Agostinho Deus Ser Imutavel

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    Agostinho:

    Deus o prprio ser porque imutvel

    Autor: Svio Laet de Barros Campos.Bacharel-Licenciado e Ps-Graduado emFilosofia Pela Universidade Federal de MatoGrosso.

    Introduo

    Neste pequeno artigo trataremos dos fundamentos da teologia natural de Agostinho.

    Abord-la-emos por tpicos. Antes de tudo, mostraremos que, em Agostinho, as criaturas so

    como que degraus que nos ascendem a Deus. Em seguida, tentaremos evidenciar que o

    conhecimento de Deus que nos proposto por suas criaturas um conhecimento negativo, ou

    seja, por meio delas conhecemos menos o que Deus e mais o que Ele no . Depois disso,

    esmeraremos por frisar que, embora as criaturas no nos deem a conhecer o que Deus em si

    mesmo, pelas escalas de perfeies que elas nos apresentam, elas nos apontam para a

    existncia de um ser supremo, suprema perfeio, que Deus . Por fim, consoante a revelao

    do nome de Deus a Moiss, esforar-nos-emos por patentear que, em Agostinho, Deus o

    sumo ser porque imutvel.

    Lanaremos mo de vrias obras de Agostinho, citemos algumas: A Trindade, com

    traduo de Augustino Belmonte pela Paulus; A Doutrina Crist, com traduo de Nair de

    Assis Oliveira, tambm pela Paulus, e Confisses, com traduo de Maria Luiza Jardim

    Amarante pela Paulus. Tambm disporemos dos clssicos de tienne Gilson: La Philosophie

    au Mon ge. De Scot rigne Guilllaume dOccam (1922), na verso modificada La

    Philosophie au Mon ge.Ds Origines Patristiques la Fin du XIV de 1944. A traduo

    que seguiremos, no caso, ser a brasileira, feita por Eduardo Brando e lanada pela editora

    Martins Fontes, em 1995: A Filosofia na Idade Mdia. Valer-nos-emos, alm disso, da

    Histria da Filosofia Crist. Desde as Origens at Nicolau de Cusa (1951) parceria de

    Gilson com Philotheus Boehner , trazida para o vernculo pelo Prof. Raimundo Vier, em

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    1970, a partir da edio alem: Christliche Philosophie von ihren Anfaengen bis Nikolaus

    von Cues(1952 a 1954).

    Passemos anlise de Agostinho acerca das criaturas como degraus para Deus.

    1.

    As criaturas so degraus para Deus

    As criaturas, na concepo de Agostinho, so degraus para Deus, e o homem no foge

    regra.1Por conseguinte, em Agostinho, o conhecimento das criaturas, inclusive do homem

    para ser legtimo e se afastar de uma v curiosidade deve servir de degrau para o

    conhecimento de Deus.2 Desta feita, o homem que se detm seja nas criaturas, seja em si

    mesmo, poder at ser douto, mas jamais ser sbio.3Ademais, as prprias criaturas, segundo

    nosso Agostinho, nos atestam que elas no so um fim em si mesmas, elas apontam,

    mormente por sua beleza, para algo que est acima delas:

    Perguntei terra, e esta me respondeu: No sou eu. E tudo o que

    nela existe me respondeu a mesma coisa. Interroguei o mar, osabismos e os seres vivos, e todos me responderam: no somos o teuDeus; busca-o acima de ns. Interroguei o cu, o sol, a lua e as

    estrelas: Ns tambm no somos o Deus que procuras. Pedi a todosos seres que me rodeiam o corpo: Falai-me do meu Deus, j que no

    sois o meu Deus; dizei-me ao menos alguma coisa sobre ele. Eexclamaram: Foi ele quem nos criou. Para interrog-los, eu os

    contemplava, e a sua resposta era a sua beleza.(...) Perguntei pelo meu

    Deus a toda a imensido do universo, e esta me respondeu: Eu no

    sou Deus, mas foi ele quem me fez.4

    1 BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. Histriada Filosofia Crist: Desde as Origens at Nicolau de

    Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrpolis: Vozes, 2000. p. 172: Todas as criaturas, inclusivamente ashumanas, so simples degraus da escada que sobe a Deus.2AGOSTINHO. A Trindade. 2 ed. Trad. Augustino Belmonte. Rev. Nair de Assis Oliveira e H. Dalbosco. So

