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Institucional Nossa Produção Imagens Links Fale Conosco Revista Eletrônica Tempo Presente Rede de Estudos Tempo Presente Digite aqui o que deseja buscar Quinta, 07 De Maio De 2015 - 15:44h Tweet 0 0 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades por: Durval Muniz de Albuquerque Júnior Professor Titular de Teoria da História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte “Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe este grito que ele e o lance a outro; de outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”. (Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto) Michel de Certeau pergunta: o que fabrica o historiador quando faz história? Querendo com isto ressaltar que o que faz o historiador é um trabalho; um trabalho de fabricação de uma narrativa, de um artefato escriturístico; um trabalho de fabricação dos acontecimentos do passado. Querendo com isto dizer que a historiografia é produto de uma operação, de uma atividade de atribuição de sentido aos eventos; a historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria o passado, buscando dar forma à mecânica que aceitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e espaço. Karl Marx, muito antes de Certeau, já havia falado do motor da história, da mecânica social, a qual caberia ao historiador, usando como instrumento o materialismo histórico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em suas engrenagens mais sutis. Embora tenham escrito seus textos em séculos distintos, Marx e Certeau parecem partilhar algumas metáforas, alguns topos lingüísticos, algumas imagenssímbolo da sociedade moderna, da sociedade industrial, quando se trata de pensar a atividade do historiador e as tarefas que este teria a cumprir socialmente. Nos dois autores, a historiografia, o texto de história, aparece como produto de uma atividade de manufatura, como uma atividade que remete ao maquínico, mesmo que seja em dimensões distintas: se para Marx as maquinações estavam na ordem social, faziam parte da realidade, do referente, do passado, do qual tratava o historiador, _ historiador que trazia para o interior de sua narrativa os modos como esta história se produzia e os modos de produção que davam movimento e eram o fundamento mesmo do devir histórico _, para Certeau as maquinações se davam na hora da fabricação da narrativa história. Esta não descobria na ordem social, no passado, na realidade, uma maquinaria já pronta, engrenagens perfeitamente identificáveis, mas as produzia com a matéria prima da linguagem, montando peça por peça versões do passado, que apareceria como um artefato fruto da indústria do historiador, de sua destreza, de sua perícia narrativa e profissional. Tendo a partilhar e, ao mesmo tempo, discordar desta aproximação entre a atividade do historiador e aquela realizada pelo trabalhador fabril, pelo trabalhador surgido com a grande indústria, pelo trabalhador surgido com a sociedade burguesa e capitalista; aproximação que tem conotações políticas claras e que visa questionar a separação feita, pelo mundo moderno, entre o trabalho manual e o trabalho intelectual: historiadores e operários seríamos todos trabalhadores, apenas trabalharíamos sobre matérias distintas e produziríamos produtos distintos e valorados socialmente de maneira distinta. Concordo com a idéia de que a historiografia é sim produto de um trabalho, de um trabalho de atribuição de sentido aos eventos, aos acontecimentos do passado. Concordo que o historiador exerce um trabalho de produção do passado, que este o fabrica como um artefato. Concordo que este exerce uma tarefa de produção de versões para aquilo que se passou, que produz sentido para os tempos, que dá a eles existência e consistência. Mas considero que o trabalho que realizamos não tem o caráter maquínico, o caráter fabril, o caráter plenamente moderno, que as imagens e metáforas usadas tanto por Certeau quanto por Marx parecem indicar. O trabalho do historiador me parece ter mais analogias com o trabalho artesanal do que com o trabalho na grande indústria. O historiador me parece habitar mais um atelier do que um espaço fabril. Considero que a atividade 76 Gosto Perfis do Tempo Presente CONHEÇAS OS PERFIS MARCANTES DA HISTÓRIA

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07/05/2015 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades

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Revista Eletrônica Tempo PresenteRede de Estudos Tempo Presente

Digite aqui o que deseja buscar Quinta, 07 De Maio De 2015 - 15:44h

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O Tecelão dos Tempos: o historiador comoartesão das temporalidades

O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades

por: Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Professor Titular de Teoria da História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

“Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe este grito que ele

e o lance a outro; de outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos”.

(Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto)

Michel de Certeau pergunta: o que fabrica o historiador quando faz história? Querendo com isto ressaltar que o que faz o

historiador é um trabalho; um trabalho de fabricação de uma narrativa, de um artefato escriturístico; um trabalho de

fabricação dos acontecimentos do passado. Querendo com isto dizer que a historiografia é produto de uma operação, de uma

atividade de atribuição de sentido aos eventos; a historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria o passado,

buscando dar forma à mecânica que aceitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e espaço. Karl Marx, muito

antes de Certeau, já havia falado do motor da história, da mecânica social, a qual caberia ao historiador, usando como

instrumento o materialismo histórico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em suas engrenagens mais sutis. Embora tenham

escrito seus textos em séculos distintos, Marx e Certeau parecem partilhar algumas metáforas, alguns topos lingüísticos,

algumas imagens­símbolo da sociedade moderna, da sociedade industrial, quando se trata de pensar a atividade do

historiador e as tarefas que este teria a cumprir socialmente. Nos dois autores, a historiografia, o texto de história, aparece

como produto de uma atividade de manufatura, como uma atividade que remete ao maquínico, mesmo que seja em

dimensões distintas: se para Marx as maquinações estavam na ordem social, faziam parte da realidade, do referente, do

passado, do qual tratava o historiador, _ historiador que trazia para o interior de sua narrativa os modos como esta história se

produzia e os modos de produção que davam movimento e eram o fundamento mesmo do devir histórico _, para Certeau as

maquinações se davam na hora da fabricação da narrativa história. Esta não descobria na ordem social, no passado, na

realidade, uma maquinaria já pronta, engrenagens perfeitamente identificáveis, mas as produzia com a matéria prima da

linguagem, montando peça por peça versões do passado, que apareceria como um artefato fruto da indústria do historiador, de

sua destreza, de sua perícia narrativa e profissional.

Tendo a partilhar e, ao mesmo tempo, discordar desta aproximação entre a atividade do historiador e aquela realizada pelo

trabalhador fabril, pelo trabalhador surgido com a grande indústria, pelo trabalhador surgido com a sociedade burguesa e

capitalista; aproximação que tem conotações políticas claras e que visa questionar a separação feita, pelo mundo moderno,

entre o trabalho manual e o trabalho intelectual: historiadores e operários seríamos todos trabalhadores, apenas

trabalharíamos sobre matérias distintas e produziríamos produtos distintos e valorados socialmente de maneira distinta.

Concordo com a idéia de que a historiografia é sim produto de um trabalho, de um trabalho de atribuição de sentido aos

eventos, aos acontecimentos do passado. Concordo que o historiador exerce um trabalho de produção do passado, que este o

fabrica como um artefato. Concordo que este exerce uma tarefa de produção de versões para aquilo que se passou, que produz

sentido para os tempos, que dá a eles existência e consistência. Mas considero que o trabalho que realizamos não tem o caráter

maquínico, o caráter fabril, o caráter plenamente moderno, que as imagens e metáforas usadas tanto por Certeau quanto por

Marx parecem indicar. O trabalho do historiador me parece ter mais analogias com o trabalho artesanal do que com o trabalho

na grande indústria. O historiador me parece habitar mais um atelier do que um espaço fabril. Considero que a atividade

76Gosto

Perfis do Tempo Presente

CONHEÇAS OS PERFISMARCANTES DA HISTÓRIA

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07/05/2015 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades

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historiadora tem maior proximidade com a paciente e meticulosa atividade manual exercida por tecelões, bordadeiras,

rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras. Atividades que têm maior proximidade com o universo definido como feminino do que

com as atividades fabris identificadas como pertencentes ao universo masculino.

