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Agricultura Familiar e Trabalho Assalariado Estratégias de reprodução de agricultores familiares migrantes 1 Armando Triches Enderle 2 1 Versão resumida e modificada dos capítulos I e II da Dissertação de Mestrado em Sociologia na UFRGS, defendida em 26/09/2000, sob o título: Trabalhadores por conta própria: estratégias de reprodução e identidade socioprofissional de agricultores familia- res migrantes. 2 Mestre em Sociologia – UFRGS. Diretor do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) – Sapucaia do Sul/RS.

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Agricultura Familiar e Trabalho Assalariado

Estratégias de reprodução de

agricultores familiares migrantes1

Armando Triches Enderle2

1 Versão resumida e modificada dos capítulos I e II da Dissertação de Mestrado em Sociologia na UFRGS, defendida em

26/09/2000, sob o título: Trabalhadores por conta própria: estratégias de reprodução e identidade socioprofissional de agricultores familia-

res migrantes.

2 Mestre em Sociologia – UFRGS. Diretor do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) – Sapucaia do Sul/RS.

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Sumário

Introdução........................................................................................................................................................ 3

1 O mundo da roça: contexto de origem ............................................................................................................ 4

1.1 Um olhar sobre o contexto de origem.......................................................................................... 4

1.2 Mudanças no padrão tecnológico e na relação de mercado ...................................................... 9

1.3 A família: unidade econômica de produção e de consumo ....................................................... 12

1.3.1 Relações inter e intrafamiliares e estratégias de reprodução ........................................... 12

1.3.2 Os efeitos da modernização da agricultura e a desruralização........................................ 16

2 O mundo da cidade: nova realidade socioprofissional ...................................................................................... 20

2.1 Um olhar sobre o contexto da chegada: repercussões do reencontro ..................................... 20

2.2 Rumo à utopia: um destino comum? ............................................................................................ 23

2.3 A vida na cidade: uma releitura da realidade ................................................................................ 25

2.3.1 A relação econômica na venda da força de trabalho........................................................ 28

2.3.2 O tempo-relógio .................................................................................................................... 29

2.4 Estratégias de reprodução familiar ................................................................................................ 31

2.4.1 Inserção nas novas condições de trabalho......................................................................... 31

2.4.2 Reconstituindo a rede inter e intrafamiliar e profissional................................................ 33

2.4.3 Assimilação dos impactos do novo modo de vida ........................................................... 35

Conclusão ........................................................................................................................................................ 38

Referências bibliográficas .................................................................................................................................. 39

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Introdução

Este artigo investiga os diferentes aspectosque marcaram o contexto socioeconômico e cul-tural de origem de agricultores familiares migran-tes e analisa a nova realidade socioprofissionaldos migrantes na tarefa de ajustar-se à vida na ci-dade. O eixo central de análise recai, em primeirolugar, na forma de ocupação do contexto de ori-gem e nos impactos oriundos das transforma-ções observadas na agricultura brasileira, espe-cialmente quanto às mudanças no padrão tecno-lógico e na relação de mercado; em segundo lu-gar, dá-se ênfase às novas dimensões de tempo eespaço, às estratégias de reprodução familiar e àreconstituição das redes inter e intrafamiliar eprofissional.

O universo social contemplado nas entrevis-tas é formado, principalmente, por agricultoresfamiliares3 do tipo social colono e caboclo, am-bos convivendo na condição de pequenos pro-prietários, parceiros, meeiros e agregados4, que,na segunda metade da década de setenta e duran-te toda a década de oitenta do século XX, migramdo Médio Alto Uruguai ao Vale do Sinos, regiãometropolitana de Porto Alegre – RS. Tais tipossociais apresentam semelhanças entre si, especi-almente quanto à incipiente integração ao merca-do, à dificuldade de incorporar avanços técnicose às demais exigências estipuladas pela moderni-zação da agricultura.

3

3 Para mais informações sobre agricultura familiar, conferir Abromovay (1992), Gehlen (1998), Schneider (1999), Sey-ferth (1987), entre outros.

4 Jaime Caetano Braum, em seu Vocabulário Pampeano (1998, p.16), retrata a figura do agregado como “um índio pobre,geralmente lavrador, que mora – como favor, num capo ou numa invernada. A china – os filhos – mais nada. Uma qua-se mendicância. A china lava pra estância, o índio ajuda em carneada”.

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1 O mundo da roça: contexto de origem

1.1 Um olhar sobre o contexto de origem

A conjuntura econômica européia do final doséculo XIX favoreceu e estimulou a concretizaçãodas migrações transoceânicas5. A América consti-tuiu-se num endereço privilegiado para onde se di-rigiram muitos cidadãos e cidadãs em busca de tra-balho e, quando possível, da realização do sonhotão fortemente acalentado na distante Europa:tornar-se proprietário de uma área de terra. Tomarposse de um lote de terra, no sertão do Alto Uru-guai, significava para os migrantes, filhos ou netosde imigrantes europeus, a possibilidade de (re)afir-mação da sua identidade camponesa.

A ocupação da Região do Médio Alto Uruguai– RS por migrantes colonos pode ser consideradauma reprise da experiência e do processo queseus pais e avós vivenciaram em relação às colô-nias “velhas”, respeitadas as diferenças de espa-ço, tempo e a própria conjuntura econômica epolítica em cada caso. Há semelhanças, principal-mente ao tratar-se dos problemas e das dificulda-des enfrentadas pelos migrantes. A epopéia doscolonizadores começava assim que eles abriam aspicadas para chegar até o lote de terra escolhido.A escolha do lugar de moradia continha implícitoum valor cultural muito prezado pelos migrantes:a certeza de que, na nova propriedade, haveriaágua6 em abundância.

No início, a escolha do lugar de moradia fun-cionava mais ou menos assim: “a gente chegava

em qualquer lugar. Marcava, aqui eu vou morar.Apartava um eito como aqui e lá na barra. Essepedaço é meu. Ali fazia a roça. Plantava. Se não seagradasse de plantar ali, cambiava, fazia outraroça pra lá...” (Entrevista 20).

Quando o “pique” (trilha) no meio da florestanão dava passagem à carroça, parte da mudançaficava pelo caminho. Dali, até o lugar escolhidopara a moradia, o transporte dos poucos pertencesera feito em lombos de burros. As estradas foram“abertas a picareta” (no braço) pelos próprios co-lonos. Tempos em que “se estabelecer no sertãofoi um sacrifício. A primeira casa foi feita de tábualascada [...] As tábuas eram lascadas com cunhas emarretas de madeira” (Entrevista 25).

Torna-se importante compreender o signifi-cado do deslocamento dos migrantes das chama-das “terras velhas” em direção ao sertão do Mé-dio Alto Uruguai, identificando as estratégias so-cioeconômicas, políticas e culturais implementa-das pelos mesmos, no intuito de garantir a sobre-vivência da família. A primeira tarefa dos migran-tes era arrumar um abrigo para se resguardar dasintempéries [do tempo] e dos animais silvestresque, em grande quantidade, habitavam aquela re-gião. O primeiro roçado, de onde despontaria aprimeira lavoura de milho e feijão, era uma tarefadividida pelo casal. No depoimento a seguir, a in-formante revela, com uma ponta de orgulho, mo-mentos que marcaram sua vida nos idos da déca-da de 1920.

4

5 Sobre o lavrador europeu, Kautsky em 1898 observa:” ele não podia modificar à sua vontade o modo de produção já es-tabelecido, não podia aumentar a extensão de sua terra. Mas possuía, no caso de família muito numerosa, o recurso dediminuí-la, de afastar do domínio paterno o excedente de trabalhadores de que dispunha para pô-los ao serviço de es-tranhos, como empregados de granja, soldados ou proletários urbanos, ou de mandá-los para a América a fim de consti-tuírem novo lar. A família camponesa se reduziu, assim, o mais possível”. (1980, p.33-4).

6 “E o pai se enfiou atrás do tio Emílio, lá naquele buracão, quando podia ter comprado em Vista Alegre ou outro lugar.Só por causa da água, porque em cima da coxilha não tinha água. Dá um corte em cima da cabeça para ver se não sai san-gue?” (Risos) (Entrevista 5).

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Era assim: a gente fazia um alqueire de roça eu e ele, só,por ano [...]. Primeiro se roçava, depois, com um ma-chado cada um, fazia a barriga da madeira e depois como serrote [...] Pergunta: Mas havia alguma madeira re-forçada? [suspiro] Não quero nem lembrar! E tinha for-ça, tinha coragem! Eu fiz de boi, fiz de mulher, fiz dehomem, fiz de tudo. [...] O trabalho não mata nin-guém... (Entrevista 23).

Vê-se, pelo depoimento acima, o papel de-sempenhado pela mulher que, além de tomarconta das tarefas domésticas – preparo da ali-mentação, da roupa lavada e da organização dacasa –, ainda ajudava o marido nas tarefas maispesadas e difíceis do processo produtivo.

Ao longo das primeiras décadas do século XX,a área de floresta do Médio Alto Uruguai, poucoa pouco, passou a ser incorporada ao mercado doEstado por meio do trabalho das famílias dos co-lonos que lá aportaram. No mesmo período, ali,nas barrancas do Rio Uruguai, fervilharam deze-nas de núcleos coloniais. A inexistência de estra-das dificultava o transporte da produção, princi-palmente para aqueles núcleos coloniais organi-zados em áreas bastante afastadas.

Nos primeiros anos do processo de coloniza-ção, a maior parte dos problemas de saúde era re-solvida na própria residência do doente, com chásde ervas naturais (chás caseiros) e benzeduras, osquais desempenharam um papel fundamental notratamento das doenças da época. Médico e hospi-tal só em centros maiores: Palmeira das Missões,por exemplo, distante, em alguns casos, mais de100 quilômetros. Casos, como o que será descritoa seguir, multiplicavam-se por todo o sertão. Daresidência do doente até a do proprietário de umautomóvel7, percorriam-se distâncias considerá-veis. O transporte do doente era feito com a utili-zação de uma padiola, conforme descreve um in-formante. “A padiola era carregada em dois, numavara. Preparava um tipo de colchão e atava as ca-beceiras e colocava o doente ali, e atrás colocavano ombro e tocava estrada afora [...] até o lugar emque queria chegar”. (Entrevista 24).

A fome era um outro problema que rondavapermanentemente a família dos migrantes. E elanão rondava apenas as famílias dos trabalhadoresrurais mais relapsos, mas também a dos laborio-sos trabalhadores que não mediam esforços paraenfrentar as necessidades do dia-a-dia da unidadefamiliar. Entretanto, não raro, as necessidades semostravam superiores à produção do estabeleci-mento. Mesmo assim, havia os que prosperavamrapidamente, porque, ou dedicavam mais tempoao trabalho, ou utilizavam técnicas e manejo ade-quados ao relevo, ou, ainda, procuravam ser maisespertos na busca de melhores preços para os pro-dutos. Estes últimos só entregavam a mercadoriaao comerciante que oferecesse melhor preço.

Uma avaliação precipitada ou pouco cuidado-sa sobre a ocupação da região do Médio AltoUruguai, na primeira metade de século XX, pode-ria concluir que a distribuição de lotes de terraaos colonos que abandonaram as “terras velhas”e seguiram em direção às barrancas do rio Uru-guai, seria uma eficiente e bem pensada forma derealizar o processo de colonização. Entretanto, omodelo de exploração do solo implantado pelosagricultores familiares, mostrou-se inadequado eagressivo ao meio físico e ambiental8, de sorteque a atividade econômica ficou visivelmenteprejudicada por causa das condições topográficasda região e do modelo de exploração adotado. Aexaustão gradual do solo refletiu-se na reduçãoda produtividade e, conseqüentemente, no em-pobrecimento da região.

Sobre essa realidade, Vieira e Rangel (1993, p.78), assim se pronunciam:

a ordem civilizatória italiana, a exemplo da alemã, produ-ziu os impactos iniciais sobre o geo-ambiente do planal-to basáltico. O deslocamento da fronteira agropecuáriaganhou continuidade, avançando incontrolavelmentesobre a floresta, a ponto de reduzir o patrimônio vegetale faunístico riograndense a níveis extremamente perigo-sos em apenas um século. [Sobre a ação do Estado nocontrole do processo de ocupação e colonização, argu-mentam:] não foram tomadas, nesta fase inicial, medidas

5

7 Nas décadas de 1940 e 50, o jipe era o automóvel mais utilizado para transportar os doentes dos mais longínquos rin-cões da costa do rio Uruguai até sedes municipais com mais recursos e hospitais melhor aparelhados.

8 A prática das queimadas de forma indiscriminada é um exemplo do trato inadequado da terra.

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que estabelecessem a relação positiva entre socieda-de/meio ambiente, ou seja, a preservação através de co-tas de derrubada e de áreas de controle ambiental, visan-do à recomposição das espécies abatidas, bem como adelimitação de territorialidades vegetais, fora do alcancedo machado e da motosserra (1993, p. 78).

Até o início do século XX, circulavam nessaárea, segundo o depoimento dos mais antigos,apenas aventureiros, fugitivos (criminosos, polí-ticos e escravos) e índios kaigangues. Entre 1920e 1950, colonos italianos, alemães, poloneses, lu-so-brasileiros, entre outros, ocuparam a região,integrando-a econômica, política e culturalmenteao restante do Estado.

A região do Médio Alto Uruguai, inserida noprocesso de colonização sob a lógica capitalista,foi submetida a um processo de ocupação quenão levou em conta as questões socioambientais.Em conseqüência, a região empobreceu progres-sivamente, ocupando, hoje, a última posição noranking das 22 regiões constituídas pelos Conse-lhos Regionais de Desenvolvimento do RioGrande do Sul, – COREDES.

Segundo o Plano Estratégico de Desenvolvi-mento da Região Noroeste9 do Estado do RioGrande do Sul (Brum, 1996), a estrutura fundiá-ria da região do Médio Alto Uruguai evidencia apredominância da pequena propriedade, chegan-do a 97,6% os estabelecimentos agropecuárioscom área inferior a 50 hectares. A título de ilus-tração, observe-se a seguinte tabela:

Tabela 1 – Estabelecimentos rurais, área total emédia das propriedades de três municípios da re-gião do Médio Alto UruguaiMunicípio Nº de estabeleci-

mentos ruraisÁrea total em

hectaresMédia das pro-priedades em

hectares

Caiçara 1.043 17.586 16,80

FredericoWestphalen 2.706 37.302 13,07

Palmitinho 2.316 23.255 10,08Fonte dos dados: IBGE, 1981.

A realidade atual da região de origem dos mi-grantes pode ser compreendida com base nosdados do Perfil do Setor Agropecuário da Re-gião do COREDE10, do Médio Alto Uruguai –RS. A base econômica da região continua alicer-çada na agricultura familiar. Pelo censo de1995/96, a região possuía 26.072 estabeleci-mentos agropecuários, acumulando uma perdade 9.928 em relação ao censo de 1985. Os26.072 estabelecimentos somam juntos 430.002ha de área total. Dos estabelecimentos pesquisa-dos, 46,7% tinham menos de 10 ha, totalizando12.170; já 52,3% dos estabelecimentos agrope-cuários tinham entre 10 e menos de 100 ha, so-mando 13.627. Entre 100 e menos de 200 hecta-res, o número de estabelecimentos atinge ape-nas 0,57% dos estabelecimentos pesquisados,enquanto entre 200 e menos de 500 hectares,apenas 0,35%.

Além disso, 81% dos estabelecimentos agro-pecuários pesquisados tinham, no próprio ex-plorador da área, o proprietário; 5,8% dos esta-belecimentos agropecuários tinham, como ex-plorador da área, o arrendatário; 7,7% dos esta-belecimentos agropecuários tinham, como ex-plorador da área, o parceiro; e, 5,1% dos estabe-lecimentos agropecuários tinham, nos própriosexploradores das áreas, produtores ocupantes.Cerca de 55,5% dos estabelecimentos pesquisa-dos eram de municípios que apresentavam ummaior número de propriedades, caracterizandomais firmemente o minifúndio, classificando-se,pela ordem: Alpestre, Erval Seco, Seberi, Planal-to, Liberato Salzano, Palmitinho, Vicente Du-tra, Rio dos Índios, Rodeio Bonito, Pinheirinhodo Vale.

Outro indicador significativo da atual situaçãodo contexto de origem dos migrantes é a distri-buição da população, conforme evidencia o grá-fico a seguir.

6

9 A Região Noroeste compreende os Conselhos Regionais de Desenvolvimento: Alto Jacuí, Fronteira Noroeste, MédioAlto Uruguai, Missões e Noroeste Colonial.

10 COREDE: Conselho Regional de Desenvolvimento do Médio Alto Uruguai (corresponde a 22ª região do RS).

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Gráfico 1 – População residente, urbana e rural, dos municípios de Caiçara, Frederico Westphalen ePalmitinho, 1970, 1980, 1991 e 1996

Os dados do gráfico acima evidenciam umaexpressiva maioria da população de Palmitinho eCaiçara ainda residente no meio rural, com per-centuais acima de 70%. No caso de FredericoWestphalen, já se observa a predominância dapopulação urbana. No total do Médio Alto Uru-guai, 62,6% da população localizam-se no meiorural, enquanto 37,4%, na cidade.

