22
7 Agradecimentos À Heidrun: orientadora, interlocutora, amiga; à FAPERJ pelas bolsas de Fixação de Recém-Doutor e Pós-Doutorado Sênior que me permitiram realizar, no Departamento de Letras da PUC-Rio, as pesquisas feitas sob orientação de Heidrun Krieger Olinto, cujos resul- tados estão aqui parcialmente apresentados.

Agradecimentos · Nestas Reflexões sobre literatura e cultura, Daniela Versiani valoriza o ... no ensaio de 1982, que trata do romance moderno, destaca, como possibilidade de ruptura

  • Upload
    others

  • View
    8

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

7

Agradecimentos

À Heidrun: orientadora, interlocutora, amiga;

à FAPERJ pelas bolsas de Fixação de Recém-Doutor e Pós-Doutorado Sênior que me permitiram realizar, no Departamento de Letras da PUC-Rio, as pesquisas feitas sob orientação de Heidrun Krieger Olinto, cujos resul-tados estão aqui parcialmente apresentados.

Para Augusto: the rock upon which I stand.

11

ApresentaçãoMarília Rothier Cardoso

A orientação escolhida por Daniela Beccaccia Versiani para esta coletânea de ensaios ganha importância em função dos dois objetivos que prioriza, objetivos que exigem argúcia delicada na seleção das questões a serem pro-postas e cuidado perspicaz no estilo redacional desenvolvido. Tais objeti-vos são: (1) a retomada de publicações teórico-críticas para fazê-las avan-çar, estranhando aspectos aparentemente já resolvidos, explorando itens secundários e/ou investigando detalhes e (2) o preparo de material especu-lativo complexo em termos acessíveis aos iniciantes na área de estudos lite-rários, de modo a garantir a plena legibilidade enquanto se evita qualquer simplificação. Apresentando-se como um convite a Ler, comparar, pensar, este livro enfrenta um desafio que poucos estudiosos encaram com habili-dade. Nestas Reflexões sobre literatura e cultura, Daniela Versiani valoriza o receptor que se inicia no campo da pesquisa, pois lhe oferece uma espécie requintada de “manual”, onde não só se reúnem as vertentes mais atualiza-das das disciplinas envolvidas como se apresenta – com a virtude da clareza nas definições e justificativas – o próprio movimento minucioso e gradual de autocrítica e abertura de outros horizontes.

Uma estratégia especialmente útil, usada por Daniela Versiani para cumprir seus objetivos e, assim, facilitar o acompanhamento do debate teó-rico-metodológico por parte do pesquisador iniciante, que verá ressaltada a necessidade do mesmo, é apresentar as questões que ocupam os especia-listas, em seu empenho de revisão e atualização, a partir de exemplos de prática crítica ou em paralelo com os mesmos. Isto é feito de modo plena-mente eficaz, já no primeiro capítulo, quando se rastreiam, ponto a ponto, três ensaios onde Silviano Santiago examina a prosa brasileira e denuncia seu fechamento no universo burguês a que pertencem seus produtores e

12

receptores. Recorrendo à antropologia para esclarecer os argumentos crí-ticos de que lança mão, o crítico, no ensaio de 1982, que trata do romance moderno, destaca, como possibilidade de ruptura dos limites denuncia-dos, o uso da pesquisa etnográfica (também nos padrões modernos) por parte do romancista. No estudo de 1989, que avança para além do período modernista, as relações entre ficcionalidade e registro documental também vão-se descolando dos padrões etnográficos convencionais para dar realce às inscrições do corpo do escritor no texto, através da crescente tendência autobiográfica, que observa. Já na conferência de 1998, quando o espaço estreito das belas letras se abre à cultura, é o deslocamento da tarefa crítica das avaliações estéticas para considerações de ordem antropológicas que ocupam as reflexões desse observador de nossa literatura. Depois de exa-minar o panorama histórico-crítico, Daniela Versiani trata das afinidades entre o julgamento, operado por Santiago, e as vertentes da teoria contem-porânea, que levam em conta as relações entre produção e recepção literá-rias, evidenciando a mudança na compreensão das mesmas, que passa de tarefas como decodificação, interpretação, tradução – onde é indiscutível o privilégio do texto – para o conceito de interlocução, isto é, diálogo e nego-ciação entre as vozes construtoras da escrita e entre as atividades produtora e receptora. Alguns trabalhos pioneiros da chamada antropologia crítica, que servem de parâmetro e estímulo à crítica literária e cultural em seu esforço de ajustar-se às exigências estéticas e políticas, são examinados por Daniela Versiani, descrevendo sua maneira de trocar o monologismo pela polifonia, onde as vozes perdem a neutralidade e ganham corpo. Bem situ-ado em relação ao problema, através do caso brasileiro conhecido, o leitor é instigado a percorrer os caminhos da interdisciplinaridade, complexifi-cando, com tal estímulo, seus instrumentos analítico-críticos.