Nascido em sociedades onde o trabalho da maquinofatura estava ausente, o saber histórico parece partilhar do universo

cultural em que as atividades artesanais eram aquelas que centralizavam as atividades de trabalho e que garantiam a

reprodução material da sociedade. Nascido para garantir a reprodução da memória e do poder dos setores sociais dominantes

nas sociedades da antiguidade clássica européia, a historiografia parece ter sido pensada e praticada como uma forma de

trabalho artesanal que tomava como matéria prima os restos, os fragmentos de narrativas sobre o passado e sobre o presente,

que podiam ser recolhidos e submetidos a um trabalho de enredamento, que podiam ser tramados de forma a dar um passado

para estes povos e, ao mesmo tempo, permitir que estes restos ganhassem sobrevida e pudessem chegar às futuras gerações,

onde exerceriam um papel pedagógico, transmitindo as experiências das gerações passadas, garantindo o aperfeiçoamento

progressivo destas sociedades. Se na narrativa homérica Penélope tecia um infindável enxoval enquanto aguardava a volta de

seu Ulisses amado e ludibriava os candidatos a sua mão real desmanchando toda a noite o que havia tecido, garantindo assim

uma espécie de paralisia do tempo, fazendo com que o tempo adotasse uma forma circular tal como a forma da roca que

manipulava durante todo o dia, na narrativa de Heródoto ele é o tecelão que articula aquilo que viu e aquilo que ouviu sobre o

passado e sobre o presente, sobre os gregos e sobre os bárbaros, num tecido que se projeta para o futuro, para que as futuras

gerações não esquecessem as maravilhas praticadas por seus antecessores. Ele não narra uma viagem de um personagem

lendário, ele é o viajante, que em seu perambular por todas as cidades da península e por cidades e povos desconhecidos vai

tecendo, vai urdindo, vai fazendo com que estes pontos desconhecidos se articulem numa geografia inteiriça. Heródoto, o

histor, é aquele que conecta povos e lugares que se desconheciam, é aquele que conecta lenda, mito e testemunho, é aquele que

articula os tempos, o passado com o presente e este com o futuro. No seu deambular de viajante e em sua narrativa vai tecendo

uma identidade unificada para os gregos, do presente e do passado, e os vai distinguindo e apartando de outra figura que tece

como sendo unificada e homogênea: o bárbaro.

Heródoto, herdeiro dos aedos, tece uma narrativa que seja encantadora para os ouvidos, que, assim como o canto das sereias

homéricas, possa arrastar os ouvintes para a praça pública, para a ágora, possa produzir o estado de encantamento e, ao

mesmo tempo, a sensação de comunhão em um todo. Como uma artesã do patchwork, Heródoto de Halicarnasso costura

fragmentos, pedaços de lendas, de mitos, com pedaços de narrativas factuais, de testemunhos, de memórias, dando a este caos

sarapintado uma coerência, uma ordem, uma aparente coesão. O seu instrumento de trabalho não é o fuso ou a roca, nem

mesmo o cesto ou a ânfora, mas as palavras, a escrita em prosa. O prosear, o contar, o narrar é a arte que permite a tecelagem

do passado, é a arte que permite inventar o passado, que permite dar forma aos tempos, que possibilita o registro do que se

passou procurando entender­se como se passou. Trabalho de ordenamento e de racionalização do vivido, a história nasce como

este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os

monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam

compreensão e sentido. O historiador, como a bordadeira, ao final de suas atividades de pesquisa, tem à sua frente uma cesta

cheia de documentos, de relatos, de imagens, de escritos, de narrativas, de variadas cores e tonalidades, misturados de forma

caótica. É ele, como faz a profissional do bordado, que submete este caos a uma ordem, a um desenho, a um plano, a um

projeto, a um molde, a um modelo, que deve ser previamente pensado. Assim como no bordado existirão aquelas laçadas,

aqueles pontos, aquelas amarrações, que serão fundamentais para que o desenho se sustente e se faça, na narrativa

historiográfica existirá ­ o que não por mera coincidência se chamará de fio condutor, de fio da meada ­ o problema, a questão,

o objetivo, que deve ser perseguido e deve estar presente durante toda a narrativa. Sem o problema, sem a tese, sem um

argumento central a expor e defender, a narrativa historiográfica não perderá seu caráter fragmentário, não passará de uma

crônica, de um arrolar de eventos e de suas datações, um amontoado de fatos coloridos, dispersos e dispostos aleatoriamente.