Até a década de 1960, a base da economia daárea em apreço esteve sempre voltada, priorita-riamente, para a produção de gêneros de sub-sistência e autoconsumo. Os principais produ-tos cultivados eram o feijão, o arroz, o milho, otrigo, a batata e a mandioca. Havia casos emque se destacava a criação de porcos e galinhas,especialmente para o consumo doméstico. Ogado, em menor escala, servia como instru-mento de trabalho e para o consumo da carne.No final dos anos 1960 e durante toda a décadade 1970, o cultivo da soja predominou de for-ma hegemônica. Muitas áreas, antes destinadasà produção de milho, trigo, mandioca, foramcedendo, gradativamente, espaço ao cultivo dasoja. O mesmo ocorreu com áreas antes desti-nadas aos pomares, hortas e potreiros e o finalda década de 1990 sinalizou para uma retoma-da da diversificação das atividades econômicas,

privilegiando-se os produtos hortifrutigranjei-ros e a expansão da agroindústria.

Ao ingressar na segunda metade do séculoXX, a região do Médio Alto Uruguai estava intei-ramente colonizada. Algumas sedes administra-tivas pleiteavam a sua emancipação (caso deFrederico Westphalen – 1954/55) e dos seusdistritos (Palmitinho, Caiçara e Vicente Dutra –1965/66). As estradas já permitiam a passagemtriunfante dos primeiros caminhões, ônibus e al-guns carros de passeio.

Nesse mesmo período, a maioria da popula-ção brasileira ainda residia no meio rural. Aospoucos, porém, esta realidade vai sendo alteradadevido à modernização da indústria e da agricul-tura e, em decorrência, ocorre o deslocamento degrande contingente de trabalhadores da roça paraa cidade. Entre 1985 e 1996, nada menos que cin-co milhões de postos de trabalho foram elimina-dos em atividades agropecuárias em todo o País.O número de propriedades rurais também caiu nomesmo período, de 5,8 para 4,8 milhões, segundodados publicados pelo jornal Gazeta Mercantil11.

Os gráficos a seguir evidenciam a gradativa in-versão do local de residência da população ruralem relação à população urbana no Brasil e no RioGrande do Sul.

7

89,7

10,2

85

14,9

80

19,9

77,1

22,8

0

20

40

60

80

100

1970 1980 1991 1996

Caiçara

63,7

36,3

52,547,5

41,9

58

27,1

72,8

0

20

40

60

80

1970 1980 1991 1996

FredericoWestphalen

95,4

4,6

92,7

7,3

81,6

18,3

71,2

28,7

0

20

40

60

80

100

1970 1980 1991 1996

Palmitinho

Fonte: IBGE. Censos demográficos de 1970, 1980, 1991 e Contagem da População de 1996.

11 IBGE, Gazeta Mercantil, 18 de junho de 1998, p. A-2.

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A população urbana no Rio Grande do Sulatingiu um crescimento de 4.08% na década de1970 e 3,98%, na década de 1980. No mesmo pe-ríodo, a população rural cresceu, 0,41%, e 2,08%, respectivamente. Assim, enquanto o País re-gistrava taxas de crescimento econômico bastan-te elevadas, o excedente de mão-de-obra do cam-po pôde, em grande parte, ser absorvido pelos se-tores secundário e terciário (indústria calçadista,construção civil, empregos públicos, serviços do-mésticos, entre outros).

As décadas de 1960 e 1970 caracterizaram-sepor apresentar uma realidade rural bastante deli-cada. Fernandes, já no início da década de 1970,constatou uma situação nada promissora. Segun-do o autor, as massas despossuídas rurais “sevêem irremediavelmente compelidas ao paupe-rismo e condenadas à marginalização. É nesse ní-vel que se desvendam as iniqüidades e a impotên-cia da economia agrária brasileira: uma moendaque destrói inexoravelmente os agentes humanosde sua força de trabalho”. (1972, p.133).

A ausência de perspectivas no contexto deorigem facilitou a tomada de decisão para migrar,atitude consolidada a partir da incursão no meiorural da mensagem que retratava, de forma posi-

tiva, as coisas boas da cidade. O alvo privilegiado,embora não fosse o único, era a possibilidade deemprego em fábrica. Percebia-se, com alguma ni-tidez, a intensificação da crise fundiária – escas-sez de terras, exaustão do solo, redução de recur-sos para investimentos – comprometendo so-nhos e projetos dos pais em relação às geraçõesque os sucederiam.

Embora as condições de trabalho do agricul-tor familiar não lhe permitissem acumular grandepatrimônio, na verdade, é importante ressaltarque o objetivo principal, tanto do imigrante euro-peu que ocupara as colônias “velhas”, quanto dosmigrantes filhos e netos daqueles que se dirigiramà região do Médio Alto Uruguai (colônias novas),era ter a posse de uma área de terra, criar os fi-lhos, garantindo-lhes o sustento e participar deum grupo social coeso e solidário, dando-lhesoutras perspectivas, além das ligadas à mera sub-sistência. A conquista e a posse da terra fortalece-riam os laços com o passado, não só do ponto devista econômico, mas também histórico e cultu-ral. Representariam a possibilidade de continui-dade, de reprodução e coesão da família, de forta-lecimento dos laços familiares com o presente,sem romper os vínculos com o passado. Nesse

8

67,6

78,3

68,8

63,8

55,9

75,5

31,2

45,1

36,2

54,9

21,624,5

28,4

44,1

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

1940 1950 1960 1970 1980 1991 1996

População Urbana População Rural

67,5

78,6

68,8

44,3

76,5

53,6

34,231,2

55,6

46,4

32,4

23,421,3

65,8

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

1940 1950 1960 1970 1980 1991 1996

População Urbana População Rural

Gráfico 2 – População residente urbana e ruralno Brasil, 1940-1996

Gráfico 3 – População residente urbana e ruralno Rio Grande do Sul, 1940-1996

Fonte dos dados: Censos demográficos e contagemda população de 1996, do IBGE.

Fonte dos dados: Censos demográficos e contagemda população de 1996, do IBGE.

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sentido, tornava-se importante a participação daunidade social12 na vida comunitária (festas, bai-les, atividades lúdico-religiosas). Na opinião deAbromovay, (1992, p. 101-2), “mais do que umtipo econômico, o camponês representa antes detudo, um modo de vida [...] Trabalho e vida nãosão duas dimensões cindidas: as crianças, as mu-lheres, enfim um organismo único produz combase no objetivo de gerar não só os meios devida, mas, sobretudo, um modo de vida”.

A unidade econômica familiar, ao longo detoda sua trajetória ocupacional, especializou-seem criar, de forma permanente, oportunidadesde sobrevivência, isto é, formas de reprodução davida. Especializou-se na arte de lidar com as ad-versidades. A sobrevivência da família sempre foigarantida graças à ininterrupta reconstrução darede de relações socioculturais e econômicas,sendo o trabalho um dos eixos fundamentaisdesta engenharia social.

A floresta do Médio Alto Uruguai, colocada àdisposição dos colonos13 para a colonização, eraum espaço que não servia aos interesses da lavou-ra agropastoril. Já os colonos migrantes, herdei-ros de uma tradição minifundiária, que estavam àprocura de uma área de terra para trabalhar, acei-taram o desafio. O governo, em consonânciacom os interesses dos proprietários dos camposjá assenhoreados, colocava à disposição dos co-lonos terras ainda por desbravar e onde a in-fra-estrutura (estradas, casas, primeiros roça-dos...) era tarefa que cabia também aos colonos.

A ocupação do Médio Alto Uruguai represen-ta o esgotamento do último reduto ainda “deso-cupado” do Estado do Rio Grande do Sul. Esteesgotamento coincide com o desbravamento deporções territoriais dos Estados de Santa Catari-

na e Paraná, porções essas ocupadas, preferenci-almente, por gaúchos que optaram pela continui-dade no meio rural.

1.2 Mudanças no padrão tecnológico ena relação de mercado

Até o final dos anos 1940, os principais instru-mentos de trabalho utilizados pelos agricultoresforam a enxada, a foice, o machado, o serrote, oarado, a carroça, o boi e o cavalo. No decorrer dadécada de 1950, entraram, na região, as primeirastrilhadeiras, representando uma mudança signifi-cativa nas condições de trabalho, muito emborapoucos agricultores tivessem acesso a tal maqui-nário. Segundo uma informante, quem não dis-pusesse de sua trilhadeira particular deveria “es-perar a boa vontade de alguém que viesse trilharo produto” (Entrevista 4). Era comum encontrarfamílias preocupadas com a colheita dos produ-tos, uma vez que havia o fator natureza, interfe-rindo no resultado final. Um período de chuvasininterruptas impedia a conclusão da colheita,restando à família apenas lamentar a perda de vá-rios meses de trabalho. A sobrevivência econô-mica da família estava comprometida. Sempreque o trabalho com a trilhadeira era executado, osolicitante pagava ao prestador do serviço (donoda máquina) um valor que podia ser em dinheiro,em produto ou em dias de serviço. Havia, tam-bém, os maus pagadores, aqueles que eram servi-dos pelos donos do maquinário e depois “esque-ciam-se” de pagar-lhes.

Um número bem reduzido de propriedadesfazia uso de trator e de colheitadeira. Aliás, am-bos eram pouco usados, visto que a maioria das

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12 Antonio Candido (1964) no seu estudo sobre o caipira e a transformação dos seus meios de vida, descreve sobre as ocu-pações que tomavam o tempo dos agricultores [caipiras] em sua tarefa diária de se reproduzir como trabalhador e comocidadão-membro de uma comunidade.

13 Cf. Seyferth, colonos eram todos os “habitantes da zona rural dedicados ao trabalho agrícola, mesmo que esta não sejasua única ocupação[...] serve para identificar descendentes de imigrantes cujas famílias tradicionalmente se dedicam àagricultura”. A mesma autora sustenta que “para o Estado, eram colonos todos aqueles que recebiam um lote de terraem áreas destinadas à colonização. Tratava-se, portanto, de uma categoria administrativa, reflexo da política de coloni-zação apropriada pelos imigrantes e usada até hoje como identidade básica mais geral dos agricultores de origem euro-péia, sendo dela excluídos todos aqueles chamados de caboclos ou brasileiros” (1992, p.80).

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propriedades não apresentava condições topográ-ficas para a utilização de tal maquinário. Em algu-mas propriedades, o trator era utilizado apenas emalguns hectares. A enxada e o arado, puxado a boi,foram os instrumentos mais utilizados pelos agri-cultores em virtude das práticas adotadas14.

Muitas vezes, a quantidade de produto a ser co-lhida pelos agricultores era tão irrisória que nãocompensava o deslocamento do maquinário paraa respectiva colheita. Nesses casos, o serviço erafeito manualmente. O produto era descascado amanguá15 (porrete): duas varas de madeira, unidaspor uma brocha (ajojo) nas extremidades. Outrasvezes, utilizavam o cavalo (modelo circular).

Mitrany, numa análise das precárias condiçõesde vida e de trabalho dos camponeses da primeirametade do século XX, já devidamente denuncia-das em sua origem por Marx, ainda no séculoXIX, revela que, apesar de o camponês ocuparuma posição econômica singular, os preços bai-xos pelos produtos produzidos é o resultado dapobreza do produtor e, por conseguinte, da pro-dutividade de seu trabalho. O autor indica comolimite extremo da pequena produção camponesa“apenas o salário pago pelo trabalho, que o cam-ponês paga continuamente a si mesmo” (1957,p.18).

Um aspecto que merece registro, não só peloseu papel econômico, mas também pelo seu va-lor simbólico e cultural, é a prática dos mutirões(pucherrão) e a troca de dias de serviço. Geral-mente, o mutirão ocorria na derrubada de umpedaço de mato, ou na lavração (preparação daterra para o plantio), ou ainda na colheita de al-gum produto. À família do agricultor beneficia-

do cabia providenciar o almoço, geralmente umporco assado. Muitas vezes, o coroamento dopucherrão era feito com um baile na residênciado próprio beneficiado, animado com gaita e vio-lão. A troca de dias de serviço também era umaforma de solidariedade muito utilizada, princi-palmente entre vizinhos, na época da colheita,da capina e da lavração. Às vezes, em casos dedoenças, os vizinhos prestavam serviços à famí-lia do doente gratuitamente. Essas formas de so-lidariedade ainda são bastante utilizadas, porémem menor escala.

O individualismo16 está entre os valores cul-turais urbanos que penetraram na agricultura fa-miliar, ganhando cada vez mais espaço, em de-trimento de valores e práticas tradicionais. A di-ficuldade para fazer frente às exigências do pro-cesso de modernização, que tem, na sua concep-ção original, a obtenção de mais produção emmenos área e em menos tempo, utilizando insu-mos e sementes controlados por empresas mul-tinacionais, fez com que muitos agricultores fa-miliares deixassem a roça em busca de outra ati-vidade profissional.

O papel do comerciante foi fundamental nasrelações econômicas, políticas e socioculturaisno contexto de origem. Este não só comprava oproduto excedente como também vendia aoagricultor ferramentas e utensílios de trabalho,tecidos (roupas de uso pessoal), mantimentos(sal, açúcar, farinha), além de outros objetos in-dispensáveis ao cotidiano da unidade de produ-ção familiar.

A relação dos agricultores familiares com oscomerciantes, geralmente, era boa. A troca dos

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14 A policultura era uma prática muito usada, entretanto, para Seyferth (1992, p.82), esta não significa “uma recusa à mo-dernização, mas apenas a preservação da policultura como essencial à sobrevivência face à instabilidade da política agrí-cola, além do seu valor simbólico como marca da identidade: o verdadeiro colono planta de tudo um pouco, toda a fa-mília trabalhando”.

15 “É manguá. Desde que eu me criei de criança é manguá. Então colocava uma brocha na ponta e oh! porrete no feijão atédebulhar. Ah! nós debulhava feijão também com cavalo. Nós íamos em cima, montava no cavalinho e oh! quando umcansava, o outro subia no cavalo...” (Entrevista 19).

16 A expressão individualismo é utilizada segundo definição de Raymond Boudon e François Bourricaud. “Designa emsociologia não a doutrina moral que traz o mesmo nome, mas uma propriedade que alguns sociólogos reconhecemcomo características de certas sociedades e particularmente das sociedades industriais modernas: nessas sociedades, oindivíduo é considerado uma unidade de referência fundamental, tanto para si mesmo como para a sociedade [...] Tra-ta-se de um estado de direito cuja correspondência com estados de fato pode ser apenas ideal...” (1993, p.285).

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excedentes por produtos necessários para a sub-sistência da unidade familiar tornou-se uma práticacomum. Há, inclusive, casos reveladores quanto aotipo de relação que se estabelecia entre ambos:“Nós fazíamos troca, sim! Comprávamos roupas,rancho, e quando chegava a colheita já estávamosdevendo quase tudo, lá pra eles. Não tinha o que re-clamar. Às vezes, a gente se apertava e comprava oano todo a fiado pra descontar na colheita, e eles [oscomerciantes] aceitavam... (Entrevista 12).

“O produto que eu tinha era pra eles. Se euprecisasse de um dinheiro adiantado eles tinham”(Entrevista 13).

Na “venda” da vila, o agricultor encontravadesde o insubstituível sal de cozinha, até a “ca-chaça” e as balas para as crianças. A casa de co-mércio da vila era o ponto de encontro dos ho-mens, às vezes para um carteado (jogo de cartas),quando a “pinga” passava de mão em mão.Enquanto isso, a conversa corria solta: comentáriossobre o jogo de futebol disputado pelo time da co-munidade, o comportamento do tempo em rela-ção à perspectiva de uma boa safra, os preparati-vos para a festa do padroeiro, etc. A localização dacasa de comércio facilitava. Geralmente, ela ficavaperto da igreja, lugar preferido e ponto de encon-tro obrigatório nos finais de semana. Ou tambémao longo da estrada principal, por onde o agricul-tor passaria a pé, a cavalo, ou, mais tarde, já de ôni-bus, para chegar à sede distrital ou municipal.

Como bem define Candido, o comerciante

lhes dá crédito e funciona como comprador dos seusprodutos, revendendo-os em seguida aos comprado-res vindos dos centros distribuidores de produtosagrícolas e pecuários [...]. Situando-se entre os peque-nos agricultores e o mercado impessoal, o comercian-te das vilas e cidadezinhas age como intermediário eregulador, ao seu modo, contribuindo, não raro, paraacentuar as condições de instabilidade e insegurança(1964, p.131-2).

Na maioria das vezes, o comerciante era, tam-bém, migrante ou filho de migrante que se esta-belecia em um ponto estratégico da vila, fazendoconvergir aos seus interesses toda uma vasta redede interesses políticos, econômicos, afetivos,pessoais e familiares. O comerciante servia de elo

entre os próprios agricultores. Em geral, o co-merciante figurava na lista dos candidatos a assu-mir o papel de compadre, sempre que houvessebatizados na comunidade. Para os pais do afilha-do, ter o comerciante da localidade como padri-nho do filho, era uma honra, além de significarbons presentes no aniversário e nas festas de fimde ano. O comerciante, por sua vez, sabia queaquele seu gesto solidário e afetivo em aceitar,com alegria e desprendimento, o compromissode assumir um afilhado, aumentava seu poder deação e seu controle sobre o conjunto da produ-ção do estabelecimento do compadre e, da mes-ma forma, tornava a família do afilhado uma uni-dade familiar dependente dos seus serviços.

Mas as funções do comerciante não paravampor aí. Servia ele de interlocutor entre o agricultore os acontecimentos da sede distrital ou munici-pal. A partir da introdução do telefone – instala-do na casa do próprio comerciante –, os elos en-tre o comerciante e os moradores da vila foramaos poucos, sendo fortalecidos. Pelo comercian-te, por meio das múltiplas funções que exercia, oimaginário do rural ia cedendo espaços e ganhan-do, cada vez mais, ares de urbanidade. Enfim, ascoisas da cidade, pouco a pouco, invadem omundo rural, transformando as relações inter-pessoais, familiares e de vizinhança. A racionali-dade econômica vai tomando o lugar da tradição,alterando a lógica que orienta a vida da unidadefamiliar, interferindo nas condições de reprodu-ção social.

