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Uma noite ideal para um assassinato.Afinal, pergunta o inspetor Japp, quem poderia ouvir o som de um tiro em meio aos fogos de artifício que estouravam nas escuras ruas de Londres? Horas depois, uma jovem viúva aparece morta, um mistério que caberá ao lendário Hercule Poirot desvendar em “Assassinato no beco”, história que dá nome à coletânea.Nos contos aqui reunidos, o detetive belga terá ainda de usar seus neurônios para encontrar os planos secretos de um submarino em “O roubo inacreditável”, vingar um cliente em “O espelho do homem morto” e tentar impedir o perigo que ronda um casal jovem em “O triângulo de Rodes”. Quatro histórias envolventes, para serem lidas de um só fôlego.
AssassinatonoBeco
CAPÍTULOUM
—Umaesmolaparaojudas,chefe?
O pequeno garoto tinha a cara suja e um sorriso
insinuante.
— Claro que não — respondeu o Inspetor-Chefe
Japp.Eolheaqui,meurapaz...
Enquanto Japp começava um sermão o garoto
tratava de bater em retirada,mas não sem antes gritar
paraosamigos:
—Quefora,ocaraéumtiraapaisana!
Esaíramcorrendo,enquantocantavam:
Lembrem-se,lembrem-se,
doCincodeNovembro,
pólvoraeconspiração.
Nãohárazão
parajamaisesquecermos
umagrandetraição.
O inspetor-chefe estava acompanhado por um
homemmaduro,pequeno,comumalargatestaegrandes
bigodesàmilitar,queagorasorriaconsigomesmo.
—Très bien, Japp. Meus parabéns. Foi um belo
sermão.
— Esta história de pedir dinheiro para fazer o
espantalhodoGuyFawkesnãopassadeumadesculpa
esfarrapada para mendigar — disse o inspetor, ainda
indignado.
— Uma tradição interessante — refletia Hercule
Poirot. Os fogos de artifício continuam a explodir —
bang, bang — mas o homem e seu crime já foram
esquecidos.
OdetetivedaScotlandYardconcordou:
—AmaioriadessesgarotosnemsabequemfoiGuy
Fawkes.
— E a confusão só tende a aumentar. Daqui a
pouco vai haver quem não saiba se os fogos do Dia de
Guy Fawkes celebram um dia de honra ou a vergonha
nacional. Afinal, tentardinamitar oParlamento inglês
terásidopecadoouvirtude?
Jappriu.
—Muitosdiriamquefoiumavirtude.
Deixando a rua principal, os dois entraram na
relativa tranqüilidade de um beco. Tinham acabado de
jantar e agora cortavam caminho, de volta ao
apartamentodeHerculePoirot.
Mesmo no beco ainda se ouvia o estrondo das
bombas e dos busca-pés. Os clarões de um ou outro
fogueteiluminavamoscéus.
— Uma bela noite para um assassinato —
comentou Japp, em tomprofissional.Numanoite como
estaninguémouviriaumtiro.
— Sempre me pareceu estranho que mais
criminosos não tirassem proveito da situação —
respondeuPoirot.
—Sabe,Poirot,àsvezeschegoadesejarquevocê
cometesseumcrime.
—Moncher!
—Sim,gostariadesabercomovocêoexecutaria.
—MeucaroJapp,seeumatassealguémvocênão
teriaamenorchancededescobrircomoeuoteria feito.
Você nem sequer desconfiaria que um crime tinha sido
cometido.
Jappriu,comafeto.
—Vocêquasenãoéprosa,heinPoirot?
Àsonzeemeiadamanhãseguinteotelefonetocou
noquartodePoirot.
—Alô,alô?
—Alô,éoPoirot?
—Oui,c’estmoi.
—ÉoJapp. Lembra-sequeontemvoltamospara
casapelobecodosBardsleyGardens?
—Lembro.
— E comentamos como seria fácil matar alguém
comtodoaquelebarulhodefoguetes?
—Edaí?
— Daí que alguém se suicidou naquele beco. No
número14.Umajovemviúva—asenhoraAllen.Euvou
láagora.Quervircomigo?
— Não leve a mal, Japp, mas alguém tão
importantecomovocêtemquecuidardeumsimplescaso
desuicídio?
—Não,meucarogênio.Masomédicolegistaacha
ocasoumpoucosuspeito.Vocêquervir?Achoquevocê
devia.
—Entãoeuvou.Vocêdissenúmero14?
—Istomesmo.
Poirotchegouaonúmero14dobecodosBardsley
Gardensquasenamesmahoraemqueparavaàportao
carroquetraziaJappetrêsoutroshomens.
Onúmero14jáeracentrodointeressegeral.Uma
multidãodecuriosos,commotoristasparticularesesuas
mulheres, mensageiros, desocupados, transeuntes bem
vestidoseumbandodecriançaspasmavadiantedacasa,
debocaabertaeolharsurpreso.
Um guarda uniformizado mantinha-se à porta e
tratavadeafastarosimportunos.Repórteresefotógrafos
precipitaram-sedeimediatoaoencontrodeJapp.
—Nadaadeclarar—disseJapp,afastando-oscom
obraço.FezumsinalparaPoirot:
—Vamosentrar.
Aportafechou-seàssuascostaseelesseacharam
aospésdeumacanhadolancedeescadas.
Umhomemsurgiuaotopodelas,reconheceuJapp
echamou:
—Aquiemcima,inspetor.
JappePoirotsubiram.
Ohomemno alto das escadas abriuumaporta e
introduziuJappePoirotemumpequenoquarto.
—Osenhorquerumresumodasituação,chefe?
—Vamoslá,Jameson—respondeuJapp.Comofoi
ocaso?
OinspetorJamesoncomeçou,emtomeficiente:
—Amorta é a senhoraAllen, chefe.Morava aqui
com uma amiga, umaMiss Plenderleith.Miss
Plenderleithfoipassarofimdesemanaforaevoltouhoje
demanhã.Elaentroucomsuaprópriachaveeestranhou
não encontrar ninguém, pois a faxineira geralmente
chegaàsnovehoras.Elaveioprimeiroaoseuquarto,que
é este, depois cruzou o patamar para o quarto de sua
amiga, mas a porta estava trancada por dentro. Ela
tentou forçar a maçaneta, bateu, gritou, mas não teve
resposta.Por fim, jáassustada, telefonouparaapolícia.
Isso foi às quinze para as onze. Nós viemos logo e
arrombamos a porta. A senhora Allen estava caída no
chão,comumtironacabeça. Emsuamãoestavauma
automática — uma Webley calibre 25 — e parecia um
evidentecasodesuicídio.
—OndeestáMissPlenderleith?
—Embaixo,nasaladevisitas.Umamoçaqueeu
descreveria comomuito segura de simesma. Não é de
perderacabeçaàtoa.
—Voufalarcomela.Masantesqueroumapalavra
comoBrett.
AcompanhadoporPoirot,Jappcruzouopatamare
entrou no quarto em frente. Um homem alto, demeia-
idade,cumprimentou-os.
— Alô, Japp, alegro-me que tenha chegado. Este
casoémeioestranho.
Jappcaminhouemsuadireção,enquantoHercule
Poirotdemorava-seapercorreroquartocomosolhos.
Eraumquartobemmaiorqueooutro.Tinhauma
janelaavarandadae,enquantoooutroerasimplesmente
umquartodedormir,esteeraumacombinaçãodequarto
dedormircomsaladevisitas.
As paredes eram em tom prateado e o teto em
verde-esmeralda. As cortinas eram em verde e prateado,
com padrões modernos. Havia um divã com coberta
verde-esmeralda emsedabrilhante ediversasalmofadas
prateadas e douradas. Havia ainda uma grande
escrivaninha em nogueira, uma cômoda também em
nogueira e diversas cadeiras em estilo moderno, em
cromobrilhante.Numapequenamesadetampodevidro
estavaumgrandecinzeirocheiodepontasdecigarros.
Hercule Poirot farejou o ar, delicadamente, e
encaminhou-separaJapp,queolhavaocorpo.
O corpo tinha evidentemente escorregado de uma
das cadeiras de cromo e era de umamulher jovem, de
seus 27 anos, com cabelos louros e feições delicadas.
Havia muito poucomake-up no rosto — era um rosto
bonito, mas melancólico e não muito inteligente. À
esquerdadacabeçavia-seosanguecoaguladoeosdedos
damãodireitaseguravamumapequenapistola.Amoça
usava um vestido simples, verde-escuro, abotoado até o
pescoço.
—Bem,Brett,qualéoproblema?
—Aposiçãopareceperfeita—respondeuodoutor.
Seelamatou-secomumtiro,ocorpoprovavelmenteteria
escorregado da cadeira e caído nesta posição. A porta
estavatrancadaeajanelafechadapordentro.
—Então,qualéadúvida?
— Dê uma olhada na pistola. Eu ainda não a
toquei — estou esperando pelos peritos em impressões
digitais.Maséfácilveroquequerodizer.
PoiroteJappajoelharam-seeexaminaramapistola
comcuidado.
— Estou percebendo — disse Japp, erguendo-se.
Estánacurvadamão.Parecequeelaaestásegurando,
masnaverdadenãoestá.Maisalgumacoisa?
—Muitas.Aarmaestánamãodireita,masaferida
é acima do ouvido esquerdo. O ouvidoesquerdo, veja
bem.
— Hum — disse Japp. Parece que isto liquida o
assunto. Deve ser impossível segurar uma pistola e
dispará-lanaquelaposiçãocomamãodireita.
— Completamente impossível. Você pode torcer o
braço,masduvidoquepossadisparar.
—Ocasoébemóbvio.Alguémmatou-aequisdar
a impressão de suicídio. Mas e a porta e a janela que
estavamfechadas?
OinspetorJamesontinhaarespostapronta.
—A janela estava fechada e trancada, chefe,mas
embora a porta estivesse trancada,não conseguimos
encontrarachave.
Jappbalançouacabeça.
—É,ocriminosodeuazar.Eleamatou,trancoua
portaaosaireficounaesperançadequeninguémdesse
pelafaltadachave.
Poirotmurmurou:
—C’estbête,ça!
—Vamoslá,Poirot,nãoétodomundoquepodeter
sua inteligência. Este é o tipo do detalhe que pode ser
facilmente esquecido. A porta está trancada, alguém a
arrombaeencontraamulhermorta,comumrevólverna
mão. Um caso evidente de suicídio e ninguém se
preocupa em procurar a chave. O assassino deu azar
porqueMiss Plenderleith mandou chamar a polícia. Se
ela tivesse chamado um ou dois dos motoristas
particularesquemoramnobecoparaarrombaraporta,
ninguémteriapensadoemprocurarachave.
— É, parece ser verdade — disse Hercule Poirot.
Teria sido a reação natural de muita gente. A polícia
geralmentesóéchamadaemúltimocaso,não?
Elecontinuavaaolharparaocorpo.
—Algumacoisaerrada?—perguntouJapp.
A pergunta foi lançada em tom casual, mas os
olhostraíamseuinteresse.
HerculePoirotbalançouacabeçadevagar.
—Euestavaolhandoseurelógiodepulso.
Eleinclinou-seetocoulevementenorelógio,coma
pontadeumdedo.Eraumrelógiodelicado,compulseira
emchamalotebrilhante,queamortausavanopunhoda
mãoqueseguravaaarma.
— Um belo relógio — comentou Japp. Deve ter
custado caro. — Ele olhou interrogativamente para
Poirot:—Algodeestranho?
—Possivelmente...sim.
Poirot encaminhou-se para a escrivaninha, com
uma tampa corrediça em cor que combinava com a
tonalidade geral do quarto. Sobre ela havia um pesado
tinteiro e em frente a este ummata-borrão laqueado. À
esquerdadomata-borrãoestavaumdescansoparapenas
de escrever em tom verde-esmeralda com um suporte
prateado para canetas» um bastão de cera para lacrar
cartas, um lápis e dois selos. À direita do mata-borrão
havia um calendário móvel dando o dia da semana, a
data e o mês. Havia ainda um pequeno vidro em
tonalidade cambiante e, emergindo dele, uma
resplendentepenadecaudadeave.
Poirotdeua impressãode interessar-sepelapena:
tomou-a e examinou-a, mas não havia traços de tinta.
Evidentemente tinha propósito apenas decorativo. As
canetasdepenademetal,comobicomanchadodetinta,
eram as que realmente se usavam. Os olhos de Poirot
fixaram-seaseguirnocalendário.
— Terça-feira, cinco de novembro — disse Japp.
Ontem.Estácerto.
Edirigindo-seaBrett:
—Háquantotempoelamorreu?
—Elamorreuàs11h33mindanoitedeontem—
veioarespostapronta.EBrettriuaoveraexpressãode
surpresanorostodeJapp.
—Nãoleveamal,meucaro.Nãoresistiàtentação
de bancar o superdoutor das histórias de detetive. Na
verdade,omáximoquepossodizeréqueelamorreupor
voltadasonze—umahoraamais,umahoraamenos.
—Ah,penseiqueorelógiotivesseparadonahora
damorte,ouqualquercoisaassim.
—Eleparoumesmo,masfoiàsquatroequinze.
—Esuponhoqueelanãopossatersidomortaàs
quatroequinze.
—Dejeitonenhum.
Poirot tinha olhada nas costas da folha domata-
borrão.
—Boaidéia—disseJapp.Masnãohánadaaí.
Omata-borrãoestava limpodosdois lados.Poirot
examinouas outras folhas,mas todas tinhamomesmo
aspecto. A seguir, examinou a cesta de papéis. Nela
estavamduasou três cartas e circulares, rasgadas.Mas
rasgadasumaúnicavez,eassimpuderamserfacilmente
recompostas.Nãopassavamdeumpedidodedinheirode
umasociedadedeamparoaosex-pracinhas,umconvite
para um coquetel no dia 3 de novembro, uma carta da
costureira confirmando uma hora marcada. Entre as
circulares,oavisodeumapróximaliquidaçãodepeleseo
catálogodeumgrandebazar.
—Nadaqueinteresse—observouJapp.
—Não,estranho...—respondeuPoirot.
—Vocêquerdizerqueemgeralossuicidasdeixam
umacarta?
—Exatamente.
—Poisentãoaíestámaisumaprovadequenãofoi
suicídio.
Jappafastou-se.
— Vou pôr meus homens a trabalhar. É melhor
descermos e entrevistarmos estaMiss Plenderleith.
Vamos,Poirot?
Poirotpareciaainda fascinadopelaescrivaninhae
seusobjetos.
Finalmentesaiudoquartomas,àporta,voltou-se
aindaumavezparaolharaostentosapenadeave.
CAPÍTULODOIS
Aos pés da escada, uma porta dava passagem a
umagrandesaladeestar,queemoutrostemposforaum
estábulo. O aposento tinha as paredes em argamassa
rústicaenelaspenduravam-segravurasemágua-fortee
madeira.Duaspessoasestavamsentadas.
Umaerauma jovemdecabelosescuros,de27ou
28 anos, com um ar de eficiência em suas maneiras.
Sentara-se perto da lareira e aquecia asmãos. A outra,
umamatronadeamplasproporções, comumabolsade
pano, falava agitadamente quando os dois homens
entraram.
—...ecomoeuiadizendo,Miss,leveiumsustotão
grandequequasecaídura.Epensarquetinhaqueser
justamentehoje...
Aoutrainterrompeu-a.
— Está bem,Mrs. Pierce. Acho que estes
cavalheirossãodapolícia.
— Miss Plenderleith? — perguntou Japp,
adiantando-se.
Ajovemacenouafirmativamente.
—Sim.Esta éMrs.Pierce,quevemfazera faxina
diária.
Mrs. Pierce despejou-se em nova torrente de
palavras.
—E, comoeuestavadizendoaMiss Plenderleith,
pensarquelogohojeminhairmãLouisaMaudtinhaque
ficardoente,eeutenhoqueajudar,porqueirmãéirmãe
eu não pensei queMrs.Allen fosse se importar, embora
euprocurenuncadeixarassenhorasassimemfalta...
Jappinterrompeu-acomhabilidade.
—De fato,Mrs.Pierce.Quemsabeasenhoranão
gostariadeiràcozinhacomoinspetorJamesonedar-lhe
suasdeclaraçõesporescrito?
Tendose livradodeMrs.Pierceesualoquacidade,
Jappvoltouaseconcentrarnajovem.
—Souo inspetor-chefeJapp,MissPlenderleith.A
senhoritapoderiamecontartudooquesabesobreoque
sepassou?
—Perfeitamente.Porondequerqueeucomece?
Seuautocontroleeraadmirável.Nãohaviaomenor
sinaldechoqueoudepesar,excetotalvezporumacerta
rigidezdeatitude.
—Aquehorasasenhoritachegouhojedemanhã?
—Acho que foi pouco antes das dez emeia.Mrs.
Pierce,amentirosa,nãoestavaaqui...
—Elafaltamuito?
JanePlenderleithdeudeombros.
—Umasduasvezesporsemanaelasóapareceao
meio-dia — ou simplesmente não aparece, embora seu
horáriodeentradasejaàsnove.Mascomoeudizia,duas
vezes por semana ou ela “tem uns troços” ou é algum
outromembro da família que cai de cama. Todas essas
faxineirassãoassim.Elaatéquenãoédaspiores.
—Háquantotempoelatrabalhaaqui?
— Pouco mais de um mês. A anterior roubava
coisas.
—Prossiga,MissPlenderleith.
— Eu paguei o táxi, pus minha mala dentro de
casa, procureiMrs.Pierceenãoaencontrei;depoissubi
parameu quarto. Arrumei-me ligeiramente e fui para o
quarto de Bárbara —Mrs. Allen—mas a porta estava
fechada.Forceiumpoucoamaçanetaebati,masnãotive
resposta.Entãodescietelefoneiparaapolícia.
—Pardon—Poirotinterpôsumaperguntarápida.
—Não lhepassoupela cabeça tentararrombaraporta,
talvezcomaajudadeumdosmotoristasdobeco?
Ela voltou-se para ele, com seus olhos calmos,
cinza-esverdeados,medindo-o numamirada rápidamas
precisa.
—Não,nãomepassoupelacabeça.Penseique,se
havia alguma coisa errada, o melhor seria chamar a
polícia.
— Então a senhorita pensou quehavia alguma
coisaerrada?
—Naturalmentequehavia.
— Só porque não responderam a suas batidas?
Massuaamigapoderiatertomadoumapíluladedormir
ououtracoisaqualquer.
—Elanuncatomavapílulasdedormir.
Arespostaveiorápida.
—Outalvezelativessesaídoetrancadoaporta?
—Eporqueelahaveriadesair?Emtodocaso,ela
teriamedeixadoumbilhete.
— E a senhorita tem certeza de que ela não lhe
deixouumbilhete?
—Claro que tenho.Se ela tivesse eu o teria visto
imediatamente.
Suavoztinhaagoraumatonalidadeáspera.
Jappperguntou:
— A senhorita não tentou espiar pelo buraco da
fechadura,MissPlenderleith?
— Não — respondeu Jane Plenderleith,
pensativamente.—Nãomeocorreuolharpeloburacoda
fechadura.Maseunãopoderiavernadamesmo,poderia?
Poisachavemeimpediria.
Elatinhaumaexpressãoinocenteeseusolhosnão
sedesviaramdosdeJapp.Poirotsubitamentesorriupara
simesmo.
— Tem razão,Miss Plenderleith—disse Japp.—
Creio que a senhorita não tinha motivo algum para
acreditar que sua amiga poderia ter cometido suicídio,
não?
—Não,claroquenão.
— Ela não tinha por acaso mostrado sinais de
preocupação?
Houve um intervalo — uma pausa prolongada
antesqueajovemrespondesse.
—Não.
—Asenhoritasabiaqueelatinhaumapistola?
JanePlenderleithassentiu.
—Sim,elaatinhadesdeotempoemquemorouna
Índia. Ela sempre a guardava em uma gaveta, em seu
quarto.
—Ham.Elatinhaportedearma?
—Creioquesim,masnãotenhocerteza.
— Agora,Miss Plenderleith, conte-me por favor
tudo o que sabe sobreMrs. Allen, há quanto tempo a
conhece, onde posso encontrar seus amigos e parentes.
Emsuma,tudo.
JanePlenderleithtornouaassentircomacabeça.
—ConheçoBárbaraháunscincoanos.Aprimeira
vez que a vi foi numa viagem ao estrangeiro, ao Egito,
para ser mais precisa. Ela vinha da Índia, de volta à
Inglaterra. Eu tinha ensinado por algum tempo na
British School de Atenas e resolvera passar algumas
semanasdefériasnoEgitoantesdevoltarparacasa.Nós
nos encontramosnuma excursão pelo rioNilo. Ficamos
amigas, gostamos logo uma da outra. Eu estava
justamente procurando alguém para dividir comigo o
aluguel de um apartamento ou de uma pequena casa.
Bárbaranão tinhaninguémnomundoepensamosque
talveznosdéssemosbem.
—Evocêssederambem?—perguntouPoirot.
— Muito bem. Tínhamos cada uma seu próprio
grupode amigos.OsdeBárbara erammais chegados à
sociedade e osmeus aosmeios artísticos. Deve ter sido
porissomesmoquenosdemostãobem.
Poirotconcordou.Jappprosseguiu:
—Oquevocêsabesobrea famíliadeMrs.Allene
desuavidaantesdevocêsseencontrarem?
JanePlenderleithdeudeombros.
—Nãomuito,naverdade.Achoqueseunomede
solteiraeraArmitage.
—Seumarido?
—Nãocreioquefosseboacoisa.Parecequebebia.
Creio que ele morreu um ano ou dois depois do
casamento.Eles tiveramuma filha,quemorreuaos três
anos.Bárbara quasenão falava de seumarido e parece
queelasecasoucomelenaÍndia,quandotinhaapenas
17 anos. Depois eles foram para Boné ou um destes
outros fins do mundo para onde os imprestáveis são
enviados — mas como o assunto evidentemente trazia
lembrançasdolorosas,eununcamereferiaele.
—SabeseMrs.Allenestavaemalgumadificuldade
financeira?
—Tenhocertezaquenão.
—Háaindaumaoutraperguntaqueprecisofazer,
e espero que a senhorita não se aborreça com ela,Miss
Plenderleith.Mrs. Allen tinha algum amigo homem, ou
amigoshomens?
JanePlenderleithrespondeufriamente:
—Bem,elaestavanoivaeiacasar,seistoresponde
suapergunta.
— Qual é o nome do homem com quem ela ia
casar?
— Charles Laverton-West. Ele é deputado, eleito
porumdistritoemHampshire.
—Elaoconheciahámuitotempo?
—Poucomaisdeumano.
—Eháquantotempoeleseramnoivos?
—Dois...não,quasetrêsmeses.
—Sabesetinhahavidoalgumabrigaentreeles?
Miss Plenderleith balançou a cabeça
negativamente.
— Não, e eu teria me surpreendido se tivesse
havido.
Bárbaranãoeradotipodediscutir.
—QuandofoiaúltimavezqueasenhoritaviuMrs.
Allen?
—Sexta-feira,quando fuipassaro fimdesemana
fora.
—Mrs.AlleniaficaremLondres?
— Ia. Acho que ela tinha combinado sair com o
noivonodomingo.
—Easenhorita,ondepassouofimdesemana?
—EmLaidellsHall,Laidells,Essex.
—Nacasadequem?
—Mr.eMrs.Bentinck.
—Asenhoritasósaiudeláhojedemanhã?
—Sim.
—Entãodevetersidomuitocedo.
—Osr.Bentinckmetrouxedecarro.Elesaicedo
porquetemqueestarnoescritórioàsdez.
—Compreendo.
Japp balançou a cabeça. As respostas deMiss
Plenderleithtinhamsidoprontaseconvincentes.
Poirotfezumapergunta,porsuavez.
—OqueasenhoritaachadeMr.Laverton-West?
Ajovemsacudiuosombros.
—Interessaaalguém?
—Talveznãointeresse,masmesmoassimgostaria
detersuaopinião.
— Acho que nem chego a ter uma opinião. Ele é
moço, não mais de 31 ou 32 anos, ambicioso, bom
orador,quersubirnavida.
—Esteéoseuladobom.Eomau?
— Bem —Miss Plenderleith pensou alguns
instantes.—Emminhaopiniãoeleémuitoquadradoe
ligeiramente presunçoso. Suas idéias não têm
originalidade.
—Estesnãochegamaserdefeitossérios,senhorita
—dissePoirot,comumsorriso.
—Osenhoracha?
Seutomdevozeralevementeirônico.
—Paraasenhorita,talvez.
Ele a estava observando e notou que a resposta
deixou-a um pouco embaraçada. Aproveitou então para
tirarpartidodavantagem.
—Mrs.Allennemrepararianeles.
— O senhor tem razão. Bárbara o achava
maravilhosoetinhaumagrandefénele.
Poirotperguntoucomamabilidade:
—Asenhoritagostavadesuaamiga?
Ele viu suas mãos se crisparem sobre o joelho,
notou o súbito endurecimento dos músculos do rosto,
masarespostaveionumavozsemqualqueremoção.
—Sim.Gostava.
Jappinterveio:
—Maisoutracoisa,MissPlenderleith.Asenhorita
eMrs. Allennãobrigaram?Não tiveramaomenosuma
discussão?
—Não,nenhuma.
—Nemapropósitodeseunoivado?
— Claro que não. Eu fiquei feliz por vê-la tão
contente.
Houveumapequenapausa,depoisJappdisse:
— A senhorita sabe seMrs. Allen tinha algum
inimigo?
Destavezhouveumapausasignificativaantesque
Jane Plenderleith respondesse. E quando ela o fez foi
numtomdevozligeiramentediferente.
—Nãocompreendobemoqueosenhorquerdizer
cominimigos.
—Alguém,porexemplo,quesebeneficiassecoma
mortedela.
—Ah,não,dejeitoalgum.Elanãotinhadinheiro
paraisso.
—Masquemésuaherdeira,mesmoassim?
— Olhe, nem pensei nisso. Mas não me
surpreenderiasefosseeu.Querdizer,nahipótesedeque
elatenhafeitoumtestamento.
—Enenhumaoutraespéciedeinimigo?Genteque
guardassealgumressentimentodela?
—Nãocreioqueninguémpudesseterrancordela.
Mrs.Alleneraumaótimapessoa,sempreamável,sempre
procurando ser agradável. Ela tinha um ótimo
temperamento.
EraaprimeiravezqueavozdeJanePlenderleith
deixava entrever alguma dor. Poirot inclinou a cabeça
combrandura.
Jappdisse.
— Em resumo,Mrs. Allen vinha se mostrando
alegre,nãotinhaqualquerproblemafinanceiroesentia-
se feliz por estar de casamento marcado. Não havia
nenhumarazãoparalevá-laasematar.Correto?
Houve um silêncio de segundos antes que Jane
respondesse.
—Correto.
Japplevantou-se.
—Seasenhoritamedálicença,precisofalarcomo
inspetorJameson.
Elesaiu.
Hercule Poirot ficou sozinho com Jane
Plenderleith.
CAPÍTULOTRÊS
Houvesilêncioporalgunsminutos.
Jane Plenderleith rapidamente mediu o
homenzinhodealtoabaixo,masdepoisolhouemfrente
enãofalounada.Masumcertonervosismodesuaparte
indicavaqueelaestavaconscientedesuapresença.Seu
corpo mantinha-se imóvel, mas estava tenso. Quando
Poirotfinalmentefaloufoievidentequeosimplessomde
suavozcontribuiuparaaliviaratensão.Eledirigiu-sea
elaemtomamável:
—Quandoasenhoritaacendeualareira?
— A lareira? — Sua voz soava distraída. — Oh,
assimquecheguei.
—Antesdesubiroudepois?
—Antes.
—Compreendo.Sim,éclaro.Eelajáestavaposta,
ouasenhoritatevequecolocarláoscarvões?
—Jáestavapreparada.Tiveapenasqueacendê-la.
Sua voz soavaumpouco impaciente, como se ela
suspeitasse que ele apenas procurava fazer conversação
social. E é possível que este fossemesmo o objetivo de
Poirot.Deumaououtraformaelecontinuou,nomesmo
tom:
—Mas sua amiga... No quarto dela a lareira é a
gás,não?
JanePlenderleithrespondeumecanicamente.
—Estaéaúnicalareiraacarvãoquetemos.Todas
asoutrassãoagás.
—Eofogãotambéméagás?
—Achoquehojeemdiatodossão,não?
—Éverdade.Muitomaisprático.
Aconversamorreu.JanePlenderleithbateucomo
pénochãoeperguntouabruptamente:
— Este homem, este inspetor-chefe Japp, ele é
inteligente?
—Sim,todosachamquesim.Eleé trabalhadore
muito minucioso. Dificilmente deixa escapar algum
detalhe.
—Seráque...—começouJane,masinterrompeu-
se.
Poirot a observava. O fogo na lareira realçava o
verdedeseusolhos,eeleperguntou:
— A morte de sua amiga foi um grande choque,
não?
—Terrível!—Arespostaveiocheiadesinceridade.
—Asenhoritacertamentenãoaesperava?
—Claroquenão.
— Então sua primeira impressão foi de que era
impossível,quenãopodiateracontecido?
O calor humano nas palavras de Poirot pareceu
derreter o gelo de Jane Plenderleith. Ela respondeu
imediatamente, sofregamente, semmais rigidez emseus
modos:
— É exatamente isto o que sinto. Mesmo que
Bárbara tenhasesuicidado,eunãopossoacreditarque
elaotenhafeitodaquelamaneira.
—Maselatinhaounãotinhaumapistola?
JanePlenderleithfezumgestoimpaciente.
—Maselaguardavaaquelapistolamaiscomoum
souvenirdoquecomoumaarma.Recordaçãodoslugares
exóticosondeesteve.Eraporhábito,nãoporvontadeou
necessidadedeusá-la.Tenhocertezadisto.
—Eporqueasenhoritatemtantacerteza?
—Porcausadascoisasqueelamedizia.
—Comoporexemplo?
A voz de Poirot era amável e conduzia a
conversaçãocomhabilidade.
— Como, por exemplo, no dia em que estávamos
conversandosobresuicídioseelamedissequeamaneira
idealdealguémsematarerasimplesmentevirarobicodo
gás,fechartodasasjanelasefrestaseirparaacama.Eu
respondiquenuncamematariaassim,quenãoestavano
meutemperamentodeitareficarláàespera.Eudisseque
preferiamematarcomumrevólvereela respondeuque
não, que nunca poderia fazer isso. Ela disse que tinha
medodotiro,emedodobarulho.
— Compreendo — respondeu Poirot. — Como a
senhoritadisse,éestranho.Porque,vejabem,haviauma
lareiraagásnoquartodela.
Jane Plenderleith olhou-o com expressão de
surpresa.
— É mesmo, havia. Então não compreendo, não
compreendoporqueelanãousouogás.
Poirotbalançouacabeça.
—Sim,pareceestranho,parecepouconatural.
— A coisa toda parece estranha. Ainda não me
convencidequeelatenhasesuicidado.Masfoisuicídio,
não?
—Bem,háumaoutrapossibilidade.
—Oqueosenhorquerdizercomisto?
Poirotolhou-anosolhos.
—Podetersido...assassinato.
— Assassinato? — Jane Plenderleith tremeu
visivelmente.—Masistoéhorrível,istoé...
— Horrível, talvez, mas a senhorita acha
impossível?
— Mas a porta estava trancada por dentro. E a
janelatambém.
— A porta estava trancada, é verdade. Mas
ninguémpodeafirmarsepordentroouporfora,porque,
nãoseiseasenhoritasabe,achaveestásumida.
—Mas então, se vocês não conseguiram achar a
chave... Ela interrompeu-se por um momento e
prosseguiu:—Entãoaportadeve tersido trancadapor
fora.Docontrárioachaveestarianoquarto.
— Talvez esteja ainda. Lembre-se que a busca no
quartonãoacabou.OutalvezMrs.Allentenhaatiradoa
chavepelajanelaealguématenhaapanhado.
— Assassinato! — exclamou Jane Plenderleith.
Ela parecia examinar a hipótese, o rosto inteligente
mostrando um esforço de concentração. — Acho que o
senhortemrazão.
— Mas se foi assassinato deve ter havido um
motivo.Asenhoritasabiadealgummotivo?
Ela negou com a cabeça.Mas apesar disto Poirot
teve novamente a impressão de queMiss Plenderleith
procuravaocultaralgumacoisa.Aportaabriu-seeJapp
entrou.
Poirotergueu-se.
—Acabodedizer aMissPlenderleithqueamorte
desuaamiganãofoisuicídio.
Japp pareceu momentaneamente sem ação.
Finalmente, deu um rápido olhar de desaprovação a
Poirot.
— Émuito cedo para afirmarmos qualquer coisa.
Precisamos examinar todas as possibilidades. Por
enquantonãohánadadefinido.
JanePlenderleithrespondeuserenamente:
—Compreendo.
Jappcaminhouemsuadireção.
—Diga-me,MissPlenderleith,jáviuistoantes?
Na palma de sua mão estava um pequeno objeto
oval,esmaltadoemazul-escuro.
Jane Plenderleith balançou negativamente a
cabeça.
—Não,nunca.
—NãoéseuoudeMrs.Allen?
—Não.Nãomepareceumacoisamuito feminina,
parece?
—Ah,entãoasenhoritaoreconhece?
— Bem, parece óbvio que é um pedaço de
abotoaduradehomem,não?
CAPÍTULOQUATRO
— Aquela moça é meio petulante — queixou-se
Japp.Osdoishomensestavamnovamentenoquartode
Mrs.Allen.Ocadávertinhasidofotografadoeremovido;
os peritos tinham tirado as impressões digitais e já
haviamidoembora.
—Mas você não deve tomá-la por tola, pois ela é
evidentementeinteligente.Naverdadeeudiriaqueelaé
extraordinariamenteinteligenteecompetente.
— Você desconfia que ela possa ter matado a
amiga?—perguntouJapp,comumraiodeesperança,e
prosseguiu:
— Acho que é bem capaz. Precisamos investigar
melhorseuálibi.Quemsabeseasduasnãotiveramuma
briga por causa desse deputado? O desprezo que ela
mostrousentirporelepodeserfalso.Écapazdelaterse
engraçadoparacimadelee levadoumfora.Elaéo tipo
demulherquematariaalguémsetivessevontade,eteria
calma suficiente para fazê-lo sem deixar vestígios. Sim,
vamos ter que investigar melhor aquele álibi. Ele me
pareceuarranjadoumpoucoconvenientementedemais,e
afinal de contasEssex não é assim tão longe.Há trens
para lá com grande freqüência. Ou ela podia ter usado
um bom carro. Vale a pena procurar descobrir se ela
ontem foi dormir cedo alegando uma dor de cabeça ou
algosemelhante.
—Vocêtemrazão—concordouPoirot.
— De qualquer forma — continuou Japp —, ela
estáescondendoalgumacoisadagente,vocênãoacha?
Aquelamoçasabedealgumacoisa.
Poirotpareciapensativo.
—Sim,elaestáescondendoalgumacoisa.
—Istoésempreumproblemaemcasoscomoeste
— queixou-se Japp. Há sempre gente que esconde os
fatos,àsvezesatémesmopormotivojustificado.
—Enestecasonãopodemosculpá-los,meuamigo.
—Não,mas isto tornanosso trabalhomaisdifícil
—resmungouJapp.
Poirotconsolou-o:
—Estasoportunidadesservemapenaspararealçar
seu talento. E por falar nisto, como estamos de
impressõesdigitais?
— Não há nenhuma na pistola, o que torna
evidente que se trata de um assassinato. O revólver foi
cuidadosamentelimpoantesdesercolocadoemsuamão.
Mesmoqueelafosseumacontorcionistaqueconseguisse
ter atirado com a pistola naquela posição, ser-lhe-ia
impossível disparar a arma sem segurá-la, e nem ela
poderialimpá-ladepoisdemorta.
— Não há dúvida de que deve ter havido uma
segundapessoa.
—O restodoquarto tambémnão tem impressões
digitais. Nenhuma na maçaneta, nenhuma na janela.
Curioso,não?MasdiversasimpressõesdeMrs.Allennos
outroslugares.
—Jamesontevealgumsucesso?
—Comafaxineira?Nenhum.Elafalamuito,mas
naverdadenãosabedomuito.ConfirmouqueMrs.Allen
e Miss Plenderleith se davam bem. Mandei agora o
Jameson ouvir os outros moradores do beco. Vamos
precisar falar também comMr. Laverton-West.Descobrir
ondeeleestavaontemànoiteeoqueestavafazendo.Mas
antesvamosdarumaolhadanospapéisdeMrs.Allen.
Epôsmãosàobra.Devezemquandoresmungava
e jogavaalgumpapelnadireçãodePoirot.Abuscanão
demorou muito, pois os papéis na escrivaninha eram
poucoseestavambemarrumadoserotulados.
O inspetor-chefe acabou por se erguer, deixando
escaparumsuspiro.
—Quasenada,hem?
—Muitopouco.
—Etudolegal.Recibos,algumascontasaindapor
pagar. Nada suspeito. Convites para festas, bilhetes de
amigas.Vocêjádeuumaespiadaaí,notalãodecheques
enacadernetadedepósitos?Algodeinteressante?
—Sóqueelatinhasacadoalémdeseusfundos.
—Algomais?
Poirotsorriu.
—Istoéuminterrogatório?Masseiondevocêquer
chegar.Elafezumaretiradade200librashátrêsmeses
comodespesasgerais...eoutraontemnamesmaquantia.
—Eocanhotodeontemnãodiznada.Alémdisso
todas as outras retiradas para despesas gerais são de
pequenas quantias... 15 libras no máximo. E vou lhe
dizer mais. Não há nem sombra das 200 libras nesta
casa.Tudooqueencontramosforamquatrolibrasnuma
bolsa e alguns trocados em outra. Acho que não pode
haverdúvida.
—Dequeelapagouaalguémontem?
—Sim.Masaquemelapoderáterpago?
Aportaabriu-seeoinspetorJamesonentrou.
—Conseguiualgumacoisa,Jameson?
—Sim,chefe,diversas.Paraprincípiodeconversa,
ninguémouviuotiro.Duasoutrêsmulheresdizemque
ouviram,massãodotipoquetemumaimaginaçãomuito
fértil. Com aqueles fogos de artifício não dava mesmo
paraninguémouvirnada.
Jappgrunhiu.
—Temrazão.Continue.
—Mrs. Allen não saiu de casa a maior parte da
tarde e danoite de ontem.Ela entrou às cinco.Às seis
saiu outra vez, mas foi só até a caixa dos correios, na
esquina. Às nove e meia um carro chegou— um cupê
StandardSwallow—comumpassageiro,umhomemde
seus quarenta e cinco anos, de aparência militar,
sobretudoazul,chapéucocoebigodetipoescovão.James
Hogg,ummotoristaparticularquemoranonúmero18,
dizquejáoviuantesnacasadeMrs.Allen.
—Quarentaecincoanos—murmurouJapp.Não
podeserodeputado.
— Este homem ficou durante quase uma hora.
Saiuàsdezevinteeparounaportaparadizeralguma
coisa aMrs.Allen.Ofilhodomotorista,FrederickHogg,
estavapertoeouviusuaspalavras.
—Eoqueeledisse?
—“Pensebememedêumaresposta.”Emseguida
Mrs. Allen disse alguma coisa e o homem respondeu:
“Entãoestábem.Atébreve.”Depoiseleentrounocarroe
afastou-se.
— Isto foi às dez e vinte — disse Poirot,
pensativamente.
Jappesfregouonariz.
— Então às dez e vinteMrs. Allen estava viva—
comentou.Eoquemaisvocêconseguiu?
—Maisnada, chefe; pelomenospor enquanto.O
motoristaquemoranonúmero22chegouàsdezemeiae
tinha prometido a seus filhos soltar alguns fogos. Os
garotostinhamestadoàespera...juntocomumaporção
de outros da vizinhança. Eles soltaram os fogos com
muita gente assistindo. Depois foi todo mundo para a
cama.
—Eninguémmais foi visto entrandononúmero
14?
—Não,masnãoquerdizerquealguémnãotenha
entrado.Nãohavianinguémparaver.
—Hum—fezJapp.—Éverdade.Bom,vamoster
quedescobrirqueméestecavalheirocompintademilitar
ebigodeescovão.Parecenãohaverdúvidadequeelefoio
últimoaverMrs.Allenviva.Quemseráonossoamigo?
—Miss Plenderleith poderia nos dizer— sugeriu
Poirot.
— Não duvido, mas é bem capaz dela não nos
contar nada. Não tenho dúvida de que ela está
escondendoalgumacoisa.Oquevocêacha,Poirot?Você
esteve sozinho um longo tempo com ela. Você não deu
aquela de padre Confessor que em geral faz tanto
sucesso?
Poirotabriuosbraços.
—Não,falamossódelareirasagás.
—Lareirasagás!—Japppareciaindignado.—O
quequehácomvocê,meuvelho?Desdequevocêchegou
nãotemfeitomaisdoqueinvestigarpenasdeaveecestas
depapéis.É, eu vi vocêdandoumaolhadana cestade
lixodoandartérreo.Achoualgumacoisa?
Poirotsuspirou.
—Umcatálogodeplantaseumarevistavelha.
—Masoquevocêquer,afinal?Sealguémquisesse
jogar fora algum documento incriminador, ou seja lá o
quefor,certamentenãoiriausaracestadepapéis.
— Você tem toda razão. Só algo sem a menor
importânciaseriaatiradonacestadepapéis.
Poirotfalounumtomdevozresignado,masmesmo
assimJappolhou-odesconfiado.
—Bem—disseporfim.—Jáseioquevoufazer.E
você?
—Ehbien—respondeuPoirot.—Voucontinuara
procurar coisas sem importância. Ainda há a lata de
lixo.
E saiu da sala rapidamente. Japp continuou a
olhá-locomexpressãodedesagrado.
—Doido,sópodeestardoido.
O inspetor Jameson manteve-se em respeitoso
silêncio. Seu rosto contudo falava por ele, com
superioridadebritânica:“Estesestrangeiros...”
Mas,emvozalta,oqueeleacaboudizendofoi:
— Então este é o senhor Hercule Poirot. Já ouvi
falardele.
—Umvelhoamigomeu—explicouJapp.—Nãoé
tão maluco quanto parece, mas a idade é sempre um
problema.
—Deveestar ficandogagá,chefe,semepermitea
expressão.
— Pode ser — continuou Japp —, mas mesmo
assimgostariadesaberoqueeletemnacabeça.
Eencaminhou-separaaescrivaninha,ondeficoua
examinar desconfiado uma pena de escrever verde-
esmeralda.
CAPÍTULOCINCO
Jappiacomeçaraconversarcomaterceiraesposa
de motorista quando Poirot subitamente apareceu em
seus calcanhares, caminhando tão silenciosamente
quantoumgato.
— Epa, vocême deu um susto— disse Japp.—
Achoualgumacoisa?
—Nãooqueeuestavaprocurando.
Jappvoltou-sedenovoparaMrs.JamesHogg.
—Asenhoratemcertezadequejátinhavistoantes
ohomemqueesteveontemànoitecomMrs.Allen?
—Absoluta, chefe.Emeumarido também.Nós o
reconhecemoslogo.
— Agora preste atenção,Mrs. Hogg. A senhora é
uma mulher inteligente, qualquer um pode ver. Não
tenho dúvida que a senhora deve estar muito bem
informada sobre o que se passa aqui no beco. E a
senhora é umamulher de bom senso, um grande bom
senso,é fácildesever—Jappmentiadescaradamente,
repetindo esta observação pela terceira vez.Mrs. Hogg
empertigou-se toda, assumindo um ar de inteligência
quasesobrenatural.Jappprosseguiu:
— Fale-me destas duasmoças,Mrs. Allen eMiss
Plenderleith.Elaseramdotipo leviano,devivermetidas
emfestas,emboates?
—Não,chefe,dejeitoalgum.Elassaíambastante,
especialmenteMrs.Allen,maserammoçasdeclasse,seo
senhormecompreende,nãocomooutrasquemoramno
fimdobeco.TenhocertezaquedojeitocomoaquelaMrs.
Stevens anda, se é que ela éMrs. mesmo, o que eu
duvido...bem,dojeitoqueelavive,eu...
—Compreendo,compreendo,interrompeuJapp.—
Oqueasenhoraacaboudemedizerémuitoimportante,
Mrs. Hogg. Todos aqui gostavam deMrs. Allen eMiss
Plenderleith,não?
—Sim,todos.Elaserammuitoboas,especialmente
Mrs. Allen. Sempre amável com as crianças, sempre.
Pareceque sua filhinha tinhamorrido,pobrezinha.Éa
vida, eu mesma já enterrei três meus. E o que sempre
digoéque...
—Sim,sim,muitotriste.EMissPlenderleith?
— Ela também é uma boa moça, mas um pouco
mais brusca, se o senhor me compreende. Apenas um
cumprimento rápido quando passava, sem parar para
conversar.Masnãotenhonadacontraela,nada.
—ElaeMrs.Allensedavambem?
— Sim. Nunca as vi discutindo. Sempre muito
alegres e contentes. Tenho certeza queMrs. Pierce vai
confirmaroquedigo.
—Sim,nósjáfalamoscomela.Asenhoraconhece
devistaonoivodeMrs.Allen?
—Omoço com quem ela ia casar? Conheço. Ele
vinhaaquifreqüentemente.Dizemqueédeputado.
—Enãofoielequemesteveaquiontemànoite?
—Não, chefe, não foi—Mrs.Hogg empertigou-se
denovo.Estavavisivelmenteexcitada,masassumiuuma
expressãoderígidaformalidadeantesdeprosseguir:
—Eseosenhormepermite,chefe,oqueosenhora
estápensandoestácompletamenteerrado.Mrs.Allennão
eradeste tipo, posso lhe assegurar. É verdade que não
havia mais ninguém na casa, mas eu não acredito em
nenhuma insinuação...Aindahojedemanhãeudiziaa
meumarido:“Não,Hogg,Mrs.Alleneraumasenhorade
classe,portantonãoadiantavircominsinuações”,porque
eu sei como os homens são, se o senhor me perdoa.
Semprepensandoemindecências.
Jappcontinuou,ignorandooinsulto:
—Asenhoraviuestehomemchegareviu-osairde
novo,não?
—Éverdade.
— E a senhora não ouviu nada? Nenhuma
discussão?
—Não,nemeraprovávelqueouvisse.Istonãoquer
dizerquenãosepossaouvirnada,muitopelocontrário
pois aMrs. Stevens, por exemplo, está sempre gritando
tantocomaquelapobreempregadadelaqueéimpossível
deixar de escutar... e eu e muita gente mais já
aconselhamos a pobre coitada a não tolerar mais a
situação,mas o senhor sabe, o salário é bom... a dona
temumsemana.dosdiabos,maspagaalto...umalibrae
meiapor
Jappdisserapidamente:
—Masasenhoranãoouviunadaparecidono
número14?
—Não, chefe,nemeraprovável, comaqueles
fogos de artifício explodindo por toda parte, que até
queimaramassobrancelhasdomeupobreEddie.
—OhomemqueveiovisitarMrs.Allensaiuàsdez
evinte,nãoéverdade?
— Não posso dizer com certeza, chefe. Mas meu
maridodizquesim, e ele éhomemde saberoque está
falando.
— Mas a senhora viu o homem sair. A senhora
ouviuoqueeledisse?
—Não,chefe.Eunãoestavasuficientementeperto.
Apenasovideminhajanela,depénaporta,conversando
comMrs.Allen.
—AsenhoraviuMrs.Allentambém?
—Visim,chefe,elaestavanaporta,masdoladode
dentro.
—Viuqueroupaelaestavausando?
—Olhe, chefe, não reparei. Não estava prestando
tantaatençãoassim.
Poirotdisse:
— Não deu nem para notar se ela estava vestida
parasairoucomumaroupadeficaremcasa?
—Não,nãodeu.
Poirotolhoupensativamenteparaajaneladacasa
d eMrs. Hogg e depois para a do número 14, do outro
ladodarua.Sorriuconsigomesmoeporuminstanteseu
olharsecruzoucomodeJapp.—Eocavalheiro?
— Ele estava usando um sobretudo azul-escuro
comumchapéucoco.Muitodistintoeelegante.
Jappfezmaisalgumasperguntasepassoudepois
próximaentrevista.EracomFrederick,umgarotodecara
travessa, olhos vivos e ar de quem se achava
enormementeimportante.
—Sim,chefe,euosouviconversando.“Pensebem
emedêsuaresposta”,disseocavalheiro.Comumtomde
voz amável, o senhor compreende. Então a senhor
respondeualgumacoisaeelecontinuou:“OK.Atébreve.”
Entãoocavalheiroentrounocarro...eulheabriaporta,
maselenãomedeunada...—informouFrederickHogg,
comumligeirotomdecensuranavoz,finalizando:
—Eelefoiembora.
—VocênãoouviuoqueMrs.Allendisse?
—Não,chefe,nãodeuparaouvir.
—Sabemedizeroqueelaestavausando?Acorde
vestido,porexemplo?
— Não reparei, chefe. O senhor compreende, eu
nãochegueiavê-la.Eladeviaestaratrásdaporta.
— É provável — disse Japp. — Agora preste
atençãomeu filho, porque eu quero que você responda
minha próxima pergunta com muito cuidado. Se você
não souber ou não puder se lembrar diga. Está bem
claro?
—Sim,chefe.
FrederickHoggolhava-ocomgrandeatenção.
—Qualdosdoisfechouaporta,asenhoraAllenou
ocavalheiro?
—Aportadafrente?
—Aportadafrente,claro.
O rapazinho refletia. Seus olhos mostravam seu
esforçodeconcentração.
—Achoquefoiasenhora...Não,nãofoiela,foiele.
Puxou a porta, porque eu até me lembro quando ela
bateu,eentroudepressanocarro.Pareciaatéqueestava
atrasadoparaalgumencontro.
— Muito bem, meu filho, você parece um rapaz
inteligente.Tomeaquiestedinheiro.
Depois de mandar Frederick Hogg embora Japp
voltou-se para seu amigo. Lentamente suas cabeças se
inclinaramemsinaldeconcordância.
—Podeser—comentouJapp.
—Hápossibilidades—respondeuPoirot.
Seusolhosverdesbrilhavamcomoosdeumgato.
CAPÍTULOSEIS
Aovoltaràsaladevisitasdonúmero14,Jappnão
perdeu tempo com cerimônias. Foi diretamente ao
assunto.
— Olhe aqui, Miss Plenderleith, a senhorita não
achamelhor contar logo toda a verdade?Vamos acabar
descobrindo,dequalquerjeito.
Jane Plenderleith ergueu as sobrancelhas. Ela
estava em frente à lareira, procurando aquecer um pé
próximoàchama.
—Nãoseidoqueosenhorestáfalando.
—Nãosabemesmo,MissPlenderleith?
Elasacudiuosombros.
—Eujáresponditodasassuasperguntas.Nãosei
oquemaispossofazerpelosenhor.
—Bem,naminhaopiniãoasenhoritapoderiafazer
muitomais,desdequetivessevontade.
— Mas isto não passa de uma opinião, não é,
chefe?
OrostodeJappcomeçouadaralarmantessinais
deapoplexia.
—Euacho—interrompeuPoirotvivamente—que
mademoiselle perceberia melhor onde você quer chegar
comsuasperguntassevocêlhedissessecomoasituação
está,nomomento.
— É simples — tornou Japp. — Os fatos são os
seguintes,Miss Plenderleith: sua amiga foi encontrada
comumtironacabeça,comumapistolanamão,etanto
a porta quanto a janela trancadas. Parecia um evidente
casode suicídio,masnãoerasuicídio.Osimplesexame
médico-legalafastaestahipótese.
—Como?
Toda a irônica tranqüilidade deMiss Plenderleith
tinha desaparecido. Ela inclinou-se em direção a Japp,
ouvindosuaspalavrascomansiedade.
— A pistola estava em suasmãos,mas ela não a
estava segurando. Além do mais, não haviaqualquer
impressão digital. E o ângulo de entrada da bala prova
ser impossível que ela tenha disparado a arma. Mais
ainda,elanãodeixounenhumacartaoubilhete...coisa
muito estranha para uma suicida. E embora a porta
estivessefechada,achavenãofoiencontrada.
Jane Plenderleith voltou-se vagarosamente e
sentou-seemumacadeiraemfrenteaJapp.