Mesmo que no mundo contemporâneo, mesmo que, desde o século XVIII, paralelamente à implantação da sociedade

industrial, da produção maquinofatora, a história tenha passado a reivindicar a condição de ciência, se pensando como um

saber metódico, presidido por regras ditadas a partir de um modelo que eram as ciências ditas naturais, buscando tornar­se

uma máquina de produzir e dizer a verdade sobre o passado, pretendendo remontá­lo tal como ocorreu, a historiografia não

conseguiu superar suas origens artesanais, a narrativa historiográfica não conseguiu expurgar suas dimensões artísticas,

literárias e poéticas, artesanatos da e na linguagem. O historiador não é um trabalhador de linha de montagem, mesmo que

muitas vezes nossos sindicatos assim raciocinem; não predomina no trabalho historiográfico, pelo menos até esta data, os

modelos fordista ou toyotista de organização do trabalho. O trabalho do historiador ainda se faz, em grande medida, de forma

individual e isolada, dentro de seu atelier, de sua casa, de sua biblioteca, de sua sala ou quarto de estudos. O historiador tem

uma jornada de trabalho que, em grande medida, ele ainda controla, notadamente se trabalha para o setor público. O

historiador obedece a um tempo de trabalho que pode ser bastante extenso, não tendo uma jornada fixa a cumprir; seu

trabalho pode se estender por dias e noites inteiras, e sua jornada de trabalho está sujeita a muitas porosidades temporais,

podendo tanto trabalhar por horas seguidas, quanto entremear seu trabalho com tempos de descanso ou com outras formas de

atividade. O tempo intensivo e sem porosidade que persegue a organização fabril encontra aqui resistências em se instalar,

por mais que sejamos convocados pelas agências financiadoras e pelas instituições onde trabalhamos a produzirmos cada vez

mais e em menos tempo.

Embora necessite, cada vez mais, de um grande número de outros profissionais, e não consiga fazer seu trabalho sem que

outros historiadores já tenham escrito, afinal tal como os galos na madrugada, um historiador sozinho não tece um amanhã,

após a leitura de uma grande quantidade de outros textos, de fazer com eles um trabalho artesanal de pesca, de caça ou mesmo

de furto, um trabalho de meticuloso esquartejamento dos textos em notas e fichamentos, é o historiador em sua solidão que

vai costurar todos aqueles fragmentos, fazê­los aparecer como se fizessem parte de um mesmo tecido; mesmo que pequenos

pontos remetam para a barra da página onde estarão suspensas, penduradas, quase caindo, as referências, as notas de rodapé,

que procuram enunciar alguns dos fios que ali foram urdidos e tendo a função de chamar atenção e legitimar a perícia de

quem teceu a trama, pois quanto mais esta não deixar aparecer em sua frente os nós, as amarrações, as laçadas, as linhas

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07/05/2015 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades

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arrepiadas e cortadas a dente que compõem o desenho do passado que aparece a nossa frente em sua inteireza e em sua

perfeita articulação, mais hábil em seu ofício será considerado o historiador que a tramou.

Embora, como dirá Blanchot, escrevamos em uma solidão povoada por presenças do presente e do passado, embora muitos

espectros venham se sentar conosco em nossa mesa de trabalho, a forja do texto do historiador, tal como a ferramenta feita

pelo ferreiro, é produto de seu trabalho individual, de sua habilidade no uso dos instrumentos necessários à elaboração da

escritura da história, é ele que usa sozinho os seus martelos, suas bigornas e seus foles, é ele que reaquece os fragmentos do

passado, que lhes infunde calor, vida, para que ganhem liga, se soldem, venham a se amalgamarem em um todo, em uma

unidade de sentido. Sem o sopro de vida das narrativas historiográficas, as brasas que restaram do fogo das batalhas do

passado, das fogueiras das vaidades ou das revoluções, e que jazem ainda crepitando mortiças sob as cinzas do tempo, fagulhas

de esperanças, de projetos, de desejos, de sonhos, restos das chamas das paixões e das rebeliões humanas, não voltariam a

brilhar, a crepitar, a queimar em nosso tempo, a nossa carne e a nossa consciência. Como dirá Walter Benjamin, o historiador