Paralela à história local, circunscrita a um nú-mero restrito de pessoas, envolvendo relações in-tra e interfamiliares e tendo no comerciante ummediador entre o centro administrativo e a pró-pria unidade familiar, a história global seguiu seucurso, pautada, em grande medida, pelo constan-te alargamento da distância entre a parcela da po-pulação que concentrava cada vez mais renda epoder, e aquela outra parcela cada vez mais excluí-da da lógica do processo produtivo capitalista. Oresultado de tal distanciamento se refletirá na in-tensificação do processo migratório de pequenosagricultores familiares (pequenos proprietários,parceiros, agregados, meeiros) com destino aos

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centros urbanos, onde a indústria acena com umademanda de mão-de-obra semiqualificada emlarga escala.

O processo migratório, verificado durante asdécadas de 1960, 1970 e 1980, estimulou o pro-cesso de urbanização, tendo como contrapartidaa ampliação do mercado interno para a indústria,o que, segundo Silva (1982, p.42),

a ampliação do mercado interno para a industrializaçãobrasileira se fez, como em todo o mundo capitalista,pela proletarização dos camponeses: através da sua ex-propriação como produtores independentes, conver-tendo-os em miseráveis bóias-frias. [...] na atualidade, aunidade econômica camponesa está ligada ao mercadocapitalista de mercadorias; em muitos países sofre a in-fluência do capital financeiro, que tem feito emprésti-mos e coexiste com a indústria organizada ao modo ca-pitalista e, em algum lugar, também com a agriculturacapitalista.

Muitos agricultores familiares não aderiram,de imediato, à idéia do emprego na fábrica, op-tando pelo deslocamento para áreas de terra nosestados das regiões do Centro-Oeste e Norte doBrasil. Para os interesses dos grandes proprietáriosde terras, do empresariado industrial e do próprioEstado, como órgão executor do programa decolonização, tal iniciativa servia para esvaziar fo-cos localizados de tensões e conflitos. O espaçoconquistado pelos colonos e o seu desejo de de-senvolver ali atividades por conta própria, nacondição de agricultores familiares, combinavacom os interesses do próprio capitalismo em ex-pansão, tendo o Estado a função de evitar a rup-tura da “ordem legalmente constituída”.

Em curtíssimo espaço de tempo, a fronteiraagrícola, em vista do alto grau de concentraçãofundiária, deu sinais de esgotamento e trans-formou-se em palco de violentos conflitos so-ciais pela posse da terra. Aos poucos, as alter-nativas para os migrantes foram se estreitando,refletindo-se na contínua e crescente migraçãoem direção aos núcleos urbanos de médio egrande porte. Estavam criadas as condiçõesideais para a adesão à propaganda positiva davida na cidade.

1.3 A família: unidade econômica deprodução e de consumo

A família, tanto na condição de uma unidadeeconômica de produção, quanto na condição deuma unidade econômica de consumo, define-secomo um dos eixos fundamentais na trajetóriasocioprofissional dos migrantes rurais. A institui-ção familiar sempre funcionou como um centrode convergência e irradiação de todo um conjun-to de práticas sociais e ações estratégicas, que ga-rantiam a coesão do grupo familiar, por meio dotrabalho e das relações sociais, controlando umespaço muito importante do ponto de vista da es-trutura socioeconômica, política, cultural e reli-giosa, no interior da comunidade.

Entretanto, o espaço de afirmação e de espe-rança que simbolizava a posse de uma colônia17,repetindo o feito de seus pais – (i)migrantes dascolônias velhas –, pouco a pouco, foi se desfa-zendo. Um conjunto de fatores alheios à sua von-tade e superiores à capacidade de resistência decada um deles, foi interferindo no seu dia-a-dia,tanto no aspecto das relações inter e intrafamilia-res quanto no da atividade profissional.

1.3.1 Relações inter e intrafamiliares e es-tratégias de reprodução

Os agricultores familiares com potencial e ca-racterísticas típicas para optar pela migração, ge-ralmente são detentores de pouca ou nenhumaterra própria; um grande número de filhos; resi-dem e trabalham em áreas de difícil manejo; apre-sentam baixo grau de instrução; em síntese, asperspectivas são bem restritas no sentido de ga-rantir seu ingresso numa agricultura interligadacom o mercado. Usando a linguagem de Dahren-dorf (1992), trata-se de atores sociais sem o “bi-lhete de ingresso”. Na roça, conta a informante,“a situação era horrível. Secas, chuvaradas e semmaquinário próprio. Inicialmente, trabalhamosna terra do pai como agregados. Depois fomosmorar em Jaboriti, na divisa com o Rio Uruguaiaté comprar uma terrinha” (Entrevista 4).

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17 Colônia: medida de terra correspondente a 24,8 ha, termo que denominou o espaço (“a colônia”) e os atores (“colonos”).

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Em relação à terra, componente indispensávelpara a permanência no local de moradia e repro-dução social e econômica, houve duas formasprincipais, difundidas na região do Médio AltoUruguai: a primeira, a da terra, utilizada pelo sis-tema de parceria18, na forma de meeiro ou agre-gado(ocupante)19, a outra, a da terra, utilizada nacondição de proprietário. Para Gehlen (1998,p.124), a concepção de terra tem a “dimensão po-lítica, definida culturalmente e ao mesmo tempodefinidora de relações sociais, tem, tal qual a cate-goria trabalho, especificidades segundo as ideo-logias e os interesses de classes”. Das diferentesconcepções de terra, utilizadas no Brasil, priori-za-se, neste estudo, a noção familiar, por consi-derá-la um lugar de trabalho e patrimônio de re-produção familiar (Gehlen,1998).

O sistema de agregado foi uma relação prati-cada na região do Médio Alto Uruguai, permane-cendo até os dias atuais. A outra forma de relaçãocom a terra é a da condição de proprietário. É in-teressante perceber que, em condições normais,isto é, na condição de proprietário ou na condi-ção apenas de posse e uso da terra, poucas vezeso agricultor conseguiu manter o equilíbrio entreo resultado do trabalho dos membros da unidadefamiliar e as suas necessidades básicas (Candido,1964). Tal equilíbrio ficava mais difícil para oagricultor familiar (agregado, meeiro ou parceiro),que, após a colheita, deveria destinar, por contra-to registrado ou por amizade e respeito ao acordofeito, quantidades que variavam entre 30%, 40%ou até 50% da colheita ao proprietário da terra20.Nesses termos, tudo favorecia para que, num pri-meiro sinal de outra atividade à vista, houvesse o

abandono do local de trabalho. As dificuldadesnão eram somente essas. Em alguns casos, revelauma das informantes, “tinha que trabalhar depeão durante o dia, para ter o que comer à noite!”(Entrevista 12).

A unidade econômica familiar, descrita e ana-lisada nos seus pormenores por Chayanov(1974), revela semelhanças com a realidade dosagricultores familiares do Médio Alto Uruguai. Otrabalho da família era a única possibilidade dereceita, na ausência de pagamento em salário. Emoutras palavras, a receita seria extraída na propor-ção da intensidade do trabalho e do grau de au-to-exploração da própria força de trabalho da fa-mília, como unidade familiar que busca satisfazeras suas necessidades mais elementares.

Tem-se, em Chayanov, uma referência funda-mental para compreender-se, em grande parte, ofuncionamento e a organização da unidade eco-nômica familiar. Este mesmo autor é retomadopor Abromovay (1992), em seu estudo sobre aorganização da atividade econômica da famíliacamponesa, sustentando a idéia de que a unidadebásica, com a qual Chayanov trabalha, não são osindivíduos nem as motivações psicológicas, masos comportamentos individuais em função daunidade social em que se inserem: a família.

Mesmo que a prática comum dos agricultoresfamiliares tenha sido a utilização da terra na for-ma individual, apenas usando a força de trabalhoda própria unidade familiar, houve casos em quefamílias vizinhas, ou relativamente próximas, es-tabeleciam um sistema de parceria entre si, em re-lação ao uso da terra e do maquinário: uma espé-cie de cooperativa entre famílias vizinhas. Tal ini-

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18 Para Deere, Janvry, uma das formas principais de arrendamento funcionava assim: “o proprietário fornecia a terra, assementes e, às vezes, os bois para aração, e a família camponesa fornecia o trabalho. A colheita era geralmente divididaem partes iguais” (1993, p.45).

19 Cf. Rubert, agregado “é o trabalhador rural que não possui terra, residindo e plantando em terra alheia e dando, comorecompensa ao proprietário, uma parte da colheita” (2000, p.20).

20 Martins, ao analisar a questão da modernização e problemas agrários do Estado de São Paulo considera os tipos huma-nos, indicando, por exemplo, “o parceiro (de quinto, de quarta, de terça, de meia) como um sócio do proprietário da ter-ra, que pode eventualmente contratar serviços de terceiros, cujos ganhos, porém, referem-se praticamente a um únicofator de produção: o trabalho. O mesmo ocorre com o arrendatário, com a diferença de que nele acumulam-se todos osriscos do empobrecimento, já que a renda paga é freqüentemente fixa. Nem mesmo o pequeno proprietário pode confi-gurar-se como comprador de força de trabalho, já que quase sempre explora apenas o trabalho familiar” (1975, p. 16-7).

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ciativa podia, eventualmente, apresentar resulta-dos positivos, dependendo, sobretudo, do graude confiança e amizade que unia as famílias. Nãoraras vezes, porém, o uso comum de maquinário,terra e força de trabalho tornava-se motivo de de-sacertos, desconfianças e inimizades, com resul-tados imprevisíveis.

A própria unidade familiar podia exercer o pa-pel de cooperativa, desde que o grau de motiva-ção para o trabalho, os objetivos e fins fossemaceitos por todos. A cooperativa familiar, entre-tanto, nunca atingiu melhores resultados, vistoque os agricultores familiares, invariavelmente,sempre estiveram subordinados ao tripé: gover-no, comerciante e natureza. À família cabia man-ter o “equilíbrio” entre a capacidade de produçãodo estabelecimento e as necessidades de consu-mo, já apontadas por Chayanov (1974) e porCandido (1964).

Para Chayanov (1974), o importante era com-preender o funcionamento dos mecanismos doprocesso organizativo da unidade econômicacamponesa, e não seu desenvolvimento históri-co. Isso o levou a descobrir que, na prática eco-nômica da unidade produtiva familiar, ocorriaum balanço entre o resultado do seu trabalho e oque a mesma consumia, o que determinava, emgrande medida, o volume da atividade econômicafamiliar. Nesse sentido, Candido percebe a mes-ma relação, quando afirma: “a vida do pequenoagricultor depende do equilíbrio que ele pudermanter, de um lado, entre o volume da produçãoe os gastos em dinheiro; de outro, o consumo fa-miliar e as vendas” (1964, p.110).

Um aspecto, observado por Chayanov, dizrespeito à inter-relação entre três itens básicos –terra, capital e força de trabalho, e a respectiva in-fluência que os três exercem sobre a organizaçãoda unidade econômica camponesa, levando emconta, também, o mecanismo para lograr equilí-brio entre esses fatores. O que se tem observado,na trajetória ocupacional e no modo de vida dosagricultores familiares, contemplados neste estu-do, é que os recursos econômicos nunca atende-ram, efetivamente, às necessidades da unidadeeconômica familiar. De outra parte, com o pro-

cesso de modernização da agricultura brasileira,um quarto fator veio somar-se aos três primeiros:o conhecimento. Este sempre foi um fator limi-tante e decisivo na concretização de açõesbem-sucedidas e nas aspirações dos agricultoresfamiliares. O fator conhecimento emerge comoum dos efeitos do processo de modernização eindustrialização pós-Segunda Guerra.

As dificuldades que, normalmente, afetam osagricultores familiares explicam-se pelo fato deque os preços atribuídos aos produtos que elesvendem não são estabelecidos com base no valordos custos de produção; ao contrário, são os cus-tos de produção, pensados e contabilizados emrelação aos preços dos produtos. Deduz-se que oagricultor é duplamente desfavorecido: ao ven-der o produto, resultado da soma de trabalho daunidade familiar, e ao adquirir os produtos neces-sários para a sua sobrevivência. Por que é desfa-vorecido? Simplesmente, porque não é ele queestabelece o preço sobre o seu produto que colo-ca à venda e, da mesma forma, não é ele que defi-ne o preço sobre os produtos que necessita com-prar do comerciante. Ele não detém o controleem nenhuma das pontas do processo.

Reafirma-se que o estímulo básico da famíliacomo unidade econômica de produção é satisfa-zer as demandas de seus consumidores. Nor-malmente, a prática dos agricultores familiarestem sido a de fazer uso da terra conforme o seutamanho, destinando espaços para a horta, po-mar, pocilgas, estábulos e demais instalaçõespróximos à residência, facilitando-lhe um me-lhor controle e acesso. Nesse aspecto, obser-va-se uma diferença bastante acentuada entre oagricultor familiar, que usufrui de uma área deterra para seu uso e posse, e o que apenas usu-frui o direito ao uso por determinado período detempo. Ao primeiro, é garantida a possibilidadede projetar algum retorno a médio e longo pra-zo, em função de ter a posse da propriedade; en-quanto ao segundo – agregado, meeiro, parceiro–, sem tempo certo para cultivar a terra ou per-manecer nela, utilizando-a em seu proveito,pouco lhe convém investir em árvores frutíferase outras benfeitorias.

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O tamanho médio das propriedades da regiãoem estudo é bastante reduzido, o que, aliado aodifícil manejo em vista do relevo acidentado, fezcom que muitas famílias buscassem, em proprie-dades vizinhas, o trabalho em parceria ou o ar-rendamento. O tamanho das propriedades, pe-quenas demais para uma família de muitos filhos,estimulou o abandono do local de origem. As ati-vidades da lavoura ficavam a cargo do chefe defamília, tido como o responsável pelas atividadesmais pesadas. Já o serviço de limpeza e organiza-ção das instalações destinadas aos animais e o deseu trato era garantido, sobretudo, pelo trabalhode tempo parcial das mulheres, crianças ou pes-soas mais idosas. Na verdade, essa divisão socialdo trabalho nem sempre funcionou assim. Emmuitos casos, a mulher acompanhava o maridoem todas as atividades, além de dar conta dos tra-balhos domésticos. As crianças, desde muitocedo, também participavam do trabalho na la-voura. Não raras vezes, verificava-se a evasão es-colar, em virtude de envolverem-se integralmen-te nos serviços da roça.

A relação entre a intensidade de trabalho in-vestido pelos membros de uma unidade familiare a produtividade assegurada pelo respectivo tra-balho estava sujeita à influência de condiçõeseconômicas, técnicas e climáticas. Solos pobres eíngremes, aliados a uma situação de mercado des-favorável para os produtos cultivados, aumenta-vam a possibilidade dos resultados não atende-rem à expectativa e ao esforço praticado.

No decorrer de 12 meses de trabalho, verifica-vam-se mudanças significativas na quantidade eintensidade do trabalho dispensado no conjuntoda unidade econômica familiar. Sobre esse aspec-to, Chayanov (1974, p. 81, 82, 84) alerta:

o trabalhador campesino estimulado ao trabalho pelasnecessidades de sua família desenvolve maior energiaao aumentar a pressão destas necessidades. A medidada auto-exploração depende, em maior grau, do pesoque exercem sobre o trabalhador as necessidades deconsumo de sua família. O volume da atividade da fa-mília depende totalmente do número de consumidorese de nenhuma maneira do número de trabalhadores [...]a energia desenvolvida por trabalhadores em uma uni-dade doméstica de exploração agrária é estimulada pe-

las necessidades de consumo da família e, ao aumentarestas, sobe forçosamente a taxa de auto-exploração dotrabalho campesino. Por outro lado, o consumo deenergia é inibido pelas fadigas próprias do trabalhadormesmo [...] Quanto mais duro é o trabalho, comparadocom a remuneração, mais baixo é o nível de bem-estarna qual a família campesina cessa de trabalhar...

Conclui-se, pelo exposto, que qualquer unida-de econômica familiar ligada à exploração de umadada extensão de área produtiva tem seus limitesdiretamente relacionados entre a intensidade detrabalho da família e as suas necessidades deconsumo.

Tendo em vista o que foi ressaltado, é possívelapreenderem-se, pelo menos, duas lições, valen-do-se dos ensinamentos de Chayanov: a) quandoo tamanho da unidade agrária capitalista é, teori-camente, ilimitada, a extensão da unidade domés-tica de exploração familiar está naturalmente de-terminada pela relação entre as necessidades deconsumo da família e sua força de trabalho; b)quando a exploração da propriedade ou do espa-ço tido em parceria ou em arrendamento resultainsuficiente para satisfazer as necessidades da fa-mília, desequilibrando o balanço entre produçãoe consumo em favor do segundo, geralmente há aliberação de parte da força de trabalho disponívelpara outras atividades não-agrícolas. Em muitoscasos, foi o que aconteceu com os agricultores fa-miliares do Médio Alto Uruguai, no períodocompreendido entre 1975 e 1990, quando a forçade trabalho excedente foi direcionada para forada região, resultando na transferência para outrasatividades.

É importante observar que o êxodo rural foi a“alternativa” encontrada por um número signifi-cativo de agricultores familiares que já não retira-vam da terra o necessário para fazer frente às exi-gências de consumo. Na verdade, esta é uma roti-na que se repete há mais de um século. Marx, empleno século XIX, já denunciava a expulsão dopovo do campo, em favor dos donos das indús-trias concentradas nos centros urbanos, que con-tavam com um exército industrial de reserva,sempre pronto a assumir o lugar do trabalhadorque, por um motivo ou outro, fosse demitido.