—Entãoéisto!—exclamou.—Eubemqueestava
achandoimpossívelqueBárbarativessesesuicidado.Eu
estavacerta!Elanãosesuicidou.Alguémamatou.
Poralgunsmomentoselapareceumergulhadaem
seuspensamentos.Voltandoa si, ergueuacabeçanum
gestobrusco.
—Estouàsuadisposiçãoparaqualquerpergunta,
inspetor, e procurarei respondê-las da melhor maneira
possível.
Jappcomeçou:
—AlguémveiovisitarMrs.Allenontemànoite.Um
homem de seus 45 anos, aspecto de militar, bigode
grande, bem vestido e dirigindo um cupê Standard
Swallow;sabequeméessehomem?
— Não posso responder com certeza, mas me
pareceseromajorEustace.
—QueméessemajorEustace?Diga-metudooque
sabedele.
— É um velho conhecido de Bárbara do
estrangeiro,daÍndia.Elereapareceuhácoisadeumano,
edesdeentãootemosvistoalgumasvezes.
—EleeraamigodeMrs.Allen?
—Pareciaser—respondeuJanesecamente.
—Comoelaotratava?
— Eu não acho que ela gostasse muito dele. Na
verdade,tenhocertezaquenãogostava.
—Maselaotratavacomamabilidade?
—Sim.
— Alguma vez ela deu a impressão de estar —
pensebem,MissPlenderleith—deestarcommedodele?
JanePlenderleithpensouporumminuto oudois
antesderesponder.Eentãodisse:
—Sim,achoqueelatinhamedodele.Elasempre
ficavanervosaquandoeleaparecia.
—EleeMr.Laverton-Westseencontraramalguma
vez?
—Achoqueumavez,masnãomepareceuteremse
simpatizadomuito um com o outro. Ou, para sermais
clara,omajorEustaceestavaprocurandoseragradável,
mas Charles não estava querendo saber de conversa.
Charlestemumótimofaroparagente...gentequenãoé
muitoboa.
— E o major Eustace não é o que a senhorita
chamariagenteboa?—perguntouPoirot.
Elarespondeufriamente:
—Não,nãoera.Umsujeitofalso,semclasse.
— Em outras palavras, não é o que os indianos
chamariamumautênticosahib?
AsombradeumsorrisopassoupelorostodeJane
Plenderleith,massuarespostafoiséria:
—Não.
— A senhorita se surpreenderia muito,Miss
Plenderleith, se eu sugerisse que este major Eustace
estavachantageandoMrs.Allen?
Japp chegou-se mais perto para observar a
impressãodesuaspalavras.
Oresultadoodeixousatisfeito.Amoçaestremeceu,
seurosto ficouvermelhoeelabateucomforçanobraço
dacadeira.
— Então é isto. Que idiota eu fui de não ter
percebidologo.Éclarocomoágua.
— A senhorita acha a sugestão plausível? —
perguntouPoirot.
— Claro que sim. Bárbara vinha me pedindo
dinheiro emprestado nos últimos seismeses, e diversas
vezes a vi consultando sua caderneta de depósitos. Eu
nuncamepreocupei, pois sabia que ela tinhaumaboa
renda, mas se estava sendo vítima de uma chantagem,
então...
—Eistoexplicariaseucomportamentonosúltimos
tempos?—insistiuPoirot.
— Explicaria. Ela andava nervosa, agitada.
Completamentediferentedoquecostumavaser.
Poirotdissebrandamente:
—Perdão,mas istonãoéoqueasenhoritadisse
antes.
— Antes era diferente — Jane Plenderleith
respondeu com impaciência. — Bárbara não estava
deprimida, tenho certeza de que não andava pensando
emsuicídio.Maschantagem...aíacoisaéoutra.Gostaria
que ela tivesseme contado.Eu o teriamandadopara o
inferno.
— Aí talvez ele fosse não ao inferno, mas aMr.
CharlesLaverton-West—observouPoirot.
— Sim— disse Jane, vagarosamente.— Sim... é
verdade.
— A senhorita não tem idéia do que ele estava
usandoparachantageá-la?—perguntouJapp.
Amoçabalançouacabeça.
— Não tenho a menor idéia. Mas conhecendo
Bárbara como eu conhecia, tenho certeza de que não
podia ser nada muito sério. Por outro lado... — ela se
interrompeu,masdepoisprosseguiu:
— O que eu quero dizer é que Bárbara era um
poucosimplória.Seriafácilamedrontá-la.Naverdadeela
eraotipodegarotaqueseriaumpresentedoscéusaum
chantagista.Sujeitonojento!
Elaatirouoinsultocomódionavoz.
— Infelizmente — observou Poirot —, este crime
parece ter acontecido ao contrário. Em geral é a vítima
quemmataochantagista,nãoochantagistaàsuavítima.
JanePlenderleithenrugouatesta.
—Éverdade,mas,talvez,nascircunstâncias...
—Quaiscircunstâncias?
—SuponhaqueBárbaraestivessedesesperada.Ela
pode tê-lo ameaçado com aquela pequena pistola. Ele
tentou arrancá-la dela e na luta a arma disparou
acidentalmente e a matou. Ele se assustou e procurou
simularumsuicídio.
—Talvez—observouJapp.—Masháumpequeno
problema.
Elaolhou-ointerrogativamente.
—OmajorEustace,seeraelemesmo,saiudaqui
ontemàsdezevintedanoiteesedespediudeMrs.Allen
naporta.
—Oh— o desapontamento era evidente no rosto
damoça—,compreendo.—Elaficouemsilêncioporum
minuto.
—Maselepodetervoltado—insistiu.
—Sim,épossível—dissePoirot.
Jappcontinuou:
—Diga-me,Miss Plenderleith,Mrs.Allenemgeral
recebiaasvisitasaquiounoquarto?
— Indiferentemente. Mas esta sala em geral era
usadamaisparaamigoscomunsdenósduasouentãoos
meus amigos particulares. O senhor sabe, nossa
combinação era de que Bárbara ficava com o quarto
grandeeousavatambémcomosaladevisitas,enquanto
eutinhaoquartopequenoeficavacomousodestasala.
—SeomajorEustacetinhaumencontromarcado
ontem à noite, a senhorita acha queMrs. Allen o
receberiaaquiouemseuquarto?
—Achoqueaqui,poisdariaumaatmosferamenos
íntima.Por outro lado, se ela quisesse fazerumcheque
ou qualquer coisa assim, é bem possível que o tivesse
levadoaseuquarto.Nãohácanetasaqui.
Jappsacudiuacabeça.
— Não há hipótese de que tenha escrito um
cheque.Elatinhafeitoumaretiradade200librasenão
encontramosnemsinaldessedinheironacasa.
— E ela o deu àquele nojento? Oh, meu Deus,
pobreBárbara...
Poirottossiu.
—Como a senhoritamesma disse, a não ser que
tenha sido um acidente, parece estranho que ele tenha
resolvidomatarsuafontederenda.
—Acidente?Nãofoiacidente.Eleperdeuacabeça,
viutudovermelhoàsuafrenteeamatou.
—Éoqueasenhoritapensaqueaconteceu?
— É — acrescentou ela com veemência. — Foi
assassinato...assassinato.
Poirotdissecomgravidade:
—Nãodireiqueasenhoritaestejaerrada.
Jappperguntou:
—QuetipodecigarroMrs.Allenfumava?
— Ingleses, mas dos baratos. Há alguns naquela
cigarreira.
Japp abriu a cigarreira, tirou um cigarro e
guardou-oemseubolso.
—Easenhorita?—perguntouPoirot.
—Osmesmos.
—Asenhoritanãofumacigarrosturcos?
—Nunca.
—NemMrs.Allenfumava?
—Não.Elanãogostava.
Poirotperguntou:
—EMr.Laverton-West?Oqueelefumava?
Elaolhou-ocomdureza.
—Charles?Equeimportasaberoqueelefumava?
Osenhornãovaiquererdizerqueeleamatou,vai?
Poirotsacudiuosombros.
—Nãoseriaaprimeiravezqueumhomemmataa
mulherqueama,mademoiselle.
Janesacudiuacabeçacomimpaciência.
—Charlesnãomatarianinguém.Eleécuidadoso
demaisparaisso.
— São os homens cuidadosos que cometem os
crimesmaisengenhosos,mademoiselle.
Elacontinuavaaolhá-lofixamente.
— Mas não pelo motivo que o senhor acaba de
alegar,MonsieurPoirot.
Elefezumamesura.
—Não,éverdade.
Jappergueu-se.
—Bem,nãocreioquehajamuitomaisafazeraqui.
Masgostariadeumaúltimaolhadelapelacasa.
— Caso o dinheiro esteja escondido em algum
lugar?Comomaiorprazer. Procure ondequiser... eno
meu quarto também. Mas não creio que Bárbara o
escondesselá.
AbuscadeJappfoirápidamaseficiente.Asalade
visitatomou-lheapenasalgunsminutoseemseguidaele
passou ao andar de cima. Jane Plenderleith deixou-se
estar sentada no braço de uma poltrona, fumando um
cigarro e olhandopensativamenteas chamasda lareira.
Poirotaobservava.
Algunsminutosmaistardeeledissebrandamente:
—AsenhoritasabeseMr.Laverton-Westencontra-
sehojeemLondres?
—Nãotenhoamenoridéia,masachoqueécapaz
dele estar em seu distrito, emHampshire. Achomelhor
mandar-lheumtelegrama,tinhameesquecidodisto.
— Não é fácil se lembrar de todos os detalhes,
mademoiselle, quandoaconteceuma tragédia.Easmás
notíciassemprechegamcedodemais.Nuncasedeve ter
muitapressaparadá-las.
—Émesmo—concordouamoça,comardistraído.
Podiam-seouvir jáospassosdeJappdescendoas
escadas.Janefoiaoseuencontro.
—Eentão?
Jappbalançouacabeçanegativamente.
— Receio que não tenha encontrado nada,Miss
Plenderleith.Procureiemtodaparte,faltasóestearmário
embaixodasescadas.
Enquanto falava, o inspetor-chefe tomava da
maçanetaeatorcia.
JanePlenderleithdisse:
—Eleestátrancado.
Algo em sua voz fez os dois homens olharem-na
comcuriosidade.
—Sim—disseJappemtomamável.Estouvendo
queestátrancado.Talvezasenhoritatenhaabondadede
nostrazerachave.
A moça estava imóvel, como que esculpida em
pedra.
—Eu...eunãotenhocertezaondeestáachave.
Japp deu-lhe uma mirada rápida. Sua voz
continuavaamável,massuaspalavraseramprecisas.
—Queazar,nãoémesmo?Seriaumapenaterque
arrombá-la.VoumandarJamesontrazerumacoleçãode
chavesdadelegacia.
Elamoveu-seafinal.
—Ah...espereuminstante.Podeserqueeu...
Janedesapareceuemdireçãoàsaladevisitasedaí
apoucoreapareciacomumagrandechavenamão.
— Nós costumamos escondê-la — explicou —
porquenossosguarda-chuvasviviamdesaparecendo.
— Uma precaução elogiável — concordou Japp,
tomandoachavedebomgrado.
Elecolocou-anafechadura,girou-aeabriuaporta.
O armário estava escuro e Japp precisou usar uma
lanterna.
Poirotsentiuqueamoçasetornavatensaeprendia
a respiração. Seus olhos acompanhavam o facho da
lanternadeJapp.
Oarmárioestavaquasevazio.Trêsguarda-chuvas,
um dos quais quebrado, quatro bengalas, um jogo de
tacos de golfe, duas raquetes de tênis, um tapete bem
enroladoediversasalmofadasemmelhoroupiorestado
deconservação.Sobreestasúltimasestavaumapequena
valise.
Quando Japp se preparava para pegá-la, Jane
Plenderleithdisserapidamente.
—Éminha. Eu a trouxe comigo quando cheguei
hojedemanhã.Nãohánadaaídentro.
— Vamos dar uma espiada só para nos
certificarmos—disseJappcomumtomdeamabilidade
umpoucomaisforçadanavoz.
A valise estava destrancada. Dentro Japp
encontrou escovas de camurça e pequenos vidros de
perfume e loções. Havia ainda duas revistas,mas nada
mais.
Jappexaminoutudocomgrandeatenção.Quando
finalmente fechou a valise e passou adiante, a jovem
soltouumbemaudívelsuspirodealívio.
Nãohavianadade especialno restodoarmário e
logo Japp deu suas investigações por encerradas.
Trancou de novo a porta e entregou a chave a Jane
Plenderleith.
— Bem — disse ele —, isto encerra os nossos
trabalhos. A senhorita pode me dar o endereço deMr.
Laverton-West?
—FarlescombeHall,LittleLedbury,Hampshire.
— Obrigado,Miss Plenderleith. É tudo por
enquanto,maseutalveztenhaquevoltarmaistarde.Por
falar nisso, bico calado. Se alguém perguntar alguma
coisa,digaquefoisuicídiomesmo.
—Claro,compreendo.
Aodespedir-se,elaapertouasmãosdeambos.
Aochegaremaofimdobeco,Jappexplodiu:
— Que diabo havia naquele armário? Háalguma
coisalá.
—Sim,háalgumacoisa—concordouPoirot.
— E aposto que é alguma coisa naquela valise.
Mas, que nem um idiota, não consegui descobrir.
Examinei o forro, olhei dentro dos vidros.. . que diabo
poderiaser?
Poirotsacudiuacabeçapensativamente.
— Esta moça está implicada na história —
continuouJapp.—Trouxeaquelavalisehojedemanhã?
Nunca na vida. Você reparou que dentro havia duas
revistas?
—Reparei.Edaí?
—Bem,umadelaseradomêsdeJulho.
CAPÍTULOSETE
No dia seguinte Japp chegou ao apartamento de
Poirotbufandoderaiva.
—Elaestáinocente!
—Quemestáinocente?
— Plenderleith. Ficou jogandobridge até a meia-
noite.Tantoosanfitriõesquantoumoutrohóspedeedois
criados confirmaram seu álibi. Não pode haver dúvida,
temosqueprocuraremoutrolugar.Mesmoassim,queria
saber ainda por que ela ficou tão perturbada quando
abrimosaquelavalise.Esteéumcasoparavocê,Poirot.
Vocêéquemgostadestastrivialidadesquenãoconduzem
a nada.OMistério da Valise noBeco. Até que não soa
mal.
—Eusugeririaum títulodiferente.OMistériodo
CheirodaFumaçadeCigarro.
—Nãosoatãobem.Masporquecheiro?Erapor
istoquevocêestavafungandotantoenquantoexaminava
ocadáver?Penseiquevocêestivesseresfriado.
—Vocêseenganou.
Jappsuspirou.
— Sempre pensei que fossem apenas suas
pequenascélulas cinzentas.Nãomedigaqueas células
deseuolfatosãotambémsuperioresàsdosoutrosseres
humanos.
—Não,nãosão.Tranqüilize-se.
— Eu não senti nenhum cheiro de cigarro —
continuouJapp,comumaexpressãodesconfiada.
—Nemeu,meucaro.
Jappolhou-ocomardedúvidae finalmentetirou
umcigarrodobolso:
—EstaéamarcaqueMrs.Allenfumava.Ingleses.
Seis das pontas encontradas no cinzeiro eram dela. As
outrastrêseramdecigarrosturcos.
—Exatamente.
— Suponho que seu maravilhoso nariz tenha
farejadoistosemprecisarolharnocinzeiro.
— Posso lhe assegurar que meu nariz não tem
nadaavercomocaso.Meunariznãofarejounada.
—Masascélulascinzentasfarejaram?
—Bem,haviaumoudoissinaisindicativos...Você
nãoconcorda?
Jappolhou-odesoslaio.
—Quesinais?
—Ehbien...semdúvidaalgumafaltavaumacoisa
naquelequarto.Poroutrolado,haviaalgodemais...E,na
escrivaninha...
— Eu sabia! Sabia que você ia acabar falando
naquelamalditapenadeescrever.
— Du tout. A pena de escrever desempenha um
papelmeramentenegativo.
Jappbateuemretiradaparaterrenomaisseguro.
— Charles Laverton-West vai me encontrar na
Scotland Yard dentro de meia hora. Pensei que você
gostariadeestarpresente.
—Gostariamesmo.
— E saiba também que descobrimos onde está o
major Eustace. Tem um pequeno apartamento na
CromwellRoad.
—Ótimo.
—Eachoquevamostermuitoqueinvestigaraseu
respeito. Minhas informações são de que ele é um tipo
bastantesuspeito.DepoisdeconversarmoscomLaverton-
Westvamosvê-lo.Deacordo?
—Perfeitamente.
—Entãovamos.
ÀsonzeemeiaCharlesLaverton-West foi levadoà
presença do inspetor-chefe, que se levantou para
cumprimentá-lo.
Odeputadoeraumhomemdeestaturamedianae
individualmente bem definido. Tinha o rosto bem
barbeado, a boca expressiva de um ator e os olhos
ligeiramente esbugalhados que tão freqüentemente se
notamnoshomensdetalentooratório.Eraaseujeitoum
homem bem apessoado, com modos discretos e bem
educados.Emboraumpoucopálidoeabalado,conduzia-
secomdistinçãoeserenidade.
Ele sentou-se, pôs as luvas e o chapéu sobre a
mesaeolhouparaJapp.
— Primeiramente gostaria de lhe dizer,Mr.
Laverton-West,quecompreendoperfeitamentecomotudo
istodevelheserpenoso.
Laverton-Westafastouospêsamescomumgestode
mão.
—Deixemosmeus sentimentos de lado. Diga-me,
inspetor-chefe,osenhortemalgumaidéiadomotivoque
levouminha...Mrs.Allenasematar?
— Estávamos contando com sua ajuda para
descobrir.
—Nãotenhoamenoridéia.
— Vocês não brigaram? Não tiveram algum
rompimento?
— Nada, absolutamente. O suicídio foi uma
surpresaenormeparamim.
— Talvez as coisas se tornem mais fáceis de
compreender, senhor, se eu lhe disser que não foi
suicídio...masassassinato.
— Assassinato?— os olhos de Charles Laverton-
West quase lhe saltaramdás órbitas.—O senhor disse
assassinato?
—Exatamente.Agora,Mr.Laverton-West,osenhor
temalgumasuspeitadequempoderiaquerermatarMrs.
Allen?
Arespostaveionumjorro.
—Não,não,nenhuma.Ameraidéiaérevoltante.
— Ela nunca lhe falou de nenhum inimigo?
Alguémquelheguardassealgumressentimento?
—Nunca.
—Osenhorsabiaqueelatinhaumapistola?
—Nãotinhaamenoridéia.
Laverton-Westpareciasurpreso.
—MissPlenderleithdizqueMrs.Allentrouxeesta
arma com ela quando regressou do estrangeiro, há
algunsanos.
—Istoparamiménovidade.
— É claro que só temos a palavra deMiss
Plenderleithnestesentido.ÉbempossívelqueMrs.Allen
conservasseapistolaporsesentirsobalgumaameaça.
CharlesLaverton-Westbalançavaa cabeça comar
de dúvida. Seu aspecto era de um homem perplexo e
aturdido.
—O que o senhor acha deMiss Plenderleith,Mr.
Laverton-West?Querodizer,elalhepareceumamoçade
confiança?
Laverton-Westpensouporummomento.
—Sim,achoquesim...achoquesim.
— O senhor não gosta muito dela, não? —
insinuou Japp, que tinha estado a observá-lo com
atenção.
— Não diria assim. Ela não é do tipo que mais
admiro...émuitosarcástica,muitoindependente.Maseu
diriaqueéumamoçadeconfiança.
—Compreendo—disseJapp.—Osenhorconhece
umtalmajorEustace?
—Eustace?Eustace?Ah,sim,lembro-medonome
Encontrei-o uma vez em casa de Bárbara, quero dizer.
Mrs. Allen. Não fui muito com seu jeito e disse isto a
minha...àsenhoraAllen.Elenãoeradotipoquegostaria
deveremnossacasadepoisquecasássemos.
—EoquedisseMrs.Allen?
—Elaconcordoulogo,poisconfiavamuitoemmeu
julgamento.Umhomemconheceosoutrosmelhorqueas
mulheres.Elame explicouquenãoqueria ser grosseira
comumconhecidoquenãoviahátempos...Achoqueela
tinhamedodepassarporesnobe.Énaturalquedepois
decasadaelaachassealgunsdeseusvelhosconhecidos
umpouco,digamosassim,inadequados.
— O senhor quer dizer que casando-se com o
senhor ela estava subindo de posição social? —
perguntouJapp,semmeiaspalavras.
Laverton-West ergueu suas mãos bem
manipuladas.
— Não, não, não precisamente. Na realidadeMrs.
Alleneeuéramosparentes,emboradistantes,masnossa
posiçãosocialeraabsolutamenteamesma.Éclaroporém
que, comodeputado, eu tenhoquesermuito cuidadoso
na escolha de meus amigos, e minha mulher também.
Umparlamentarestásempreemgrandeevidência.
— Não há dúvida — admitiu Japp friamente,
prosseguindo:
—Osenhorentãonãosabedenadaquepossanos
ajudar?
— Não, nada. Bárbara... assassinada! Parece
incrível!
— Agora,Mr.Laverton-West,osenhorpoderianos
dizeroqueosenhorfeznanoitede5denovembro?
—O que eu fiz? O que quer o senhor dizer com
isto?
— A voz de Laverton-West mostrava sua
indignação.
— É apenas uma questão de rotina — explicou
Japp.—Nós...nóstemosqueperguntaratodomundo.
Charles Laverton-West olhou-o com ar de
dignidadeultrajada.
— Eu pensei que um homem em minha posição
pudesseserdispensado.
Japplimitou-seaesperar.
— Eu... deixe-me ver. Ah, sim. Eu estava na
Câmara.Saíàsdezemeiaefuidarumlongopasseioao
longodoTâmisa,olhandoosfogosdeartifício.
—É reconfortante saber que hoje em dia não há
conspirações para explodir o Parlamento — observou
Jappalegremente.
Laverton-West limitou-se a lançar-lhe um olhar
gelado.
—Edepoisfuiparacasa.Apé.
—OsenhormoranaOnslowSquare,não?Aque
horasosenhorchegoulá?
—Difícildizercomcerteza.
—Onze,onzeemeia?
—Maisoumenosporaí.
—Alguémabriuaportaparaosenhor?
—Não,eutenhominhaprópriachave.
— Encontrou-se com alguém enquanto
caminhava?
— Não. Francamente, inspetor-chefe, suas
perguntaschegamaserofensivas!
—Possolhegarantirqueéumasimplesquestãode
rotina,Mr.Laverton-West.Nadapessoal.
A resposta pareceu acalmar um pouco o irritado
deputado.
—Seistoétudo...
—Étudoporenquanto,Mr.Laverton-West.
—Porfavor,mantenha-meinformado.
— Com todo prazer. Por falar nisso, deixe-me
apresentar-lhemonsieurHercule Poirot.O senhor talvez
tenhaouvidofalardele.
Mr. Laverton-West fixou um olhar curioso no
peque-ninobelga.
—Sim,sim...jáouvionome.
—Monsieur—começouHerculePoirot,commodos
subitamentemuitoestrangeiros.—Queirarecebermeus
maisprofundos sentimentospor suagrandeperda.Seu
sofrimento deve ser enorme! Ah, mas não quero me
alongar no assunto. Os ingleses sabem esconder suas
emoçõesmaravilhosamente.
Dizendoisto,Poirotpuxoudesuacigarreira:
— Permita-me oferecer-lhe um... Oh, está vazia
Japp?
Japp deu uma busca rápida em seus bolsos e
balançouacabeçanegativamente.
Laverton-Westentãotiroudesuaprópriacigarreira
murmurando:
—Aceiteumdosmeus,monsieurPoirot.
—Obrigado,obrigado.
—Comoosenhoriadizendo,monsieurPoirot,nós
ingleses não colocamos nossas emoções numa vitrina.
Agüentarfirme,eisanossadivisa.
Elefezumamesuraesaiu.
—Bastantepretensioso—comentouJapp.—Miss
Plenderleith tinha razão a seu respeito. Só uma moça
semmuitosensodehumorcairiaporumtipoassim.Que
talocigarroqueelelhedeu?
Poirotmostrou-o,sacudindoacabeça.
—Egípcio,edoscaros.
—É uma pena, pois nunca ouvi um álibimenos
consistente. Na verdade, nem chegava a ser um álibi.
Você sabe, Poirot, é pena que a história não seja um
pouco diferente. Suponha queMrs. Allen o estivesse
chantageando.Eleéo tipo idealparaumachantagem...
Fariatudoparaevitarumescândalo.
—Meuamigo,podesermuitoagradávelrecriarum
caso damaneira que lhe parecemais conveniente,mas
nóstemoscoisasmaisimportantesafazer.
— Sim, temos que interrogar Eustace. Já andei
tomandoinformaçõessobreeleemepareceumtipomeio
repugnante. — Por falar nisso, você fez aquilo que eu
sugeriapropósitodeMissPlenderleith?
— Fiz mas espere um segundo. Vou telefonar e
saberdasúltimasnotícias.
Depois de uma rápida conversação ao telefone,
Jappvirou-separaPoirot.
— É incrível a insensibilidade de certas pessoas.
Miss Plenderleith foi jogar golfe. Bonita coisa para se
fazerquandosuamelhoramigaacabadeserassassinada.
Poirotdeuumgrito.
—Quefoi?—perguntouJapp.
MasPoirotlimitava-seamurmurarconsigomesmo:
—É claro, é claro... é evidente...Que imbecil eu
fui.Claro,averdadesaltaaosolhos.
Jappestavaimpaciente:
—PáraderesmungarevamosinterrogarEustace.
Suasurpresaaumentouaoverumsorrisoradiante
espalhar-senorostodePoirot.
— Com muito prazer, vamos interrogá-lo. agora,
vocêcompreende,eujáseidetudo.Detudo.
CAPÍTULOOITO
O major Eustace recebeu-os com a tranqüila
confiança de um profundo conhecedor das coisas do
mundo.
Seu apartamento era pequeno, apenas um
alojamento provisório, explicou. Ofereceu uma bebida a
seus visitantes e, tendo eles recusado, abriu sua
cigarreira.
Tanto Japp quanto Poirot aceitaram de imediato,
trocandorapidamenteumolhar.
— Vejo que o senhor gosta de cigarros turcos —
disseJappenquantorolavaocigarroentreosdedos.
— Sim. O senhor prefere nacionais? Devo ter
algunsporaqui.
— Não, não, este está muito bom. Então Japp
inclinou-se,mudandodetom:
—Osenhorsabeporqueviemosprocurá-lo?
OmajorEustacesacudiuacabeça.Seuaspectoera
imperturbável. Era um homem alto e até atraente,mas
seusmodosnãoocultavamumacertavulgaridade.Seus
olhospequenoseastutosestavamumpoucoinchadose
decertaformatraíamacordialidadedesuaspalavras
Eledisse:
— Não, não tenho idéia do que possa trazer à
minha presença alguém tão importante quanto um
inspetor-chefe.Algodeerradocomomeucarro?
—Não,nãoéoseucarroquemepreocupa.Acho
que o senhor conheceu umaMrs. Bárbara Allen, não,
majorEustace?
Omajorresfolegou,refestelou-semaisnapoltrona,
expeliu uma baforada de fumaça e respondeu, comum
tomdealívionavoz:
—Ah,entãoé isto.Claro,eudeviateradivinhado
logo.Quetragédia,hem?
—Osenhorsabeoqueaconteceu?
—Linosjornais.Lamentável.
—Creioqueo senhor eMrs.Allenseconheceram
naÍndia.
—Éverdade.Háalgunsanosatrás.
—Osenhortambémconheceuseumarido?
Houve uma pequena pausa. Uma mera fração de
segundo,masospequenosolhosmatreirostiveramtempo
para estudar rapidamente os dois homens em frente.
Finalmenteelerespondeu:
—Não,parafalaraverdadenuncafuiapresentado
aAllen.
— Mas o senhor o conhecia, ou sabia a seu
respeito.
—Ouvidizerquenão tinhamuitoboa fama.Mas
apenasrumores,osenhorcompreende...
— Mrs. Allen nunca comentou coisa alguma a
respeito?
—Nuncamefaloudele.
—OsenhoreMrs.Alleneramamigosíntimos?
OmajorEustacedeudeombros.
— Tudo que posso lhe dizer é que éramos velhos
amigos.Masnãonosvíamoscommuitafreqüência.
— Mas o senhor esteve com ela na noite de sua
morte?Nanoitedecincodenovembro?
—Sim,estive.
—Osenhorfoiàsuacasa,creio.
— Sim, ela tinha me pedido minha opinião a
propósito de uns investimentos que pensava fazer.
Percebo onde o senhor quer chegar. O senhor querme
perguntar em que estado de espírito estavaMrs. Allen.
Bem,édifícildeexplicar.Seusmodospareciamnormais,
masaomesmotempoelaestavaumpoucosobressaltada.
—Maselanão lhedeuamenor indicaçãodoque
pretendiafazer?
—Não,nenhuma.Naverdade,quandomedespedi
disse-lhe que lhe telefonaria embreve para irmos a um
teatroeelaconcordou.
— O senhor lhe disse que lhe telefonaria. Estas
foramsuasúltimaspalavras?
—Sim.
—É curioso. Tenho informaçõesde que o senhor
dissealgocompletamentediferente.
Eustaceficouvermelho.
— Bem, não posso ter certeza de quais foram
exatamenteminhaspalavras.
—Ainformaçãoqueeutenhofoidequeosenhor
disse.“Pensebememedêsuaresposta”.
—Deixe-mever.Sim,sim.Masaspalavrastambém
nãoforamexatamenteestas.Euestavalhesugerindoque
elameavisassequandoestivessedisponível.
— Bem diferente do que o senhor me disse
primeiro,não?—perguntouJapp.
OmajorEustacedeudeombros.
—Meucaro,osenhornãopodeexigirquealguém
se lembre com precisão das palavras que disse há dois
dias.
—EqualfoiarespostadeMrs.Allen?
—Disse-mequemetelefonaria.Oupelomenoséo
quemelembro.
—Eosenhorentãodisse:“Estábem,atébreve?”
—Provavelmente.Algomaisoumenosassim.
Jappprosseguiu,emvozcalma:
— O senhor diz queMrs. Allen pediu-lhe sua
opiniãoapropósitodeuns investimentos.Poracasoela
lheconfiouaquantiade200librasparaosenhoraplicar
emnomedela?
OrostodeEustacetornou-seconvulso.Elechegou-
semaisàfrenteerosnou:
—Quediaboosenhorestáquerendoinsinuar?
—Elalhedeuodinheiroounão?
—Nãoédesuaconta,inspetor-chefe.
Japplimitou-seacontinuar,aindacalmo:
—Mrs.Allentinhafeitoumaretiradade200libras
naqueledia,amaiorpartedelasemnotasdecincolibras.
Estasnotassãonumeradas,comoosenhorsabe.
— E que tem de mais seMrs. Allen me deu o
dinheiro?
— Era um investimento, major Eustace, ou era
umachantagem?
—Estaidéiaéabsurda.Oquemaisosenhortema
insinuar?
Jappdisse,noseutommaisburocrático:
—Acho,majorEustace, que a esta alturapreciso
convidá-lo a vir comigo à Scotland Yard e prestar suas
declarações por escrito. O senhor tem evidentemente
liberdade para recusar-se e tem também o direito de
exigirapresençadeseuadvogado.
—Advogado?Paraquediaboeuprecisodeum
advogado? E para que o senhor quer minhas
declarações?
— Para minhas investigações sobre as
circunstânciasdamortedeMrs.Allen.
—Deus do céu, o senhor não está pensando... É
umabsurdo.Olheaqui,oquesepassou foio seguinte.
EutinhaumencontromarcadocomBárbara...
—Aquehoras?
—Noveemeia,maseuchegueiumpoucodepois.
Nósnossentamoseconversamos...
—Efumaram?
—Sim,e fumamos.Algodeerradonisso?—quis
saberomajoremtombeligerante.
—Eondefoiessaconversa?
— Na sala de visitas. A esquerda de quem entra.
Nossa conversa foi bastante amistosa. Saí pouco antes
das dez e meia. Na porta parei para algumas últimas
palavras...
— Últimas palavras... realmente — murmurou
Poirot.
— E quem é o senhor, afinal de contas? —
perguntou Eustace, virando-se para ele. — Algum
maldito estrangeiro. Por que é que o senhor tem de se
intrometer?
—Eu souHercule Poirot— disse o homenzinho,
comdignidade.
— Pouco se me dá que o senhor seja a própria
estátua de Aquiles. Como eu ia dizendo, Bárbara, e eu
nosdespedimosamistosamenteefuidecarrodiretamente
aoClubedoExtremoOriente.Chegueiláàsdezetrintae
cincoefuiàsaladejogo.Fiqueilájogandobridgeatéa
uma emeia damanhã. E agora, o que o senhor tem a
dizer?
—Mepareceumbomálibi—concordouPoirot.
—Bomnão,excelente.Eosenhor,inspetor-chefe,
estasatisfeito?
—Osenhorficouotempotodonasaladevisitas?
—Sim.
— O senhor não esteve em momento algum no
quartodeMrs.Allen?
—Não,possogarantir-lhe.Permanecemosotempo
todo na sala e nenhum de nós saiu dela emmomento
algum.
Jappencarou-opensativamenteporumminutoou
dois.Finalmenteperguntou:
—Quantosjogosdeabotoadurasosenhortem?
— Abotoaduras? O que é que abotoaduras têm a
vercomnossaconversa?
— O senhor tem o direito de não responder, se
quiser
—Responder?Nãomeimportoderesponder,pois
não tenho nada a esconder. E quando isto estiver
terminado vou exigir um pedido de desculpas. Tenho
estas—disseEustace,estendendoospunhos.
Jappexaminou-asrapidamente.
—Eestas.
Eustacelevantou-se,abriuumagavetaeabriuuma
pequenacaixa,estendendo-abruscamentenadireçãode
Japp.
—Muito bonitas— observou o inspetor-chefe.—
Vejoqueumaestáquebrada,faltaumapequenalasca.
—Edaí?
—Osenhornãoselembraquandoistoaconteceu?
—Umdiaoudois,nãomais.
—Osenhorsesurpreenderiaseeulhedissequefoi
nacasadeMrs.Allen?
—E por que iriame surpreender? Não nego que
tenhaestado lá.—Aspalavrasdomajorvinhamcheias
de arrogâncias. Ele continuava a vociferar, a
desempenhar o papel do homem justamente indignado,
massuasmãostremiam.
Japp inclinou-se e colocou ênfase em suas
palavras:
—Aquelepedaçodeabotoaduranãofoiencontrado
nasala.Foiencontradonoandardecima,noquartode
Mrs. Allen — no mesmo quarto em que ela foi
assassinada,nomesmoquartoemqueesteveumhomem
fumandoamesmamarcadecigarrosqueosenhorfuma.
O efeito foi imediato. O major Eustace deixou-se
cairemsuacadeira,olhandoassustadodeumladopara
o outro. O fanfarrão transformou-se num covarde em
poucossegundos,eoespetáculonãoerabonitodesever.
— O senhor não pode me acusar de nada... O
senhorestáprocurandomearmarumacilada.Masvocês
não podem fazer isto. Eu tenho um álibi. Posso provar
quenãovolteimaisàquelacasa...
Poirotinterrompeu:
—Não,osenhornãovoltouàquelacasa...Osenhor
nãoprecisavavoltar... pois talvezMrs. Allenjá estivesse
semortaquandoosenhorsaiu.
—É impossível, impossível.Elaveioàportaeaté
faloucomigo.Alguémdevetê-laouvido,ouvisto...
Poirotprosseguiuemtomsuave:
—Hátestemunhasqueouviramosenhorfalarcom
ela e fingindo esperar por sua resposta antes de falar
outra vez... Este é um velho truque... As pessoas foram
levadasapensarque ela estava lá,masninguéma viu,
poisninguémsoubeaomenosdizerseelaestavavestida
pára sair ou não... nem ao menos dizer a cor de sua
roupa...
—MeuDeus,nãoéverdade...nãoéverdade.
Eustacetremiatodo.
Jappoolhavarevoltadoedisse-lheasperamente:
—Tenhoquepedir-lhequemeacompanhe.
—Estoupreso?
—Digamosqueestádetidoparaaveriguações.
O silêncio foi quebrado por um suspiro longo e
trêmulo. Com uma voz sumida o até então vociferante
majorEustacedisse:
—Estouacabado...
Hercule Poirot esfregou as mãos e sorriu
alegremente.Pareciaestarsedivertindoimensamente.
CAPÍTULONOVE
Pouco depois, naquele mesmo dia, Japp e Poirot
seguiamdecarropelaBromptonRoad.
— Nosso amigo desabou que foi uma beleza —
comentouJapp.
— Ele sabia que a brincadeira tinha acabado —
respondeuPoirotcomardistraído.
—Temosmuitasprovascontraele—disseJapp—
Doisoutrêsnomesfalsos,umchequefraudulentoeuma
história complicada numa ocasião em que se hospedou
noRitzfazendo-sepassarporumcoroneldeBathe.Além
disso, passou o conto do vigário em meia dúzia de
comerciantes em Piccadilly. Nós o prendemos sob esta
acusação enquanto concluímos nossas investigações
sobre o assassinato deMrs. Allen. Mas por que você
cismou de fazer esta viagem aos arredores de Londres,
meucaro?
—Meuamigo,umcasotemqueserpropriamente
encerrado. Todos os detalhes precisam ser explicados.
Estou procurando resolver o mistério que você mesmo
sugeriu.OMistériodaValiseDesaparecida.
—OqueeudissefoioMistériodaValisenoBeco.
Queeusaibaelanãoestádesaparecida.
—Tenhapaciência,monami.
O carro entrou no beco. A porta do número 14
Jane Plenderleith estava acabando de saltar de um
pequenoAustinSevern,usandoroupasdejogargolfe.
Ela olhou primeiro Japp, depois Poirot, e
finalmentetirouumachavedabolsa,abrindoaporta.
—Entrem,porfavor.
Elaabriuocaminho.Jappseguiu-a, entrandona
sala de visitas, mas Poirot permaneceu ainda alguns
instantesnohall,murmurandoconsigomesmo:
— C’est embêtant, muito difícil tirar estes
sobretudos.
Poucodepoiseletambémentrounasaladevisitas,
jásemosobretudo,masJappoencaravacomexpressão
curiosa.O inspetor-chefe ouvira o rangidomuito ligeiro
daportadoarmárioaoseraberta.
Japp dirigiu-lhe um olhar interrogativo e Poirot
respondeu-lhecomummalperceptívelaceno.
— Não pretendemos nos demorar,Miss
Plenderleith — começou Japp vivamente. — Só viemos
perguntar se a senhorita poderia nos dar o nome do
advogadodeMrs.Allen.
—Seuadvogado?—Ajovemsacudiuacabeça.—
Nemsabiaqueelatinhaadvogado.
— Bem, quando ela alugou esta casa com a
senhoritaalguémdeveterredigidoocontrato,não?
—Não,nãofoiassim.Quemalugouacasafuieu,
elaestáemmeunome.Bárbarasimplesmentemepagava
metade da renda. Não achamos necessário fazer um
contrato.
—Compreendo.Entãonadafeito.
— Sinto não poder ajudá-los — disse Jane
cortesmente.
— Não tem importância — disse Japp,
encaminhando-seemdireçãoàporta.—Asenhoritatem
jogadogolfeultimamente?
—Sim.—Elaruborizou-se.Pareceinsensibilidade
de minha parte, mas preciso fazer alguma coisa para
fugir desta casa, porque elame deprime. Preciso sair e
fazeralgumexercício,mecansar,poissenãoestacasame
esmaga.
Suavozvinhacarregadadeintensidade.
Poirotinterrompeu:
— Compreendo,mademoiselle. É muito natural.
Ficar aqui sentada, pensando... não, não seria nada
agradável.
—Estimoqueosenhorcompreenda—disseJane,
umpoucosecamente.
—Asenhoritapertenceaalgumclube?
—Sim,emWentworth.
—Odiahojefoibonito—continuouPoirot.
—Mas, infelizmente,asárvoresestãoquase todas
desfolhadas. Na semana passada elas ainda estavam
verdes.
—Masodiafoibonito—insistiuPoirot.
— Boa tarde,Miss Plenderleith—disse Japp, em
tom formal. — Eu a avisarei de qualquer novidade. Na
verdadejáprendemosumhomemcomosuspeito.
— Quem? — perguntou Jane Plenderleith
ansiosamente.
—OmajorEustace.
Ela assentiu com a cabeça e deu-lhes as costas,
abaixando-separaacenderalareira.
—Eentão?—perguntouJappaPoirot,quandoo
carroemqueiamsaiudobeco.
Poirotsorriu.
—Foisimples.Achaveestavanaporta.
—E...?
Poirotcontinuavaasorrir.
—Ehbien,ostacosdegolfetinhamdesaparecido...
—Claro.Estamoçapodeseroquefor,masnãoé
tola.Algomaistinhadesaparecido?
Poirotinclinouacabeça.
—Sim,meuamigo.Apequenavalise.
OaceleradorsaltousobopédeJapp.
—Maldição!—exclamouele.—Eusabiaquehavia
algo de estranho. Mas que diabo será? Eu examinei
aquelavalisecuidadosamente.
—MasmeucaroJappocasoétão...comodizemos
ingleses?Óbvio,meucaroWatson?
Jappdeu-lheumolharexasperado.
—Ondeestamosindo?—perguntou.
Poirotolhouorelógio.
— Ainda não são quatro horas. Dá para irmos a
Wentworthantesdeescurecer.
—Vocêachaqueelafoilámesmo?
—Achoquesim.Eladeviasaberque íamospedir
informações.Tenhocertezaquevamosdescobrirqueela
realmenteesteveemWentworth.
Japprosnou,enquantodirigiahabilmenteentreo
trânsitointenso:
—Oquenãoconsigoimaginaréoqueestamaldita
valisetemavercomocrime.Naminhaopiniãonãotem
nada.
—Concordointeiramentecomvocê,meuamigo.A
valise e amorte deMrs. Allennão têmnadaa veruma
comaoutra.
—Masentãoporquê...Não,nãomediga,jásei.“É
precisoelucidartodososdetalhescomordememétodo.”
Enfim,atardeestáagradávelparaumpasseio.
Japp dirigia velozmente e eles chegaram a
Wentworth pouco depois das quatro e meia, mesmo
porquenaestradaotrânsitoerapoucointenso.
Poirotfoidiretoaochefedoscaddiesepediu-lheos
tacos deMiss Plenderleith, explicando que ela precisa
delesparajogarnumoutroclubenodiaseguinte.
O chefe doscaddies chamou um pequeno rapaz
quedirigiu-seaumcantoondeestavamdiversostacos,e
finalmentelocalizouumabolsacomasiniciaisJ.P.
— Obrigado — disse Poirot, e, depois de andar
algunspassoscomoquemselembra:
— Ela por acaso não deixou aqui também uma
pequenavalise?
—Hojenão,senhor.Mastalvezatenhadeixadona
sede.
—Elaesteveaquihoje?
—Esteve,euavi.
—Qualfoiocaddiequetrabalhoucomela?Eladiz
queperdeuumapequenavalise,masnãosabeonde.
— Hoje ela não levou nenhumcaddie. Apenas
comproualgumasbolaselevoualgunstacos.Mastenho
quasecertezaqueviumapequenavalisecomela.
Poirot afastou-se, depois de agradecer. Os dois
homens passearam um pouco pelo gramado, dando a
voltaàsede,ePoirotdeteve-seuminstanteparaadmirar
apaisagem.
—Umabelezadevista,não?Ospinheiros,olago.
Sim,olago...
Jappdeu-lheumaolhadelarápida.
—Entãoéisto?Poirotsorriu.
—Ébempossívelquealguémtenhavistoalguma
coisa.Seeufossevocêcomeçariaainvestigar.
CAPÍTULODEZ
Poirotdeuumpassoatráseexaminouaarrumação
doquarto.Melhorchegaraquelacadeiraparaadireitae
estaumpoucoparacá.Sim,estavaótimo.Acampainha
tocou—deviaserJapp.
OinspetordaScotlandYardentrourapidamente.
— Você estava certo, meu velho. Tudo como você
previu. Uma jovem foi vista ontem em Wentworth
atirando algo dentro do lago e as descrições coincidem
comadeJanePlenderleith.Conseguimosacharoobjeto
semmaioresdificuldades,poiso localé raso.Eleestava
presoemunscaniços.
—Eoqueeraoobjeto?
— Era a valise, sem tirar nem pôr. Maspor que,
peloamordeDeus?Nãoconsigocompreender.Estava
completamentevazia—nãotinhasequerasrevistas.Por
queumajovemmentalmentesãhaveriadejogarforauma
valise cara dentro de um lago? Não consegui dormir a
noitetoda,tentandodescobrirarazão.
— Mon pauvre Japp. Não precisa se preocupar
maisArespostaestáacaminho.Acampainhaacaboude
tocar.
George,ocorretocriadodePoirot,abriuaportae
anunciou:
—MissPlenderleith.
A moça entrou com seu habitual ar de
autoconfiançaecumprimentouosdoishomens.
— Eu lhe pedi que viesse — começou Poirot,
enquanto fazia a moça ocupar uma das cadeiras,
indicando a outra a Japp — porque tenho algumas
novidadesalhedar.
Amoçasentou-se,tirandoochapéuecolocando-o
aseuladocomimpaciência.
—Bem—disseela—,omajorEustacejáfoipreso.
—Asenhoritaleuistonosmatutinosdehoje,não?
—Sim.
—Nomomento,eleéacusadoapenasdeumdelito
sem muita gravidade. Enquanto isso, continuamos as
nossasinvestigaçõesarespeitodoassassinato.
— Então foi assassinato, sem dúvida alguma?—
perguntouamoça,comansiedade.
Poirotassentiu.
—Sim.Assassinato.Adestruiçãopropositaldeum
serhumanoporoutroserhumano.
Elaestremeceu.
—Parecehorrívelquandoosenhordizdestejeito.
—Sim...eéhorrível.
Elefezumapausaedepoisprosseguiu:
— Agora,Miss Plenderleith, vou lhe dizer como
descobriaverdadenestecaso.
Ela olhou para Poirot e depois para Japp. Este
estavasorrindo.
— Ele tem seus próprios métodos,Miss
Plenderleith — disse o inspetor —, e eu procuro não
aborrecê-lo.Achomelhorouvirmosoqueeletemadizer.
Poirotcomeçou:
— Como a senhorita sabe, cheguei ao local do
crimecomoinspetor-chefeJappnamanhãdodiaseisde
novembro. Fomos ao quarto onde o corpo deMrs. Allen
estavaenoteideimediatodiversosdetalhessignificativos.
Havia coisas naquele quarto decididamente estranhas
demais.
—Prossiga—disseamoça.
—Paracomeçodeconversa—dissePoirot—,havia
ocheirodecigarro.
—Acho que você está exagerando— interrompeu
Japp—Eunãosenticheiroalgum.
Poirotvoltou-serapidamenteparaele.
—Exatamente. Vocênãosentiunenhumcheirode
cigarro.Nemeu.E isso eramuito,muito estranho,pois
tantoaportaquantoajanelaestavamtrancadasehavia
pelo menos dez pontas de cigarro no cinzeiro. Muito
estranho mesmo que a atmosfera no quarto estivesse,
digamosassim,tãopura.
—Entãoéistooquevocêqueriadizer—suspirou
Japp.—Vocêsempreescreveporlinhastortas.
—OgrandedetetiveinglêsSherlockHolmesfaziao
mesmo. Lembre-se que ele chamou a atenção para o
curiosoincidentecomocachorrodenoite...earesposta
era, claro, que não houve incidente algum. O cachorro
nãofeznadadenoite.Mascontinuemos:
—Osegundodetalheaatrairminhaatençãofoio
relógiousadopelamorta.
—Oquehaviacomele?
—Com ele particularmente nada,mas amorta o
usavanobraçodireito.Ora,aspessoasemgeralusam-no
nobraçoesquerdo.
Japp deu de ombros, mas antes que ele pudesse
dizeralgumacoisa,Poirotcontinuou:
—Mas,comovocêdiz, istoemsinãoprovanada.
Háquemprefirausarorelógionopulsodireito.Eagora
chegamos a um ponto muito interessante. Chegamos
agora,meusamigos,àescrivaninha.
—Eujáesperavaporisto—suspirouJapp.
— A escrivaninha era extremamente interessante,
pordoismotivos.Emprimeirolugar,algoestavafaltando
nela.
JanePlenderleithfalou.
—Eoquefaltavanela?
Poirotvirou-se.
—Umafolhademata-borrão,mademoiselle.Afolha
queestavanomata-borrãoestavaimaculadamentelimpa.
Janenãoocultouodesdémemsuaspalavras.
—Francamente,monsieurPoirot,aspessoasdever
emquandojogamforaafolhausada.
—Sim,mas onde?Na cesta de papéis, não?Mas
nãoestavanacestadepapéis,eeuseiporqueolhei.
Janepareciaimpaciente.
— Provavelmente porque tinha sido jogada na
véspera.Omata-borrãoestavalimpoporqueBárbaranão
tinhaescritocartasnaqueledia.
— Sua hipótese é altamente duvidosa,
mademoiselle,poisMrs.Allenfoivistaacaminhodacaixa
do correionaquela tardinha e portanto deve ter escrito
cartas. Elanãopoderia tê-las escrito na sala de visitas,
pois lá não havia qualquer material apropriado.
Dificilmente ela teria idoaoseuquartoparaescrevê-las.
Então,oqueaconteceuàfolhademata-borrãocomque
elasecouasuacarta?Éverdadeque,algumasvezes,as
pessoas atiram papéis à lareira e não à cesta, mas a
lareirano quarto deMrs.Allen eraa gás.Ea lareirana
sala de visitas não tinha sido acesa na véspera, pois a
senhoritamedisseque ela estavapreparada com lenha
nova e quea senhorita só teve o trabalhode chegar-lhe
umfósforo.
Elefezumapequenapausa.
—Umproblemarealmentecurioso.Olheiportoda
parte: na cesta de papéis, na lata de lixo, mas não
consegui achar uma folha de mata-borrão velha, e o
detalhe me parecia altamente importante. Era como se
alguém tivesse removido o mata-borrão
propositadamente. Por quê? Porque havia nele algo que
poderiafacilmenteserlidodeencontroaumespelho.
— Mas havia outro ponto realmente interessante
acerca da escrivaninha — prosseguiu Poirot. — Japp,
você lembra mais ou menos como as coisas estavam
arranjadas sobre ela? O mata-borrão e o tinteiro no
centro,descansoparaascanetasàesquerda,calendárioe
pena de escrever à direita.Eh bien? Não percebe onde
querochegar?Euexamineiapenadepássaro,lembre-se,
e ela era apenas para enfeite. Não era para ser usada.
Será que você ainda não percebeu? Vou repetir. Mata-
borrão no centro, canetas à esquerda — àesquerda,
Japp.Masnãoémaiscomumseencontrarascanetasà
direita, ao alcance damãodireita? Agora você começa a
perceber,não?Ascanetasàesquerda,orelógionopulso
direito, o mata-borrão desaparecido... e algo trazido
propositadamenteparaoquarto:ocinzeirocomosrestos
decigarroAquelequartotinhaoarpuro.Japp.Eraum
quarto cuja janela tinha permanecido aberta e não
fechada durante a noite. E eu pude então começar a
juntarasdiferentespeças.
Elevirou-seeencarouJane.
— E o que me veio à mente foi a senhorita,
chegandodetáxi,pagandoesubindoasescadasligeira,
talvez chamandoBárbara... apenaspara abrir a porta e
encontrarsuaamigamortacomorevólvernamão.Amão
esquerda, naturalmente, pois ela era canhota — e por
issoéqueabalaentrounoladoesquerdodesuacabeça.
Háumbilhetedirigidoàsenhorita,explicando-lheoque
tinha levado sua amiga ao suicídio. Deve ter sido um
bilhete extremamente comovente... uma moça jovem,
amável e infeliz, levada à morte por uma chantagem...