é aquele que tem a função messiânica de colher, como um jardineiro, as últimas flores da esperança que, embora murchas e já

sem perfume, ainda teimam em permanecerem balançando sob o vento dos tempos, ainda tremulam como bandeiras que

simbolizaram, que foram o escudo e a heráldica, que marcharam à frente dos exércitos de vencidos de todos os tempos. O

historiador é a carpideira que, ao mesmo tempo, chora e louva os mortos, que num gesto de carinho para com os que se foram,

os veste de novo para um ato inaugural, os faz novamente vir para o centro da sala, para a frente do cortejo, os faz levantar a

fronte e novamente falarem, vociferarem, imprecarem, readquirindo o direito à fala e a dirigem seu próprio enterro, a

simularem o controle sobre a versão de sua própria vida, da sua própria memória. A carpintaria do passado, portanto, é obra

do historiador, ele é o carpina que de posse dos escombros que o passado deixou, os submete a um trabalho de corte, de

rejuntamento, de limagem, de aparas, de encaixe e aprumo que os põem novamente para funcionarem como acesso ao que foi,

como porta ou janela por onde podemos espiar ou adentrar a dramaturgia dos tempos idos. O historiador é um padeiro que

faz, com aparas das atitudes, dos costumes, das ações das massas, fermentar novas imagens dos tempos, que servem de

alimento para nossos sonhos de continuidade, para nossa fome de identidade, para nossa inanição de sentidos para vida, para

o estarmos aqui na terra, para a nossa existência finita e ilimitada. A história pode ser delicioso pão que alimenta nossas

vaidades, nossa onipotência, nossos preconceitos, que explica e justifica nossas desigualdades e diferenças, mas pode ser

também o licor amargo que tragamos para nos darmos conta de nossas veleidades, de nossos crimes, de nossas injustiças, de

nossas ignomínias, de tudo que nos amarga a existência individual e coletiva. Historiador, o cozinheiro do tempo, aquele que

traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de

outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural. “Sempre o pirão de farinha da história”. Farinha

moída pelos moinhos do tempo, grãos minúsculos de tempos que podem vir a fazer liga, podem vir a se espessarem, a

engrolarem, a se escaldarem, sob a atividade concentrada, vigorosa, da pá do historiador. Pá feita de letras, habilidade

narrativa, vórtice da linguagem a tragar, misturar e conectar todos estes grãos de tempo, linguagem a produzir a

transubstanciação dos elementos que captura, experiências humanas reexperimentadas, provas novamente provadas, o

estranho que se encontra, o sentido que se transporta, metáforas a fazerem o trânsito entre o indizível e o dizível, o ontem e o

hoje, o assignificante e o significado, o reaquecer do esquecido dando novamente caldo, fazendo vir à tona, emergir, borbulhar

depósitos de tempo, camadas de acontecimentos que, sedimentadas, adormecidas no fundo do caldeirão da história, voltam

novamente a circularem, a exalarem sentidos e valores, projetos e desejos, voltam a ser o prato do dia.

O historiador ainda realiza todas as etapas de seu trabalho. Aqui o parcelamento das tarefas e a alienação do trabalho ainda

não fizeram a sua aparição de forma completa. Embora cada vez mais trabalhemos em equipe e sejam deixadas para os

bolsistas de iniciação científica as tarefas mais duras e inóspitas, como levantar, fichar, copiar ou digitalizar aquela

documentação coberta de poeira e veneno, infestada de fungos e tomada pelo mofo, aquele jornal que se rasga só de pegar em

suas páginas – pois, na oficina da história a hierarquia entre mestres e aprendizes também está presente, de forma rigorosa,

se manifestando na diferença de remuneração, na hierarquia de poder e saber, no tipo de atividade que cada um exerce,

sendo a relação orientador­bolsista uma relação de exploração mascarada pelo caráter pedagógico e educativo de que se

reveste, tal como acontecia nas corporações medievais ­ o historiador ainda detém, ou pelo menos deve deter, o conhecimento

sobre todas as etapas que compõem a sua atividade e deve possuir um saber fazer, uma sabedoria, que deve ter nascido da

prática, do freqüentar os arquivos, do resumir documentos e bibliografia, do escrever notas parciais, até do redigir o artigo ou

o livro. Aprendizes de historiador têm que enfiar a mão na massa, têm que praticar cada etapa do ofício, sob pena de nada

aprender.