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A região do Médio Alto Uruguai, em vista doprocesso de ocupação e colonização a que foisubmetida e das práticas agrícolas adotadas aolongo do século XX, não tem respondido positi-vamente às expectativas de todos os seus habi-tantes. O trabalho assalariado nas fábricas de cal-çados do Vale do Sinos emergiu como a alternati-va mais conveniente, na medida em que abria apossibilidade de receber-se um salário preestabe-lecido após trinta dias de trabalho, somando-se aisso o amparo de leis sociais, férias, décimo ter-ceiro salário. Enfim, garantias que o trabalhadorrural em nenhum momento pôde gozar enquan-to inserido no contexto de origem. No meio ru-ral, havia a subordinação às constantes oscilaçõesclimáticas, à precariedade de informações sobreos preços dos produtos, à desconfiança em rela-ção aos métodos empresariais adotados pelo co-merciante21. Portanto, as chances de melhorar devida, quando analisadas sob esses indicadores,restringiam-se não só a quantidade de trabalhodespendido, mas também a fatores externos ealheios à vontade e aos interesses do agricultorfamiliar.

1.3.2 Os efeitos da modernização da agri-cultura e a desruralização

Para compreender o fenômeno do êxodo ru-ral, acelerado a partir dos anos 1960, faz-se ne-cessário analisar as implicações, os desdobra-mentos e os resultados da introdução do recei-tuário modernizante no período pós-guerra. Épreciso fazer algumas considerações sobre a rea-lidade do meio rural dos anos 1960 e 1970. Tor-na-se importante distinguir os conceitos que setêm do trabalho na roça e do trabalho na cidade,indispensáveis para a compreensão de como eem que circunstâncias se dá o processo de altera-ção de um tipo de atividade profissional para ou-tro completamente diferente. Essas imagens, navisão de Durán, nada mais são que

realidades socialmente construídas ou reconstruídasdentro de contextos históricos ou territoriais determi-nados [...] uma construção social contextualizada emumas coordenadas temporais ou espaciais específicas[...] a ruralidade é de natureza reflexiva: é o resultado deações (ou está condicionado a elas) de sujeitos huma-nos que têm a capacidade de interiorizar, debater ou re-fletir acerca de circunstâncias e requerimentos socio-culturais que em cada situação espaço-temporal se asapresentam (1998, p.77).

Assim, as atividades ocupacionais que impli-cavam assalariamento passaram a ser concebidasetnocentricamente como paradigma do desen-volvimento e da civilização, frente às atividadestipicamente rurais, consideradas como paradig-ma do atraso e do subdesenvolvimento. Atravésdessa concepção, passava-se a idéia da legitima-ção de uma forma de entender o desenvolvimen-to, valendo-se das condições socioeconômicas,políticas e culturais vivenciadas na cidade, impli-cando, inevitavelmente, a desruralização e a assi-milação de valores citadinos.

Os valores da cultura urbana, expressos nasmais diferentes formas de vida, vão, aos poucos,penetrando na vida interiorana. Atribui-se à cul-tura da ruralidade características, como, porexemplo, a ausência de espírito inovador, visão li-mitada do mundo, falta de empatia, escassa mar-gem de satisfação e criatividade, entre outras.Enquanto isso, à cultura ligada ao modo de vidaurbano são atribuídas peculiaridades, como, porexemplo, o anonimato em relação ao comporta-mento social; maior e mais complexa divisão so-cial do trabalho; heterogeneidades de pautas cul-turais, valores e comportamentos diferenciados;relações sociais mais impessoais e formais; maiorparticipação da mulher na vida ativa, etc. Entre-tanto, como observa Durán (1998), tanto as pe-culiaridades atribuídas ao modo de vida rural,quanto as atribuídas ao modo de vida urbano,evidenciam uma visão aistórica e descontextuali-zada da ruralidade e do urbano. Na prática, o que

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21 Na compra da produção, os comerciantes usufruem do poder de controle da balança, quando da pesagem dos produ-tos. Não raras vezes, ouvem-se comentários de que o agricultor fulano de tal foi “logrado” no peso do milho ou do por-co que vendeu, etc. A ingenuidade e a boa fé dos colonos, aliados à “esperteza” do comerciante, geralmente, geram umclima de desconfiança e mal-entendidos.

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se tem verificado é uma inter-relação e comple-mentaridade entre ambas.

A realidade descrita acima foi determinante edecisiva na implementação do processo de indus-trialização, modernização e urbanização duranteo século XIX e grande parte do século XX. Atual-mente, diante da crise de identidade da sociedadeurbana, às voltas com a desagregação de valores,com normas sociais insuficientes e perda do con-trole social em face da estrutura social herdada,tem-se debitado ao processo da industrialização eda urbanização descontrolada a responsabilidadepelas mudanças e pela crise generalizada. Moder-nizar era preciso. E o que era uma necessidade,passou a ser um problema. A metamorfose docaipira atrasado em cidadão de concepções urba-nas, valendo-se da manipulação e da afirmaçãoda necessidade de intervenção das instituiçõesurbanas na vida rural para dinamizá-la, em parte,não produziu os resultados esperados. Ao con-trário, ativou crises identitárias, conflitos intrafa-miliares, agravou problemas sociais, enfim, gerouuma série de obstáculos ao desenvolvimento so-cioeconômico, dificultando aos migrantes ruraiso acesso à cidadania e aos direitos já plenamenteconstituídos em lei.

A modernização agrícola atingiu as proprieda-des familiares, afetando de forma desigual os ato-res sociais, conforme o volume de capital dispo-nível para investimentos, a extensão de terra paraproduzir e o acesso aos conhecimentos tecnoló-gicos. Algumas propriedades sofreram importan-tes transformações em sua organização econômi-ca, em sua integração ao mercado e em suas rela-ções sociais. Houve, também, a expansão domercado interno em decorrência do incrementoda população e da urbanização acelerada. A mo-dernização incentivou o consumo, em grande es-cala, de novos insumos tecnológicos, máquinas eequipamentos agrícolas, adubos químicos, pesti-cidas, rações balanceadas para animais e uso desementes melhoradas. A base de sustentação par-tiu das políticas de pesquisas desenvolvidas pelogoverno, da importação de tecnologias e de cré-dito agrícola subsidiado aos grandes produtores,pela penetração no país das multinacionais e de

empréstimos externos, comprometendo as con-tas públicas a médio e longo prazo. É interessan-te observar-se o que diz Martins sobre a necessi-dade de modernizar:

ao contrário, as características humanas e econômicasque a ideologia urbana desfavorece e que se manifes-tam, por exemplo, no estereótipo do caipira, são as quetendem a impor-se como possíveis nas condições quedeterminam o capitalismo no Brasil. É, pois, o estabele-cimento tradicional que se constitui num dos pontos deapoio da efetivação do mundo capitalista e urbano nopaís. E é justamente esse tipo de estabelecimento que omundo urbano pretende `modernizar’. Ele precisa ven-der mercadorias, mas precisa, igualmente, comprar ba-rato aquilo que consome. A realização do primeiro de-sejo destrói as possibilidades de efetivação do segun-do... (1975, p.13).

Tendo por base a formulação e a veiculaçãoda idéia que coloca a submissão do rural ao urba-no como necessário e sem volta, verifica-se que aconsolidação do mundo capitalista e urbano, noBrasil, se faz em decorrência da modernização domundo rural.

Raras vezes, tem-se tentado compreender asrazões e os fatores que estão implícitos nos des-locamentos migratórios no sentido rural-urbano:suas necessidades mais emergenciais, suas aspira-ções, suas motivações, seus interesses, etc. O queos impulsiona a se definir para o emprego nas fá-bricas de calçados do Vale do Sinos?

Segundo Schwarz, o projeto político e econô-mico das elites pretendia, única e exclusivamente,

arrancar a população aos enquadramentos semicoloniaisem que se encontrava, e de trazê-la, ainda que de formaprecária, ao universo da cidadania, do trabalho assalaria-do e da atividade econômica moderna, industrial sobre-tudo, contrariando o destino agrário a que o imperia-lismo – como se dizia – nos forçava.[...] os novos tem-pos desagregavam à distância o velho enquadramentorural, provocando a migração para as cidades, onde ospobres ficavam largados à disposição passavelmenteabsoluta das novas formas de exploração econômica ede manipulação populista (1994, p.9).

Percebe-se, nessas poucas considerações, quea modernização da agricultura, pelo menos noBrasil, tem sido motivo para diferentes interpre-tações e para diferentes embates político-ideoló-

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gicos. A idéia da dualidade rural/urbano foi rapi-damente absorvida. Novos valores, comporta-mentos e hábitos, até há pouco exclusividade dohomem urbano, passaram a fazer parte do coti-diano do homem da roça. Os novos padrões deconsumo foram transformando os meios de vidados agricultores familiares. Estes, impotentesdiante da correnteza, representada pelas estraté-gias inteligentemente construídas e implementa-das pelos donos do capital e do conhecimento,viram-se frente a duas alternativas: aceitar o mo-delo, integrando-se a ele, ou rejeitá-lo (resistindo),correndo o risco de uma exclusão irreversível.

De qualquer maneira, a impressão que fica, apriori, é a de se estar diante de um projeto políti-co muito bem arquitetado pelo capital multina-cional e executado pelo Estado Nacional. A mo-dernização é apenas uma das facetas do projetomaior em ação. Para fazer frente às necessidadese às exigências da tecnologia, era necessário dis-por dos quatro elementos inter-relacionados e jáapontados anteriormente, a saber: capital, terra,força de trabalho e conhecimento. Pelo visto, osagricultores familiares com pouca ou nenhumaterra, distantes dos mercados consumidores, de-samparados pelos órgãos oficiais, em grandequantidade, optaram pela alteração de seu modode vida, integrando-se ao novo modelo, apos-tando na alternativa, quase irresistível, veiculadapela propaganda positiva sobre a cidade, na qualo emprego nas fábricas de calçados foi o carrochefe.

A supressão das fronteiras e a ocupação dosespaços fazem crescer o interesse pelo estudodas relações econômicas, socioculturais e políti-cas, tomadas como realidades contraditórias.Entende-se que a trajetória dos atores sociaisem estudo é muito mais um processo contínuo,inconcluso e dinâmico. O discurso da relação dedependência do rural em relação ao urbano, oumesmo da periferia em relação ao centro, parecepouco consistente. Tem-se como válida a afir-mação de que existem realidades diferentes quese intercomunicam, se interpenetram e se in-ter-relacionam, sempre num permanente estadode tensionamento e complementaridade.

Portanto, a ocupação da região do Alto Uru-guai e o conseqüente modo de vida adotado pe-los (i)migrantes que lá se organizaram econômi-ca, política e culturalmente, devem ser analisadose observados com base na ótica da inter-relação eda reciprocidade de interesses, e como parte doprojeto capitalista em expansão. As razões quedão sustentação à retirada (o êxodo rural) não de-vem ser buscadas apenas no interior da região doMédio Alto Uruguai. Da mesma forma, é inacei-tável a justificativa de que a retirada em direção àcidade tenha sido motivada pela inaptidão (pre-guiça, ignorância ou baixo nível de escolaridade)dos membros das famílias dos agricultores fami-liares. Melhor seria dizer que se está diante de umprocesso bastante complexo, com diferentespossibilidades de interpretação, para o qual aindanão se construiu uma explicação convincente porse tratar de uma realidade em constante processode transformação.

Na realidade, esta é a problemática de investi-gação e merece ser reforçada. O sonho acalenta-do, desde o além-mar, pelos primeiros imigrantesde se tornarem proprietários de uma área de ter-ra, retirando dali o alimento necessário para osustento da família, não se concretizou de formasatisfatória. Da mesma forma, os migrantes quearriscaram suas vidas no sertão do Médio AltoUruguai, no prazo de uma geração ou poucomais, viram seus sonhos debilitarem-se diante darealidade. No plano macro, as transformaçõeseconômicas, políticas e culturais que marcaram opós-guerra provocaram fortes impactos na orga-nização das atividades produtivas. O processo deindustrialização e urbanização, aliado à moderni-zação da agricultura, introduziu mudanças pro-fundas na relação campo-cidade. Essas podemser tratadas como duas racionalidades com rit-mos diferentes de adaptação, porém ambas dire-cionadas ao mesmo fim: a conservação da estru-tura fundiária e a manutenção do status quo e dosprivilégios das elites.

Agricultores familiares, com pouca ou nenhu-ma terra, migram para os centros urbanos com acerteza do emprego que os espera nas fábricas decalçados. O espaço abandonado, por razões e di-

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ficuldades alheias à sua vontade e contra as quaispercebem-se impotentes, formam barreiras àconcretização do projeto de vida, pensado nocontexto de origem. O não-controle sobre o fru-to do seu trabalho aliado à insuficiência de recur-sos financeiros para fazer frente aos problemascotidianos, impostos pela conjuntura econômicae política nacional e internacional, revelam ummigrante enfraquecido economicamente, masque resiste à exclusão ao mudar de atividade pro-fissional. As alternativas que, esporadicamente,visualiza além do assalariamento já identificado,

apresentam-se como realidades incertas, demo-radas e insatisfatórias.

A fábrica mostra-se, num primeiro momento,para o migrante como um espaço conquistado,capaz de lhe restituir a possibilidade de realizar-seprofissionalmente e de reafirmar sua identidade.

É importante acompanhar a caminhada em-preendida pelos agricultores familiares na suasaga pelo cotidiano da cidade. Cabe voltar o olharsobre o contexto de chegada; as estratégias de re-produção implementadas pelos atores sociais; asnovas redes de relações tecidas; enfim, a nova rea-lidade profissional que se constitui.

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2 O mundo da cidade: nova

realidade socioprofissional

Migrar é, antes de tudo, bater-se pela vida!Centro de Estudos Migratórios

2.1 Um olhar sobre o contexto de che-gada: repercussões do reencontro

O Vale do Sinos, região metropolitana de Por-to Alegre, partilha, em sua história, com a regiãodo Médio Alto Uruguai as raízes européias dosprimeiros colonizadores e as dificuldades iniciaisque os (i)migrantes enfrentaram para superar osobstáculos da colonização. A tarefa dos imigran-tes alemães de colonizar o Vale do Sinos, a partirde São Leopoldo, em 1824, assemelha-se à tarefados (i)migrantes italianos, alemães, lusos e cabo-clos que, um século mais tarde, colonizariam a úl-tima área florestal nativa, “livre”, no extremonorte e noroeste do Rio Grande do Sul.

A partir de 1940, a cidade de Parobé volta-separa o ramo coureiro-calçadista. Na década se-guinte, atraiu grande quantidade de migrantesque venderam sua força de trabalho nas diversasfábricas de calçados ali instaladas. Em 1982,emancipou-se de Taquara.

O gráfico 4 indica o crescimento da popula-ção dos municípios de Sapiranga e Parobé entre1970 e 1996.

A indústria coureiro-calçadista, em curto espaçode tempo, cresceu desproporcionalmente em relaçãoàs condições demográficas e de infra-estrutura dascomunidades contempladas neste estudo. A ofertade mão-de-obra pela comunidade não atendia ao rit-mo da expansão industrial. Toda a força de trabalhodisponível na própria cidade estava empregada. A in-dústria, em expansão, carecia de mais mãos para otrabalho. A falta de mão-de-obra nas indústrias foisuprida pelos migrantes que deixavam suas comuni-dades no Médio Alto Uruguai, deixando suas terras,sua plantações, seus instrumentos de trabalho, paraaderir ao “boom” industrial coureiro-calçadista doVale do Sinos. Em conseqüência, as cidades cresce-ram desordenadamente e as ocupações de áreas peri-féricas se multiplicaram, enquanto o poder público atudo assistia, desorientado. A realidade social haviaescapado do seu controle.

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1970 1980 1991 1996

Sapiranga

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Fonte dos dados: Censo demográfico de 1970, 1980, 1991 e contagem da população do IBGE de 1996.* Estimativa Anuário Estatístico do Rio Grande do Sul, 1985, p. 55.

Gráfico 4 – População residente de Sapiranga e Parobé entre 1970 e 1996

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Gráfico 5 – População natural e não-natural de Parobé e Sapiranga – 1991

O gráfico 5 evidencia o predomínio da popu-lação não-natural sobre a natural dos municípiosde Sapiranga e Parobé.

Em seu estudo, Agricultura familiar e industria-lização, Schneider (1999), ao tratar das migraçõespara o Vale do Sinos e Encosta da Serra divide oprocesso em duas fases. Na primeira fase, demeados da década de 1970 até o início dos anos1980, a corrente migratória tem como destino ascidades de Novo Hamburgo, Campo Bom, SãoLeopoldo e Sapiranga; na segunda fase, o desti-no dos migrantes privilegia cidades de menorporte, como Taquara, Parobé, Igrejinha, entreoutras.

Nos dois casos, o processo é o mesmo: o mi-grante vem, oriundo, prioritariamente, das mi-crorregiões de Frederico Westphalen, Três Pas-sos, Nonoai e Santa Rosa, com um objetivo bemdefinido, o de transformar-se num assalariadoem alguma das muitas fábricas de calçados exis-tentes na região do Vale do Sinos.

A indústria calçadista refletirá, exatamente, omodelo da sociedade moderna capitalista, apre-sentando os principais elementos que corporifi-cam tal instituição: a “fábrica”, como centro di-nâmico do processo produtivo; “o trabalhador

assalariado”, que troca sua força de trabalho porum salário; “o capitalista”, cuidando dos interes-ses do capital; e “uma ética do trabalho”, justifi-cando como moralmente válidos, não apenas anecessidade e o dever de trabalhar, mas tambémtoda a rede de relações que se articulam em tornodo centro produtivo (Silva, 1995).

