais do sculoxviii. So eles que garantem a sua permanncia, a sua iluso deeficcia e ao mesmo tempo sua existncia paradoxal. Eis o pro-blema focalizado, sobretudo na primeira parte.

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    3. Vide Borges, J. L. El idioma analtico de John Wilkins in Otras Inquisiciones. Bue-

    nos Aires: Emec, 2005, pp. 149-155.4. Borges, J. L. Vide la Biblioteca de Babel in Ficciones. Buenos Aires: Alianza Editorial,2007, pp. 86-99.

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    Para Foucault os archivos no podem mais ser reduzidos ameros documentos ou a simples peas de colees histricas.Eles se inscrevem num sentido crtico como monumentos querompem com o acmulo indefinido de documentosou peas deexposies permanentes de velhos museus ou livros estanteadosem bibliotecas ou ainda documentos catalogados nos chamadosarquivos nacionais e/ou arquivos pblicos. Este significadode ruptura produz uma leitura crtica do colecionismo, to caro histria da antropologia, e das formas de classificao impostaspor foras hegemnicas. Alis, o poder de classificar objetos,grupos e pessoas tem sido atributo exclusivo das sociedades

    hegemnicas, sejam coloniais e/ou imperiais, metropolitanase/ou centrais, que impem denominaes a quem quer que seja,quando e como lhes aprouver. Quaisquer que sejam as contingn-cias histricas e os acontecimentos o absurdo de seus aparatosclassificatrios operacionalizado e imposto como mais racionale legtimo. Deste modo que se coloca como necessrio um tra-balho cientfico sistemtico para romper com estas abordagensque partem do pressuposto do acmulo interminvel de aconte-cimentos. Mesmo porque capital intelectual no estoque, notem carter cumulativo seno para as abordagens evolucionistase para o empirismo vulgar, que imaginam que o conhecimentose materializa em algo empilhvel e tangvel tal como se empilhalivros. Capital significa uma relao social e sistemas de relaessociais com suas tenses e antagonismos encontram-se nos fun-damentos do conceito de archivo.

    O que poderia ser nomeado como archivo genealgico daAmaznia, no consiste, portanto, no estudo das regras que orien-tam as formas de transmisso de conhecimentos cientficos e depatrimnio imateriais, mas a relao entre os argumentos quecompem as formulaes de esquemas interpretativos cristaliza-dos na vida intelectual e os agentes sociais que os acionam,notadamente em situaes de polmica e de conflitos. Constata-

    se, entretanto, que tais esquemas foram institucionalizados epassaram a ser automaticamente reproduzidos, adquirindo auto-

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    ridade intelectual, fora explicativa e at mesmo condies depossibilidade de se tornarem verdades naturais.

    Pode-se dizer assim que tais esquemas interpretativos man-tiveram-se protegidos por uma formidvel muralha erguida porprodutores intelectuais que concederam sua autoridade cientficas casas reais, aos estados dinsticos e agora ao estado burocrti-co-racional. Estes poderes consagraram a tirania dos chamadosnaturalistas para pensar racionalmente as realidades designa-das como Amaznia. Estas condies especficas de produocientfica implicam, pois, numa conjuno particular de idias enoes difundidas e acatadas tanto por um pblico amplo e difuso,

    quanto por um pblico erudito, sem questionamentos profundos.Archivo como genealogia, consiste num registro variado de

    formulaes, argumentos, noes operacionais, impresses, me-tforas e figuras de retrica, que se acham arquivados, demaneira inconsciente, nas representaes de diferentes explicado-res, comentadores regionais e intrpretes, que os reproduzemacriticamente, num automatismo de linguagem, de acordo comum lxico singular que acionado a cada vez que se fala de ou so-bre Amaznia.

    Nesta ordem no preciso agrupar e ler integralmente todosos chamados naturalistas-viajantes para repetir os instrumentosde percepo dos quais fazem uso para explicar a Amaznia. Oarchivo, em sendo relao, concerne tambm a modalidades depercepo que, alm de enfatizarem o quadro natural, tem sidotransmitidas por comentadores regionais, explicadores, intrpre-

    tes acadmicos, classificadores da produo intelectual ehistoriadores da cincia mesclados com autoridades burocrticasadministrativas, resultando num senso comum erudito.

    A justaposio dos argumentos bio-organicistas e noesinspiradas no geografismo tem se constitudo, no entanto, numobstculo permanente a uma compreenso crtica da realidadeempiricamente observada e designada como Amaznia. A esta

    justaposio acrescente-se a engrenagem de apresentar um pro-blema sob uma viso dual, contrapondo um extremo a outro, um

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    plo da oposio simtrica a outro, para lograr uma sntese apon-tada como irretorquvel e racional.

    A leitura crtica dos textos dos naturalistas-viajantes e deseus explicadores faculta o entendimento das limitaes destesesquemas interpretativos, que j foram hegemnicos, incontestese que agora jazem fossilizados nos meandros da vida intelectuale cientfica. No obstante serem reatualizados e reeditados comfreqncia j h meios de quebrar com seu poder de explicaoe com seu carter imperativo. Entretan to, quando nos tornamosmais conscientes de que h uma velha fortaleza interpretativa ar-ruinada e em vias de fossilizao no senso comum erudito, que

    temos condio de apreender que mesmo derrotada no debate in-telectual ela se impe pela capacidade de vulgarizao cientfica,mantendo-se constantemente banalizada por equaes simples.

    Em virtude disto h que se indagar mais profundamente dalgica do pensamento dos comentadores regionais e dos explica-dores que gravitam em torno da suposta eficcia destes esquemasinterpretativos, mantendo um rgido controle de instancias deconsagrao e legitimao, isto , detendo o monoplio das defi-nies legtimas e das representaes oficiosas sobre a Amaznia.Tem-se um vasto elenco de explicadores da Amaznia que re-produzem mecanicamente os argumentos e figuras de retricadaqueles esquemas interpretativos, como se recebessem umaordem, como se a ao pedaggica para transmiti-los fosseuma misso incontestvel. Os esquemas interpretat ivos deto inquestionveis se distanciam de realidades localizadas e

    de processos reais e se transformam em expresses opinativas.O opinativo nutrido pela autoevidencia, quando o mero fatode pronunciar Amaznia por si mesmo j a explica e no hquem duvide que assim seja. As inspiraes alimentadas pelas au-toevidencias no perscru tam, no pesquisam e s fazem repetir.To somente procedem repetio. A redundncia, no entanto, um componente essencial do mito, porquan to facilita sua re-

    produo. A repetio encerra a certeza da fidelidade ao esquemainterpretativo e torna-se um instrumento embrutecedor na mo

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    de pedagogos que transmitem uma representao escolarizada eabsoluta de Amaznia.

    Verifica-se, no tempo, uma estranha eficcia do biologismoe das imagens hiperbolizadas dos recursos naturais relativos Amaznia que tais esquemas veiculam. Quanto mais estendidase alargadas, de maior capacidade de convencimento parecem seinvestir. A exuberncia e a grand iosidade do qu adro natu ralconjugadas com um certo belletrismo e uma desmedida elegn-cia bacharelesca inibem a fala e o pensamento autnomo almde eclipsar a existncia de uma diversidade de agentes sociais.Estas figuras de retrica falam da Amaznia para inibir outras

    falas, para fazer calar.Faz-se necessrio, todavia, romper com estes dispositivos

    do silencio que tem por funo garantir a infinita continuidadede um esquema interpretativo, como unidade discursiva autoe-vidente e inquestionvel.

    Relendo os naturalistas-viajantes e os efeitos de suas inter-pretaes tem-se reforado o procedimento de criticar esta unidadeinterpretativa e colocar em suspenso as snteses elaboradas a par-tir dela, relativizando-as. Em primeiro lugar, libertando-se detodo um jogo de noes que esto ligadas aos ismos determi-nantes (biologismos, geografismos, dualismos e suas variaes)e de toda uma constelao de metforas erigida sob sua inspira-o direta, a saber: paraso/inferno verde, eldorado, ouronegro/ouro verde, pulmo do mundo. Depois, libertando-setambm de outros determinismos e suas figuras de retrica, s

    vezes burlescas e absurdas, que resultam por informar planos,programas, projetos e demais formas do poder do estado se ma-nifestar sobre a regio. Isto se apresenta como possivel nummomento em que o esquemas interpretativos prevalecentes estoperdendo sua eficcia e em que os sujeitos biologizados parecemceder lugar mobilizao dos sujeitos sociais e s leituras crti-cas que se multiplicam.

    Concorrendo para superar os obstculos compreenso daAmaznia, enquanto realidade empiricamente observada, asnovas interpretaes crticas, no que tange variao das ex-

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    presses culturais e no sentido de reforo da autodefinio, po-dem contribuir com instrumentos bsicos neste debate. Seusesforos analticos privilegiam culturas distinguveis dos agentessociais que politizam a natureza e recolocam a biodiversidadeadstrita a uma diversidade cultural. Esta leitura crtica podealertar os comentadores e os explicadores que aparentementerecolheram sua vigilncia intelectual mediante a excepcional for-a das autoevidencias, sublinhando que tal tarefa pressupeintensas atividades de pesquisa e um sem nmero de investiga-es detidas e sistemticas. Ademais pode seguir advertindo opblico amplo e difuso, que recolhe suas percepes criativas

    face ao peso das autoevidencias e das metforas hiperbolizantes.Assim, em suma, o senso crtico do conceito de archivo res-

    salta que as interpretaes da Amaznia no podem ser reduzidasa umas quantas metforas, datas cannicas, quadros naturais eciclos ou a umas tantas construes literrias hiperbolizadas.Com a emergncia das novas identidades coletivas e de sujeitossociais organizados, isto , identidades coletivas objetivadas emmovimentos sociais, esto sendo afastadas de vez as fices bio-logizantes, bem como os sujeitos biologizados. Constata-se umapolitizao da natureza e problematizar isto constitui nosso ob-

    jeto de reflexo nestes textos que aqui dispomos ao debate.