O fazer historiográfico não se aprende apenas nos bancos escolares, não se aprende apenas ouvindo ou lendo como se faz, não

se aprende lendo manuais de metodologia ou de técnicas de pesquisa. A formação do historiador tem que ter uma dimensão

prática, tem que ser tomada como o que me parece ser, o aprendizado de uma arte, de um artesanato, o aprendizado de um

saber fazer que exige treinamento, realização e repetição das tarefas, permanente crítica e aperfeiçoamento daquilo que faz, a

busca de uma virtuosidade, de uma destreza manual e intelectual. A historiografia exige o exercitar da imaginação, da

capacidade de estabelecer conexões entre os estilhaços do passado, de preencher as lacunas entre os eventos, necessita do

exercício da capacidade de ficcionalizar, de intuir articulações naquilo que só nos chega em pedaços. O trabalho historiográfico

exige, sobretudo, a destreza narrativa, a capacidade de contar uma boa história, exige o desenvolvimento da capacidade de

enredar eventos, de elaborar boas tramas. O historiador, assim como as rendeiras, deve saber conectar os fios, amarrar os nós,

respeitando os vazios e silêncios que também constituem o desenho do passado, o entramado dos tempos. Para fazê­lo deve

submeter­se ao treinamento constante da habilidade de desfiar a narrativa, de utilizar as linhas de que dispõe para aí urdir

versões do passado, discursar sobre o que ocorreu numa dada época. Como toda habilidade artesanal só se aprende a escrever

história escrevendo, praticando, agindo por ensaio e erro, abusando da repetição, buscando o adestramento necessário,

elaborando várias versões do mesmo texto, corrigindo­o, rasurando­o, refazendo­o, escrevendo versões sucessivas.

Como toda atividade artesanal o trabalho do historiador leva­o a sujar as mãos, implica uma relação corpo a corpo,

subjetividade a subjetividade, com o seu material de trabalho. O historiador se mistura e sai com as roupas, o corpo e a alma

marcados pelo seu material de trabalho, pelos acontecimentos, pelas vidas e ações que vem a pôr em cena. Assim como as

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07/05/2015 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades

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mãos e o corpo do artesão, a subjetividade do historiador sai calejada ou cheia de cicatrizes de seus encontros com as vidas

humanas, com as lutas, com as ilusões e desilusões daqueles que vieram nos anteceder. O trabalho do historiador, nestes

tempos que correm, se aproxima do trabalho do lixeiro, a apanhar os restos do que sobrou dos sonhos e grandes projetos e

promessas que já pretenderam ser o sentido do processo histórico. O historiador na pós­modernidade é um profissional

dedicado à reciclagem das versões do passado, dos sonhos dos homens, das utopias falhadas, das grandes profecias malogradas.

É alguém que, de posse das latas e garrafas vazias das grandes promessas da história, agora atiradas num canto, amassadas,

enferrujadas, chutadas sem cerimônia pelos passantes, as submete a um trabalho de reprensagem, de releitura, de redefinição

de sentido e utilidade, versões do passado que depois de passarem por um trabalho de desconstrução, de seleção, de

modelagem, voltam a estar cheias de saber e de sabor, voltam a fazer sentido, voltam a influenciar a vida dos homens de hoje,

que as podem tragar por terem novo valor.

A alienação do trabalho tem dificuldade de se fazer presente em nosso ofício. Ao acabar seu trabalho o historiador ainda pode

sentir e ver a obra como sua, ele ainda pode colocar acima da capa do livro o seu nome de autor, ainda pode dizer este é o meu

livro, o artigo que escrevi, este resumo em anais é de minha lavra. Ele vê seu rosto projetado sobre o que faz, se vê refletido no

texto que acaba de escrever, se sente de posse do saber que ali foi plasmado, se sente proprietário daquele texto, até que

alguma editora venha comprar a preço vil seus direitos autorais, que passam a pertencer a outro por, pelo menos, cinqüenta

anos.