    Paulo: Paulus, 1995: XV, 2, 3: Mencionei esta passagem do livro da Sabedoria para que nenhum fiel pense terprocurado em vo e inutilmente, alguns vestgios da excelsa Trindade, a qual procuramos quando procuramos aDeus, tendo-o feito primeiramente e como por degraus, nas criaturas, atravs de algumas trilogias de seu gneroprprio, at chegarmos mente humana.3 AGOSTINHO. A Doutrina Crist. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Honrio Dalbosco. So Paulo:

    PAULUS, 2002. II, 39, 57: Todo aquele que subindo, assim, do mero aspecto dos corpos inteligncia damente humana, ao encontrar essa mente mutvel pois por vezes ela douta e por vezes ignorante mas queentretanto est posta em lugar sublime, entre a Verdade imutvel que se encontra acima dela e as coisas mutveis

    que se encontram abaixo, esse algum se no dirigir todas essas coisas ao louvor e amor do nico Deus, dequem percebeu que procedem todas as coisas poder parecer doutro, mas de modo algum ser sbio. (Oitlico nosso).

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    Destarte, ser por meio das criaturas que devemos comear a nossa ascenso a Deus.

    De fato, mesmo no sendo perfeitas em sua beleza e sujeitas mudana, elas pela mesma

    beleza e ordem nos ajudam a subir at o Belo, no sujeito mudana e autor de toda beleza,

    conforme testifica o prprio Agostinho, noutra passagem clssica do Sermo 241:

    Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga abeleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do cu (...).Todas elas te respondem: olha-nos, somos belas. Sua beleza um hinode louvor. Estas belezas sujeitas mudana, quem as fez seno oBelo, no sujeito mudana?5

    Passemos s consideraes de Agostinho no que concerne ao conhecimento negativo

    que obtemos da essncia divina atravs das criaturas.

    2. O conhecimento negativo da essncia divina

    Na verdade, s nos resta comear mesmo pelas criaturas, j que Deus em si mesmo

    inatingvel para ns na presente vida. Somos incapazes, no estado em que nos encontramos,

    de conhecer a sua natureza em si mesma. Ela permanece-nos inefvel. DEle sabemos apenas

    que Aquele acima do qual nada se pode pensar de maior e melhor.6De sorte que os nomes

    que damos a Deus no Lhe designam a essncia em si mesma. Mesmo quando O chamamos

    de inefvel, estamos dando-Lhe um nome inadequado, pois como nomear Aquele que

    inominvel, exatamente por ser inefvel, de inefvel? Em outras palavras, o que inefvel

    no pode, ipso facto, ser nomeado sequer de inefvel, posto que inefvel que significa

    inexprimvel j um nome e o que inefvel indizvel. 78Portanto, diante de Deus em si

    4AGOSTINHO. Confisses.2 ed. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. Rev. Antnio da Silveira Mendona eH. Dalbosco. So Paulo: Paulus, 1997. X, 9.5AGOSTINHO. Sermo 241.2. In: Catecismo da Igreja Catlica. 11 ed. So Paulo: Edies Loyola, Julho2001. p. 23.6Idem. A Doutrina Crist. I, 7, 7: Ao se representarem o nico Deus entre todos os deuses inclusive aqueleshomens que imaginam, invocam e adoram outros deuses, seja no cu, seja na terra -, representam-no de tal modosublime que a mente no consegue pensar coisa alguma de melhor e mais excelente.7Idem. Ibidem. I, 6, 6: Em conseqncia, tampouco por inefvel podemos denominar Deus, porque jpronunciamos algo ao dizer isso.8

    Idem. Ibidem: No sei que contradio de termos existe a, porque se inefvel o que no pode ser expresso,

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    mesmo devemos preferir o silncio palavra.9 Alis, se existe algo que conhecemos com

    propriedade acerca de Deus em si mesmo, saber que no podemos conhec-lo: (...) o

    prprio Pai do universo, do qual no h nenhum conhecimento na alma a no ser saber at que

    ponto o desconhece10. Noutra passagem, Agostinho chega a dizer: (...) Deus, a quem se

    conhece melhor ignorando (...)11.