Posso deduzir como uma idéia lhe passou
instantaneamente pela cabeça. Aquilo era conseqüência
da ação de um homem — e este homem merecia ser
punido. A senhorita então toma do revólver, limpa-o e
coloca-o na mão direita da morta. Rasga o bilhete e
tambéma folhademata-borrãousadaparasecá-lo.Em
seguida,desceeatiraospedaçosnalareira.Depois,leva
ocinzeiroparaoquartodecima,paradarailusãodeque
os dois tinham estado a conversar naquele aposento, e,
paradarumtoqueaindamaiordeverossimilhança,leva
também um pedaço de abotoadura que encontrou no
chão.Estafoiumadescobertafelizeasenhoritacalcula
que servirá para incriminar definitivamente o
chantagista.Aseguir,asenhoritafechaajanelaetranca
a porta, pois não quer que suspeitem que a senhorita
tenha lá entrado. E chama diretamente a polícia, pois
deseja menos ainda que alguém no beco estrague o
cenáriotãocuidadosamentearranjado.
— E assim por diante— prosseguiu Poirot.— A
senhoritadesempenhaseupapelcomperfeiçãoesangue-
frio. A princípio recusa-se a dizer qualquer coisa, mas
lançapequenasdúvidassobreosuicídio.Maistardeestá
disposta abertamente a pôr-nos na trilha do major
Eustace. Sim, senhorita, foi um assassinato muito
inteligente. Ou, melhor dizendo, uma tentativa de
assassinato. Pois estou falando datentativa de
assassinatodomajorEustace.
JanePlenderleithlevantou-sedesúbito.
— Não foi tentativa de assassinato. Foi justiça.
Aquele homem levou Bárbara ao suicídio. Ela era tão
indefesaetãoboazinha.Osenhorcompreende,elatinha
tidoumromancecomumhomemnaÍndia,quandotinha
apenas 17 anos. Ele era casado, e muito mais velho.
Então ela ficou grávida, teveum filho.Elapoderia tê-lo
postonumorfanato,maspreferiucriá-loelamesma.Ela
partiu numa viagem longa e voltou dizendo chamar-me
senhora Allen. Mais tarde a criança morre, ela volta à
Inglaterra e se apaixona por Charles— aquele pedante
Elaoadorava,elesimplesmenteaceitavasuadevoção.Se
Charles fosseumhomemdiferenteeu teriaaconselhado
Bárbara a contar-lhe tudo. Mas sendo ele como era,
aconselhei-aaficarquieta.Afinal,eueraaúnicapessoa
que sabia daquela história em seu passado. E então
aquele demônio Eustace apareceu... O resto o senhor
sabe.Elepassouachantageá-la,masfoiapenasnaquela
últimanoitequeelapercebeuoescândaloaquetambém
estava expondo Charles. Depois de casados, Eustace a
teria onde ele mais a desejava: mulher de um homem
rico,comhorroraescândalos.QuandoEustacesaiuela
ficoupensando,desesperada.Entãosubiuemeescreveu
uma carta, dizendo-me que amava Charles e não podia
viversemele,masqueparaoprópriobemdeCharlesela
nãopodiacasar-secomele.Decidiuentãooptarpeloque
elaachavaamelhorsaída.
Janeatirouacabeçaparatrás.
—Osenhorseadmiradequeeutenhafeitooque
fiz? E o senhor ainda tem a coragem de chamar isto
assassinato?
—Mas é assassinato— respondeuPoirot, emvoz
severa.—Oassassinatopodeparecerjustificadoalgumas
vezes, mas não deixa de ser assassinato. A senhorita é
inteligente... encareaverdade.Suaamigamatou-se, em
última análise,porquenão tinha coragembastante para
viver.Podemossimpatizarcomela,podemossentirpena
dela,masnãoobstante, amãoqueamatou foi sua,de
ninguémmais.
Poirotfezumapausa.
— E a senhorita? Aquele homem está preso e
cumprirá uma longa sentença por outros crimes. A
senhoritaquermesmovê-loexecutado?Asenhorita tem
coragemdedestruirumavidahumana?
Ela encarou-o fixamente, com os olhos sombrios.
Finalmente,disse,entredentes:
—Não,osenhorestácomarazão.Nãotenho.
Evirando-sesubitamente,saiudasala.Aportada
ruabateucomestrondo.
Jappassobioulongamente.
—Macacosmemordam.
Poirotsentou-seesorriu-lheamavelmente.Passou-
seumlongotempoantesqueJappfalasse:
—Nãoeraassassinatodisfarçadoemsuicídio,mas
suicídiodisfarçadoemassassinato.
—Sim, emuito bemdisfarçado.Nenhumdetalhe
muitoexagerado.
Jappperguntouderepente:
—Maseavalise?Ondeentraavalise?
—Masmeuamigo,meuqueridoamigo, eu já lhe
disse muitas vezes que a valise não entra em lugar
nenhum.
—Masentãoporquê...?
—Ostacosdegolfe.Ostacosdegolfe,Japp.Eles
eramtacos de golfe de uma pessoa canhota. Jane
PlenderleithguardavaseustacosemWentworth.Aqueles
eram os de Bárbara Allen. Não é de admirar que Jane
tenhaficadoassustadaquandodissemosqueíamosabrir
aquele armário, pois todo o seu plano iria por água
abaixo. Mas ela é inteligente e percebeu que tinha se
traído. Elaviu quenós tínhamosvisto.Então fezoque
lhepareceumaisapropriadoparadistrairnossaatenção
— isto é procurou focalizá-la noobjeto errado, dizendo:
“Aquelavaliseéminha,euatrouxeestamanhã,nãopode
ternadadeinteressante.”E,comoelaesperava,embarca-
mosnacanoafurada.Pelomesmomotivo,quandoelafoi
sedesfazerdostacosnodiaseguinte,levouavalisecomo
isca.
—Querdizerquesuaverdadeiraintenção...
—Pensebem,meuamigo.Qual é omelhor lugar
para se desfazer de uns tacos de golfe? Não é possível
queimá-losoupô-losnalatadelixo.Sevocêdeixá-losem
algum lugar é provável que eles lhe sejam devolvidos.
Miss Plenderleith levou-os para um clube de golfe. Lá
tomoualgunsdeseusprópriostacosefoi jogarsemum
caddy.De temposemtemposparava,quebravaos tacos
da amiga e jogava-os em alguma moita. Finalmente,
jogoutambémasacolafora.Sealguémachasseumtaco
quebradoaquiealinãosesurpreenderia,poisháquem
seexasperetantocomseuprópriojogoqueatiretodosos
tacos foradeumavez.Ogolfeéumjogodedeixarvocê
maluco. Mas— prosseguiu Poirot—Miss Plenderleith
desconfiava que continuávamos interessados em suas
ações,eoquefazentão?Levaaisca,avalise,eatira-ano
lago,sabendoqueofatoseriatestemunhadoporalguém.
Esta,meucaro, éaverdadesobre “OMistériodaValise
noBeco”.
Jappconsiderouseuamigoporalgunsmomentose
finalmenteergueu-se,dando-lheumamistosotapinhano
ombro:
—Nadamauparaumdetetivedecrépito.Vocêabis-
coita o prêmio. Por falar nisto, que tal almoçarmos
juntos?
—Ótimo,masnãovãosermerosbiscoitos.Seide
umrestauranteondeservemumexcelenteblanquettede
veauavecpetits-poisà la française.Podemospediruma
omeletteauxchampignonsdeentradaebabaaurhumde
sobremesa.
— É para já — retrucou Japp. — Mostre-me o
caminho.
ORouboInacreditável
CAPÍTULOUM
Enquanto o mordomo passava osoufflé, Lord
Mayfield dizia alguma coisa em tom confidencial a sua
vizinha da direita, Lady Julia Carrington. Conhecido
como um perfeito anfitrião, Lord Mayfield chegava a
extremosparamantersuareputaçãoe,emborasolteirão
convicto,erasemprecativantecomassenhoras.
Lady Julia Carrington tinha quarenta anos, era
alta,morenaecheiadevivacidade.Eramagra,masainda
bonita,commãosepésparticularmentedelicados.Seus
gestos eram inquietos e bruscos, típicos de uma
constituiçãonervosa.
Quase em frente a ela, do lado oposto da mesa
redonda, sentava-se seumarido, o brigadeiroSir George
Carrington.EletinhainiciadosuacarreiranaMarinhae
guardavaaindamuitodosmodosexpansivosdeumvelho
homemdomar.Eleestavarindoebrincandocomabela
Mrs.Vanderlyn,quesesentavaàesquerdadoanfitrião.
Mrs. Vanderlyn era loura e bonita. Sua voz tinha
um ligeiro traço de sotaque americano — o suficiente
paraserencantadorsemserexagerado.
Do outro lado deSir George Carrington estava a
deputadaMrs. Macatta.Mrs. Macatta era uma grande
autoridadeempolíticahabitacionaleemassistênciaaos
menores.Elanãofalava:vociferava—etodoseuaspecto
eradomesmomodoalarmante.Nãoeradeseestranhar
que o brigadeiro achasse sua vizinha da direita mais
interessante.
Mrs. Macatta, onde quer que fosse, só falava nos
assuntosdesuaespecialidadee,nomomento,dedicava-
se a fornecer detalhes dos mesmos a seu vizinho da
esquerda,ojovemReggieCarrington.
Reggie Carrington tinha 21 anos e não tinha o
menor interesse nem em política habitacional nem em
assistênciaaosmenores.Naverdade,nemsequergostava
depolítica.De temposemtemposele intercalavaum“É
revoltante” ouum “A senhora tem toda razão”,mas era
evidente que seus pensamentos estavam muito longe.
Entre Reggie e sua mãe estava sentadoMr. Carlile,
secretárioparticulardeLordMayfield—umjovempálido
de pincenê e um ar reservado, que falava pouco mas
estava sempre disposto ao sacrifício de preencher
qualquer silêncio embaraçoso. Ao notar que Reggie
Carringtonmalpodiadisfarçarumbocejo,eleinclinou-se
e rapidamente fez aMrs. Macatta uma pergunta a
propósitodeseuprojetoparaeducaçãofísicainfantil.
Movendo-sesilenciosamenteaoredordamesa,um
mordomoedoislacaiospassavamospratoseenchiamos
coposde vinho. LordMayfieldpagavaumalto salário a
seumestre-cucaeeraconsideradograndeconhecedorde
vinhos.
A mesa era redonda, mas não havia qualquer
dúvidapossívelsobreaidentidadedoanfitrião,peloarde
tranqüila autoridade de Lord Mayfield — um homem
forte.deombros largos,cabelobrancoabundante,nariz
grande e reto e queixo ligeiramente proeminente. Um
rostoqueseprestavamuitoàcaricatura.Sobseunome
de nascimento —Sir Charles McLaughlin — Lord
Mayfield combinara a carreira política com a chefia de
uma grande firma de engenharia e era ele próprio um
engenheiro de primeira ordem. O título nobiliárquico
fora-lheconcedidoháumanoeaomesmotempoelefora
nomeadoministrodosarmamentosdeumministérioque
acabaradesercriado.
A sobremesa tinha sido servida, o vinho do Porto
circuladoumavez.FazendoumsinalcomosolhosaMrs.
Vanderlyn, Lady Julia ergueu-se. As três mulheres
deixaramasala.
OPortocirculounovamenteeLordMayfield falou
de faisões. Durante uns cinco minutos a conversação
girousobrecaça.EntãoSirGeorgefalou:
— Acho que você poderia fazer companhia às
senhoras. Reggie. Tenho certeza de que Lord Mayfield
nãoseimportará.
Orapazpercebeudeimediatoaindireta.
—Obrigado,LordMayfield.
Mr.Carlilemurmurou:
— Se o senhorme permite, LordMayfield, tenho
algunspapéisparapôremordem...
LordMayfieldassentiudecabeçaeosdoismoços
deixaram a sala. Os criados já haviam saído há algum
tempo. Oministro dos armamentos e o chefe da Força
Aéreaestavamsozinhos.
Depoisdeumminutooudois,Carringtondisse:
—Eentão?Tudoperfeito?
—Perfeitíssimo.NenhumoutropaísdaEuropatem
nadaquesecompareaestebombardeiro.
—Muitomelhorqueosoutros,hem?Eraoqueeu
pensava.
— Vamos ter a supremacia aérea — disse Lord
Mayfieldemtomconvicto.
Sir George Carrington deixou escapar um suspiro
dealívio.
—Ejánãoerasemtempo.Vocêsabe,Charles,que
a situação na Europa não anda boa, com todo mundo
armadoatéosdentes.Enósestávamosficandoparatrás,
estaéaverdade.Estebombardeirovemnoslivrardeum
apertodosdiabos.Eolhequeaindanãonossafamosde
todo.
LordMayfieldobservou:
—Mesmoassim,George,começardepoistemsuas
vantagens. Alguns outros países estão com seu
armamentoquaseobsoletoegastaramtantonelequese
encontramàbeiradafalência.
—Estahistóriaparamimé conversa fiada.Estão
sempredizendoqueestepaísouaquele estáacaminho
dabancarrota,maselesvãoemfrentedeumjeitooude
outro.Nuncaconseguientendernadadefinanças.
Um brilho divertido passou pelos olhos de Lord
Mayfield.Sir George Carrington era o típico homem do
mar “rude, franco e leal”. Havia quem dissesse que ele
adotavaaquelaposedeliberadamente.
Mas,mudandodeassunto,Carringtondissenum
tomumpoucocasualdemais:
—Belamulher,Mrs.Vanderlyn,não?
LordMayfieldperguntou:
— Você está querendo saber o que ela veio fazer
aqui?
Seusolhosmantinhamohabitualbrilhotravesso.
Carringtonpareciaumpoucoatrapalhado.
—Não,absolutamente.
—Vamos lá,éclaroquevocêestá.Nãopenseque
eunãopercebi.Vocêpassouo jantar todocompenade
mim,compenadequeeu fosseaúltimavítimadeMrs.
Vanderlyn.
Carringtondissedevagar:
—Bem,acheimesmoumpoucoestranhoqueela
estivesse aqui. Por coincidência, logo neste fim de
semana.
LordMayfieldconcordou:
— Onde há carniça, há urubu. Temos aqui uma
carniçasuculentaeMrs.Vanderlynpodeserclassificada
comoourubunúmeroum.
Omarechaldoarperguntouabruptamente:
—Oquevocêsabesobreestamulher?
Lord Mayfield cortou a ponta de um charuto,
acendeu-o com destreza e, atirando a cabeça para trás,
deixoucairaspalavrascomcuidadosaprecisão.
— O que eu sei sobreMrs. Vanderlyn? Sei que é
cidadã americana. Sei que já teve três maridos— um
italiano, um alemão e um russo — e que, em
conseqüência disto, estabeleceu contatos muito úteis
nestes três países Sei que mantém um padrão de vida
muitoelevado,emboraninguémtenhaaindadescoberto
deondevemseudinheiro.
—Vejoqueseusespiõesnãoandaramdormindono
ponto,Charles.
— Sei ainda — continuou Lord Mayfield — que,
além de ser bela,Mrs. Vanderlyn é o que poderíamos
chamaruma excelente ouvinte, sendo capaz demostrar
umencantadorgraudeinteresseemassuntosqueoutras
mulheres considerariam aborrecidos. Quer dizer, um
homem é capaz de falar horas sobre seu trabalho e
descobrir, lisonjeado, de que ela ouve com prazer.
Diversosjovensoficiaissódescobriramtardedemaispara
ofuturodesuascarreirasquecontaramaMrs.Vanderlyn
umpoucoalémdoquedeviam.Quasetodososamigosde
Lady Vanderlyn estão nas Forças Armadas— e no ano
passado ela foi dedicar-se à caça em um condado nas
cercanias de uma das nossas grandes fábricas de
armamentos,tendoformadoamizadecomgentequenão
tinha nada a ver com tiro ao pombo. Para dizer em
poucas palavras,Mrs. Vanderlyn é extremamente útil
paraa...
LordMayfielddescreveuumcírculonoarcomseu
charutoantesdeprosseguir:
— Melhor não dizermos para quem. Digamos
apenas uma potência européia... talvez mais de uma
potênciaeuropéia.
Carringtonrespiroufundo.
— Você tira um grande peso de meus ombros,
Charles.
— Você pensou que eu tivesse caído no canto da
sereia? Ora, meu caro George..Mrs. Vanderlyn é um
pouco óbvia demais em seus métodos para um gato
escaldado como eu. Além disso, ela já não é assim tão
jovem. Jovens oficiais deslumbrados não se importam
comisto,maseuestoucomcinqüentaeseisanos,meu
caro,eosvelhospreferemasmoças.Daquiaunsquatro
anos,provavelmente,sereiumvelhogagácorrendoatrás
dejovensdebutantes.
—Foitolicedeminhaparte—disseCarringtonem
tomdedesculpa—masmepareciaumpoucoestranho...
—Parecia estranhoqueela estivesseaqui logono
fim de semana em que nós dois vamos discutir os
detalhes de uma descoberta que provavelmente
revolucionaráaguerraaérea,não?
SirGeorgeCarringtonassentiu.
Lord.Mayfieldcompletou,comumsorriso:
—Masfoiparaistoqueaconvidei.Paramordera
isca.
—Queisca?
— Olhe, George, até hoje não nos foi possível
provar nada contra a mulher, porque ela tem sido
diabolicamente cuidadosa. Portanto, decidi tentá-la com
algorealmentegrande.
—Querdizerqueonovobombardeiroéaisca?
—Exatamente.Umaiscasuficientementeapetitosa
paralevá-laasearriscarumpoucodemais.E,entãonós
apegamos.
SirGeorgeresmungou:
—O.K.Maseseelanãomorderaisca?
—Seriaumapena—disseLordMayfield.—Mas
achoquemorderá...
Elelevantou-se.
— Vamos fazer companhia às senhoras? Sua
mulherdeveestaràprocuradeparceirosparaobridge.
SirGeorgequeixou-se:
—Juliaémaníacaporaquelebridgeeapostaaalto
demais.Jálhedisseisto,maselaéviciada.
Erguendo-se e caminhando em direção a seu
anfitriãoCarringtondisse:
—Esperoqueseuplanocorrabem,Charles.
CAPÍTULODOIS
Na sala de visitas a conversa já se tinha
interrompido mais de uma vez.Mrs. Vanderlyn
geralmentenãofaziasucessoentresuascompanheirasde
sexo,queasmostravaminvulneráveisaseusmodos,que
tantoencantavamoshomens.
Lady Julia era uma mulher que sabia ser muito
bem ou muito mal educada. No momento, ela tinha
optadopelasegundaalternativa,poisnãogostavadeMrs.
Vanderlyn e achavaMrs. Macatta chatíssima. A
conversaçãosónãotinhaseextinguidodetodoporcausa
dosesforçosdestaúltima.
Mrs. Macatta era uma mulher extremamente
perseverante.NãoperdeutempocomMrs.Vanderlyn,que
identificou logo como um tipo inútil e parasitário, mas
procurou interessar Lady Julia num espetáculo
beneficentequeestavaorganizando.LadyJulia,contudo,
deu-lhe umas respostas vagas, disfarçou um bocejo ou
doiseconcentrou-seemseusprópriospensamentos.Por
que Charles e George não apareciam? Como eram
irritantesoshomens!Àmedidaqueseabsorviacomsuas
próprias preocupações as respostas de Lady Julia se
tornavammaisvagaseespaçadas.
Quandooshomens finalmenteapareceramastrês
mulheresestavamemsilêncio.
LordMayfieldpensoucomseusbotões:
— Julia me parece adoentada. A mulher é
evidentementeumapilhadenervos.
Masoqueeledissealtofoi:
—Quetalumarodadadebridge?
Lady Julia despertou de imediato, como se a
própriapalavrafosseoremédioparatodososseusmales.
ReggieCarrington tambémacabavadeentrarese
organizoulogoumaparceiradadedois.LadyJulia,Mrs.
Vanderlyn,Sir George e Reggie sentaram-se à mesa de
jogo. LordMayfield resignou-se ao sacrifício de entreter
Mrs.Macatta.
Depois de duas rodadas,Sir George olhou
aparatosamenteparaorelógiosobrealareira.
— Acho que não vale a pena começar outra —
observou.
Suamulherpareceuaborrecida.
— São ainda quinze para as onze. Vamos jogar
umarápida.
— Elas nunca são rápidas, minha querida —
respondeuSir George de bom humor. — Além disso,
Charleseeutemostrabalhopelafrente.
Mrs.Vanderlynmurmurou:
— Isto soa muito importante. Aposto como vocês
grandes homens nunca têm oportunidade para
descansar.
—Asemanade48horasnãofoi feitaparanós—
concordouSirGeorge.
Mrs.Vanderlyncontinuou:
Seiquenãopassodeumaamericanaroceira,mas
talvez por isto mesmo fico arrepiada só de encontrar
gente que controla os destinos de uma nação. Aposto
como o senhorme achamuito simplória por dizer isto,
SirGeorge.
— Minha caraMrs. Vanderlyn, eu jamais a
considerariaroceiraousimplória.
SirGeorgesorriaesuavoztinhaumtraçodeironia
queMrs.Vanderlynnãodeixoudeperceber.Elavirou-se
comdesembaraçoparaReggie,oferecendo-lheseumelhor
sorriso.
— É pena que nossa parceria tenha que acabar.
Suaúltimajogadafoidegênio.
Vermelhoenãocabendoemsideorgulho,Reggie
respondeusufocado:
—Foipurasorte.
— Não senhor. Foi uma jogada que mostrou seu
grande poder de dedução. Você sabia exatamente o que
todomundotinhanasmãos.
LadyJuliaergueu-sebruscamente,pensandocom
seus botões queMrs. Vanderlyn mentia sem a menor
sutileza.
Masseusolhossecomoveramaoverorostodeseu
filho, aoperceberque eleacreditara em tudo.Comoera
jovemeingênuo!Nadadeadmirarquevivesseasemeter
emembrulhadas.Averdadeéqueeletinhaumanatureza
muitocrédulaeseupainuncachegaraacompreendê-lo.
Oshomens,pensavaLadyJulia,erammuitoseverosem
seus julgamentos, pois esqueciam-se de que também
tinham sido jovens e de boa fé. Não, George era severo
demaiscomReggie.
Mrs.Macattatinhaselevantado.Todossedisseram
asboasnoites.
As três mulheres saíram. Lord Mayfield preparou
umuísqueparaSirGeorge,serviu-sedeoutroeergueua
vistaaonotarqueMr.Carlileaparecianaporta.
— Por favor, prepare todos os pastéis e todos os
papéis,Carlile.Asplantaseasespecificaçõestambém.O
marechaleeuvamosparaoescritóriodaquiapouco.Mas
que tal primeiro darmos uma volta aí fora, George? A
chuvajáparou.
Mr. Carlile virou-se para sair, mas desculpou-se
rapidamente ao notar que quase dera um esbarrão em
Mrs.Vanderlyn.
Elaesgueirou-seporele,dizendo:
—Meulivro.Euoestavalendoantesdojantar.
Reggie levantou-se de imediato, com um livro na
mão.
—Seráesteporacaso?Estavaaqui,nosofá.
— É este mesmo. Muito obrigada. Você é
gentilísssimo.
Elasorriuencantadoramente,disseboanoitemais
umavezesaiudasala.
Sir George tinha aberto a porta envidraçada que
davaparaojardim.
—Estáumabeleza de noite— anunciou.—Boa
idéiadarmosumavolta.
Reggiedisse:
—Boanoite,LordMayfield.Estoucomtantosono
quequasetenhoquemearrastarparaacama.
— Boa noite, meu rapaz — respondeu Lord
Mayfield.
Reggie tomou de uma história de detetive que
andaralendoantesdojantaredeixouasala.
LordMayfieldeSirGeorgesaíramparaoterraço.
Anoiteestavarealmentebonita,comocéulimpoe
cheiodeestrelas.
SirGeorgerespiroufundo.
—Uf,aquelamulhersebanhaemperfume.
LordMayfieldriu.
—Aindabemquenãoéumperfumebarato.Muito
pelo contrário, acho que é um dos mais caros que
existem.
SirGeorgefezumacareta.
—GraçasaDeus.
—GraçasaDeusmesmo.Umamulherafogadaem
perfume barato é uma das maiores abominações a que
estásujeitaahumanidade.
SirGeorgeolhouparaocéu.
— É incrível como o tempo limpou. Estava
chovendoforteduranteojantar.
Os dois homens começaram a passear
vagarosamente.
O terraço corria toda a extensão da casa. Abaixo
deleoterrenocaíanumaencostasuave,oferecendouma
magníficavistadasflorestasdeSussex.
SirGeorgeacendeuumcharuto.
—Apropósitodestaligametálica...—começou.
Aconversatornou-seextremamentetécnica.
Quando eles se aproximavam pela quinta vez da
extremidademaisdistantedoterraço,LordMayfielddisse
comumsuspiro:
—Bem,vamosmetermãosaotrabalho.
—Sim,temosmuitoquefazer.
Os dois homens voltaram-se e, ao fazê-lo, Lord
Mayfielddeixouescaparumaexclamaçãodesurpresa:
—Ei,oqueéaquilo?
—Aquilooquê?
—Aquelasombraqueatravessouoterraço,saindo
demeuescritório.
—Nãohaviasombraalguma,meucaro.Eunãovi
nada.
—Bem,euvi.Pelomenos,achoquevi.
—Seusolhosandamalhepregarpeças.Euestava
olhandobemnaqueladireçãoesetivessealgumacoisalá
eu a teria visto. É difícil alguma coisa me escapar...
embora hoje em dia só consiga ler um jornal com os
braçosbemesticados.
—Aíeulhelevovantagem,meucaro.Nãopreciso
deóculosparalerosjornais.
—Mas dificilmente você consegue reconhecer um
amigodooutroladodoplenáriodaCâmara.Ouaqueles
óculos que você costuma usar por lá são só para
intimidarseusadversários?
Osdoishomensrirameentraramnoescritóriopela
portaenvidraçada,queestavaaberta.
Mr.Carlileestavaarrumandoalgunspapéisemum
arquivoaoladodocofre.
Eleergueuavistaaoverseupatrãoentrar.
—Alô,Carlile,tudopreparado?
— Tudo pronto, Lord Mayfield. Os papéis estão
sobresuaescrivaninha.
Aescrivaninhaemquestãoeraumpesadomóvelde
mogno colocadode travésnumdos cantos do escritório
pertodajanela.LordMayfielddirigiu-seaelaecomeçou
asepararospapéis.
—Quemagníficanoite—insistiuaindaSirGeorge
Mr.Carlileconcordou.
—Defato.Èquaseincrível,depoisdetodaaquela
chuva.
Pondoseuficháriodelado,Mr.Carlileperguntou:
— O senhor deseja mais alguma coisa, Lord
Mayfield?
—Não,achoquenão,Carlile.Podedeixarqueeu
mesmo guardo os papéis. Você pode ir embora, ainda
vamosdemorar,
—Obrigado. Boa noite, LordMayfield. Boa noite,
SirGeorge.
—Boanoite,Carlile.
OsecretáriojáestavasaindoquandoLordMayfield
odeteve.
— Espere um instante, Carlile. Você esqueceu o
documentomaisimportante.
—Como,LordMayfield?
—Oprojetoparaobombardeiro,homemdeDeus.
Osolhosdosecretáriosearregalaram.
—Masestãologoaíemcima,LordMayfield.
—Estãocoisanenhuma.
—Masseeuospusaí.
—Vejavocêmesmo.
Com uma expressão de perplexidade no rosto o
jovemadiantou-se.LordMayfieldmostrou-lheapilhade
papéis num gesto um pouco impaciente e Carlile
examinou-o,comaperplexidadeacresceremseuolhar.
—Comovocêmesmopodever, oprojetonãoestá
aqui.
Osecretáriocomeçouagaguejar:
—Mas...mas...éincrível.Euocoloqueiaínãofaz
nemtrêsminutos.
LordMayfieldrespondeudebomhumor:
— Você deve ter cometido um engano. O projeto
deveestaraindanocofre.
—Não,tenhocerteza.Euocoloqueinamesa.
LordMayfieldafastou-ocomobraçoesedirigiuao
cofre.Sir George ajudou-o na busca, mas em poucos
minutos eles se convenceram de que o projeto do
bombardeironãoestavanocofre.
Ostrêshomensforamnovamenteàescrivaninhae
procurarammaisumavez,numaturdimento.
—MeuDeus—gritouLordMayfield.—Oprojeto
sumiu!
Mr.Carlileexclamou:
—Masé...éimpossível.
— Quem esteve neste escritório? — quis saber o
ministro?
—Ninguém,ninguém.
—Olheaqui,Carlile.Oprojetonãopodetersaído
andandosozinho.Alguémolevou.Mrs.Vanderlynesteve
aqui?
—Mrs.Vanderlyn?Não.
—Possogarantirqueéverdade—disseCarrington
farejando o ar. — Se ela estivesse aqui teria deixado o
cheirodaqueleseuperfume.
— Ninguém entrou aqui — continuou Carlile. —
Nãopossoentenderoquehouve.
—Vamospensarcomcalma,Carlile—interrompeu
Lord Mayfield. — Vamos recapitular tudo desde o
princípio. Você tem certeza absoluta de que o projeto
estava no
cofre?
—Absoluta.
—Masvocêo viuousimplesmentepresumiuque
eleestavajuntocomosoutrospapéis?
—Não,não,LordMayfield.Euovi.Euocoloquei
noaltodosoutrosdocumentos.
—Edesdeestemomento,segundovocê,ninguém
entrounoescritório.Evocê?Vocêsaiudaqui?
—Não...querodizer...sim.
—Ah— exclamouSirGeorge.—Estamos ficando
quentes.
LordMayfieldcomeçoucomarsevero:
—Quediabo...—masCarlileinterrompeu-o:
—Normalmentenemmepassariapelacabeçasair
do escritório deixando papéis importantes sobre amesa
LordMayfield,masouviumgritodemulher...
— Um grito de mulher? — espantou-se Lord
Mayfield.
— Sim. O senhor pode calcular minha surpresa.
Euacabaradepôr ospapéisnamesaquandooouvi, e
naturalmentesaíparaveroqueera.
—Eoqueera?
— Era a criada francesa deMrs. Vanderlyn. Ela
estava no meio da escada, muito branca e nervosa,
tremendotoda.Dissequetinhavistoumfantasma.
—Umfantasma?
— É. Uma mulher alta, vestida de branco, que
movia-sesemfazerbarulhoepareciaflutuarnoar.
—Quecoisamaisridícula!
— Sim, Lord Mayfield. Foi o que eu disse a ela.
Devoconfessarqueelapareciaumpoucoencabulada.Ela
continuousubindoaescadaeeuvolteiparacá.
—Háquantotempofoiisso?
—Umminutooudoisantesdosenhorentrarcom
SirGeorge.
—Equantotempovocêficouforadoescritório?
Osecretáriopensouuminstante.
—Doisminutos.Nomáximo,três.
— Tempo mais do que suficiente — resmungou
Lord Mayfield. De súbito ele tomou do braço de seu
amigo.
— George, aquela sombra que eu vi... aquela
sombra que parecia sair deste escritório. Era o ladrão,
George. Assim que Carlile saiu do escritório ele entrou
rapidamente,pegouoprojetoedesapareceu.
—Queembrulhada—disseSirGeorge.Etomando
porsuavezdobraçodoamigo:
—Eagora,Charles?Quevamosfazer?
CAPÍTULOTRÊS
—Nãocustatentar,Charles.
Erameiahoramaistarde.Osdoisamigosestavam
ainda no escritório de Lord Mayfield eSir George
procuravaconvencê-loatomarcertasprovidências.
Aprincípio LordMayfield resistiumuito,mas aos
poucoscomeçouaceder.
SirGeorgecontinuava:
—Nãosejateimoso,Charles.
LordMayfielddissedevagar:
— Por que entregarmos o caso a um estrangeiro
quenemconhecemosdireito?
— Mas eu o conheço bem. É um extraordinário
detetive.
—Hum...
— Olhe, Charles, será pelo menos uma tentativa
quefazemos.Epodemoscontarcomsuadiscrição.Seo
casosetornarpúblico...
—Quando o caso se tornar público é o que você
querdizer...
— Não necessariamente. Este homem, Hercule
Poirot...
—Chegaráaquietiraráoprojetodedentrodeuma
cartola,comoummágico?
—Eledescobriráaverdade.Eoquenósqueremos
é a verdade. Olhe, Charles, eu assumo pessoalmente a
responsabilidade.
LordMayfielddissevagarosamente:
—Bem,façacomoacharmelhor,masnãoachoque
estesujeito...
SirGeorgetomoudotelefone,nãolhedandotempo
decompletarafrase.
—Vouchamá-loagoramesmo.
—Eledeveestardormindo.
—Maspodeacordar.Temosqueagirdepressa,não
podemosdeixaraquelamulherescaparcomoprojeto.
—VocêestáfalandodeMrs.Vanderlyn?
—Claro.Ouvocêtemalgumadúvidadequeelaéa
culpada?
— Não, nenhuma. Ela me fez cair em minha
própria armadilha. É duro reconhecer que umamulher
pode ser mais esperta do que a gente. Não podemos
provarnadacontraela,massabemosambosqueelaéo
cérebroportrásdetudoisso.
— Asmulheres são infernais— disse Carrington
comconvicção.
—Nãotemosprovanenhumadequefoiela,istoé
queépior.Comoprovarqueelamandousuaempregada
gritar e que tinha um cúmplice esperando lá fora para
roubaroprojeto?
— Por istomesmo é quemandei chamar Hercule
Poirot.
LordMayfielddeuumarisadarepentina.
— Deus do céu, George, sempre pensei que você
fosseinglêsdemaisparaconfiarnumfrancês,
— Ele não é francês, é belga — desculpou-seSir
Georgeencabulado.
—Entãoquevenhaoseubelga.Venhaeponhaa
cabeça para funcionar. Aposto que não descobrirámais
doquejásabemos.
SirGeorgecomeçouadiscarsemresponder.
CAPÍTULOQUATRO
Piscando um pouco e delicadamente disfarçando
um bocejo, Hercule Poirot olhou primeiro para um e
depoisparaooutrohomem.
Eram duas e meia da manhã. Hercule Poirot
acabara de ouvir o queSir George Carrington e Lord
Mayfieldtinhamadizer,depoisdeumaviagememplena
noite num Rolls-Royce com chofer que lhe tinham
mandado.
—Estessãoosfatos,monsieurPoirot—disseLord
Mayfield.
O anfitrião recostou-se em sua cadeira e
vagarosamentecolocouomonóculo.Atravésdeleumolho
azulesagazobservavaPoirotcomatenção.Masnãoera
apenas argúcia que se podia ler naquele olhar; era
também ceticismo. Poirot por sua vez deu uma rápida
miradaemSirGeorgeCarrington.
Esteinclinara-separaafrentecomumaexpressão
deesperançaquaseinfantilnorosto.
Poirotdisse,medindoaspalavras:
— Estes são deveras os fatos. A criada grita, o
secretário sai do escritório, o ladrão semnome entra, o
projetoestáemcimadamesa,eleoapanhaedesaparece.
Osfatos...osfatossãomuitoconvenientes.
Algo no tom da voz de Poirot pareceu atrair a
atençãodeLordMayfield.Eledeixoucairomonóculoe
sentou-se mais direito, como que em estado de
alerta.
—Comodisse,monsieurPoirot?
—Eudisse,LordMayfield,queosfatossãomuito
convenientes... para o ladrão. Por falar nisto, o senhor
temcertezadequeosenhorviufoiumhomem?
LordMayfieldsacudiuacabeça.
—Nãopossogarantir.Foi... foiumasombra.Para
falaraverdade,noprimeiromomentonemtivecertezade
quehaviavistoalgo.
Poirotvirou-separaobrigadeiro:
—Eosenhor,SirGeorge?Podemedizerseeraum
homemouumamulher?
—Eunãovinada.
Poirot assentiu pensativamente. Depois ergueu-se
repentinamenteefoiàescrivaninha.
—Posso garantir-lhe que o projetonão está aí—
disse Lord Mayfield. — Nós três já o procuramos uma
porçãodevezes.
—Ostrês?Querdizerqueosecretáriotambém?
—Sim.Meusecretário,Carlile.
Poirotvirou-sedesúbito.
—Diga-me,LordMayfield,quepapelestavanoalto
dapilhaquandoosenhorsentou-seàescrivaninha?
Mayfield ergueu as sobrancelhas, procurando
lembrar-se.
—Deixe-mever...Eraaminutadeummemorando
apropósitodealgumasdenossasdefesasantiaéreas.
Poirotpegoudeumdocumentoeoexibiu.
—Esteaqui,LordMayfield?
LordMayfieldexaminou-o.
—Sim,estemesmo.
AseguirPoirotmostrouodocumentoaCarrington
—Osenhorviuestedocumentosobreamesa?
Sir George tomou do papel, segurou-o longe dos
olhosecolocouseupincenêparavê-lomelhor.
—Sim,vi.Eraoqueestavanoalto.
Poirotrecolocouopapelnaescrivaninha.Mayfield
continuavaaolhá-locomcuriosidade.
—Sehámaisalgumaquestãoaseresclarecida...—
começou.
— Sim, sim, claro que há. Carlile. Carlile é a
questão.
UmcertoruborcobriuorostodeLordMayfield.
— Deixe-me informá-lo,monsieur Poirot, que
considero Carlile acima de qualquer suspeita. Há nove
anoseleémeusecretárioparticular,comacessoatodos
osmeuspapéis,egostariadechamar-lheaatençãopara
ofatodequeelefacilmentepoderiatertiradoumacópia
doprojetosemninguémsaber.
— Compreendo seu ponto de vista — respondeu
Poirot. — Carlile não precisaria ter simulado um
roubo.
—Dequalquer forma—continuouLordMayfield
— respondo pela integridade de
Carlile.
SirGeorgeinterrompeuemtomquaseáspero:
—Carlileéinatacável.
Poirotabriuosbraços:—EestaMrs.Vanderlyn...é
atacável?
— E muito — disse Sir
George.
LordMayfieldrespondeumaiscircunspectamente:
— Creio que não pode haver dúvida das...
atividades deMrs.Vanderlyn.OMinistériodasRelações
Exteriorespoderálhedarmaisinformaçõesarespeito.
— E o senhor crê que a criada seja cúmplice da
patroa?
—Nãotenhoamenorduvida—interrompeunova
menteSirGeorge.
— É uma hipótese viável — respondeu Lord
Mayfieldemtommaiscauteloso.
Houve uma pausa. Poirot suspirou, tornou a
arranjar distraidamente um ou dois objetos sobre a
escrivaninhaeperguntou:
— Suponho que este projeto fosse valioso, não?
Querodizer,quehouvessequempagasseumbompreço
porele?
—EmumacertapartedaEuropa,sim.
—Queparte?
SirGeorgedisseonomededoispaíses.
Poirotassentiu.
—Estefatoseriaconhecidodetodos?
— Pelo menos deMrs. Vanderlyn, sem dúvida
alguma.
—Eudisse,todos?
—Sim,achoquesim.
— Qualquer pessoa com um mínimo de
inteligência?
— Sim, masmonsieur Poirot... — Lord Mayfield
começavaasemostrarpoucoàvontade.
Poirotergueuasmãos.
— Eu investigo todas as possibilidades, Lord
Mayfield.
Subitamente ele se levantou, foi até o terraço e
examinou a grama que se prolongava do jardim até a
encosta.
Osdoishomensoobservavam.
Eleentrou,sentou-seedisse:
— Diga-me, Lord Mayfield, este malfeitor
embuçado...osenhornãooperseguiu?
LordMayfielddeudeombros.
— Ao chegar ao fundo do jardim ele poderia
facilmenteescaparporumaestrada.Seestivessedecarro
estarialongenuminstante...
—Masháapolícia,apatrulharodoviária...
SirGeorgeinterrompeu-o.
—O senhor se esquece,monsieur Poirot, quenós
não queremos publicidade. Seria extremamente
desagradávelparaogovernoseaopiniãopúblicatomasse
conhecimentodequeoprojetofoiroubado.
— Claro, claro — disse Poirot. — É preciso não
esquecerlapolitique.Ossenhoresmandarammechamar
porquequeriamomáximodediscrição. Émaissimples
mesmo.
—O senhor tem esperança de solucionar o caso,
monsieur Poirot?— perguntou LordMayfield num tom
poucocrédulo.
Ohomenzinhosacudiuosombros.
—Eporquenão?Équestãoapenasdereflexão,de
raciocínio...
Elefeznovapausaedisse:
—GostariadeconversarcomMr.Carlile.
—Poisnão.—LordMayfieldergueu-se.—Pedi-lhe
queficasseporperto.Vouchamá-lo.
LordMayfielddeixouoescritório.
PoirotolhouparaSirGeorge.
—Ehbien—disse.—Quemedizosenhordeste
homemnoterraço?
— Meu caromonsieur Poirot, não me pergunte,
poisnãoovienãopoderiadescrevê-lo.
Poirotchegou-seàfrente.
—Foioqueosenhormedisse.Masaverdadeéum
poucodiferente,não?
—Oqueosenhorpretendedizer?—perguntouSir
Georgeasperamente.
— Como me explicar? Sua descrença, digamos
assim,émaisprofunda...
Sir George pareceu que ia começar a falar, mas
parou.
— Vamos— disse Poirot em tom encorajador. —
Diga-me: o senhor está ao lado de Lord Mayfield, na
extremidade do terraço. Lord Mayfield vê uma sombra
atravessarojardim.Porqueosenhornãoavê?
Carringtondesabafou.
— O senhor está certo,monsieur Poirot. Isto me
parece extraordinário. Poderia jurar que ninguém
atravessou o jardim. A princípio pensei que fosse
imaginação de Mayfield... talvez um galho de árvore.
Quando entramos e descobrimos o furto, tudo indicava
queMayfieldestavacertoeeuerrado.Masapesardisto...
Poirotsorriu.
—Apesardisto,no fundo,osenhoracreditamais
nosseusolhosdoquenosdele?
—Sim,monsieurPoirot,acredito.
—Eosenhorestácomtodarazão.
SirGeorgeperguntou:
—Nãohaviapegadasnagrama?
Poirotconcordou.
—Exatamente.LordMayfieldpensoutervistouma
sombra. Quando entrou e descobriu ter sido roubado,
aquela impressão transformou-se em certeza. Ele
convence-sedequetinhavistoumhomem.Masnãoviu.
Geralmente não dou muita importância a pegadas e
coisassemelhantes,maséimpossívelignoraraevidência.
Não havia qualquer pegada na grama. Choveu forte à
noiteeseriaimpossívelalguémterandadosobreagrama
semdeixarmarcas.
SirGeorgeencarava-ofixamente:
—Masentão...então...
—Estamosdevoltaàcasa.Àspessoasnestacasa.
Poirot calou-seao verqueaporta seabria eLord
MayfieldentravacomMr.Carlile.
Osecretárioestavaaindapálidoepreocupado,mas
tinharecuperadoumpoucododomíniodesimesmo.Ele
sentou-se dirigindo a Poirot um olhar inquiridor,
enquantoajustavaseupincenê.
— Há quanto tempo o senhor estava neste
escritórioquandoouviuogrito,monsieur?
Carlilepensoualgunsinstantes.
—Entrecincoedezminutos.
— Antes disto não tinha acontecido nada de
anormal?
—Não.
— Creio que as pessoas nesta casa passaram a
maiorpartedanoitenummesmoaposento,não?
—Sim,nasaladevisitas.
Poirotconsultouseusapontamentos.
— Sir George Carrington e sua esposa.Mrs.
Macatta.Mrs. Vanderlyn.Mr. Reggie Carrington. Lord
Mayfieldeosenhor.Estoucerto?
—Eunãoestavanasaladevisitas.Passeigrande
partedanoiteaquinoescritório.
Poirotvoltou-separaLordMayfield.
—Quemfoiprimeiroparaacama?
—CreioqueLadyJuliaCarrington.Não,pensando
bem,astrêssenhorasserecolheramjuntas.
—Easeguir?
—Mr. Carlile entrou e eu lhe disse para pôr os
papéis na escrivaninha, pois eu eSir George iríamos
examiná-losnuminstante.
—Foientãoqueosenhordecidiudarumpasseio
láfora?
—Foi.
—Mrs. Vanderlyn teria ouvido quando o senhor
dissequeiatrabalharnoescritório?
—Sim,falamosdistonapresençadela.
— Mas ela estava na sala quando o senhor deu
ordens aMr. Carlile para pôr os papéis sobre a
escrivaninha?
—Não.
—Perdoe-me,LordMayfield—interrompeuCarlile.
— Assim que o senhor falou comigo, eu ia saindo e
esbarrei emMrs. Vanderlyn, que tinha voltado para
apanharumlivro.
—Osenhorachaqueelapodeterouvido?
—Achobastantepossível.
— Ela voltou para apanhar um livro — refletiu
Poirot.—Osenhorencontrouolivroqueelaprocurava,
LordMayfield?
—Eunão.Reggieencontrou-oedeu-oaela.
— É o que poderíamos chamar o velho golpe...
melhor dizendo, o velho truque do livro. Muito útil em
geral...
—Osenhorachaquefoiproposital?
Poirotlimitou-seadardeombros.
—Depoisossenhoresvãodarumpasseioláfora.E
Mrs.Vanderlyn?
—Foiparaoquartocomseulivro.
—Eo jovemmonsieurReggie?Tambémfoiparaa
cama?
—Foi.
—EMr.Carlilevemparacá,recomeçaatrabalhar,
mas cinco ou dez minutos depois ouve um grito.
Prossiga,Mr.Carlile.Osenhorouviuumgritoefoivero
que era. Seria melhor se o senhor pudesse reproduzir
exatamentesuasações.
Mr.Carlilelevantou-seumpoucodesajeitadamente.
— Vou dar o grito — disse Poirot para ajudá-lo,
enquanto abria a boca e deixava escapar um balido
agudo.LordMayfieldvirouorostoparaesconderorisoe
Mr.Carlilemostrou-seaindamaisconstrangido.
—Allez.Adiante,vá—comandouPoirot.—Acabo
delhedarsuadeixa.
Mr. Carlile encaminhou-se a passos rígidos até a
porta, abriu-a e saiu para o corredor. Poirot seguiu-o,
comosoutrosdoisatrás.
—Osenhorfechouaportaatrásdesioudeixou-a
aberta?
—Nãome lembro comcerteza.Achoqueadeixei
aberta.
—Nãoimporta.Vamosemfrente.
Ainda constrangido,Mr. Carlile encaminhou-se
para o sopé da escada e se postou lá, olhando para
cima.
—O senhor disse que a criada estava na escada.
Emquealtura?
—Ameiaaltura.
—Epareciaperturbada?
—Muito.
—Ehbien, eu sou a criada— continuou Poirot,
correndo escada acima.—Foimais oumenos aqui que
elaestava?
—Umdegrauoudoisacima.
— Assim? — perguntou Poirot, assumindo uma
posição.
—Bem...nãopropriamente.
—Comoentão?
—Ela...elaestavacomasmãosnacabeça.
—Ah,comasmãosnacabeça.Muitointeressante
Assim?—perguntouPoiroterguendoosbraços,comas
mãossegurandoacabeçalogoacimadasorelhas.
—Assimmesmo.
—Ah.Diga-me,Mr.Carlile,acriadaébonita?
—Nãochegueiareparar.
AvozdeCarlilepareciareprimida.
—Ah,osenhornãoreparou?Masosenhoréum
moço. Os moços não reparam quando as moças são
bonitas?
—Francamente,monsieurPoirot,tudooqueposso
dizer-lheéqueeunãoreparei.
Carlile lançou um olhar agoniado ao patrão, que
respondeucomumarisada.
—Acho quemonsieurPoirotestáquerendocaçoar
devocê,Carlile.
— Eu por mim nunca deixo de reparar quando
uma moça é bonita — anunciou Poirot, descendo a
escada.
Carlile limitou-se a receber a observação com um
silênciobastantesignificativo,masPoirotnãosedeupor
achado:
—Efoientãoqueelalhedissequetinhavistoum
fantasma?
—Sim.
—Eosenhoracreditounahistória?
—Ora,francamente,monsieurPoirot.
—Nãoestouperguntandoseosenhoracreditaem
fantasmas.Estouperguntandoselhepareceuqueamoça
realmentepensavatervistoum.
—Ah,nãopossogarantir,maseladefatoparecia
muitonervosaeperturbada.
—Osenhorviuououviusuapatroa?
—Sim,parafalaraverdade,ouvi.Elasaiudeseu
quartonosegundoandarechamouamoça.
—Eentão?
—Acriadasubiucorrendoeeuvolteiaoescritório
—Enquantoosenhorestavaaquiaopédaescada
alguémpoderiaterentradonoescritóriopelaportaqueo
senhordeixouaberta?
Carlilesacudiuacabeça.
—Não,qualquerpessoateriaquepassarpormim.
Como o senhor vê, o escritório é bem ao fim deste
corredor.
Poirotconcordou,pensativo.Mr.Carlileprosseguiu
comsuavozprecisa:
— Devo dizer que felizmente para mim Lord
Mayfield viu o ladrão sair pela janela. Caso contrário,
minhaposiçãoseriamuitoesquerda.
— Tolice, meu caro Carlile — interrompeu Lord
Mayfield.Vocêestáacimadequalquersuspeita.
—Émuitabondadesuadizer isto,LordMayfield,
mas é preciso enfrentar os fatos e eu sei perfeitamente
que eles não me deixam numa boa posição. Por isto
mesmo, ficaria agradecido se minha pessoa e meus
pertencesfossemrevistados.
—Bobagem,meucaro—insistiuLordMayfield.
Poirotmurmurou:
—Osenhorpreferemesmoserrevistado?
—Semdúvidaalguma.
Poirot estudou-o por um momento e disse mais
parasi:
—Compreendo.
Depoisperguntou:
—Qual é a posição do quarto deMrs. Vanderlyn
emrelaçãoaesteescritório?
—Diretamenteacimadele.
—Comumajanelaabrindoparaoterraço?
—Sim.
Poirotbalançouacabeçamaisumavez,dizendoa
seguir:
—Vamostodosatéasaladeestar.
Ao chegar lá, Poirot circulou pelo aposento,
examinou os trincos das portas envidraçadas abrindo
paraoterraço,deuumaolhadanasanotaçõesdojogode
bridgeefinalmentedirigiu-seaLordMayfield.
—Estecasoémaiscomplicadodoqueparece,mas
umacoisaécerta:oprojetoroubadonãosaiudestacasa.
LordMayfieldolhou-ofixamente.
—MasmeucaromonsieurPoirot,ohomemqueeu
visaindodoescritório...
—Nãohaviahomemalgum.
—Masseeuovi...
—Comorespeitodevido,LordMayfield,osenhor
pensaqueoviu,masfoiapenasasombradeumgalhode
árvore.Ofatodeque,porcoincidência,tenhahavidoum
roubo pareceu-lhe prova definitiva de que o senhor
realmentetinhavistoalguém.
— Masmonsieur Poirot, o senhor quer que eu
duvidedemeusprópriosolhos...
— Sou muito mais meus olhos a qualquer
momento—interrompeuSirGeorge.
Poirotprosseguiu:
— Permita-me dizer-lhe isto com convicção
absoluta, Lord Mayfield.Ninguém atravessou aquele
terraçoacaminhodojardim.
Mr.Carlilepareciaextremamentetenso:
— Neste caso,monsieur Poirot, a suspeita cai
naturalmente sobremim. Sou aúnica pessoa que pode
tercometidooroubo.
LordMayfieldcortou-lheaspalavras:
— Tolice, já afirmei. Seja o que for quemonsieur
Poirot pense a seu respeito eu não concordo com ele.
Mais do que isso, ponho minha mão no fogo por sua
inocência.
Poirotmurmurousuavemente:
—MaseunãodissequesuspeitodeMr.Carlile.
Carlilereplicou:
— Não, mas o senhor deixou bem claro que
ninguémmaisteveaoportunidadedepraticaroroubo.
—Dutout!Dutout!
—Mas se eu lhe disse que ninguém passou por
mimnohallacaminhodoescritório.
—Concordo.Masalguémpoderiaterentradopela
portaenvidraçadadoescritório.
—Mas o senhor não acabou de garantir que isto
nãoaconteceu?
—Oqueeudisseéquenenhumestranhopoderia
ter vindo e saído sem deixar marcas no jardim. Mas o
roubo pode ter sido feito por alguém da própria casa.
Alguém poderia ter saído desta sala por uma destas
portasenvidraçadas,caminhadopeloterraço,entradono
escritórioevoltadopelomesmocaminho.
Mr.Carlilecontestou:
— Mas Lord Mayfield eSir George estavam no
terraço!