Para que o intercâmbio entre a teoria da literatura e a antropologia opere a desejada revisão dos padrões de julgamento crítico da arte, multi-plicando perspectivas e ampliando as referências estéticas para abranger as tradições populares e o circuito de massa, faz-se necessário rever o conceito de autoria e é este o tema debatido no capítulo 2. Nas circunstâncias recen-tes, em que se questiona a autoridade do sujeito – aquele correspondente à assinatura da obra –, é indispensável levar em conta as referências da cul-tura, que precedem e ultrapassam os indivíduos e se superpõem ao suposto controle da escrita por uma consciência pessoal. O encaminhamento do capítulo mostra como esse deslocamento de foco, possível justificativa da

13

“morte do autor”, mantém-se, no presente, destituído da violência inicial de supervalorizar a textualidade como único solo de relacionamento com o leitor. No empenho de inserir a recepção da escrita literária no âmbito da cultura, sem regredir às teorias românticas do “gênio”, Daniela Versiani recorre, muito oportunamente, ao conceito, cunhado por Gumbrecht, de “jogo de máscaras”, através do qual a autoria tornou-se uma “função” sócio-jurídico-econômica. Caracterizadas as circunstâncias históricas da constituição das categorias de “autor” e “sujeito”, nos séculos XVI e XVII, passa-se ao exame, através de Seán Burke, das orientações filosóficas que, ao longo do tempo, foram definindo o sujeito como impessoal, neutro e transcendente, de modo a identificá-lo com a ação racional da consciên-cia e, assim, tornar-se garantia do conhecimento verdadeiro. Tal exame é que torna evidentes as operações, desencadeadas nos meados do século XX, com apoio na linguística e na psicanálise, visando destituir o sujeito – e, como consequência, o autor – de sua posição transcendente, uma vez que a objetividade do saber consciente não se sustenta mais. Aí, ressalta o papel de Nietzsche que situa as atividades intelectuais em solo histórico, onde o corpo desempenha funções tão importantes quanto as do espírito e, assim, mostra como o objeto é sempre interpretado e avaliado em função do ponto de vista do sujeito. Nessa guinada, esgarça-se a certeza no poder de controle da escrita pela intencionalidade do autor. Acompanhando o trabalho de mapeamento histórico-epistemológico, Daniela Versiani chega a um dos eixos centrais de seus ensaios – apontar a ascensão da escrita autobiográfica – aquela que indica o posicionamento histórico-geográfico-cultural do autor – como guinada decisiva capaz de perspectivar a atividade pensante.

Uma vez estabelecido o conceito de “subjetividade” capaz de funda-mentar, de modo consistente, as operações dialógicas e polifônicas das escritas, Daniela Versiani vai buscar, em estudo de Jane Tompkins, um levantamento de estratégias necessárias à legitimação de critérios da crí-tica literária aptos a avaliar obras produzidas por sujeitos de gênero, classe, etnia e/ou cultura diferentes daqueles já canonizados na tradição erudita. Trata-se de responder a uma exigência, imperiosa nas últimas décadas, de perspectivação tanto do trabalho autoral quanto da tarefa de leitura. O debate, registrado no texto da especialista americana, a propósito do clás-sico sentimental-político A cabana do Pai Tomás, que os padrões estéti-cos modernistas desqualificaram, resulta útil para que a revisão teórica,

14

desenvolvida em Ler, comparar, pensar, se consolide conforme o horizonte atual de pluralidades e heterogeneidades. Como se viu, tal empenho revi-sionista conta com o intercâmbio com as chamadas ciências humanas, em especial, a antropologia. Então, este livro recupera a dimensão autobiográ-fico-autorreflexiva da escrita literária, através da cunhagem de um conceito mais rigoroso – o de “autoetnografia”. Depois de justificar a proposta por meio de uma análise de cada componente do termo, Daniela Versiani mos-tra como a atividade autoetnográfica supõe dupla – ou múltipla – explici-tação de lugares de fala/escrita, pois abarca os polos produtor e receptor. Enfatizando que o conceito de autoetnografia não está fechado mas ser-ve-se da prática para reconstruir-se constantemente, o capítulo satisfaz as expectativas de estudantes e especialistas pois garante a abertura do traba-lho crítico a uma efetiva pluralidade perspectivística.