    Todos os conceitos que damos a Deus derivam das suas criaturas e, justamente por

    isso, cabem primeiramente a elas e no a Deus.12Entretanto, no um puro equvoco aplicar a

    Deus os nomes prprios das criaturas, visto que a prpria Escritura o faz para facilitar a

    compreenso dos iniciantes.13Inobstante isso, deve-se ter sempre presente que tais nomes no

    expressam o que Deus em si mesmo, posto que De Deus pode dizer-se tudo, e tendo-se dito

    tudo, tudo fica longe de ser dito como deve ser14. O prprio Agostinho assevera que asSagradas Escrituras s adotam tais expresses para que, por meio delas, os iniciantes

    consigam subir, como que por degraus, s realidades divinas.15Alm disso, quando se nomeia

    Deus de acordo com as suas criaturas, devem-se levar em conta as leis da razo e do ser, pois

    no seria lcito expor Deus a contradies, atribuindo-Lhe coisas inexistentes e impossveis de

    ocorrerem at mesmo nas criaturas.16Ademais, no seria de acordo com a razo e no se

    coadunaria com a excelncia da natureza divina predicar a Deus uma cor, por exemplo.17

    Muito mais grave ainda seria dizer que Deus gerou a si prprio, uma vez que, mesmo entre ascriaturas, tal coisa afigura-se como absurda.18Passemos a analisar o que Agostinho arrazoa

    sobre a transcendncia divina.

    9Idem. Ibidem: Tal contedo de expresses, procuremos evit-lo com o silncio, mais do que nos servindo depalavras de consenso.10AGOSTINHO. A Ordem. Agustinho Belmonte. Rev. Joaquim Pereira Figueiredo. So Paulo: Paulus, 2008.II, XVIII, 47.11Idem.Ibidem. II, XVI, 44.12BOEHNER, GILSON. Histria da Filosofia Crist. p. 173: Todos os nossos conceitos derivam das criaturascorporais ou espirituais, e por isso se aplicam primariamente s coisas mutveis e temporais.13AGOSTINHO. A Trindade. I, 1, 2: Por isso empregou (A Sagrada Escritura) palavras tomadas das coisascorporais ao falar de Deus como, por exemplo, quando diz: Protegei-me sombra de tuas asas. (O parntese nosso).14AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de Joo: O Verbo de Deus. 2 ed. Trad. Jos Augusto RodriguesAmado. Coimbra: Grfica de Coimbra, 1954. v. I. XIII, 5.15Idem. A Trindade. I, 1, 2: Com a finalidade de purificar o esprito humano de semelhantes erros a santaEscritura, acomodando-se aos pequenos, no evitou expresses designando esse gnero de coisas temporais,mediante as quais nosso entendimento, como que alimentado, pudesse ascender por degraus, s coisas divinas esublimes.16Idem. Ibidem: Em se tratando de coisas inexistentes, a Escritura no registrou expresso alguma queenvolvesse locues figurativas ou encerrasse enigmas. (...) Conjeturam (Faces herticas ou pags) a respeito

    de Deus elementos que no se encontram nele mesmo, nem em criatura alguma. (O parntese nosso).17Idem. Ibidem. I, 1, 1: Quem julga, por exemplo, que Deus branco ou louro, engana-se, ainda que dequalquer maneira encontremos acidentes no corpo.

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    3. A transcendncia e incompreensibilidade do ser divino

    Importa dizer que Deus transcende o nosso ser e, por isso mesmo, o nosso

    entendimento.19 Sendo assim, na medida em que o nosso pensamento reflete sobre Deus,

    paradoxalmente se afasta dEle, porque descobre que lhe inapreensvel20, uma vez que, como

    diz Agostinho, se o compreendesses, ele no seria Deus21. Com efeito, o nosso esprito no

    consegue apreend-lO seno de forma indistinta e como que por um espelho, o espelho das

    criaturas.22 Ora, se no compreendemos nem a nossa alma racional com perfeio, como

    podemos esperar compreender uma natureza que a transcende infinitamente?23Assim, todos

    os nossos pensamentos e conceitos a respeito de Deus nos remetem para algo que est acima

    deles, visto que, oriundos em ltima instncia das criaturas, no podem exprimir o que as

    transcende absolutamente. Resume Agostinho: No se nota pobreza maior do que quando se

    trata de dizer o que Deus . Se procurais um nome conveniente, no o encontrais (...) 24.