— Sim, mas caminhando.Sir George pode ter
excelentes olhos, mas não atrás de sua cabeça. O
escritório está ao fim do terraço e esta sala vem logo a
seguir,mas o terraço continua ainda pormais quantas
salas?Três,quatro?
—Saladejantar,saladebilhar,saletadevisitase
biblioteca—disseLordMayfield.
—E quantas vezes os senhores caminharampelo
terraço?
—Pelomenoscincoouseis.
— Como vêem, teria sido fácil. Bastava ao ladrão
esperaromomentooportuno.
Carlileperguntou,medindoaspalavras:
—O senhor querdizer que quando eu saí aohall
paraveroquesepassavacomacriada,o ladrãoestava
esperandonestasala?
—Éoquepenso.Masporenquantonãopassade
umahipótese.
— Hipótese que me parece pouco provável —
interrompeu Lord Mayfield — pois o risco seria muito
grande.
Obrigadeiroobjetou:
— Não concordo, Charles. Acho-a perfeitamente
possível.Devíamos ter tido obomsensodepensarnela
hámaistempo.
—Os senhores compreendem agora— continuou
Poirot — por que acho que o projeto ainda está nesta
casa.Oproblemaagoraéachá-lo.
SirGeorgebufou:
—Émuitosimples.Revistetodomundo.
LordMayfield ia protestar,masPoirot falouantes
queelepudessefazê-lo.
— Não, não, não é tão simples assim. Quem
roubou o projeto espera que demos uma busca e vai
tomar providências para que ele não seja encontrado
consigo ou entre seus pertences. O projeto deve estar
escondidonoquepoderíamoschamarterritórioneutro.
— O senhor está sugerindo que a gente procure
pelacasatoda?
Poirotsorriu.
— Não precisamos ser tão primários. Podemos
descobrir o esconderijo ou a identidade do ladrão por
dedução,oquesimplificarámuitoascoisas.Gostariade
conversar com todo mundo nesta casa amanhã de
manhã.Agoraestámuitotardeparaisto.
LordMayfieldconcordou.
— Iria atrair muito a atenção — comentou — se
arrastássemostodomundoparaforadacamaastrêsda
manhã. Mesmo amanhã de manhã o senhor deve
procedercomdiscrição,monsieurPoirot,poisocasotem
quepermaneceremsigilo.
Poirotfezumgestocomamão.
— Deixe por conta de Hercule Poirot. Minhas
mentiras são sempre sutis e convincentes. Está
combinado que iniciarei minhas investigações amanhã.
Mashojegostariadeconversarcomosenhor,SirGeorge,
eosenhor,LordMayfield.
Edizendoistofezumamesura.
—Osenhorquerdizer...separadamente?
—Exato.
LordMayfieldergueuligeiramenteassobrancelhas,
masdepoisdisse:
—Perfeitamente.Deixareiosenhoràvontadecom
SirGeorge.Quandoprecisardemimestareinoescritório.
Venha,Carlile.
LordMayfield e seu secretário saíram, fechandoa
portaatrásdesi.
SirGeorgesentou-se,puxandodocigarrocomum
gestomecânico.Tinhaumaexpressãointrigadanorosto.
—Seosenhornãomelevaamal,nãopercebosuas
intenções.
—Émuitofácildeexplicar—dissePoirotcomum
sorriso.—Emduaspalavras,parasermaispreciso:Mrs.
Vanderlyn.
— Ah, compreendo agora — disseSir George. —
Mrs.Vanderlyn?
— Precisamente. Não seria muito delicado de
minha parte fazer a Lord Mayfield a pergunta que me
interessa. Por queMrs. Vanderlyn está aqui? Todos
sabemdesuasatividades;porqueentãoconvidá-la?Só
hátrêspossibilidades.AprimeiraédequeLordMayfield
temumaquedaporela,eéporistoqueeuquisconversar
separadamente com o senhor. A segunda é queMrs.
Vanderlyn é muito amiga de algum dos outros
convidados.
—Não é omeu caso— disseSir George comum
sorriso.
— Se nem uma nem outra das hipóteses se
aplicam, voltamos ao ponto de origem. Por que chamar
Mrs.Vanderlyn?Sópodehaverumarazão.LordMayfield
desejava sua presença hoje nesta casa por um motivo
especial.Estoucerto?
SirGeorgeassentiu.
— Certíssimo. Mayfield é um solteirão muito
experimentado para cair nas artimanhas deMrs.
Vanderlyn. Ele a queria aqui por outras razões. Foi
para...
Sir George repetiu o que tinha ouvido de Lord
Mayfield.Poirotouviucomatenção.
—Compreendoagora.Masmeparecequeotirolhe
saiupelaculatra.
SirGeorgedeixouescaparumpalavrão.
Poirot observou-o um momento com expressão
divertida,depoiscontinuou:
—Osenhornãotemdúvidadequeesterouboéde
responsabilidade deMrs. Vanderlyn, quer ela tenha
tomadoneleparteativaounão?
— Não pode haver dúvida de que ela é a
responsável. Quem mais teria interesse em roubar o
projeto?
Poirotrecostou-seeolhouoteto:
— Mas,Sir George, há 15 minutos o senhor
concordava em que este projeto valemuito dinheiro. Se
alguémnestacasaestivesseemmásituaçãofinanceira?
Ooutroointerrompeucomumgrunhido.
— Quem não está, hoje em dia? Acho que posso
confessaristosemmeincriminarnoroubo.
Elesorriu.Poirotsorriu-lheeprosseguiu:
— O senhor pode dizer o que quiser,Sir George,
quenãodestruiráseuálibi.Eleétodaaprova.
— O álibi pode ser, mas financeiramente estou
quaseemapuros.
—Sim, sim, umhomem em sua posição deve ter
muitasdespesas.Aindamais comum filhona idadede
seu.
SirGeorgesuspirou:
—Auniversidadecustaumafortunaealémdisso
eleandacheiodedívidas.Masnãopensequeéummau
rapaz.
Poirot ouviu com simpatia as queixas do
brigadeiro. A pouca firmeza de ânimo da juventude, o
modoincrívelpeloqualasmãesestragamaeducaçãodos
filhos,satisfazendo-lhestodasasvontades,omalqueera
uma mulher viciada no jogo, a insensatez de fazer
apostasquenãopodiapagar.Tudoistofoiditoemtermos
muito gerais eSir George não mencionou diretamente
nemsuamulhernemseu filho,maseramuito fácil ver
quesereferiaaeles.
Eleparoudesúbito.
— Desculpe-me, não deveria estar aqui tomando
seutempocomassuntosestranhosàssuasinvestigações,
principalmenteaestahoradanoite.Ou,melhordizendo,
manhã.
Eleabafouumbocejo.
—Sugiroqueosenhorvásedeitar,SirGeorge.Sua
ajudafoiinestimável.
—É,achoquevoumesmo.Osenhoracreditaque
hápossibilidadedereavermosoprojeto?
Poirotsacudiuosombros.
— Vou tentar, e não vejo por que haveria de
fracassar.
—Bom,vouindo.Boanoite.
Elesaiudasala.
Poirot continuou sentado, estudando o teto
pensativamente. Depois tirou do bolso um pequeno
caderno de apontamentos e, procurando uma página
nova,escreveu:
Mrs.Vanderlyn?
LadyJuliaCarrington?
Mrs.Macatta?
ReggieCarrington?
Mr.Carlile?
MaisabaixoPoirotescreveu:
Mrs.VanderlyneMr.ReggieCarrington?
Mrs.VanderlyneLadyJulia?
Mrs.VanderlyneMr.Carlile?
Elebalançouacabeçadescontenteemurmurou:
—C’estplussimplequeça.
AseguirPoirotescreveualgumasfrasescurtas.
LordMayfieldterávistouma“sombra”?Senão,por
que disse que viu? Terá SirGeorge visto alguma coisa?
Ele se mostrou absolutamente seguro de que não tinha
visto nada, mas só DEPOIS que eu examinei o jardim.
Observação:LordMayfieldémíope;podelersemóculos,
masprecisadelesparaveralguémdooutroladodasala.
SirGeorge temvista cansada.Assim,paraver longe,do
outroladodoterraço,seusolhossãomelhoresqueosde
Lord Mayfield. Mas Lord Mayfield GARANTE que viu
alguma coisa, apesar de todas as afirmativas em
contráriodeseuamigo.
SeráMr.Carlile tão inocente quanto LordMayfield
acredita? Lord Mayfield o considera acima de qualquer
suspeita. Por que tanta certeza? Por que no fundo
desconfiadeseusecretárioesente-seenvergonhadopor
isto? Ou por que tem suspeitas fortes sobre uma outra
pessoa?UmaoutrapessoaquenãosejaMrs.Vanderlyn?
Poirotguardouocaderno.
Depois,levantando-se,caminhouparaoescritório.
CAPÍTULOCINCO
LordMayfieldestavasentadoemsuaescrivaninha
quando Poirot entrou. Ele voltou-se, pôs de lado sua
canetaeolhoucomexpressãointerrogativa.
—Quetal,monsieurPoirot,tevesuaconversacom
Carrington?
Poirotsorriuesentou-se.
—Sim,LordMayfield.Eleesclareceuumpontoque
estavameintrigando.
—Qual?
—ArazãoparaapresençadeMrs.Vanderlynnesta
casa.Osenhorcompreende,euchegueiajulgar...
Mayfield percebeu de imediato onde Poirot queria
chegar com sua forçada demonstração de
constrangimento.
—O senhor julgou que eu tinha uma queda por
estasenhora?Absolutamente.Longedisso.Éengraçado
queCarringtonpensasseamesmacoisa.
—Sim, eleme relatoua conversa que teve como
senhoraesterespeito.
LordMayfieldpareciapesaroso.
— Meu pequeno plano parece ter fracassado. É
embaraçoso reconhecer que uma mulher me levou a
melhor.
— Mas elaainda não lhe levou a melhor, Lord
Mayfield.
— O senhor acha que ainda podemos nos safar?
Agrada-me ouvir isto, mas não sei se posso acreditar
muito.
LordMayfielddeuumsuspiro.
—Achoquebanqueiobobo.Eestavatãosatisfeito
commeuestratagemaparadesmascararMrs.Vanderlyn!
HerculePoirotperguntou,enquantoacendiaumde
seuspequenoscigarros:
—Ecomoeraexatamenteoseuestratagema,Lord
Mayfield?
— Bem — hesitou Lord Mayfield —, não tinha
chegadoaplanejá-loemdetalhes.
—Osenhornãodiscutiuseuplanocomninguém?
—Não.
—NemmesmocomMr.Carlile?
—Não.
Poirotsorriu.
—Osenhor,semdúvida,prefereagirsozinho,Lord
Mayfield.
— Acho que em geral dá mais resultado —
respondeuooutro,umpoucocarrancudamente.
— O senhor tem razão. Não se deve confiar em
ninguém. Mas o senhor contou o caso aSir George
Carrington.
— Só porque compreendi que ele estava
preocupadocomigo.
Lord Mayfield sorriu ao dizer isto. — Ele é um
velhoamigoseu?
—Sim.Nosconhecemoshámaisde20anos.
—Esuaesposa?
—Tambémaconheçohámuitotempo.
—Mas,perdoe-meseestousendo impertinente,o
senhor tem relações de amizade tão estreitas com ela
quantotemcomSirGeorge?
— Não chego a perceber o que tem o caso em
questãocomminhasrelaçõespessoais,monsieurPoirot.
— Acho que pode ter muita coisa a ver, Lord
Mayfield.Osenhornãoconcordoucomminhateoriade
queerapossívelhaveralguémnasaladevisitas?
— Concordei. Acho mesmo que é o que deve ter
acontecido.
—Melhor não dizermosdeve.Éumapalavraque
implica muita certeza da parte de quem a diz. Mas se
minhateoriaestácerta,quemosenhorachaeraapessoa
nasaladevisitas?
— Só pode ter sidoMrs. Vanderlyn. Ela já tinha
voltadoláparaapanharumlivroepoderiainventaroutro
pretexto qualquer.Umabolsa, ouum lenço, enfimuma
destasmuitasdesculpasfemininas.Eladizasuacriada
paragritareatrairCarlileparaforadoescritório,eentão
entraesaipelaportaenvidraçada,comoosenhordisse.
—O senhor se esquece de que não pode ter sido
Mrs.Vanderlyn.Carlileouviu-achamaracriadadecima,
enquantoelefalavacomamoça.
LordMayfieldmordeuolábioinferior.
—Éverdade,tinhameesquecido.
Elepareciaaborrecido.
—Comoosenhorvê,vamosfazendoprogressos—
disse Poirot amavelmente. — Começamos com a
explicação de que um ladrão tinha vindo de fora, mas,
como eu disse logo, esta teoria era conveniente demais
paraseraceita.A seguirpassamosà tesedeumagente
estrangeiro,Mrs. Vanderlyn, mas também temos que
abandoná-la.
— O senhor inocentariaMrs . Vanderlyn por
completo?
—SópossotercertezadequeMrs.Vanderlynnão
estava na sala de visitas,mas talvez fosse um cúmplice
dela, como talvez fosse outra pessoa qualquer. Nesta
últimahipótese,temosqueacharummotivo,oporquêdo
roubo.
—Estahipótesenãoseráforçadademais,monsieur
Poirot?
—Nãovejoporquê.Agora,quemotivosexistiriam?
Temosemprimeiro lugarodinheiro.Oprojetopode ter
sido roubadopara ser vendido.Este seria omóvelmais
simples. Mas é possível que o motivo fosse algo
completamentediferente.
—Como?
Poirotdissepausadamente.
—Oroubopode ter sido feitocomopropósitode
prejudicaralguém?
—Quem?
— Mr. Carlile, talvez, pois ele seria o suspeito
imediato. Mas a razão talvez seja mais complexa. Os
homens que controlam o destino de uma nação são
extremamente vulneráveis às demonstrações de
sentimentopopular.
—Osenhorquerdizerqueoroubofoifeitocomo
objetivodemeprejudicar?
Poirotassentiu.
— Se minha memória não me engana, Lord
Mayfield,hácercadecincoanososenhoresteveemum
certo apuro, pois o acusaram de ser amigo de uma
potência européia à época altamente impopular com o
eleitoradodestepaís.
—Éverdade,monsieurPoirot.
— Não é fácil amissão de um estadista. Ele tem
que adotar a política que julga mais vantajosa para o
país,mas temaomesmo tempo que respeitar a opinião
pública.Ora,estaéfreqüentementesentimental,confusa
eerrônea,masnemporissopodeserignorada.
—Osenhorcolocaoproblemamuitobem.Estaé
sem dúvida a maldição do político: agradar a opinião
públicapormaiserradaqueelaseja.
— E creio que seu dilema era precisamente este.
Haviarumoresdequeosenhorestavaprestesanegociar
um tratado com o país em questão, o que provocou
grande ira dos jornais. Para sua felicidade o primeiro-
ministro desmentiu tudo e o senhor negou que tivesse
sequer estabelecido contato com o outro país, embora
deixasseclaroqueeraafavordefazê-lo.
—Tudoistoéverdadeiro,monsieurPoirot,maspor
quedesencavarmosopassado?
—Porqueeususpeitoquealgumdesafeto,irritado
por vê-lo sobreviver àquela crise, esteja agora tentando
lhe preparar outra. O senhor conquistou de novo a
confiançadopovoeéumdospolíticosmaisprestigiados
do momento. Dizemmesmo que o senhor deverá ser o
novoprimeiro-ministro.
—Osenhorachaqueorouboéumamanobrapara
desacreditar-me?Nãocreio.
—Tout de même, LordMayfield, o senhor ficaria
numaposiçãoesquerdasesoubessemqueoprojetopara
omaisnovobombardeirobritânicoforaroubadodurante
umfimdesemanaemqueosenhortinhacomohóspede
umacertasenhoramuitoencantadora.Umainsinuação
aqui ou ali sobre suas relações com esta dama seria o
suficienteparadesacreditá-lo.
—Ninguémlevariaessashistóriasasério.
— Meu caro Lord Mayfield, o senhor sabe muito
bem que levariam. Não é preciso muito para abalar a
confiançadopovonumhomem.
—Sim,éverdade—disseLordMayfield,parecendo
subitamente preocupado.—Meu Deus, como este caso
começa a se complicar. O senhor achamesmo... mas é
impossível...éimpossível.
—Osenhorsabesealguémlheteminveja?
—Amerahipóteseéumabsurdo.
—Absurdaounão,osenhorhádereconhecerque
minhas perguntas sobre suas relações com seus
hóspedesnãosãototalmenteirrelevantes.
—Épossível.OsenhormeperguntousobreJulia
Carrington.Nãotenhomuitooquedizer.Nuncativemos
grandesimpatiaumpelooutro.Considero-aumadestas
mulheres meio insuportáveis, extravagantes, maníacas
porbaralho.Creio que elameachamais oumenosum
novo-rico.
Poirotrespondeu:
—Procureioseunomeno“queméquem”antesde
virparacá.Osenhorfoiochefedeumafamosafirmade
engenhariaeéaliásumengenheirodeprimeiraordem.
—Nãohánadaqueignoresobreoladopráticodo
assunto,poisfizminhacarreiracomeçandodebaixo.
LordMayfieldcontinuavacarrancudo.
—U lá lá— gritou Poirot.—Souum idiota, um
completoidiota.
LordMayfieldolhou-oespantado.
—Oqueosenhordisse,monsieurPoirot?
— Eu disse que começo a desvendar o quebra-
cabeça.Aspeçascomeçamaseajustar.Sim,tudocomeça
aseajustaràsmilmaravilhas.
Lord Mayfield parecia disposto a querer detalhes,
masPoirotbalançouacabeçanegativamente.
— Não, não. Mais tarde. Preciso aclarar minhas
idéiasumpoucomais.
Eleergueu-se.
—Boanoite,LordMayfield.Achoqueseiondeestá
oprojeto.
LordMayfieldnãoseconteve:
—Sabe?Entãovamosapanhá-loimediatamente.
Poirotdenovosacudiuacabeça.
—Não,nãoqueremosprecipitações.Deixetudopor
minhaconta.
E saiu do escritório. Lord Mayfield ergueu os
ombroscomdesdém,enquantoresmungava:
—Nãopassadeumcharlatão.
Comoque,guardouseuspapéis,desligoua luze
tambémfoidormir.
CAPÍTULOSEIS
— Se houve um roubo, por que diabo o velho
Mayfield não manda chamar a polícia? — quis saber
ReggieCarrington.
Orapazafastouumpoucoacadeiradamesaonde
acabaradetomarocafédamanhã.
Eletinhasidooúltimoadescer.Seuanfitrião,Mrs.
Macatta eSir George já tinham acabado quando ele
chegou. Suamãe eMrs. Vanderlyn estavam tomando o
caféemseusquartos.
SirGeorgerepetiuorecadoquelheforapedidopor
Lord Mayfield e Poirot, mas com a desagradável
impressãode quenão estava se desincumbindobemde
suamissão.
— Muito estranho que tenham chamado este
gringo meio doido — continuou Reggie. — O que
roubaram,afinal?
—Nãoseiaocerto,meufilho.
Reggielevantou-se.Eleparecianervosoeinquieto.
— Não foi nada de importante? Documentos ou
qualquercoisaassim?
— Para ser franco com você, Reggie, não estou
autorizadoadizer-lhe.
—Entãoésegredo,hem?
Reggie começou a subir a escada, parou por um
momentodehesitação,masdepoiscontinuouebateuna
portadoquartodesuamãe.Umavozmandou-oentrar.
LadyJuliaestavasentadanacama,fazendocontas
nascostasdeumenvelope.
—Bomdia,Reggie—disseelae,aoverseurosto:
—Algodeerradocomvocê?
—Comigonada,masparecequehouveumroubo
duranteanoite.
—Umroubo?Oquefoiroubado?
—Nãosei.Tudoandaemgrandesegredo.Háuma
espéciededetetiveparticular interrogandoaspessoas lá
embaixo.
—Éincrível.
— É sobretudo desagradável — disse Reggie
pausadamente—quandoseéhóspededeumacasaonde
aconteceumacoisadestas.
—Masoqueaconteceuexatamente?
—Nãosei.Foidepoisquefomosdormir.Cuidado,
mamãe,abandejavaicair.
Ele apanhouabandejado café e colocou-anuma
mesapertodajanela.
—Roubaramdinheiro?
—Jádissequenãosei.
LadyJuliaperguntouimpassível:
— É de supor que este detetive esteja a fazer
perguntas por
aí?
—Achoquesim.
—Ondeaspessoasestavamanoitepassada?Este
tipodeperguntas?
—Provavelmente.Bem,nãoposso lhedizermuito
Fuidiretoparaacamaeadormeciimediatamente.
LadyJuliapermaneceucalada.
— Olhe, mamãe, será que você não podia me
emprestaralgumdinheiro?Estousemumtostão.
—Impossível—respondeuLadyJuliacomfirmeza.
—Minhacontanobanco já está emdéficit. Nemsei o
queseupaivaidizerquandodescobrir.
Ouviu-se uma pancada na porta eSir George
entrou.
—Ah,vocêestáaqui,Reggie.Vocêseincomodade
ir até a biblioteca?Monsieur Hercule Poirot quer falar
comvocê.
PoirotacabaradeinterrogaratemívelMrs.Macatta.
Não foram necessárias muitas perguntas para se
estabelecerqueMrs.Macattatinhaidoparaacamaantes
das onze horas e que não vira nem ouvira nada de
interessante.
Poirot entãodesviaraoassuntopara tópicosmais
pessoais. Dissera que tinha uma grande admiração por
Lord Mayfield. Que o considerava um grande homem.
MasMrs.Macatta,queeraummembrodaCâmara,teria
certamente muito mais condições de falar sobre as
qualidadesdeLordMayfield.
—Eleémuitointeligente—admitiuMrs.Macatta.
—Esefeznavidaporsimesmo.Nãodevenadaàfamília
ouamigos,mastalveztenhapoucavisão,noquealiásos
homenssãotodosparecidos.Faltaaelesaamplitudeda
imaginação feminina. Dentro de dez anos,monsieur
Poirot,asmulheresvãodominarogovernodestepaís.
Poirotdissenãoterqualquerdúvidaarespeito.
Depois, com jeito, perguntou porMrs. Vanderlyn.
Seriaverdade,comolhetinhaminsinuado,queelaeLord
Mayfielderam,digamosassim,amigosíntimos?
—Absolutamente.Parafalaraverdadesurpreendi-
meaovê-laaqui.Surpreendi-memuitomesmo.
Poirot incitouMrs. Macatta a emitir sua opinião
sobreMrs.Vanderlyn—econseguiu-a.
—Umamulherinteiramenteinútil,monsieurPoirot.
Um parasita, acima e antes de qualquer outra coisa.
Mulheres como ela me levam a ter vergonha de meu
própriosexo.
—Masoshomensaconsideramatraente?
—Oshomens.(Haviaumprofundodesprezonavoz
d eMrs. Macatta.) Os homens estão sempre caindo por
mulheres de beleza vulgar. Veja aquele rapaz, Reggie
Carrington, vermelho como um pimentão toda vez que
Mrs.Vanderlynlhedirigeapalavra.Sóumtolopoderia
acreditar nos elogios deMrs. Vanderlyn,mesmo porque
ReggieCarringtonjogabridgemuitomal.
—Oh,penseiqueelefosseumbomjogador.
—Longedisso.Fezasmaioresbobagensontemà
noite.
—Massuamãejogabem,não?
— Bem demais, em minha opinião — respondeu
Mrs. Macatta. — É quase uma profissional. Joga de
manhã,detardeedenoite.
—Eapostaalto?
—Muitoalto,altodemaisparamim.Achomesmo
queéerradoseapostartanto.
—Ecostumaganhar?
Mrs. Macatta deixou escapar um bufido de
desgosto.
—Achoqueelaprocurapagarsuasdívidascomo
bridge,masultimamente vemperdendomuitodinheiro,
peloqueouvidizer.Ontemànoiteelapareciaestarcom
sua atenção concentrada em algum outro problema. O
vício do jogo é quase tão ruim quanto o da bebida,
monsieur Poirot. Se minha autoridade neste país fosse
maior...
Poirotviu-seconstrangidoaouvirumlongosermão
sobre a degeneração damoral inglesa,masna primeira
oportunidade encerrou a conversa e mandou chamar
ReggieCarrington.
Eleexaminouorapazcomatençãoaovê-loentrar
na biblioteca. Reparou especialmente nos traços
hesitantes de seu rosto, na cabeça alongada, na
impressãogeraldefraquezaqueReggiedisfarçavasobum
sorrisoquasecativante.Poirotconheciabemotipo.
—Mr.ReggieCarrington?
—Sim.Possolheserútil?
—Diga-me por favor tudo que sabe a respeito de
ontemànoite.
— Deixe-me ver... Jogamos bridge, na sala de
visitas.Depoisfuiparaacama.
—Aquehoras?
—Poucoantesdasonze.Oroubofoidepois,não?
—Sim,depois.Osenhornãoviuououviunada?
Reggiebalançouacabeçapesarosamente.
—Infelizmentenão.Fuidiretoparaacamaedormi
comoumapedra.
—Aosairdasaladevisitasosenhorfoidiretopara
seuquartoeficouláanoiteinteira?
—Sim.
—Écurioso—dissePoirot.
—Curioso?Oqueécurioso?—quissaberReggie
vivamente.
—Osenhornãoouviuumgrito?
—Não,nãoouvi.
—Émuitocurioso.
—Olhe aqui, o senhor pode ter a bondade de se
explicarmelhor?
—Seráqueosenhoréumpoucosurdo?
—Claroquenão.
OslábiosdePoirotmoveram-se,maselenãofalou
nada. É possível que estivesse dizendo consigo mesmo,
pela terceira vez, a palavracurioso. Finalmente,
continuou:
—Bem,muitoobrigado,Mr,Carrington.Ésó.
Reggielevantou-seirresolutamente.
— O senhor sabe, é capaz que eu tenha ouvido
algumacoisa...
—Ah,ouviu?
—Sim,mas o senhor sabe... eu estava lendoum
livro, uma história de detetive, para dizer a verdade, e
eu...bem,nãochegueiaperceberbemquebarulhoera
—Ah—dissePoirot,comexpressãoimpassível—
umaexplicaçãomuitoconvincente.
Reggie continuava a hesitar Virou-se, caminhou
vagarosamente em direção à porta, e finalmente
perguntou
—Hum,oquefoiroubado?
—Algo de grande valor,Mr.Carrington.É tudoo
quepossodizer.
—Oh!—fezReggie,desconcertado.
Esaiudabiblioteca.
Poirotbalançavaacabeça.
—Aspeçasseajustam—murmurou.—Aspeças
seajustammuitobem.
Eletocouacampainhaeperguntoupolidamentese
Mrs.Vanderlynjátinhaselevantado.
CAPÍTULOSETE
Mrs. Vanderlyn entrou na biblioteca com a
majestadedequemsesabebela.Estavavestidacomum
costume esportivo castanho avermelhado que realçava a
tonalidadeclaradeseuscabelos.Deixou-sedeslizarpara
uma cadeira enquanto dava um sorriso cativante ao
homenzinhoemfrente.
Por um instante fugidio o sorriso mostrou algo
maisquepassavapelacabeçadeMrs.Vanderlyn—talvez
triunfo, talvez zombaria.Nãodemorouquasenada,mas
tinhaestadolá.Poirotconsiderouofatointeressante.
— Ladrões? Ontem à noite? Que coisa horrível!
Eu?Não,eunãoouvinada.Eapolícia?Seráqueelanão
poderáfazernada?
Novamente, e também apenas por um instante, a
zombariatranspareceuemseusolhos.
HerculePoirotpensou:
“É óbvio que você não está commedo da polícia,
minha cara. Você sabe muito bem que ela não vai ser
chamada.”
Edacertezadequeelasabiadisso,queconclusão
podiatirarPoirot?
Emvozalta,falou:
—A senhora compreende,madame,estecasotem
quesertratadocomamaiordiscrição.
—Sim,sim,claro,monsieur...monsieurPoirot,não
é mesmo o seu nome? Pode contar com toda minha
colaboração.AdmiroLordMayfieldenormementeejamais
fariaalgumacoisaquepudesseprejudicá-lo.
Elacruzouaspernas,mostrandodelicadossapatos
marronsdesaltobaixo.
Ela sorriu, um sorriso irresistível e amistoso, um
sorrisodeótimasaúdeemuitasatisfação.
—Gostariamuitodepoderajudá-lo.
— Agradecido,madame. A senhora jogou bridge
ontemànoitenasaladevisitas?
—Sim.
— É verdade que em seguida as senhoras foram
dormir?
—Éverdade.
—Masalguémvoltouparaapanharumlivro.Foia
senhora,não?
—Sim,eufuiaprimeiraavoltar.
—Oqueasenhoraquerdizercomesteaprimeira?
—perguntouPoirotvivamente.
— Eu voltei imediatamente — explicouMrs.
Vanderlyn.—Entãofuidenovoparameuquartoetoquei
asineta,chamandominhacriada,quedemoroumuitoa
atender.Chameidenovo,depoisfuiatéquaseopatamar.
Ouvisuavozeachamei.Elaestavanervosaeembaraçou
meuscabeloscomaescovaumaouduasvezesenquanto
mepenteava.Foientão,aomandá-laemboranovamente,
que vi Lady Julia subindo a escada. Ela me disse que
tinha tornado a descer para apanharum livro também.
Curioso,não?
Mrs. Vanderlyn sorriu ao acabar de falar, um
sorrisodeespertezafelina.HerculePoirotpensouconsigo
mesmo que Mrs. Vanderlyn não gostava de Lady Julia
Carrington.
— Realmente,madame.Diga-me,asenhoraouviu
suacriadagritar?
—Sim,algoquemepareceuumgrito.
—Easenhoraperguntou-lheporquegritara?
—Sim,elamedissequeviraumvultodebrancoa
flutuar...umabobagemassim.
—QuevestidoLadyJuliaestavausando?
— O senhor acha que... Sim, compreendo. Lady
Juliaestavausandoumvestidobranco.Éclaro,éoque
deveterocorrido.EladevetervistoovultodeLadyJulia,
no escuro, com um vestido branco. Estas criadas são
terrivelmentesupersticiosas.
—Suacriadatemestadocomasenhorahámuito
tempo?
— Não — respondeuMrs. Vanderlyn. — Há uns
cincomesesapenas.
— Gostaria de conversar com ela agora, se a
senhoranãoseincomoda.
Mrs.Vanderlynergueuassobrancelhas.
—Poisnão—respondeuumtantofriamente.
—Asenhoracompreende,eugostariadeinterrogá-
la.
— Pois não — a sombra de zombaria voltou a
passaremseurosto.
Poirotlevantou-seecortejou.
—Souseumaisprofundoadmirador,madame.
Pela primeira vezMrs.Vanderlynpareceupoucoà
vontade.
— Muita gentileza sua,monsieur Poirot, mas por
quê?
— Porque sua autoconfiança é verdadeiramente
enorme.
Mrs.Vanderlyndeuumrisoemquehaviaumcerto
nervosismo.
—Devotomaristocomoumcumprimento?
—Talvezcomoumaadvertência...paranãoencarar
avidacomarrogância.
Mrs. Vanderlyn voltou a rir commais segurança,
enquantolevantava-seelheestendiaamão.
— Meu caromonsieur Poirot, desejo-lhe êxito em
suamissão.Muitoagradecidapelascoisasgentisqueme
disse.
É saiu da biblioteca. Poirot murmurou consigo
mesmo:
— Deseja-me sucesso, hem? Ah, mas a senhora
estácertadequeeunãovoutersucesso.Eistomeirrita
muito.
Comumgesto ligeiramentepetulantePoirot tocou
acampainhaepediuquemademoiselleLeonieentrasse.
Seusolhossedemoraramapreciativamentesobrea
moça enquanto ela esperava hesitante no vão da porta,
muito recatada em seu vestido negro, com seu cabelo
negroeonduladomuitobemrepartido.Elaconservavaos
olhosbaixos.Poirotpareciasatisfeitocomoquevia.
—Entre,mademoiselleLeonie—disseele.—Não
tenhamedo.
Elaentrouecontinuoudepéemfrenteaele,com
seuarmodesto.
—Asenhoritasabe—dissePoirot,mudandodere-
penteseutomdevoz—queeuaachomuitobonitinha?
A reação de Leonie foi imediata. Ela dardejou-lhe
umarápidamiradacomocantodosolhosemurmurou
emvozsuave:
—Osenhorémuitogentil.
— Agora veja a senhorita— continuou Poirot.—
PergunteiaMr.Carlileseasenhoritaerabonitaeeleme
respondeuquenãosabe.
Leonieergueuoqueixoemsinaldedesprezo.
—Aquelepaspalhão.
—Achoqueapalavraodescrevemuitobem.
—Achoqueelenuncaolhouparaumagarotaem
suavida.
—Éprovável.E éumapena,pois elenão sabeo
quetemperdido.Masháoutrosnestacasaqueapreciam
melhorobelo,não?
—Nãocompreendoondeosenhorquerchegar.
— Compreende muito bem,mademoiselle Leonie.
Falodaquelabela fábulaquea senhorita criouontemà
noite a propósito de um fantasma. Assim que me
disseram que a senhorita estava lá com as mãos na
cabeça, vi logo quenãohavia fantasmaalgum.Quando
umamoçatomaumsustoelalevaasmãosaocoração,ou
àboca,paraabafarumgrito.Massesuasmãosestãona
cabeça, então o motivo é completamente diferente. É
porque seu cabelo foi despenteado e ela o está
arranjandorapidamente.Vamos,mademoiselle,conte-me
averdade.Porqueasenhoritagritouontemànoite?
— Masmonsieur eu já lhe disse, vi um vulto
deslizandodebranco...
—Mademoiselle, não insulte minha inteligência.
EstahistóriapodetersidoboaparaMr.Carlile,masnão
serve paramonsieur Poirot. A verdade é que alguém
acabaradelhedarumbeijo.Evoudarumpalpite:foiMr.
ReggieCarrington.
Leoniepiscou-lhecomarmaroto.
—Ehbien,quemalhánumbeijo?
— Nenhum, de fato — respondeu Poirot,
galantemente.
—Osenhorsabe,elemepegoudesurpresaeme
segurou pela cintura. Foi por isto que eu gritei. Se eu
soubesse que ele ia me beijar então naturalmente não
teriagritado.
—Naturalmente—concordouPoirot.
—Maseleveiocomoumgato.Eentãoaportado
escritório se abriu e surgiumonsieur le secrétaire eMr.
Carrington desapareceu escada acima, deixando-me lá
comouma idiota.Eu tinhaque inventarumadesculpa,
especialmenteparaum...um...—elahesitouecontinuou
em francês —un jeune homme comme ça, tellement
commeilfaut.
—Foientãoqueasenhoritainventouofantasma?
—Foiaprimeiracoisaquemeocorreu.Umafigura
vestida de branco, que flutuava. É ridículo, mas o que
maispoderiaeufazer?
— Nada, realmente. Finalmente está tudo
explicado.Eudesconfiavadesdeocomeço.
Leoniedeu-lheumolharprovocativo.
—Osenhorémuitointeligente,emuitosimpático.
—E comonão pretendo contar a ninguémnosso
segredo,achoqueempagaasenhoritapoderiamefazer
umpequenofavor.
—Commuitoprazer,monsieur.
—O que a senhorita sabe das atividades de sua
patroa?
Amoçadeudeombros.
— Não muito,monsieur. Mas tenho minhas
suspeitas.
—Equesuspeitassãoessas?
—Bem, já percebi que os amigosdemadame são
todosoficiaisdaMarinha,doExércitooudaAeronáutica.
Eháalgunsoutros,estrangeiros,quevêmvê-la,algumas
vezesquaseàsescondidas.Madameébonita,emboraeu
achequesuabelezanãovádurarmuitomaistempo,mas
os jovens se deslumbram com ela. Desconfio que
algumas vezes eles falam demais. Mas é só uma
impressãominha,poismadamenãomediznada.
— A senhora quer dizer que sua patroa gosta de
agirsozinha?
—Precisamente,monsieur.
— Em outras palavras, a senhorita não pode me
ajudar.
—Receioquenão,masgostaria,sepossível.
—Diga-me,suapatroaestádebomhumorhoje?
—Muito,monsieur.
— A senhorita acha que aconteceu alguma coisa
queaalegrouparticularmente?
—Elatemestadoassimdesdequechegouaqui.
—Bem,Leonie,ninguémmelhordoquevocêpara
saber.
Amoçarespondeucomsegurança:
— Sim,monsieur. Tenho certeza absoluta, pois
conheçomuitobemotemperamentodemadame.Elaestá
emexcelentedisposição.
—Asenhoritadiriatriunfante?
— A palavra não poderia ser mais adequada,
monsieur.
Poirotpareciadeprimido.
—Istomeirritamuito,masquefazer?Éinevitável.
Obrigado,mademoiselle,istoétudo.
Leonielançou-lheumolharatrevido.
— Obrigada,monsieur. Se eu encontrá-lo na
escada,podetercertezaquenãovougritar.
— Minha jovem — respondeu o detetive com
dignidade—,souumhomemdeidademadura.Porque
perderiameutempocomestasfrivolidades?
Leoniesaiucomumapequenarisada.
Poirot caminhou pela biblioteca, com uma
expressãogravenorosto.Porfim,dissealto:
— E agora, vamos a Lady Julia. Que terá ela a
dizer?
LadyJuliaentroucomumardedignidadeserena.
SaudouPoirotcomacabeça,aceitouacadeiraqueelelhe
ofereciaefaloucomvozbemmodulada:
— Lord Mayfield me disse que o senhor tinha
algumasperguntasafazer.
—Sim,madame,sobreanoitepassada.
— E o que o senhor quer saber sobre ontem à
noite?
—Oquesepassouquandoasenhoraacabouseu
jogodebridge?
—Meumarido achou que era tarde demais para
começaroutrapartidaeeuentãofuiparameuquarto.
—Eentão?
—Entãofuidormir.
—Só?
—Só. Sinto que não tenha nada de interessante
paracontar-lhe.Quandohouveeste...esteroubo?
—Poucodepoisdasenhorasubir.
—Compreendo.Eoquefoiroubado?
—Documentosparticulares,madame.
—Documentosimportantes?
—Muitoimportantes.
Elafranziuorostoeperguntou:
—Eram...valiosos?
—Tinhamumgrandevaloremdinheiro,seéoque
asenhoraquersaber.
—Compreendo.
HouveumapequenapausaePoirotperguntou:
—Eseulivro,madame?
—Meulivro?Elapareciaperplexa.
— Sim.Mrs. Vanderlyn me disse que a senhora
desceudenovoparaapanharumlivro.
—Ah,sim,claro.Temrazão.
—Entãoaverdadeéqueasenhoranão foidireto
para a cama quando se recolheu a seu quarto, não? A
senhoravoltouàsaladevisitas,não?
—Éverdade.Tinhameesquecido.
— Enquanto apanhava seu livro, ouviu alguém
gritar?
—Não...sim...Achoquenão.
— Certamente a senhora não pode deixar de ter
ouvidoogritoquandovoltouàsaladevisitas.
LadyJulialevantouacabeçaedissecomfirmeza:
—Nãoouvinada.
Poirot ergueu as sobrancelhas, mas não disse
nada.
O silêncio começou a ficar pesado. Lady Julia
perguntoubruscamente:
—Eoqueéqueestásendofeito?
— Sendo feito? Não sei onde a senhora quer
chegar,madame.
—Querodizer,sobreoroubo.Apolíciadeveestar
fazendoalgumacoisa.
Poirotsacudiuacabeça.
—A polícia não foi chamada.Eu fui encarregado
docaso.
Elaolhava-ofixamente,comnervosismonafacepá-
lida. Seus olhos escuros procuravam penetrar sua
impassibilidade.
Finalmente,elabaixouosolhos,derrotada.
—Osenhornãopodemedizeroqueestáfazendo
parasolucionarocaso?
—Sópossolheassegurar,madame,quenãoestou
deixandopedrasobrepedra.
—Parapegaroladrão...ourecuperarospapéis?
—Oprincipalérecuperarospapéis.
Os modos de Lady Julia se alteraram. Ela agora
pareciaindiferente.
—Creioqueosenhortemrazão.
Houveoutrosilêncio.
— O senhor ainda precisa de mim,monsieur
Poirot?
— Não,madame. Não desejo tomar mais o seu
tempo.
—Obrigada.
Poirot abriu a porta. Lady Julia saiu sem olhar
paraele.
Odetetive voltouà lareira e começoua rearrumar
os diversos ornamentos sobre o consolo. Ainda estava
entregueaestatarefaquandoLordMayfieldentroupela
portaenvidraçada,
—Eentão?
— Acho que tudo está correndo bem. As peças
estão se ajustando como eu
pensava.
LordMayfieldolhava-ocomatenção.
—Osenhormeparececontente.
—Contentenãopropriamente,massatisfeito.
—Nãocompreendo,monsieurPoirot.
—Nãosouocharlatãoqueosenhorpensa.
—Eununcadisse...
—Nuncadisse,maspensou.Nãofazmal,nãome
ofendi.Àsvezessouobrigadoaadotarumacertapose.
LordMayfieldolhava-ocomcertasuspeita.Hercule
Poirot era um homem que ele não conseguia
compreender.Sentiavontadedemenosprezá-lo,masalgo
lhe dizia que aquele homenzinho estranho não era tão
inútil quanto parecia. Charles McLaughlin sempre
souberareconheceracapacidadealheia.
—Bem— acabou por dizer—, estamos em suas
mãos.Oquedevemosfazeragora?
—Osenhorpodeselivrardeseushóspedes?
—Achoquepoderiadarumjeito.Possodizerque
tenho que ir a Londres por causa deste roubo. Eles
provavelmentesedisporãoavoltarparacasa.
—Ótimo.Vejaseconseguearranjarascoisasdesta
LordMayfieldhesitou.
—Osenhornãoachaquetalvez...
—Tenhocertezaqueestaéamelhorcoisaafazer.
LordMayfieldsacudiuosombros.
—Seosenhorquermesmoassim...
Esaiudabiblioteca.
CAPÍTULOOITO
Os hóspedes saíram depois do almoço.Mrs.
Vanderlyn eMrs.Macatta foramde trem, osCarrington
em seu carro particular. Poirot estava em pé nohall
quandoMrs.Vanderlyndespediu-seamavelmentedeseu
anfitrião.
—Lastimoimensamenteoqueaconteceueespero
quetudoaindaacabebem.Podetercertezaquenãodirei
umapalavrasobreoquesepassou.
Eladeu-lheumapertodemãoedirigiu-seaoRolls
Royceque esperavapara levá-la à estação.Mrs.Macatta
jáestavadentrodocarro.Suadespedidatinhasidocurta
epoucocalorosa.
MasderepenteLeonie,quecomeçaraasesentarao
ladodochofer,saltoucorrendo.
— Uma das maletas de madame está faltando —
exclamou.
Houveumabuscaapressada.PorfimLordMayfield
descobriuamaletapertodeumaarcadecarvalho,num
cantoescuro.Leoniedeuumpequenogritodealegria e
voltouaocarro.
Mas foiavezdeMrs.Vanderlynpôracabeça fora
dajanela.
— Lord Mayfield, Lord Mayfield! O senhor se
incomodaria de pôr esta carta na sua caixa-postal para
mim? Se eu deixar para colocá-la no correio na cidade
vouacabarmeesquecendo.Ascartassempreficamdiase
dias em minha
bolsa.
Sir George Carrington olhava nervosamente o seu
relógio.Eraummaníacodapontualidade.
— Elas estão se arriscando — murmurou. — Se
nãoandaremdepressa,vãoacabarperdendootrem.
Suamulherdissecomirritação:
—Deixedeimplicância,George.Afinaldecontasé
otremdelas,nãoonosso.
Eleolhou-acomardecensura.
O Rolls finalmente partiu, enquanto Reggie
chegavacomoMorrisdafamília.
—Tudopronto,papai—chamou.
Os criados começaram a pôr a bagagem dos
Carringtonnamala.
Poirot aproximou-se do carro, aparentemente
interessadoemobservaraarrumação.
De repente ela sentiu uma mão pousar em seu
braço.EraLadyJulia,quepareciaagitada.
—Monsieur Poirot, preciso falar com o senhor...
imediatamente.
Edizendoistoconduziu-oaumasaletadevisitas,
fechandoaporta.
— É verdade o que o senhor disse? Que a
descoberta dos papéis é o que mais interessa a Lord
Mayfield?
Poirotolhou-acomcuriosidade.
—Éverdade,madame.
—Seospapéis lhe fossementregues,osenhoros
daria de volta a Lord Mayfield sem fazer perguntas? O
casoestariaencerrado?
—Creioquenãocompreendobemondeasenhora
querchegar.
— Acho que o senhor compreende sim. Estou
pedindoqueaidentidadedoladrãocontinueemsegredo
seospapéisforemdevolvidos.
Poirotperguntou:
—Equandoseriaisso,madame?
—Dentrodenomáximo12horas.
— A senhora garante que os papéis serão
devolvidosnesteprazo?
—Garanto.
Comoeleficassecalado,elainsistiu:
—Eosenhorgarantequeocasoseráencerrado?
Elerespondeuafinal,emtomsolene:
—Sim,madame,garanto.
—Entãoestácombinado.
Ela saiu abruptamente. Momentos depois Poirot
ouviaocarroseafastar.
Ele atravessou ohall e se encaminhou para o
escritório. Lord Mayfield ergueu os olhos ao ouvi-lo
entrar.
—Eentão?
Poirotabriuosbraços.
—Ocasoestáencerrado,LordMayfield.
—Oquê?
Poirotcontou-lheoqueacabavadesepassarcom
LadyJulia.
LordMayfieldencarava-oestupefato.
—Masoquequerdizeristo?Nãocompreendo.
— É bastante claro, não? Lady Julia sabe quem
roubouoprojeto.
—Osenhorestátalvezinsinuandoqueelamesma
oroubou?
—Deformaalguma.LadyJuliapodeserviciadano
jogo, mas não é uma ladra. Se ela ofereceu-se para
devolver os papéis é porque está convencida que eles
foramlevadosporseumaridoouporseufilho.SirGeorge
nãopodeser,porqueestavacomosenhornoterraço.Isto
nos deixa com o filho. Acho que posso reconstruir os
acontecimentos de ontem à noite com grande precisão.
LadyJuliafoiaoquartodeseufilhoeencontrou-ovazio.
Veio então ao andar de baixo procurá-lo e não o
encontrou. Esta manhã, ao ouvir falar do roubo, ouve
também seu filho dizer que foidireto para a cama. Ela
sabe que é mentira. E sabe mais ainda. Sabe que ele
precisa muito de dinheiro e tem um caráter fraco.
Reparou no seu deslumbramento comMrs. Vanderlyn
duranteojantaremaistardenamesadejogo.Tudolhe
parece claro —Mrs. Vanderlyn convenceu Reggie a
roubaroprojeto.MasLadyJuliaestádecididaaintervir.
VaiapertarReggie,tomar-lheospapéisedevolvê-los.
—Maséimpossível!—exclamouLordMayfield.
—Sim,éimpossível,masLadyJulianãosabe.Ela
nãosabeoqueeu,HerculePoirot,sei.Elanãosabeque
seu filhonãoestavaroubandonenhumprojetoontemà
noite, mas sim namorando a criada francesa deMrs.
Vanderlyn.
—Elaestácompletamenteiludida!
—Exatamente.
—Eocasoportantonãoestáencerrado!
—Estásim,estáencerrado.Eu,HerculePoirot,sei
averdade.Osenhornãomeacreditouontemquandoeu
lhedissequesabiaondeoprojetoestava.Maseusabia
Ele.estavabempertodenós.
—Onde?
—Noseubolso.
Houveumsilêncio.DepoisLordMayfielddisse:
— O senhor sabe o que está falando,monsieur
Poirot?
— Sei. Sei que estou falando com um homem
muito inteligente.Desdeocomeçoacheiestranhoqueo
senhor,sabidamentemíope,pudessetertantacertezade
tervistoumasombrasaindodajanela.Osenhorqueria
que todos acreditássemos, pois aquela solução lhe era
conveniente.Masporquê?Maistardefuieliminandoum
a um os diversos suspeitos.Mrs. Vanderlyn estava no
andar de cima,Sir George estava no terraço com o
senhor,ReggieCarringtonestavacomacriadanaescada,
Mrs, Macatta estava inocentemente em seu quarto (é
pegado ao do caseiro e ela roncou a noite toda), Lady
Julia estava visivelmente desconfiada de seu filho. Só
restavam duas possibilidades. Ou Carlile não pusera o
projeto na mesa e sim em seu bolso (e isto não seria
razoável,porque,comoosenhormesmodisse,elepoderia
facilmente ter tiradoumacópia), ou então... ou então o
projetoestavaemcimadaescrivaninhaquandoosenhor
entrounasalaeoúnicolugarparaondeelepoderiater
idoeraseubolso.Tudoseexplicava—suainsistênciaem
tervistoumapessoa,suacertezanainocênciadeCarlile,
suapoucainclinaçãoamechamarparainvestigarocaso.
— Apenas uma coisa me intrigava — continuou
Poirot. — O motivo. Eu estava convencido de que o
senhor eraumhomem íntegro ehonesto e isto se fazia
bem visível em sua preocupação de não incriminar
ninguémpelo roubo.Era tambémevidente queo roubo
doprojetopoderiaprejudicarsuacarreira.Porqueentão
este roubo injustificável? Mas finalmente atinei com a
resposta. A grande crise em sua vida, há alguns anos,
com o primeiro-ministro garantindo à opinião pública
que o senhor não conduzira negociação alguma com a
potência estrangeira. Suponha que não fosse
completamente verdade, que houvesse alguma prova —
umacarta,talvez—mostrandoqueosenhortinhafeito
aquiloquenegava.Suanegativaseimpunhanointeresse
nacional, mas o homem comum não compreenderia. E
assim,agoraquesuahoradesetornarprimeiro-ministro
se aproxima, um eco do passado voltaria para arruinar
tudo.Poirotfezumapausaecontinuou:
— Desconfio que a carta ficou em poder de um
certo governo e que este governo acenou-lhe com um
negócio: a carta em troca do projeto do bombardeiro.
Outroshomens teriam recusado,mas o senhor aceitou.
Mrs. Vanderlyn seria o intermediário e veio aqui para
concluiratroca.Osenhorsetraiuquandomedissenão
ternenhumestratagemaespecificamenteconcebidopara
desmascará-la.Comistosuajustificativaparaapresença
deMrs.Vanderlynnestacasase tornavamuito fraca.O
senhor planejou o roubo. Fingiu ter visto o ladrão no
terraço, afastandoassimas suspeitasdeCarlile.Mesmo
que ele não tivesse saído do escritório, a mesa era tão
perto da porta envidraçada que um ladrão poderia ter
levado o projeto enquanto Carlile estava de costas,
ocupado com o cofre. O senhor encaminhou-se para a
escrivaninha,pôsoprojetonobolsoeodeixou láatéo
momento em que, como tinha combinado comMrs.
Vanderlyn,osenhorocolocouemsuamaleta.Emtroca
elalheentregouacartafatídica,disfarçadaemcartadela
mesmaqueelatemiaesquecerdepôrnocorreio.
Poirotparou.
LordMayfielddisse:
—Seuconhecimentosobreocasonãopoderiaser
maiscompleto,monsieurPoirot.Osenhordevemeachar
umpatifeinominável.
Poirotfezumgestorápido.
—Não,não,LordMayfield.Euachoque,como já
disse, o senhor é um homem muito inteligente.
Compreenditudoontemànoiteenquantoconversávamos
aqui mesmo no escritório. O senhor é um excelente
engenheiro.Poristohaveráumaouduasalteraçõessutis
no projeto roubado, alterações feitas com tanta perícia
queninguémcompreenderáporqueobombardeironão
funcionatãobemquantodeveria.Tenhocertezadequea
potência estrangeira de que estamos falando vai ter um
grandedesapontamentocomonovoaparelho...
HouveoutrosilêncioeaseguirLordMayfielddisse:
— O senhor é extremamente sagaz,monsieur
Poirot.Peço-lheapenasqueacreditenumacoisa.Tenho
confiança em mim mesmo. Sei que sou o homem
indicadoparaconduzira Inglaterraatravésdacriseque
se avizinha. Se eunão acreditasse com sinceridade que
souohomemdequemmeupaísprecisa,nãoteriafeitoo
quefiz,conciliandointeressesesalvandominhacarreira
atravésdeumardil.
