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07/05/2015 O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades
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Digite aqui o que deseja buscar Quinta, 07 De Maio De 2015 - 15:44h
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O Tecelão dos Tempos: o historiador comoartesão das temporalidades
O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das temporalidades
por: Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Professor Titular de Teoria da História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
“Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe este grito que ele
e o lance a outro; de outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos”.
(Tecendo a manhã, João Cabral de Melo Neto)
Michel de Certeau pergunta: o que fabrica o historiador quando faz história? Querendo com isto ressaltar que o que faz o
historiador é um trabalho; um trabalho de fabricação de uma narrativa, de um artefato escriturístico; um trabalho de
fabricação dos acontecimentos do passado. Querendo com isto dizer que a historiografia é produto de uma operação, de uma
atividade de atribuição de sentido aos eventos; a historiografia seria uma maquinaria narrativa que usinaria o passado,
buscando dar forma à mecânica que aceitaria os processos que se desenrolaram em dado tempo e espaço. Karl Marx, muito
antes de Certeau, já havia falado do motor da história, da mecânica social, a qual caberia ao historiador, usando como
instrumento o materialismo histórico, desvendar, enunciar, fazer aparecer em suas engrenagens mais sutis. Embora tenham
escrito seus textos em séculos distintos, Marx e Certeau parecem partilhar algumas metáforas, alguns topos lingüísticos,
algumas imagenssímbolo da sociedade moderna, da sociedade industrial, quando se trata de pensar a atividade do
historiador e as tarefas que este teria a cumprir socialmente. Nos dois autores, a historiografia, o texto de história, aparece
como produto de uma atividade de manufatura, como uma atividade que remete ao maquínico, mesmo que seja em
dimensões distintas: se para Marx as maquinações estavam na ordem social, faziam parte da realidade, do referente, do
passado, do qual tratava o historiador, _ historiador que trazia para o interior de sua narrativa os modos como esta história se
produzia e os modos de produção que davam movimento e eram o fundamento mesmo do devir histórico _, para Certeau as
maquinações se davam na hora da fabricação da narrativa história. Esta não descobria na ordem social, no passado, na
realidade, uma maquinaria já pronta, engrenagens perfeitamente identificáveis, mas as produzia com a matéria prima da
linguagem, montando peça por peça versões do passado, que apareceria como um artefato fruto da indústria do historiador, de
sua destreza, de sua perícia narrativa e profissional.
Tendo a partilhar e, ao mesmo tempo, discordar desta aproximação entre a atividade do historiador e aquela realizada pelo
trabalhador fabril, pelo trabalhador surgido com a grande indústria, pelo trabalhador surgido com a sociedade burguesa e
capitalista; aproximação que tem conotações políticas claras e que visa questionar a separação feita, pelo mundo moderno,
entre o trabalho manual e o trabalho intelectual: historiadores e operários seríamos todos trabalhadores, apenas
trabalharíamos sobre matérias distintas e produziríamos produtos distintos e valorados socialmente de maneira distinta.
Concordo com a idéia de que a historiografia é sim produto de um trabalho, de um trabalho de atribuição de sentido aos
eventos, aos acontecimentos do passado. Concordo que o historiador exerce um trabalho de produção do passado, que este o
fabrica como um artefato. Concordo que este exerce uma tarefa de produção de versões para aquilo que se passou, que produz
sentido para os tempos, que dá a eles existência e consistência. Mas considero que o trabalho que realizamos não tem o caráter
maquínico, o caráter fabril, o caráter plenamente moderno, que as imagens e metáforas usadas tanto por Certeau quanto por
Marx parecem indicar. O trabalho do historiador me parece ter mais analogias com o trabalho artesanal do que com o trabalho
na grande indústria. O historiador me parece habitar mais um atelier do que um espaço fabril. Considero que a atividade
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CONHEÇAS OS PERFISMARCANTES DA HISTÓRIA
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historiadora tem maior proximidade com a paciente e meticulosa atividade manual exercida por tecelões, bordadeiras,
rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras. Atividades que têm maior proximidade com o universo definido como feminino do que
com as atividades fabris identificadas como pertencentes ao universo masculino.