    Manaus, julho de 2008

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    biol o g ismo s , g e o g r af ismo s

    e d u al ismo s: notas para uma leituracrtica de esquemas interpretativos da

    Amaznia que dominam a vida intelectual1

    Hesitei um pouco em aceitar este convite porque muitas vezes afala de um pesquisador das cincias sociais, quando dirigida aum pblico muito especfico, um pblico composto de especia-listas, que obedece quase que exclusivamente s exigncias das

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    1. Para organizar o presente texto introduzi achegas, recuperei anotaes e acrescentei re-ferencias bibliogrficas palestra que proferi, em 22 de janeiro de 2005, no WorkshopInternacional Iniciativas promissoras e fatores limitantes para o desenvolvimento de sis-temas agroflorestais como alternativa degradao ambiental na Amaznia, promovidopelo ciat (Centro Internacional de Agricultura Tropical), embr apa Amaznia Oriental,World Agroforestry Center-Transforming lives and landscapes e Ministrio da AgriculturaPecuria e Abastecimento, e realizado em Belm e Tom Au (pa), entre 19 e 28 de janei-ro de 2005. Incorporei tambm as perguntas que me foram dirigidas e as respostas queproferi, resumindo a discusso que se estendeu por quase trs horas. O resultado foi umtexto que oscila entre uma palestra e um artigo e que foi elaborado a partir do debate. Asnotas de rodap, as referncias bibliogrficas e as citaes bem traduzem o esforo de ela-borao posterior palestra e a pretenso pedaggica que o orientou. Incorporei ademaisobservaes diretas realizadas quando de visitas a museus, hortos e jardins botnicos depases europeus, que abrigam colees resultantes das viagens de campo Amaznia doschamados naturalistas, os quais nomeio ao proceder citao devida.

    Gostaria de agradecer ao antroplogo Roberto Porro, pela gentileza do convite paraproferir a palestra, e a Leila Sampaio e Leonilde Rosa (u f r a), Wanderley Porfrio,

    Carlos Freitas, Milton Kanashiro e Luiz Guilherme (Embrapa) e Marcelo Vasconcelos(Fundao Scio Ambiental) pelas indagaes e questionamentos feitos durante a dis-cusso que se seguiu a ela.

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    cincias naturais e usufrui de uma competncia institucionalmen-te bem delimitada como cientfica, ela nem sempre produz umresultado satisfatrio. s vezes h conceitos que no perpassamformaes acadmicas, no perpassam linguagens e nem transi-tam, sem acuradas intermediaes, entre as cincias naturais eas cincias sociais. O dilogo torna-se deveras difcil, tanto maisquando h tantos lugares-comuns e automatismos de linguagem

    j bem cristalizados, como neste caso em que o objeto de reflexoconcerne Amaznia, enquanto realidade empiricamente obser-vada. Os cuidados tericos tornam-se maiores nesta situao dereferncia, que eivada de pr-noes e de autoevidencias e na

    qual so muitos os pontos de vista colidentes, antes mesmo decada fala. Acrescente-se o risco de citar superficialmente muitosautores, sumarizando argumentos em demasia e tangenciandoum certo esquematismo, justamente quando o objetivo propostoconsiste numa leitura crtica de esquemas interpretativos torna-dos senso comum erudito. Embora no seja impossvel superaras dificuldades, no posso deixar de enunci-las de antemo paratentar desfazer qualquer rigidez prvia que mais crie obstculos einiba as condies de possibilidades da interlocuo. Assim sen-do, inico em verdade um debate antes que uma palestra. Comeopor uma distino no sentido de desnaturalizar perspectivas jsedimentadas no pensamento erudito e, por favor, se porventuraeu cometer algum deslize submeto-me correo, deixando par-te aquilo que for polmica ou divergncia explcita com minhacondio de antroplogo,2 com critrios de competncia e saber

    mais diretamente referidos chamada antropologia social. Estetrabalho constante de desnaturalizao inicia, alis, no pr-prio campo de conhecimento em que me localizo e de onde falo,

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    2. Esta condio no autoevidente e nem to pouco rgida, porquanto comporta emseu prprio significado tenses e dubiedades, considerando que a antropologia temsido apresentada tanto como duas cincias, quanto como quatro campos de atuali-zao em que se articulam e se opem: a arqueologia, a lingstica, a antropologiabiolgica e a antropologia social. Para um aprofundamento desta polmica consulte-se

    Castro Faria, Luiz de.Antropologia: Duas Cincias Notas para uma Histria da Antro-pologia no Brasil. Rio de Janeiro. c n pq /mas t . 2006 (org. por Alfredo Wagner B. deAlmeida e Heloisa Maria Bertol Domingues).

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    uma vez que a antropologia j foi definida simplesmente comohistria natural, consoante conceituao de autores do finaldo sculo xviii, como Buffon, em 1791, que se estende s primei-ras dcadas do sculo xx. Nesta ordem o domnio da antropologiatorna-se ele prprio objeto de uma anlise crtica e de procedi-mentos de desnaturalizao, erigindo-se em duas cincias(Castro Faria, 2006): uma cincia biolgica e uma cincia social.3

    1.Degradao ambiental: conceito ou noooperacional?

    Tive a oportunidade de ler as comunicaes apresentadas nesteWorkshop e apreender o que vocs participantes entendem pordegradao ambiental, isto , o que o discurso de agrnomos,eclogos, engenheiros florestais e bilogos conceitua como de-gradao. Uma preocupao que me veio, logo de incio, queessa definio ficou assaz condicionada, ou seja, as tentativas deexplicao ficaram muito presas em considerar o termo degra-dao no como conceito propriamente, mas como uma palavra,como um verbete institucionalizado. Ora, conceito no tem defi-nio. Conceito tem significado, ao cont rrio do termo ou dapalavra, que podem ser definidos em verbetes, em glossrios, em

    dicionrios e em enciclopdias. O conceito no exatamente dicio-narizado e mais consiste num instrumento de anlise em tudodinmico e referido a au tores que disputam a legitimidade deacion-lo. Conceito implica numa relao e em mudana de sig-nificado. Em virtude destes aspectos dinmicos no pode serenquadrado numa definio frigorificada, to pouco pode ser lidonuma sinonmia. E este o primeiro reparo que fao maneira

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    3. O domnio da antropologia se estruturou num momento em que as cincias biol-gicas constituam uma abordagem hegemnica (Castro Faria, 2006: 17). A antropologiasocial se consolidou posteriormente e deste lugar que produzirei meus argumentos.

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    como vocs trataram degradao, ao defini-la objetivamentecomo diminuio ou como perda: perda de intensidade e perdade qualidade com seus efeitos referindo-se a fatores de destruioda cobertura vegetal, de esgotamento do solo e de alteraesnos cursos dgua. Consideram-na ademais como passvel de sermedida por modelos tericos que informam mtodos quanti-tat ivos. E um modelo, como sabemos, enquanto objeto art ificial controlvel. Pode-se prever como reagir mediante a modifica-o de um de seus componentes. Vocs selecionaram variveis,que so correlacionadas e cuja coerncia e desenvolvimentodedutivo esto garantidos por uma codificao geralmente mate-

    mtica. Repetindo: antes que conceito, isto noo operacional,que utiliza uma lgica no seu estado prtico, que serve basi-camente para fins operacionais imediatos ou de aplicaogenrica e direta. Na sua verso elementar no se trata, pois, deum conceito que problematiza relaes e que se detm no t rata-mento rigoroso das especificidades. Essa tentativa de definirde uma forma objetivista, quantitativista ou passvel de sermedida, aparentando extremo rigor e exatido, alm de se restrin-gir a uma funo prtica ela elide o sujeito da ao e por aquique eu gostaria de comear nosso debate.

    Para entender essa eliso do sujeito da ao importa tomarcomo objeto esta prpria modalidade de reflexo, com seus proce-dimentos de demonstrao e sua aparncia de rigor, e submete-laa indagaes sucessivas sob vrios ngulos. Alis, pretendo falaraqui muito mais por indagaes, visando problematizar o que tra-

    tado como autoevidente ou que dispensa argumentos e explicaesmaiores. Busco romper deste modo com certas racionalizaeseruditas que orientam esquemas interpretativos, que incidemnuma procura apressada de generalizaes, como diria G. Ba-chelard, em que as respostas so dadas antes mesmo que seesclaream apropriadamente as perguntas.4

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    4 . Cf. Bachelard, Gaston.A formao do esprito cientfico. Contribuio para uma psi-canlise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto Ed. Ltda. 1996 (1. ed. Paris,1938). Trad. de Estela dos Santos Abreu. pp. 53-55.

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    2.Q uem o sujeito da ao ambient al?

    Ao fazer esta pergunta sinto-me obrigado a repassar algunstrabalhos de cientistas naturais, notadamente botnicos, agrno-mos, zologos, astrnomos, gelogos e bilogos e a visitar achamada literatura dos viajantes e cronistas ou literatura dosnaturalistas que percorreram a Amaznia desde o sculo xvi,procederam a observaes localizadas, recolheram materiais

    diversos (plantas, resduos fsseis, animais), ensaiaram classi-ficaes por gnero e espcie e contriburam espontn ea einconscientemente para assentar os fundamentos de um esque-ma explicativo para interpret-la. Estes autores integravammisses oficiais e/ou expedies cientficas e estavam a serviode Estados dinsticos. Em consonncia com a produo destescientistas tem-se os denominados tratados e as chamadas me-mrias, crnicas, corografias, porandubas e descriescartogrficas5 produzidas por administradores coloniais, de forma-es acadmicas diversas (engenheiros, mdicos e bacharis emdireito), e militares, que corroboram tal esquema como argu-mento justificador das diferentes formas de interveno do Estadona regio amaznica. Mesmo considerando as dificuldades de sedistinguir o poder do Estado dinstico do poder da hierarquiareligiosa, cabe ressaltar uma literatura peculiar produzida por

    clrigos e membros de ordens religiosas, tambm empenhadosnas descries corogrficas e em informaes lingsticas eetnoecolgicas.