O movimento da chamada orientação crítica da antropologia ganha o lugar privilegiado de referência epistemológico-crítica para que este livro proponha a ampliação de possibilidades que operem a construção de conhecimento no campo da teoria da literatura. Nesse esforço de ruptura com parâmetros convencionais, limitados ao horizonte erudito da arte do Ocidente, desenvolve-se, paralelamente, uma expansão do conceito de lite-ratura – bem como dos fundamentos para sua análise crítica –, em direção homóloga às tendências recentes das artes, que passaram a constituir-se através da articulação de linguagens diferentes incorporando as soluções múltiplas oferecidas pelas novas tecnologias. Assim, se os antropólogos vêm fazendo a autocrítica de suas bases epistemológicas, no contraponto com epistemologias não ocidentais, a teoria das escritas artísticas também deve abandonar seus últimos nexos com a primazia do sujeito aparelhado com os critérios de isenção e objetividade, próprios da ciência positiva. Mesmo que tal noção de ciência esteja ultrapassada, algumas de suas exigências ainda marcam os parâmetros acadêmicos de pesquisa. Quando o capítulo 5 vem legitimar a entrevista como fonte de pesquisa, abre-se o espaço de tais fontes para incorporar versões de sujeitos individuais (isto é, aqueles cujas referências culturais são articuladas por um prisma de observação singular e circunstancial) e de perspectivas diferentes. Por certo, a entre-vista – ao lado do depoimento, da autobiografia, da autoficção, da anotação diarística, da conversa informal – foi destacada para que se examinasse a reviravolta em seu emprego, no âmbito da etnografia, e se propusesse para a teoria das escritas chamadas artísticas o mesmo horizonte amplo, onde o

15

saber do Outro tivesse o mesmo valor que o do Mesmo, ou seja, onde não se tivesse de ocidentalizar ou padronizar em termos eruditos as proposições expressas a partir de solos culturais ou socioeconômicos diferentes. Além do mais, a revisão do lugar e do uso da entrevista pelos observadores de cul-turas arcaicas, deslocando o informante “nativo” do papel de fornecedor de dados brutos para a posição de coautor da pesquisa, transformou a constru-ção do saber etnográfico em diálogo e até polifonia – interlocuções em que está incluída a performance. Justamente essa fuga à tradição monológica e de privilégio da razão, que ainda permanece no saber acadêmico, é que Daniela Versiani empenha-se em abandonar de vez, à medida que expõe as vantagens antietnocêntricas e autocríticas da “alternativa dramática” para a demanda de conhecimento, que constitui seu objetivo mais avançado.

Mais poderosas até que as importantes justificativas teóricas para a adoção ampla de um saber “dramático” – contrário tanto à limitação dos sujeitos capazes de postulá-lo quanto à minimização do corpo como agente da observação crítica – no lugar de um saber racionalista e monológico, é o debate analítico-avaliador de uma amostra particular de objeto artístico-cultural. No 6o e último capítulo do livro, experimenta-se uma enuncia-ção ensaística mais livre, que inclui o uso da primeira pessoa do singu-lar em considerações informais sobre suas percepções, o tipo de afecção causada pela recepção do filme 5 vezes favela; agora por nós mesmos, e as circunstâncias práticas tanto de sua produção quanto do momento e lugar em que foi assistido. Com esse expediente, a autora logra transmitir a seu leitor os graus de desconforto e perplexidade propícios à operação de uma guinada crítica que, sem descartar o impacto agradável da sequência de curtas-metragens, conduz à mais saudável das desconfianças a respeito do tratamento estético-político do tema – tratamento resultante do tipo de produção, coordenada por um grupo já legitimado, e pela formação predo-minantemente convencional dos jovens diretores dos episódios – que, pelo título, propõe-se a rever, em diferentes perspectivas, as imagens da “favela”. O modo, em várias passagens, narrativo, e o tom indagador que presidiram à redação deste capítulo trazem ao leitor um impacto significativo, pois ele é levado – antes mesmo de se dar conta disso – a interagir com o ensaio analítico-crítico. Suas próprias dúvidas se fortalecem, enquanto atravessa o capítulo, levando-o a um refinamento das indagações que lança, diante desse filme, que se apresenta como revisão antietnocêntrica de uma produ-ção de décadas anteriores. Sabendo lidar com o estilo ensaístico escolhido,

16

Daniela Versiani não confronta o leitor com julgamentos fechados, nem nega os méritos desse novo 5 vezes favela, mas, espertamente, aponta o apego às convenções – seja dos produtores, seja dos próprios jovens dire-tores – de modo a que se capte (com a força de uma descoberta própria) a distância entre o perspectivismo do projeto e sua realização, incapaz de romper com o “horizonte de expectativas” do público. Os parágrafos do ensaio são sutis ao indicar o efeito de familiaridade provocado pelas imagens exibidas e passa a prever imaginariamente soluções alternativas, sequências capazes de romper com os hábitos do espectador médio. Aqui está o impacto potente, que encerra o livro – a abertura de um diálogo possível e produtivo com aqueles interessados que se iniciam no campo da pesquisa da cultura e da arte.