A vida da cidade funciona conforme o ritmoda fábrica. Ela (a fábrica) é o centro de referên-cia e dinamizador de todo o processo produtivo.O dinamismo da cidade acompanha o fluir eco-nômico da fábrica, e não o contrário. Ao traba-lhador assalariado caberá apenas o papel deagente passivo do processo de transformação.O trabalho funciona como o eixo central das re-lações sociais, constituindo-se o meio pelo qualos indivíduos adquirem existência e identidadesocial através do exercício de uma profissão (Sil-va, 1995).

O processo migratório, refletindo a gradativaindustrialização da economia, vai ganhando novoimpulso com a modernização da agricultura etornando-se importante no processo de revigora-mento do sistema capitalista em nível mundial.Até aí, era na agricultura que se concentrava amaior parte da força de trabalho brasileira22. E

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Naturais (%) Não-naturais (%)

Parobé

Sapiranga

Fonte dos dados: Censo demográfico do IBGE, 1991.

22 Cf. gráficos 2 e 3, p. 8.

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foi o setor primário da economia, em que predo-minava a agricultura de subsistência, que mais li-berou mão-de-obra para a indústria.

A difícil realidade da roça coincidiu com a pos-sibilidade de conseguir emprego nas fábricas decalçados23. Esta possibilidade de emprego consti-tuiu-se num motivo bastante seguro, porém não oúnico, para o abandono do contexto de origem. Oemprego, para os migrantes, significava substituiro esforço físico não recompensado no meio rural,pela esperança de melhores condições de vida etrabalho na cidade. A decisão de migrar para oVale do Sinos consolidou-se a partir de meados dadécada de 1970 e apresentou-se como uma alter-nativa concreta para os agricultores familiares daregião do Médio Alto Uruguai, superando, inclusi-ve, a opção pelo Centro-Oeste e pela Amazônia,fronteiras agrícolas em evidência na oportunidade.É o período em que se abrem muitas vagas na in-dústria calçadista. Emprego nas fábricas de calça-dos é o que não faltava. A rede de informações ede apoio estava constituída. Por isso, antes mesmode a família se acomodar na nova residência, jásurgiam as primeiras ofertas de emprego: “logoque chegamos aí na casa, vieram uns rapazes falarcom as ‘gurias’ para ver se não queriam trabalharnas fábricas...” (Entrevista 07).

No local de origem, ser professor municipalpela manhã, trabalhar na lavoura à tarde, freqüen-tar aulas do segundo grau à noite, não satisfazia àsaspirações do jovem que se deixa cativar pela al-ternativa migratória, pois “eu tinha vontade defazer uma faculdade. Sapiranga era muitobem-falada, reconhecida como um ótimo lugarpara emprego. Aí eu me decidi: eu vou para Sapi-ranga...” (Entrevista 14)

As dificuldades que os migrantes rurais en-contravam para executar as tarefas da roça tam-bém pesaram na hora de se decidir pela migra-ção: “As coisas eram muito custosas lá. Com-prava um saco de milho, por exemplo, tinha que

vender cinco para pagar. Não tinha mais meio,não! Os filhos vieram na frente. A idéia inicialera trabalhar nas fábricas” (Entrevista 13).

A situação muito ruim na roça fez o infor-mante pensar: “Vou tentar outra vida!...”(Entrevista 3). A alternativa do informante con-tinha a possibilidade de morar com os filhos,visto que alguns deles já haviam migrado para oVale do Sinos. Durante uma dessas visitas aos fi-lhos, ele ficou sabendo da existência de vagaspara trabalhar nas fábricas. Foi o bastante pararetornar à origem, juntar o restante da família eos poucos pertences que possuía, e assentar raí-zes no Vale do Sapateiro.

Alguns informantes foram mais arrojados, mi-grando com um considerável número de filhos nabagagem, muitos deles em idade escolar e, portan-to, do ponto de vista social e legal, indisponíveispara o trabalho na fábrica. Na prática, as criançasrepresentavam um problema a mais na hora depensar em moradia, escola, saúde e alimentação. Oatendimento às necessidades biológicas passou aser prioridade. Em decorrência dos baixos saláriospagos pelas empresas, as crianças foram forçadas aabandonar a escola mais cedo, incorporando-se aocotidiano dos pais e irmãos mais velhos no traba-lho assalariado. No entanto, a sua inserção preco-ce no trabalho assalariado, ou nos ateliês domésti-cos, emerge como uma alternativa interessante,tanto pelos pais (pelo aumento da renda da famí-lia), quanto pelos empresários (salários menores eredução de custos). Enquanto isso, o Poder Públi-co apenas acenava com medidas paliativas, omi-tindo-se ou aliando-se à elite local, sempre que osconflitos entre patrões e trabalhadores afloravam.O futuro da cidade e da maioria de seus habitantesficou comprometido.

No meio rural, as famílias dependiam das sa-fras. Além do seu próprio esforço, dependiam danatureza para as boas colheitas. Dificilmente re-clamavam. Apesar de tantas frustrações e resulta-

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23 Marx já sinalizava que ”parte da população rural encontra-se, por isso, continuamente na eminência de transferir-separa o proletariado urbano ou manufatureiro, e à espreita de circunstâncias favoráveis a essa transferência [...] Mas seufluxo constante para as cidades pressupõe uma contínua superpopulação latente no próprio campo, cujo volume só setorna visível assim que os canais de escoamento se abram excepcionalmente de modo amplo. O trabalhador rural é, porisso, rebaixado para o mínimo do salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo “(1984, 208).

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dos insatisfatórios, resistiram até a exaustão. So-bre isso, Marx (1978, p. 359) lembra: “os campo-neses, desapontados em todas as suas esperanças,esmagados mais do que nunca, de um lado pelobaixo nível dos preços do grão e de outro peloaumento dos impostos e dívidas hipotecárias, co-meçaram a agitar-se nos departamentos...”

O binômio – motivação pelo emprego e frus-tração com as safras – foi fator importante para adecisão de migrar em busca de outra atividadeocupacional.

2.2 Rumo à utopia: um destino comum?

A transferência da roça para a cidade, mudan-do de atividade profissional, foi marcada por difi-culdades, humilhações e muitas privações, semcontar o impacto que representou o fato de dei-xar o lugar de nascimento, onde tantas coisas da-vam cor e brilho na história de cada um. Entre-tanto, a proximidade das duas regiões (MédioAlto Uruguai e Vale do Sinos) que distavam umada outra em pouco mais de 400 km e cujo trajetopodia ser realizado mais ou menos em seis horasde ônibus, entusiasmava os migrantes. Após umavisita ao Vale do Sinos, a animação tomou contado informante: “daí voltei lá na colônia, carneeios quatro porcos que tinha, para trazer a carne,fiz açúcar seco, vendi uma vaca de leite, vendi oarado, a capinadeira, a carroça, tudo, e vim paraParobé...” (Entrevista 7).

A maioria das famílias migrantes foi ocupan-do áreas (loteamentos) sem infra-estrutura comausência de rede de água e esgoto, calçamentodas ruas e energia elétrica. O Poder Público assis-tia inerte à multiplicação constante de vilas irre-gulares. No orçamento municipal, poucos recur-sos eram destinados para atender os “de fora”24

(migrantes), na forma de abertura de ruas, esgo-tos, iluminação, etc. Estes, por sua vez, pouco rei-

vindicavam ao Poder Público, a não ser o direitode escolher um terreno para fixar moradia. Emsíntese, o que os migrantes buscavam era “um lu-gar” onde pudessem, literalmente, acomodarseus parcos pertences e sua prole. Um dos infor-mantes (entrevista 1) relata que a mudança foi fe-ita com um caminhão pago pelos Vicentinos (en-tidade filantrópica com atuação em FredericoWestphalen). Mudaram-se o casal e sete filhoscujas idades variavam entre dois e doze anos.Tudo o que possuíam era uma cama de casal, umbaú, uma mesinha, as roupas de cama e de vestir.Conta o informante que, no primeiro dia, a famí-lia acomodou-se em um posto de gasolina, numespaço gentilmente cedido pela proprietária domesmo; depois na garagem do próprio posto; emseguida, foram para uma casa de 4m x 5m (só asparedes); finalmente, para uma casa da empresade beneficiamento de madeira na qual o infor-mante arranjou o primeiro emprego. Em 1982, oinformante transferiu-se para Parobé onde con-seguiu emprego na fábrica de calçados Azaléia. Aesposa do informante trabalhou, durante oitoanos, em casas particulares no município deNovo Hamburgo, recebendo muitos presentesdas donas das casas onde prestava serviços do-mésticos: móveis usados, brinquedos, roupas eaté comida. Mesmo depois da transferência da fa-mília para Parobé, ela manteve suas atividadesnessa cidade. A atividade extrafamiliar da esposafoi fundamental para o sustento da família, inclu-sive, porque evitou que as crianças, principal-mente as do sexo masculino, entrassem para omundo da marginalidade.

Além dos riscos que a mudança representava,havia a preocupação com as armadilhas da cida-de. Sem recursos, sem crédito, pelo fato de seremdesconhecidos, a ansiedade tomava conta dosmigrantes.

Ah, nem fala! olha, nós sofremos, pra te dizer a verda-de, quando nós construímos aqui, era assim: Comprava

23

24 Consideramos “de fora” todos os migrantes oriundos, principalmente, do Médio Alto Uruguai RS, que, a partir da me-tade da década de 1970 e durante toda a década de 1980, deixaram o contexto de origem para assalariar-se nas fábricasde calçados; (enquanto) denominamos “do lugar” aos habitantes naturais do Vale do Sinos, que fundaram e construí-ram em todo o seu curso, o habitat onde vivem e trabalham.

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o material, quando pensava que tinha tudo, faltava denovo. Daí meu marido disse: “Meu Deus, não vamosconseguir!” Inclusive foi no Piaia [Empresa de Materiaisde Construção localizada no município de Palmitinho],que nós compramos todo o material de instalação daenergia elétrica, porque aqui, sem conhecer ninguém,não conseguiríamos fiado. Viemos para cá sem nada!Só com o dinheiro da mudança que a minha mãe deu ametade e a minha sogra a outra metade, pra nós podertrazer as coisinhas. Inclusive colocamos mais umamudança em cima do caminhão pra conseguir o di-nheirinho.[...] [do local de destino apenas sabiam queum primo estaria esperando]. Pensa: “Sem dinheiro,sem conhecer ninguém [exceto o primo] e sem empre-go...” Além disso, alguns vizinhos da roça faziam for-ça para que a gente não saísse. Alguns diziam: “Lá vo-cês se quiserem um limão vão ter que comprar!...”(Entrevista 12).

O relato revela uma situação peculiar já co-mentada no primeiro capítulo: a importância docomerciante e a possibilidade de comprar fiado(em prestações). Quem vai socorrer o migrantenão é o dono da fábrica onde a informante arru-ma o primeiro emprego, mas o comerciante co-nhecido, lá do contexto de origem, que conhecebem os seus clientes e sabe se pode vender parapagamento posterior, às vezes, por tempo bas-tante dilatado. Outra novidade está no fato deque os migrantes utilizavam o mesmo caminhãopara transportar as mudanças o que, no final dascontas, era uma maneira de baratear o frete. O di-nheirinho para pagar o transporte, geralmente,era emprestado por familiares que ficavam, oupor alguma família amiga, restando então uma“dívida” que não podia ser negada. Era com or-gulho que o migrante retornava à origem para“quitar” as contas.

Logo que se transferiu para Parobé, a famíliada informante vendeu a casa e a terra que possuía

em Frederico Westphalen e colocou o dinheirono banco, para render juros. Pretendia investir talmontante numa atividade comercial em Parobé.Em março de 1990, o Governo Collor confiscoua poupança, e a família ficou sem nada. A reten-ção do dinheiro que estava na poupança fez comque o esposo da informante adoecesse de tantodesgosto: “Uma vida inteira trabalhando e agoraperder tudo e para o governo, ainda, quando ogoverno é que tinha que ajudar!” (Entrevista 19).

A mudança de local de moradia em busca deoutra atividade profissional forçava os migrantesa se desfazerem de muitos objetos e instrumen-tos de trabalho (ferramentas, maquinário, animais,móveis, etc.), ou a encontrarem um jeito de aco-modá-los no novo local de moradia25 que, muitasvezes, era uma peça arranjada nos fundos da casade um parente ou amigo que havia migrado hámais tempo. De qualquer maneira, o distancia-mento da terra que os viu nascer e crescer geravainicialmente uma situação de desconforto, soma-da ao fortalecimento da idéia de perda apenasamenizada pelos desafios do novo contexto e pe-las novidades proporcionadas pelo novo local demoradia e pela (nova) atividade profissional.

Para as crianças, tudo era novidade; para osadultos, contudo, a mudança tanto podia indicara possibilidade de melhorias no modo de vidacomo indicar o fracasso, forçando a família aconviver em condições semelhantes às do con-texto de origem. Essa transferência implicavamudanças no caráter das relações socioprofissio-nais, étnicas, culturais e, até mesmo, na forma deinterpretar e agir em relação ao binômio tem-po/espaço. A mudança de atividade ocupacional,apesar de expor as diferenças que identificavam ocontexto de origem e o contexto de chegada,

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25 José Moura Gonçalves Filho em A memória da casa e a memória dos outros, lembra que “a casa humana recolhe uma coleçãode objetos que nos ligam ao passado da família: são retratos, panos, livros, algum adorno, móveis, muitas vezes, recebi-dos dos pais, dos avós objetos que carregam histórias e fazem com que o morador se enraíze, mais além da natureza,também no mundo dos seus ancestrais, ligando o homem a outros homens que o precederam e que o abrigaram. Estarem casa é estar nos outros, é estar em si mesmo, estando nos outros. Ocorre que a mobilidade extrema e insegura das fa-mílias pobres, migrantes ou nômades-urbanas, impede a sedimentação do passado. Os objetos herdados, toda esta co-leção de bens biográficos não logra acompanhar a odisséia dos miseráveis. São transferidos, são abandonados ou sãovendidos a preços irrisórios. A espoliação econômica manifesta-se ao mesmo tempo como espoliação do passado”(1998, p.17-24).

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apresentava a possibilidade de estreitarem-se la-ços, unindo o antes e o agora em um objetivoúnico: garantir a sobrevivência da unidade fami-liar. Embora a transitoriedade nem sempre fossetranqüila, a atividade ocupacional reafirmava va-lores, fortalecia vínculos e, o que era mais impor-tante, contribuía, decisivamente, para a nova redede relações que se estabelecia. Entretanto, con-forme nos ensina Wirth, ambos – contexto deorigem e contexto de chegada – “podem ser en-carados como dois pólos em relação aos quais to-dos os aglomerados humanos tendem a se dis-por” (1979, p.99).

O local de chegada, pelas suas peculiaridades,produzia uma necessidade fundamental: a inte-gração entre os que já eram “do lugar” e os quechegavam “de fora”, ambos com seus valores ejeitos de ser. A realidade, contudo, mostrava umaúnica necessidade fundamental: a de aparelhar asociedade de forma que pessoas diferentes pu-dessem trocar experiências e fazer com que o di-ferente e o igual contribuíssem no sentido de me-lhorar as condições de vida de ambos. Mesmoque o “destino” tenha reservado, inicialmente,aos migrantes os arrabaldes da cidade (loteamen-tos irregulares, periferia26,...), deixando-os sujei-tos à exploração imobiliária, a possibilidade deum trabalho na fábrica superava tais dificuldades.A pressa de conseguir o emprego na fábrica so-mava-se à preocupação de assegurar, ainda queprovisória e precariamente, um espaço para aco-modar a família e os pertences trazidos na mu-dança. Somente após ter garantido uma fonte derenda quinzenal ou mensal é que o migrante pen-sava nas demais necessidades básicas que o con-texto de chegada exigia.

Embora a periferia fosse uma das marcas dadescontinuidade do tecido urbano, ora se aliandoao centro dinâmico e aglutinador da cidade, orase contrapondo e reagindo aos padrões de consu-mo e ao modo de vida imposto do centro à peri-feria, para o migrante esta era uma questão irrele-

vante. O desejo dele, no curto prazo, era tor-nar-se empregado, se possível, com Carteira deTrabalho assinada. Em algumas cidades (Sapiran-ga, Parobé, Capela de Sant’ana, Dois Irmãos,Novo Hamburgo), construíram-se vilas e bairrosocupados, hegemonicamente, por migrantes. Nocontexto de chegada, encontram-se exemplos re-veladores: no Bairro Imigrante, em Capela deSant’ana e no Bairro Amaral Ribeiro, em Sapiran-ga, muitos nomes de ruas resgatam e preservamos nomes dos municípios de origem dos migran-tes (rua Palmitinho, rua Frederico Westphalen,rua Caiçara etc.).