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    5 . As tcnicas e a arte de representar a superfcie terrestre atravs da descrio decartas, que tiveram na Amaznia, com o missionrio jesuta da Boemia, Samuel Fritz,um de seus predecessores com oMapa Geogrfico do Rio Amazonas de 1691, receberama designao de cartografia, em 1839, dada pelo Visconde de Santarm, Manoel Fran-

    cisco de Barros e Souza de Mesquita de Macedo Leito (1791-1856).Para outros dados leia-se: Visconde de Santarm. Estudos de Cartografia Antiga.

    Lisboa: Typ. Alfredo Lauros, Motta & Cia. 1919 (2 vols.)

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    A diviso deste trabalho intelectual de produzir intervenese conhecimentos implicava em informaes de campo relativasao que se denominava de histria natural, agrupando um co-pioso repertrio de observaes sobre o meio fsico, a fauna e aflora, e ao que se designava como histria moral, descrevendovidas e costumes. Um propsito utilitrio aproximava autoresclassificados como naturalistas, cujos interesses estavam volta-dos para a botnica, para a zoologia e para a geologia, daquelesautores de inspirao religiosa e daqueles funcionrios coloniaisque executavam administrativa e militarmente as instrues dopoder dinstico. As diferenas discursivas porventura existentes

    nas metrpoles tornavam-se circunstancialmente neutralizadasfrente ao objetivo de identificar fontes de riqueza natural nas pos-sesses e colnias. Tais autores, alm de constiturem uma dasprincipais fontes dos lugares-comuns, que se mantm no pensa-mento erudito, eles desenvolveram uma idia de construo danatureza que pode nos ajudar a entender a relativizao da no-o prtica de degradao. Procedo a esta relativizao pelacrtica dos elementos constitutivos do conceito de natureza.

    Em outras palavras, comeo por elementos de uma aborda-gem epistemolgica ao tentar discut ir um conceito atravs de umdeterminado significado de histria da cincia, que quer se li-bertar das historicidades e se afastar da busca indefinida daorigem. Ao discutir a noo de degradao est em jogo umaidia da natureza abrangente e bem circunstanciada, que nopode mais ser entendida simplesmente enquanto quadro natu-

    ral ou meio fsico. Em verdade trata-se de um significado denatureza, enquanto uma representao disposta num campo dedisputas que, ao negar esta noo histrica corrente, chama aateno para uma construo social e um ato deliberado dosque se empenharam de maneira direta em extrativismos e culti-vos agrcolas com unidades familiares, afirmando uma identidadecoletiva. Tal identidade mostra-se coextensiva a um conhecimen-

    to profundo de realidades localizadas e a formas de cooperaosimples expressas principalmente por mltiplas prticas de usocomum dos recursos naturais. Tanto no momento atual, quanto

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    na sociedade colonial estes antagonismos e disputas se colocaramde maneira expressiva. No campo de abrangncia das oposiesentre estado e sociedade eles tem se manifestado com fora. Em-bora o trabalho familiar e o uso comum, assim como a questoda identidade tn ica, estejam referidos a uma caracterstica tran-sistrica, ou seja, no atrelada a uma e apenas uma contingnciahistrica, nem referida a um nico lugar geogrfico, perpassandodiferentes modos de produo e diferentes contextos, irei me de-ter aqui, para fins de ilustrao, na sua relao com o processode derrocada dasplantations e das empresas extrativas tropicais.

    Para efeitos de periodizao e clivagem tal fenmeno pode ser

    registrado desde, pelo menos, a expulso dos jesutas do Gro-Par,mais exatamente da Ilha de Maraj, da baa de Cum e de Alcn-tara, em 1760. Esta disputa ganhara corpo desde 1680 com a revoltade colonos e sesmeiros contra as ordens religiosas. Quer dizer,quando o consenso relativo dos cronistas da colnia comea a seesborroar as distines afloram com maior vigor. Assim, nos re-latos de clrigos eruditos, contraditando o discurso triunfalista daburocracia colonial pombalina, fala-se em terras devastadas, emaldeias arrasadas, em imensas reas inteiramente queimadas,em extrao massiva de madeiras nobres e em grandes plantaesde algodo e cana de acar em completo declnio. Os jesutasquando foram expulsos, no perodo pombalino, alm de edificaese de abundantes relatos sobre a devastao e sobre o massacrede povos indgenas perpetrados por sesmeiros e colonos, deixaramum modelo de colonizao de base teolgica, assinalando for-

    mas peculiares de religiosidade e de poder na sociedade colonial.A chamada governao do Marqus de Pombal (1750-1777)

    vai confrontar este discurso. A religio e a teologia foram o alvopreferido do pensamento ilustrado e este princpio operativotambm tornou-se proeminente na administrao das colnias.Com sua formao Iluminista Pombal redefine o projeto colonial,enfatizando o papel do Estado e menosprezando a ao confes-

    sional, sobretudo no domnio econmico. Em oposio ao dogmaelege o saber cient fico ou um gerenciamento econmico que su-bordinava os empreendimentos das ordens religiosas s polticas

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    do estado. Promove, portanto, uma clivagem profunda nas rela-es de poder. Com Pombal percebe-se uma distino entre oestado dinstico e o estado-nao, atravs das medidas racio-nal-burocrticas qu e delineiam traos distint ivos do EstadoModerno com uma percepo da natureza incorporada demodo permanente aos empreendimentos de agricultura tropi-cal e que contradita a explorao predatria e eventual dasfeitorias e entrepostos.

    No discurso pombalino prevalecia a razo, o sujeito era arazo. Era este o sujeito da colonizao e da sua questo correla-ta, qual seja, a natureza e, em particular, a Amaznia, que passa

    a ter tratamento privilegiado numa diviso poltico-administrati-va singular: o Estado do Gro-Par e Maranho. Os primeirosatos oficiais ps-1755 consistem na distribuio de sesmarias, nacriao da Companhia Geral de Comrcio, na chamada Lei dasLiberdades dos ndios e nos incentivos aquisio de escravosafricanos e ao plantio em larga escala de algodo, cacau, canade acar, ndigo e outros produtos tropicais. A lei pombalinabuscava relativizar a imagem do ndio como selvagem ou comocriatura da natureza semi-humana, perigosa, bestial e de inte-ligncia limitada. Por estes atributos depreciativos os ndios eramconsiderados at ento como escravos naturais pelos cronistasdo sculo xvi e pelos denominados colonos, responsveis pe-los empreen dimentos de agricultu ra tropical. A partir de umamodalidade de descrio, que considerava o ndio como o ou-tro, se elaboravam impresses sobre costumes, ritos e crenas,

    que tanto podiam ser teis para a ao evangelizadora, quantopara sua incorporao compulsria como fora de trabalho nosempreendimentos agrcolas e extrativos. Para relativizar esta con-dio o Diretrio pombalino, de 1758, se aproxima das premissasdos filsofos das luzes, que consideravam o selvagem ou onatural como profundamente bons. O Diretrio no seu par-grafo dcimo, institui uma separao formal entre as designaes

    ndio e negro e desloca o sentido de escravos naturais paraos pretos da costa da frica.

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    Entre os lastimosos princpios, e perniciosos abusos, de que temresultados nos ndios o abatimento ponderado, sem dvidaum deles a injusta e escandalosa introduo de lhes chamaremnegros; querendo talvez com a infmia e vileza deste nome per-

    suadir-lhes que a natureza os tinha destinado para escravo dosbrancos, como regularmente se imagina a respeito dos pretos dacosta da frica. E porque, alm de ser prejudicialssimo civili-dade dos mesmos ndios este abominvel abuso, seria indecorosos reais Leis de Sua majestade chamar negros a uns homens,que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar isentos detoda e qualquer infmia, habilitando-os para todo o emprego ho-

    norfico. No consentiro os diretores daqui por diante quepessoa alguma chame negros aos ndios, nem que eles mesmosusem entre si deste nome como at agora praticavam; para quecompreendendo eles que lhes no compete a vileza do mesmonome possam conceber aquelas nobres idias, que naturalmenteinfundem aos homens a estimao e a honra. (Cf. & 10. do Di-rectorio que se deve observar nas povoaes dos ndios do Par eMaranho. Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues-Impressor doEminentssimo Senhor Cardeal Patriarca. 1758 pg. 5). (g.n.)

    Com a adoo desta medida Pombal intenta separar os ndios dotrabalho escravo, busca reclassific-los e valoriz-los, tornando-osobjeto de aes oficiais. Fortalece, assim, a poltica de povoa-mento, firmada pelo Alvar de Lei de 4 de abril de 1755, o qualincentivava que os vassalos do Rei de Portugal se casassem com

    mulheres indgenas. Pombal objetiva produzir com a legitimaodesta aliana ou regra matrimonial as condies que consideranecessrias para resolver a questo da insuficincia demogrficana colnia e para introduzir a fora de trabalho escrava africanano Gro-Par, tal como reivindicada pelos sesmeiros e colonos. Aoestabelecer medidas distintivas entre ndios e negros Pombalevidencia os primeiros passos de uma sofisticada tecnologia de

    poder que tem como objeto a populao da colnia ou um con-jun to diferenciado de agentes passveis de serem controlados, pordiferentes meios, com o propsito de se garantir uma melhor

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    gesto da fora de trabalho.6 A reproduo da fora de trabalhonuma situao de abundancia de terras constitui um desafio paraas potencias coloniais e em virtude disto que se torna um alvode preocupao para Pombal.