—MeucaroLordMayfield—respondeuPoirot—,
se o senhornão soubesse conciliar interesses, o senhor
nãopoderiaserumpolítico!
OEspelhodoMorto
CAPÍTULOUM
Oapartamento eramodernoe osmóveis também,
com poltronas quadradas e cadeiras de espaldar reto.
Uma escrivaninha estava colocada em frente à janela e
nelasentava-seumhomempequeno,demeia-idade.Sua
cabeçaerapraticamenteaúnicacoisaemtodooaposento
quenãoeraquadrada:aocontrário,erabemoval.
MonsieurHerculePoirotestavalendoumacarta:
“HamboroughClose,
HamboroughSt.Mary
Westshire.
24desetembrode1936
MonsieurHerculePoirot.
Meu caro senhor. Escrevo-lhe a propósito de um
assunto que exige grande discrição e habilidade. Tenho
tido boas referências de seu trabalho e portanto decidi
entregar-lhe o caso. Tenho razões para acreditar que
esteja sendo vítima de uma fraude, mas por razões de
família prefiro não chamar a polícia. Estou tomando
algumas providências por conta própria, mas o senhor
deve estar preparado para pôr-se imediatamente a
caminho, tão logo receba um telegrama. Ficaria
agradecidoseosenhornãorespondesseaestacarta.
Atenciosamente,
GervaseChevenix-Gore.”
As sobrancelhas demonsieur Hercule Poirot
começaramaerguer-se,eergueram-setantoquequasese
juntaramaocabelo.
— E quem, afinal de contas, é este Gervase
Chevenix-Gore?—perguntoueleàsparedes.
Em busca da resposta, encaminhou-se a uma
estante,deondetirouumlivrograndeegrosso.
Poirotencontrouoquequeriacomfacilidade.
“Chevenix-Gore,Sir Gervase Francis Xavier, 10.°
baronete, título criado em 1864; ex-capitão do 17.°
Regimento de Lanceiros; nascido no dia 18 demaio de
1878;filhomaisvelhodeSirChevenix-Gore,9.°baronete,
e de Lady Claudia Bretherton, segunda filha do oitavo
condedeWallingford.Sucedeuopaiem1911;casou-se
em 1912 com Vanda Elizabeth, filha mais velha do
coronel Frederick Arbuthnot (veja verbete próprio);
educado em Eton. Lutou na Guerra de 1914-1918.
Hobbies: viagens, caçadas. Endereços: Hamborough St.
Mary,Westshire, e LowndesSquare 218, S.W.l. Clubes:
Cavalry,Travellers.”
Poirot sacudiu a cabeça um tanto ou quanto
insatisfeito.Poralgumtempoficouassim,imersoemseus
pensamentos,masdepoisdirigiu-seàescrivaninha,abriu
umagavetaetiroudelaumapequenapilhadecartõesde
visita.
Suafacealegrou-se.
—A labonneheure!Eradoqueeuprecisava.Ele
vaiestarlásemfalta.
Poirot foi saudadoporumaduquesa comsotaque
afetado.
— Alegro-me que o senhor tenha podido vir,
monsieurPoirot.Éumgrandeprazer.
—Oprazer émeu,madame—murmurouPoirot,
comumamesura.
Eledriblouhabilmentepersonalidadesimportantes
—um famosodiplomata,umaatriz nãomenos famosa,
umpardo reinomuito conhecido—eafinal encontrou
quemprocurava:Mr.Satterthwaite,personagemhabitual
dasfestaselegantes.
Mr.Satterthwaitechilreouamavelmente.
— Nossa querida duquesa... suas festas são
ótimas...Elatemtantacategoria,seosenhorsabeoque
quero dizer. Vimo-nos muito na Córsega, há alguns
anos...
A conversação deMr. Satterthwaite era sempre
assim, cheia de referências a seus amigos nobres. É
possível que alguma vez na vida ele tenha encontrado
prazernacompanhiademerosmortais,masneste caso
não chegava a mencionar o fato. Mas descrevê-lo como
ummeroesnobeerafazer-lheinjustiça.Mr.Satterthwaite
eraumobservadoragudodanaturezahumanaepoucos
estudiososconheceriamtãobemquantoeleomundoda
aristocraciabritânica.
—MeucaroPoirot,hámuitotemponãonosvemos.
Sempreconsidereiumprivilégio terpodidoacompanhar
seu trabalho em Crow’s Nest. Desde então passei ame
considerar também uma espécie de detetive. Por
coincidência, vi Lady Mary ainda na semana passada.
Umacriaturaencantadora...verbenasealfazema!
Mr. Satterthwaite ocupou-se ainda deumoudois
escândalos recentes — as escapadas da filha de um
conde,acondutalamentáveldeumvisconde—,atéque
Poirot conseguiu introduzir na conversa o nome de
GervaseChevenix-Gore.
AreaçãodeMr.Satterthwaitefoiimediata.
—Ah,eisaíumapersonalidaderealmentecuriosa.
SeuapelidoéoÚltimodosBaronetes.
—Perdão,masnãoentendo.
Mr. Satterthwaite mostrou-se afavelmente
indulgente ante a compreensão inferior de um
estrangeiro.
—Éumapiada,monsieurPoirot,umapiada.Não
quis dizer que ele seja o último baronete na Inglaterra,
mas simque ele representa o fimdeuma era, oúltimo
dosbaronetestemerárioseinsensatostãopopularesnos
romancesdoséculopassado.Umdestestiposquefazem
apostasmalucaseasganham.
Passou então a dar sua explicação em detalhes.
Quando moço, Gervase Chevenix-Gore dera a volta ao
mundonumbarcoavela;participaradeumaexpedição
ao Pólo Norte; desafiara um par do reino a um duelo;
apostara como poderia subir as escadarias de uma
mansãoemsuaéguafavorita—evencera;saltaradeum
camaroteaopalcoemqueumaatrizfamosarepresentava
eacarregaraconsigoàvistadetodoopúblico.
Ashistóriasaseurespeitoeraminfindáveis.
— É uma família muito antiga — continuouMr.
Satterthwaite.Sir Guy de Chevenix participou da
primeiraCruzada.Masagoraparecequeo troncovaise
extinguir.OvelhoGervaseéoúltimodosChevenix-Gore.
—Seráqueeleandaemdificuldadesfinanceiras?
—Demodoalgum.Gervase é fabulosamente rico.
Tem muitas propriedades, minas de carvão, e quando
jovem comprou por umaninharia umamina de pedras
preciosasnoPeru,ououtrolugarqualquerdaAméricado
Sul,quemostroumaistardeserriquíssima.Umhomem
extraordinário. Sempre teve sorte onde quer que se
metesse.
—Elejáestáficandovelho,não?
— Sim, pobre Gervase— disseMr. Satterthwaite
com um suspiro, enquanto balançava a cabeça. — A
maioriadaspessoasdiriaqueeleétambémdoidovarrido
e,decertaforma,éverdade.Eleédoido—nãonosentido
puramente clínico da palavra—mas no sentido de ser
diferente dos outros homens. Gervase sempre teve uma
personalidadeextremamenteoriginal.
— E a originalidade transforma-se em
excentricidadeàmedidaqueosanospassam,não?
— Exato. Foi isto mesmo o que ocorreu com o
pobreGervase.
— Ele tem uma idéia exagerada de sua própria
importância?
—Muito. Eu diria que paraGervase omundo se
divideemduasespéciesdeseres:osChevenix-Goreeos
outros.
—Umgrandeorgulhodafamília?
— Sim. Os Chevenix-Gore são todos arrogantes
como o diabo. Fazem sua própria lei. E Gervase, talvez
porseroúltimo,semprefoiopior.Quemoouvefalaré
capaz de pensar que ele é a reencarnação do próprio
Deus.
Poirotsacudiuacabeçapensativamente.
—Sim,foioquepensei.Osenhorsabe,recebiuma
cartadele.Umacartamuitoestranha.Umacartaquenão
pedianemmandava:exigia.
— Uma ordem de comando — disseMr.
Satterthwaitecomumapequenarisada.
— Exatamente. Não deve ter passado pela cabeça
desteSirGervasequeeu,HerculePoirot,souumhomem
importante,umhomemocupadíssimo!Nãopareceter-lhe
ocorridoquedificilmenteeuporiatudodeparteparalhe
obedecer, correndo como um cão obediente, como um
joão-ninguém, agradecido por ter recebido uma
incumbência!
Mr. Satterthwaite mordeu os lábios, num esforço
para não rir. É provável que tenha achado que, em
matéria de megalomania, era difícil estabelecer uma
diferençaentreHerculePoiroteGervaseChevenix-Gore.
Elemurmurou:
— Mas o motivo da convocação deve ter sido
urgente...
— De modo algum — disse Poirot, gesticulando
indignado. — Dizia-me apenas que estivesse à sua
disposição, caso ele precisasse de mim.Enfin, je vous
demande!
Novamenteasmãosseagitaramnoar,expressando
melhordoquequaisquerpalavraso sensodedignidade
ultrajadademonsieurHerculePoirot.
— Devo concluir então — continuouMr.
Satterthwaite—queosenhorrecusou?
— Ainda não tive oportunidade — respondeu
Poirot.
—Masvairecusar?
OrostodePoirotassumiuumaexpressãodiferente.
Suas sobrancelhas se franziram em sinal de completa
perplexidade.
Eledisse:
—Comopossomeexplicar?Meuprimeiroinstinto
foidefatorecusar.Masagorajánãosei...Háocasiõesem
que a gente tem um pressentimento... E eu pressinto
algumacoisanestecaso.
Mr.Satterthwaiterecebeuestaafirmativacomtoda
naturalidade.
—Sim?Muitointeressante...
—Quermeparecer—continuouHerculePoirot—
que um homem comoSir Gervase poderia ser
extremamentevulnerável...
— Vulnerável? — interrompeuMr. Satterthwaite,
nãoescondendosuasurpresa.—Vulnerávelnãoerauma
palavra que ele normalmente associaria a Gervase
Chevenix-Gore.MasMr.Satterthwaiteeraumhomemde
inteligênciarápidaeacaboupordizer:
—Achoquecompreendooqueosenhorquerdizer.
— Um homem comoSir Gervase — continuou
Poirot. — anda dentro de uma armadura, e que
armadura! A armadura dos cruzados nem podia se lhe
comparar...Éumaarmaduradearrogância,deorgulho,
deamor-próprio.Estaarmaduraéumaproteçãoparaas
flechas e golpes da vida diária, que nela ricocheteiam
inofensivamente.Masporistomesmoelaéperigosa,pois
àsvezesumhomemdearmadurapodenemperceberque
está sendo atacado. Ele demorará a ver, demorará a
ouvir...demorarámaisaindaàsentir.
Elefezumapausaedepoisperguntou,numoutro
tomdevoz:
—DequemconsisteafamíliadesteSirGervase?
— Bem, há sua mulher, Vanda. Ela era uma
Arbuthnot...umamoçamuitobonita.Eaindatemmuita
beleza. Mas é extremamente distraída, desligada das
coisas. Muito dedicada a Gervase. Ouvi dizer que
ultimamente anda com mania de ocultismo — usa
amuletos,escaravelhosepareceter-seconvencidodeque
éareencarnaçãodeumarainhaegípcia.DepoisháRuth,
afilhaadotivadocasal.Elesnãotiveramfilhos,osenhor
compreende.Ruth émuito atraente, no estilomoderno.
Esta é toda a família, com exceção, é claro, de Hugo
Trent. Ele é o sobrinho de Gervase. Pamela Chevenix-
Gorecasou-secomReggieTrenteHugofoioúnicofilho
daunião.Hugoéórfão.Nãopodeherdaro título,claro,
masachoquedeveficarcomamaiorpartedodinheirode
Gervase. É um rapaz bonitão, está no Regimento da
Rainha.
Poirot balançou a cabeça pensativamente. Depois
perguntou:
—Deve ser um desgosto paraSirGervasenão ter
umfilhohomemqueherdeotítulo,não?
—Achoquesim,semdúvida.
—Elenãogostariadeperpetuarafamília?
—Gostaria.
Mr. Satterthwaite ficou calado algum tempo,
intrigado com as perguntas de Poirot. Finalmente
arriscou:
—Osenhorvêalgumarazãosuficientementeforte
parairaHamboroughClose?
Poirotvoltou-selentamente.
—Não.Nãovejorazãoalguma.Masmesmoassim
achoquevou.
CAPÍTULODOIS
HerculePoirotestavasentadoàjaneladeumtrem
deprimeiraclassequecorriavelozpeloscamposingleses.
Deseubolsoelepuxouumtelegramabemdobrado
epôs-sealê-lomaisumavez,comarmeditativo:
“Tome o trem das 16h30min na estação de St.
Pancrasedêordensaocondutorparafazerumaparada
emWhimperley.
Chevenix-Gore.”
Poirotdobrouotelegramaeguardou-odevoltano
bolso.
Ocondutortinhasidoamável.Ocavalheiroiapara
HamboroughClose? Claro, sem dúvida. O trem sempre
parava emWhimperley para os hóspedes deSir Gervase
Chevenix-Gore.Deviaseralgumaprerrogativaespecialde
SirGervase.
Desdeentãoocondutorapareceraduasvezes—da
primeira para assegurar Poirot que estava fazendo o
possível para deixá-lo sozinho no compartimento, e da
segunda para anunciar que o expresso estava com um
atrasodedezminutos.
Otremtinhachegadaprevistaparaas19h50min,
masfoisóàs20h02minqueHerculePoirotdesembarcou
naplataformadapequenaestação,depositandonamão
docondutorameiacoroaqueeleobviamenteesperava.
Ouviu-seumapitoeoExpressodoNortepôs-sede
novoemmovimento.Umchoferalto,deuniformeverde-
escuro,encaminhou-seemdireçãoaPoirot.
—MonsieurPoirot?IndoparaHamboroughClose?
Ele tomou da pequena mala de Poirot e abriu
caminho em direção a um grande Rolls Royce
estacionado em frente. Lá chegando, abriu a porta e
acomodou o passageiro, tendo o cuidado de lhe colocar
umagrandemantadepelessobreojoelho.
A viagemdurouuns10minutos emumaestrada
sinuosapeloscampos,atéquePoirotseviupassandopor
um grande portão flanqueado por enormes grifos de
pedra.
Eles seguiram através de umpequeno bosque até
alcançaremacasa.Aportaestavaabertaeummordomo
imponenteapareceudeimediatonoprimeirodegrau.
—MonsieurPoirot?Poraqui,senhor.
Ele conduziu o visitante ao longo dohall e abriu
umaportaàdireita.
—MonsieurHerculePoirot—anunciou.
Haviaumgrupodepessoasnasala,todasvestidas
era traje formal, e Poirot percebeu de imediato que sua
presençanãoeraaguardada.Todososolhossevoltaram
paraelecomumaautênticaexpressãodesurpresa.
Finalmenteumamulheralta,comcabelosescuros
jáintercaladosporfiosgrisalhos,adiantou-sehesitante.
Poirotcurvou-seenquantolhetomavaamão.
— Peço-lhe desculpas,madame. Infelizmente o
trematrasou.
—Não se preocupe— respondeu Lady Chevenix-
Gore vagamente. Seus olhos continuavam a analisá-lo,
sem compreender direito.— Não se preocupe, senhor...
senhor...
—HerculePoirot.
Elefalouemtomaltoeclaroepercebeuqueatrás
desialguémabafavaumaexpressãodeespanto.
Ao mesmo tempo Poirot compreendia que seu
anfitrião não se encontrava na sala. Ele disse,
amavelmente:
—Asenhorasabiaqueeuviria,madame?
—Ah, sim, sim...— seusmodosnão erammuito
convincentes. — Eu acho.... quero dizer... estou um
poucoconfusa,monsieurPoirot.Meuproblemaéqueme
esqueçodetudo.
Sua voznãodeixavade esconderumcertoprazer
melancóliconofato.Elaprosseguiu.
—Aspessoasvivemamedizercoisasepensamque
euasgravei,maselasmeparecementrarporumouvido
e sair pelo outro. Simplesmente se evaporam, como se
jamaistivessemsidoditas.
Depois, como se cumprisse um dever há muito
esquecido,relanceouosolhosaoredoremurmurou:
—Comcertezaosenhorjáconhecetodomundo.
Era evidente que Poirot não conhecia e que Lady
Chevenix-Gore apenas poupava-se o incômodo de
lembrarosnomesdasdemaispessoaspresentes.
Comoquemfazumesforçosupremo,acrescentou:
—Minhafilha...Ruth.
Amoçaeratambémaltaemorena,masdeumtipo
bemdiferente.AocontráriodeLadyChevenix-Gore,tinha
umnarizbemesculpido,ligeiramenteaquilino,ealinha
doqueixobemdefinida.Seucabelopretoestavapenteado
paratrás,terminandonumamassadepequenoscachos.
Suapeleerarosadaebrilhante,compoucanecessidade
demake-up.HerculePoirotachou-aumadasjovensmais
bonitasquejávira.
Elepodiatambémperceberqueelaerainteligente,
além de entrever certas características de orgulho e
temperamento. Sua voz tinha um certo ritmo arrastado
quelhepareceuumpoucoforçado,
— Que prazer termos a companhia demonsieur
Hercule Poirot. Aposto como esta surpresa nos foi
preparadapelovelho.
— A senhorita então não sabia que eu vinha?—
perguntouPoirotrapidamente.
—Nemdesconfiava.Poristovouterqueesperaraté
depoisdojantarparapegarmeulivrodeautógrafos.
Umgongosoounohalleaseguiromordomoabriu
aporta,anunciando:
—Ojantarestáservido.
E então uma coisa curiosa sucedeu, quase antes
que ele tivesse acabado de falar. Por uma fração de
segundo sua imponente aparência deixou entrever, por
trás da máscara, uma expressão muito humana de
incredulidade.
Ametamorfosefoitãorápidaeamáscaradecriado
bem treinado voltou tão rapidamente que ninguém
poderia ternotadoanãoserqueoestivesseobservando
comatenção.Poirotcontudotinhaestadoaobservá-lo.
Omordomohesitounasoleiradaporta.Seurosto
não mais deixava entrever suas emoções, mas ele
continuavatenso.
Lady Chevenix-Gore disse um pouco
desconcertada:
—Oh,meuDeus...éincrível.Nemseioquefazer.
RuthexplicouaPoirot:
—Estaconsternaçãotoda,monsieurPoirot,sedeve
aofatodequeéaprimeiravez,emmaisde20anos,que
meupaiseatrasaparaojantar.
— É inacreditável— lamuriou-se Lady Chevenix-
Gore.Gervasenunca....
Um homem já idoso, mas de porte militar ainda
ereto,aproximou-sedela,rindocomprazer.
— Afinal pegamos o velho Gervase. Juro que de
umaboagozaçãoelenãovaiescapar.Seráquefoiobotão
do colarinho?OuGervase será imunea estaspequenas
afliçõeshumanas?
Lady Chevenix-Gore continuava a dizer, em voz
baixaeintrigada:
—MasGervasenuncaseatrasa.
A consternação causada por um contratempo tão
pequenochegavaaparecertola.Mas,paraPoirot,nãoera
tola... Atrás dela ele sentia nervosismo, talvez mesmo
medo. E ele também achava estranho que Gervase
Chevenix-Gore não tivesse aparecido para receber o
hóspedequeconvocaratãomisteriosamente.
Masporenquantoeraevidentequeninguémsabia
o que fazer.Criara-se uma situação queninguém sabia
comoresolver.
FinalmenteLadyChevenix-Goretomouainiciativa
— se é que iniciativa é uma palavra que pudesse se
aplicar a ela. Seus modos continuavam extremamente
hesitantes.
—Snell—perguntouela—,oseuamo...?
Elanãoterminouafrase.Limitou-seaolharparao
mordomocomexpectativa.
Snell, que evidentemente estava acostumado aos
estranhos métodos de sua patroa, respondeu com
presteza:
—SirGervasedesceuàscincoparaasoito,minha
ama,edirigiu-sediretamenteaoescritório.
— Ah, sim... Lady Chevenix-Gore estava de boca
aberta,osolhosperdidosnadistância.Vocênãoacha...
querodizer...eleouviuogongo?
—Deve terouvido,minhaama,poisogongoestá
do lado de fora da porta. Eu não sabia queSir Gervase
ainda estava no escritório, pois caso contrário lhe teria
dito diretamente que o jantar estava servido.Devo fazer
istoagora?
Lady Chevenix-Gore agarrou-se à sugestão com
grandealívio.
— Ah, sim, claro, Snell. Imediatamente. Muito
obrigada.
Quandoomordomodeixouasalaelacomentou:
—Snell é uma preciosidade. Não sei o que faria
semelenacasa.
Alguémmurmurouuma palavra de concordância,
mas ninguém mais falou. Hercule Poirot observava-os
atentamente e se convencera que todos estavam sob
grande tensão. Seus olhos mediram os presentes. Dois
homensdeidade,odetipomilitarquefalarahápoucoe
ummagro,seco,decabelosgrisalhos,comtodo jeitode
advogado.Doisrapazes—detiposbemdiversos.Umcom
bigodes e todo ar de discreta arrogância, que ele
adivinhou ser o sobrinho deSir Gervase. O outro, com
cabeloslisospenteadosparatráseumabelezaumpouco
vulgar, que Poirot classificou como sem dúvida
pertencenteaumacategoria social inferior.Haviaainda
uma senhora de meia-idade com olhos inteligentes
escondendo-se atrás de um pincenê, e uma jovem com
chamejantescabelosruivos.
Snellsurgiudenovoàporta.Suasmaneiraseram
impecáveis,masmaisumavezsobocuidadosovernizde
mordomo era possível se ver sinais de um ser humano
estupefato.
— Perdão, minha ama, mas a porta do escritório
estátrancada.
—Trancada?
Eraavozdeumhomem—umavozjovem,alerta,
excitada. Fora o rapaz bem-parecido que falara, o de
cabeloliso.Elecontinuou,adiantando-se:
—Queremqueeuváver...?
Mas Hercule Poirot já assumira o comando da
situação. E o fez tão naturalmente que ninguém achou
nada demais que este estranho, apenas recém-chegado,
começasseadarordens.
—Venhamcomigo—disseele.—Vamostodosao
escritório.
EPoirotcontinuou,dirigindo-seaSnell:
—Mostre-meocaminho,porobséquio.
Snell obedeceu. Poirot seguia pouco atrás e os
outros todos enfileiraram-se em sua esteira, como um
bandodecarneiros.
Snell conduzia o grupo através do grandehall,
passando pela escadaria, por um enorme relógio de
parede e por uma pequena reentrância onde se
encontrava o gongo, até que dobraramnuma passagem
estreitaquelevavaaumaporta.
Neste ponto Poirot adiantou-se a Snell e
delicadamente girou a maçaneta. A porta não abria.
Poirot bateu de leve, depois com mais força. Afinal
desistiu,ajoelhou-seeolhoupeloburacodafechadura.
Vagarosamenteelelevantou-seeolhouaseuredor.
Seurostoestavasério.
—Cavalheiros, esta porta temque ser arrombada
imediatamente.
Osdoisrapazes,ambosaltosefortes, lançaram-se
à porta, mas precisaram empregar muita energia. As
portasdeHamboroughCloseeramextremamentesólidas.
A fechadura acabou por ceder e a porta foi
arrombadacomumbarulhodemadeiradespedaçada.
E,porummomento,todospermaneceramimóveis
nasoleira,oolharhorrorizado.Asluzesestavamacesas.
Ao longo da parede esquerda havia um grande
escrivaninhaemsólidomogno.Sentadodeladoemfrente
àmesa,comascostasvoltadasparaaporta,umhomem
forte sentava-semeio despencado. Sua cabeça e a parte
superior de seu tronco pendiam sobre o lado direito da
cadeirae suamãodireitaestavacaída,quase tocandoo
chão. Logo abaixo dela, no tapete, estava uma pistola
pequenaebrilhante.
Nãoeraprecisoexplicarmaisnada.Asituaçãoera
clara.SirGervaseChevenix-Goretinhasematado.
CAPÍTULOTRÊS
O grupo se manteve ainda imóvel por alguns
momentos.FinalmentePoirotdeuumpassoàfrente.
AomesmotempoHugoTrentdiziavivamente:
—MeuDeus,ovelhosematou.
ELadyChevenix-Goredeixavaescaparumgemido
longoeestremecido.
—Oh,Gervase,Gervase!
Poirotfaloucomautoridade:
—LevemLadyChevenix-Gore.Nãohánadaqueela
possafazeraqui.
Ovelhomilitarobedeceu.
—Venha,Vanda.Venha,minhacara.Nãohánada
quevocêpossafazer.Estátudoacabado.Ruth,venhae
tomecontadesuamãe.
Mas Ruth Chevenix-Gore tinha entrado no
escritório e mantinha-se agora de pé ao lado de Poirot
enquanto este se curvava para examinar o corpo do
homem horripilantemente prostrado na cadeira — um
homem de proporções hercúleas, com uma barba de
viking.
Ela falou em voz baixa, tensa, mas ao mesmo
tempocuriosamentecontrolada:
—Osenhortemcertezadequeele...estámorto?
Poirotolhouparacima.
O rosto da jovem estava dominado pela emoção,
mas era uma emoção controlada que ele não chegava a
compreender. Não era bem sofrimento, era antes quase
umaespéciedeexcitaçãoprovocadapelomedo.
Apequenamulhercompincenêmurmurou:
—Suamãe,minhaquerida,vocênãoacha...?
Amoçaruivagritouemvozaltaehistérica:
—Entãonãofoiadescargadeumcarro,nemuma
rolhadechampanha.Foiumtiroqueescutamos...
Poirotvoltou-seeolhou-osdefrente,dizendo:
—Alguémdeveentraremcontatocomapolícia.
RuthChevenix-Goregritouimpetuosamente:
—Não!
Osenhordeidadequepareciaadvogadodisse:
— É inevitável, Ruth. Você pode cuidar disto,
Burrows?Hugo...
Poirot interrompeu-o, dirigindo-se ao rapaz de
bigode:
— O senhor éMr.Hugo Trent? Seria conveniente
que os demais saíssem e nos deixassem a sós neste
escritório:
Mais uma vez ninguém pôs em dúvida sua
autoridade.Oadvogadoconduziuosoutrosparaforado
escritório.PoiroteHugoTrentestavamsozinhos.
Esteúltimodisse,encarandoPoirot:
— Olhe aqui, quem é o senhor? O que o senhor
estáfazendonestacasa?
Poirot tirou um cartão de visitas de seu bolso e
estendeuaohomem.
HugoTrentmurmurou:
—Detetiveparticular,hem?Sim,jáouviseunome.
Masaindanãoseioqueosenhorveiofazernestacasa.
—Osenhornãosabiaqueseutio...Eleeraseutio,
não?
Hugorelanceouomortorapidamente.
—Ovelho?Sim,eleerameutio.
—Osenhornãosabiaqueeletinhamechamado?
Hugosacudiuacabeça.
—Nãotinhaamenoridéia.
Sua voz demonstrava uma emoção difícil de
descrever.Seurostopareciarígidoeentorpecido—otipo
de expressão, Poirot pensou, que servia como uma
máscaramuitoútilemmomentosperigosos.
Poirotperguntoucalmamente:
— Este lugar é Westshire, não? Conheço bem o
majorRiddle,odelegadolocal.
Hugorespondeu:
—Riddlemoraamenosdeumquilômetrodaqui.
Eledeverávirveroquehouvepessoalmente.
—Oqueseriamuitobom—comentouPoirot.
Ele começou a rondar o escritório. Abriu as
cortinaseexaminouasportasenvidraçadas,forçando-as
delicadamente.Estavamtrancadas.
Naparedeatrásdaescrivaninhaestavapendurado
umespelhoredondo,partido.Poirot inclinou-seepegou
umpequenoobjeto.
—Oqueéisto?—quissaberHugoTrent.
—Abala.
—Atravessouacabeçadeleequebrouoespelho?
—Éoqueparece.
Poirotpôsabala cuidadosamentedevoltaondea
encontrara.Emseguidaexaminouaescrivaninha.Havia
alguns papéis, cuidadosamente arranjados em pilhas.
Sobre a grande folha de mata-borrão que cobria a
superfíciedaescrivaninhahaviaumpapelcomapalavra
DESCULPEMemletradeimprensagrandeetremida.
Hugodisse:
—Eledeveterescritoistopoucoantesdese...dese
suicidar.
Poirotconcordoupensativamente.
Eleexaminoudenovooespelhoestilhaçado,depois
ocadáver.Suatestafranzia-se,emsinaldeperplexidade.
Foi em seguida até a porta, meio pendente sobre os
gonzos. Ele sabia que não havia nenhuma chave na
fechadura, pois caso contrário não poderia ter visto o
interiordoescritório.Nãoaencontroutambémnochãoe
finalmente inclinou-se sobre o morto, apalpando-o
rapidamente.
—Aquiestá—disse.—Noseubolso.
Hugo acendeu um cigarro, enquanto dizia um
tantoasperamente:
—Ocasoparecebemsimples.Meutio trancou-se
aqui,rabiscousuadespedidanumpedaçodepapeledeu
umtironacabeça.
Poirotlimitava-seaouvir.Hugoprosseguiu:
— Só não consigo compreender por que teria
mandadochamá-lo.Qualarazãodesuapresençaaqui?
— Isto já é mais difícil de explicar. Enquanto
esperamospela chegadadasautoridades,Mr.Trent,que
talseosenhormedissessequemsãoaspessoasqueeu
encontreiaochegar?
—Quemsãoelas?—perguntouHugo,parecendo
distraído.—Ah,sim,semdúvida.Nãoachamelhornos
sentarmos?—ele indicouumsofánocantoextremodo
escritórioeprosseguiu,falandoaosarrancos:
—Bem,emprimeirolugarhaviaVanda.Minhatia,
comoosenhorsabe.ERuth,minhaprima.Masestaso
senhor já conhece. A outra moça é Susan Cardwell.
Apenas uma hóspede. Há ainda o coronel Bury. Um
velho amigo da família. EMr. Forbes — outro velho
amigo, além de advogado da família. Os dois velhotes
foram apaixonados por Vanda quando ela era moça e
aindavivemmaisoumenosemórbitaaoredordela.São
inofensivos.DepoistemosGodfreyBurrows,secretáriodo
velho,querodizer,domeutio,eMissLingard,queestava
ajudando-oaescreverahistóriadosChevenix-Gore.Ela
fazotrabalhodepesquisa,oucoisaassim.
Poirotperguntou:
—Evocêsouviramotiroquematouseutio?
—Sim,ouvimos.Eupenseiquefosseumarolhade
champanha.SusaneMissLingardpensaramquefosseo
escapamentodeumcarro—aestradapassaaquiperto,o
senhorsabe.
—Equandofoiisso?
— Mais ou menos às oito e dez. Snell tinha
acabadodesoaroprimeirogongo.
—Eondevocêsestavamquandoouviramotiro?
— Nohall. Nós começamos a rir e a discutir,
tentandoadivinhardeondevieraobarulho.Eudisseque
tinhavindodasalade jantar,Susanachavaqueerada
de visitas,Miss Lingard achava que viera do segundo
andar e Snell dizia que viera da estrada, mas pelas
janelasdosegundoandar.ESusandisse:“Algumaoutra
hipótese?”Eeurierespondiquesemprehaviaahipótese
deumcrime.Agorapareceumapiadadepéssimogosto.
Seurostocontorceu-senervosamente.
—NãoocorreuaninguémqueSirGervasepodiater
sesuicidado?
—Não,claroquenão.
—Osenhornão fazamenor idéiadoqueo teria
levadoaosuicídio?
Hugopareciarefletir:
—Bem,talvezeunãodevessedizeristo...
—Dizeroquê?
—Bem,édifícilexplicar.Eunãoesperavaqueele
se matasse, mas por outro lado não estou muito
surpreso. A verdade é que meu tio era completamente
doido,monsieurPoirot.Todossabiamdisto.
—Eosenhorachaqueistoémotivosuficiente?
—Bem,hádoidosquesematam.
—Umaexplicaçãoadmiravelmentesingela.
Hugolimitou-seaolhá-lofixo.
Poirot levantou-se mais uma vez e vagou pelo
escritório. Era confortavelmentemobiliado, num pesado
estilo vitoriano. Havia grandes estantes, poltronas
maciçasecadeirasdeespaldaremgenuínoChippendale.
Havia poucos ornamentos, mas algumas estatuetas de
bronzenoconsolosobrealareirapareceramatrairPoirot.
Ele levantou-as uma por uma, examinando-as
cuidadosamente antes de pô-las de novo no lugar.
Finalmente, tirou algo, com a ponta da unha, da
estatuetaqueestavanaextremidadeesquerdadafila.
— O que é isso? — quis saber Hugo meio
desinteressadamente.
— Nada de importante. Apenas um fragmento de
vidro.
Hugocontinuou:
— É curioso como o espelho foi estilhaçado pelo
tiro.Dizemqueumespelhopartidoésinaldeazar.Pobre
Gervase. Acho que sua sorte já tinha demorado muito
tempo.
—Seutioeraumhomemdesorte?
Hugoriu.
—E como. Sua sorte era famosa. Tudo o que ele
tocava se transformava em ouro. Se apostava num
matungo,ocavaloganhavaoGrandePrêmio.Seinvestia
em umamina abandonada, achavam ouro em seguida.
Viviasemetendoemsituaçõesdifíceiseescapandodelas,
emaisdeumavezsuavidafoisalvapormilagre.Decerta
formaeleeraumagrandefigura,osenhorsabe.Játinha
visto mais coisas e lugares deste mundo que a grande
maioriadeseuscontemporâneos.
Poirotmurmurouemtomcoloquial:
—Osenhortinhaafeiçãoporseutio,Mr.Trent?
Hugopareceusurpreendidopelapergunta.
—Eu...sim,éclaro—respondeumeiovagamente.
—Osenhorsabe,eleeraumpoucodifícilàsvezes.Viver
comelenãoeranadafácil.Felizmenteeunãotinhaque
vê-lofreqüentemente.
—Eelegostavadosenhor?
—Nãoquedesseparasenotarmuito.Parafalara
verdade,quasesepodiadizerqueeletinharessentimento
demim.
—Eporque,Mr.Trent?
—Bem,osenhorsabe,elenãotinhafilhohomeme
isto o magoava muito. Ele era maníaco pelo nome
Chevenix-Goreeachoquenãosuportavaofatodequeos
Chevenix-Gore iamdeixarde existir.Éuma família que
vem desde os tempos da invasão normanda, o senhor
sabe.Eovelhoeraoúltimo.Deseupontodevista,era
insuportável.
—Osenhornãotinhaamesmaopinião?
Hugosacudiuosombros.
—Estascoisasmeparecemforademoda.
—Paraquemiráaherança?
—Nãosei.Talvezparamim,talvezparaRuth.Mas
éprovávelqueoueuouRuthsóentremosnapossedos
bensdepoisdamortedeVanda.
—Oseutionãodisseaninguémquaiseramsuas
intenções?
—Bem,eletinhaumaidéiaqueoencantavamuito.
—Qual?
—QueeueRuthnoscasássemos.
—Oquedefatoseriamuitoconveniente.
— Muito. Mas Ruth... Ruth tem idéias muito
definidas sobre o que pretende na vida. Antes de mais
nada,éumamoçamuitobonitaesabequeébonita.Não
estácompressaalgumadesecasareseprender.
Poirotinclinou-se:
—Masosenhorgostariadaidéia,Mr.Trent?
Hugorespondeuenfadado:
—Hojeemdiatantofazsecasarcomessaoucom
aquela.Odivórcioétãofácil!Seascoisasnãodãocerto,
começa-setudodenovo.
A porta foi aberta e Forbes entrou acompanhado
porumhomemaltoebemvestido.
OestranhocumprimentouHugo.
— Alô, Hugo. Sintomuito o que aconteceu. Deve
tersidohorrívelparavocês.
HerculePoirotadiantou-se.
—Comovai,majorRiddle?Lembra-sedemim?
—Sim,muito.—Odelegadoapertou-lheamãoe
prosseguiu:
—Então,vocêestáaqui?
Havia um tom pensativo em sua voz. Ele olhava
Poirotcomcuriosidade.
CAPÍTULOQUATRO
—Eentão?—perguntouomajorRiddle.
Era20minutosmaistarde.O“então”interrogativo
do delegado se dirigira ao médico legista, um senhor
magrodecabelosgrisalhos.
Estedeudeombros.
—Elemorreu hámais demeia hora emenos de
uma. Sei que o senhor não quer se aborrecer com
detalhes técnicos, por isso não vou perder tempo com
eles.Otiroatravessouacabeçaefoidisparadodepouca
distânciadatêmporadireita.Abaladilacerouocérebroe
saiudooutrolado.
—Atrajetóriaécompatívelcomumsuicídio?
— Completamente compatível. Em seguida ele
afundou-senacadeiraedeixoucairapistola.
—Osenhorachouabala?
—Sim—respondeuolegista,exibindo-a.
—Ótimo—disseomajorRiddle.—Vamosguardá-
laparacompará-lacomaarma.Ébomsaberqueocasoé
simplesenãohádificuldades.
HerculePoirotperguntoumansamente:
—O senhor tem certeza quenãohádificuldades,
doutor?
Olegistarespondeucomcuidado:
—Bem,háuma coisa quepoderíamos considerar
umpoucoestranha.Quandosematoueledeviaestarum
pouco caído para a direita. De outra forma a bala teria
atingido a paredeabaixo do espelho, e não o teria
quebrado.
— Uma posição pouco confortável para um
suicídio,não?—dissePoirot.
Olegistasacudiuosombros.
—Bem,sevocêvaisematar...
Elenãochegouacompletarafrase.
OmajorRiddleperguntou:
—Podemosremoverocadáver?
—Oh,sim.Pororameuserviçoestáconcluído.
— E para o senhor, inspetor? — o major Riddle
dirigia-se a um homem alto e impassível, vestido à
paisana.
— Pormim também, chefe. Já temos tudo o que
queríamos.Asúnicas impressõesdigitaisnaarmaeram
domorto.
—Entãopodemandartirarocorpo.
OsrestosmortaisdeGervaseChevenix-Goreforam
removidos.Poiroteodelegadoficaramsozinhos.
— Tudo me parece bastante simples — disse
Riddle.—Portase janelastrancadas,chavedaportano
bolsodocadáver.Tudodeacordocomasregras...menos
umacoisa.
— E que coisa é esta, meu amigo?— quis saber
Poirot.
—Você—respondeuRiddlebruscamente.—Oque
vocêestáfazendoaqui?
Poirot limitou-seapassar-lheacartaquerecebera
na semana anterior, mais o telegrama que finalmente
pediaseucomparecimentoimediato.
—Hum—disseodelegado.—Interessante.Vamos
ter que apurar isto. Eu diria que está diretamente
relacionadocomosuicídio.
—Estouinteiramentedeacordo.
—Vamosverquemseencontravanacasanahora
damorte.
— Posso lhe dizer os nomes de todos, pois
pergunteiaMr.Trent.
Poirotrepetiuasinformaçõesquejáouvira.
—Osenhorsabealgumacoisadestaspessoas?—
perguntou.
— Sim — respondeu o major. — Naturalmente
posso lhedizeralgumacoisadeles.LadyChevenix-Gore
tambémébastanteamalucada,masdeumjeitodiferente
deSirGervase.Osdoissegostavammuito.Elaéapessoa
mais distraída que já houve nomundo,mas de vez em
quando surpreende a todos com uma sagacidade que
ninguémpensavaqueelapudesseter.Aspessoasfazem
caçoadadelaeeuachoqueelasabe,masnãoliga.Elaé
tambémincapazdeveroladocômicodassituações.
—MissChevenix-Goreéapenasfilhaadotivadeles
não?
—Sim.
—Umamoçamuitobonita.
—Extraordinariamente atraente. Tem feito gato e
sapatodoscoraçõesmasculinosaquiporperto.Elafinge
que lhes dá bola, depois os deixa a ver navios. É uma
excelenteamazona.
—Porenquanto,istoéoquemenosnospreocupa.
— Aã... tem razão. Bem, vejamos os demais.
Conheço o velhoBury, é claro.Quase não sai daqui—
umaespéciedegatodomesticado.Éumvelhoamigoda
família, uma espécie de ajudante-de-ordens de Lady
Chevenix-Gore. Acho que ele eSir Gervase eram sócios
numacompanhiadaqualBuryeraumdosdiretores.
—EOswaldForbes,oquevocêsabedele?
—Tenhoquasecertezaquejáoencontreiantes.
—MissLingard?
—Nuncaouvifalardela.
—MissSusanCardwell?
—Aquelamoçabonitacomcabelosruivos?Tenho-
a visto nos últimos dias em companhia de Ruth
Chevenix-Gore.
—Mr.Burrows?
— Este eu conheço bem. Era o secretário deSir
Gervase.Cáentrenós,nãovoumuitocomele.Ébonitão
eachoqueprocuratirarvantagem.Meparecemeiomau-
caráter.
— Ele estava trabalhando comSir Gervase há
muitotempo?
—Háunsdoisanos,creio.
—Enãohaverámaisninguém...
MasPoirottevequeseinterromper.
Um homem alto, de cabelos louros, de terno,
entrounoescritórioàspressas.Estavaofeganteeparecia
muitoperturbado.
—Boanoite,majorRiddle.Ouviumboatodeque
Sir. Gervase tinha dado um tiro na cabeça e vim às
presas. Snell me disse que é verdade. É incrível, não
possoacreditar!
— Mas é verdade, Lake. Deixe-me apresentá-lo.
EsteocapitãoLake,procuradordeSirGervase.Monsieur
Hercule Poirot, de quem você provavelmente já ouviu
falar.
O rosto de Lake iluminou-se com uma
incredulidadealegre.
—Monsieur Hercule Poirot? É um grande prazer
conhecê-lo.Pelomenos...
O sorriso de Lake morreu em seu rosto e ele
perguntoupreocupado:
—Háalgumacoisadeerradanosuicídio?
— Por que haveria alguma coisa “errada” no
suicídio, como você diz? — perguntou vivamente o
delegado.
—Querodizer...porquemonsieurPoirotestáaqui.
E...eporquetudomeparecefrancamenteincrível.
—Não,não—tranqüilizou-oPoirot.—Nãoestou
aqui por causa da morte deSir Gervase. Eu já estava
presente...comohóspede.
—Ah,compreendo.Éestranhoqueelenãotenha
meditoqueosenhorvinha,quandoexaminamosumas
contashojeàtarde.
Poirotdisseemtomsereno.
—Osenhorjáusouduasvezesapalavra“incrível”
desde que aqui chegou, capitão Lake. O suicídio deSir
Gervaseéumasurpresaassimtãograndeparaosenhor?
—Sim,muito grande.Bem sei que ele era doido,
todos sabiam disto. Mas mesmo assim não consigo
acreditar que ele achasse que o mundo pudesse existir
semàsuapessoa.
— É verdade. Eis aí uma boa observação —
concordouPoirot,enquantoolhavacomsimpatiaorosto
francoeinteligentedojovem.
OmajorRiddlepigarreou.
—Jáquevocêestáaqui,Lake,gostaríamosdelhe
fazeralgumasperguntas.
—Comtodoprazer.
Lake sentou-se numa cadeira em frente aos dois
homens.
—QuandovocêviuSirGervasepelaúltimavez?
—Hojeàtarde,poucoantesdastrêshoras.Havia
algumas contas para examinar, além da proposta de
arrendamentodeumadasfazendas.
—Quantotempovocêficoucomele?
—Maisoumenosmeiahora.
—Pensecuidadosamenteediga-mesevocênotou
algumacoisadeestranhoemseucomportamento.
Lakepensouporalgunsinstantes.
— Não, acho que nada. Ele estava meio agitado,
masistoeracomum.
—Nãoestavadeprimidoouaborrecido?
— Não, me pareceu bem disposto. Acho que ele
vinha se distraindomuito nos últimos dias com o livro
sobreahistóriadesuafamília.
— Há quanto tempo ele vinha escrevendo este
livro?
—Háunsseismeses.
—FoiquandoMissLingardveioparacá?
—Não.Elachegouháunsdoismeses,quandoSir
Gervase descobriu que não tinha condições de efetuar
todaapesquisasozinho.
—Evocêachaqueele tinhaprazeremescrevero
livro?
— Sim, enorme. Ele achava que nada nomundo
podiasermaisimportantequesuafamília.
Haviaumligeirotomdeamarguranavozdojovem.
— Então, em sua opiniãoSir Gervase não tinha
maiorespreocupações?
Lakefezumapausapequenamasperceptívelantes
deresponder:
—Não.
Poirotinterrompeusubitamente:
— Sir Gervase não estaria preocupado com sua
filha?
—Suafilha?
—Exatamente.
— Que eu saiba, não — respondeu o rapaz
empertigadamente.
Poirotnãoinsistiu.OmajorRiddledisse:
—Entãomuitoobrigado,Lake.Gostariaquevocê
permanecesse por perto caso eu precisasse chamá-lo
outravez
— Certamente — respondeu Lake, enquanto se
levantavaeperguntava:
—Possoaindalheserútilemalgumacoisa?
— Sim, mande o mordomo entrar. E talvez você
pudessetambémdarumaolhadaemLadyChevenix-Gore
para me dizer se ela já está em condições de ser
interrogadaousecontinuamuitoperturbada.
Lake assentiu e saiu do escritório com passos
firmes.
—Umrapazsimpático—comentouPoirot.
—Sim, todosgostamdele.Eémuitoeficienteem
seutrabalho.
CAPÍTULOCINCO
— Sente-se, Snell — disse o major Riddle
amavelmente. — Tenho muita coisa a perguntar-lhe e
achoquevocêdevetersofridoumgrandechoque.
—Semdúvida,senhor.Muitoobrigado,senhor—
Snell sentou-se com tal discrição que era como se
continuassedepé.
—Vocêtrabalhaaquihámuitotempo?
— Há 16 anos, desde que Sir Gervase resolveu
instalar-se,porassimdizer.
—Ah,sim,claro,seupatrãofoiumgrandeviajante
quandomoço.
— Exatamente, senhor. Ele participou de
expedições ao Pólo Norte e muitos outros lugares
interessantes.
— Agora, Snell, pode me dizer quando viu seu
patrãopelaúltimavezhojeànoite?
— Bem, eu estava na sala de jantar, senhor,
cuidandodosúltimosdetalhesnamesa.Aportadohall
estava aberta e eu vi quando Sir Gervase desceu as
escadas,cruzou-oedirigiu-seaoescritório.
—Aquehorasfoiisso?
— Pouco antes das oito. Talvez às cinco para as
oito.
—Efoiaúltimavezquevocêoviu?
—Foi.
—Vocêouviuumtiro?
—Ouvisim,senhor,masnahoranãopenseique
fosseumtiro.Quemteriapensado?
—Oquevocêpensouquefosse?
— Pensei que fosse um carro, senhor. A estrada
passabempertodomurodenossoparque.Outalvezum
tironasmatas—algumcaçadorfurtivo,quemsabe?Mas
nuncameocorreu...
OmajorRiddleinterrompeu-o:
—Aquehorasfoiisso?
— Foi exatamente às oito horas e oito minutos,
senhor.
—Comovocêpodesabercomtantacerteza?
— Porque eu tinha acabado de soar o primeiro
gongo,senhor.
—Oprimeirogongo?
— Sim, senhor. Por ordens deSir Gervase eu
sempre soava um primeiro gongo exatamente sete
minutosantesdo gongopara o jantar.SirGervase fazia
questãoabsolutaque todos estivessem reunidosna sala
devisitasquandoosegundogongosoasse.Assimqueeu
soavaosegundogongoeuiaàsaladevisitas,anunciava
queojantarestavaprontoetodossedirigiamàmesa.
—Começo a compreendermelhor— interrompeu
Poirot—porquevocêpareciatãosurpresoaoanunciaro
jantarhojeànoite.SirGervaseestavasemprenasalade
visitas,não?
—Nuncaemminhavidadeixeide encontrá-lo lá,
senhor.Foiumchoque.Maseunãopodiapensar...
OmajorRiddleinterrompeuhabilmente:
—Eosoutrostambémcostumavamestarlá?
Snelltossiu.
— Quem quer que se atrasasse para o jantar,
senhor,jamaiseraconvidadooutravezparasehospedar
aqui.
—Hum,muitodrástico.
— Sir Gervase, senhor, empregava umchef-de-
cuisinequeanteriormentetrabalharacomoimperadorda
Morávia. Na opinião deSir Gervase o jantar era tão
importantequantoumritualreligioso.
—Eoquepensavamdissoosoutrosmembrosda
família?
— Lady Chevenix-Gore sempre fez muita questão
de não contrariarSir Gervase e nem mesmoMiss Ruth
tinhacoragemdeseatrasarparaojantar.
—Interessante—murmurouPoirot.
—Compreendo—disseRiddle.—Querdizerque
comoojantareraàsoitoequinze,vocêsoouogongoàs
oitoeoito,comodehábito?
— Foi assim mesmo, senhor, mas não como de
hábito. O jantar era em geral às oito horas. HojeSir
Gervase dera ordensde servi-lo às oito e quinze porque
esperavaumconvidadonotremdatarde.
Snell fez uma pequena mesura para Poirot
enquantofalava.
— Seu patrão parecia preocupado ou aborrecido
quandosedirigiuaoescritório?
—Nãopoderialhedizer,senhor.Eleestavamuito
longe para eu poder julgar sua expressão. Pude apenas
notarseuvulto,nadamais.
—Eleestavasozinho?
—Sim.
—Alguémteriaentradonoescritórioemseguida?
—Tambémnãosaberiadizer,senhor.Dirigi-meem
seguidaàcopaefiqueiláatésoarogongoàsoitoeoito.
—Foientãoquevocêouviuotiro?
—Foi,senhor.
Poirotinterrompeucombrandura.
—Houveoutrosqueouviramotiro,não?
—Sim, senhor.Mr.Hugo eMissCardwell.EMiss
Lingard.
—Elestambémestavamnohall?
— Miss Lingard saiu da sala de visitas eMiss
CardwelleMr.Hugovinhamdescendoasescadas.
Poirotperguntou:
—Alguémcomentouoassunto?
— Sim, senhor.Mr. Hugo perguntou se íamos
servir champanha ao jantar. Eu respondi-lhe que não,
apenasxerez,vinhodoRenoevinhodaBorgonha.
—Elepensouquefosseumarolhadechampanha?
—Sim,senhor.
—Masninguémtomouobarulhomuitoasério?
—Não, senhor. Eles todos se dirigiram à sala de
visitasrindoeconversando.
—Ondeestavamasdemaispessoasdacasa?
—Nãosaberialhedizer,senhor.
OmajorRiddleperguntou:
— Você saberia me dizer alguma coisa desta
pistola?
—Sim, senhor.Ela pertencia aSirGervase.Elea
guardavasemprenagavetadesuaescrivaninha,aquino
escritório.
—Elacostumavaestarcarregada?
—Nãosaberialhedizer,senhor.
OmajorRiddlepôsaarmadeladoepigarreou.
— Snell, agora vou perguntar-lhe algo muito
importante. Espero que vocême responda com amaior
franquezapossível.Vocêsabedealgumacoisaquepossa
terlevadoseupatrãoasematar?
—Não,senhor.Nãoseidenada.
—SirGervasenãovinhasecomportandodemodo
estranhoultimamente?Andavapreocupado?Ouabatido?
Snelltossiuembaraçado.
— Se o senhor não me leva a mal,Sir Gervase
sempre teve um comportamento que outras pessoas
poderiamdescrevercomoestranho.Eleeraumcavalheiro
extremamenteoriginal,senhor.
—Sim,sim,jáseidisso.
— As pessoas de fora dificilmente podiam
compreenderSirGervase.
Snell deu à palavra “compreender” uma ênfase
muitoóbvia.
—Sim,sim,concordo.Masnãohavianadaqueaté
mesmovocêpudesseconsiderarpoucocomum?
Omordomohesitou,masacaboupordizer:
— Acho queSir Gervase andava preocupado com
algumacoisa,senhor.
—Preocupadoeabatido?
—Nãodiriaabatido,senhor.Maspreocupado,sim.
— Você teria alguma idéia sobre a causa de sua
preocupação?
—Não,senhor.
— Teria algo a ver com alguma pessoa em
particular?
— Não saberia lhe dizer, senhor. De qualquer
forma,éapenasumaimpressãominha.
Poirotfaloudenovo.