Tal como no artesanato, o trabalho historiográfico é marcado pela super­exploração em todas as suas etapas. Poderíamos dizer

que temos aqui a presença da extração da mais valia absoluta. O texto do historiador tem, como o artefato fabricado por um

artesão, valor de uso, mas também, cada vez mais, valor de troca. O escrito do historiador é consumido pelo saber que encerra,

pelas informações que veicula, pelas elaborações éticas, estéticas e políticas que formula, pelos modelos subjetivos que fornece,

pelo prazer ou fruição que pode oferecer, pelos elementos de identidade e de localização temporal e espacial que constrói, esse

é o seu valor de uso. Mas não podemos esquecer que hoje o texto do historiador é também um objeto de mercado. Muitos deles

visam a atender a demanda que vem das editoras, das empresas educacionais, da mídia, do público consumidor deste gênero,

o que não os torna necessariamente ruins ou suspeitos. Mas quero chamar atenção para o fato de que, o historiador, tal como o

artesão, o produtor direto, realiza, quase sempre, uma troca bastante desigual quando seu produto é colocado à venda. O texto

do historiador, como o objeto fabricado pelo artesão, exige muitas horas de trabalho, é um produto que exige um trabalho

extensivo, mas que será adquirido por preços que estão muito longe de corresponder ao tempo gasto para sua produção. O

mesmo vai dar­se na relação entre pesquisadores e auxiliares de pesquisa, estes realizam as tarefas mais árduas e são

remunerados de maneira vergonhosa. O trabalho do historiador, como o de qualquer artesão, senão penaliza o corpo com a

intensividade do trabalho fabril, submetendo­o a velocidade da máquina, da linha de montagem, cobra do corpo a submissão a

longas permanências em dadas posições, a repetição de dados gestos, a tensão permanente de quem está em estado de criação,

de quem está concentrado num trabalho de invenção. Este desgaste excessivo do corpo não é levado em conta na hora de se

remunerar seu trabalho, pois este é visto como um trabalho leve, como uma atividade cerebral, mental, que não exige ou

desgasta a sua força de trabalho.

Como todo trabalho artesanal o ofício do historiador exige atenção para o detalhe, o debruçar­se sobre o material singular e

raro que se tem a frente. Como diz Michel Foucault, a raridade é a característica do que chamamos de fontes para o nosso

trabalho. Ao contrário do aguadeiro, quando o historiador vai às fontes não é para encontrar aí abundância e refrigério, mas

escassez e trabalho árduo. O historiador é um bricoleur que tem que dar forma a seus objetos a partir de cacos, de fragmentos,

de restos, de rastros, de sinais. Para pôr de pé seus sujeitos e seus objetos tem que ser especialista no uso da cola da

imaginação histórica, tem que ser um exímio costureiro dos retalhos de tempos que tem em suas mãos, tem que ser um

experimentado ventríloquo para tentar falar por aqueles que as vozes já se calaram, tem que partilhar a habilidade da

bordadeira para com as linhas coloridas da teoria e da metodologia conseguir dar forma a um desenho, a uma configuração do

passado, ordenando o caos dos eventos que deixaram suas marcas em alguma forma de registro.

Aqui, diante de vocês que são aprendizes deste artesanato, que estão dando os primeiros passos para o conhecimento dos

mistérios que habitam a oficina da história, queria apelar para que resistamos a fazer da historiografia uma produção

industrial ou fabril, uma produção em série, uma produção afeita apenas às leis do mercado, uma mercadoria a mais nas

prateleiras repletas de receitas de auto­ajuda. É preciso que reafirmemos o caráter artesanal, artístico de nosso ofício. Não os

convido a se tornarem ludistas, não precisamos quebrar as máquinas para que nossa arte de inventar o passado possa ser

praticada. Os computadores fazem aquilo que os ordenamos. Embora em espanhol chamem­se ordenadores, quem tem o

poder sobre eles ainda somos nós. Devemos lembrar que a pretensão de tornar a história uma ciência objetiva, metódica,

racional, realista, verista, essencialista é contemporânea à emergência da sociedade capitalista industrial, da sociedade das

máquinas e do trabalho fabril. Muitos desejaram ser operários da história, tanto ao escrevê­la, como ao praticá­la, apostando