2.3 A vida na cidade: uma releitura darealidade

Ao reconstruir a aventura do processo migra-tório, contada de forma prazerosa e descontraídapelos migrantes, pais e filhos exibem um brilhoespecial nos olhos, resultante do sentimento deorgulho misturado com a emoção de ter, apesarde todos os obstáculos, alcançado o objetivo ini-cial: morar na cidade e trabalhar na fábrica. O seuolhar para o passado revela duas faces bem dis-tintas: numa delas, está expressa a denúncia aoabandono a que foram submetidos no contextode origem; na outra, estão expressas a convicçãoe a consciência do “dever cumprido”. O não que-rer voltar para a roça torna-se perfeitamentecompreensível, principalmente por causa daque-las condições adversas em que viviam na primei-ra fase de sua vida ocupacional. Os depoimentossão bem ilustrativos a esse respeito:

Ah! não, hoje ninguém quer voltar. Se eu pensar em irpra colônia, vou só eu, ninguém vai, nem a mulher.Acho que não, nem os filhos (Entrevista 7).Ah! não quero nem pensar na colônia, mais. Parte domeu passado está lá, e eu não tenho boas lembranças denada... (Entrevista 12).Até eu que me criei lá, vou pra lá, fico muito bem umasemana, mas depois eu já não quero mais ficar, quero

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26 A periferia, no entender de Sposito, se constitui numa “das determinantes do processo de fragmentação da cidade epode ser visto como uma das formas contemporâneas, através das quais se origina ou se acentua a segregação só-cio-espacial” (1999, p.16).

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vir embora. A gente criou raiz aqui, o que eu tenho estáaqui (Entrevista 21).

Nas condições atuais, são poucos os migran-tes que pensam em voltar para a roça.

O fascínio pelo emprego tinha um endereçocerto: as fábricas de calçados do Vale do Sinos.Este espaço transformou-se no “eldorado doemprego”, coincidentemente no mesmo períodoem que os agricultores familiares viviam uma“crise” em relação aos produtos responsáveispela sua permanência no contexto de origem. Adiretora do Museu de Sapiranga relata o processoque resultou na grande migração de agricultoresfamiliares do Médio Alto Uruguai para o Vale doSapateiro:

aquela pequena fábrica que eles tinham se transformanuma indústria, todo um complexo. Nesta primeirafase, nos primeiros anos da década de 70 o “boom”, oprogresso, tudo às mil maravilhas. Não existiam pro-blemas. A cidade só crescia. Melhorias em todos os se-tores[...]. Quem trabalhava na fábrica tinha condiçõesde melhorar de vida, de ter uma casa melhor, de ter oseu carro, de ter uma série de eletrodomésticos, de coi-sas assim. Só que nós vamos chegar lá pelos anos de1974/75 e essa mão-de-obra vai escassear, porque a in-dústria que está aqui absorveu a mão-de-obra economi-camente ativa da cidade pacata até então, de 20 mil ha-bitantes, onde todos se conheciam, aquele clima de ci-dade de interior, realmente bom. Aí nós temos a vindade alguns empresários que vêm associar-se às indústriasde calçados daqui. Vêm de outros lugares, já com umavisão diferenciada, uma visão de ampliar essa indústriae é aí que vamos observar empresários que vão para atelevisão dizer: “Sapiranga precisa de mão-de-obra,aqui tem emprego para todo mundo” [...]. A partir de1976 em diante, verificamos a vinda de muitos migran-tes do Alto Uruguai, gente de toda aquela faixa geográ-fica vem para cá devido à propaganda. Os primeirosque vêm vão se dar superbem, o sucesso deles vai ser omesmo sucesso de quem já estava aqui. Assim como aindústria cresce, eles também vão crescer pessoalmentee quando os parentes vêm para fazer visita e vêem quetêm uma casa, um carro, todo o conforto dentro decasa, eles também querem vir. Então esta propagandaque saiu inclusive no Jornal Nacional, dizendo que aquihavia emprego, fez com que muitas pessoas viessempara cá (Entrevista 9).

Esta cidade-fábrica, para reverenciar Hobs-bawm (1977), prometia boas perspectivas quanto

a oportunidades de trabalho para todos os mem-bros da família e a melhoria significativa de con-dição de vida. Segundo o Presidente do Sindicatodos Sapateiros de Sapiranga, o projeto político daadministração municipal da época era (...) “pro-duzir calçados para exportar e que venham aspessoas. Mas nunca se preocuparam com o queessas pessoas iriam fazer no futuro, como seria ecomo a cidade se estruturava [...]. A cidade nãoestava preparada para receber tanta gente”(Entrevista 15).

A história tem mostrado que não houve preo-cupação dos donos das fábricas de calçados e dopróprio Poder Público em se certificar se os mi-grantes eram possuidores, ou não, de um grau deeducação formal, razoavelmente compatível comnecessidades futuras, decorrentes das inovaçõestecnológicas. Os migrantes e seus filhos nunca ti-veram acesso a um tipo de qualificação em que aleitura, a escrita e a capacidade de raciocínio fos-sem componentes indispensáveis para um co-nhecimento pormenorizado do funcionamentoda fábrica e das relações macroeconômicas. Ooperário da indústria calçadista sempre foi pagopara cumprir tarefas, entre as quais a de produzir“x” quantidade de pares de calçados, não necessi-tando ser portador de um apurado raciocínio e decapacidade para tomar decisões. A inteligênciado trabalhador, neste modelo tecnológico, ape-nas deve responder aos estímulos e suprir as ne-cessidades dos donos dos meios de produção.Nada mais, apenas o cumprimento rigoroso dasnormas operatórias, com tarefas sempre prescri-tas e metas de produção a serem alcançadas. Esteera o receituário posto ao alcance do migrante.

O objetivo dos donos das fábricas de calçadosestava bem definido: produzir grande quantida-de de bens padronizados, com o emprego deuma força de trabalho semiqualificada, tendoem vista sempre a separação entre concepção eexecução, típico do modelo taylorista/fordista.Semelhante processo fora examinado, nos seuspormenores, por Marx (1984), ao longo do sé-culo XIX, apontando para o enfraquecimentoda capacidade de resistência dos trabalhadoresrurais, enquanto o inverso acontecia com a con-

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centração dos trabalhadores nos núcleos urba-nos. Ao migrante, faltavam-lhe, sobretudo, con-dições materiais e um maior grau de escolarida-de, capazes de lhe dar consistência a médio e lon-go prazo, e de possibilitar-lhe investir num proje-to de vida27 mais arrojado.

O gráfico nº 6, evidencia, entre outros aspectos,que 93,3% dos trabalhadores sindicalizados queparticiparam do levantamento de dados do sindica-to possuíam um grau de escolaridade que variavaentre o analfabetismo e a 8ª série do primeiro grau.

O presidente do Sindicato dos Sapateiros deSapiranga justifica o porquê do alto número detrabalhadores com baixa escolaridade. Segundoele, na roça, os mais velhos pensavam não ser ne-cessário muito estudo.

Tinha uma visão lá na colônia que nossos pais deixarampara nós que sabendo ler e escrever estava bom. Para

lavrar, plantar feijão, colher soja e tal não precisa sabermuito [...] Essa mentalidade da roça foi trazida para a ci-dade. Em pouco tempo, crianças com 10, 11, e 12 anosestavam na fábrica [...] o pessoal que veio do interior,um povo que só queria trabalhar, custou para se organi-zar e se dar conta de que, no futuro, teriam problemas...(Entrevista 15).

Apesar das adversidades, a história de vida ede trabalho dos migrantes foi ganhando consis-tência. O cotidiano da fábrica e as novas relaçõessocioprofissionais que se constituíam, possibili-taram a formação de uma nova consciência pro-fissional, fazendo emergir um sentimento de re-sistência, manifestado, por exemplo, na tomadado Sindicato dos Sapateiros de Sapiranga, em1986, tida como a grande virada na história dasrelações de trabalho da indústria calçadista doVale do Sinos28. Manifestaram-se, então, os con-flitos entre os migrantes “de fora” e a elite políti-

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8,1

52

33,2

6,40,3

0

10

20

30

40

50

60

Até 2ª Série do 1º

Grau

3ª a 5ª Série do 1º

Grau

6ª a 8ª Série do 1º

Grau

2º Grau Curso Superior

Gráfico 6 – Perfil dos trabalhadores do calçado, segundo o grau de escolaridade, 1999

Fonte dos dados: Sindicato dos Sapateiros de Sapiranga, Araricá e Nova Hartz, 1999.

27 É importante fazer uma ressalva quando se fala em projeto. Aqui se faz uso de Gilberto Velho, segundo o qual “a possi-bilidade da existência de projetos individuais está vinculada a como, em contextos socioculturais específicos, se lidacom a ambigüidade fragmentação-totalização” [...] Mais adiante, o mesmo autor, define projeto não como “um fenô-meno puramente interno, subjetivo. Formula-se e é elaborado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito his-tórica e culturalmente, tanto em termo da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas cultu-rais existentes [...]. O projeto é algo que pode ser comunicado. A própria condição de sua existência é a possibilidade decomunicação” (1981, p.26).

28 Conforme a historiadora e Diretora do Museu Municipal de Sapiranga, Dóris R.F. Magalhães, “1986 é um ano muitosignificativo. No ano de 1986, o movimento sindical, na cidade de Sapiranga, tem seu ponto alto. Por quê? Porque coma vinda desses migrantes para cá, se estabelecendo por aqui, muda o perfil do sindicato. O Sindicato dos Sapateiros eracomandado por sindicalistas trabalhistas estilo Brizola, Getúlio Vargas, onde havia um consenso com o patrão, sabe.Havia uma espécie de acordo entre patrão e empregado, via sindicato. O sindicato era mais assistencialista e, com a vin-da desses migrantes e com o aumento do número de associados, a própria situação das fábricas todas fez com que asnovas eleições do sindicato trouxessem outras lideranças. E lideranças de um trabalhismo diferente. Foi para um outroextremo” (Entrevista 9).

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co-econômica local. Este foi um momento degrandes repercussões políticas e socioculturais,em face da radicalidade e dos rumos que tomou omovimento grevista que se instalou logo após atomada do sindicato. Mas foi, também, um mo-mento de profunda aprendizagem para os traba-lhadores assalariados, na medida em que a fábricapassou a ser vista não mais como uma extensãodo lar, mas como um local de venda da força detrabalho. Interesses antagônicos afloraram comtoda a intensidade. As relações entre capital e tra-balho já não transpareciam tão consensuais. Acategoria dos sapateiros, representada pelo Sindi-cato dos Sapateiros de Sapiranga, e a categoriados empresários, representada pelo sindicato pa-tronal, mediram forças em diversas oportunida-des, fato que mereceria um estudo específico.

Os acontecimentos, no campo político-sindi-cal, repercutiriam também nas relações entre osmoradores “do lugar” e os migrantes “de fora”.O processo de ressocialização já não seria maistão pacífico quanto o fora até aquele momento.Entretanto, o encontro entre os moradores “dolugar” e os que chegavam “de fora” guardaria im-portantes surpresas. A acolhida ao recém-chega-do era carregada de simbolismos e gestos quetanto poderiam expressar um sinal de aceitaçãocomo um de rejeição. Sobre a gratidão e o signifi-cado do gesto de acolhida, Gonçalves Filho dizque, nesse processo, tudo caminha para a radica-lização da receptividade: “a gratidão é pelo que serecebe: e o que se recebe, é a oportunidade deofertar também [...] receber do outro não umacoisa, mas sobretudo a chance de recebê-lo tam-bém...” (1998, p.24).

A socialização secundária, vivenciada pelo mi-grante, constituiu-se em um rito de passagempara formas de interação mais complexas, tantonos seus numerosos significados e pluralidade deinteresses, quanto nos seus diferentes objetivos.Neste caso, a socialização secundária foi o pro-cesso através do qual o migrante aprendeu a con-viver no interior de uma nova realidade sociocul-tural, interagindo com os outros e com o meio,avançando na direção de processos mais comple-xos e específicos.

Sobre a socialização secundária, Foracchi eMartins não deixam dúvidas. Para os autores,

todos os processos de socialização se realizam numa in-teração face a face com outras pessoas. Em outras pala-vras, a socialização sempre envolve modificações nomicrocosmo do indivíduo. Ao mesmo tempo, a maiorparte dos processos de socialização, tanto primáriaquanto secundária, liga o indivíduo às estruturas com-plexas de macrocosmos...(1978, p.214).

Ao ligar o microcosmos ao macrocosmos, asocialização habilita o indivíduo a relacionar-secom outros indivíduos num contexto social maisamplo, capacitando-o a estabelecer contatos como universo social inteiro.

A socialização secundária é um processo recí-proco, envolvendo não apenas o indivíduo socia-lizado, no caso os migrantes de fora, mas tam-bém os socializantes, ou seja, os moradores dolugar. A socialização se realiza sempre em umacontínua interação com os outros... (Berger, Ber-ger, 1978).

O encontro dos “de fora” com os “do lugar”nunca se dá de maneira espontânea. Ele é per-meado de diálogos e rupturas, encontros, de-sencontros e reencontros. No decorrer dos pri-meiros tempos no local de chegada, a pessoa dooutro está sempre sendo observada, avaliada,aceita ou rejeitada, conforme seu “comporta-mento” e sua “conduta”, tanto nas relações pro-fissionais, quanto nas relações socioculturais,inter e intrafamiliares.

2.3.1 A relação econômica na venda daforça de trabalho

Um momento carregado de significados esimbolismos para o migrante, no contexto dechegada, foi o seu contato com o novo local detrabalho, espaço onde colocará sua força de tra-balho à disposição do dono da fábrica, ficando acargo deste contratá-la ou não. É importante nãoesquecer que este capítulo trata de uma época emque havia muitas vagas nas empresas calçadistas.Entretanto, a rotatividade e a mobilidade inter eintra-empresas também será bastante elevada.

A preocupação dos contratantes (donos dasfábricas de calçados) não era com a situação eco-

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nômica do contratado (migrante), nem com seugrau de qualificação, nível de escolaridade, núme-ro de filhos e local de moradia. Concentrava-sena possibilidade de extrair da força de trabalhocontratada o máximo de produtividade, o que serefletiria na maior quantidade de mais-valia acu-mulada nas mãos dos donos das fábricas.

O papel fundamental do operário era, no en-tender do capitalista, fazer jus ao salário que lheseria pago após decorrido determinado períodode produção, podendo ser semanal, quinzenal oumensal. Vê-se que a função do operário, nestetipo de atividade, se resume em satisfazer os inte-resses do capitalista, não lhe restando margempara priorizar interesses e necessidades pessoais efamiliares. Faz-se indispensável relembrar o queMarx já denunciava, há mais de um século:

por um lado, o processo de produção transforma conti-nuamente a riqueza material em capital, em meios devalorização e de satisfação para o capitalista. Por outro,o trabalhador sai do processo de produção semprecomo nele entrou – fonte pessoal de riqueza, mas des-pojado de todos os meios, para tornar esta riqueza reali-dade para si. Como, ao entrar no processo, seu trabalhojá está alienado dele, apropriado pelo capitalista e incor-porado ao capital, este se objetiva, durante o processo,continuamente em produto alheio (1984, p.156).

A relação de dominação se traduz pelo poderde decisão que tem o empresário em relação àforça de trabalho do operário, podendo contra-tá-la ou rejeitá-la, o que revela o quanto fragili-zada é a posição do operário que apenas dispõeda sua força de trabalho. Dessa forma, o própriotrabalhador, ao responder positivamente aosobjetivos do capital, reforça os mecanismos queo colocam cada vez mais submisso aos interes-ses do próprio capital. Torna-se vítima do pró-prio trabalho, porquanto o produto do seu tra-balho, segundo Marx, “transforma-se continua-mente não só em mercadoria, mas em capital,em valor que explora a força criativa de valor,em meios de subsistência que compram pesso-as, em meios de produção que empregam o pro-dutor” (1984, p.156).

Entre o trabalhador, que disponibiliza sua for-ça de trabalho para trocá-la por um determinado

salário, e o capitalista, que dispõe de capital capazde adquirir a força de trabalho do trabalhador,cria-se uma relação de dependência e submissãodo primeiro para o segundo, e uma (relação) dedominação do segundo para o primeiro.

2.3.2 O tempo-relógio

O novo modo de vida dos migrantes, tendo afábrica como o centro dinâmico de todo o pro-cesso socioeconômico, interferindo diretamentesobre o cotidiano, transformou a realidade dosatores sociais investigados, desarticulando valo-res e padrões de comportamento, alterando oconjunto das relações inter e intrafamiliares, pas-sando a aglutinar, em sua totalidade, uma rede deinteresses em relação à fábrica.

Um dos fatores que mais contribuiu para de-sarticular a unidade familiar nas suas relações in-trafamiliares foi a jornada de trabalho, definida,então, pelo tempo-relógio e não mais pelo sol,nem pelas safras, ou por qualquer outro referen-cial, válido no contexto anterior. O trabalho dooperário tinha, no cartão-ponto, um instrumentofundamental. O controle da jornada de trabalho,contada em horas e minutos, desarticulou a no-ção de tempo do migrante: “Eu trabalho de noitena Azaléia. Começo às 22h 25min e paro às 5h55min, venho para casa, tomo chimarrão, abro omercado e vou atendendo o pessoal aqui até umahora da tarde, daí almoço...” (Entrevista 7).

A rotina do trabalhador assalariado da indús-tria calçadista e a da sua família corriam por contado compromisso de estar na hora certa, no lugarcerto, isto é, no seu posto de trabalho no interiorda fábrica. A hora de entrada e saída da fábrica, atroca de turno, o intervalo, o tempo para os lan-ches e as refeições, tudo é determinado pelo reló-gio. Todavia a dependência do operário em rela-ção ao relógio não se resumiu em só isso. Mesmofora do circuito da fábrica, os horários eram orga-nizados em função da atividade profissional. Issodá uma idéia dos impactos que a nova atividadeprofissional provocou sobre toda a unidade fami-liar, nos mais variados aspectos. Até mesmo ohorário de deitar e de levantar passou a ser condi-cionado ao turno de trabalho na fábrica.