—Vocêsesurpreendeucomseusuicídio?
— Muito, senhor. Foi um choque terrível. Nunca
supusqueissopudesseacontecer.
Poirot concordou. Seu rosto tinha uma expressão
meditativa.
Riddledeu-lheumaolhadarápidaedepoisdirigiu-
sedenovoaomordomo.
—Obrigado,Snell,étudoqueprecisamosdevocê.
Vocêtemcertezaquenãohámaisnadaquevocêqueira
nos contar... por exemplo, nada estranho que tenha
acontecidonosúltimosdias?
Omordomolevantou-sesacudindoacabeça.
—Nãohánada,senhor,nadamesmo.
—Entãopodeir.
—Obrigado,senhor.
Snell dirigia-se à porta, mas subitamente abriu
caminho e perfilou-se ereto enquanto Lady Chevenix-
Goreentravacomseuareternamentevago.
Ela estava usando um vestido de seda em roxo e
alaranjado, enrolado ao corpo, em estilo oriental. Seu
rostoestavatranqüiloeseusmodosserenos.
— Lady Chevenix-Gore— cumprimentou omajor
Riddle,enquantoseerguia.
Eladisse:
—Meavisaramqueo senhorqueria falar comigo,
poristovimvê-lo.
— Vamos a um outro aposento? Este deve lhe
trazerrecordaçõesextremamentedolorosas.
LadyChevenix-Goresacudiuacabeçaesesentou
em uma das cadeiras Chippendale, enquanto
murmurava:
—Não.Quediferençafaz?
— A senhora é uma mulher de grande coragem,
LadyChevenix-Gore.Bemseiochoqueterrívelquedeve
tersido...
Elainterrompeu.
—De fato foi um choque a princípio— disse em
tomserenoecoloquial.—Mas,osenhorsabe,nãoexiste
isto que chamam morte. Apenas mudança,
transformação.
Antesqueodelegadopudessedizerqualquercoisa
elaacrescentou:
— Para falar a verdade, Gervase está de pé logo
atrás do senhor, quase tocando seu ombro esquerdo.
Possovê-loperfeitamente.
O ombro esquerdo do major Riddle tremeu
levemente. Ele olhava para Lady Chevenix-Gore com
expressãoincrédula,
Elasorriu-lhe.Umsorrisofelizesereno.
— Vejo que o senhor não acredita. Não importa,
poucosacreditariam.Paramimomundosobrenaturalé
tão real quanto o material. Mas não se constranja.
Pergunte-meoquequiserenãotenhamedodeferirmeus
sentimentos.Nãoestouabalada,porqueaceitotudocomo
obradafatalidade.Ninguémpodeescapardeseupróprio
destino.Tudoseajusta...oespelho...tudo.
—Oespelho,madame?—quissaberPoirot.
Elaassentiucomacabeça.
—Oespelhosim.Estápartido,comoosenhorpode
ver. É um símbolo. O senhor conhece o poema de
Tennyson.Gostavade recitá-lo quandogarota... embora
naépocanãopudesseaindaapreciarseuladoesotérico.
“Oespelhopartiu-sedealtoabaixo.Amaldiçãodesabou
sobremim—gritouaSenhoradeAscalônia.”Foioquese
passou com Gervase. A maldição desabou sobre ele de
repente. Acho que todas as famílias antigas sofrem de
alguma forma a maldição... O espelho partiu-se... Ele
sabiaqueestavacondenado.Amaldiçãotinhachegado.
—Mas,madame,nãofoiumamaldiçãoquepartiu
oespelho.Foiumabala!
Lady Chevenix-Gore respondeu com voz de quem
perdoatamanhaignorância.
—Étudoomesmo,osenhorsabe.Foiodestino.
—Masfoiseumaridoquesematou!
LadyChevenix-Goresorriucomindulgência.
— Ele não deveria ter feito isto, é claro. Mas
Gervasesemprefoiimpaciente.Nuncasoubeesperar.Sua
horaestavapróxima...eleadiantou-seaoseuencontro.É
tudomuitosimples.
OmajorRiddlepigarreoudesesperadoedisse:
—Entãoparaasenhoraosuicídiodeseumarido
nãofoiumasurpresa?Asenhorajáoesperava?
—Não,não.Nemsempresepodepreverofuturo.É
claro que Gervase sempre foi um homem estranho, um
homem diferente. Ele era a reencarnação de um dos
grandesProfetas.Hámuitotempoeusabiadissoeacho
que ele próprio desconfiava. Por isso mesmo Gervase
achavadifícilrespeitarastolasnormasconvencionais.
E,olhandonovamentesobreoombroesquerdodo
majorRiddle:
— Ele está. sorrindo agora. Está pensando que
somos um grupo de tolos. E é verdade. Somos como
crianças,fingindoqueavidaérealeimportante...Avida
éapenasumagrandeilusão.
Sentindo-secomoumgeneralprestesaperderuma
batalha,Riddleinsistiu:
—Asenhoraentãonãopodenosdaramenoridéia
doqueterialevadoseumaridoaosuicídio?
Elasacudiuosombrosmagros.
—Somoscomopalhamovidapelovento.Osenhor
não pode compreender. O senhor vive apenas no plano
material.
Poirottossiu.
—Porfalaremplanomaterial,madame,asenhora
sabeaquemseumaridodeixouodinheiro?
— Dinheiro? — perguntou Lady Chevenix-Gore
comardedesdém.—Nuncapensoemdinheiro.
Poirotpassouaoutroassunto.
—E a que horas a senhora desceu para o jantar
hojeànoite?
—Horas?Que importamashoras, que importa o
tempo?Oqueéotempo?Oinfinito.Otempoéinfinito.
Poirotmurmurou:
—Mas pelo que eu sei,madame, seumarido era
muito exigente em matéria de tempo, especialmente
quantoàhoradojantar.
— Pobre Gervase — Lady Chevenix-Gore sorriu
comindulgência.—Eraumacriancicedele.Masofazia
feliz,porissonósnuncanosatrasávamos.
—Asenhoraestavanasaladevisitasquandosoou
oprimeirogongo?
—Não.Estavaemmeuquarto.
— A senhora se lembra quem estava na sala de
visitasquandoasenhoradesceu?
—Achoquequasetodos.Importamuitosaber?
— Talvez não muito — concordou Poirot,
prosseguindo:
—Masháoutracoisaqueeugostariadesaber:seu
marido chegou a lhe contar que achava estar sendo
vítimadeumroubo?
Lady Chevenix-Gore não pareceu se interessar
muitopeloassunto.
—Roubo?Não,achoqueelenuncamefalounada.
— Roubo, fraude, conto do vigário. Enfim,
enganadodealgumamaneira?
— Não, não, acho que não. Gervase teria ficado
furiososealguémtivessetentadofazeristocomele.
—Entãoelenuncadissenadaarespeito?
—Não... não...— respondeu LadyChevenix-Gore
ainda sem mostrar grande interesse. Acho que eu me
lembrariaseeletivessefalado.
—Quando a senhora viu seumarido pela última
vez?
—Eleveioaomeuquarto,comodehábito,antesde
descer.Minhacriadaestavalá.Eleapenasolhouàporta
edissequejáiadescer.
— Sobre o que ele falava mais freqüentemente
nestasúltimassemanas?
—Sobreahistóriadenossa família.Ultimamente
ele vinha fazendo grandes progressos em seu livro. Ele
achava aquela pitorescaMiss Lingard de grande
utilidade.ElapesquisavaparaelenoMuseuBritânicoe
lugares assim, e tinha trabalhado com Lord Mulcaster
quando ele escreveu a história de sua família. Foi Lord
Mulcaster quem a recomendou. Ela tinha um grande
tato... nunca pesquisava as coisas erradas, se o senhor
entendeoquequerodizer.Afinalháantepassadosqueé
melhordeixarmesmode lado.MissLingardtambémme
ajudavamuito.Foi ela quemmeconseguiuumaporção
de informações sobre Hatshepsut. Não sei se o senhor
sabe,maseusouareencarnaçãodeHatshepsut.
Lady Chevenix-Gore fez esta comunicação em voz
absolutamentecalma.
—Antesdisso—continuou—fuiumasacerdotisa
naAtlântida.
OmajorRiddleremexeu-seemsuapoltrona.
— Hum, muito... muito interessante. Bem, Lady
Chevenix-Gore, creio que foi tudo. A senhora foi muito
gentilemvirnosver.
Lady Chevenix-Gore ergueu-se, arrepanhando as
dobrasdeseuvestido.
— Boa noite — disse ela, e depois, olhando no
espaço.
— Boa noite, Gervase querido. Gostaria que você
viesse,masseiquevocêtemqueficaraí.
Ela acrescentou, como se explicasse ao major
Riddle:
—Vocêtemquepermanecernolocaldesuamorte
porpelomenos24horas.Aindaécedoparavocêpodar
vagarporaíesecomunicarcomosvivos.
LadyChevenix-Goresaiudoescritório.
OmajorRiddleenxugouatesta.
—Puxa—murmurou.—Elaémuitomaisdoida
do que eu pensava. Será que ela acredita em toda essa
babugice?
Poirotbalançavaacabeçacomoquemmedita.
—Épossívelque lhesejadegrandeutilidade.No
momento ela precisa criar uma ilusão onde possa se
refugiarparanãoenfrentaratristerealidadedamortedo
marido.
—Paramimelaéquaseumcasodeinternamente
Nadadoqueeladissetemomenornexo.
— Não, não, meu amigo. ComoMr. Hugo Trent
observou-mecasualmente,entretodaaquelamixórdiade
repentedescobrimosumaobservaçãomuitolúcida.Como
a de queMiss Lingard tem muito tato, pois evita
pesquisar antepassados comprometedores. Acredite-me,
LadyChevenix-Gorenãoénenhumatola.
Poirotergueu-seepasseoupelasala.
—Hámuitas coisas estranhas neste caso. Coisas
dequeeunãogostonada.
Riddleolhava-ocomcuriosidade.
—Vocêquersereferiraomotivodosuicídio?
— Suicídio... não! Não foi suicídio, posso lhe
garantir. Não correspondepsicologicamente. Que idéia
Chevenix-Gore faziadesimesmo?Adeumcolosso,um
semideus,umapessoaimensamenteimportante,ocentro
doUniverso! Umhomemdestes se destrói a simesmo?
Claroquenão.Émuitomaisprovávelqueelemateoutra
pessoa...ummiserávelvermedeumhomemqueousasse
criar-lhe problemas. Tal ato na opinião dele seria
perfeitamente justificável, necessário mesmo. Mas auto-
destruição?Adestruiçãodeumegotãoimenso?
— Sua psicologia é muito boa, Poirot, mas as
provasnãoadmitemdiscussão.Aportatrancada,achave
no bolso. A porta da varanda também fechada e com o
trincopassadopor dentro.Umcrime como este poderia
acontecernoslivros,masnuncanavidareal.Vocêainda
temalgumacoisaadizer?
— Sim, tenho ainda alguma coisa a dizer —
respondeu Poirot, sentando-se na cadeira, enquanto
prosseguia;
—Aquiestoueu,Chevenix-Gore,sentadoàminha
escrivaninha. Resolvi suicidar-me porque... porque,
digamos, descobri algo de horrível sobre o passado de
minhafamília.Nãoéummotivomuitoconvincente,mas
aceitemo-lomesmoassim.
— Eh bien — continuou Poirot —, que faço eu?
Rabisco num pedaço de papel a palavra DESCULPEM.
Atéaí,tudobem.Emseguida,abroagavetaondeguardo
minha pistola, carrego-a, se já não está carregada, e,
então?Douumtironaminhacabeça?Não,primeiroviro
acadeiraassim,depoisinclino-meparaadireitaassime
sóentãoencostoapistolaemminhacabeçaedisparo!
Poirotpôs-sevivamentedepé.
—E agora eu lhe pergunto; isto faz sentido? Por
queviraracadeira?Sepelomenoshouvesseumquadro
ouumretratonaparedeaindaseriaadmissível.Algoque
Chevenix-Gore quisesse ver uma última vez antes de
morrer.Masumacortina,não,nãofazsentido.
— Talvez ele quisesse olhar pela janela. Ver sua
propriedadepelaúltimavez.
—Meuamigo,vocêsabeque istonão fazsentido.
Asoitohoraseoitominutoserajánoite fechadaealém
dissoas cortinas estavam fechadas.Não, temquehaver
outraexplicação.
—Sópodehaveruma,naminhaopinião.Gervase
Chevenix-Goreeradoido.
Poirotcontinuavaabalançaracabeçainsatisfeito.
OmajorRiddleergueu-se.
— Venha Comigo. Vamos interrogar as outras
pessoas.Podeserqueassimdescubramosalgumacoisa.
CAPÍTULOSEIS
DepoisdadifícilconversacomLadyChevenix-Gore
o major Riddle sentiu-se aliviado ao tratar com um
advogadológicoesensatocomoForbes.
Mr. Forbes se manteve extremamente reservado,
massuasrespostasiamsemprediretamenteaoassunto.
Ele reconheceu que o suicídio deSir Gervase lhe
tinha sido um choque. Jamais pensara queSir Gervase
fosse capaz de se matar. Não podia imaginar a menor
razãoparasemelhantecoisa.
—SirGervaseeranãoapenasmeuclientemasum
velhoamigo.Conhecia-odesdegaroto epossodizerque
elesempreamouavida.
— Gostaria que o senhor usasse do máximo de
franqueza conosco,Mr. Forbes. O senhor tinha
conhecimentodealgumamágoaouansiedadesecretade
SirGervase?
— Não. Ele tinha suas pequenas preocupações,
comotodosnós,masnadadesério.
—Algumadoença?Algumabrigacomamulher?
—Não.SirGervaseeLadyChevenix-Goresedavam
maravilhosamente,
OmajorRiddledissecautelosamente:
—LadyChevenix-Gorepareceteridéiasestranhas.
Mr.Forbessorriu.Osorrisosuperiore indulgente
deumhomem.
— As senhoras se deve perdoar pequenas
esquisitices.
Odelegadocontinuou:
—O senhor cuidava de todos os interesses legais
deSirGervase?
—Sim.Minha firma,Forbes,Ogilvie andSpence,
cuidadosnegóciosdafamíliaChevenix-Gorehámaisde
100anos.
— Havia algum... algum escândalo na família
Chevenix-Gore?
151
Mr.Forbesfranziuatesta:
—Nãocompreendo.
—MonsieurPoirot,querterabondadedemostrara
Mr.Forbesacartaqueosenhorrecebeu?
Poirotpôs-sedepéemsilêncioeestendeuacartaa
Mr.Forbes,comumapequenamesura.
Mr.Forbesleu-aesuatestasefranziumaisainda.
—Umacartaextraordinária—disse.—Agoravejo
ondeosenhorqueriachegar.Masnãoseidenadaquea
pudessejustificar.
—SirGervasenadalhedissesobreoassunto?
—Nada.Edevoconfessarqueachomuitoestranho
queelenãotenhadito.
—Elecostumavafazer-lheconfidências?
—Digamosqueelegostavadepedirminhaopinião.
—Eosenhornãotemidéiadoqueoterialevadoa
escreveracarta?
—Prefironãofazerjuízosprecipitados.
OmajorRiddleadmirouasutilezadaresposta.
—E será que o senhor poderia nos dizer alguma
coisasobreaherançadeSirGervase?
—Poisnão.Nãovejonenhuminconvenientenisto.
Lady Chevenix-Gore terá uma renda anual de seis mil
libras e a escolha de uma propriedade no campo ou a
casaemLowndesSquare—oqueelapreferir.Háainda
diversosoutroslegadosedoações,masnadaimportante.
Amaiorpartedaherançafoideixadaàsuafilhaadotiva,
Ruth,comacondiçãodeque,aocasar,seumaridoadote
onomeChevenix-Gore.
—EparaseusobrinhoHugoTrent?
—Umlegadodecincomillibras.
—EstoucertoempresumirqueSirGervaseeraum
homemrico?
— Imensamente rico. Além desta casa ele tinha
muitosoutrosbens,emborajánãofossetãoricoquanto
háalgunsanos,poisdiversasaçõesde suapropriedade
caíram de cotação. Além disso, ele perdeu bastante
dinheirocomoinvestimentoquefeznumacompanhiade
propriedade do coronel Bury, a Paragon Synthetic
RubberSubstitute.Ocoroneltinhalhegarantidoqueera
umbomnegócio.
—Umconselhoinfeliz,não?
—Militares aposentados são os piores financistas
queexistem.Minhaexperiênciameensinouquesãomais
fáceisdeenganarqueasviúvas, eolhemque isto éum
recorde.
—Masestesmaus investimentosnão chegarama
abalarseriamenteafortunadeSirGervase,chegaram?
—Não.Eleaindaeraextremamenterico.
—Quandofoifeitootestamento?
—Hádoisanos.
Poirotmurmurou:
—Eotestamentonãoseriaumpoucoinjustocom
Mr.HugoTrent,osobrinhodeSirGervase?Afinaleleera
oparenteconsangüíneomaischegadoaSirGervase.
Mr.Forbessacudiuosombros.
—Éprecisolevaremcontaahistóriadafamília...
—Emquesentido?
Mr.Forbeshesitou.
OmajorRiddleinterveio:
—AcuriosidadedemonsieurPoiroténatural.Esta
cartadeSirGervaseprecisaserexplicada.
— Não há nada de escandaloso na atitude deSir
Gervase em relação a seu sobrinho — principiouMr.
Forbes. — Ocorre simplesmente que ele sempre levou
muitoasérioseupapeldechefedefamília.Eletinhaum
irmãoeuma irmã,ambosmaismoços.O irmãomorreu
na guerra. A irmã, Pamela, casou-se, mas com a
discordância deSirGervase.Eleachavaqueafamíliado
capitão Trent não era suficientemente boa para uma
aliança com os Chevenix-Gore e acreditava que, em
qualquer caso, a irmã devia lhe pedir autorização antes
desecasar.Elanemseaborreceu—achousuaatitude
simplesmente divertida. O resultado foi queSir Gervase
sempremostrouuma certa aversãopelo sobrinho.Acho
mesmo que foi esta aversão que o levou a adotar uma
criança.
—Enãolheerapossívelterumfilhopróprio?
— Não. Um ano depois do casamento Lady
Chevenix-Goreteveumfilhonatimortoeosmédicos lhe
disseram que ela nunca poderia conceber novamente.
DoisanosmaistardeelesadotaramRuth.
Poirotperguntou:
— E quem era esta menina? Por que eles a
escolheram?
—Creioqueelaerafilhadeumparentedistante.
—Jápensavaisto—respondeuPoirot,olhandoos
diversosretratospenduradosnaparede.—Éfácilverque
ela tem omesmo sangue... omesmonariz, a for-mado
queixo.Sãotraçoscomunsaquasetodosestesretratos.
—Nãosãoapenasasfeições.Elatambémherdouo
temperamento—observouMr.Forbes.
—Éfácilimaginar,Comoelasedavacomseupai
adotivo?
— Como o senhor deve estar pensando. Eram
ambos terrivelmente voluntariosos,masapesarde todas
asdiscussõescreioquenofundoelesseentendiam.
—Mesmoassimelalhedavadoresdecabeça?
— E muitas. Mas posso lhe garantir que não a
pontodesuicidar-se.
—Ah,sim,claro—concordouPoirot.—Ninguém
sematasóporquetemumafilhateimosa.Querdizerque
a senhorita Ruth é a principal herdeira?Sir Gervase
nuncapensouemmodificarotestamento?
—Ahum—tossiuMr.Forbesembaraçado.—Para
dizer a verdade, eu tinha recebido instruções deSir
Gervase, ao chegar há dois dias, para fazer um novo
testamento.
—Hem?—perguntouomajorRiddle,interessado.
—Osenhornãonostinhaditonada.
Mr.Forbesexplicourápido:
— O senhor simplesmente me perguntou quais
eramostermosdotestamentodeSirGervaseeeulhedei
a informação solicitada. O novo testamento nem estava
rascunhado,quantomaisassinado.
— E quais seriam os novos termos? Eles podem
nosdarumaidéiadoestadodeespíritodeSirGervase.
—Demodogeralostermoseramosmesmos,mas
Miss Chevenix-Gore só poderia entrar na posse da
herançasesecasassecomMr.HugoTrent.
— Ah!... — fez Poirot. — Mas há então uma
diferençafundamental.
—EudisseaSirGervasequenãoconcordavacom
acláusula—continuouMr.Forbes—eexpliquei-lheque
ela provavelmente poderia ser anulada em juízo. A
Justiçanãovêcomsimpatiacondiçõessemelhantes.Mas
SirGervaseestavadecididoaadotá-la.
—EseMissChevenix-GoreouMr.HugoTrentnão
quisessemcumpri-la?
—SeMr.HugoTrentserecusasseacasarcomMiss
Chevenix-Gore,aherançaseriadelaincondicionalmente.
Masseelequisesseeelaserecusasse,odinheiroiriapara
ele.
— Negócio complicado — murmurou o major
Riddle.
Poirotinclinou-se,tocandonojoelhodoadvogado.
— Mas o que havia por trás disto? O que teria
levadoSir Gervase a estabelecer tais condições? Devia
haveralgumacoisa...provavelmenteumoutrohomem...
um pretendente com o qual ele não concordasse: O
senhornãosabequemeraestapessoa?
—Paraserfranco,monsieurPoirot,não.
—Osenhorpoderiatalvezdarumpalpite.
— Jamais dou palpites — respondeuMr. Forbes,
escandalizado.
Em seguida, tirando o pincenê e limpando-o com
umlençodeseda,perguntou:
—Hámaisalgumacoisaqueossenhoresdesejem
saber?
—Por enquantonão— respondeuPoirot.—Pelo
menos,nãonoquemedizrespeito.
Mr. Forbes olhou-o como se muito pouco lhe
dissesserespeitoevoltousuaatençãoparaodelegado.O
majorRiddledisse:
— Obrigado,Mr. Forbes. Acho que é tudo. Agora
gostaria de conversar comMiss Chevenix-Gore, se
possível.
—Certamente.Achoqueelaestánosegundoandar
comLadyChevenix-Gore.
— Bem, então talvez seja melhor conversarmos
primeirocom...comoémesmoseunome?...comBurrows
edepoiscomapesquisadora.
—Ambosestãonabiblioteca.Vouavisá-los.
CAPÍTULOSETE
— Trabalho duro — comentou o major Riddle
quandoMr. Forbes deixou a sala. — Para extrair
informaçõesdecertosadvogadosvocêquaseprecisausar
um aspirador. Parece que amoça é o centro de toda a
história.
—Parecenãohaverdúvida.
—Bem,aívemBurrows.
Godfrey Burrows entrou com um ar solícito. Seu
sorriso havia sido cuidadosamente ensaiado para ser
simpáticosemaomesmotempoperderotoquedetristeza
que a ocasião exigia. Por isto mesmo, parecia mais
artificialdoqueespontâneo.
—Gostaríamosde lhepediralgumas informações,
Mr.Burrows.
—Com todo prazer,major Riddle. Estou às suas
ordens.
— Bem, primeiro de tudo, para irmos direto ao
assunto: o senhor tem idéia do que teria levadoSir
Gervaseaosuicídio?
—Nenhuma.Foiumimensochoqueparamim.
—Osenhorouviuotiro?
—Não.Achoqueeuestavanabiblioteca.Eudesci
bastante cedo e fui à biblioteca procurar algumas
referênciasdequeprecisava.Abibliotecaébemdooutro
ladodacasaeassimeunãopoderiaouvirnada.
— Havia alguém com o senhor na biblioteca? —
quissaberPoirot.
—Não,ninguém.
—O senhor faz idéia de onde estariam as outras
pessoasdacasa?
— Acho que a maior parte estava no segundo
andar,preparando-separaojantar.
—Quandoosenhorsedirigiuàsaladevisitas?
— Pouco antes da chegada demonsieur Poirot.
Estavamtodoslá...exceto,éclaro,SirGervase.
—Pareceu-lheestranhoqueelenãoestivesse?
— Sim, pareceu-me. Ele tinha o hábito de estar
sempre na sala de visitas antes mesmo do primeiro
gongo.
—O senhor tinha reparado algo de estranhonos
modos deSir Gervase recentemente? Ele andava
preocupado?Ansioso?Deprimido?
GodfreyBurrowspensouumpouco.
— Não, acho que não. Talvez um pouco... um
poucopreocupado.
—Maseraumapreocupaçãogrande,sobrealgum
assuntoemespecial?
—Não.
— Ele tinha alguma... alguma inquietação de
ordemfinanceira?
—Bem,eleandavacontrariadocomasituaçãode
uma companhia. Para ser mais preciso, a Synthetic
ParagonRubberCompany.
—Eelelhedissealgumacoisaarespeito?
GodfreyBurrowssorriudenovoemaisumaveza
impressãofoiartificial.
— Bem, para ser sincero, o que ele me disse foi:
“Este Bury é ou bobo ou vigarista. Mais provavelmente
umbobo.Mas tenhoque tratá-lo comcalma,por causa
deVanda.”
— E por que ele teria dito isto “por causa de
Vanda”?—perguntouPoirot.
—Bem,osenhorsabe,LadyChevenix-Goregosta
muitodocoronelBuryeelepraticamenteaadora.Segue-
apelacasatodacomoumcachorro.
—SirGervasenuncamostrouciúmes?
—Ciúmes?—espantou-seBurrows.—SirGervase
comciúmes?Achoquenuncanavida lheocorreriaque
umamulher pudesse preteri-lo por outro homem. Isto
lheerainconcebível.
Poirotobservoubrandamente:
— Acho que o senhor não tinha muito boa
impressãodeSirGervaseChevenix-Gore.
Burrowssefezvermelho.
—Não,não.Tinhasim.Ésóquecertascoisasde
SirGervasemepareciamumpoucoridículashojeemdia.
—Quecoisas?
— Aquelas manias feudais, aquele culto dos
antepassados, além de uma certa arrogância em suas
atitudes.SirGervaseeraumhomeminteligentee levara
uma vida fascinante,mas teria sido uma personalidade
mais agradável senão fosse tão absorto em simesmo e
emseupróprioegoísmo.
—Suafilhaconcordavacomosenhor?
Burrowsficouvermelhodenovo.Vermelhovivo.
Finalmentedisse:
— Miss Chevenix-Gore me parece ter uma
mentalidade bemmoderna. Mas nunca me ocorreu lhe
perguntarsuaopiniãosobreseupai.
—Masos jovensdehojenãose furtamadiscutir
os defeitos de seus pais— respondeu Poirot. Falarmal
dospaiséprovadeespíritoavançado.
Burrowsnãodissenada.
OmajorRiddleperguntou:
— Não havia mais nada... nenhuma outra
preocupação de ordem financeira?SirGervasenunca se
queixoudeestarsendoesbulhado?
— Esbulhado? — Burrows parecia incrédulo,
acrescentando:
—Não,elenuncamedissenada.
—Eosenhor tinhaumbomrelacionamentocom
ele?
—Sim,claro,porquenãoteria?
— Quem está fazendo as perguntas sou eu,Mr.
Burrows.
Ojovemfechouacara.
—Possolhegarantirquenosdávamosmuitobem.
—O senhor sabia queSirGervase havia escrito a
monsieurPoirotpedindo-lhequeviesseaestacasa?
—Não.
— Sir Gervase costumava escrever suas próprias
cartas?
—Não,emgeraleleasditavaparamim..
—MasnãofezistocomacartaamonsieurPoirot?
—Não.
—Osenhorsaberiamedizerporquê?
—Não.
—Osenhorteriaidéiadomotivoqueoterialevado
aescreverjustamenteestacartaporsimesmo?
—Não,nenhuma.
—Ah!—fezomajorRiddle,acrescentando:
—Muitocurioso.QuandoosenhorviuSirGervase
pelaúltimavez?
—Poucoantesdemevestirparaojantar.Levei-lhe
algumascartasparaassinar.
—Emqueestadodeespíritoelelhepareceu?
—Bastantenormal.Mepareceumesmoqueestava
satisfeitoconsigomesmo.
Poirotmexeu-seemsuacadeira.
— Verdade? Esta foi sua impressão? É estranho
que um homem satisfeito consigo mesmo poucos
momentosdepoisdêumtironacabeça.Muitoestranho.
GodfreyBurrowsdeudeombros.
—Estouapenaslhedandominhasimpressões.
—Sim, eu sei, e elas sãomuito valiosas.Afinal o
senhor deve ter sido uma das últimas pessoas a verSir
Gervasevivo.
—Aúltimapessoaavê-lovivofoiSnell.
—Vê-lo,sim,masnãoafalarcomele.
Burrowsnãorespondeu.
OmajorRiddleinterveio:
—Aquehorasosenhorsubiuparasevestir?
—Unscincominutosdepoisdassetehoras.
—EoqueSirGervaseestavafazendo?
—Elecontinuounoescritório.
—Quantotempoeleemgerallevavaparasevestir
antesdojantar?
—Unsquarentaecincominutos.
—Então,seo jantareraàsoitoequinzeele teria
subidoomaistardaràsseteemeia?
—Provavelmente.
—Masosenhorsubiuparasevestirmaiscedo?
— Sim, eu preferi me vestir mais cedo para ter
tempo de ir à biblioteca e fazer as consultas de que
precisava.
Poirot assentia pensativamente. O major Riddle
disse:
—Bem, acho que por enquanto é só. Será que o
senhorpoderiamandarMissnão-sei-o-quêentrar?
A pequeninaMiss Lingard entrou quase em
seguida.Elausavadiversascorrentesquetilintaramum
pouco enquanto ela se sentava e olhava
interrogativamenteosdoishomens.
—Este éummomentomuito...muito triste,Miss
Lingard—começouomajorRiddle.
—Semdúvida—concordouelacomdecoro.
—Quandoasenhoritaveiotrabalharaqui?
—Há uns doismeses.SirGervase escreveu aum
amigo seu no Museu Britânico, o coronel Fotheringay,
pedindo-lhe que lhe indicasse alguém para ajudá-lo a
pesquisar a história de sua família e o coronel
Fotheringay me recomendou. Eu tenho bastante
experiêncianestetipodepesquisashistóricas.
— A senhorita achava difícil trabalhar com Sir
Gervase?
—Paradizeraverdade,não.Eraprecisoum jeito
especialpara se lidar comele, o senhor sabe. Mas isto
acontececomtodososhomens.
Omajor Riddle suspeitou vagamente que naquele
mesmo momentoMiss Lingard estava usando um jeito
especialparafalarcomele,mascontinuou:
—SeutrabalhoaquieraentãoajudarSirGervasea
escreverolivro?
—Sim.
—Eoqueasenhoritafaziaexatamente?
PorummomentoMissLingarddeixouentreverque
sobseuaspectoeficiente,haviaemoçõeshumanas.Seus
olhosbrilhavamenquantofalava:
—Eupraticamenteescreviaolivro!Eufaziatodaa
pesquisa, tomavanotas,organizavaomaterial.Edepois
faziaarevisãodoqueSirGervasetinhaescrito.
— A senhorita deve então ter precisado demuito
tato,MissLingard—observouPoirot.
—Tatoefirmeza.Agenteprecisadeambos—disse
MissLingard.
—Sir Gervase não se incomodava com sua... sua
firmeza?
—Ohnão,nemumpouco.Maseusabiamanobrá-
lo, dizendo-lheque elenãoprecisava se incomodar com
detalhesdemenorimportância.
—Compreendo.
— Na verdade, Sir Gervase não era difícil de se
lidar,desdequesesoubesseojeito.
— Agora,MissLingard,gostaríamosdesabersea
senhoritasabedealgumacoisaquepossanoselucidara
respeitodestatragédia.
MissLingardbalançouacabeçanegativamente.
—Sintomuito,masnãocreioquepossaajudá-los.
O senhor compreende, afinal de contas ele não iriame
fazer confidências. Eu lhe era praticamente uma
estranha.De qualquer jeito, acho que ele era orgulhoso
demais para conversar com alguém a propósito de
problemasdefamília.
—Mas a senhorita acha que foram problemas de
famíliaqueolevaramaosuicídio?
MissLingardpareceusurpresa.
—Masclaro.Queoutracoisapoderiaser?
— A senhorita tem certeza de que ele estava
preocupadocomproblemasdefamília?
—Eusabiaqueeleandavamuitoaborrecido.
—Ah,asenhoritasabia?
—Bem...claroqueeusabia.
— Diga-me,mademoiselle, Sir Gervase lhe
confessoualgumavezqueandavaaborrecido?
—Bem...nãodeformadireta.
—Dequeformaentão?
—Deixe-mever.Noteiqueelenãoestavaprestando
atençãoaoqueeudizia.
—Ummomento.Pardon.Quandofoiisso?
—Hojeàtarde.Nósgeralmentetrabalhávamosde
trêsàscinco.
—Continue,porobséquio.
— Como eu ia dizendo,Sir Gervase parecia
encontrardificuldadeemseconcentrarechegoumesmo
aadmitirofato,explicandoquetinhaacabeçaocupada
com outros assuntos. E me disse... deixe-me lembrar
mais ou menos como, embora as palavras talvez não
sejam as mesmas... mas ele disse:“Miss Lingard, é
horrívelquandoumafamíliaorgulhosadesuahistóriase
vêsubitamenteconfrontadacomumadesonra.”
—Eoqueasenhoritarespondeu?
—Apenasalgoparaconsolá-lo.Dissequetodasas
famíliastinhamsuasovelhasnegras,maselasnãoeram
lembradaspelaposteridade.
— E isto teve o efeito calmante que a senhorita
esperava?
—Mais oumenos. Passamos a falar deSir Roger
Chevenix-Gore,poiseutinhadescobertoummanuscrito
daépocacomreferênciasinteressantesàsuapessoa.Mas
mesmo assimSirGervasenãoprestavamuitaatenção,e
finalmente me disse que não ia mais trabalhar hoje à
tardepoistinhasofridoumchoque.
—Umchoque?
—Foi o que ele disse,maspreferi não fazermais
perguntas.Disse-lheapenasquesentiamuito.Eleentão
mepediuqueavisasseSnellquemonsieurPoirotchegaria
no trem das sete e cinqüenta, que um carro deveria
apanhá-lonaestaçãoeojantarseriaatrasadoatéasoito
equinze.
—Elecostumavapedir-lheparatransmitirestetipo
derecado?
—Não.EmgeralistoeratarefadeMr.Burrows.Eu
faziaapenasotrabalholiterário.Nãoeraumasecretária
emnenhumsentidodapalavra.
Poirotperguntou:
—A senhorita achaqueSirGervasetinhaalguma
razão especial para pedir-lhe este recado, em vez de
transmiti-loatravésdeMr.Burrows?
MissLingardpensoualgunsinstantes.
—Bem,épossível,masnahoranãopenseinisto.
Pareceu-me apenas que lhe fosse mais conveniente, já
queeuestavanoescritório.Masagoraqueestoufalando
noassuntomelembroqueelemepediuparanãocontar
a ninguém quemonsieur Poirot estava para chegar.
Explicou-mequeeraumaespéciedesurpresa.
— Ah, ele disse isto? Muito curioso. Muito
interessante.Easenhoritacontouaalguém?
— Claro que não,monsieur Poirot. Apenas
transmitiaSnellorecadocomoSirGervasemepedira.
— Sir Gervase lhe disse mais alguma coisa
pertinentecomocaso?
—Não.Creioquenão.Eleestavacomumarmuito
preocupado, como já disse. Ah, lembro-me que, quando
euiasaindodoescritório,eledisse:“Sebemqueavinda
demonsieurPoirotjánãoadiantenada.Étardedemais.”
— E a senhorita não faz idéia do que ele queria
dizercomisto?
—N...não.
A voz deMiss Lingard revelou um traço apenas
perceptíveldehesitação.Poirotrepetiu,comumarugana
testa:
— Tarde demais. Foi o que ele disse, não?Tarde
demais.
OmajorRiddledisse:
— A senhorita poderia talvez nos dar uma idéia
sobre o motivo da preocupação deSir Gervase com sua
família?
MissLingardrespondeu,medindobemaspalavras:
— Tenho a impressão que pode ser alguma coisa
relacionadacomMr.HugoTrent.
— Com Hugo Trent? E por que a senhorita tem
estaimpressão?
— Bem, não é nada de concreto. É apenas que
ontem de tarde nós tratamos deSir Hugo de Chevenix,
que,infelizmente,nãoteveumcomportamentodosmais
dignosnaGuerradasRosas,eSirGervasedisse:“Nãosei
porqueminhairmãcismoudeescolheronomedeHugo
paraseufilho.Semprefoiumnomeinfeliznahistóriada
família.EladeveriasaberquenenhumHugopoderiadar
boacoisa.”
— O que a senhorita diz é muito interessante—
comentouPoirot.—Sim,oqueasenhoritadizmesugere
umanovahipótese.
—SirGervasenãoentrouemmaioresdetalhes?—
perguntouomajorRiddle.
MissLingardbalançouacabeça.
—Nãoenãoachei convenienteperguntar-lhe.Na
verdade ele estava falandomais consigomesmo do que
comigo.
—Concordo.
Poirotinterrompeudenovo:
— A senhorita é uma estranha à família, mas já
está aqui há doismeses. Será que não poderia nos dar
suasimpressõesdafamíliaedoscriados?
Miss Lingard tirou o pincenê e piscou com ar de
quemrefletia.
—Bem,logodesaídativeaimpressãoqueacabara
deentrarnumhospício.LadyChevenix-Goreviviaaver
fantasmas e Sir Gervase comportava-se como um rei,
cercando todos os seus atos da maior dramaticidade.
Minhaimpressãofoidequeeraocasalmaisdoidoquejá
conhecera.ÉverdadequeMissChevenix-Goresempreme
pareceu uma pessoa normal e aos poucos descobri que
Lady Chevenix-Gore era no fundo uma criatura
extremamente bondosa e gentil. Ninguém poderia ser
mais amável comigo do que ela tem sido. Mas Sir
Gervase... este eu acho mesmo que era doido. Sua
egomania... é assim mesmo que se diz?... ficava pior a
cadadia.
—Eosoutros?
— Acho queMr. Burrows passava momentos
difíceiscomSirGervase.Paraeledeviaserumalívioofato
de quemeu trabalho comSirGervase lhedavaalgumas
horasdefolga.OcoronelBurysemprefoimuitoamável.
EleémuitodedicadoaLadyChevenix-Goreesabiacomo
tratarSirGervase.QuantoaMr.Trent,Mr.ForbeseMiss
Cardwell não posso dizer nada, pois eles chegaram há
poucosdias.
— Obrigado,mademoiselle. E quanto ao capitão
Lake?
—Ele é extremamente simpático. Todos gostavam
dele.
—MesmoSirGervase?
— Sim, mesmoSir Gervase. Uma vez ouvi-o dizer
que Lake era o melhor procurador que ele já tivera. É
certo que o capitão Lake também passava seus apertos
comSirGervase,masdemodogeralelessedavambem.
Poirotassentiupensativamenteemurmurou:
—Háumacoisaqueeuquerialheperguntar,mas
não me lembro no momento. O que era mesmo, meu
Deus?
MissLingardolhouparaelecomjeitodequemse
dispunhaaaguardarcompaciência.
Poirotpareciaembaraçado.
—Tsk!Estánapontadaminhalíngua.
O major Riddle esperou um pouco, mas como
Poirot continuava a franzir as sobrancelhas com ar
perplexo,elecontinuoucomsuasperguntas.
—QuandofoiaúltimavezqueasenhoritaviuSir
Gervase?
—Nahoradochá,nestasala.
—Ecomoelelhepareceu?Normal?
—Sim,dentrodoquelheerapossível.
—Haviaalgumatensãoentreospresentes?
—Não,achoquetodossecomportavamdamaneira
habitual.
—EparaondeSirGervasefoidepoisdetomarseu
lanche?
—FoiparaoescritóriocomMr.Burrows,comode
hábito.
—Estafoiaúltimavezqueasenhoritaoviu?
—Foi.Eumedirigiàpequenasaladevisitasonde
sempretrabalhavaebatiàmáquinaumdoscapítulosdo
livro, baseando-me nas anotações que tinha conferido
comSirGervase.Fiqueiláatéàssetehoras,quandosubi
paradescansarumpoucoepreparar-meparaojantar.
—Creioqueasenhoritaouviuotiro,não?
— Sim, eu estava aqui na sala. Ouvi o que me
pareceu um tiro e fui até ohall. Lá encontreiMr. Trent
c o mMiss Cardwell.Mr. Trent perguntou a Snell se
iríamos ter champanha para o jantar e fez uma
brincadeiraqualquera respeito.Nuncanospassoupela
cabeça que o assunto poderia ser sério. Pensamos que
fosseadescargadeumautomóvel.
Poirotperguntou:
—AsenhoritaouviuMr.Trentdizerquesemprese
podiapensarnahipótesedeumassassinato?
—Acho que ele falou algomais oumenos assim,
masfoibrincando.
—Eoquesepassouemseguida?
—Nóstodosviemosaqui,paraasaladevisitas.
— A senhorita se lembraria da ordem em que as
outraspessoaschegaram?
— Acho queMiss Chevenix-Gore foi a primeira,
seguida porMr. Forbes. Depois, o coronel Bury e Lady
Chevenix-Gore entraram juntos, comMr. Burrows logo
atrás. Acho que foi nesta ordem, mas não posso ter
certezaporqueeleschegaramquaseaomesmotempo.
—Convocadospelosomdoprimeirogongo,não?
— Sim. Todos se apressavam quando ouviam o
gongo, poisSir Gervase fazia questão absoluta de
pontualidadeaojantar.
—Aquehoraselecostumavadescer?
— Quase sempre ele já estava na sala de visitas
antesdoprimeirogongo.
—Asenhoritasesurpreendeuaonãoencontrá-lo
aquihojeànoite?
—Imensamente.
—Ah,consegui!—gritouPoirot.
Miss Lingard e o major Riddle o olharam
espantados,enquantoelecontinuava:
— Lembrei-me do que queria perguntar aMiss
Lingard. Hoje à noite quando todos nos dirigíamos ao
escritório, atrás de Snell, a senhorita abaixou-se e
apanhoualgumacoisa.
— Eu? —Miss Lingard parecia extremamente
surpresa.
—Sim,logoquedobramoseentramosnopequeno
corredor que leva ao escritório. Algo que me pareceu
pequenoebrilhante.
—Éincrível,masnãomelembro...Ah,espereum
momento...Sim,agoramelembro.Équeopegueiquase
sempensar.Deixe-mever...deveestaraqui.
Ela abriu a bolsa e despejou o conteúdo sobre a
mesa.
PoiroteomajorRiddleexaminaramacoleçãocom
interesse.Haviadoislenços,umacaixinhadepó-de-arroz
compacto,umchaveiro,umestojodeóculoseumoutro
objetosobreoqualPoirotprecipitou-seavidamente.
—Deusdocéu!Umabala!—gritouomajorRiddle.
O objeto tinha de fato a formadeumabala,mas
eranaverdadeumapequenalapiseira.
— Foi o que apanhei no chão — disseMiss
Lingard.—Tinhameesquecidoporcompleto.
—Asenhoritasabedequeméesta lapiseira,Miss
Lingard?
—Sei.ÉdocoronelBury.Eleamandou fazerde
umabalaqueoferiunaGuerradosBoers.
—Asenhoritasabequandoeleaperdeu?
— Bem, ele a tinha consigo hoje à tarde quando
elesestavamjogandobridge,porquequandochegueipara
ochárepareiqueeletomavanotadospontoscomela.
—Quemestavajogandobridge?
—OcoronelBury,LadyChevenix-Gore,Mr.Trente
MissCardwell.
— Se a senhorita não se incomoda nós
guardaremosalapiseiraeadevolveremosnósmesmosao
coronelBury—dissePoirotamavelmente.
— Sim, será um favor. Sou muito distraída e
poderiameesquecerdedevolvê-la.
—Neste caso a senhoritapoderia fazer o favorde
pediraocoronelBuryqueviesseaqui?
—Poisnão.Vouprocurá-loimediatamente.
Miss Lingard saiu apressada. Poirot levantou-se e
começouaandarpelasala,semrumocerto.
— Vamos ver se podemos reconstituir o que se
passouduranteatarde—começouele.—Étudomuito
interessante. Às duas e meiaSir Gervase examina
algumas contas com o capitão Lake.Ele está
ligeiramente preocupado. Às três, troca idéias comMiss
Lingard sobre o livro da família.Parece extremamente
agoniado. Miss Lingard supõe que seu aborrecimento
tenhaalgumacoisaavercomHugoTrent,porcausade
uma observação casual que ele deixar escapar. Na hora
do cháseu comportamento é normal. Depois do chá,
Godfrey Burrows acha que ele estásatisfeito consigo
mesmo. Às cinco para as oito ele desce, entra no
escritório, rabiscaDESCULPEMnumpedaçodepapel e
dáumtironacabeça.Riddledissedevagar:
—Vejoondevocêquerchegar.Éincongruente.
— Uma alteração de estado de espírito muito
estranha parece se passar comSir Gervase. Ele está
preocupado, ele está seriamente aflito, ele tem um
comportamentonormal,eleestáalegre.Háalgodemuito
curioso nisto tudo. E além domais ele diz outra coisa
estranha.Tardedemais.Diz que eu chegaria aquitarde
demais.Bem,nãodeixadeserverdade.Euchegueiaqui
tardedemais...paravê-lovivo.
—Compreendo.Vocêachaque...
—Oqueeuachonacertaéquenuncadescobrirei
porqueSirGervasememandouchamar.
Poirot continuava caminhando pela sala. Ele
ajeitouasposiçõesdedoisoutrêsobjetossobrealareira;
examinou uma mesinha para jogo que se encontrava
encostada de encontro a uma parede, tirando de uma
gaveta as folhas de apontamento para bridge. A seguir
dirigiu-se a outra mesa e examinou a cesta que se
encontravasobela,masláencontrouapenasumsacode
papel.Poirotopegou,cheirou-o,murmurou“laranjas”e
se pôs a alisá-lo, lendo o nome impresso— “Carpenter
andSons,Frutieres,HamboroughSt.Mary”.
Poirot estava dobrando o saco de papel
cuidadosamentequandoocoronelBuryentrounasala.
CAPÍTULOOITO
Ocoroneldeixou-secairaumacadeira,sacudiua
cabeça,suspirouedisse:
— É horrível, Riddle. Lady Chevenix-Gore vem
mostrando uma coragem a toda prova. É uma mulher
extraordinária.
Sentando-se outra vez em sua cadeira Poirot
perguntou:
— O senhor conhece Lady Chevenix-Gore há
muitosanos,não?
—Sim,estiveemseubailededebutante.Lembro-
me que tinha botões de rosa nos cabelos e um vestido
branco,esvoaçante.Nãohavianinguémquelhechegasse
pertonosalão!
Sua voz vinha cheia de entusiasmo. Poirot
estendeu-lhealapiseira.
—Esteobjetolhepertence?
—Hem?Ah,sim.Euaestavausandohojeàtarde
enquanto jogávamos bridge. Sabe que nunca joguei tão
bemquantohoje?
—Osenhorestavajogandobridgeantesdolanche,
não?QualeraoestadodeespíritodeSirGervasequando
veiotomarseuchá?
— O de sempre. Nunca me poderia passar pela
cabeça que ele estivesse pensando em se suicidar. Mas
pensandobem, talvez estivesseumpoucomais excitado
doqueonormal.
—Qualfoiaúltimavezqueosenhoroviu?
— Eu? Naquela hora, no chá. Nunca mais vi o
pobrecoitadovivo.
—O senhor não teria ido ao escritório depois do
lanche?
—Não,nuncamaisovi,estoulhedizendo.
—Aquehorasosenhordesceuparaojantar?
—Quandoouvioprimeirogongo.
— O senhor e Lady Chevenix-Gore desceram
juntos?
—Não... nós, nós nos encontramos nohall. Acho
queelatinhaidoàsaladejantarparaveroarranjodas
flores...algoassim.
OmajorRiddleinterrompeu:
— Espero que o senhor não se aborreça, coronel
Bury, se eu lhe fizer uma pergunta pessoal. Houve
algumaespéciededesentendimentoentreosenhoreSir
GervaseapropósitodaSyntheticParagonRubberCo.?
OcoronelBuryfez-sesubitamentemuitovermelho
egaguejouumpouco:
—N...não,de jeitoalgum.Maséprecisose levar
em consideração que o velho Gervase era uma criatura
difícil.Esperavaquetudoquetocavasetransformasseem
ouro. Parecia não compreender que há uma crise de
carátermundial. Todas as ações tinham que sofrer um
pouco.
— Então quer dizer que havia um certo
desentendimentoentreossenhores?
— Não era desentendimento. Apenas
incompreensãodeGervase.
—Ele pôs a culpa de alguns prejuízos que tivera
sobresuapessoa?
—Gervaseerameiodoido.Vandasabiadisto,mas
sabia também como lidar com ele. Eu preferi deixar o
casoemsuasmãos.
Poirot tossiueomajorRiddlemudoudeassunto,
depoisdeolhá-lodeesguelha.
—Seiqueosenhoréumvelhoamigoda família,
coronelBury.SeráqueosenhorsabiacomoSirGervase
tinhafeitoseutestamento?
—Bem,achoqueamaiorpartedaherançaseriade
Ruth.FoioquededuzidoqueGervasedeixavaescapar.
— O senhor não acha que isto era um pouco
injustocomHugoTrent?
—GervasenãogostavadeHugo.Nuncasimpatizou
comele.
— Mas ele tinha uma noção muito grande de
família. Afinal,Miss Chevenix-Gore não passava de sua
filhaadotiva.
O coronel Bury hesitou,mas, depois de limpar a
gargantaumaouduasvezes,acaboupordizer:
— Olhem, acho que devo lhes contar uma coisa,
maspeço-lhessigiloabsolutoarespeito.
—Claro...claro...
—Ruthéilegítima,maséumaChevenix-Gore.É
filha do irmão de Gervase, Anthony, que morreu na
guerra.Parecequeeleteveumcasocomumadatilógrafa
edepoisdesuamorteestaescreveuaVanda.Vanda foi
vê-la, amoça estava grávida. Vanda discutiu o assunto
comGervasepoistinhaacabadodeserinformadadeque
nãopoderiatermaisfilhos.Oresultadofoiquequandoa
criançanasceuelesaadotaram,comamãerenunciando
a todos os direitos. Eles criaram Ruth como sua filha
verdadeira e para todos os propósitos elaé sua filha
verdadeira e basta vê-la para se compreender que ela é
umaautênticaChevenix-Gore.
— Ah— fez Poirot. — Isto torna a atitude deSir
Gervasemuitomaisfácildecompreender.Masseelenão
gostavadeMr.HugoTrentporquediaboqueriatantoque
elecasassecomMissRuth?
—Pararegularizarasituaçãodafamília.Erauma
coisaquecombinavabemcomseutemperamento.
— Embora ele não gostasse do rapaz, nem
confiassenele?
OcoronelBurydeuumpequenobufo.
— O senhor não pode compreender o velho
Gervase.Elenãoolhavaaspessoascomosereshumanos.
Arranjava casamentos como se os personagens fossem
reis e rainhas. Ele considerava apropriado que Ruth e
HugopassassemaseassinarChevenix-Gore.OqueHugo
eRuthpensavamdoassuntonãolheinteressava.
—EmademoiselleRuthestavaporacasodisposta
asatisfazerseusplanos?
OcoronelBuryriu.
—Ela?Nunca,elaéumafera.
—O senhor sabia que pouco antes demorrerSir
Gervase estava preparando um testamento com a
condiçãodequeMissChevenix-Goresóentrarianaposse
daherançasesecasassecomMr.Trent?
Ocoroneldeixouescaparumassovio.
— Então elesabia de alguma coisa entre Ruth e
Burrows...
Assimque falouocoronelsearrependeu,masera
tarde.Poirotlançou-seaoassunto:
— Então havia alguma coisa entremademoiselle
RutheojovemMr.Burrows?
—Provavelmentenadadesério...nadadefirme.O
majorRiddletossiuedisse:
— Acho melhor o senhor nos contar tudo o que
sabe, coronel Bury. Pode ser que esteja aí a explicação
paraoestadodeespíritodeSirGervase.
— Acho melhor mesmo — concordou o coronel,
emboraumpoucohesitante.—Bem,ofatoéqueojovem
Burrows é bem-parecido... ou pelo menos as mulheres
parecempensarassim.UltimamenteeleeRuthandavam
muitojuntoseGervasenãogostava...nãogostavanada,
masnãoqueriadespedirBurrowscommedodepioraras
coisas.EleconheciaRuthmuitobem,sabiaqueelanão
aceitaria imposições. Então acho que teve essa idéia.