    Numa passagem do Enarrationes in Psalmos, Agostinho descreve com maestria a

    inefabilidade divina e como Deus est acima de todas as suas criaturas e de tudo quanto

    podemos pensar acerca dEle:

    Pense o homem o que quiser: um ser criado no se compara aocriador. Exceto Deus, tudo o que realmente existe foi feito por Deus.Quem pode calcular exatamente a distncia entre o criador e acriatura? (...). Deus inefvel [Deus ineffabilis est]. mais fcilexprimir o que no do que aquilo que [facilius dicimus quid nonsit, quam quid sit]. Pensas na terra [Terram cogitas]. Deus no isto[non est hoc Deus]. Pensas no mar [mare cogitas]. Deus no isto[non est hoc Deus]. Em tudo que existe na terra, homens e animais[omnia quae sunt in terra, homines et animalia]. Deus no isto [non

    18Idem.Ibidem: Quem, porm, pensa que Deus dotado de tal fora que tenha gerado a si mesmo, incorre emmaior erro ainda, j que Deus no somente no assim, e tampouco uma criatura espiritual e corporal. No hcriatura que seja capaz de gerar a si mesma para existir.19BOEHNER, GILSON.Histria da Filosofia Cristp. 173: Assim Deus transcende o nosso entendimento namesma proporo em que transcende o nosso ser.20AGOSTINHO. A Trindade. V, 1, 1: Pois nosso pensamento, ao refletirmos sobre Deus Trindade, sente-sedistanciado daquele em quem pensa e no consegue apreend-lo tal como ele .21AGOSTINHO. Sermo 52. 6, 16. In: Catecismo da Igreja Catlica. 11 ed. So Paulo: Edies Loyola,Julho 2001. p. 70.22AGOSTINHO. A Trindade: Pois como est dito: Ele visto apenas em espelho e de maneira confusa (I Co

    13, 12) (...).23Idem.Ibidem. V, 1, 2: Ora, o que no chegamos a entender a respeito de nossa parte mais nobre, no devemosprocurar com relao a Deus, que imensamente superior ao que temos de melhor.

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    est hoc Deus]. Tudo que existe no mar, que voa nos ares [omnia quaesunt in mari, quae volant per aerem]. Deus no isto [non est hoc

    Deus]. Tudo o que brilha no cu, as estrelas, o sol e a lua [quidquidlucet in coelo, stellae, sol et luna]. Deus no isto [non est hoc Deus].

    No prprio cu [ipsum coelum]. Igualmente no Deus [non est hocDeus= Deus no isto]. Pensa nos Anjos, Virtudes, Potestades,Arcanjos, Tronos, Sedes, Dominaes. Deus no isto [non est hoc

    Deus]. E o que ento? [Et quid est?] Somente pude declarar o queno [solum potui dicere, quid non sit]. Perguntas o que ? [Quaerisquid sit?] O que os olhos no viram, os ouvidos no ouviram e ocorao do homem no percebeu (I Co 2, 9).25

    De forma que o mais longe que podemos chegar nesta busca, reconhecer a

    incompreensibilidade divina.26 Agostinho chega a dizer que este reconhecimento uma

    espcie de douta ignorncia (docta ignorantia)27, pois, do contrrio, tomando como Deus

    alguma de suas criaturas, cairamos, fatalmente, em alguma idolatria, j que um dolo

    [edolon] no seno uma ideia [eidos] que transformamos em Deus. E como uma ideia

    sempre expressa por uma palavra, Agostinho assevera acerca da prpria palavra Deus:

    Deus no apenas as duas breves slabas com que exprimimos o seunome, nem ns veneramos essas duas breves slabas, nem as adoramos,nem a elas que pretendemos chegar.28

    Por isso, diz ele noutro Sermo: Deus est acima de tudo, do cu e da terra [Superat

    omnia Deus, caelum et terram](...), e conclui na mesma percope, exclamando: Despedaai

    os dolos de vossos coraes29. Com isso Agostinho exprime e nos adverte que a realidade de

    Deus em si mesmo est acima de todos os nossos pensamentos.

    No entanto, a prpria incompreensibilidade de Deus incita-nos a busc-lO com maior

    ardor.30Entra cena o Doutor do Desejo. De fato, a partir do momento em que a alma atesta a

    existncia de Deus, no se cansa mais de procurar desvendar-Lhe os mistrios.31Alis, buscar

    25AGOSTINHO. Comentrio aos Salmos. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. So Paulo: Paulus,1997. v. II. 85, 12, 8.26Idem. A Trindade. XV, 2, 2: Com efeito, assim que as realidades incompreensveis devem ser procuradas,de modo que no considere ter encontrado, aquele que compreende quo incompreensvel o que busca.27 AGOSTINHO. Epistola 130. 15, 28. Disponvel em .Acesso em: 08/04/2012.28 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de Joo: Medico e Alimento. 2 ed. Trad. Jos AugustoRodrigues Amado. Coimbra: Grfica de Coimbra, 1954. v. II. XXIX, 4.29 AGOSTINHO. Sermo 223 A. 5. Disponvel em .