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É, mudou muito, porque lá na colônia, no serviço dagente, não tinha muito aquele compromisso, das 7 ho-ras estar pontualmente no local do serviço, mas aqui agente chegou e às sete horas tem que estar no serviço.Mas tem aquela sensação assim, que a cada 15 dias tuvai ter um troquinho no bolso, sabe, e lá na roça a pes-soa só ia pegar um dinheiro quando ia fazer uma safra(Entrevista 22).

Durante um longo período, o fazer hora extra,conhecida entre os sapateiros pela expressão “fa-zer serão”, foi prática comum. Além, é claro, doturno normal de 8 horas. Essa mudança de uso econtrole do tempo-trabalho alterou profunda-mente a vida dos trabalhadores, interferindo nassuas concepções, fazendo com que as demais ne-cessidades socioculturais fossem submetidas eprogramadas de acordo com as possibilidadesque esse binômio oferecia. Assim, o tempo paraestar com a família, ou para um bate-papo comos amigos no bar da esquina, ou para visitar umvizinho, ou para cultivar suas convicções religio-sas, ou mesmo para sua vida organizativa e sindi-cal, tudo ficou condicionado ao compromisso deestar pontualmente no portão da fábrica, bater ocartão-ponto, sem ter permissão para chegaratrasado.

A vida familiar, na cidade, foi reorganizada ex-clusivamente em função dos turnos, nos diferen-tes locais de trabalho. Raras eram as coincidên-cias em que todos os membros de uma mesmafamília conseguiam trabalhar na mesma fábrica,durante os mesmos turnos, podendo acordar nomesmo horário, tomar o mesmo ônibus e mantervivos certos laços de família que vigoravam nocontexto de origem.

Ao analisar aspectos de vida e de trabalho dospobres da cidade, entre 1880 e 1920, Pesaventocita E.P. Thompson, para dizer que, para o histo-riador inglês

a fábrica introduz uma nova moral de trabalho e umanova medida de tempo. A figura do relógio passa a re-gular o ritmo de trabalho industrial, as horas de entradae de saída da fábrica e os períodos de descanso, a horade acordar e a hora de dormir, fundamentais paraquem, pelo novo sistema, não podia ‘chegar atrasado’ao serviço (1994, p.28).

O migrante rural, acostumado a trabalhar orien-tando-se pelo sol, viu-se subitamente forçado aregular sua vida profissional e familiar pelo reló-gio. Este passou a ser um instrumento tão impor-tante que o simples fato de ignorá-lo podia deter-minar ou a perda do emprego ou descontos signi-ficativos em sua já escassa folha salarial. É “proi-bido” chegar atrasado no serviço!

Uma vez mais, é preciso recorrer a Marx, paraperceber-se que

não basta que as condições de trabalho apareçam numpólo como capital e no outro pólo, pessoas que nadatêm para vender a não ser sua força de trabalho. Nãobasta também forçarem-nas a se venderem voluntaria-mente. Na evolução da produção capitalista, desenvol-ve-se uma classe de trabalhadores que, por educação,tradição, costume, reconhece as exigências daquelemodo de produção como leis naturais evidentes. A or-ganização do processo capitalista de produção plena-mente constituído quebra toda a resistência, a constan-te produção de uma superpopulação mantém a lei daoferta e da procura de trabalho, e, portanto, o salárionos trilhos adequados às necessidades de valorizaçãodo capital29, e a muda coação das condições econômi-cas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador(1984, p.277).

Para garantir um nível de sobrevivência míni-mo, todos os membros da unidade familiar eramconvocados a contribuir no atendimento às de-mandas familiares. Garantir a satisfação do tripébásico, alimentação, vestuário e moradia, era prio-ridade absoluta. Se sobrasse receita, esta seriapartilhada entre as demais demandas, como saú-

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29 De outra parte diz Marx: “Creio haver demonstrado que as lutas da classe operária em torno do padrão de salários sãoepisódios inseparáveis de todo o sistema do salariado: que, em 99% dos casos, seus esforços para elevar os salários nãosão mais que esforços destinados a manter de pé o valor dado do trabalho e que a necessidade de disputar o seu preçocom o capitalista é inerente à situação em que o operário se vê colocado e que o obriga a vender-se a si mesmo comouma mercadoria. Se em seus conflitos diários com o capital cedessem covardemente, ficariam os operários, por certo,desclassificados para empreender outros movimentos de maior envergadura [...]”. Mais adiante sustenta que “a classeoperária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõem, engendra simultaneamente ascondições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade” (1982, p.184).

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de, educação, lazer, previdência, impostos e taxasdiversas, além de outros componentes da rotinadiária. Muitas famílias conseguiam realizar a má-gica de “reservar” ou “poupar” pequenas impor-tâncias, visando à aquisição de terreno, materialde construção, etc. Logicamente, essa poupançaera conseguida em detrimento de outras necessi-dades. Havia uma precarização generalizada emtodos os setores da vida dos trabalhadores assala-riados. As conseqüências imediatas do atendi-mento a essas demandas se refletiram no abando-no da escola por parte dos filhos que atingiam aidade mínima para ingressar na fábrica (casos deaté 12 anos) e na participação sempre mais inten-sa da mulher em atividades fora do ambientefamiliar.

O trabalho de adolescentes de ambos os sexose da mulher contribuiu, de forma decisiva, para adesagregação do modo de vida familiar. As crisesno relacionamento intrafamiliar passaram a sercada vez mais freqüentes, principalmente porquea figura paterna já não conseguia manter, sob seucontrole, a totalidade dos membros da unidadefamiliar, da mesma forma como o fazia, comoagricultor familiar, no meio rural.

A perda de poder por parte do pai, a indepen-dência, bem precoce, dos filhos e filhas, o envol-vimento da figura materna em tarefas remunera-das, seja na fábrica, seja em outras atividades do-mésticas e de serviços, foram impactos que inci-diram sobre a unidade familiar, exigindo adapta-ção à rotina da fábrica e à vida da cidade. O en-contro “ocasional” de todos os membros da fa-mília causava, não raramente, a emergência deconflitos nada comuns no contexto anterior.

O envolvimento em tarefas ocupacionais dasmulheres e dos adolescentes e jovens de ambosos sexos, todos entranhados no processo(re)produtivo, exigiu uma reestruturação radicalno modo de pensar e agir de toda a unidade fa-miliar, libertando-se do passado sem, contudo,perdê-lo de vista.

A indústria calçadista tem se destacado nautilização de mão-de-obra infantil, a partir dos12 anos, já com carteira assinada, mesmo nosateliês e trabalhos terceirizados. A necessidade

de todos os membros trabalharem para o sus-tento da família incidiu sobre as crianças em ida-de escolar, forçando-as a abandonar a escola,para integrarem-se precocemente ao trabalho,ajudando a família nas necessidades econômicasmais emergenciais.

A opção pelo trabalho assalariado na cidade,com transferência de moradia e alteração dascondições de vida e de trabalho, implicou umasérie de alterações que afetaram o próprio senti-do de identidade do universo social em estudo,forçando estas pessoas a redefinirem a sua identi-dade, a incorporarem traços do novo contexto, acombinarem valores novos e antigos e a adapta-rem-se ao meio socioprofissional, sob pena de in-viabilizarem sua permanência no novo contexto.

2.4 Estratégias de reprodução familiar

O novo contexto exigiu dos migrantes rurais aconstrução de novas estratégias de reprodução.O processo de sair da condição de agricultoresfamiliares para ingressar na condição de assalaria-dos nas fábricas, inserindo-se integralmente numoutro modo de vida, requereu da família migran-te a capacidade de incorporar os traços do novoambiente.

2.4.1 Inserção nas novas condições de tra-balho

A fábrica passou a ser vista não só como localde venda de força de trabalho, de aprendizagem,de subordinação e de resistência, mas também detomada de consciência das opções e alternativasque se apresentavam naquele contexto. Dito deoutra forma, a fábrica passou a ser um laborató-rio de idéias que mais tarde poderiam ser deter-minantes na opção por um trabalho por contaprópria.

O efeito da “boa propaganda” sobre o traba-lho assalariado da fábrica refletiu diretamente so-bre os trabalhadores rurais. As vantagens da novasituação de vida visualizam-se como capacidadede dispor de bens de consumo e equipamentosmateriais diversificados, além da facilidade de co-

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municação e da multiplicação de contatos. Onovo contexto, em sua dinamicidade, abriu espa-ços para a penetração de valores culturais e esti-los de vida considerados avançados e inovadorespara os migrantes que chegavam. O acesso aosbens de consumo e a infra-estrutura básica esta-vam ao alcance da mão, embora, nem sempre, es-tivessem ao alcance do bolso do trabalhador. Acidade, através do seu centro dinâmico concen-trado na fábrica, propiciava um giro de dinheiromuito mais rápido do que no meio rural. “As coi-sas aqui na cidade ficaram mais fáceis. Aqui rolamais dinheiro do que lá na colônia, pelo menospra mim, né! [...]. Aqui na cidade, se recebe a cada15 dias. Lá na colônia não dá de 15 dias em 15dias e não é um dinheiro certo como aqui.”(Entrevista 7).

A cidade oferecia algumas vantagens às famíliasque migraram em busca de emprego e melhorescondições de vida. O próprio ato de migrar élembrado como uma coisa que deu certo: “Olha,para mim foi uma boa, porque eu vim de lá e dei-xei dívidas lá. No mesmo ano, voltei e paguei etenho o que tenho hoje tudo daqui. Comprei ter-reno, fiz casa. Os filhos todos casaram, têm terre-no, têm casa, têm carro e como eu tenho esse ne-gocinho aqui [referindo-se ao seu minimercado],vou levando” (Entrevista 7).

A realização pessoal, através do orgulho demostrar que o ato de migrar foi uma decisão acer-tada, aparece refletida na expressão de contenta-mento do informante. A compra do terreno, aconstrução da casa e a compra de um carro emer-gem como significativas vantagens do contextode chegada sobre o contexto anterior.

A idéia de se aposentar como funcionário daAzaléia também é expressa com um misto de or-gulho e sensação de dever cumprido:

...mas como surgiu a oportunidade de vir a Parobé, es-tou trabalhando na fábrica até hoje, estou gostando doserviço, eles estão gostando do meu serviço, porque es-tou fazendo 60 anos dia 7 de dezembro e não me bota-ram pra rua, ainda. Então eu vou ficar lá até me aposen-tar. Estou arrumando os papéis para me aposentar, in-clusive vou ficar uma semana ou duas em Palmitinhopara buscar os papéis, para encaminhar minha aposen-tadoria (Entrevista 7).

Para as pessoas que viveram de uma maneiramuito difícil, sempre “pegando no pesado”, semférias e sem outras garantias sociais, direitos dotrabalhador assalariado urbano, empregar-se nafábrica com direito a tais “regalias”, surpreendeuum dos informantes, principalmente pelo fato deque mal conseguira um emprego e, logo no finaldo primeiro mês, já estava em férias: “Assumi 30dias e já tivemos férias coletivas. Estranhei o tra-balho, porque na roça era pesado e aqui era só co-locar uma borrachinha...” (Entrevista 14). O infor-mante revelou-se um funcionário importante peladisponibilidade para o trabalho e pelo grau de ins-trução (segundo grau completo). Entre 1989 e1990, a fábrica em que o informante trabalhava,começou a operar no vermelho, falindo sem quitaros compromissos com os funcionários.

Entre a atividade ocupacional do contexto deorigem e a atividade desenvolvida na fábrica oumesmo numa atividade por conta própria, nemsempre há semelhanças que possam aproximartais atividades. Há casos em que a diferença ficabem evidente.

Não vejo semelhança, porque no trabalho da roça vocêusa a força física, tu não tem o desgaste psicológico, tusabe que é aquele trabalho[...]. No escritório de conta-bilidade, não, é um desgaste psicológico muito gran-de[...]. Tu tem que estar atualizado dia a dia, porque asleis mudam com freqüência. No momento que tu pensaque sabe tudo, tu não sabe mais nada... (Entrevista 14).

Entre os desafios que o migrante enfrenta, aodecidir-se pela nova condição de vida, está a suainserção na cidade, concorrendo a vagas por umemprego com pessoas do lugar mais bem prepara-das, conhecedoras do espaço físico e político, commaior grau de escolaridade e, ao mesmo tempo,devendo suportar o custo de vida que é significati-vamente maior que o do contexto de origem.

O novo habitat escolhido pelo migrante, inva-riavelmente, deixa-o perplexo e impotente diantede tantos desafios e novidades. De um lado, per-siste em não romper com os vínculos relaciona-dos ao contexto anterior, isto é, não quer perdersua identidade original; de outro, sente-se esti-mulado e pressionado a assimilar todo um con-junto novo de valores, hábitos e normas de con-

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duta que desafiam os atores sociais a se inserir,em sua totalidade, num novo modo de vida.

2.4.2 Reconstituindo a rede inter e intrafa-miliar e profissional

O ambiente familiar, num primeiro momento,se desarticula. O novo contexto apresenta-secomo algo estranho. Tudo passa a ser motivopara comentários, sugestões, convites, desafios,temeridades. Aos poucos, o espaço familiar sereorganiza, e a rede de relações começa a ser re-feita a partir do centro de referência que é a fábri-ca. Importa observar a nova dinâmica que rege arelação entre pais e filhos, marido e mulher, famí-lia e vizinhança. Tudo é reorganizado, tendo porbase o novo local de trabalho. Buscam-se expli-cações sobre esta reorganização sociocultural,evitando-se, inclusive, a emissão de juízos, mui-tas vezes, inadequados e inoportunos.

Recriar uma rede de relações, num ambientesocioeconômico e cultural diferente, implica,antes de mais nada, uma abertura ao diálogo, ex-pressa na capacidade do ator social de falar eagir, reconhecendo o outro e sendo por ele re-conhecido, aceitando a diversidade e a pluralida-de como experiências enriquecedoras na intera-ção entre as partes socializantes e socializadas.Partilhar um espaço até então desconhecidopode se transformar numa experiência qualifica-da e humanizante. Ou, como diz Arendt, apudJovchelovitch (1995, p. 67),

viver entre as pessoas de modo humano pressupõe acapacidade de escapar do domínio da pura necessidadepara um espaço que é qualitativamente diferente – o es-paço da ação e do discurso, onde as pessoas realizamsua capacidade para falar e agir[...]. É na experiência dapluralidade e da diversidade entre pessoas diferentes –que, porém, pode levar ao entendimento e ao consenso– que o significado primeiro da esfera pública pode serconcentrado.

Do encontro dos de fora com os do lugar, épossível extraírem-se lições de vida e exemplosde solidariedade muito significativos.

Sim, chegava de tarde, nós ligávamos o rádio na frentede casa e a mulher trazia um prato de bolo pra todomundo comer. Aquilo parecia uma alegria, todo mundo

junto, escutando música [...]. Tem gente boa de portade casa que diz: “Olha vai lá em casa assar carne quetem churrasqueira e que é meu compadre hoje”. Era sóatravessar a rua, assava a carne lá na casa dele, com ocarvão dele, não me cobrava nada. O meu poço de águaestava sujo e até que fosse limpado, meu compadre dis-se: “Não! vai lá em casa buscar água que teu poço não tábom”. Gente estranha que eu nunca tinha visto foi umirmão pra mim! (Entrevista 7).

A racionalidade, a impessoalidade e o anoni-mato são substituídos pela solidariedade, pelo re-conhecimento de iguais, embora diferentes, pelapartilha de objetos que podem ser socializados.O migrante recria relações tipicamente rurais emplena cidade. Num primeiro momento, a vonta-de de servir do acolhedor e do acolhido se equi-valem. A doação supera limites e preconceitos. Asolidariedade entre iguais se fortalece.

O depoimento transcrito acima identifica umrelacionamento em que prevalece a solidarieda-de, a disponibilidade e a aceitação recíproca dodiferente, o que mais tarde se confirmará, quandoo vizinho tornar-se compadre, aprofundandoainda mais os laços de amizade e cumplicidade.Dito de outro modo, o que fica claro é que a plu-ralidade e a diversidade aglutinam os diferentes,concretizando um modo todo particular de reco-nhecimento e de aceitação.

A solidariedade expressa-se pela “proximida-de física, a simpatia pessoal, e a experiência co-mum de auxílios recíprocos, a familiaridade quebrota da convivência, se apresentam como fato-res de solidariedade” (Durhan,1973, p.74).

A rede de relações que se estabelece com a vi-zinhança, desde a acolhida da família do migran-te, é expressa pelo empréstimo de ferramentas(martelo, serrote, machado, furadeira,...) a cedên-cia da churrasqueira para assar o churrasco dofim de semana, a divisão da água do poço, numademonstração de até aonde pode chegar a capaci-dade de doação e auto-ajuda. Em alguns casos, ograu de cumplicidade e relacionamento, com otempo, vão se fortalecendo, chegando a situaçõesde namoro e casamento.

A amizade com o vizinho de porta consti-tui-se num valor muito prezado entre as famíliasde trabalhadores rurais que se transferem para a

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cidade. “Nunca fui mal com os vizinhos. Tem vi-zinho do lado que eles vêm tomar chimarrão jun-to, sempre nos damos bem. Inclusive eu digo, oirmão da gente que se dá mais bem é o primeirovizinho. Na hora “H” quem te ajuda é o primeirovizinho” (Entrevista 7). “Se a gente se queixar deum vizinho, olha, a gente comete pecado...”(Entrevista 5).

Para muitas famílias de migrantes, o início nacidade foi muito difícil, apesar do ingresso nas fá-bricas ser imediato. Houve uma situação em que opai e mais quatro filhos foram para a mesma fábri-ca vender sua força de trabalho, assim que chega-ram com a mudança. A mãe, por sua vez, foi traba-lhar como doméstica. Os irmãos, menores de 12anos, tomavam conta da casa. A água para o ba-nho era esquentada em panelas, no fogão a gás,porque não havia energia elétrica no bairro onde afamília foi morar. A situação demonstra bem ograu de desarticulação intrafamiliar.