    Assim, ao mesmo tempo, reinterpreta as teorias sobre a hu-manidade, baseadas no conhecimento teolgico e nas sagradasescrituras, isolando os interesses da Ordem dos Jesutas daquelesde outras ordens religiosas (carmelitas, franciscanos e merced-rios) e, sobretudo, daqueles da alta hierarquia da Igreja Catlica.Os bens econmicos da Companhia de Jesus, em decorrncia,so confiscados e as relaes sociais de produo por ela estimu-

    ladas so legalmente banidas.Como j foi assinalado o sujeito da ao do Estado era a

    razo, neste perodo que vai convergir para a hegemonia Ilu-minista.7 Tudo era feito em nome da razo. As justificativas dasaes oficiais para a colnia repetiam indefinidamente este ar-gumento. A maneira como Pombal representava, entretanto, oprincpio iluminista da universalidade da razo e do progressopara a colnia, como o Diretrio deixa entrever, distinguia-se da-quele sentido mais cosmopolita das metrpoles. A exploraoeconmica atravs de grandes empreendimentos monocultores,com mecanismos repressores da fora de trabalho escrava, vol-tados para o mercado internacional, caracterizava este sistemaagrrio-exportador. To forte se manifesta a ideologia oficial deprogresso que os comentadores regionais classificam, inclusive,este perodo como a idade de ouro, do Maranho e do Par.

    Grandes comerciantes e sesmeiros se mesclavam com arquitetos,que traavam as plantas das cidades coloniais, com agrnomos,

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    6 . M. Foucault denomina fenmenos desta ordem como adstritos descoberta da po-pulao, que indicaria as transformaes do poder ocorridas entre o final do sculo xviiie o incio do sculo xix. As regras de casamento e a gesto da natalidade, tornando-seobjeto de aes do Estado, assinalariam, uma tecnologia de poder designada por Fou-cault como bio-poltica (cf. Foucault Naissance de la biopolitique. Chaire dhistoiredes systmes de pense, anne 1978-1979.Annuaire du Collge de France. 79e.anne.

    1979.).7. Consulte-se M.Foucault- Quest-ce que les Lumires. Paris: Magazine Littraire.N. 207 mai 1984.

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    que projetavam os planos para a agricultura tropical, com bacha-ris em direito, que lavravam contratos comerciais, e com mdicose construtores navais. Estas formaes acadmicas preponderaramento nos primrdios das medidas do estado racional-burocrtico.Aumentando a produo agrcola e extrativa, com os empreendi-mentos algodoeiros e canavieiros e a introduo de fora detrabalho escrava das Costas da frica, e incentivando as ativida-des comerciais com a ampliao da frota mercante e uma maiorregularidade de transporte de matrias-primas para a metrpole,as reformas pombalinas combinavam a noo de progresso como que denominavam de racionalidade econmica. Este esquema

    interpretativo reproduzido no tempo, tornan do-se uma socio-logia espontn ea de explicao da Amaznia. Pela sua foraargumen tat iva e pelo seu peso institucional vai se estender pordcadas a fio nos relatrios de Presidentes de Provncia, do pe-rodo imperial, e quejandos, no obstante as crticas de fisiocratase de outros ilustrados, que fazem reparos ao mercantilismo e escravido, como Jos Bonifcio de Andrada e Silva, denunciandoa destruio descontrolada das matas.8 Pelo menos at final dosculo xx, elementos bsicos de tal esquema interpretativo po-dem ser identificados sob uma forma de vulgarizao cientfica,quando todos discutem ou preconizam formas de explorao ra-cional, ocupao racional e ao racional como moderna,suportando planos, projetos e programas oficiais de desenvolvi-mento da regio amaznica. A noo de atualidade (Foucault,1984) pode ser estendida aqui a estes argumentos interpretativos

    que se prolongam no tempo, que so repetidos de maneira impl-cita ou explcita, regidos por uma determinada monotonia quetranscende contingncias histricas.

    Ns podemos, portanto, constatar esta modalidade de colocaro problema tanto nos atos imperiais, relativos seca de 1877,favorecendo o deslocamento de fora de trabalho nordestina paraa Amaznia, quanto nos atos republicanos de criao do Servio

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    8 . Leia-se an d r ad a e sil va , Jos Bonifcio. Projetos para o Brasil (org. por MiriamDollmikoff). So Paulo: Companhia das Letras. 1998.

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    de Proteo aos ndios e Localizao de Trabalhadores Nacionais(spi)9 em junho de 1910. Trata-se de situaes de imobilizao defora de trabalho pela empresa seringalista.10 Podemos verific-latambm na implementao do Plano de Defesa da Borracha, 11

    desde 1912, e nas polticas governamentais para a seca em 1915 e1930. Vamos encontr-la ainda nas campanhas da Batalha da Bor-racha, aps o Acordo de Washington,12 firmado com os EstadosUnidos em 1942, e nas discusses que resultaram no Art. 199 daConstituio Federal de 1946, que disps sobre a implantao de

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    9 . Para um aprofundamento consulte-se: so u za l ima , Antonio Carlos de. Um gran-

    de cerco de paz. Poder tutelar, indianidade e formao do estado no Brasil. Petrpolis:Vozes, 1995.10. O spi foi criado pelo Decreto n. 8.072, de 20 de junho de 1910, no governo de NiloPeanha. Sua denominao inicial era a seguinte: Servio de Proteo aos ndios e Lo-calizao de Trabalhadores Nacionais vinculado ao Ministrio da Agricultura, Indstriae Comrcio. As medidas de criao de postos indgenas estavam atreladas a projetos eco-nmicos e os delegados designados para tratar das questes indgenas, no mais dasvezes, eram seringalistas ou a eles subordinados. Para outras informaes consulte-se:r od r igue s de mel o , Joaquim.A poltica indigenista no Amazonas e o Servio de Pro-

    teo aos ndios: 1910-1932. Dissertao de Mestrado apresentada ao ppgsc a u fam,Manaus, 2007.Consulte-se tambm ig l es ias , Marcelo M. Piedrafita. Os Kaxinaw de Felizardo:

    correrias, trabalhoe civilizaono Vale do Juru. Tese de Doutoramento apresentadaao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, u f r j Museu Nacional. Riode Janeiro, 2008.11. H autores que resenharam tais planos ou os apresentaram numa seqncia crono-lgica estrita. O fizeram, implcita ou explicitamente, atravs da teoria dos ciclos (drogasdo serto, borracha) corroborando acriticamente uma interpretao esquemtica quetem como referencia emprica o que se convencionou designar como Amaznia. Parauma apreciao desta literatura consulte-se: mahar , Dennis J. Desenvolvimento Eco-nmico da Amaznia-uma anlise das polticas governamentais. Rio de Janeiro: ipea

    /in pe s , 1978 (Coleo Relatrios de Pesquisa n. 39 ipea ). Consulte-se tambm:c ar d os o , f . h .; ml l e r g .Amaznia: expanso do capitalismo. So Paulo: Ed. Bra-siliense/c ebr ap, 1977.

    Esta periodizao por ciclos, to repetida pelos comentadores da histria da Ama-znia, vai ser criticada por Pacheco de Oliveira in: O caboclo e o brabo. Notas sobreduas modalidades de fora de trabalho na expanso da fronteira econmica no sculoxix. Encontros com a Civilizao Brasileira, n. 11. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao Bra-

    sileira. Rio de Janeiro, maio de 1979, pp. 101-140.12. Para explicaes mais aprofundadas sobre tal acordo comercial, que redefiniu pro-fundamente o sistema extrativista na regio amaznica, impondo os rigores de uma

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    um programa de desenvolvimento para a Amaznia. Tal programaera financiado por uma parcela de 3% do total da receita deimpostos federais durante um prazo de vinte anos consecutivos.Os argumentos que nortearam a sua execuo no legislativoincorporaram uma avaliao crtica dos erros relativos s formasde imobilizao da fora de trabalho recru tada para os empreen-dimentos na Amaznia, mas mantiveram o princpio fundamentaldeste sistema repressor, qual seja, no contemplar medidas delivre acesso terra e demais recursos naturais pelos chamados(i)migrantes, impedindo-os de se constiturem numa fora socialeconomicamente autnoma. Sobre os povos indgenas e os me-

    canismos de coero que os mantinham imobilizados o silncio absoluto.

    Em seqncia, constata-se que tal modalidade de percepodos problemas pode ser detectada tanto nos argumentos queresultaram na Superintendncia do Plano de Valorizao Eco-nmica da Amaznia (spvea),13 quanto na Lei n. 1806, de 6 de

    janeiro de 1953, que regulamentou o Art. 199. Esta Lei definiu a

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    economia de guerra, consulte-se: al me ida , a.w.b. de. Preos e possibilidades: a or-ganizao das quebradeiras de coco babau face segmentao dos mercados inal meid a et alli. Economia do babau-levantamento preliminar de dados. So Luis:miqcb , 2001, pp. 27-46. Na 2. edio. pp. 27-42.13. Consulte-se o Parecer sobre o Projeto de Lei do Senado n. 267 de 1951, elaboradopelo Relator, Senador lvaro Adolpho, que foi apresentado na Comisso de Finanasdo Senado e dispe sobre a execuo do Plano de Valorizao da Amaznia em cumpri-mento ao disposto no Art. 199 da c f de 1946. Este pl tramitou na Cmara dos Deputadosem 1948 sob o mesmo nmero, qual seja, 267. Foi publicado pelo Departamento de Im-prensa Nacional em 1951. No captulo referente a Povoamento e Colonizao tem-se:O que se deve evitar so os erros do primeiro e do segundo perodo, em que afluiramcorrentes de trabalhadores nordestinos para a Amaznia. Houve, por falta de organiza-o do povoamento em bases tcnicas e econmicas, o desperdcio de valores humanose de fora de trabalho, sobretudo no primeiro perodo, em que a falta de alimentaoconveniente, de assistncia e at de humanidade nos mtodos de trabalho e remunera-o deste (...) eram causas de diminuio das populaes embrenhadas na floresta (...).No ltimo perodo em que se deu a interveno oficial para organizar o trabalho nos se-ringais (...) que as circunstncias de guerra justificavam, pelas necessidades urgentes doproduto, o erro, como j dissemos em outro passo, foi pretender-se substituir o sistema

    tradicional de produo e os seus quadros econmicos, inclusive o regime de trabalho nosseringais e o seu financiamento e abastecimento, atravs de entidades que sempre esti-veram frente dessa produo, por outro sistema de ao direta e compulsria, de

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    criao do Plano de Valorizao Econmica da Amaznia e paraexecut-lo que foi instituda a spvea.14 Um de seus efeitos maissignificativos implicou na necessidade de se conceituar formal-mente e de uma maneira considerada ao mesmo tempo cientficae jurdico-formal, o que se entende por Amaznia.