    Acesso em: 08/04/2012.30Idem. A Trindade. XV, 2, 2: Procura-se para que sua descoberta seja mais gratificante, e encontra-se paraque sua procura seja feita com mais avidez.

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    a Deus de acordo com as nossas foras faz parte da piedade. 32De maneira que a inteligncia

    deve estar sempre voltada para a busca de Deus, pois este o fim ltimo da criatura racional.

    o que conclui Agostinho: Logo, para isto que o homem deve ser inteligente: para buscar

    a Deus33.

    Passemos s consideraes de Agostinho acerca do que podemos conhecer de Deus

    por meio das suas criaturas.

    4. O que podemos conhecer de Deus por meio das suas

    criaturas

    Agora bem, conquanto no possamos conhecer a Deus em si mesmo, podemos j o

    sabemos conhec-lO a partir das suas criaturas.34 Cumpre notar, todavia, que, por meio

    delas, conseguimos saber menos o que Deus do que o que Ele no . Mas isso j um

    exerccio de piedade, pois nos ajuda a evitar pensar que Deus o que Ele no .35Ademais,

    percebemos nas criaturas algo que pode realmente erguer-nos delas para a Deus, a saber, os

    seus diversos graus de perfeio e contrastes. Por exemplo, o bem e o mal se encontram nas

    coisas. Ora, no hesitamos em preferir o bem em detrimento do mal e nem o mais perfeito em

    vez do menos perfeito.36Alm disso, a prpria escala dos seres est a nos apontar como j

    vimos acima para a existncia de um sumo ser, criador e governador de todos eles. Ora bem,

    este primeiro e sumo ser Deus. Ele, de fato, o Criador que, na sua radical contingncia,

    todas as coisas reclamam.37 a Ele, pois o Criador de todas as coisas a quem devemos

    atribuir o sumo grau daquelas perfeies que encontramos limitadas e dispersas nas criaturas:

    31BOEHNER, GILSON.Histria da Filosofia Cristp. 173: Uma vez descoberta a existncia de Deus, onosso amor anseia por erguer o vu dos mistrios divinos (...).32AGOSTINHO. A Trindade. V, 1, 2: E contudo, no h temeridade alguma para a piedade dos fiis inflamar-se pelas coisas divinas e inefveis colocadas acima de ns.33Idem.Ibidem. XV, 2, 2.34Idem. Ibidem. XV, 2, 3: Demoramo-nos sobejamente nas coisas criadas por Deus, para por meio delasconhecermos aquele que as criou (...).35Idem. Ibidem. V, 1, 2: Todo aquele que refletir sobre Deus deste modo, embora no chegue a conhecerplenamente o que ele , contudo enquanto pode como homem piedoso, evitar pensar dele, o que ele no .36BOEHNER, GILSON.Histria da Filosofia Cristp. 173: No hesitamos em dar preferncia ao que bome mais perfeito.37 AGOSTINHO. A Trindade. XV, 4, 6: (...) toda a natureza que nos cerca e qual pertencemos, proclama que

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    a vida, o entendimento, a imutabilidade, a espiritualidade, o poder, a beleza, a justia, a

    excelncia e a felicidade:

    E porque antepomos, sem qualquer sombra de dvida, o Criador scoisas criadas, preciso que confessemos que a prpria vida emplenitude, que tudo percebe e entende; que no pode morrer,corromper-se ou mudar-se; que no dotado de corpo, mas esprito,sumamente poderoso, justo, belo, timo e o mais feliz entre todos osespritos.38

    Passemos anlise da concepo de Agostinho que toca ao ser divino.

    5. Eu Sou Aquele que Sou

    Importa dizer que os nomes que mais se coadunam com Deus so o de substncia e

    essncia.39Ora, o termo essncia (essentia) deriva de ser (esse). Logo, o nomeser o nome

    por excelncia para designar a majestade divina.40Por qu? Vejamos. Moiss, ao perguntar ao

    prprio Deus o Seu nome, escutou dEle a seguinte resposta: Eu Sou Aquele que Sou ou Eusou Aquele que 41. Eis uma primeira resposta, mas tentemos entend-la dialeticamente.