A relação inter e intrafamiliar vincula-se mui-to ao campo das representações sociais, enquan-to implementadas por atores sociais em situa-ções caracterizadas pela diversidade política,econômica e sociocultural. As representaçõessociais não estabelecem fronteiras, abrem espa-ço para o sujeito dialogar com o diferente e tra-var uma relação ora consensual e equilibrada,ora tensa e conflituosa. As representações socia-is se desenvolvem no domínio da vida em co-mum, isto é, no espaço público. No entender deJovchelovitch,

a necessidade de defender a vida em comum, ameaçadahoje pela miséria, pela violência e pela desigualdade, étambém a necessidade de recuperar o pensamento, apalavra e a plena possibilidade de construir saberes so-ciais [...]. A realidade vivida é também representada eatravés dela os atores sociais se movem, constroem suavida e explicam-na mediante seu estoque de conheci-mentos [...]. A visão de mundo dos diferentes gruposexpressa as contradições e conflitos presentes nas con-dições em que foram engendradas... (1995, 82-83-108).

Do encontro do ator social, nascido e criadona cidade, com o migrante que carrega fortes tra-ços do rural, pode-se extrair uma síntese bastantereveladora, valendo-se do depoimento a seguir.

Tinha um homem aqui em Parobé que tinha um merca-do, comprava ali dele, pagava conforme recebia, vale,pagamento. Ele foi um segundo pai pra mim, porqueele ensinava assim pra mim: “Teus filhos trabalhamjunto contigo na firma, chega no fim do ano, em vez deum rancho, tu faz dois porque estão todos em casa, gas-ta mais; outra: quando tu recebe o pagamento, dá unstroquinhos pra cada filho, pra ele não ficar” [...]. Na-quele tempo, eu dava uns R$ 5,00 ou 10,00 pra cada ume dizia: “Vocês não passam vergonha, se um paga umrefrigerante, vocês paguem outro; se um paga pra tur-ma uma cerveja, vocês paguem outra; precisou dinhei-ro, peçam pra mim, se eu não tiver, eu arrumo empres-tado”. Meu ensino foi assim que eu dei para os filhos(Entrevista 7).

Há dois ensinamentos importantes no depoi-mento acima. O primeiro deles apresenta a me-lhor maneira de dialogar-se com os filhos, quan-do o assunto for dinheiro. O segundo apresentaestratégias para garantir um bom ambiente fami-liar nas festividades de fim de ano. A expressão“foi um segundo pai para mim” revela muitomais que um gesto de gratidão, deixando cristali-zada a imagem construída por ações que se torna-ram significativas e que permanecem muito vivasna lembrança do informante.

Nas relações entre marido e mulher, os confli-tos são freqüentes. Os casos em que a esposaconsegue receber uma remuneração superior àdo marido indicam a emergência de conflitos. Opátrio poder fica ameaçado. O poder de controledo marido sobre a esposa está irremediavelmenteenfraquecido. Cria-se, para o marido, uma situa-ção difícil de ser assimilada. Aceitar que a mulhertrabalhe fora de casa já implica ceder espaço numcampo nada convencional. A mulher, trabalhan-do na fábrica ou em outra atividade extralar, rece-bendo uma remuneração superior, abala a mas-culinidade do marido. Esta situação de inferiori-dade em relação ao salário da esposa torna-seincômoda.

Após um ano de trabalho (por conta própria),com apenas um cliente e dependendo do salárioda mulher para sobreviver, o marido tinha razõesmais que suficientes para entrar em crise e pensarna hipótese de “largar tudo e voltar pra fábrica!”,mesmo porque, para o informante: “Sapiranga ri-mava com fábrica” (Entrevista 14).

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Ao justificar a decisão de investir no trabalhopor conta própria, a informante conta que, naroça, trabalhavam lado a lado, faziam todas as ati-vidades em conjunto. Agora, o marido está numemprego, e ela (informante), no outro. E os fi-lhos? O contexto da fábrica desarticulou laços defamília bem tradicionais, forçando os migrantes amudanças estranhas às suas práticas anteriores.“Nós sempre íamos junto na roça e agora só nosencontrávamos à noite. Sobrava pouco tempopara a filha” (Entrevista 12).

Em sociedades com características tipica-mente rurais, conservadoras, a probabilidadede relações amorosas entre jovens estava su-bordinada aos olhos atentos dos pais e da pró-pria sociedade, sempre muito reticente às no-vidades no mundo dos valores. Desaprovaruma relação amorosa, pretendida pela filha,era algo comum sob o ponto de vista dos paise da sociedade. O novo contexto, entretanto,aos poucos, foi fortalecendo um novo padrãode relações afetivas, porém, em certos casos, ocomportamento do pai em relação aos filhos,continuou idêntico ao do tempo da roça. Qu-ando o assunto se tratava de dinheiro distribuí-do entre os filhos homens e as filhas mulheres,o informante respondeu prontamente:

não, para as meninas, não! para as meninas eu davaroupa, calçados, o que elas precisavam, afinal. Dinhei-ro, se algum dia elas saíam, eu dava, mas não dinheiroque nem eu dava para os guris, para se divertir, não,porque o dia que elas iam para um divertimento, iamcom eu, com a mulher, junto. Então era eu que pagavatudo. Mas para os guris eu dava um dinheiro separado(Entrevista 7).

2.4.3 Assimilação dos impactos do novomodo de vida

O migrante rural, ao passar do trabalho porconta própria na roça (agricultura familiar) para otrabalho assalariado na cidade (troca da força detrabalho por um salário), adapta-se às novas rela-ções de trabalho, sem romper os vínculos afeti-vos e socioculturais com o passado. Candido en-tende que:

O processo de urbanização-civilizador, se o encarar-mos do ponto de vista da cidade – se apresenta ao ho-mem rústico propondo ou impondo certos traços decultura material e não material. Impõe, por exemplo,novo ritmo de trabalho, novas relações ecológicas, cer-tos bens manufaturados; propõe a racionalização doorçamento, o abandono das crenças tradicionais, a indi-vidualização do trabalho, a passagem à vida urbana(1964,174-5).

Um desafio, enfrentado pela família migranteao chegar à cidade, é a superação do estigma deser colono, da roça, caipira, ignorante (sem esco-laridade), ou seja, a necessidade de superar umasérie de atributos depreciativos, redefinindo suaidentidade, sem ignorar nem desprezar sua iden-tidade anterior. O estigma, segundo Goffmann(1978), se define em relação ao outro, fora, ou aum padrão ou código de conduta. Estigma é algoque sempre ressalta a diferença. Para o caso dosmigrantes que abandonaram o trabalho da roçapara se candidatarem a um trabalho na fábrica, oque mais prevalece é o estigma cultural, ou seja, ofato de ele (migrante) ser da roça, imprimin-do-lhe uma marca de atrasado, iletrado, grosso,colono (termos utilizados pejorativamente). Areação do estigmatizado, geralmente, tem sido deaceitação, embora, em menor número de casos,ocorra uma rejeição do padrão de normalidadepelo qual é categorizado. Em outras vezes, o mi-grante reage, ignorando sua identidade anterior,evitando lembrar o seu passado de agricultor,aceitando passivamente valores estranhos à suatrajetória de trabalho e à sua identidade.

Entretanto, na maioria dos casos, tem-se ob-servado que o migrante, ao se defrontar com estenovo modo de vida, procura desenvolver alterna-tivas que lhe possibilitem superar tais componen-tes de menosprezo e pouco prestígio. Geralmente,ele o faz por meio da cultura solidária (doação,amizade, valorização do outro pela partilha e pelasocialização de objetos e instrumentos de traba-lho, etc.), ou, ainda, por um esforço individualpara dominar áreas em atividades consideradas fe-chadas e para as quais, apesar do esforço realizadopara adaptar-se à nova atividade profissional nomeio urbano, as respostas são insatisfatórias.

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Embora se concorde com os que afirmam es-tar a cidade enraizada nos hábitos e costumes daspessoas que a habitam, não se pode ignorar o fatode que, nesta mesma cidade, nas vilas e bairrosonde predomina a presença de migrantes rurais,está presente e bem conservada a marca do rural.Conserva-se a identidade dos atores sociais àimagem do seu contexto de origem. As casas e aforma de ocupação dos terrenos demonstramesta realidade.

É importante observar-se a ocupação do ter-reno. A família acostumada com a realidade daroça, apesar de sua dificuldade para transitar emespaço tão reduzido, reproduz, simbolicamente,o espaço que tinha no contexto de origem. Adistribuição do que entende como indispensá-vel, é bem significativo. A reserva de um espaçopara a horta é fundamental e é lá onde se encon-tram as mais diversas variedades de temperos,verduras e legumes, já que estes componentesnão podem estar ausentes no cardápio das refei-ções, assim como o uso de chás é recorrente,seja para deixar o chimarrão com um gosto todoespecial, seja para amenizar uma má digestão oualgo do gênero.

É muito comum observar-se em lugares oraestratégicos, ora exóticos do terreno, um pé decana-de-açúcar, alguns pés de aipim, pés de mi-lho de pipoca, etc. Há prioridade também paraas árvores frutíferas: um pé de laranjeira aqui,outro de limão mais ao fundo e, assim, o terrenovai ganhando ares de ruralidade. Dotar o terre-no, nos seus mínimos espaços, com produtosdessa natureza faz parte do ritual e da estratégiados migrantes para recriar, no novo contexto,parte da realidade vivenciada como agricultoresfamiliares.

No interior da casa, também é fácil identifi-car a presença do modo de vida anterior, seja pe-los quadros expostos na parede, seja pelos mó-veis rústicos, alguns deles remanescentes do lo-cal de origem, seja, ainda, pelos hábitos que fo-ram incorporados e adaptados às necessidadesdo novo contexto. Há outras marcas do rural,menos visíveis, porém zelosamente guardadaspelas donas da casa. Trata-se das caixas de foto-

grafias, muitas delas ainda em preto e branco;recordações de gerações passadas que marca-ram época pela coragem e determinação comque enfrentaram o seu tempo de vida. As “coi-sas antigas” espalham-se por todo o ambiente.É o testemunho da história e da existência dosque os precederam. E se estão preservadas, éporque a trajetória da família migrante tem umsentido todo especial. Em outras palavras, é aidentidade da família que está sendo preservada,recriada permanentemente, válida enquanto autopia for o horizonte dos atores sociais.

Conforme ensina Candido (1964), a passagemde um tipo de cultura a outro depende, em gran-de parte, para o seu êxito, do ritmo com que se dáa incorporação dos traços. O mesmo autor ensi-na, ainda, que, muitas vezes, os indivíduos e osgrupos se encontram em presença de novos valo-res, propostos ao seu comportamento e à suaconcepção de mundo, e que, para tal situação,podem ocorrer três soluções: a) os valores novospodem ser rejeitados e os antigos mantidos na ín-tegra; b) os valores novos podem ser aceitos embloco e os antigos, rejeitados; c) os valores anti-gos se combinam com os novos em proporçõesvariáveis. Para o presente estudo, a terceira possi-bilidade é a mais freqüente. Na maioria dos casos,os valores considerados válidos e prezados nomeio rural combinam-se com os valores preza-dos na cidade e com práticas de socializaçãodiferenciadas.

Contudo, se um ator social entender que é ne-cessário participar da diversidade e da pluralidadeda vida sociocultural, política e econômica da ci-dade, deverá abrir mão de particularidades restri-tas ao modo de vida anterior e subordinar partede sua individualidade às exigências do novomodo de vida, em sua dimensão social mais am-pla, participando, solidária e ativamente, no âm-bito da esfera pública. Todavia, na totalidade dasrepresentações sociais, manifesta-se uma profun-da interação entre o ator social, oriundo do meiorural, que opera suas ações em sintonia com o ou-tro, já plenamente identificado com o espaço vi-vido, desdobrando-se sempre no difícil equilíbrioentre o sonho e a realidade. As diferentes formas

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de representações interpenetram-se dialetica-mente, ora aproximando os atores sociais, oradistanciando-os.

A relação do migrante com nova realidade (navila, no bairro, na fábrica...) torna-se cada vezmais complexa e impessoal. A fábrica, por ser ocentro dinâmico e local de venda da mercadoriaforça de trabalho, converge, à sua volta, toda umarede de interesses, desde a expansão da sua esferade influência político-econômica até a atração deinvestimentos do Poder Público para melhoriaslocalizadas, relativas à infra-estrutura e ao sanea-

mento básico. Tão importante quanto a fábricana sua estrutura física externa, é o que aconteceno seu interior, na relação que se estabelece entrea parte que coloca à venda sua força de trabalho ea parte que se dispõe a comprá-la. Esse processo,de caráter essencialmente capitalista, de difícilcompreensão pela sua complexidade e dinamici-dade, esconde uma prática reprodutora de desi-gualdade e exclusão social. É um processo dinâ-mico, profundamente dialético, marcado portensões, articulações, encontros, desencontros ereencontros.

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Conclusão

Neste artigo, a intenção foi analisar, sumaria-mente, os aspectos mais significativos que mar-caram as múltiplas histórias de vida e de trabalhode agricultores familiares do contexto de origem(o meio rural) ao contexto de chegada (a cidade),e as implicações que tais mudanças provocaram,com base nas novas relações socioprofissionais,políticas e culturais, estabelecidas com o novoambiente de moradia e de trabalho. É, nesse con-texto, que se vivenciam conflitos e entendimen-tos entre os “do lugar” e os “de fora”, e destescom a elite político-econômica local. A cidademuda. O agricultor familiar também. Ambos, vis-tos antes e depois do processo migratório, nãosão mais os mesmos. Outras características lhesdão nova feição. A realidade será definida valen-do-se de novos parâmetros. O ritmo de vida fa-miliar dos “do lugar” perde a sua coerência, en-quanto os “de fora” se ressentem pela ausênciade um canto para estar só. Os motivos que osaproximam, podem ser os mesmos que os afas-tam. Nesses termos, a passagem da atividade liga-da à agricultura familiar para o trabalho assalaria-do é feita ao ritmo dos impactos que ela provocanos atores sociais envolvidos.

A facilidade de acesso aos meios de transpor-te, ao mercado, à farmácia, ao posto de saúde, àescola, enfim, a aspectos essenciais à vida daspessoas, confere à cidade uma vantagem signifi-cativa em relação ao meio rural, caracterizadopela distância de tudo e de todos. Nunca é demais

reforçar que o agricultor familiar, para conseguirboas safras, dependia, invariavelmente, de suadisposição para o trabalho, da generosidade danatureza, de preços compatíveis com os custosde produção e de uma relação qualificada com ocomerciante, alicerçada na honestidade e confi-ança mútua.

Aos poucos, aquele pacato agricultor acostu-mado à lida da roça, controlando sua jornada detrabalho pelo sol, observando as fases da luapara a melhor época do plantio, vê-se inseridonuma realidade em que sua presença passa des-percebida, tem o relógio como um instrumentoindispensável e seu reconhecimento, na empre-sa, será feito pelo número do seu crachá. Inicial-mente, tudo é novidade, curiosidade e aventura.Aos poucos, porém, este mesmo trabalhadordá-se conta de que a fábrica onde trabalha temum dono, regras rígidas e metas a serem cumpri-das, os horários de trabalho são predetermina-dos, enfim, percebe que, nesse espaço de traba-lho, ele não decide em nenhuma instância. Aocontrário, aprende desde cedo que é precisoobedecer. Mas esse ambiente de obediência esubmissão esconde também a possibilidade desubversão, ou seja, da aprendizagem individuale coletiva podem surgir a motivação e a determi-nação de investir no trabalho por conta própriaou de conquistar os direitos que só o coletivoorganizado poderá reivindicar com possibilida-de de sucesso.

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Page 41: Agricultura Familiar e Trabalho Assalariado Familiar e Trabalho Assalariado Estratégias de reprodução de agricultores familiares migrantes1 Armando Triches Enderle2 1 Versão resumida

Temas dos Cadernos IHU

Nº 01 – O imaginário religioso do estudante da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOSProf. Dr. Hilário Dick

Nº 02 – O mundo das religiões em CanoasProf. Dr. José Ivo Follmann (Coord.), MS Adevanir Aparecida Pinheiro, MS Inácio José Sphor & MS

Geraldo Alzemiro Schweinberger

Nº 03 – O pensamento político e religioso de José MartíProf. Dr. Werner Altmann

Nº 04 – A construção da telerrealidade: O Caso Linha Direta

Sonia Montaño

Nº 05 – Pelo êxodo da sociedade salarial: a evolução do conceito de trabalho em André GorzMS André Langer

Nº 06 – Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado – Gênese e dissolução do patriarcalismo escravista no Brasil: AlgumasconsideraçõesProf. Dr. Mário Maestri

Nº 07 – A Igreja Doméstica: Estratégias televisivas de construção de novas religiosidadesProf. Dr. Antônio Fausto Neto

Nº 08 – Processos midiáticos e construção de novas religiosidades. Dimensões históricasProf. Dr. Pedro Gilberto Gomes

Nº 09 – Religiosidade midiática: Uma nova agenda pública na construção de sentidos?Prof. Dr. Atíllio Hartmann

Nº 10 – O mundo das religiões em Sapucaia do SulProf. Dr. José Ivo Follmann (Coord.)

Nº 11 – Às margens juvenis de São Leopoldo: Dados para entender o fenômeno juvenil na regiãoProf. Dr. Hilário Dick (Coord.)