    Numa tentativa concisa de gnese social desta categoriapode-se dizer qu e um dos pressupostos oficiais desta referidaconceituao de Amaznia que fossem estabelecidos critriosobjetivos. O Relatrio do Senador A. Adolpho baseou-se numadelimitao da regio definida como Amaznia a partir do crit-rio da cobertura botnica (Senador A. Adolpho, 1951:11-13). No

    houve consenso. As divergncias cingiram-se a trs critrios: o quese baseava em pontos geodsicos, proposto pela Sociedade deAmigos de Alberto Torres, o fisiogrfico, proposto pelo Conse-lho Nacional de Geografia e baseado nas bacias hidrogrficas, eo da cobertura botnica. Prevaleceu o geodsico. O gegrafo Ei-dorfe Moreira, que sintetizou esta polmica, produziu, no mbitoda spvea, uma conceituao com perspectiva mais abrangente,subdividida em: a) conceito hidrogrfico, conceito fitogeogr-fico, conceito zoogeogrfico, conceito poltico, conceitoeconmico e os respectivos critrios delimitativos da regio; b)conceito de paisagem (a plancie, o rio, a floresta, o clima e o ho-mem). Alm de ser o ltimo elemento da subdiviso de Moreiraverifica-se que o homem apresen tado consoante o argumen-to de insuficincia demogrfica (Moreira; 1960:82) e umainterpretao geografizante, seno vejamos: a Amaznia possui

    os seus tipos antropogeogrficos peculiares (Moreira, 1960:89).15

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    certo modo artificial, dando lugar a que, apesar do movimento de trabalhadores que sedeslocaram para a regio em levas enquadradas pelos agentes do governo, fossem nova-mente abandonados os seringais, em sua maior parte, quando teve de cessar a aooficial. (Senador A. Adolpho; 1951: 102, 103).14. Para uma leitura mais detida consulte-se: spvea , Primeiro Plano Qinqenal-Planode Valorizao Econmica da Amaznia (2 vols.). Belm, Setor de Coordenao e Divul-gao. 1955. O cargo de Superintendente era ento ocupado pelo historiador Arthur

    Czar Ferreira Reis, que tambm coordenava a Comisso de Planejamento que elabo-rou o referido plano.15. A primeira edio de Amaznia o conceito e a paisagem, de autoria de Eidorf

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    Os modelos para produzir tais critrios, considerados objetivose racionais, so de inspirao naturalista, amarrados em con-ceitos biolgicos, que permeavam inclusive os argumentosdemografistas e as categorias censitrias do ibge.16

    Vamos encontrar tambm estes princpios ditos racionais,orientando a criao da sudam, em 1966, e em toda a interven-o militar que resultou no ge t at , no gebam17 e nas polticasde colonizao dirigida do inc r a e nas grandes concesses deterras pblicas a empreendimentos privados no perodo ditatorialde maro de 1964 a maro de 1985.

    Est-se diante de uma monotonia deste discurso que enfa-

    tiza o racional aplicado a objetos singulares e a realidadeslocalizadas. Assim vamos encontr-lo tambm, sob diferentes as-pectos, na justificativa das diferentes polticas governamentais: noProlcool, no Projeto Jar18 e no Programa Grande Carajs,19 bemcomo nas leis estaduais que buscam uma reestruturao formaldo mercado de terras.20 Justifica ainda a usurpao das terras in-dgenas e das ocupaes tradicionais camponesas, porquanto soclassificadas como primitivas ou como economia natural. Ospovos indgenas e a economia camponesa seriam interpretados

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    Moreira, data de 1958 e foi publicada pelo Conselho Nacional de Pesquisas Inpa. Emdois anos houve oito edies. Extrai a citao acima da oitava edio, de 1960, que in-tegra a Coleo Arajo Lima, da spvea .16. Nos recenseamentos do ibge , desde 1872, foi adotada uma classificao dos tiposbrasileiros, elegendo-se um critrio de distino e contraste de carter essencialmentemorfolgico, baseado no que se designa como a cor da pele. Pretos, brancos, amare-los, pardos e indios constituem as atuais categorias censitrias.17. Sobre estes Grupos Executivos leia-se: al me ida , a.w.b. de. O gebam, as empre-sas agropecurias e a expanso camponesa in ibase , Os donos da Terra e a luta pelareforma agrria. Rio de Janeiro: Codecri, 1984 pp. 51-70. E tambm ge t a t a seguran-a nacional e o revigoramento do poder regionalRevista f ipe s. Vol. i . N. 2. So Luis,julho/dezembro de 1980 pp. 37-58.18. Para maiores esclarecimentos sobre este projeto leia-se: pin t o , Lcio Flvio.Jar:toda a verdade sobre o projeto de Ludwig. As relaes entre Estado e Multinacional na Ama-

    znia. Belm: Ed.Marco Zero, 1986.19. Cf. al meida , a.w.b. de. Carajs: A Guerra dos Mapas. Belm: spdh , 1995. 2. edio.

    20. Para maiores pormenores sobre a Lei Sarney de Terras de 1969, consulte-se: AlfredoWagner e Las Mouro Questo Agrria no Maranho Contemporneo. Pesquisa An-tropolgica ns. 9 e 10. Brasilia. 1976.

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    como uma mera continuao da natureza. Constata-se, nesteponto, uma abordagem bio-organicista, em que fenmenos socio-lgicos e de cu ltura aparecem submetidos a processos biolgicose a leis naturais. Os processos sociais so considerados como se-melhantes aos processos biolgicos. As noes de colnia e depovoamento parecem extradas de um manual de cincias na-turais. O conceito de sociedade como organismo natural encontrainclusive uma expresso empiricamente observvel na percepoda Amaznia como um organismo harmnico. Tal classificaofoi cunhada por Hans Bluntschli, professor de anatomia da Uni-versidade de Berna (Sua), a partir de sua viagem pela Amaznia,

    em 1912, e reproduzida acriticamente por dcadas e dcadas pos-teriores, inaugurando, inclusive, em 1958, uma das sries depublicaes do Inpa.21 Nas consideraes finais de sua interpre-tao Bluntschli, criticando duramente os efeitos das reformaspombalinas de 1755 e o que chama de cultura da cachaa22 eacentuando as dificuldades do povo de mestios em contrastecom os melhoramentos realizados por fazendeiros europeus noBaixo Amazonas, ressalta a existncia de duas Amaznias:

    A primeira eu a descrevi extensamente um pas maravi-lhoso e harmnico... Com esta Amaznia combinam bem os riosgrandes sem margens, as florestas silenciosas e no cruzadas por

    30

    21. Em 1958 o Inpa abre a srie Cadernos da Amaznia com a publicao da confe-rncia de Hans Bluntschli denominadaA Amaznia como organismo harmnico. Trata-sede uma traduo de Harald Sioli do trabalho de Bluntschli publicado na Alemanha em1921. Desafortunadamente no h qualquer introduo crtica ao texto. Este indicativoevidencia que os editores acreditavam na atualidade das formulaes de Bluntschili, nohavendo portanto necessidade de quaisquer reparos, relativizaes e crticas.22. Cf. A interpretao de Bluntschli, em 1912: Talvez o Amazonas estivesse hoje maisadiantado se houvessem deixado os missionrios das ordens religiosas que j atuaramaqui h 200 anos, continuar a trabalhar sem perturbao.Est indiscutivelmente com-provado que, naquele tempo, era ensinada uma atividade agrcola mais intensa, a muitastribos de ndios, as quais hoje, no mais do a conhecer muito dessa atividade.Em vezdisso apagaram-se os princpios sadios com palavras demaggicas, e quando hoje a ca-

    mada social superior se orgulha da sua liberdade, esta espcie de liberdade noprestou, na realidade, um bom servio ao pas.

    Sob esta senha estendeu-se a cultura da cachaa... (Bluntschli, ibid. 34).

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    estradas, combina bem o ndio srio mas fiel, com a sua ub e oseu arpo. Esta regio possui raa e vida prprias.A outra Amaznia, com seus palcios modernos nas cidades gran-des, com suas mercadorias vistosas, mas sem valor e de mau gosto

    e as suas formas de governo importadas da Europa e que no evo-luram nas suas significaes, correspondentes s condiesregionais, mas baseiam-se em efeitos de pura vanglria, ficou es-tranha ao meu ntimo. Traos de uma adaptao s condiesnaturais podem-se reconhecer, mas infelizmente so apenas in-cio de um equilbrio. Esta Amaznia quer ser uma filial dacultura da Europa, mas parece mais ou menos uma caricatura.

    a Amaznia da cultura da cachaa e das folhas de zinco, ea influncia dela no pode conduzir, nas trilhas escolhidas, beno. (Bluntschli, 1962:35) (g.n.)