    Analisemos. Para Agostinho, ser ser imutvel. Por conseguinte, segundo ele, ser

    verdadeiramente ser sempre o que se e ser sempre da mesma maneira, sem qualquer

    possibilidade de mudana. Diz textualmente: (...) apreenda a inteligncia o que ser

    verdadeiramente. O ser sempre do mesmo modo42. E afirma ainda: Qualquer coisa, por

    mais excelente, se mutvel, no em rigor da verdade. No h verdadeiro ser onde h

    tambm o no ser43

    . Ora, s Deus imutvel desta forma, conforme tambm afere o Doutor

    38Idem.Ibidem.39Numa passagem clebre do De Trinitate, Agostinho chega a dizer que, de certo modo, o nome essncia cabepropriamente somente a Deus: Idem. Ibidem. VII, 5, 10: Deve-se atribuir-lhe o termo mais prprio deessncia, o qual se aplica verdadeira e propriamente a ele. Isso de tal modo que talvez somente Deus seja umaessncia. ele deveras o nico queseja realmente, por ser imutvel. E foi esse o nome por ele revelado a seuservo Moiss quando disse: Eu sou o que sou/ e lhe dirs: Aquele que , enviou-me a vs(Ex 3, 14).40Idem.Ibidem. V, 2, 3: Deus , sem dvida, uma substncia ou (se o termo for mais adequado) uma essncia, aqual os gregos denominavam ousia. (...) assim essncia termo derivado do verbo ser (esse).41Idem.Ibidem: E de quem se pode dizer com mais propriedade que , seno daquele que disse a seu servo

    Moiss: Eu sou o que sou, e: Dirs aos filhos de Israel: Aquele que , enviou-me a vs (Ex 3, 14).42 AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de Joo: Luz, Pastor e Vida. 2 ed. Trad. Jos AugustoRodrigues Amado. Coimbra: Grfica de Coimbra, 1960. v. III. XXXVIII, 10.

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    de Hipona: Pensa em Deus, e encontrars o e nele no pode haver foi nem ser44.

    Donde s Ele ser o prprio Ser (Ipsum Esse), porque s Ele a prpria imutabilidade,

    segundo ressalta ainda o mesmo Agostinho:

    ele deveras o nico queseja realmente, por ser imutvel. E foi esseo nome por ele revelado a seu servo Moiss quando disse: Eu sou oque sou e lhe dirs: Aquele que , enviou-me a vs(Ex 3, 14).45

    Ao comentar a passagem em que Cristo disse Se no credes que eu sou(Jo 8, 24), o

    Bispo de Hipona acentua a absoluta simplicidade do ser divino:

    Que quer isto dizer? Se no credes que eu sou! Que eu sou o qu?Nada acrescentou, e porque nada acrescentou, deu grandeensinamento. Esperava-se que ele dissesse o que era, e nada disse. 46

    Destarte, se Deus assim ser inteiramente simples, porque imutvel de modo

    inamissvel todas as nossas expresses em relao a Ele, ainda que se diversifiquem entre si,

    quando aplicadas a Ele, devem-se referir a uma s e mesma realidade.47

    Esmeremos por tentar entender doutro modo este ideal. Procedamos da seguinte

    forma. Antes de tudo, reduzamos a doze os nomes que predicamos a Deus segundo a suasubstncia: eterno, imortal, imperecvel, imutvel, vivo, sbio, poderoso, belo, justo, bom,

    feliz e esprito.48 Ora, todos estes nomes (predicados), ratificamos, devem ser atribudos a

    Deus segundo a Sua substncia ou essncia.49 Distribuamos, agora, estes mesmos doze

    enunciados em trs grupos de quatro, sendo que, em cada grupo, um dos enunciados

    determina os restantes.50 Ora, fazendo isso verificamos que os doze, em ltima instncia,

    acabam resumindo-se em trs, e estes trs, por sua vez, podemos reduzi-los a um, que