17

introdução Umas poucas palavras

Este livro reúne textos anteriormente publicados em periódicos, coletâneas e anais de congressos durante o período de meu pós-doutoramento, realizado no Departamento de Letras da PUC-Rio, sob orientação de Heidrun Krieger Olinto, com as bolsas Fixação de Recém-Doutor e Pós-Doutorado Sênior a mim concedidas pela Faperj. O propósito de reunir esses textos em livro foi tornar visível ao leitor as conexões entre questões e temas que os atravessam, impossíveis de ser percebidos enquanto eles permaneciam esparsos.

Todos os textos trazem, em nota junto ao título, as referências biblio-gráficas da primeira versão publicada, que passou por alterações mais ou menos significativas de modo a tornar mais legíveis passagens que me pare-ceram obscuras, ajustar terminologias, refinar percepções, reflexões, dúvi-das. Preparar esta coletânea reiterou em mim a certeza de que um texto nunca termina de ser escrito: é apenas a fotografia de um processo inter-rompido de elaboração do pensamento. Também reforçou em mim a cer-teza de que a construção do conhecimento, ao menos em nossa área, não se dá de forma linear e progressiva, menos ainda aos saltos, ou seja, é impos-sível acreditar em “descobertas” ou “avanços”. Em nossa área, elaborações reflexivas transcorrem aos poucos, em movimentos não lineares, feitos de tensões, recuos, desvios, revisões. Foi no interior da labuta entre pensar e escrever que me ocorreram as percepções e proposições que suplementam reflexões construídas desde o meu doutorado. Espero que estas explicações permitam ao leitor compreender a ênfase que dou ao reconhecimento da relação circular, recursiva, entre pensamento, conhecimento e (re)escrita.

O ponto de partida deste livro é a retomada de questionamentos apre-sentados em minha tese de doutorado, entre eles a discussão na qual, a partir da leitura de três ensaios de Silviano Santiago, ficava evidenciada uma importante mudança nos estudos de literatura: do interesse dos estu-dos de literatura por uma literatura de tendência antropologizante para a

18

efetiva incorporação nos estudos de literatura de métodos da antropologia (SANTIAGO, 1982; 1989; 1998).

A constatação feita por Silviano Santiago a respeito do processo de antropologização dos próprios métodos adotados por – ao menos – uma parte dos estudiosos de literatura permitiu-me fazer a convergência entre estudos literários e antropologia, concentrando-me na discussão em torno da possibilidade de compreender as escritas de si, entre elas as autobio-grafias, como formas alternativas de etnografias, para em seguida oferecer uma análise de diferentes significados atribuídos ao termo “autoetnografia” (VERSIANI, 2002; 2005).

Na tese eu concluía que o termo autoetnografia não se refere apenas a um “novo gênero”. Autoetnografia é um neologismo que permite a per-cepção simultânea de questões subjetivas e questões culturais encenadas em diferentes formas de escrita. Por isso o termo autoetnografia permite designar desde textos que, de modo recursivo e não dicotômico, conjugam aspectos autobiográficos com aspectos etnográficos da vida de uma pes-soa até a escrita autorreflexiva do sujeito produtor de conhecimento que reconhece e exercita a própria subjetividade no interior da cultura e/ou de contextos institucionalizados de pesquisa aos quais pertence. Neste caso, a “autoetnografia” seria a encenação pela escrita de um “método” de pesquisa pautado por um investimento autorreflexivo.