    Nesta ordem, a abordagem bio-organicista apareceria imbricadacom o procedimento de se pensar a Amaznia consoante ummodelo dual, que se trata de um outro componente relevante dosesquemas interpretativos aqui tomados como objeto de reflexo.Semelhante procedimento dualista aparece nesta literatura inter-pretativa da Amaznia segundo diferentes modalidades deoposio simtrica, tais como: oposio en tre civilizao e vidaselvagem, entre progresso e atraso, entre modernidade eprimitivismo, entre racional e nativo, entre sedentarizaoe nomadismo e entre harmonia e desequilbrio. Os plosdesta oposio so irredutveis um ao outro e suas contradies

    so irreconciliveis, caracterizando a sociedade colonial e seusdesdobramentos com o republicanismo militar e inicialmentepositivista. Haveria cont inu idades evidentes entre o estado di-nstico e o estado burocrtico-racional, entre os dispositivosoperacionais da casa real, sob a governao pombalina, eaqueles dos gabinetes presidenciais republicanos. O pano defundo desta pretenso de racionalidade entrelaa monarquia e

    repblica, expressando a monotonia de uma transio.Mesmo os au tores que relativizam o peso da geografia fsi-ca insistem reiteradamente numa viso dual da Amaznia: o

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    gegrafo Eidorfe Moreira,23 procedendo a distines entre o de-nominado caboclismo e as frentes nordestinas de ocupao, ircontrapor uma Amaznia cabocla a uma nova Amaznia(Moreira, 1958:71). De igual modo Djalma Batista, diretor doInpa, em 1976, considerando a Amaznia no enquanto os cri-trios da geografia fsica, mas de acordo com a geografiahumana (Batista, 2007:115) ir classificar trs Amaznias: a pri-meira compreendendo as cidades que cent ralizam a vidaeconmica e social, a segunda referindo-se s cidades do interior,sujeitas depopulao e a terceira aos locais em que vivem ex-trat ivistas, pescadores, garimpeiros, pequenos agricultores e

    indgenas, onde, segundo o autor: A vida continua na mesmaprimitividade (Batista, 2007:115).24

    Este conjunto de oposies marca, por assim dizer, todoum conjunto de planos e programas oficiais para a Amaznia eem particular sobre a natureza na Amaznia, dispondo-a numaespcie de camisa de fora como sinnima de meio fsico quea tudo sobrepuja. Deste prisma que tudo se explicaria pela geo-grafia, pela topografia, pela botnica, pela zoologia, pelageologia ou pela biologia, prevalecendo o termo popula-es ou a expresso indivduos biolgicos, ou seja, uma noode sujeitos biologizados eufemizada pela classificao de ti-pos antropogeogrficos. Tal noo coaduna-se ademais com aexpresso populao nmade (Jobim, 1934:9). 25 A nfase noquadro fsico de tamanha monta que os agentes sociais, uni-dades familiares de produtores diretos e extrat ivistas, quan do

    so mencionados, aparecem como menores ou quase insigni-

    32

    23. Cf. Moreira, Eidorfe.Amaznia. O conceito e a paisagem. Belm: c n pq Inpa, 1958.24. Cf. Batista, Djalma. O complexo da Amaznia. Anlise do processo de desenvolvi-mento. Manaus: Valer Ed./Inpa/e d u a , 2007 (1. edio 1976).25. Para uma leitura mais detida da vigncia destas noes relativas a populao n-made (Jobim, 1934:9) e de verbetes comentados de cnegos, naturalistas (AlexandreRodrigues Ferreira), administradores coloniais (famlia Tenreiro Aranha) produzindouma geografia no sculo xviii, at os autores de romances sociais em 1930 (como

    Francisco Galvo e seu romance Terra de Ningum) consulte-se :jobim, Ansio.A intel-lectualidade no Extremo Norte (Contribuies para a Histria da Literatura no Amazonas).Manaos: Livraria Clssica J. J.Cmara. 1934.

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    ficantes em termos demogrficos, sociais e econmicos, sendoclassificados, alm disto, como figuras t picas, consoante oibge , ou como tipos antropogeogrficos (Moreira, 1960:89).Este argumento de insuficincia demogrfica ou de baixa den-sidade populacional, considerado em si consiste num risco. Pormais de uma vez tem aberto as portas para a assertiva de espaovazio, nas justificativas dos programas e projetos desenvolvi-men tistas, contrariando a representao de espao social e deterritorialidade especfica de diferentes etnias e comunidades eprovocando conflitos sociais.

    Para ilustrar estas formas de invisibilidade, que a noo

    de vazio demogrfico sugere, recorde-se que o denominadonomadismo sempre esteve presente nas anlises da chamadacrise do extrativismo na Amaznia, acentuando uma agricul-tura itinerante e uma suposta pequenez do homem e de suasatividades face exuberncia do meio fsico. Houve inclusive,em determinadas circunstancias, um certo consenso entre eco-nomistas e gegrafos a este respeito, que deslocava o sentido dadegradao, tomando-o como um efeito de atividades econmi-cas itinerantes realizadas por povos indgenas e por unidadesfamiliares de produtores diretos extrativistas. A nfase neste des-locamento, aparentemente livre, num quadro de prevalncia demecanismos de imobilizao da fora de trabalho que coibiam aliberdade de locomoo dos trabalhadores, quando se aborda adegradao como um problema recorrente, requer uma refle-xo mais detida. Tanto mais porquanto ela pode ser interpretada

    como resultante de uma perspectiva racista, que atribui hoje aresponsabilidade de danos ambientais e de reas degradadas apovos e comunidades tradicionais ou a etnias vulnerabilizadas,26

    que historicamente mantm as terras para seus cultivos agrcolassob um rodzio, com sistemas de encoivaramento e prticas ex-trativas com tecnologias simples.

    33

    26. A propsito, para efeito de contraste, veja-se as variaes do significado de racis-

    mo ambiental no livro organizado por h e r c u l a n o , Selene e pac h ec o , Tniaintitulado:Racismo ambiental iSeminrio Brasileiro contra o Racismo Ambiental. Riode Janeiro. Fase, 2006.

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    O significado de uma ocupao racional da Amaznia, poroutro lado, passa a ser atrelado a medidas governamentais queanunciam a imperiosidade da sedentarizao. Todos os produto-res diretos extrativistas so interpretados como desenvolvendoatividades produtivas itinerantes, cu ja pr-condio para se tor-narem racionais passaria pela fixao.

    A este respeito, no Discurso do Rio Amazonas proferido peloditador Getlio Vargas, em Manaus, no dia 10 de outubro de1940, l-se o seguinte:

    O nomadismo do seringueiro e a instabilidade econmica dos

    povoadores ribeirinhos devem dar lugar a ncleos de culturaagrria, onde o colono nacional, recebendo gratuitamente aterra desbravada, saneada e loteada, se fixe e estabelea a fam-lia com sade e conforto. (Getlio Vargas, 10/10/1940) (g.n.)

    Constata-se a recorrncia de argumentos com o objetivo de as-segurar um povoamento amaznico permanente, convertendoseringueiros e ribeirinhos em colonos nacionais. Tais argumen-tos lanam, por assim dizer, as bases de aes polticas oficiaisde sedentarizao forada, que tero sua expresso mais acabadacom a poltica de colonizao dirigida, realizada na Amazniaem 1970-72, no perodo do governo ditatorial do General Garras-tazu Mdici.

    Duas dcadas antes possvel se ler no relatrio oficial,datado de 1952, do Conselho Nacional de Economia, ento vin-

    culado diretamente Presidncia da Repblica, que aborda aeconomia do babau, um atrelamento das condies de existn-cia da populao dos babauais degradao. Quer dizer, adegradao se torna um atributo de grupos sociais e de comu-nidades tnicas e no mais se refere necessariamente a perdasrelativas aos recursos naturais. A transitividade do atributo evi-dencia que tanto pode ser utilizado para os recursos naturais,

    quanto para aqueles que os exploram, os quais so interpretados,por sua vez, como indivduos biolgicos. No haveria quaisquerfronteiras, consoante esta perspectiva dos economistas, entre o

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    natural e os elementos de cultura naturalizados. A noo dedegradao permite agrupar tudo sob uma classificao natu-ralizante, seno vejamos:

    No de admirar, pois, ser a populao dos babauais das maismiserveis do Pas. Gente semi-faminta, largada ao abandono,numa degradao sem limites e em permanente nomadismo.(Conselho Nacional de Economia; 1952:9) (g.n.)27

    De igual modo que no discurso econmico, mesmo quando opensamento erudito explicava pela chamada filosofia, como

    no caso das famosas viagens filosficas de 1783,28 est-se dian-te de uma noo que remete s cincias naturais. Problemas daagricultura, do comrcio, da moeda e da indstria no eram en-to estranhos aos filsofos. A este tempo o quadro econmicodos fisiocratas e sua expresso matemtica para tratar aquelesproblemas n o diferia essencialmente do quadro natural. Oexerccio da cincia estava diretamente ligado histria natural, medicina, filosofia, matemtica, geologia e geografia.Esta modalidade de percepo dos objetos, urdida nas ltimasdcadas do sculo xviii, insinua-se fortemente nos planos gover-namentais do sculo xx.

    Grosso modo, pode-se dizer que a vigncia deste esquemainterpretat ivo e suas variaes prat icamente absoluta de 1755,quando se adensam as reformas pombalinas,29 a 1988, quandose tem uma Constituio Federal, que tem permitido falar em

    um Estado Pluritnico que confere proteo a diferentes ex-presses tnicas. As transformaes que colocaram fim aomercantilismo, no domnio econmico, e monarquia, no plano

    35

    27. Cf. Conselho Nacional de Geografia. Babau Economia a Organizar. Rio de Ja-neiro, c n e . 1952. Esta publicao consiste num documento enviado ao Presidente daRepblica para justificar a elaborao de anteprojeto de lei que cria a Comisso do Ba-bau e d outras providencias.28. Para um aprofundamento leia-se tambm: f e r r e ir a , Alexandre Rodrigues. Via-

    gem Filosfica ao Rio Negro. Belm: Museu Goeldi, 1983.29. Cf. f a l c o n , F.J. Calazans.A poca Pombalina (Poltica Econmica e MonarquiaIlustrada). So Paulo: Ed. tica, 1982.