    43Idem.Ibidem. AGOSTINHO. A Trindade. V, 2, 3: Tudo o que muda no conserva o ser em si mesmo e oque pode mudar, mesmo que no mude, pode ser o que antes no tinha sido. Assim, somente ao que no muda eno pode de forma alguma mudar, pode-se afirmar, sem escrpulos, que verdadeiramente o Ser.44AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de Joo: Luz, Pastor e Vida . XXXVIII, 10.45Idem.A Trindade. VII, 5, 10. GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Mdia. Trad. Eduardo Brando. Rev.Carlos Eduardo Silveira Matos. So Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 148: Ser verdadeiramente ser sempre damesma maneira (...). Ora, somente Deus sempre o mesmo; logo, ele o Ser, porque a imutabilidade.46AGOSTINHO. Comentrio ao Evangelho de Joo: Luz, Pastor e Vida . XXXVIII, 8.47Idem. A Trindade. XV, 5, 7: uma e mesma coisa quando se diz: Deus eterno, imortal, incorruptvel,imutvel. Assim como quando se afirma que vivente, inteligente, ou seja, sbio.48Idem. Ibidem. XV, 5, 8: Portanto, se dizemos: Eterno, imortal, incorruptvel, imutvel, vivo, sbio,poderoso, belo, justo, bom, venturoso, esprito (...).49Idem.Ibidem: Pois, tudo o que se afirma com relao s qualidades (em Deus), h de se entender segundo asubstncia ou essncia. (O parntese nosso).50 BOEHNER, GILSON. Histria da Filosofia Crist p. 174: Estes doze enunciados podem dividir-se em trs

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    expressar a mesma e nica realidade.51Este nome nico ser, portanto, aquele que menos

    imperfeitamente expressar a essncia ou substncia divina, pois incluir todos os demais, j

    que todos os outros so aplicados a Deus conforme vimos segundo a sua Substncia

    (substantia) ou essncia (essentia). Ora, este nome j nos conhecido: Aquele que . Por

    conseguinte, que ele indica, mais do que qualquer outro, a absoluta imutabilidade e

    simplicidade de Deus.

    Passemos s consideraes finais deste texto.

    Concluso

    Para Agostinho, as criaturas so como degraus que nos ascendem a Deus. Por sua

    beleza parcial, seu ser sujeito a mudanas, suas perfeies e at os seus contrastes, elas nos

    apontam para o Belo, para um ser no sujeito mudana e que prefervel a todas as coisas.

    Contudo, o conhecimento que nos transmitem sobre Deus, no nos faz conhecer o que Ele

    em si mesmo, pois as perfeies que encontramos nas criaturas e depois aplicamos a Deus,

    por mais que as desprendamos das criaturas, sempre expressaro mais o modo de ser dascriaturas do que o modo segundo o qual existem em Deus. Ademais, o nosso intelecto finito,

    ele prprio sujeito a mudanas, uma das vezes sbio doutras, ignorante. Sendo assim, como

    pode pretender exprimir aquele que sumamente imutvel? Porm, o conhecimento que

    adquirimos a partir das criaturas no todo intil; ao contrrio, ele nos incita a buscarmos a

    Deus com maior afinco e solicitude. De resto, aquele que, ao se deparar com as criaturas,

    comea a preferi-las ao seu Criador, pode at se tornar douto, mas nunca ser sbio.

    interessante destacar que, em Agostinho, tanto o conhecimento de Deus queobtemos pelas criaturas quanto a sua transcendncia em relao aos nossos conceitos,

    fundamentam-se na sua concepo de que ser e ser imutvel so uma s coisa. Agora bem,

    esta convico ele a reporta Revelao divina, segundo a qual Deus se revelou a Moiss

    como sendoAquele que . Desta feita, como imperfeito s pode proceder do perfeito, claro

    que as criaturas, sendo mutveis, nos remetem quele que sempre o mesmo. Por outro lado,

    51AGOSTINHO. A Trindade. XV, 6, 9: Reduzimos as doze perfeies a esse pequeno nmero de trs, mastalvez possamos reduzir ainda os trs a uma s delas. (...) Por isso, como no havia inconvenincia de falarmosem doze ou em trs, quando reduzimos os muitos atributos a poucos, assim no h diferena em dizermos trs ou

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    como todos os conceitos que aplicamos a Deus retiramos das criaturas, todos eles expressam

    primeiro a elas e s depois a Deus. Ora, como todas as criaturas, inclusive o homem, so

    sujeitas a mudanas, por mais elevados que sejam os nossos conceitos oriundos delas, eles

    jamais podero exprimir a essncia divina em si mesma, posto que esta absolutamente

    imutvel. Por isso que os nomes que aplicamos a Deus, por mais que se diversifiquem, devem

    ser predicados a Ele segundo a sua imutabilidade, isto , como pertencendo a uma nica e

    mesma realidade.

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