Um dos tópicos de pesquisa do meu pós-doutorado era estender minhas reflexões acerca das relações entre a crescente visibilidade de novas subjetividades e minorias, o crescente interesse pelos estudos culturais e as mudanças paradigmáticas que ocorreram em nossa área nos últimos anos, enfocando, sobretudo, o lugar do pensador da cultura inserido em con-textos percebidos como contingenciais e plurais. Nesse sentido, dei con-tinuidade às minhas reflexões sobre a alternativa metodológica pautada pela noção de autoetnografia e iniciei uma reflexão sobre formas de escrita alternativas às formas mais tradicionais de escrita acadêmica: o ensaio crí-tico e o texto dissertativo. Nisso se insere a proposição das entrevistas como uma possibilidade pouco explorada pelo estudioso de literatura, tanto do ponto de vista metodológico, como forma de acesso a saberes literários, quanto do ponto de vista da apresentação por meio da escrita do processo de produção de conhecimentos acerca do literário.

O que o leitor encontrará a seguir é uma fotografia – retocada – do longo processo de (re)elaboração reflexiva e de (re)escrita iniciado ainda na

19

tese de doutoramento. Talvez parte das questões aqui apresentadas sejam consideradas já suficientemente debatidas por leitores inseridos nos circui-tos mais avançados de pesquisa em nossa área. Eu também tendo a pensar assim. Mas, efetivamente, não é a esses leitores que o livro se dirige, ainda que eu genuinamente aprecie qualquer olhar que deles vier. De fato, este livro se propõe sobretudo a sistematizar para o jovem pesquisador de graduação e pós-graduação, mesmo que apenas parcialmente, alguns aspectos do com-plexo debate e das mudanças paradigmáticas que ocorreram em nossa área nos últimos anos. Se de alguma forma eu tiver sido capaz de apresentar a esse jovem, com alguma suficiência, um possível mapa por onde iniciar sua própria caminhada no interior dessa rede de discussões, ficarei satisfeita.

Por fim, e como não poderia deixar de ser: este livro está também dedi-cado àqueles que compulsória, e algumas vezes voluntariamente, estabele-cem comigo a mais desafiadora, rica e iluminadora das interlocuções, meus alunos.

Daniela Beccaccia Versiani Rio de Janeiro, setembro de 2013.

referências bibliográficas

SANTIAGO, Silviano. “Vale quanto pesa. (A ficção brasileira modernista)”. In: ______. Vale quanto pesa. Ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 25-40.________. “Prosa literária atual no Brasil”. In: ______. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 24-37.________. “Democratização no Brasil – 1979-1981. (Cultura versus Arte). In: ANTELO, Raul (org.). Declínio da arte. Ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas e Abralic, 1998. p. 11-23.VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografias. Conceitos alternativos em constru-ção. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2002.______. Autoetnografias. Conceitos alternativos em construção. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

21

Teoria

1. Do grego θεωρία (theoría);

2. Derivada de θεωρός (theoros), espectador, aquele que vê, aquele que olha para algo. Ou de θεωρέω (theoréo), sou espectador, olho, vejo, considero. Ou de θεωρειν (theorien), considerar;

3. Composta de θέα (théa), uma vista, uma visão, e οράν (horan), ver;

4. Próxima de θεώρημα (teorema), espetáculo, especulação e θέατρον (théatron), teatro. (E não de teo-, zeus, deus, por favor...)

5. Concepção, esquema mental (e, quiçá, calabouço);

6. Uma consideração, uma visão;

7. Em suma: um simples ponto de vista.

23

capítulo 1 Estudos culturais e (qual?) antropologia.1

reflexões sobre o pensamento de silviano santiago e a antropologia crítica

No ensaio “Vale quanto pesa”, de 1978, Silviano Santiago afirmava que somente através da inclusão de um elemento exógeno seria possível alterar o restrito sistema literário no qual circulava o livro em fins da década de 1970; um circuito constituído basicamente de escritores, leitores comuns e críticos pertencentes à mesma classe social e com poucas variações de gosto, predominantemente afinado com um “cosmopolitismo cultural bur-guês”. Em crítica implícita ao gesto tutelador intrínseco à imagem do escri-tor como porta-voz de vozes excluídas, Santiago apontava para a necessi-dade de abertura do circuito literário a um “novo e diferente leitor”, que requisitasse um “novo e diferente romancista”, capaz de “propor reflexões a camadas sociais diferentes”. Para que isto chegasse um dia a ocorrer, seria preciso que indivíduos de diferentes classes sociais conseguissem “se alçar à condição de leitor ou à de romancista” (SANTIAGO, 1982, p. 25-29).