na sua refabricação, maquinando o desvendamento de suas engrenagens e a mudança da roda que a presidiria, se apossando

de seu motor e fazendo nele uma revolução a todo vapor e com muita energia. Homens de ferro e de nervos de aço em busca

de implantarem de vez o futuro maquinado, fazendo o processo histórico atingir a máxima aceleração, estabelecendo um corte

definitivo com o passado, para estancar num eterno presente, anulando de vez o tempo, este nosso grande inimigo. Apostaram

na técnica e na ciência como capazes de trazer a igualdade e a liberdade. Este sonho ruiu, mas como artesãos das cinzas, dos

pedaços de muros derrubados e de estátuas caídas dos pedestais, os historiadores são convocados hoje a reunirem o que

sobrou destes sonhos, destes desejos, destas ilusões, destas utopias, destas fantasias, e com eles conseguirem dar forma a novos

cenários para o presente e para o futuro. Abdicando de fazer da história uma grande usina de sonhos, mas regando a pequena,

modesta, localizada, mas insubstituível flor da esperança que nasce em pequenos canteiros por todo mundo. História que não

recusa as migalhas, mas que com elas tenta pacientemente dar forma as temporalidades, agrupando­as num trabalho poético

sobre a matéria da empiria e da utopia. Materialismo poético, mais do que dialético, contrários que não se resolvem em

unidades, mas que revolvem as unidades e as unanimidades. História como fabricação de objetos e sujeitos, como invenção

incessante de formas para o passado, de tecelagem permanente dos tempos. Trabalho e arte comprometidos com discussões

políticas, éticas e estéticas. A oficina do historiador se abrindo para aqueles que foram marginalizados pela sociedade do

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07/05/2015 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades

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trabalho e dos trabalhadores, aqueles que nunca foram vistos como sujeitos do passado ou do futuro, aqueles que nunca

contaram, aqueles que nunca valeram nada por não se dedicarem ao que seria o fundamento de nossa sociedade: o trabalho.

Uma oficina que não mata gatos, mas aberta a gatos e ratos, aberta a mulheres, crianças, prostitutas, boêmios, ladrões,

sodomitas, loucos, bruxas, presos, artistas, saltimbancos, palhaços de ofício e na vida. Uma história que não se dirige apenas à

razão, à consciência, mas que dá lugar aos sentimentos, aos sentidos, às paixões, aos desejos, aos delírios. Uma história que

abandone sua paixão trágica pela desgraça, pelo sofrimento, pela morte. Que não deixe de falar das injustiças, das misérias, da

exploração, mas que seja capaz de ver que aí também há o riso, a alegria, a felicidade. Tudo o que desejo é que vocês sejam

felizes praticando o ofício de historiador, fazendo dele a maior arte que pode ser praticada por cada um de nós, arte bem

brasileira, a de driblar com luta, resistência, determinação, coragem, sabedoria e saber todas as situações, forças, relações

sociais e de poder, as formulações culturais e simbólicas que nos tentam fazer desistir da vida e de nela ser felizes. Ao poder,

ao capitalismo interessa pessoas infelizes, deprimidas, melancólicas porque submissas, submetidas, derrotadas e prontas a

comprar a mais nova droga que o mercado oferecer. Façam de seu ofício sua droga diária, faça da história e da arte de tecer o

passado seu prozac de todas as horas e com muito amor e humor vocês resistirão à fábrica de deprimidos que se tornou a

sociedade burguesa. Resistam encantando a vida, dando a ela arte e astúcia, tomem ciência de que só fazendo da vida e da

história uma arte, tanto como fazem os artistas ou como fizemos todos quando meninos, é que seremos felizes. Que vocês

sejam, como historiadores, artistas e arteiros, é tudo o que desejo para aprendizes de feiticeiro no atelier da história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BLANCHOT, Maurice. A conversa Infinita. São Paulo. Escuta. 2008.

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_________________. As palavras e as coisas. São Paulo. Martins Fontes. 1999.

MARX, Karl. Manuscritos econômico­filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo. Boitempo. 2004.

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades.

Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº19, Rio, 2009 [ISSN 1981­3384]