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    poltico, no lograram reverter os efeitos das interpretaes bio-logizantes a respeito da Amaznia. Sabedor disto irei adotarprovisoriamente, para efeito de apresentao, este marco insti-tucional ou estas datas cannicas como fenmeno de ruptura,atento s limitaes que envolvem este tipo de clivagem jurdico-formal. O objetivo seria compreender porque, para o Estado, seredefine a maneira de representar a natureza e de justificar asformas de interveno oficiais. Aps a ii Guerra Mundial j estavarompido o argumento colonialista que considerava o homemcomo parte da natureza. prpria noo de homem se so-brepunham designaes localizadas e critrios de gnero,

    representando uma forma de politizao, traduzida por atoscoletivos que separam o homem, agente social, da natureza,meio fsico. O determinismo geogrfico e ambiental perdera suafora explicativa com a antropogeografia ou com a geografiacultural, reconhecendo a reciprocidade de influencias entre ohomem e o meio, entre o natural e o cultural. A questo da pre-valncia da biologia, por sua vez, no concernia mais a conceitosbiolgicos tomados em si mesmos, mas s variantes do determi-nismo biolgico que, no obstante as tentativas de relativizaoe crtica, ainda se insinuam fortemente nas interpretaes de pre-tenso cientfica e parecem querer imprimir sentido s polticasgovernamentais concernen tes Amaznia atravs de uma vincu-lao estreita com a noo de desenvolvimento. Esta noo,que ganha fora no ps-guerra, com os programas internacionaisarticulados pelos norte-americanos para pases no-industrializa-

    dos, aparece vigorosamente atrelada, conforme alerta Foucault,ao postulado da continuidade.30

    36

    30. Para Foucault, caso se pretenda adicionar o conceito de descontinuidade s histriasdo pensamento intelectual: preciso se libertar de todo um jogo de noes que estoligadas ao postulado da continuidade. (...) Como a noo de tradio, que permite aomesmo tempo delimitar qualquer novidade a partir de um sistema de coordenadas per-manentes e de dar um estatuto a um conjunto de fenmenos constantes. Como a noode influencia, que d um suporte antes mgico que substancial aos fatos de trans-

    misso e de comunicao. Como a noo de desenvolvimento, que permite descreveruma sucesso de acontecimentos como sendo a manifestao de um nico e mesmo prin-cpio organizador. (...) preciso abandonar estas snteses j feitas, esses agrupamentos

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    Destaque-se que esta transformao pode ser percebida nosomente pela anlise interna do discurso, mas principalmente pe-las prticas dos planejadores e executores de polticas, programase planos governamentais, entre os anos de 1953 e 1990. Em outrostermos elas se estendem da criao da spvea e da elaborao doPrimeiro Plano Qinqenal, coordenado pelo historiador ArthurCezar Ferreira Reis, at as discusses e iniciativas que geraramo Plano Piloto de Proteo das Florestas Tropicais, mais conhe-cido como ppg -7. A referida transformao pode, ento, sermelhor entendida, quando se registra mudanas na prpria lgi-ca de ao das agncias multilaterais, referidas ao que, no

    momento atual, se denomina de desenvolvimento sustentvelna Amaznia. Mostra-se presente nas novas estratgias de in-terveno oficial, que no mais separam de maneira rgida aesfera pblica da ao privada. A prpria iniciativa de incor-porao pelo ppg -7, desde 1991, de uma varivel chamada desociedade civil da Amaznia, inscreve-se neste novo captulo.Tanto sensibiliza grandes empreendimentos privados, quantoconcerne a um tipo de reconhecimento de que a floresta tropi-cal no pode mais ser separada dos agentes sociais e povos quedela fazem uso regular e a respeito dos quais se tem agora umainterpretao positiva. Mesmo que seja questionvel este princ-pio participativo orientado de cima, ele traduz, de certo modo,uma forma de reconhecimento a partir de mobilizaes polticase de reivindicaes, que no podem mais ser ignoradas e que de-signam um novo tempo para se pensar o significado de natureza.

    A categoria povos da floresta, que emerge em 1988, a partirde mobilizaes polticas que agrupam seringueiros, castanheiros,quebradeiras de coco babau, ribeirinhos, quilombolas e povos in-dgenas, sintetiza este processo social e identitrio. Trata-se de um

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    que se admitem antes de qualquer exame, esses laos cuja validade admitida ao in-cio do jogo; destruir as formas e as foras obscuras pelas quais temos o hbito de ligarentre si os pensamentos dos homens e seus discursos; aceitar que s se trata, em pri-meira instancia, de um conjunto de acontecimentos dispersos. (Foucault, 1973:17) (g.n.)

    Cf. f ou c aul t , M. Sobre a Arqueologia das Cincias Resposta ao Crculo Epis-temolgico. in Foucault, M. et alli. Estruturalismo e Teoria da Linguagem. Petrpolis:Ed. Vozes, 1973, pp 9-55.

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    primeiro momento para se compreender o surgimento de novasidentidades coletivas e sua objetivao em movimentos sociais,apoiados na fora mobilizatria de etn ias, de comunidades ex-trativistas, que agrupam famlias de produtores diretos comconscincia ambiental aguada e laos locais profundos, recolo-cando o significado de natureza. Neste processo os agentessociais deixam de ser vistos como indivduos biolgicos, deexistncia serial e atomizada, para assumir sob condies de exis-tncia coletiva uma posio de sujeitos sociais. Antes mesmo demencionar floresta expressam a categoria povos, denotando coma expresso povos da floresta uma primeira percepo da diver-

    sidade social como fator poltico, tornada fenmeno observvelpelas cincias sociais. As referencias empricas em pauta nosremetem diretamente a sujeitos sociais construdos em conso-nncia com suas condies especficas de existncia coletiva eafirmao identitria, a saber: seringueiros, castanheiros, quebra-deiras de cco babau, quilombolas, pescadores, ribeirinhos epovos indgenas, ento agrupados na Unio das Naes Indge-nas (un i). A aproximao destas identidades emergentes, que seapiam numa autoconsciencia cultural e comeam a se organizarcomo fora poltica, resulta na denominada aliana dos povos dafloresta,31 consolidando um significado mais abrangente de natu-reza, capaz de expressar a diversidade social e tnica e seusrepertrios de reivindicaes face aos aparatos de estado. Cons-tata-se ocorrncias sucessivas de antagonismos sociais, nas quaisas identidades coletivas vo sendo reforadas pelos laos de soli-

    dariedade que vo sendo criados pelas un idades de mobilizaoface ao Estado e aos que intrusam terras indgenas e usurpamterras tradicionalmente ocupadas.

    Os recursos naturais, sintetizados ento na idia de terrae as mobilizaes no sent ido de sua conservao, servem de re-foro reivindicao da identidade coletiva. As novas formas deinterpre tar a nat ureza e de defend-la fazem parte de seu

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    31. Cf. al me ida , Alfredo Wagner B. de. Universalizao e Localismo movimentossociais e crise dos padres tradicionais de relao poltica na Amaznia. In c e s e De-bate n. 3. Ano iv. Salvador, maio de 1994 pp. 46-60.

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    novo significado, que no pode mais ser dissociado das mobili-zaes e de processos diferenciados de territorializao, quelevam os sujeitos sociais a construirem suas prprias territoriali-dades especficas, segundo seus critrios culturais intrnsecose seus conhecimentos profundos das realidades localizadas.Rios, igaraps, olhos dgua, reservas de mata, castanhais, baba-uais, campinas, campinaranas, aaizais, buritizais e/ou terrasagriculturveis passam a compor um conjun to considerado indis-pensvel para a reproduo fsica e social. Nesta construo, oclculo da degradao certamente tem que ser levado em contapara que o grupo, a comunidade e/ou o povo no venham a se

    mobilizar contra eles mesmos, reivindicando o que no lhes seriasuficiente em termos coletivos. Tem sido possvel perceber, apartir de trabalhos de campo com comunidades remanescentesde quilombos em Alcntara (ma) e no mbito das atividades de pes-quisa do Projeto Nova Cartografia Social da Amaznia (no BaixoAmazonas, no Rio Negro, na regio tocantina), que a conscinciada necessidade invariavelmente tem acompanhado a consolidaodas identidades coletivas. Faz parte do processo diferenciado deterritorializao, articulando-se com instituies sociais erigidasem torno do que indgenas, quilombolas, ribeirinhos, seringuei-ros, quebradeiras de coco babau, castanheiros e outros grupossociais e povos chamam de roa. Esta designao polissmica,mais que uma mera referencia aos tratos de cultivo ou, num sen-tido restrito ao plantio de mandioca, expressa uma maneira deviver e de ser. Mais que um modelo de relao antrpica, a cha-

    mada roa compreende um estilo de vida que vai desde a definiodo lugar dos povoados, passando pela escolha dos terrenos agri-culturveis, e dos locais de coleta, de caa e de pesca, at osrituais de passagem que asseguram a coeso social em festas re-ligiosas, em funerais, batizados e comemoraes diversas. Estadesignao expressa ademais, uma representao particular darelao entre tempo e espao,32 manifesta nos calendrios agr-

    colas, extrativos e de festas, constituindo-se numa referencia

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    32. Cf. al me ida , Alfredo Wagner B. de. Os quilombolas e a base de lanamento de fo-guetes de Alcntara. Brasilia: mma , 2006 (2 vols.).

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    essencial que sedimenta as relaes intrafamiliares e entreunidades familiares, alm de assegurar laos de reciprocidade ne-cessrios para a reivindicao e defesa do territrio (Almeida,2006:51). Mesmo em se tratando de situaes sociais que abran-gem indgenas e quilombolas, territorializando-se em estruturasurbanas vamos encontrar referencias denominada roa.33 Aroa, neste sentido, seria uma medida do equilbrio bitico, emtermos das possibilidades de subsistncia e reproduo socialpara as pessoas que ocupam uma determinada territorialidadeespecfica. As relaes sociais que gravitam em torno dela consti-tuem um fator relevante para a emergncia e consolidao destas

    novas formas organizativas a que nos estamos referindo. Trata-se,em resumo, de um captulo do processo de politizao da n atu -re za e da emergncia de uma vvida autoconscincia culturalapoiada em conhecimentos imateriais que nu trem as unidadesde clculo do processo de produo permanente (tamanho da reade plantio, sua localizao distante das margens dos cursos dguae das nascentes, tempo de encapoeiramento, cuidados durante opreparo da rea de cultivo para evitar a derrubada de determina-das espcies vegetais, uso seletivo dos recursos florestais etc.).

    Pode-se asseverar, portanto, que ressaltam nesta aludida trans-formao sujeitos sociais, que se opem radicalmente aos sujeitosbiologizados e buscam desloc-los do centro das interpretaes.