Silviano Santiago reconhecia nos romances brasileiros modernistas de tons memorialistas um primeiro impulso na direção de uma “postura ideo-lógica mais avançada” (SANTIAGO, 1982, p. 30). Embora considerasse que a produção modernista permanecera circunscrita ao circuito apresentado, Santiago via a ficção memorialista modernista como um caminho para

1 Este capítulo é uma versão revisada do artigo publicado na revista Ipotesi, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 197-212, jan/jul 2008, sob o título “Estudos culturais e (qual?) antropologia. Reflexões sobre o pensamento de Silviano Santiago e a antropologia pós-moderna”. A alteração no título foi necessária não apenas porque é a denominação mais utilizada atualmente em refe-rência ao grupo, mas também porque, de meu ponto de vista, é a que melhor resume seus pressupostos. Há também quem os denomine antropólogos pós-interpretativistas, dando ênfase, assim, às reflexões críticas apresentadas por esse grupo à antropologia interpretativa de Clifford Geertz.

24

que escritores, leitores e críticos de mesma origem sociocultural pudessem “melhor saber de si próprios, melhor conhecer sua condição social, melhor apreender sua importância e inoperância dentro da sociedade brasileira” (p. 30-31). O discurso memorialista modernista era no entanto uma faca de dois gumes: de um lado possibilitara a autorreflexão e a tentativa de ruptura com as tradições, de outro, acabava por reafirmar seu lugar de dominação, tornando-se conservador. Para Santiago, a figura do “perso-nagem-intelectual”, presente em grande parte dos romances modernistas memorialistas, atuava muitas vezes como elemento a enfatizar essa ambi-guidade ideológica.

Um segundo movimento rumo à ampliação daquele circuito res-trito teria ocorrido, explicava Santiago, com Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, narrativa em que o narrador-intelectual da ficção memo-rialista era substituído por um narrador que se cala para ouvir e anotar a fala do jagunço Riobaldo:

De repente, uma voz não ouvida faz-se presente: “O senhor... Me dê um silên-cio. Eu vou contar”. Furtando-se em significativo deslocamento, àquela voz abrangente e indiferente do discurso memorialista, senhorial e culto, sobres-sai o grande romance de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.Torna-se pertinente assinalar que o lugar ocupado no discurso anterior pelo narrador-intelectual, agora se encontra preenchido por alguém que obedece e desobedece ao mando do senhor, o jagunço Riobaldo. Riobaldo que apenas pode falar, e fala “em ignorância” a este “senhor” que a todo momento aflora silencioso na narrativa. Com isso, passa o intelectual, citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual – não com o seu enorme e inflado eu – mas com o seu silêncio (SANTIAGO, 1982, p. 34).

Em silêncio consentido, o papel do intelectual agora é, tal como o de um antropólogo, ouvir e traduzir o discurso oral do jagunço, registrando-o sob forma de escrita e corrigindo a sua pontuação:

O intelectual é o escrivão de “idéias instruídas”, que só pode pontuar o texto de Riobaldo, como diz a psicanálise e o próprio narrador: “Conforme foi. Eu conto; o senhor ponha ponto” (SANTIAGO, 1982, p. 35).

Silviano Santiago também faz notar que, na obra de Guimarães Rosa, o aspecto autobiográfico presente nos romances modernistas memorialistas perdura, mas agora com uma inversão: “o elemento autobiografado não pertence mais a uma ‘grande família’ luso-brasileira, construtora de impé-rios e repúblicas” (SANTIAGO, 1982, p. 35). Se já não vemos o centramento

25

e a fixidez dos discursos que rememoram a vida do narrador-intelectual a partir de sua própria voz, a narrativa agora surge a partir da voz do jagunço que, contudo, depende do registro e da tradução corrigida feitos por seu interlocutor silencioso:

O deslocamento narrativo acima assinalado concorre para que a fala do jagunço se afirme sem a certeza do mando e sem a tranquilidade do poder, certeza e tranquilidade encontradas nos textos memorialistas senhoriais e cultos e que ele, Riobaldo, procura exaustivamente no seu interlocutor silen-cioso (SANTIAGO, 1982, p. 35).

Mesmo reconhecendo no romance de Guimarães Rosa uma alterna-tiva aos discursos populistas e de denúncia, Silviano Santiago não deixa de nele perceber também um problema:

Seu deixar falar o outro comporta ainda uma visão elitista da literatura, visão da classe dominante: o contar direito e o contar corrigido (SANTIAGO, 1982, p. 37).