Nascido em sociedades onde o trabalho da maquinofatura estava ausente, o saber histórico parece partilhar do universo
cultural em que as atividades artesanais eram aquelas que centralizavam as atividades de trabalho e que garantiam a
reprodução material da sociedade. Nascido para garantir a reprodução da memória e do poder dos setores sociais dominantes
nas sociedades da antiguidade clássica européia, a historiografia parece ter sido pensada e praticada como uma forma de
trabalho artesanal que tomava como matéria prima os restos, os fragmentos de narrativas sobre o passado e sobre o presente,
que podiam ser recolhidos e submetidos a um trabalho de enredamento, que podiam ser tramados de forma a dar um passado
para estes povos e, ao mesmo tempo, permitir que estes restos ganhassem sobrevida e pudessem chegar às futuras gerações,
onde exerceriam um papel pedagógico, transmitindo as experiências das gerações passadas, garantindo o aperfeiçoamento
progressivo destas sociedades. Se na narrativa homérica Penélope tecia um infindável enxoval enquanto aguardava a volta de
seu Ulisses amado e ludibriava os candidatos a sua mão real desmanchando toda a noite o que havia tecido, garantindo assim
uma espécie de paralisia do tempo, fazendo com que o tempo adotasse uma forma circular tal como a forma da roca que
manipulava durante todo o dia, na narrativa de Heródoto ele é o tecelão que articula aquilo que viu e aquilo que ouviu sobre o
passado e sobre o presente, sobre os gregos e sobre os bárbaros, num tecido que se projeta para o futuro, para que as futuras
gerações não esquecessem as maravilhas praticadas por seus antecessores. Ele não narra uma viagem de um personagem
lendário, ele é o viajante, que em seu perambular por todas as cidades da península e por cidades e povos desconhecidos vai
tecendo, vai urdindo, vai fazendo com que estes pontos desconhecidos se articulem numa geografia inteiriça. Heródoto, o
histor, é aquele que conecta povos e lugares que se desconheciam, é aquele que conecta lenda, mito e testemunho, é aquele que
articula os tempos, o passado com o presente e este com o futuro. No seu deambular de viajante e em sua narrativa vai tecendo
uma identidade unificada para os gregos, do presente e do passado, e os vai distinguindo e apartando de outra figura que tece
como sendo unificada e homogênea: o bárbaro.
Heródoto, herdeiro dos aedos, tece uma narrativa que seja encantadora para os ouvidos, que, assim como o canto das sereias
homéricas, possa arrastar os ouvintes para a praça pública, para a ágora, possa produzir o estado de encantamento e, ao
mesmo tempo, a sensação de comunhão em um todo. Como uma artesã do patchwork, Heródoto de Halicarnasso costura
fragmentos, pedaços de lendas, de mitos, com pedaços de narrativas factuais, de testemunhos, de memórias, dando a este caos
sarapintado uma coerência, uma ordem, uma aparente coesão. O seu instrumento de trabalho não é o fuso ou a roca, nem
mesmo o cesto ou a ânfora, mas as palavras, a escrita em prosa. O prosear, o contar, o narrar é a arte que permite a tecelagem
do passado, é a arte que permite inventar o passado, que permite dar forma aos tempos, que possibilita o registro do que se
passou procurando entenderse como se passou. Trabalho de ordenamento e de racionalização do vivido, a história nasce como
este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno, solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os
monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como esfinges, pedem deciframento, solicitam
compreensão e sentido. O historiador, como a bordadeira, ao final de suas atividades de pesquisa, tem à sua frente uma cesta
cheia de documentos, de relatos, de imagens, de escritos, de narrativas, de variadas cores e tonalidades, misturados de forma
caótica. É ele, como faz a profissional do bordado, que submete este caos a uma ordem, a um desenho, a um plano, a um
projeto, a um molde, a um modelo, que deve ser previamente pensado. Assim como no bordado existirão aquelas laçadas,
aqueles pontos, aquelas amarrações, que serão fundamentais para que o desenho se sustente e se faça, na narrativa
historiográfica existirá o que não por mera coincidência se chamará de fio condutor, de fio da meada o problema, a questão,
o objetivo, que deve ser perseguido e deve estar presente durante toda a narrativa. Sem o problema, sem a tese, sem um
argumento central a expor e defender, a narrativa historiográfica não perderá seu caráter fragmentário, não passará de uma
crônica, de um arrolar de eventos e de suas datações, um amontoado de fatos coloridos, dispersos e dispostos aleatoriamente.