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    33. O trabalho de pesquisa com as mulheres indgenas em Manaus, da mestrandaClaudina Azevedo Maximiano do ppgsca u fam, traz vrios depoimentos de entre-vistadas que associam os internatos salesianos no Rio Negro desfigurao de ummodo de ser e fazer. O principal fator de desestruturao familiar as entrevistadas atri-buem no-habilitao das mulheres indgenas, que viviam nos internatos religiosos,no sentido de botarem roa. A inexistncia de uma socializao para o trabalho agr-cola e extrativo vivida como um fator que gera uma insegurana permanente na vidaadulta das ex-internas, que se vem a si mesmas como incapazes de prover os bens ne-cessrios reproduo de seu grupo familiar. Temerosas de regressar s suas aldeias deorigem e de no corresponderem s exigncias da posio de esposa e me, que culti-vam roas e extraem produtos florestais, estas referidas mulheres so compelidas a sedeslocarem para as cidades da regio onde passam a exercer trabalhos e servios do-

    msticos para terceiros. Cf. Maximiano, C. A. et alli.Mulheres Indgenas e Artesos doRio Negro. Manaus: Associao Poterikara Numi (apn ))/pn c sa , 2007 Fascculo n. 18.Srie Movimentos Sociais e Conflitos nas Cidades da Amaznia.

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    Com todas as dificuldades de se analisar fenmenos re-centes importa acrescentar que, num segundo momento, maisreferido ao ltimo lustro, que ser examinado mais adiante, tem-se o reforo poltico-institucional das afirmaes identitriasatravs da au todefinio dos agentes sociais. A ratificao daConveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho (oit ),em 2002/03, e os novos decretos presidenciais defendendo os di-reitos territoriais de quilombolas e demais povos e comunidadestradicionais assinalam um novo tempo nas relaes dos movi-mentos sociais com o Estado. Os deslocamentos que esto sendopercebidos no momento atual concernem a problemas de me-

    diao, aps os diferentes grupos j terem um rgo permanentede representao, que substituiu o grupo serial composto de in-divduos separados e isolados, como pondera Bourdieu (1989:107-132). Sob este aspecto a autoconscincia cultural j estariaconsolidada, bem como a percepo de que a velocidade e a in-tensidade da destruio dos recursos naturais pem em questo,num curto prazo, a reproduo fsica e social ou seja a produopermanente do grupo, da comunidade e/ou do povo. Deste modo,esto em jogo neste segundo momento, questes referentes aosatos de delegao e manuteno das formas organizativas quepassaram a agrupar os sujeitos sociais.

    Em suma, pode-se depreender deste esforo analtico inicialque o entendimento da natureza no prescinde mais de sujeitossociais e nem tampouco de prticas rotineiras de conservao ede costumes ditados pela conscincia ambiental de povos e co-

    munidades tnicas. Em verdade a ao ambiental torna-se umapoltica de Estado que, em certa medida, incorpora reivindica-es dos movimentos sociais. Verifica-se, entretanto, que no hconsenso quanto s medidas concretas que expressam tais deci-ses polticas. Os antagonismos so de vrias ordens dividindogrupos e interesses, quanto s formas de manuteno dos recur-sos florestais, hdricos e do solo, prenunciando que tampouco

    h consenso em torno dos significados de conservao, de-gradao e uso continuado.

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    3.Filsofos, naturalistas e etnlogos na prticado colecionismo: os jardins botn icos, os hortos,os zoolgicos e os mu seus

    Retomando o fio da ordem de exposio gostaria de recuperarhistoricamente os lugares institucionais de onde foram produ-zidas as interpretaes cientficas relativas Amaznia. Alegitimidade das narrativas assegurada pelas afiliaes respec-

    tivas. Os discursos dos telogos e dos administradores coloniais,incluindo-se os militares, podem ser aproximados por suas insti-tuies de pertencimento, Igreja e Estado, que demandavam umgnero de produo de caractersticas relatoriais. Os relatriosprecisavam informaes geogrficas ou acidentes naturais, sepreocupavam em registrar a presena do chamado gentio e per-seguiam fins utilitrios, objetivando implementar de maneiramais imediata sua ao evangelizadora ou seus empreendimentoseconmicos nos trpicos. Podem ser separados, neste sentido, dasnarrativas dos chamados naturalistas viajantes, que eram refe-ridas a diferentes formaes acadmicas, tais como: botnicos,mdicos, zologos, ictilogos, ornitlogos, astrnomos, mate-mt icos, filsofos e mineralogistas (gelogos). Tais narrat ivasestavam mais referidas a instituies cient ficas, empenhadas emproduzir conhecimentos sistemt icos, atravs, sobretudo, da

    identificao de espcies botnicas desconhecidas e capazes decompor novas colees. No mbito destas prticas colecionistas,de fins do sculo xviii, filsofo consistia numa designao paranomear o exerccio geral da coleta em terras remotas e para de-signar aqueles que produziam as interpretaes de fundo desteprocesso civilizatrio. Etnlogo, por sua vez, tratava-se de umanomeao de final do sculo xix e incio do sculo xx, aplicada

    s informaes de campo que implicavam no reconhecimentodo outro, isto , dos chamados primitivos e selvagens. Soba designao de naturalistas o objetivo da explorao tanto

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    designava o que veio a ser chamado de aventura amaznica,quanto as observaes sistemticas, que em alguns casos trans-cenderam a uma dcada, ou seja, foram produzidas num outromomento. As expedies cientficas nesta ordem produziram re-gistros relativamente sistemticos, mesclados com curiosidadese improvisaes, que se distinguiam daqueles da rotina burocr-tica dos administradores coloniais e daqueles outros, maiscircunstanciais e caractersticos das expedies militares.

    As expedies militares, t anto as de conquista de n ovasterras nas fronteiras, quanto as punitivas eram episdicas, a des-peito de produzirem conhecimentos concretos. Compulsei os

    relatos dos integrantes do Real Corpo de Engenheiros, que via-jaram pela regio amaznica no fim do sculo xviii e incio dosculo xix. Eram engenheiros e engenh eiros militares. Com-pulsei relatrios de oficiais das tropas de linha, que reprimiamindgenas e quilombolas e que realizavam sucessivas expediespunitivas e de recrutamento compulsrio da fora de trabalho,acumulando um conhecimento concreto da regio. Afinal o di-reito de guerra e conquista permitia a escravizao dos ndios esua utilizao econmica em proveito da Coroa. As aldeias ind-genas e os quilombos, localizados em elevaes, com poos degua e bosques circundantes, constituam presas de guerra rele-vantes. Do prisma militar tratava-se de uma extenso das guerrasde conquista. As vantagens econmicas e morais de escravizaro out ro, com base em mecan ismos repressores da fora detrabalho, caracterizam o autoritarismo como viga mestra da so-

    ciedade colonial. No citarei aqui os militares que comandaramtais expedies pun itivas, em nome da disciplina para o traba-lho, como o fez Caxias no caso da guerra da Balaiada (1839-1841),ou que empreenderam atos de conquista nos sculos viii e xix.No citarei tambm aqueles que participaram de comisses de-marcadoras de limites internacionais, no final do sculo xix e nosculo xx. Li principalmente B. Pereira do Lago, que produziu mi-

    nuciosos relatrios de viagem,34

    entre 1815 e 1819, com fartas

    43

    34. Os relatos militares ganharam proeminncia no perodo republicano com as comis-ses demarcatrias de fronteiras internacionais (Belarmino de Mendona, Taumaturgo

  • 8/7/2019 Afredo Wagner Berno de Almeida. Amaznia - a dimenso poltica dos conhecimentos tradicionais

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    descries sobre a h idrografia e a cobertu ra botn ica entre oMaranho e o Par, percorrendo os caminhos de So Luis paraBelm.

    Os naturalistas, consoante a heterogeneidade dos seus cri-trios de competncia e saber, utilizavam diferentes tcnicas deobservao direta, procuravam o novo, o no-conhecido, se-lecionavam e recolhiam materiais diversos e os classificavam demaneira detida, separando-os por suas propriedades especficas.35

    So muitos os riscos e elevada a margem de erro de se agrupartodos estes viajantes sob um mesmo discurso cientfico ou sobum esquema interpretativo aproximvel, entretanto, para efeitos

    desta palestra, que pretende uma interlocuo entre diferentesdomnios da cincia referidos a uma mesma realidade localiza-da, designada como Amaznia, considero que o exerccio decotejar contribui para a leitura crtica pretendida. H um acordotcito entre este vasto elenco de autores, referidos a diferentescritrios de competncia e saber, de falar sobre uma mesmarealidade empiricamente observada com as mesmas nfases e pro-cedimentos de coleta similares. Procedo, assim, no sem antesaduzir a interpretao do antroplogo Joo Pacheco de Oliveiraao final do seu trabalho Elementos para uma sociologia dosviajantes, sobre as limitaes do uso destes relatos pelos antro-plogos hoje:36

    A argumentao anteriormente aqui desenvolvida parece indi-car claramente que de modo algum a etnografia dos viajantes

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    de Azevedo, Lima Figueiredo, Braz de Aguiar), com as expedies para instalao de linhasdo telgrafo (Rondon) e com os relatrios de viagens exploratrias pela Amaznia como osde Euclides da Cunha.35. Para evidenciar a dificuldade de separar rigidamente estes campos de conhecimen-to no sculo xviii destaque-se que Alexandre Rodrigues Ferreira, realizador de umaexpedio filosfica, foi classificado por naturalistas como simultaneamente vincula-do geologia, botnica, etnologia e zoologia. Para outras informaes consulte-seMartins, E. ; Mello Filho, L.E.; Moogen de Oliveira e Castro Faria, L. de. Alexandre

    Rodrigues Ferreira na viso de quatro naturalistas do Museu Nacional. Rio de Janeiro:

    e d u f /c n pq-in pa , 1958.36. Cf. o l iveir a f il h o , Joo Pacheco. Elementos para uma sociologia dos viajan-tes. Cadernos de Etnologia. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1983.

  • 8/7/2019 Afredo Wagn