Distante do discurso populista e de denúncia, é exatamente nessa ver-tente da literatura brasileira – na qual Silviano Santiago inclui Os sertões, de Euclides da Cunha – que o romancista, à semelhança de um antropólogo, teria passado a assumir as funções de tradutor e “interlocutor silencioso” da voz do outro, “ouvinte” da produção poética popular e veículo de manifes-tações culturais não privilegiadas. Silviano Santiago reconhecia nessa ver-tente literária a possibilidade de produção de um discurso que atualizasse, “sem preconceitos e sem demagogias, o elemento indígena” (SANTIAGO, 1982, p. 37), e, nesse sentido, um caminho de abertura daquele restrito cir-cuito dentro do qual, em fins da década de 1970, circulava o objeto livro. E isso pela aproximação do romancista com o antropólogo:

Na medida em que o romancista apenas escuta a produção poética popular, apenas quer servir de veículo para que esta manifestação não-privilegiada se faça ouvir longe do local de enunciação, servindo de alerta para o nosso esquecimento cultural e de riqueza para a literatura, é que seu trabalho se assemelha ao de um antropólogo. No caso de Euclides da Cunha, sabemos ainda que mudou de opinião sobre o massacre ao presenciar o dia-a-dia dos homens do Conselheiro, sabemos como anotava com minúcia de linguista as expressões e o falar dos caboclos. No caso de Guimarães Rosa, sabemos das suas constantes viagens pelo sertão mineiro, dos seus informantes, do seu ouvido de carne-e-osso e do seu ouvido mecânico, gravador que usava para capturar com maior precisão a voz escorregadia e cheia de dúvidas do jagunço (SANTIAGO, 1982, p. 37).

26

Ao mencionar dois outros romances – Macunaíma, de Mário de Andrade, e Maíra, de Darcy Ribeiro – Silviano Santiago explicita-ria com maior clareza a “dívida do romancista brasileiro para com a Antropologia” (SANTIAGO, 1982, p. 38). Em substituição à figura do inte-lectual porta-voz, Silviano Santiago via nesses dois romances a figura do romancista-antropólogo:

No caso de Maíra, seu autor é por demais conhecido como antropólogo e cientista social para que se coloque em dúvida a legítima ambientação etno-lógica sobre a qual se erige o discurso ficcional (SANTIAGO, 1982, p. 38).

Assim, era na literatura de enfoque antropológico – cujos autores vão de Euclides da Cunha a Darcy Ribeiro, passando por Mário de Andrade e Guimarães Rosa – que Silviano Santiago via, nesse seu ensaio de 1978, a possibilidade de ampliação e democratização daquele circuito restrito no qual circulava o objeto livro. O processo de democratização, assim, não se daria apenas por mudanças nas dimensões socioeconômicas da sociedade, mas também – e quiçá principalmente – por mudanças em suas dimen-sões culturais, como aquelas que, nesse ensaio, ele mostrava estar em anda-mento no campo dos discursos ficcionais.

Fazendo referência ao capítulo “Cartas pras Icamiabas”, de Macunaíma, Santiago mostrava também como as estratégias da paródia e do pastiche podiam constituir um tipo de discurso “exemplar da cultura brasileira em toda a sua extensão e em todas as suas ambiguidades” (SANTIAGO, 1982, p. 38), que permitia perceber o “entrecruzar de discursos” de “dominador” e “dominado”, no qual “se impõe o silêncio do narrador-intelectual”, que então desaparece, dando lugar ao romancista-antropólogo:

É neste entrecruzar de discursos [...] que se impõe o silêncio do narrador-in-telectual e que se abre a batalha da paródia e do escárnio, é aí que se faz ouvir o conflito entre o discurso do dominador e do dominado. É nesse pouco pací-fico entrelugar que o intelectual brasileiro encontra hoje o solo vulcânico onde desrecalcar todos os valores que foram destruídos pela cultura dos conquista-dores. É aí que se constitui o texto da diferença, da diferença que fala das pos-sibilidades (ainda limitadíssimas) de uma cultura popular preencher o lugar ocupado pela cultura erudita, apresentando-se finalmente como a legítima expressão brasileira. É ainda nesse entrelugar que o romancista vê no espelho, não a sua imagem refletida, mas a de um antropólogo (SANTIAGO, 1982, p. 39).

As estratégias de produção de discursos adotadas pelo antropó-logo pareciam ser, naquele momento, as mais adequadas para responder

27

à necessidade política de abertura daquele circuito restrito que Silviano Santiago apresentara no início desse texto, entre elas, a desejada “inclusão” do elemento exógeno no circuito discursivo.