Ruthnãoéotipodemoçaquesacrificariatudoporamor.
Elagostadeconfortoegostadedinheiro.
—EoqueosenhorachadeMr.Burrows?
Ocoronelrespondeuque,emsuaopinião,Burrows
não era flor que se cheirasse, expressão idiomática que
Poirotnãoentendeubem,masquetrouxeumsorrisoaos
lábiosdomajorRiddle.
Houve mais algumas perguntas e respostas.
FinalmenteocoronelBuryseretirou.
Riddle olhou de soslaio para Poirot, que estava
sentadoepareciaabsortoemseuspensamentos.
—Oquevocêachadetudoisto,Poirot?
Ohomenzinhoergueuasmãos.
— Acho que começo a ver um contorno, um
propósitodefinido.
Riddledisse:
—Éumcasodifícil.
—Sim,éumcasodifícil.Mascadavezmaisuma
frase começa a fazer sentido, embora talvez dita por
acaso.
—Quefrase?
— Aquela frase que Hugo Trent disse rindo:
“Sempreháoassassinato...”
Riddledissevivamente:
—Sim,seiquevocêtemestadesconfiançadesdeo
início.
—Masvocênãoconcorda,meuamigo,quequanto
mais aprendemos sobre o caso mais a hipótese de
suicídiosemostra inverossímil?Masparaassassinatoo
quenãofaltasãomotivos!
—Mesmoassimnãopodemosignorarosfatos—a
portatrancada,achavenobolsodeSirGervase.Sim,eu
sei que sempre se pode dar um jeito. Há toda sorte de
truques, de molas, de alfinetes entortados. Sim,
tecnicamente suponho que seriapossível... Mas estes
truques funcionammesmo? É o que eu sempre duvido
muito.
— Mesmo assim vamos examinar o caso sob o
pontodevistadeassassinato,nãodesuicídio.
— Concordo. Como você está aqui aposto que no
fimvaisercrimemesmo!
Poirotsorriu:
—Achoqueestaobservaçãonãoémuitoelogiosa.
Masdepoisficousériooutravez:
—Sim,vamosexaminarocasodopontodevistade
assassinato. Quando o tiro foi disparado havia quatro
pessoasnohall:MissLingard,HugoTrent,MissCardwell
e Snell. Onde estariam os outros?— perguntou Poirot,
continuando:
—Burrows estava na biblioteca, de acordo com o
que ele mesmo diz, embora ninguém possa corroborar
esta afirmativa.Os outros presumivelmente estavam em
seus quartos, mas quem garante que eles realmente
estariam lá? Todos parecem ter descido separadamente
parao jantar.MesmoLadyChevenix-Gore eBury só se
encontraram nohall. Lady Chevenix-Gore vinha saindo
dasaladejantar.DeondesaiuBury?Nãoseriapossível
que ele estivesse vindo não do andar de cima masdo
escritório?Afinaldecontas,comoeleperdeuaquelelápis?
— Sim, a lapiseira nos oferece conjeturas muito
interessantes.Elenão se perturboumuito quando eu a
mostrei,masépossívelqueelenãosaibaondeeuaachei
e nem soubessemesmo que a tivesse perdido. Vejamos,
quemmaisestavajogandobridgequandoocoronelusava
a lapiseira? Hugo Trent eMiss Cardwell, mas eles não
podemserincluídosentreossuspeitos,poistêmumálibi
corroboradopelomordomoeporMissLingard.Aquarta
pessoanamesadebridgeeraLadyChevenix-Gore.
—Vocênãopodesuspeitardelaasério.
— Por que não, meu amigo? Posso suspeitar de
todomundo.Suponhaque,apesardetodasuaaparente
dedicaçãoaSirGervase,naverdadeelaamassemesmoo
fielBury?
—Hum— refletiu Riddle.—De certa forma tem
havidoumménageàtroisháanos.
— E não se esqueça do desentendimento entre o
coronel Bury eSir Gervase a propósito daquela
companhiadeborracha.
— É bem possível queSir Gervase estivesse
começando a se fazer realmente difícil — concordou
Riddle.—Nãoconhecemosospormenoresdocaso.Maso
desentendimento pode ter sido a causa daquela carta
chamando-o aqui.Digamos queSirGervase suspeitasse
que Bury vinha roubando-o mas não quisesse
publicidade sobre o caso, com receio que sua mulher
tambémestivesseenvolvidanatrama.Sim,épossível,eaí
tanto o coronel quanto Lady Chevenix-Gore teriam um
motiva Não deixa mesmo de ser estranho que Lady
Chevenix-Gore tivesse recebido a morte de seu marido
com tanta calma. Este negócio de fantasmas pode ser
fingimento.
—Masháaindaoutrascomplicações—continuou
Poirot — e estou me referindo aMiss Chevenix-Gore e
Burrows. Eles tinham interesse em queSirGervasenão
assinasse o novo testamento, pois ela seria a única
herdeira, com a condição de que seumarido tomasse o
nomedafamília...
— Sim, e o relato de Burrows sobre o estado de
espíritodeSirGervasehojeànoiteéumpoucoestranho.
DizelequeSirGervaseestavadeótimohumor,satisfeito
consigo mesmo, mas esta descrição não combina com
nenhumadasoutrasqueouvimos.
— E ainda háMr. Forbes. Parece muito correto,
muitoempertigado,deumescritóriodeadvocaciamuito
tradicional.Masmesmoosmaisrespeitáveisadvogadosjá
fraudaram os clientes ao se acharem eles mesmos em
apertosfinanceiros.
— Acho que você está começando a exagerar,
Poirot.
—Vocêachaqueoqueeudigolembraoenredode
umfilme?Masavidarealmuitasvezesparece-secomo
quevemosnoscinemas,meucaromajorRiddle.
— E tem sido mesmo, aqui neste condado —
concordouodelegado.—Nãoachamelhoracabarmosde
interrogarosoutros?Estáficandotarde,aindanãovimos
Ruth Chevenix-Gore e ela é provavelmente a mais
importantedetodos.
— Concordo. Temos também que falar comMiss
Cardwell. Aliás acho melhor interrogá-la primeiro, pois
não deverá tomar muito tempo, e depois então
dedicarmos todaanossaatençãoaMissChevenix-Gore.
—Boaidéia.
CAPÍTULONOVE
Ao chegar Poirot tinha olhado Susan Cardwell
apenas de relance, mas agora estudou-a mais
demoradamente. A moça não era propriamente bonita,
mas tinha um rosto inteligente e uma graça que faria
invejaamuitasoutrasjovens.Seucabeloeramagníficoe
a pintura de seu rosto muito bem feita. Seus olhos
pareciamatentos.
Depois de algumas indagações preliminares o
majorRiddleperguntou:
—Asenhoritaéumaamigachegadadafamília?
—Não,mal os conheço. FoiHugo quem levouSir
Gervaseameconvidarparaviraqui.
— A senhorita é, portanto, uma amiga de Hugo
Trent?
—Decerta formasim.Massoumaisdoque isto.
Sousuanamorada—SusanCardwellsorriuaodizeras
últimaspalavras.
—Asenhoritaoconhecehámuitotempo?
—Não. Poucomaisdeummês— respondeu ela,
acrescentandodepoisdeumapausa:
—Vamosficarnoivos.
—E ele a trouxe aqui para anunciar onoivado à
família?
— Não, nada disto. Estamos mantendo tudo em
segredo.Eusóvimdarumaespiada,poisHugomedisse
que era uma casa de loucos. Achei melhor vir ver com
meusprópriosolhos.Hugoémuitobom,masnãotema
menormalícia.NossaposiçãoédifícilporquenemHugo
nemeu temosdinheiro e o velhoSirGervase, que eraa
maioresperançadeHugo,tinhadecididoquequeriavê-lo
casadocomRuth.Hugonãosabeimporsuavontadeeeu
temi que ele concordasse com o casamento, esperando
depoisver-selivreatravésdeumdivórcio.
—Aidéiaentãonãoaatraíamuito,mademoiselle?
—perguntouPoirotamavelmente.
— Nem um pouco. Temi que Ruth tivesse idéias
estranhas e se recusasse a um divórcio depois do
casamento.Batimeupé.Nadadeigreja,anãoserqueeu
própriaestivesselátodanervosaedebranco.
— Então a senhorita veio estudar a situação
pessoalmente?
—Vim.
—Ehbien!—dissePoirot.
— Bem, descobri que Hugo tinha razão. Com
exceção de Ruth, a família é doida varrida. Ruth na
verdadeéumaboamoça.Elatemseupróprionamorado
e mostrava tão pouco entusiasmo pelo tal casamento
quantoeumesma.
—AsenhoritaestásereferindoaMr.Burrows.
—Burrows?Claro que não. Ruth jamais gostaria
deumconvencidocomoaquele.
—Queméentãoseunamorado?
Susan Cardwell fez uma pausa, acendeu um
cigarroefinalmenterespondeu:
— É melhor o senhor perguntar a ela mesma.
Afinal,nãoédaminhaconta.
OmajorRiddleperguntou:
— Qual foi a última vez que a senhorita viuSir
Gervase?
—Nahoradolanche.
—Seucomportamentolhepareceuestranho?
Ajovemsacudiuosombros.
—Nãomaisdoqueohabitual.
—Oqueasenhoritafezdepoisdolanche?
—JogueibilharcomHugo.
—NãotornouaverSirGervase?
—Não.
—Masouviuotiro?
— Bem, foi estranho, o senhor compreende. Eu
penseiqueoprimeirogongotivessesoado,acabeideme
vestir as pressas, saí correndo do quarto, ouvi o que
pensei ser o segundo gongo e desci as escadas
praticamenteaospulos.Naminhaprimeiranoiteaquieu
tinhameatrasadoumminutoparao jantareHugome
disse que assim não teríamos a menor chance com o
velho. Por isto, desci correndo. Hugo ia logo adiante e
então ouvimos um estalo. Hugo perguntou se era uma
rolha de champanha e Snell respondeu que não. De
qualquerformanãomepareceuqueobarulhoviesseda
salade jantarMissLingardapareceuedissequeachava
queobarulho tinhasidono segundoandar,mas todos
acabamos chegando à conclusão de que deveria ser a
descargadeumautomóvel.Finalmenteentramosnasala
devisitaseesquecemosoassunto.
—Não lhe ocorreunempor ummomento queSir
Gervasepudessetersesuicidado?—quissaberPoirot.
—Eulheperguntoseeudeveriaterpensadouma
coisa destas. O velho parecia muito satisfeito com sua
própria importância.Nuncamepassoupela cabeça que
elepudessesesuicidar.Mesmoagoranãoconsigoatinar
comummotivo.Achoqueéporqueeleeradoidomesmo.
—Dequalquerforma,foiumacontecimentomuito
triste.
— Muito, especialmente para mim e para Hugo.
Pelo que sei, ele não deixou nada para Hugo, ou
praticamentenada.
—Quemlhedisseisto?
—HugosoubecomovelhoForbes.
OmajorRiddlefezumapequenapausa.
— Bem,Miss Cardwell, acho que é tudo. A
senhorita acha queMiss Chevenix-Gore está em
condiçõesdeconversarconosco?
—Achoquesim.Vouchamá-la.
Poirotinterrompeu-aantesqueeladeixasseasala.
—Ummomento,mademoiselle.Asenhoritaviuisto
antes?
Elemostrava-lhealapiseirafeitacomumabala.
—Visim,vihojenamesadebridge.Creioqueédo
coronelBury.
— Sabe se ele a guardou consigo quando o jogo
acabou?
—Nãotenhoamenoridéia.
—Obrigado,mademoiselle.Étudo.
—EntãovouchamarRuth.
RuthChevenix-Goreentrounasalacomoportede
uma rainha. Sua cabeça estava erguida e em seu rosto
não havia traço de abatimento. Mas seus olhos eram
atentos, comoosdeSusanCardwell.Elausavaaindaa
mesma roupa com que Poirot a vira ao chegar— uma
túnicaemtomdamasco-claro.Noseuombroestavapresa
umarosadeumtombemforte.Umahoraantesaflorse
mostrarafrescaeviçosa,masagoracomeçavaamurchar.
—Eentão?—perguntouRuth.
— Sinto imensamente ter que incomodá-la —
começouomajorRiddle.
Elainterrompeu-o.
—Éclaroqueosenhortemquemeincomodar.O
senhor precisa incomodar todomundo, é de seu dever.
Maspossopoupar-lhealgumtempo.Nãotenhoamenor
idéiadoqueterá levadoovelhoaosuicídio.Tudooque
posso lhe dizer é que não combina nada com o seu
temperamento.
— A senhorita notou algo de estranho em seu
comportamento hoje? Ele estava deprimido ou por
demais excitado? Havia alguma coisa de anormal com
ele?
—Achoquenão.Sehavianãoreparei.
—Qualfoiaúltimavezqueasenhoritaoviu?
—Nahoradochá.
Poirotfalou:
—Asenhoritanãofoiaoescritório...maistarde?
—Não.Aúltimavezqueovifoinestasala.Sentado
ali.
Elaapontouumacadeira.
— Compreendo. A senhorita já viu esta lapiseira
antes?
—ÉdocoronelBury.
— A senhorita lembra-se de tê-la visto
recentemente?
—Nãosaberialhedizercomcerteza.
— A senhorita sabe se havia algum... algum
desentendimentoentreSirGervaseeocoronelBury?
—ApropósitodaParagonRubberCo.?
—Sim.
— Creio que havia. Pelo menos sei que o velho
estavafuriosocomele.
—Seráqueeleachavaqueestavasendovítimade
umafraude?
Ruthdeudeombros.
—Elenãoentendianadadefinanças.
Poirotdisse:
—Posso fazer-lheumapergunta, senhorita?Uma
perguntatalvezimpertinente?
—Poisnão.
—Asenhoritasente...asenhoritaestátristecoma
mortedeseupai?
Elaolhou-ofixamente.
— É claro que estou triste. Só não sou de
choramingar pelos cantos. Mas sentirei saudade dele...
Eugostavamuitodovelho.Éassimqueochamávamos,
Hugoeeu,sempre.OVelhoouentãooVelhoHomem...
talvezporquenosdesseaidéiadeumserprimitivo,meio
antropóide,meiopatriarca.Parecefaltaderespeito,mas
naverdadehaviamuitaafeiçãoportrásdenossamaneira
de falar. É claro que ele foi o velho mais teimoso e
asneirentoquejamaisexistiu.
—Muitointeressante,senhorita.
—Ovelho tinhao cérebrodeumpiolho.Nãome
leveamal,maséapuraverdade.Completamenteincapaz
dequalquertrabalhointelectual.Masvejambem,eraum
homem de grande personalidade e coragem, um desses
tiposquevãoaoPóloouentramemduelos.Sempreachei
queeleerafanfarrãodepropósito,porquesabiaquesua
inteligência não era das melhores. Qualquer um podia
enganá-lo.
Poirottirouacartadobolso.:
—Leiaisto,mademoiselle.
Elaleuedevolveuacartaaele.
—Entãofoiporistoqueosenhorveio!
—Estacartalhesugerealgumacoisa?
Elabalançouacabeça.
— Não. Mas é bem possível que seja verdade.
Qualquerumseriacapazderoubaropobrecoitado.John
diz que o procurador que o antecedeu no emprego
enganava o velho a torto e a direito. Mas o senhor
compreende, o velho dava-se tantos ares que jamais se
rebaixaria a examinar detalhes. Ele era a alegria dos
vigaristas.
— A senhorita pinta um quadro diferente dos
demais.
—Bem...ovelhoescondia-seportrásdeumaboa
camuflagem.Vanda,minhamãe, dava-lhe todo o apoio.
Elesentia-sefelizpavoneando-seporaí,pretendendoser
oTodo-Poderoso.Épor istoque,deumacertamaneira,
estoucontentecomsuamorte.Foimelhorparaele.
—Nãoconsigoentendê-la,mademoiselle.
Ruthdisse,meditativamente.
— Ele estava piorando. Mais dia menos dia iria
acabar internado... As pessoas já começavam a falar
abertamente.
— A senhorita sabia que ele pretendia fazer um
novo testamento pelo qual a senhorita só entraria na
possedaherançasesecasassecomMr.Trent?
Eladeixouescaparumgrito:
— Que absurdo! Seja como for, tenho certeza de
quetalcondiçãopoderiaseranuladanostribunais.Não
sepodeobrigarninguémasecasarcomestaouaquela
pessoa.
— Mas se ele chegasse mesmo a assinar o
testamento,asenhoritateriaobedecidosuavontade?
—Eu...eu...
Ruthinterrompeu-se.Pordoisoutrêsminutosela
permaneceusentadacomar irresoluto,olhandoaponta
deseusprópriospés.Umpedacinhodelamadesprendeu-
sedosaltodeumdossapatosecaiunotapete.
Derepenteelalevantou-seedisse:
—Esperem.
Elasaiuquasecorrendoevoltouemseguida,como
capitãoLakeaseulado.
— Tínhamos que contar a verdade mais cedo ou
mais tarde — anunciou. — É melhor dizermos tudo
agora. John e eu nos casamos em Londres, há três
semanas.
CAPÍTULODEZ
Dos dois, o capitão Lake era quem parecia mais
embaraçado.
— É uma grande surpresa,Miss Chevenix-Gore...
ou melhor,Mrs. Lake — disse o major Riddle. —
Ninguémsabiadocasamento?
—Não.Nósmantivemossegredo,emboraJohnnão
gostassemuitodisso.
Lakedisse,gaguejandoumpouco:
—Eu...euseique foiumprocedimentoestranho.
SeiquedeveriateridodiretoaSirGervase...
Ruthinterrompeu:
— E ter-lhe dito que queria casar com sua filha,
com o que ele o poria fora a pontapés, criando um
escândalo dentro de casa e provavelmente me
deserdando? Grande consolo seria saber que tínhamos
agidodireito.Acredite-me,foiomelhorcaminho.Seuma
coisaestáfeita,estáfeita.Aindahaveriaumadiscussão,
maseleacabariasedandoporvencido.
MesmoassimLakenãopareciamuitoconvencido.
Poirotperguntou:
—QuandoasenhoritapretendiadaranotíciaaSir
Gervase?
Ruthrespondeu:
— Eu estava preparando o terreno. Ele tinha
andadodesconfiadodealgumacoisaentreJohneeu,por
isto fingi interesse emGodfrey. Assimanotícia demeu
casamentocomJohnparaeleacabariasendoumalívio.
—Masasenhoritanãocontouaninguémsobreo
casamento?
— Bem, no fim acabei contando a Vanda. Eu
queriatê-ladomeulado.
—Eelaficoudeseulado?
— Sim. O senhor compreende, ela não gostava
muitodaidéiadomeucasamentocomHugo...achoque
porqueéramosparentes.Elaachavaqueafamíliaeratão
doidaquenossos filhosnãopoderiamsernormais.Mas
era exagero de Vanda, porque eu sou apenas filha
adotiva, embora acredite que meus pais sejam primos
longínquosdovelho.
—Asenhorita temcertezadequeSirGervasenão
suspeitavadenada?
—Tenho.
Poirotinterveio:
— Isto é verdade, capitão Lake? O senhor tem
certeza que o assunto não foi mencionado em sua
conversadestatardecomSirGervase?
—Possogarantir-lhequenãofoi.
—Porque,capitãoLake, fomos informadosdeque
Sir Gervase estava extremamente preocupado hoje à
tarde,depoisqueosenhorsaiu,equeumaouduasvezes
elefalouemdesonradafamília.
—Nãotocamosnoassunto—repetiuLake,muito
branco.
— Essa foi a última vez que o senhor viuSir
Gervase?
—Sim,jálhedisseisto.
—Ondeestavaosenhorasoitoeoitodestanoite?
— Onde estava? Em minha casa, a quase um
quilômetrodaqui.
— O senhor não veio a esta casa ou não esteve
pertodelaaessahora?
—Não.
Poirotvoltou-separaamoça:
— E a senhorita, onde estava quando seu pai se
suicidou?
—Nojardim.
—Nojardim?Easenhoritaouviuotiro?
— Sim, mas pensei que fosse alguém caçando
coelhos,emboraobarulhorealmentetivessemeparecido
muitoperto.
—Quecaminhoasenhoritausouparavoltarpara
dentrodecasa?
—Euentreiporestaportaenvidraçada.
Ruthindicoucomacabeçaumaporta-janelaatrás
dela.
—Haviaalguémaqui?
—Não.MasHugo,SusaneMissLingardentraram
quaseaseguir,vindosdohall.Falavamdetiros,crimese
coisasassim.
—Compreendo— disse Poirot.— Sim, creio que
agoracompreendo.
OmajorRiddledisseumpoucohesitante:
—Bem... nós...muito obrigado.Creio que é tudo
porenquanto.
Rutheseumaridosaíramdasala.
—Quediabo!—começouomajorRiddle.—Este
negóciocadavezficamaiscomplicado.
Poirot concordou. Ele apanhara o fragmento de
lamaquesedestacarado sapatodeRutheoobservava
pensativamentenamão.
— É como o espelho partido na parede —
respondeu. — O espelho do morto. Cada fato que
descobrimosnosmostraumângulodiferentedomorto.É
comoumaimagemrefletidasobosmaisdiversospontos
de vista. Mas muito em breve vamos ter um quadro
completo...
Ele levantou-se e jogou o pedacinho de lama na
cestadepapéis.
—Voudizer-lheumacoisa,meuamigo.Achavedo
mistério está no espelho. Vá ao escritório e olhe você
mesmo,sevocênãomeacredita.
OmajorRiddlerespondeudecididamente:
—Seéassassinatovocêéquemtemqueprovar.Na
minha opinião, já falei, é suicídio. Você ouviu o que a
moça disse sobre um antigo procurador enganandoSir
Gervase?ApostocomoLakeinventouaquelahistóriapara
encobrir suas próprias falcatruas. Provavelmente ele é
quemestavaroubandoSirGervase,ovelhodesconfioue
mandouchamá-loporquenãosabiaaindaaquepontoas
coisasentreLakeeRuthtinhamchegado.Então,hojeà
tardeLakelhedissequetinhamsecasado.Anotíciafoia
última gota paraSir Gervase. Agora era “tarde demais”
para qualquer coisa. Ele procurou uma saída para sua
vergonha. Seu cérebro, que normalmente já não
funcionavamuitobem,perdeudetodoarazão.Naminha
opiniãoéoqueaconteceu.Oquevocêtemadizercontra
minhateoria?
Poirotinterrompeudesúbitoseupasseiopelasala.
—Oqueeutenhoadizer?Isto:nãotenhonadaa
dizercontrasuateoria,maselaéumateoriaquenãovai
muitolonge.Hácertascoisasqueelanãolevaemconta.
—Comoporexemplo?
— As discrepâncias no comportamento deSir
Gervase hoje, o achado da lapiseira do coronel Bury, o
depoimentodeMissCardwell(queémuitoimportante),o
queMissLingarddissesobreaordememqueaspessoas
chegaram para o jantar, a posição da cadeira deSir
Gervasequandoseucorpofoiencontrado,osacodepapel
que tinha laranjas e, finalmente, a pista muito
importantedoespelhopartido.
OmajorRiddleolhou-ofixamente.
—Vocêvaiquerermedizerquetodaestamixórdia
fazsentido?
Poirotrespondeusuavemente:
— Espero fazer com que ela tenha sentido.
Amanhã.
CAPÍTULOONZE
NamanhãseguintePoirotacordou logodepoisdo
nascerdosol.Tinham-lhedadoumquartonaparteleste
dacasa.
Levantando-se da cama ele abriu as cortinas e
certificou-sedequeamanhãerabonitaeosol jáhavia
nascido.
Assim satisfeito, começou a vestir-se com a
meticulosidade habitual, acabando por envergar um
grossosobretudoeenrolarumcachecolnopescoço.
Emseguida,esgueirou-sepéantepédeseuquarto,
dirigindo-se à sala de visitas no andar térreo. Abriu a
porta-janelasemruídoesaiuparaojardim.
Osolaindamalapareciaehaviaumanévoanoar,
a névoa que em geral precede um dia bonito. Hercule
Poirot seguiu pela rua calçada ao redor da casa até
chegar ao escritório deSir Gervase, onde parou e
examinouacena.
Logoforadaporta-janelahaviaumafaixadegrama
que corria paralelamente à casa e, em frente a ela, um
largocanteirocomplantaseflores.Asmargaridasainda
estavambonitas,apesardocomeçodooutono.Emfrente
ao canteiro estava o caminho lajeado em que Poirot se
encontrara. Um caminho de grama atravessava o
canteiro, correndo do passeio onde se achava Poirot à
faixa gramada logo contígua à casa. Poirot examinou-o
comcuidadomasacabouporbalançaracabeça.Aseguir,
concentrou-senocanteirodosdoisladosdocaminhode
grama.
Suacabeçabalançouvagarosamente.Nocanteiroà
direitahaviapegadasclaramentevisíveisnaterramacia
Poirotolhavaaspegadas,franzindoatesta,quando
ouviuumruídoeergueuacabeçavivamente.
Alguém abrira uma janela logo acima dele. Poirot
viusurgiremunscabelosruivose,emolduradosporeles
orostointeligentedeSusanCardwell.
— Que diabo o senhor está fazendo aí tão cedo
monsieurPoirot?Algumainvestigação?
Poirotcurvou-secomimpecávelcorreção.
— Bom dia,mademoiselle. Sim, a senhorita tem
razão. A senhorita vê agora um detetive... um grande
detetive,melhordizendo...noatodedetetar.
Susan curvou a cabeça, como impressionadapela
retumbanteafirmação.
— Prefiro lembrar disto em minhas memórias —
observou.—Devodescereajudá-lo?
—Ficariaencantado.
— Quando ouvi barulho aí embaixo pensei que
fosse um ladrão. Como é que o senhor saiu para o
jardim?
—Pelasaladevisitas,
—Estareiaídentrodeumminuto.
Elafoiextraordinariamentepontual.Poirotparecia
conservar-senamesmaposiçãoemqueelaodeixara.
—Asenhoritacostumaacordarcedoassim?
—Nãoconseguidormirdireito.Estavacomeçando
a sentir aquele desespero que acomete a gente quando
dãoascincohoraseaindanãopudemosdormir.
—Nãoétãocedoassim.
—Senãoéparece.Masentão,meusuperdetetive,o
quedevemosinvestigar?
—Ésóobservar,mademoiselle.Pegadas.
—Edaí?
—Quatro pegadas— continuou Poirot.— Preste
atenção, vou mostrar-lhe direito. Duas indo para o
escritório,duassaindodele.
—Dequemsão?Dojardineiro?
— Mademoiselle, mademoiselle. Estas pegadas
foramdeixadaspelos sapatosdelicadosdeumamulher.
Piseaquiaoladonaterraparaconvencer-se.
Susan hesitou um pouco mas finalmente pisou
com grande cautela no lugar indicado por Poirot. Ela
estavausandochinelosmarronsdesaltoalto.
—Asenhoritavê,quasedomesmotamanho.Mas
apenasquase.Estasoutraspegadasforamfeitasporpés
maiscompridosqueosseus.TalvezosdeMissChevenix-
Gore, ou deMiss Lingard, ou talvez mesmo de Lady
Chevenix-Gore.
—DeLadyChevenix-Gorenão. Ela tempésbem
pequenos. Não sei como, mas antigamente todas as
mulherespareciamterpéspequenos.EMissLingardusa
sapatosdesaltobaixo.
—EntãoestaspegadassãodeMissChevenix-Gore.
Ah,sim...Agorame lembro.Elamedissequeesteveno
jardimontemànoite.
Poirot eSusan voltaramà casapelo caminhoque
tinhamvindo.
— Ainda estamos investigando? — perguntou
Susan.
—Sim.AgoravamosaoescritóriodeSirGervase.
Poirotfoinafrente,comSusanCardwellasegui-lo.
Aportaarrombadaaindapendiadasdobradiças.O
aposento conservava-se da mesma forma em que fora
deixado na véspera. Poirot abriu as cortinas, deixando
entraraluzdodia.
Ele permaneceu calado um momento ou dois;
depoisperguntouàmoça:
—Presumoqueasenhoritanãotenhatidogrande
experiênciacomladrões?
Susansacudiuacabeça,desalentada:
—Temoquenão,monsieurPoirot.
— O delegado também parece ter poucos ladrões
entreseusamigos.Seuscontatoscomomundodocrime
se desenvolvem numa base estritamente oficial. Mas
comigo é diferente. Tive certa vez uma conversa muito
agradável com um ladrão, que me contou algo
extremamente interessante a respeito dessas portas
envidraçadas...umtruquequepodeserfeitocomotrinco
seestenãoseachaemperrado.
Enquanto falava, Poirot girou a maçaneta. A
lingüetaseergueu,deixandooburaconochão,ePoirot
pôde puxar as duas folhas da porta em sua direção.
Tendo-asaberto,fechou-asnovamente...nassemgirara
maçaneta, de modo que a lingüeta permaneceu no ar.
Depois de um instante Poirot deu uma pancada seca a
meia altura da porta. O impacto fez a lingüeta cair no
encaixe.Amaçanetagirouporsimesma.
— Compreende onde eu quero chegar,
mademoiselle?
—Creioquesim.
Susantinhaempalidecido.
— A porta está fechada. É impossível entrar no
escritório,masépossívelsairdele,fecharaportaporfora
evibrar-lheumgolpequefazalingüetacairnoencaixe.
Aportaestáentãotrancadaequalquerpessoaacreditaria
quefoitrancadapeloladodedentro.
— E foi isto o que aconteceu ontem à noite? —
perguntouSusan,comvoztrêmula.
—Achoquesim,mademoiselle.
Susangritou:
—Nãoacredito.Nãoépossível.
Poirot não respondeu. Ele dirigiu-se à lareira e
virou-sedenovoparaamoça:
—Precisodasenhoritacomotestemunha.Játenho
umatestemunha—Mr.Trent.Elemeviuencontrareste
pedacinho de vidro ontem à noite e conversamos a
respeito. Deixei o vidro nomesmo lugar, para a polícia
apanhá-lo. Cheguei mesmo a dizer ao delegado que o
espelho partido era uma pista importante,mas ele não
medeuouvidos.Agoraqueroqueasenhoritatestemunhe
que estou colocando este pedacinho de vidro em um
envelope.Eeuescrevonoenvelope...assim...edepoiso
colo.Asenhoritaestáobservandotudo?
—Sim...masnãoseioqueosenhorquerdizer.
Poirot caminhou até a outra extremidade do
escritório.Deláeleolhounadireçãodaescrivaninhaedo
espelhopartidoportrásdela.
—Oqueeuquerodizer,mademoiselle,équesea
senhoritaestivesseaquidepéontemànoite,olhandona
direçãodaqueleespelho,asenhoritapoderiatervistonele
umcrimesendocometido...
CAPÍTULODOZE
Talvez pela primeira vez na vida, Ruth Chevenix-
Gore (agora Ruth Lake) desceu na hora para o café da
manhã.HerculePoirotestavanohalleconduziu-aaum
cantoantesqueelaentrassenasaladejantar.
—Tenhoumaperguntaalhefazer,madame.
—Poisnão.
— A senhora foi ao jardim ontem à noite. A
senhorapisounocanteirode flores foradoescritóriode
SirGervase?
Rutholhou-ofixamente.
—Sim,duasvezes.
—Ah,duasvezes.Comoduasvezes?
— Da primeira vez eu estava apanhando umas
margaridas.Istofoimaisoumenosàssetehoras.
—Nãolhepareceumahoraestranhaparaapanhar
margaridas?
—Realmenteera,masdepoisdocháVandadisse-
mequeasfloresqueeuapanharademanhãparaamesa
de jantar não estavam bonitas. Por isto fui apanhar
outras.
—Querdizerquesuamãepediu-lheparaapanhar
floresmaisfrescas?
—Sim.Eufuiapanhá-laspoucoantesdassete.Eu
astireidaquelecanteirojustamenteporqueeleficanum
lugarescondidoeassimnãoestragariaojardim.
—Estácerto.Maseasegundavez?
—Foipoucoantesdojantar.Eutinhaderramado
umpoucodecremenomeuvestido,aquipertodoombro.
Eu não queria trocar de roupa e nenhuma de minhas
floresartificiaiscombinavacomoqueeuestavausando.
Maslembrei-medetervistoumarosa,queaindaflorescia
apesar do outono, enquanto eu colhia as margaridas,
entãovolteiaocanteiroparacolhê-laeprendê-laemmeu
ombro.
Poirotsacudiuacabeçavagarosamente.
—Sim, lembro-mequeasenhorausavaumarosa
ontemànoite.Aquehorasasenhoraacolheu?
—Nãomelembroexatamente.
—Mas éessencial queasenhorase lembre.Faça
umesforço.
Ruth franziu a testa, deu uma rápidamirada em
Poirotedesviouoolhar.
—Nãopossolhedizerexatamente.Devetersido...
ah,sim...devetersidomaisoumenosunscincominutos
depoisdasoito.Foiquandoeuestavadevoltaaoredorda
casa que ouvi o gongo e em seguida aquele estranho
barulho. Eu estava com pressa porque pensei que o
gongofosseoprimeiroenãoosegundo.
— Ah, a senhora pensou isso... e a senhora não
tentouabriraportadoescritórioquedavaparaojardim
enquantoasenhoraestavacolhendosuarosa?
— Para dizer a verdade, tentei. Pensei que ela
pudesse estar aberta e o caminho de volta seria mais
curto.Masaportaestavatrancada.
— Então tudo está explicado. Dou-lhe meus
parabéns,madame.
Elaolhoucomumarsurpreso.
—Oqueosenhorquerdizer?
—Que a senhora temuma explicação para tudo,
para a lama em seus sapatos, para suas pegadas no
canteiro,parasuasimpressõesdigitaisdoladodeforada
porta.Tudomuitoconveniente.
Antes que Ruth pudesse responder,Miss Lingard
havia descido as escadas quase correndo. Seu rosto
estavaafogueadoeelapareciaumpoucoalarmadadever
RuthePoirotjuntos.
—Desculpem-me—falou.—Háalgumproblema?
Ruthrespondeufuriosa:
—AchoquemonsieurPoirotenlouqueceu!
E deixou-os, entrando na sala de jantar.Miss
Lingard voltou-se para Poirot com uma expressão
surpresa.
Elesacudiuacabeça.
—Vou explicar tudodepois do café.Gostaria que
todos se reunissem às 10 horas no escritório deSir
Gervase.
Entrandonasala,Poirotrepetiuseupedido.Susan
Cardwellmirou-oderelanceedepoisolhouRuth.
HugoTrentperguntou:“Porquê?”—mascalou-se
aoreceberumarápidacotoveladadanamorada.
Ao terminar seu café, Poirot levantou-se e
caminhou em direção à porta. Lá chegando, voltou-se,
tirou do bolso um relógio grande e fora da moda, e
anunciou:
—Faltamcincoparaasdez.Àsdezemponto,no
escritório.
Poirotolhouemredor.Umgrupoderostosolhava-
o com grande interesse. Todos estavam lá, com uma
única exceção, e dentro de segundos aquela exceção
tambémentrounoescritório.LadyChevenix-Gorechegou
quasesemfazerruído.Elapareciapálidaecansada.
Poirotofereceu-lheumacadeiraeelasesentou.Ao
fazeristo,olhouoespelhopartidonaparede,estremeceu,
e virouumpouco a cadeira, demodo a olhar emoutra
direção.
—Gervase ainda está aqui— comunicou em voz
calma. — Pobre Gervase... seu espírito em breve será
libertado.
Poirotpigarreoueanunciou:
—Chamei-osaquiparaouvir os fatos verdadeiros
sobreosuicídiodeSirGervase.
— Foi o destino— disse Lady Chevenix-Gore. —
Gervaseeraforte,masseudestinoeramais.
OcoronelBurymoveu-seumpoucoparaafrente.
—MinhapobreVanda.
Ela. sorriu e estendeu-lhe a mão. Ele segurou-a.
LadyChevenix-Goredissebaixinho:
—Vocêétãobom,Ned.
Ruthinterrompeuasperamente:
— Devemos acreditar,monsieur Poirot, que o
senhor descobriu sem possibilidade de erro a causa do
suicídiodemeupai?
Poirotbalançouacabeça:
—Não,madame.
—Entãoparaquetantaencenação?
Poirotrespondeusuavemente:
—NãodescobriacausadosuicídiodeSirGervase
Chevenix-GoreporqueSirGervaseChevenix-Gorenãose
suicidou.Elenãosematou.Foiassassinado.
— Assassinado? — diversas vozes ecoaram a
palavra. Rostos perplexos voltavam-se na direção de
Poirot. Lady Chevenix-Gore ergueu os olhos, disse
“Assassinado?Não!”ebalançouacabeçavagarosamente.
— O senhor diz assassinado? — era Hugo quem
falava agora. — É impossível. Não havia ninguém no
escritórioquandoentramos.Aportaquedáparaojardim
estava fechada por dentro. A do corredor estava
trancada,comachavenobolsodemeutio.Elenãopode
tersidoassassinado.
—Masfoi.
— E o assassino saiu pelo buraco da fechadura?
Ou pela chaminé? — perguntou o coronel Bury
ceticamente.
— O assassino saiu pela porta do jardim —
anunciouPoirot.—Voumostrar-lhescomo.
Elefez-lhesnovaexibiçãocomotrinco.
—Compreendemagora?Foiassimqueoassassino
saiu. Desde o começo achei impossível queSir Gervase
tivesse se suicidado. Ele tinha uma grande egomania e
homensassimnãosematam.
— E havia mais — continuou Poirot. —
Aparentemente, pouco antes de suamorte, Sir Gervase
tinha sentado à escrivaninha, rabiscado a palavra
DESCULPEMnumpedaçodepapeleentãodadoumtiro
nacabeça.Masantesdisto,poralgumaestranharazão,
ele tinha mudado a posição da cadeira, girando-a de
formaqueelaestavaagoradeladoemrelaçãoàmesa.Por
quê?Deviahaveralgummotivo.Comeceiacompreender
melhorquandoencontreiumpequeninopedaçodevidro
grudadoàbasedeumapesadaestatuetadebronze.
— Então perguntei a mim mesmo — continuou
Poirot: como um pedaço de vidro veio parar aqui? E a
resposta me pareceu bem óbvia. O espelho tinha sido
quebrado não por uma bala, mas pela estatueta. O
espelhotinhasidoquebradodeliberadamente.
— Mas por quê? Voltei à escrivaninha, olhei a
cadeira. Sim, era claro. Tudo estava errado. Nenhum
suicidairiagiraracadeira,inclinar-sesobresuabordae
sóentãodispararum tironacabeça.Tudonãopassava
deumaencenação,poisnãotinhahavidosuicídio.
—Eentãosurgiuoutracoisamuitoimportante.O
depoimento deMiss Cardwell.Miss Cardwell disse que
desceucorrendoasescadasontemànoiteporquepensou
quetinhaouvidoosegundogongo.Oquequerdizerque
elaantesjulgavaterouvidoumprimeiro.
—Agora,prestematenção.SeSirGervaseestivesse
sentado à sua escrivaninha em posição normal, onde
teria ido a bala? Voando em linha reta ela sairia pela
porta,seaportaestivesseaberta,eatingiriaogongo.
—Vocêspercebemaimportânciadodepoimentode
Miss Cardwell? Ninguém mais ouviu aquele primeiro
gongo,mas o seu quarto se encontra exatamente sobre
esteescritórioesuaposiçãoeraidealparaouvi-lo.
— Não havia portanto possibilidade alguma de
suicídio.Umhomemmortonãopodelevantar-se,fechara
porta, trancá-la e sentar-se novamente. Havia mais
alguémnoescritórioe,portanto,nãosetratadesuicídio
e sim de assassinato. Alguém cuja presença parecia
naturalaSirGervaseestavaaseulado,falandocomele.
É provável que Sir Gervase estivesse concentrado em
alguma coisa que estivesse escrevendo. O assassino
apontaorevólverparasuacabeçaedispara.Ocrimeestá
cometido.Éprecisodisfarça-lo!Oassassinocolocaluvas,
fecha a porta e coloca a chave no bolso deSir Gervase.
Massuponhamosquealguémtivesseouvidoobarulhodo
gongo?Seriafácilcompreenderassimqueaportaestava
aberta, não fechada. Então a cadeira é posta em outra
posição, o corpo cuidadosamente ajeitado, os dedos
comprimidos firmemente no revólver, o espelho
deliberadamente despedaçado. A seguir o assassino sai
pela porta-janela, vibra-lhe um golpe por fora e sai
pisandonãonagrama,masnocanteiro,ondeseriamais
fácildesmancharaspegadascomumancinho;a seguir
contornaacasaeentranasaladevisitas.
Poirotfezumapausaecontinuou:
— Há apenas uma pessoa que estava no jardim
quando o tiro foi disparado.Estamesmapessoadeixou
suas pegadas no canteiro e suas impressões digitais do
ladodeforadaportadojardim.
Elemoveu-seemdireçãoaRuth.
—Ehaviaummotivo,nãohavia? Seupai tinha
descoberto a verdade sobre seu casamento secreto. Ele
estavasepreparandoparadeserdá-la.
— É mentira — gritou Ruth numa voz cheia de
desprezo. — Não há uma palavra de verdade em sua
história.Émentiradocomeçoaofim.
— As provas contra a senhora são muito fortes.
Podeserqueumjúriacrediteemsuainocência.Podeser
quenão.
—Elanãoprecisaráenfrentarumjúri.
Os outros se voltaram, espantados.Miss Lingard
estavadepé,comorostodesfigurado.Elatremiadospés
àcabeça.
—Eu omatei. Eu confesso tudo. Eu tinhameus
motivos e só estava esperando uma oportunidade.
Monsieur Poirot está certo. Eu o segui ao escritório, já
com a pistola, que tinha tirado antes da gaveta. Eu
coloquei-me de pé a seu lado, falando sobre o livro... e
disparei o tiro. Foi logo depois das oito horas. A bala
atingiu o gongo. Eu nunca imaginara que ela ia
atravessarsuacabeçadaquele jeito.Nãohaviatempode
saireprocurarporela.Assim,tranqueiaportaecoloquei
a chave no seu bolso. Depois girei a cadeira, quebrei o
espelho e, depois de escrever DESCULPEM em letra de
imprensa,saípelaportadojardimcomomonsieurPoirot
disse. Eu pisei no canteiro, mas desmanchei minhas
pegadascomumancinhoquejátinhadeixadoali.Então
volteiàsaladevisitas,ondetinhadeixadoaportaquedá
paraojardimaberta.NãosabiaqueRuthtambémtinha
saídoporali.Eladeveterdadoavoltapelafrentedacasa
enquanto eu ia pelos fundos, pois precisava pôr o
ancinhonodepósitode ferramentas.Espereinasalade
visitas até que ouvi passos descendo as escadas e Snell
caminhandoparaogongo.Então...
Elavoltou-separaPoirot.
—Osenhornãosabeoqueeufizentão?
—Sim,sei.Encontreiosacodepapelnacesta.Foi
uma idéia muito engenhosa. A senhora simplesmente
repetiu um truque que as crianças adoram: encheu o
saco de ar e o estourou. Fez um barulho satisfatório.
Depoisasenhoraatirouosaconacestaefoiparaohall.
Asenhoraacabaradeestabelecerahoradosuicídio—e
umálibiparasimesma.Mashaviaaindaumacoisaque
apreocupava—abalaqueasenhoranãotiveratempode
apanhar. Ela devia estar perto do gongo. Era
indispensável porémque fosse encontradano escritório,
pertodoespelho.Sónãoseiquando lheocorreua idéia
delançarmãodalapiseiradocoronelBury.
—Foinaquelahoramesmo—disseMissLingard.
—Quandotodosentramosnasaladevisitas,vindosdo
hall.FiqueisurpresaaoverRuthláecompreendiqueela
deveria ter vindo do jardim. Então vi a lapiseira do
coronelBurysobreamesadebridgeedisfarçadamentea
coloqueiemminhabolsa.Sealguémmaistardemevisse
apanharabala,eupoderiafingirqueeraalapiseira.Mas
na verdade não pensei que alguém tivesse me visto
apanhando a bala. Quando todas olhavam o corpo eu
deixei-acairpertodoespelho.Quandoosenhordisseque
me vira pegando alguma coisa no chão fiquei contente
porterpensadonalapiseira.
—Sim,asenhorafoimuitoastuta.Alapiseirame
confundiuporcompleto.
—Eutemiaquealguémtivesseouvidooverdadeiro
tiro, mas sabia também que todos estavam se vestindo
para o jantar e que os criados estariam em suas
dependências. A única que poderia ouvi-lo seriaMiss
Cardwellmaselaprovavelmentepensariatratar-sedeum
cano de descarga. Mesmo assim ela apenas ouviu o
impactodabalanogongo,pensandoquefosseaprimeira
chamadaparaojantar.Pensei...penseiquetudotivesse
corridoàperfeição.
Mr.Forbesdissecomsuavozprecisa:
— É uma confissão extraordinária. Parece não
havermotivos...
MissLingardinterrompeu-o:
—Haviaummotivo.
Easeguir:
— Vamos, chamem a polícia. O que estão
esperando?
Poirotinterveio:
— Vocês se incomodam de sair do escritório?Mr.
Forbes,chameomajorRiddle,porfavor.Euficareiaqui
atésuachegada.
Vagarosamente,umporum,osdemais saíramda
sala.Atônitosainda,semcompreender,davamolharesde
esguelhaàpequenamulherquepermaneciadepé,quase
orgulhosa, com seu cabelo grisalho cuidadosamente
repartido.
Ruth foi a última a sair. Ela hesitou ainda na
porta.
—Nãocompreendo—dissepor fim,num tomde
vozaindairritado,comoquemacusaPoirot.—Aindahá
pouco o senhor acreditava queeu tivesse matado meu
pai.
—Não,não—dissePoirot, balançandoa cabeça.
—Nuncaacrediteinisto.
Ruthsaiu.
Poirot ficousócomaempertigadaMissLingard,a
aparentemente tranqüila senhorita de meia-idade que
acabaradeconfessarumcrimeasangue-frio.
—Não—concordouMissLingard.—Osenhornão
acreditava que ela tivesse cometido o crime. O senhor
acusou-aparafazer-meconfessar,não?
Poirotassentiu.
—Enquantoesperamos—continuouMissLingard
emtomcoloquial—,bemqueosenhorpoderiadizer-me
oqueolevouasuspeitardemim.
— Diversas coisas. Em primeiro lugar, sua
descriçãodeSirGervase.Umhomemorgulhosocomoele
jamaisserefeririaemtermospejorativosaseusobrinho
na presença de uma estranha, especialmente alguém
comoasenhoraque,afinaldecontas,erasuaempregada.
Asenhoraprocurava fortalecerahipótesedosuicídio.A
senhora também se esforçou demais ao tentar me
convencer que a causa do suicídio foi uma desonra
relacionadacomHugoTrent.EsteeraoutrofatoqueSir
Gervase jamais admitiria para um subordinado. Havia
aindaoobjetoqueasenhoraapanhounohalleofatode
que, ao me dizer que Ruth entrara na sala de visitas,
omitiu o detalhe de que fora pelaporta do jardim. E
finalmente eu encontrei o saco de compras— algo que
dificilmente se poderia esperar encontrar na sala de
visitas de uma mansão como Hamborough Close. A
senhoraeraaúnicapessoaqueestavanasaladevisitas
quandoo“tiro” foiouvido.Osacodepapeléumtruque
tipicamente feminino... digamos assim, um truque
doméstico. Tudo se ajustava. A tentativa de lançar
suspeitassobreHugoeafastá-ladeHugo,omecanismo
docrime...eatéseumotivo.
MissLingardestremeceu.
—Osenhorconheceomotivo?
—Creioquesim.Omotivodocrimefoiafelicidade
deRuth.Achoqueasenhorasabiaoudesconfiavadoque
havia entre ela e John Lake. E como tinha acesso aos
papéis deSir Gervase, leu o rascunho de seu novo
testamento, que deserdava Ruth, a não ser que ela se
casassecomHugoTrent.Istolevou-aadecidir-seafazer
justiça com suas próprias mãos. Quando ele escreveu
chamando-me a esta casa a senhora achou a
oportunidade ideal, pois poderia fingir depois, como
fingiu, que ele estava extremamente preocupado com
algumproblemafamiliarenvolvendoHugoTrent.Nunca
sabereioquelevouSirGervaseameescreveremprimeiro
lugar.Provavelmentealgumasuspeitavagadequeestava
sendo roubado por Burrows ou por Lake. Mas tenho
certeza de que quem me mandou o telegrama foi a
senhora,preparandoocenárioparadizerdepoisqueSir
Gervase se referira à minha chegada com um “tarde
demais”.
MissLingarddissearrebatadamente:
— Gervase Chevenix-Gore era um tirano, um
esnobe e um convencido. Eu não iria permitir que ele
arruinasseafelicidadedeRuth.
Poirotdissesuavemente:
—Ruthésuafilha,não?
— Sim. Ela é minha filha. Eu nunca deixei de
pensar nela. Quando soube queSir Gervase Chevenix-
Gore procurava alguém que o ajudasse a escrever a
história de sua família, aproveitei a oportunidade. Eu
queria verminha filha e sabia que LadyChevenix-Gore
nãome reconheceria.Elanãomeviahámuito tempoe
naquelaépocaeuera jovemebonita.Mesmomeunome
tinhasidomudado.Alémdomais,LadyChevenix-Goreé
muito distraída para gravar o rosto de alguém durante
tanto tempo. Eu gostava dela, mas odiava a família
Chevenix-Gore, que tinha me tratado como se eu fosse
umaintocável.EagoraGervasequeriaarruinaravidade
Ruth com seu orgulho e seu esnobismo.Mas eu estava
decididaafazerRuthfeliz.Eelaseráfeliz...senuncalhe
contaremameurespeito.
Eraumapelo,nãoumaafirmação.
Poirotcurvou-se:
—Nãodireinadaaninguém.
MissLingardrespondeuserenamente:
—Obrigada.
Mais tarde,depoisqueapolícia jásaíracomMiss
Lingard, Poirot encontrou Ruth Lake com omarido no
jardim.
Eladisseemtomdesafiador:
—Osenhorpensavamesmoqueeutivessematado
meupai,monsieurPoirot?
—Madame,eusabiaqueasenhoranãopoderiater
matadoseupai...porcausadasmargaridas.
—Asmargaridas?Nãocompreendo.
— Madame, haviaapenas quatro pegadas no
canteiro.Masdeveriahavermuitasmais,poisasenhora
estiveralácolhendoflores.Oquesignificaqueentresua
primeira e sua segunda visita, alguém havia
desmanchado todas as pegadas. Isto só podia ter sido
feito pelo assassino e, como suas pegadas da segunda
visita não tinham sido removidas, a senhora não era a
criminosa. Sua inocência estava automaticamente
estabelecida.
OrostodeRuthseiluminou.
—Ah, compreendo agora. O senhor sabe... talvez
seja horrível o que vou dizer, mas sinto pena daquela
pobremulher. Afinal de contas ela preferiu confessar a
meverpresa...oupelomenoselapensavaqueeupoderia
serpresa.Elaagiudeumamaneiramuito...muitonobre.
Não me agrada a idéia de vê-la submetida a um
julgamentoporcrimedemorte.
Poirotrespondeu:
—Nãoseaflija.Elanãochegaráa ser julgada.O
médicoacabademedizerqueelatemumsérioproblema
cardíacoenãoviverámaisquealgumassemanas.
—Émelhorassim—disseRuth.
E concluiu, enquanto pegava uma flor e a
acariciavadeencontroaorosto:
—Pobremulher.Porqueteráelafeitoaquilo?
TriângulodeRodes
CAPÍTULOUM
Hercule Poirot estava sentado na areia branca e
olhava ao longe omar azul. Ele estava cuidadosamente
vestido num terno branco de flanela e sua cabeça se
encontrava bem protegida por um grande chapéu
panamá. Poirot pertencia à geração antiquada que
acreditavanomáximopossíveldeproteçãocontrao sol.
MissPamelaLyall,quesentava-seaseuladoefalavasem
cessar, representava a moderna escola de pensamento,
pois usava o mínimo possível de pano sobre o corpo
queimadodesol.
Devezemquandoelaseinterrompiaparaseuntar
um pouco mais com um vidro de óleo colocado a seu
lado,naareia.