Passadas quase três décadas da publicação desse ensaio, algumas per-guntas parecem necessárias: qual o modelo de antropologia subjacente à figura do romancista-antropólogo adotada por Silviano Santiago em 1978? A figura do romancista-antropólogo seria de fato mais confiável que a do romancista porta-voz? Reside mesmo na figura do “romancista antropó-logo capaz de guardar silêncio diante de seu interlocutor” a alternativa ao romancista porta-voz, ou será que a alternativa ao romancista porta-voz está em outro lugar ainda, como bem apontou o próprio Silviano Santiago, na produção de um discurso parodístico, que corrói não só a figura do inte-lectual porta-voz, mas, principalmente, o próprio discurso “portador” de vozes? Seriam de fato as estratégias de construção do discurso antropoló-gico a possibilitar essa abertura ou mais precisamente a “contaminação” que a literatura – através das figuras do pastiche e da paródia – impunham a um suposto discurso antropológico? O gesto inclusivo apontado por Silviano Santiago, e que sustenta a estratégia de abertura do circuito literário – e cul-tural –, não pressupõe fronteiras delimitadas pelo saber do próprio sujeito que as construiu? Quem define quem são os incluídos e os excluídos quando tratamos de saberes e culturas? A estratégia do romancista-antropólogo que, através de seu silêncio consentido, é veículo para a “inclusão” de seu interlo-cutor em seu próprio circuito é mesmo uma estratégia de interlocução entre sujeitos autônomos, donos de saberes singulares, mutuamente reconheci-dos? A estratégia “inclusiva” é também uma estratégia de reconhecimento de saberes, ou apenas um modo velado de tutela?

Analisando o modus operandi da figura do romancista-antropólogo tal como descrito por Silviano Santiago é possível reconhecer todas as fases do processo de construção da chamada moderna etnografia, inaugurada por Malinovski em Os argonautas do pacífico ocidental (1922): a viagem a campo, a observação participante, a caderneta de campo (ou gravador), e, contudo, também o apagamento, na construção da narrativa, da subjetividade e da voz do antropólogo, presentes em suas anotações e diários de pesquisa, e que são necessariamente obliteradas, no texto etnográfico final, pelas regras do discurso científico. Parece que, na argumentação de Santiago, o romancista--intelectual precisaria calar-se para que surgisse o romancista-antropólogo, supostamente mais apto a construir um discurso ficcional capaz de promover

28

o entrecruzar de discursos que deixará entrever o “conflito entre o discurso do dominador e do dominado” (SANTIAGO, 1982, p. 39).

Assim, se Silviano Santiago apontava em “Vale quanto pesa” para a neces-sidade de a crítica se abrir para narrativas capazes de refletir sobre as “aspi-rações multifacetadas e contraditórias da população em geral” (SANTIAGO, 1982, p. 28) e para o esgotamento da figura do intelectual porta-voz (que fala pelo outro), parecia contudo substituir a figura do intelectual porta-voz pela do intelectual que precisava ter silenciado seu próprio discurso para ouvir a voz do outro, mirando-se, para tanto, na figura do antropólogo moderno, como se o discurso sobre os outros, legitimado e produzido por este especí-fico cientista social, fosse menos afetado pelo poder do Saber.

Inúmeras questões de “Vale quanto pesa” foram retomadas por Silviano Santiago em “Prosa literária atual no Brasil”, de 1984.

Em sua análise da produção literária brasileira daqueles anos e bus-cando restituir ao escritor sua “responsabilidade cultural, ética e política”, sem contudo reentroná-lo como “arauto, profeta e menos ainda messias” (SANTIAGO, 1989, p. 28), Silviano Santiago destacava, ao lado da des-concertante “anarquia formal” que tomara de assalto o gênero romance, explodindo “as regras tradicionais do gênero”, o surgimento de um grande número de publicações de cunho autobiográfico que, se davam continui-dade à forte tendência memorialista e autobiográfica presente desde as pro-duções modernistas, delas se distinguiam por apresentá-la de forma “explí-cita” (SANTIAGO, 1989, p. 30).

Silviano Santiago associava a explicitação do componente autobiográ-fico e memorialista na prosa produzida no período ao seu contexto his-tórico e cultural. Naqueles que foram os anos do retorno dos exilados e da abertura democrática, o romance perdia seu estatuto de ficcionalidade, ganhando cores de depoimento. Para Santiago, a “explicitação” do com-ponente referencial nesses discursos trazia consequências para os críticos literários que, se quisessem fazer análises produtivas e pertinentes das pro-duções do período, precisavam se aparelhar teórica e metodologicamente, abrindo-se para os aspectos socioculturais da questão. Isso significava assumir-se em desacordo com as argumentações teóricas de viés textualista então ainda relativamente vigorosas nas academias:

Essa explicitação do comportamento memorialista ou autobiográfico na prosa não só coloca em xeque o critério tradicional da definição do romance como fingimento como ainda apresenta um problema grave para o crítico