Do outro lado deMiss Pamela Lyall, sua grande
amiga,MissSarahBlake,estavadeitadadebruçosnuma
espalhafatosatoalhalistrada.ObronzeadodeMissBlake
era absolutamente perfeito, o que levava sua amiga a
dardejar-lhedetemposemtemposolharesinvejosos.
—Euaindaestoucheiademanchas—queixou-se
ela tristonha.Monsieur Poirot, será que o senhor se
incomodariadepassarumpoucodeóleoaquinoombro,
ondenãoconsigoalcançar?
Monsieur Poirot atendeu-a e depois limpou
cuidadosamente a mão em seu lenço.Miss Lyall, cujos
principais interesses na vida eram o estudo da espécie
humana ao seu redor e o som de sua própria voz,
continuouafalar.
— Eu estava com a razão sobre aquela mulher...
aquelanomodeloChanel.ElaéValentineDacres...quer
dizer,Chantry.Euareconhecilogo.Elaélinda,não?É
fácil entender por que tanta gente se apaixona por ela.
Elaobviamentenãoesperadelesoutraatitude...oqueé
metadedabatalhaganha.Aqueleoutrocasalquechegou
ontemsãoosGold.Eleémuitobemapanhado.
—Estãoemlua-de-mel?—perguntouSarahnuma
vozabafada.
MissLyallsacudiuacabeçacomarexperiente.
—Não. As roupas dela não são tão novas assim.
Sempre posso dizer quando umamoça está em lua-de-
mel.Osenhornãoachaqueacoisamais fascinantedo
mundo é observar as pessoas,monsieur Poirot, e
descobrirumaporçãodecoisassobreelascomosimples
fatodeanalisá-las?
—Nãoésóanálise,minhaquerida—interrompeu
Sarah.—Vocêtambémfazumaporçãodeperguntas.
—Eu aindanem falei com osGold— respondeu
MissLyallcomdignidade.—Edequalquerjeitonãovejo
quemalhajanagenteseinteressarpelossereshumanos.
Nãohánadamaisfascinantequeanaturezahumana.O
senhornãoacha,monsieurPoirot?
DestavezMissLyallfezumapausasuficientemente
grandeparaumarespostadePoirot.
Semtirarosolhosdomar,elereplicou:
—Çadepend.Pamelaescandalizou-se.
—Oh,monsieurPoirot.Nãocreioquepossahaver
nadamais interessante,mais...maisimprevisível que os
sereshumanos.
—Imprevisível?Não,istonão.
— Mas eles são imprevisíveis. Quanto mais o
senhorpensaqueosconhece,maiselesosurpreendem.
Poirotbalançouacabeça.
— Não, não, não é verdade. Raríssimas vezes
alguémfazumacoisaquenãoestejadanssoncaractère.
Nofimchegaasermonótono.
—Discordocompletamentedosenhor—disseMiss
PamelaLyall.
Ela ficou quase umminuto em silêncio antes de
voltaraoataque.
—Assimquevejopessoascomeçoapensarnoque
elassão,comosão,noqueestãopensando,noqueestão
sentindo.Émuitoexcitante.
—Dejeitoalgum—discordouPoirot.—Anatureza
humana repete-se com mais freqüência do que
suspeitamos.Omartemmuitomaisvariedade.
Sarahvirou-separaeleeperguntou:
—Osenhorachaqueossereshumanostendema
repetir certas fórmulas de comportamento? Fórmulas
estereotipadas?
—Précisément—dissePoirot,enquantofaziacom
odedoumdesenhonaareia.
—Oqueosenhorestádesenhando?—perguntou
Pamelacomcuriosidade.
—Umtriângulo—respondeuPoirot.
Mas a atenção da moça já tinha se voltado em
outradireção.
—OlhemaíosChantry—anunciou.
Uma mulher vinha caminhando pela praia: uma
mulheralta,muito conscientede si ede seucorpo.Ela
dirigiu-lhesummeio-sorrisocomumacenodecabeçae
se sentou um pouco adiante, enquanto deixava
escorregardosombrosasaídadepraiaemtomvermelho
edourado.Seumaiôerabranco.
Pamelasuspirou.
—Elanãotemumcorpolindo?
MasPoirotestavaolhandoseurosto—o rostode
umamulherde39anosquedesdeos16erafamosapor
suabeleza.
Como todo mundo, ele sabia muitas coisas de
ValentineChantry.Elaera famosapormuitasrazões—
por seus caprichos, por sua fortuna, por seus enormes
olhos azuis, por suas aventuras matrimoniais e suas
aventurasextramatrimoniais.Tinhatidocincomaridose
umnúmeroaindamaiordeamantes.Jáforacasadacom
umcondeitaliano,ummagnatadoaço,norte-americano,
umjogadorprofissionaldetênis,umpilotodecarrosde
corrida. Destes quatro, o norte-americanomorrera,mas
os outros tinham sido displicentemente descartados em
processosdedivórcio.Seismesesatráselasecasarapela
quintavez—comumcomandantedaMarinha.
Era ele quem caminhava atrás dela. Era um tipo
moreno, silencioso, com um queixo quadrado e um ar
feroz.TinhaalgodeumhomemdeNeanderthal.
Elafalou:
—Tonymeuquerido...minhacigarreira.
Elejáatinhaabertoparaelaenãosóacendeuseu
cigarro como ajudou-a a baixar as alças do maiô. Ela
deitou-seaosol,comosbraçosabertos.Elesentou-sea
seu lado, como um animal selvagem que guarda sua
presa.
Pamela disse, num tom de voz suficientemente
baixoparaqueocasalnãoaouvisse:
— Eles me interessamterrivelmente... Ele parece
ser um brutamontes! Tão caladão, com um ar tão
furibundo...Suponhoquemulherescomoelagostemde
tiposassim.Devesercomocontrolarumtigre!Sónãosei
équantotempoestecasamentovaidemorar.Elasecansa
delesrapidamente.Masseelatentarselivrardesteacho
queelevaiserperigoso.
Outrocasalvinhachegando,timidamente.Eramos
recém-chegados da véspera—Mr. eMrs. DouglasGold,
comoMiss Lyall sabia por ter inspecionado o livro de
registro de hóspedes. O livro especificava não apenas o
nomedefamíliacomoosprenomeseaidadedecadaum.
Mr. Douglas CameronGold tinha 31 anos eMrs.
MarjorieEmmaGoldtinha35anosdeidade.
Comojáfoidito,ohobbydeMissLyalleraoestudo
dossereshumanos.Aocontráriodagrandemaioriados
ingleses, ela era capaz de falar à primeira vista com
estranhos,emvezdedeixarpassarumasemanaantesde
encetar os primeiros tímidos esforços, como é o típico
hábitobritânico.Sendoassim,aonotaro embaraçoea
hesitaçãodeMrs.Gold,elatomouainiciativa:
—Bomdia.Nãoestáumamanhãmaravilhosa?
Mrs.Golderaumamulherpequena,lembrandode
certa forma um camundongo. Não era feia, até pelo
contrário, pois tinha traços bem feitos e uma boa pele,
mas havia nela um ar de acanhamento e falta de
confiançaemsimesmaquelevavaaspessoasalhedarem
pouca atenção. Já seu marido era extremamente bem-
parecido,deumjeitoquaseteatral,comcabeloslourose
crespos, olhos azuis, ombros largos e quadris estreitos.
Pareciamais um artista num palco que um homem da
vidacomum,masassimqueabriuabocaestaimpressão
desapareceu. Ele era natural, sem afetação, e talvez até
meiosimplório.
Mrs.Gold sorriu agradecida aPamela e sentou-se
pertodela.
—Comooseubronzeadoestábonito!Eumesinto
terrivelmentebranca.
—Masdámuitotrabalhoumbronzeadoassim—
suspirouMissLyall.
Fezumapequenapausaedepoisprosseguiu:
—Vocêssãorecém-chegados,não?
—Sim,chegamosontemànoite.Viemosdenavio,
pelaVapod’Italia.
—VocêsnuncatinhamvindoaRodesantes?
—Não.Éumabelezaaqui.
Seumaridoaparteou:
—Penaquesejatãolonge.
—Ah,sim,sefossemaispertodaInglaterra...
Comavozabafadapelatoalha,Sarahdisse:
— Aí seria horrível. Já pensaram estas praias
cheiasdeingleses,semnemlugarparaagentesemexer?
—Éverdade—respondeuDouglasGold.—Éuma
maçada que a lira italiana esteja tão por baixo no
momento.
Aconversaçãoprosseguiualgunsminutosaolongo
de uma linha estereotipada. Ninguém poderia chamá-la
debrilhante.
Deitada um pouco adiante na areia, Valentine
Chantry subitamente espreguiçou-se e sentou-se,
tomando cuidado para não deixar o maiô escorregar
sobreobusto.
Eladeuumbocejo,umbocejobemevidentemasao
mesmotempograciosoefelino,enquantoolhavaaoredor
com uma expressão casual. Seus olhos pousaram
rapidamentesobreMarjorieGoldedepoisfixaram-secom
arpensativonoscabelosdouradosdeDouglasGold.
Ela fez ummovimento sinuoso e falou numa voz
um pouco mais alta do que seria necessário para se
comunicarcomseumarido.
— Tony meu amor, este sol não está divino? Eu
devotersidoumaadoradoradosolemoutraencarnação,
vocênãoacha?
Omarido limitou-se auma resposta baixa que os
outrosnãopuderamentender,masValentinecontinuou
emtomaltoeestudado:
—Seráquevocêpodeestenderestatoalhamelhor
paramim,meuamor?
Ela tomou cuidados infinitospara ajeitar denovo
seu belo corpo sobre a toalha. Douglas Gold olhava-a
agoraehaviaumaexpressãodeinteresseemseurosto.
Mrs.GoldobservouemtomalegreaMissLyall:
—Quemulherlinda!
Pamela,quegostavatantodedarquantodereceber
informação,respondeubaixo:
— Ela é Valentine Chantry, a mesma que já foi
ValentineDacres.Aindaémuitobonita,não?Omarido
parecedoidoporela.Nãoadeixasairdeperto.
Mrs.Goldolhouomar,eentãodisse:
— Vamos dar uma nadada, Douglas? A água
pareceestarótima.
Ele ainda olhava Valentine Chantry e custou um
poucoaresponder.Finalmentedisse,comardistraído:
—Nadar?Ah,sim.Oumelhor,daquiapouco.
Marjorie Gold levantou-se e caminhou sozinha
paraaágua.
Valentine Chantry virou-se ligeiramente em sua
toalha. Seus olhos encontraram-se com os de Douglas
Gold,Elalhedeuumlevesorriso.
O pescoço deMr. Douglas Gold fez-se um pouco
vermelho.
ValentineChantryfalou:
—Tonymeubem,me lembrei queprecisodeum
vidrodecremequeeuesqueciemcimadamesa.Seráque
vocêseincomodadeapanhá-loparamim?
O comandante pôs-se obedientemente de pé e
seguiurumoaohotel.
MarjorieGoldentrounomar,chamando:
— A água está ótima, Douglas. Por que você não
vem?
PamelaLyallperguntou-lhe:
—Vocênãovaicomsuamulher?
Elerespondeucomarvago:
—Gostodeapanharumpoucodesolprimeiro.
Valentine Chantry ergueu a cabeça um instante,
como se fosse chamar o marido, mas ele acabara de
transporojardimdohotel.
—Sógostodecairantesdeirembora—explicou
DouglasGold.
Mrs. Chantry sentou-se novamente e pegou um
vidro de óleo de bronzear, mas parecia ter dificuldades
comatampa.
—Puxa,comoestádura—disse,enquantoolhava
ogrupoecontinuava:
—Seráquealguém...
Poirotergueu-secomoumperfeitocavalheiro,mas
Douglas Gold, mais jovem e mais ágil, já tomara a
dianteira:
—Possoajudá-la?
—Muitoobrigada—veioarespostaemtomquase
ciciante.—Vocêémuitoamável.Soutãodesastradacom
estascoisas,sempreacaboapertandoemvezdeabrir.Ah,
vocêconseguiu.Muitoobrigadamesmo...
Hercule Poirot sorriu consigo mesmo, depois
ergueu-se e começou a caminhar ao longo da praia, na
direçãooposta.Caminhoulentamenteenãochegouase
afastarmuito.Estavajávoltando,quandoMrs.Goldsaiu
da água e juntou-se a ele. Ela usava uma touca e seu
rostoestavaradiante.
Eladisse,quasesemfôlego:
—Adoroomar.Eaáguahojeestáótima.
Poirot pôde ver que ela era uma nadadora
entusiasta.
Elaacrescentou:
— Douglas também adora nadar. As vezes fica
horasdentrod’água.
Ao ouvir isto Hercule Poirot dirigiu o olhar ao
pontoemqueaquelenadadorfanático,Mr.DouglasGold,
estavasentado,aoladodeValentineChantry.
Suamulhercontinuava:
—Nãoseiporqueelenãovem...
Suavoztinhaumaperplexidadeinfantil.
PoirotcontinuavaaolharparaValentineChantry,
pensando que muitas outras mulheres já teriam feito
perguntassemelhantesàdeMrs.Gold.
Ao seu lado, esta finalmente deixou escapar uma
observaçãoemtomseco:
—Todosdizemqueelaémuitoatraente,masnãoé
otipodeDouglas.
HerculePoirotnãorespondeu.
Mrs.Goldfoinadaroutravez.
Afastou-sedapraiaembraçadaslentaseritmadas.
Podia-severqueadoravaaágua.
Poirotvoltouaolugarondeestiverasentado.
Ogrupo tinhasidoaumentadocomachegadado
velhogeneralBarnes,umveteranoqueaparentementesó
apreciava a companhia das jovens. Ele sentara-se entre
Pamela e Sarah e tinha travado com a primeira uma
animadaconversasobreasfofocasmaisrecentes.
OcomandanteChantryjávoltaradesuamissãoe
sentara-se do outro lado de Valentine, com uma
expressãoaborrecida.
Valentine agora conversava animadamente com
Douglas Gold, voltando-se de vez em quando para o
marido,paraqueelepudesseseguiroassunto.Elaestava
acabandodecontarumcaso:
...eoquevocêachaqueeledisse?.“Podetersido
apenas um minuto, mas eu jamais me esqueceria da
senhora,madame!” Não foi, Tony? Acho que foi tão
simpático da parte dele! Realmente todos são tão bons
comigo...nãoseiporque,massão...MaseudisseaTony,
você se lembra, querido? “Tony, se você quer ser um
poucociumento,umpoucosó,podecomeçaraterciúmes
destecarregador.”Porqueeleeramesmoadorável...
HouveumapausaeDouglasGolddisse:
—Algunsdestescarregadoressãoótimossujeitos.
— Aquele pelo menos era. Ele se deu a tanto
trabalhoquevocênemimagina,epareciafazeraquilosó
peloprazerdemeajudar.
DouglasGolddisse:
— Não há nada de estranho nisto. Qualquer um
gostariadeajudá-la.
ValentineChantryexclamoudeliciada:
—Comovocêégentil!Vocêouviuisto,Tony?
O comandante Chantry deixou escapar um
rosnado.
Suamulhersuspirou:
—Tonynãoédefalarmuito.É,querido?
Suamãobrancaacariciouseucabeloescuro.
— Na verdade, não sei como ele me tolera. Ele é
terrivelmente inteligente e eu passo o tempo todo a
tagarelar sobre coisas sem importância.Masparece que
ele não se zanga. Ninguém se zanga comigo, todos me
estragam.Nãopodemefazerbem.
OcomandanteChantrydirigiu-seaDouglasGold:
—Aquelamoçanaáguaésuamulher?
O marido deu-lhe uma olhada de lado. Ele
murmurou:
—Sim.Jáestánahoradeeucairtambém.
Valentinemurmurou:
—Masosolestátãogostoso...nãovácairjá.Tony
meuamor,achoqueeunãovoucairhoje.Nãoébemlogo
noprimeirodia.Podemedarum resfriadoouqualquer
coisaassim.Masporquevocênãovainadar,meuamor?
Mr...Douglasmefarácompanhiaenquantovocênada.
Chantryrespondeudemauhumor:
— Não, obrigado. Não vou cair já. Sua mulher
pareceestarlhechamando,Gold.
Valentinedisse:
—Suamulhernadamuitobem.Tenhocertezaque
eladeveserumadestasmulheresterrivelmenteeficientes,
que faz tudodireito.Elas costumammedarmedo,pois
tenhoa impressãodequemeachamumadébilmental.
Sou completamente desastrada com tudo o que faço.
Tony,querido,vocênãomeachaumainútil?
Masnovamente o comandanteChantry limitou-se
arosnaralgoincompreensível.
Suamulhermurmurouafetuosamente:
—Vocêébonzinhodemaisparadizerqueeusou.
Oshomenssãotãoleais...éaqualidadequemaisaprecio
neles. Os homens são muito mais nobres que as
mulheres... pelo menos nunca procuram dizer coisas
para ferir a gente. Acho que as mulheres são muito
mesquinhas.
Sarah Blake rolou sobre si mesma, voltando-se
paraPoirot,emurmurouentredentes:
— Posso lhe dar um exemplo de mesquinharia:
dizer que a queridaMrs. Chantry não é tão perfeita
quantopensa.Na verdade, acho-auma idiota completa,
umadasmulheresmaisidiotasquejáconheci.Tudoque
ela sabe dizer é “Tony querido” e revirar os olhos. Ela
deve ter uma cabeça recheada de algodão em vez de
cérebro.
Poirotergueusuasexpressivassobrancelhas.
—Unpeusévère!
—Podemeacharmesquinha, seo senhorquiser.
Mas estaChantry é uma boa bisca. Será que não pode
deixarnenhumhomemsossegado?Seumaridoestácom
umacarafuriosa.
Olhandoomar,Poirotobservou:
—Mrs.Goldnadabem.
— É, ela não se incomoda de semolhar, como a
maioria de nós. Gostaria de saber seMrs. Chantry vai
entrarnáguaalgumavezenquantoestiveraqui.
—Apostoquenão—disseogeneralBarnesrouca-
mente.—Elanãovaiquererestragarseumake-up.Não
queelanãosejabonita,masjáestáficandovelhinha.
—Elaestáolhandoparaosenhor,general—disse
Sarahmaldosamente.Edequalquermaneiraosenhor
nãotemrazãoemrelaçãoaomake-up.Hojeemdiatodas
nóssomosàprovadeáguaedebeijos.
—Mrs.Goldestásaindo—anunciouPamela.
—Asduasquerembuscarlã—murmurouSarah.
—Vamosverquemvaisairtosquiada.
Mrs. Gold veio direto ao grupo. Seu corpo era
bonito, mas a touca a desfavorecia. Era um modelo
apenasprático,semnenhumatrativo.
— Você não vem, Douglas? — perguntou já com
umtomdeimpaciêncianavoz.—Aáguaestádeliciosa.
—Voujá.
DouglasGold levantou-se rapidamente,masantes
de ir embora pousou ainda os olhos em Valentine
Chantry,quelhedeuumsorrisoencantador.
—Aurevoir—disseela.
Goldeamulherpartiram.
Quando eles estavam já suficientemente longe,
Pameladisseemvozcrítica:
— Não acho que tenha sido uma atitude muito
inteligente. Arrebatar seumaridodapresençade outra
mulher sempre é má política. Faz você parecer muito
possessivaeistoéumacoisaqueosmaridosodeiam.
— A senhorita parece conhecer um bocado sobre
maridos,MissPamela—disseogeneralBarnes.
—Maridosalheios,nãomeus.
—Ah,adiferençaéimportante.
— Pode ser, general,mas aprendi uma porção de
“Nãofaçaisto”.
—Paraprincípiodeconversa—disseSarah—eu
nãousariaumatoucacomoaquela.
—Mrs.Goldmepareceumamulherdebomsenso
—replicouogeneral.
— O senhor tem toda razão, general — replicou
Sarah.—Masosenhordevesaberqueháumlimitepara
obomsensodeumamulher.Achoqueelanãovaitertão
bomsensoassimemmatériadeValentineChantry.
Elavirou-seeexclamouemvozbaixaeexcitada:
—Olhemsóacaradomarido.Está furioso.Acho
queeledeveterumtemperamentohorrível.
DefatoocomandanteChantryolhavaparaocasal
Goldcomumarameaçador.
Sarahvoltou-separaPoirot:
—Eentão?Oqueosenhormedizdetudoisto?
HerculePoirotnãorespondeu,masnovamenteseu
dedo indicador traçou um desenho na areia. O mesmo
desenho...umtriângulo.
—O eterno triângulo— comentou Sarah com ar
meditativo. — É capaz de o senhor ter razão. E se for
assim,vamostermuitodequenosocuparnospróximos
dias.
CAPÍTULODOIS
Monsieur Hercule Poirot estava desapontado com
Rodes.Elevieraàilhaacimadetudoparaumdescanso,
pois tinham lhe dito que em fins de outubro Rodes
estariapraticamentedeserta.
E isto era verdade. Os únicos hóspedes no hotel
eramosChantry,osGold,Pamela,Sarah,ogeneral,ele
próprioedoiscasaisitalianos.MasHerculePoirotqueria
sobretudoumdescansodesuas investigaçõescriminais,
e seu inteligente cérebro já percebera dentro daquele
pequenogruposinaisevidentesdequeistonãolheseria
possível.
—Deve serporque euvivo vendo crimespor toda
parte — disse ele com seus botões. — Devo estar
imaginandocoisas.
Masmesmoassimelenãoconseguiaconvencer-se
docontrário.
Umamanhã ele encontrouMrs. Gold fazendo um
bordadonoterraço.
Ao aproximar-se, Poirot teve a impressão de
perceber, um lenço que era rapidamente removido de
cena.
OsolhosdeMrs.Goldestavamsecos,mascomum
brilhosuspeito.Seubomhumortambémlhepareceuum
poucoforçado.
— Bom dia,monsieur Poirot — disse ela com
entusiasmoexagerado.
Poirot sentiu que era impossível que ela estivesse
tão alegre por vê-lo. Pois afinal de contas eles mal se
conheciam. E embora Poirot fosse até um pouco
convencido no que se referia às suas qualidades
profissionais, tinha suficiente modéstia para saber das
limitaçõesdeseucharme.
— Bom dia,madame — respondeu ele. — Mais
outrobelodia.
—Éverdade,não?MasDouglaseeusempretemos
muitasortequandoestamosdeférias.
—Émesmo?
— É. Temos muita sorte juntos. O senhor sabe,
monsieurPoirot,quandovejotantoscasaissedivorciando
e tanta infelicidade junta é que aprecio melhor minha
própriafelicidade.
—Agrada-mesaberdisto,madame.
—Douglaseeusomostãofelizes!Estamoscasados
hácincoanos,osenhorsabe,ehojeemdiacincoanosé
jábastantetempo...
— Não tenho mesmo dúvidas de que em certos
casosdeveparecerumaeternidade,madame—comentou
Poirot.
— Mas tenho certeza de que somos mais felizes
agoradoquequandonoscasamos.Osenhorsabe,somos
feitosumparaooutro.
—Istorepresentatudo.
— É por isto que sinto pena dos que não são
felizes.
—Asenhoraquerdizer...
— Estou apenas falando em linhas gerais,
monsieurPoirot.
—Ah,compreendo.
Mrs.Goldpegouumfiodeseda,segurou-ocontraa
luz,examinou-obemecontinuou:
—AMrs.Chantry,porexemplo...
—Sim?QuetemaMrs.Chantry?
— Não creio que ela seja uma mulher muito
correta.
—Talvezasenhoratenharazão.
—Na verdade, estou certa de que ela não é uma
mulher muito correta. Mas, de um certo modo, tenho
penadela.Porqueapesarde todoseudinheiroedesua
beleza... (os dedos deMrs. Gold tremiam e ela não
conseguiaenfiaraagulha)... elanãoéo tipodemulher
que consegue ser feliz com um homem. Os homens se
cansam depressa de mulheres como ela. O senhor não
acha?
—Eucertamentemecansariadesuaconversação
antesquesepassassemuitotempo—limitou-sePoirota
dizer,comprecaução.
—Éexatamenteoquequerodizer. Ela temum
certo charme, é inegável...—Mrs. Gold interrompeu-se,
com os lábios trêmulos, enquanto tentava inutilmente
continuar seu trabalho. Um observador menos arguto
quePoirotjáterianotadoseudesespero.Elacontinuou
desconexamente:
—Oshomenssãoverdadeirascrianças.Acreditam
emtudo...
Elavergou-sesobreseutrabalho.Opequenolenço
pôdesernovamenteentrevisto.
Hercule Poirot achou mais prudente mudar de
assunto,edisse:
—Asenhoranãovainadarhoje?Eseumarido,ele
estánapraia?
Mrs. Gold olhou-o, piscou, adotou de novo sua
posequasedesafiadoramentealegreerespondeu:
— Não, não vou nadar hoje. Nós tínhamos
combinadofazerumavisitaàsmuralhasdacidadevelha.
Masnãoseioquehouve...sóseiquemeperdideles.Eles
foramemborasemmeesperar.
Opronomeporsisójáerabastanterevelador,mas
antesquePoirotpudessedizerqualquercoisa,ogeneral
Barnesapareceuesentou-senumacadeiraaoladodeles.
— Bom dia,Mrs. Gold. Bom dia, Poirot. Vocês
também desertaram hoje? A lista de ausências está
grande. Vocês dois e seu marido,Mrs. Gold... eMrs.
Chantry.
—Eo comandanteChantry?—perguntouPoirot
emtomcasual.
—Não,esteestánapraia.MissPamelaotemsob
controle—disseogeneralrindo,enquantocontinuava:
—Maselaestáachandoumpoucodifícillidarcom
ele. É um destes tipos fortes e silenciosos que só
encontramosemlivros.
MarjorieGolddisse,compequenoestremecimento:
—Aquelehomemmedáumpoucodemedo.Parece
sempretão...tãoameaçador.Comosefossemesmocapaz
decometerumaviolência.
Elaestremeceudenovo.
— Acho que no fundo ele sofre de indigestão —
disseogeneralalegremente.—Adispepsiaéresponsável
por muitas reputações de melancolia romântica ou
loucurafuriosa.
MarjorieGolddeuumsorrisomeramentepolido.
— E onde está aquele seu bom marido? —
perguntouogeneral.
Sua resposta veio sem hesitação, numa voz
aparentementealegreenatural.
— Douglas? Ah, ele eMrs. Chantry foram até a
cidade.Achoqueforamverasmuralhasdacidadevelha.
— Ah, sim... muito interessante. Da época dos
cavaleirosetudomais.Asenhoradeveriateridotambém.
Mrs.Goldrespondeu:
—Achoquemeatraseiumpouco.
Ela se levantou de súbito, murmurou uma
desculpaedesapareceunointeriordohotel.
O general Barnes olhou-a com uma expressão
preocupada,sacudindoacabeçapesarosamente.
— Uma bravamulherzinha. Valemuitomais que
umaboabiscacujonomeprefironãomencionar.Ah!Seu
maridoéumidiota.Nãosabereconheceroquetem.
Elesacudiuacabeçanovamenteedepois também
entrounohotel.
Sarah Blake tinha acabado de chegar da praia e
ouviuasúltimaspalavrasdogeneral.Fazendoumgesto
com a cabeça na direção do guerreiro que batia em
retirada,observouenquantosentavaaoladodePoirot:
— Brava mulherzinha, brava mulherzinha! Os
homensestãosempreelogiandoasbravasmulherezinhas
malvestidas,masquandosetratadeescolherentreelase
asvigaristasembonecadas,sempreficamcomasúltimas.
Étriste,maséverdade.
—Mademoiselle!—dissePoirot,abruptamente.—
Nãoestougostandodisto.
—O senhornão está?Eu tambémnão.Não, vou
ser honesta, acho que de uma certa forma estou
gostando.Todosnós temosum ladomauquesediverte
com desastres, calamidades públicas e coisas
desagradáveisquesepassamcomnossosamigos.
Poirotperguntou:
—OndeestáocomandanteChantry?
—Napraia,sendodissecadoporPamelaenãose
mostrando nem um pouco satisfeito com o processo.
Estava com um ar de tormenta quando saí. Vamos ter
tempestade,acredite-me.
Poirotmurmurou:
—Háumacoisaquenãocompreendo...
—Compreenderé fácil—disseSarah.—Sabero
quevaiaconteceréqueédifícil.
Poirotbalançouacabeçaecontinuou:
— Como a senhorita diz, é o futuro que me
inquieta.
— Que forma elegante de definir a questão —
respondeuSarah,efoiparaohotel.
Ao entrar, quase esbarrou em Douglas Gold. O
jovemchegavacomumarmuitosatisfeito,masaomesmo
tempoumpoucoculpado.Eledisse:
—Alô,monsieurPoirot—eacrescentou,umpouco
embaraçado:
—Estivemostrando asmuralhas dosCruzados a
Mrs.Chantry.Marjorienãoquisir.
As sobrancelhas de Poirot ergueram-se
ligeiramente, mas mesmo que ele tivesse querido fazer
algum comentário não teria tempo, pois Valentine
Chantryentrouemseguida,dizendoemvozalta:
— Douglas, um gim com angostura para mim.
Precisodeumgimrapidamente.
Douglas Gold foi pedir a bebida, enquanto
Valentine sentava-se ao lado de Poirot. Parecia
extremamentecontente.
Ela viu seu marido e Pamela caminhando ao
encontrodogrupoefez-lhesumaceno,gritando:
— Deu uma nadada, meu amor? Não está uma
manhãmaravilhosa?
O comandante Chantry não respondeu. Subiu
correndoasescadas,passouporelasemumapalavraou
olharedesapareceuacaminhodobar.
Seus punhos estavam crispados e mais do que
nuncaseuaspectolembravaumgorila.
A bela boca de Valentine Chantry ficou aberta,
dizendo“Oh”,comumaexpressãoapalermada.
Jáo rostodePamelamostravaque ela sedivertia
imensamente.Disfarçandoaomáximoseussentimentos,
sentou-sepertodeValentineChantryeperguntou:
—Quetalopasseio?
Quando Valentine começou a responder
“Maravilhoso. Nós...”. Poirot levantou-se e também
dirigiu-seaobar.EleencontrouojovemGoldesperando
pela bebida com um rosto vermelho. Parecia nervoso e
irritado.
EledisseaPoirot“Aquelehomeméumgrosseirão”
enquanto fazia um gesto de cabeça na direção do
comandanteChantry,queestavaseafastando.
—É possível— respondeu Poirot.— Sim, é bem
possível.Masnãoseesqueçadequeasmulheresgostam
doshomensbrutos.
Douglasmurmurou:
— Não me surpreenderia de saber que ele a
maltrata!
—Elaprovavelmentegostadisto.
Douglas Gold dirigiu-lhe um olhar espantado,
pegouogimefoi-seembora.
Hercule Poirot sentou-se num tamborete e pediu
umlicor.Enquantoodeliciava,Chantrysurgiudesúbito
etomoudiversosgins,emrápidasucessão.
Em seguida, disse em voz alta e violenta, falando
mais para omundo em geral do que propriamente com
Poirot:
— Se Valentine pensa que pode se livrar demim
como se livrou daqueles outros idiotas, está muito
enganada. Ela é minha e continuará a ser minha.
Ninguémvaitomá-lademimsemterqueprimeiropassar
sobremeucadáver.
E, jogando o dinheiro sobre o balcão, virou-se e
desapareceu.
CAPÍTULOTRÊS
TrêsdiasmaistardeHerculePoirotfoiàMontanha
doProfeta.Aviagemdecarroeraagradável,porestradas
frescas cercadas de abetos, elevando-se por curvas
sinuosas,muitoacimadasmisériase intrigashumanas
que ficavam lá embaixo. O carro parou fora do
restaurante no alto da montanha e Poirot, descendo,
caminhou em direção às árvores. Finalmente, chegou a
um lugar que parecia mesmo o topo do mundo. Bem
abaixo,profundamenteazul,podia-severomar.
Poirot dobrou seu sobretudo, colocou-o
cuidadosamente sobre um toco de árvore e sentou-se.
Finalmente ele podia estar em paz, longe de todos os
problemas.
—NãohádúvidaquelebonDieudevesaberoque
faz,mas é estranho que ele tenha resolvido criar certos
seres humanos.Eh bien, pelo menos aqui estarei por
algumtemposalvodestascomplicações.
Mas, súbito, teve um sobressalto. Uma pequena
mulher num casaco marrom apressava-se em sua
direção.EraMarjorieGoldeagoraelajápunhatodoseu
orgulhodelado.Seurostoestavamolhadodelágrimas.
Poirotnãotinhacomoescapar.Elajáestavaperto.
—Monsieur Poirot, o senhor precisa me ajudar.
Soutãoinfeliz,nãoseioquefazer.Oqueserádemim?O
queserádemim?
Ela o olhava com expressão angustiada,
segurando-opelamangadocasaco.Masalgumacoisana
expressão de Poirot a amedrontou, pois ela recuou um
pouco.
—Háalgumacoisaerrada?—perguntou.
—Asenhoraqueromeuconselho,madame?Éisto
oqueasenhoraquer?
Elagaguejou:
—Sim...sim...
— Eh bien... aqui está o meu conselho — disse
Poirot,acrescentandodemodoincisivo:
—Saiadestelugarimediatamente...antesqueseja
tardedemais.
—Oquê?—perguntouela,arregalandoosolhos.
—Asenhorameouviu.Váemboradestailha.
—Emboradestailha?
Elaolhava-ocomarestúpido.
—Foioqueeudisse.
—Masporquê?Porquê?
—Éoconselhoquepossolhedar... seasenhora
temamoràvida.
Eladeixouescaparumpequenogrito.
—Oqueo senhorquerdizer com isto?Osenhor
está me amedrontando... o senhor está me
amedrontando.
— Sim — respondeu Poirot em tom grave. — É
exatamenteestaaminhaintenção.
Eladeixou-secairsentada,comorostoescondido
entreasmãos.
— Mas eu não posso! Ele não viria comigo! Ele,
Douglas,nãoviriacomigo,elanãodeixaria.Elaodomina
completamente... corpo e alma. Ele não dá ouvidos a
nada que digo contra ela... está completamente
apaixonado. Acredita em tudo que ela lhe diz. Que seu
marido a maltrata, que ela é uma pobre inocente, que
ninguémnuncasoubecompreendê-la.Elejánempensa
emmim...eujánãocontomais,écomosenãoexistisse.
Elequerqueeulheconcedaodivórcio.Eleacreditaque
elatambémsedivorciaráesecasarácomele.Masacho
queChantrynão vai desistir dela.Elenão é deste tipo.
OntemànoiteelamostrouaDouglasmanchasnobraço
e disse que foram feitas por Chantry. Douglas ficou
furioso.Eleétãocavalheiresco...Oh,tenhomedo.Oque
vaiacontecer?Diga-meoquefazer!
HerculePoirotcontinuouolhandoatravésdomara
costaasiáticaquesedesenhavanadistância.Finalmente,
falou:
—Eujá lhedisse. Saiadesta ilhaantesqueseja
tardedemais...
Elasacudiuacabeça.
— Eu não posso, não posso... a menos que
Douglas...Poirotsuspirouedeudeombros.
CAPÍTULOQUATRO
Hercule Poirot sentou-se na praia ao lado de
PamelaLyall.
Eladissecomumprazerpoucodisfarçado:
— O triângulo está cada vez mais complicado.
Ontemànoiteelessesentaramumdecadaladodela...e
osenhorprecisaverosolharesqueumdirigiaaooutro.
ChantryestavabastantebêbadoeofendeuGolddiversas
vezes,masGoldsecomportoumuitobem.Nãoperdeua
calma.Valentineadorouacena,claro.Ronronavacomoo
gatoquesenteocamundongonasgarras.Oqueosenhor
achaquevaiacontecer?
—Estoucomreceio...estoucomreceio...
— Nós todos estamos — disseMiss Lyall
fingidamente,completando:
—Esteassuntoédasuaespecialidade.Ouébem
capaz de acabar sendo. Será que o senhor não poderia
fazeralgumacoisa?
—Jáfiztudoquepude.
MissLyallinclinou-seansiosa.
—Oqueosenhorfez?
Suavozeraalvoroçada.
—AconselheiMrs.Goldasairdestailhaantesque
fossetardedemais.
—Oh...entãoosenhoracha...—elainterrompeu-
se.
—Achooque,mademoiselle?
—Osenhorachaqueéistooquevaiacontecer?—
disse Pamela lentamente. Mas ele não fariaisto, ele
nuncafariaumacoisadestas.Eleéumaboapessoa,na
verdade.AquelaChantryéqueéumabisca.Elenãofaria
isto,elenãofariaisto.
Ela interrompeu-sedenovo,depois continuouem
vozbaixa:
—Assassinato?Éestaapalavraemqueosenhor
estápensando?
—Estaéapalavraemquealguémestápensando,
mademoiselle.Possogarantir-lheisto.
Pamelaestremeceu.
—Nãopossoacreditarnisto—declarou.
CAPÍTULOCINCO
Na noite de 29 de outubro, os acontecimentos
desenrolaram-seemordemperfeitamentedelineada.
Primeiro houve uma discussão entre os dois
homens—Gold eChantry.A vozdeChantry elevou-se
cada vezmais emais alta; suasúltimas palavras foram
ouvidasporquatropessoas:ocaixanobalcão,ogerente,
ogeneralBarnesePamelaLyall.
— Seu maldito suíno! Se você e minha mulher
pensamquevãoselivrardemimestãomuitoenganados.
EnquantoeuestivervivoValentineseráminhaesposa.
E.saiudohotel,comorostocontorcidoderaiva.
A discussão foi antes do jantar. Depois do jantar
houve uma surpreendente reconciliação, não se sabe
arranjada por quem. Valentine convidou Marjorie para
um passeio de carro. Pamela e Sarah também foram.
Gold e Chantry jogaram bilhar e depois foram fazer
companhiaaPoiroteaogeneralBarnesnosaguão.
—Foibomojogo?—perguntouogeneral.
Ocomandanterespondeu:
— Este camarada é bom demais para mim. Fez
quarentaeseiscarambolaslogodesaída.
DouglasGolddissemodestamente:
—Purasorte,possolhegarantir.Vocêsnãoquerem
beberalgumacoisa?Vouchamarogarçom.
—Gimcomangosturaparamim,porfavor.
—Eosenhor,general?
—Umuísquecomsoda,obrigado.
—Eosenhor,monsieurPoirot?
— Muita gentileza sua. Gostaria de umsirop de
cassis.
—Umsirop...comoémesmoonome?
—Siropdecassis.Xaropedecássia.
— Ah, um licor. Será que eles têm deste aqui?
Nuncaouvifalar.
—Têmsim.Masnãoéumlicor.
DouglasGolddisse,rindo:
— Me parece um gosto estranho... mas cada um
tomaovenenoquequer.Voupedirasbebidas.
O comandante Chantry sentou-se. Embora não
fosse por natureza um homem comunicativo, estava
visivelmenteseesforçandoparaseramável.
—Écuriosocomoagenteseacostumaaviversem
jornais—comentou.
Ogeneralbufou.
—NinguémpodedizerqueoContinentalDailyMail
de quatro dias atrás seja uma grande fonte de
informações.EurecebooTimeseoPunchaquinohotel,
maselestambémcustammuitoachegar.
—Seráquevãoconvocareleiçõesgeraisporcausa
daquestãopalestina?
— O assunto tem sido muito mal conduzido —
declarou o general, ao mesmo tempo em que Douglas
Goldreapareciaseguidoporumgarçomeasbebidas.
Ogeneralcomeçouacontarumapassagemdesua
carreira militar na Índia, em 1905. Os dois ingleses
ouvirampolidamente,massemgrandeinteresse.Hercule
Poirotsorviacomdelíciaseusiropdecassis.
O general chegou ao fim de sua história e houve
risosbemeducadosaoredor.
Entãoasmulheresreapareceramnosaguão.Todas
as quatro falavam e riam, parecendo muito bem
dispostas.
— Tony, meu amor, foi um passeio adorável —
disseValentine,sentando-senumacadeiraaseulado.—
Uma idéia adorável deMrs. Gold. Vocês todos deveriam
tervindo.
Seumaridoperguntou:
— Quem quer uma bebida? — olhando
interrogativamenteaoredor.
—Gimcomangosturaparamim,querido—disse
Valentine.
—Gimegengibirra—dissePamela.
—Sidecar—disseSarah.
— Ótimo — disse Chantry, levantando-se. E
ofereceu sua própria bebida, até então intocada, à sua
esposa:
— Fique com este. Vou pedir outro para mim. O
queasenhoraquertomar,Mrs.Gold?
Mrs.Goldestavatirandoocapote,comaajudado
marido.Elavirou-se,sorrindo:
—Umalaranjada,porfavor.
—Perfeitamente.Umalaranjada.
OcomandanteChantry foiembuscadasbebidas.
Mrs.Goldsorriaparaseumarido:
—Foiumpasseiomaravilhoso,Douglas.Gostaria
quevocêtivessevindo.
—Gostariadeteridotambém.Ficaparaumaoutra
oportunidade.
Osdoissorriramumparaooutro.
ValentineChantrypegoudeseugimeotomoude
umgole.
— Oh, eu bem que estava precisando —
murmurou.
Douglas Gold tomou do casaco de Marjorie e o
colocou num sofá. Ao encaminhar-se de volta ao grupo
exclamou,assustado:
—Ei,oqueéisto?
Valentine Chantry oscilava em sua cadeira. Seus
lábiosestavamroxosesuamãoapertavaocoração.
—Eumesinto...mesintoestranha.
Elaarquejavaembuscadear.
Chantry voltou à sala e apressou-se ao ver a
mulher.
—Ei,Val,oquevocêtem?
—Nãosei...Aquelegimtinhaumgostoestranho...
—Ogimcomangostura?
Chantry virou-separaDouglasGold, segurando-o
peloombro.
—Aquelegimeraparamim,Gold,quediabovocê
pôsnele?
Douglas Gold estava branco feito cera e olhava
apalermadoorostocontorcidodeValentineChantry.
—Eu...eu...nunca...
ValentineChantryescorregoudacadeira.
OgeneralBarnesgritou:
—Chamemummédico,depressa!
Cinco minutos depois Valentine Chantry estava
morta.
CAPÍTULOSEIS
Nodiaseguinteninguémfoiàpraia.
Pamela Lyall, muito pálida, vestida num vestido
negrosimples,encontrouHerculePoirotnohalleolevou
aumapequenasaletavazia.
—Éhorrível—disse.—Horrível!Osenhorpreviu
tudo!Assassinato!
Poirotinclinouacabeçagravemente.
Pamelaestavanervosaebatiaopénochão.
—Osenhordeveriaterimpedidoaquilo.Osenhor
deveriaterdadoalgumjeito,feitoalgumacoisa.
—Oquê?—perguntouPoirot.
—Osenhornãopoderiaterchamadoapolícia?
—Edizeroquê?Oqueagentepodedizer,antes
docrime?Quealguémestápensandoemumcrime?Vou
dizer-lhe uma coisa,mon enfant, se uma pessoa está
decididaamatarumaoutra...
— O senhor poderia ter prevenido a vítima —
insistiuPamela.
—Algumasvezesosavisossãoinúteis.
Pamelapensouedisse:
— O senhor poderia ter prevenido o assassino...
mostrar-lhequeosenhorconheciasuasintenções.
Poirotassentiuapreciativamente.
—Maissensato,semdúvida.Masmesmoassimé
preciso levar em conta o principal defeito de um
criminoso.
—Quedefeitoéeste?
—Apresunção.Umcriminosonuncaacreditaque
seuplanopodefalhar.
— Mas é um absurdo. É uma tolice — gritou
Pamela. — O crime não poderia ter sido mais infantil.
PoisseapolíciaprendeuDouglasGoldimediatamente!
Poirotpareciapensativo:
—Sim.DouglasGoldéumrapazmuitoingênuo.
— Eu diria muito burro. Soube que eles
encontraramorestodoveneno...oqueeramesmo?
— Um tipo de estrofantina. Um veneno para o
coração.
—Poissoubequeencontraramorestonopaletóde
seuterno,não?
—Éverdade.
— Émuita burricemesmo— insistiu Pamela.—
Talvez ele pretendesse jogá-lo fora, mas tenha ficado,
talvez,paralisadopelochoquedeverqueapessoaerrada
tomaraoveneno.Quecenamaravilhosaserianumpalco
de teatro! O amante colocando estrofantina no copo do
maridoeamulhertomando-oporengano,enquantoele
nãoprestavaatenção.PensenohorrordeDouglasGold
aosevirarecompreenderquetinhaassinadoasentença
demortedamulherqueamava...
Pamelaestremeceu.
—Oseutriângulo.OEternoTriângulo.Quemdiria
queiaacabardestamaneira?
—Eutinhamedodisto—murmurouPoirot.
Pamelavirou-separaele.
—Osenhorpreveniu-a...aMrs.Gold.Masporque
osenhornãoopreveniutambém?
— A senhora quer saber por que eu não preveni
DouglasGold?
—Não.Querosaberporqueosenhornãopreveniu
ocomandanteChantry.Osenhorpoderiater-lheavisado
que ele corria perigo... afinal, ele era o principal
obstáculo. Não tenho dúvidas de que Douglas Gold
esperava atormentar sua mulher a tal ponto que ela
acabariaconcordandocomodivórcio.Elaémuitodócile
acabaria se convencendo.Mas Chantry é teimoso como
umamula. Ele estava decidido a não concordar com o
divórcio.
Poirotdeudeombros.
—NãoteriaadiantadonadafalarcomChantry.
—Talveznão—concordouPamela.—Éprovável
que ele respondesse que sabia cuidar de si mesmo e o
mandasse ao inferno. Mas mesmo assim acho que o
senhorpoderiatertentadofazeralgumacoisa.
Poirot pensou um pouco e depois disse,medindo
bemaspalavras:
— Eu cheguei a pensar em tentar convencer
ValentineChantryadeixarailha,maselanãoacreditaria
noqueeutinhaalhedizer.Elanãoerasuficientemente
inteligente para compreender a situação.Pauvre femme,
suaestupidezamatou.
—Nãoachoqueteriaadiantadonadaelasairdaqui
—dissePamela—poiselesimplesmenteateriaseguido.
—Elequem?
—DouglasGold.
— A senhorita acha que Douglas Gold a teria
seguido?Não,asenhoritaestáenganada,completamente
enganada. A senhorita não compreendeu ainda o que
realmentesepassou.SeValentinetivessedeixadoailha,
seumaridoteriaidocomela.
Pamelatinhaumaexpressãointrigadanorosto.
—Naturalmente.
—E então, a senhorita vê, o crime simplesmente
teriaocorridoemoutrolugar.
—Nãocompreendo.
— Estou lhe dizendo que o mesmo crime teria
ocorridoemoutrolugar.Estoufalandodoassassinatode
ValentineChantryporseumarido.
Pamelaarregalouosolhos.
— O senhor está querendo dizer que foi o
comandante Chantry... Tony Chantry... quem matou
Valentine?
—Claro.Poisseasenhoritaoviucometerocrime.
Douglas Gold trouxe-lhe sua bebida e sentou-se diante
do copo. Quando vocês mulheres chegaram, nós todos
olhamos em sua direção, do que Chantry aproveitou-se
paradespejarovenenonogim,quedepoisgalantemente
ofereceuàsuaesposa.
—Masovidrinhodeestrofantinafoiencontradono
bolsodeDouglas.
—Umacoisamuitofácildefazerquandoestávamos
todosaflitosaoredordamulhermoribunda.
Pamelalevoubemunsdoisminutospararecuperar
afala.
— Mas não compreendo nada. O triângulo... o
senhormesmodisse.
Poirotsacudiuacabeçacomfirmeza.
— Sim, eu disse que havia um triângulo, mas a
senhorita imaginou o triângulo errado. A senhorita se
deixou enganar por uma bela encenação. A senhorita
acreditou, como eles queriam, que tanto Tony Chantry
quantoDouglasGoldestavamapaixonadosporValentine
Chantry.Asenhoritaacreditou,comoelesqueriam,que,
apaixonadoporValentine,cujomaridoserecusavaalhe
concederodivórcio,DouglasGoldsedesesperouaponto
de envenenar o rival... com a diferença de que, por um
acidente, quemmorreu foi a vítima errada.Mas é tudo
ilusão.Chantryjáestavadecididoamatarsuamulherhá
algum tempo. Pude ver logo de saída que ele estava
“cheio”dela,comquemdequalquerformasósecasoupor
causa do dinheiro. Agora ele queria casar com outra
mulher...eassimprecisavaarranjarumjeitodeselivrar
delamas conservar o dinheiro. O único caminho era o
assassinato.
—Elequeriasecasarcomoutramulher?
— Claro, claro, com a aparentemente inofensiva
Marjorie Gold. Eis aí o eterno triângulo a que eu me
referi, mas a senhorita me compreendeu mal. Nenhum
dos dois homens estava apaixonado por Valentine
Chantry. Foi apenas vaidade dela e a encenaçãomuito
hábildeMarjorieGoldquelevouasenhoritaeosoutrosa
pensarem assim. Uma mulher muito inteligente, esta
Mrs.Gold,ebastanteatraentecomseujeitinhorecatado
de pobre-coisinha-abandonada! Conheci quatro
assassinas do mesmo tipo. Primeiro, aMrs. Adams,
absolvida da acusação de assassinato de seu marido,
embora todos saibam que ela o matou. Mary Parker
matouumatia,umnamoradoedoisirmãosantesdese
tornar um pouco descuidada e ser, finalmente,
apanhada. Depois conheciMrs.Rowden,queacabouna
forca.Mrs.Lecrayescapouporumtriz.AssimqueviMrs.
Gold tive certeza de que ela era do mesmo tipo. Estas
mulheresgostamdematar,comopatogostadenadar.E
foi um assassinatomuito bem planejado. Diga-me, que
prova a senhorita tem de que Douglas Gold estava
apaixonado por Valentine Chantry? É só pensar um
pouco para compreender que havia apenas as
confidênciasdeMrs.Goldeasdemonstraçõesdeciúmes
deChantry.Compreendeagora?
—É...éhorrível—dissePamela.
— Eles são um casal esperto— disse Poirot com
apreciaçãoprofissional.—Planejaram“encontrar-se”aqui
eencenarseucrime.EstaMarjorieGoldtemumsangue-
frio dos diabos. Seria capaz de ver o marido enforcado
semomenorremorso.
Pamelainterrompeu:
—Masapolíciaoprendeuontemànoite...
— Prendeu — concordou Hercule Poirot — mas
depoiseutiveumaconversacomeles...Éverdadequeeu
nãoviChantrypôraestrofantinanocopo,porque,como
todo mundo, olhei na direção de vocês quando vocês
chegaram. Mas no momento em que compreendi que
Valentine Chantry tinha sido envenenada, observei seu
maridosemtirarosolhosdele.Eassimpudeverquando
elecolocouovidrinhodeestrofantinanobolsodopaletó
deDouglasGold...
Poirot acrescentou com uma expressão severa no
rosto:
— Sou uma boa testemunha. Meu nome é
bastante conhecido. Assim que ouviu minha história a
polícia compreendeuqueocasomudavacompletamente
defigura.
—Eentão?—perguntouPamela,fascinada.
— Eh bien, eles fizeram algumas perguntas ao
comandanteChantry.Ele tentou fingir-sede indignado,
masnãoétãointeligentequantopensaetevequeacabar
confessandotudo.
—EntãoapolíciajásoltouDouglasGold?
—Já.
—E...eMarjorieGold?
OrostodePoirottornou-sesombrio.
—Euapreveni—disse.
— Sim— continuou— eu a preveni. No alto da
Montanha do Profeta eu a preveni... Era a única
possibilidadedeevitarocrime.Disse-lheclaramenteque
suspeitava dela. Ela me compreendeu, tenho a certeza.
Mas ela se achavamuito inteligente... Eu disse-lhe que
deixasseailhasetinhaamoràprópriavida.Eladecidiu
ficar...
SobreaAutora
AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo
livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro
romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um
mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao
mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação
psicológica.
NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,
Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai
americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na
infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo
descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,
seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o
criadordeSherlockHolmes.
Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm
papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos
quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz
Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando
especialmenteosrefugiadosbelgas.
Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da
vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha
de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando
pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,
durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e
detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por
envenenamento”,costumavadeclarar.
“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro
mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão
traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões
deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela
quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão
apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.
Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a
mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.