Mesmo que no mundo contemporâneo, mesmo que, desde o século XVIII, paralelamente à implantação da sociedade
industrial, da produção maquinofatora, a história tenha passado a reivindicar a condição de ciência, se pensando como um
saber metódico, presidido por regras ditadas a partir de um modelo que eram as ciências ditas naturais, buscando tornarse
uma máquina de produzir e dizer a verdade sobre o passado, pretendendo remontálo tal como ocorreu, a historiografia não
conseguiu superar suas origens artesanais, a narrativa historiográfica não conseguiu expurgar suas dimensões artísticas,
literárias e poéticas, artesanatos da e na linguagem. O historiador não é um trabalhador de linha de montagem, mesmo que
muitas vezes nossos sindicatos assim raciocinem; não predomina no trabalho historiográfico, pelo menos até esta data, os
modelos fordista ou toyotista de organização do trabalho. O trabalho do historiador ainda se faz, em grande medida, de forma
individual e isolada, dentro de seu atelier, de sua casa, de sua biblioteca, de sua sala ou quarto de estudos. O historiador tem
uma jornada de trabalho que, em grande medida, ele ainda controla, notadamente se trabalha para o setor público. O
historiador obedece a um tempo de trabalho que pode ser bastante extenso, não tendo uma jornada fixa a cumprir; seu
trabalho pode se estender por dias e noites inteiras, e sua jornada de trabalho está sujeita a muitas porosidades temporais,
podendo tanto trabalhar por horas seguidas, quanto entremear seu trabalho com tempos de descanso ou com outras formas de
atividade. O tempo intensivo e sem porosidade que persegue a organização fabril encontra aqui resistências em se instalar,
por mais que sejamos convocados pelas agências financiadoras e pelas instituições onde trabalhamos a produzirmos cada vez
mais e em menos tempo.
Embora necessite, cada vez mais, de um grande número de outros profissionais, e não consiga fazer seu trabalho sem que
outros historiadores já tenham escrito, afinal tal como os galos na madrugada, um historiador sozinho não tece um amanhã,
após a leitura de uma grande quantidade de outros textos, de fazer com eles um trabalho artesanal de pesca, de caça ou mesmo
de furto, um trabalho de meticuloso esquartejamento dos textos em notas e fichamentos, é o historiador em sua solidão que
vai costurar todos aqueles fragmentos, fazêlos aparecer como se fizessem parte de um mesmo tecido; mesmo que pequenos
pontos remetam para a barra da página onde estarão suspensas, penduradas, quase caindo, as referências, as notas de rodapé,
que procuram enunciar alguns dos fios que ali foram urdidos e tendo a função de chamar atenção e legitimar a perícia de
quem teceu a trama, pois quanto mais esta não deixar aparecer em sua frente os nós, as amarrações, as laçadas, as linhas
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arrepiadas e cortadas a dente que compõem o desenho do passado que aparece a nossa frente em sua inteireza e em sua
perfeita articulação, mais hábil em seu ofício será considerado o historiador que a tramou.
Embora, como dirá Blanchot, escrevamos em uma solidão povoada por presenças do presente e do passado, embora muitos
espectros venham se sentar conosco em nossa mesa de trabalho, a forja do texto do historiador, tal como a ferramenta feita
pelo ferreiro, é produto de seu trabalho individual, de sua habilidade no uso dos instrumentos necessários à elaboração da
escritura da história, é ele que usa sozinho os seus martelos, suas bigornas e seus foles, é ele que reaquece os fragmentos do
passado, que lhes infunde calor, vida, para que ganhem liga, se soldem, venham a se amalgamarem em um todo, em uma
unidade de sentido. Sem o sopro de vida das narrativas historiográficas, as brasas que restaram do fogo das batalhas do
passado, das fogueiras das vaidades ou das revoluções, e que jazem ainda crepitando mortiças sob as cinzas do tempo, fagulhas
de esperanças, de projetos, de desejos, de sonhos, restos das chamas das paixões e das rebeliões humanas, não voltariam a
brilhar, a crepitar, a queimar em nosso tempo, a nossa carne e a nossa consciência. Como dirá Walter Benjamin, o historiador
é aquele que tem a função messiânica de colher, como um jardineiro, as últimas flores da esperança que, embora murchas e já
sem perfume, ainda teimam em permanecerem balançando sob o vento dos tempos, ainda tremulam como bandeiras que
simbolizaram, que foram o escudo e a heráldica, que marcharam à frente dos exércitos de vencidos de todos os tempos. O
historiador é a carpideira que, ao mesmo tempo, chora e louva os mortos, que num gesto de carinho para com os que se foram,
os veste de novo para um ato inaugural, os faz novamente vir para o centro da sala, para a frente do cortejo, os faz levantar a
fronte e novamente falarem, vociferarem, imprecarem, readquirindo o direito à fala e a dirigem seu próprio enterro, a
simularem o controle sobre a versão de sua própria vida, da sua própria memória. A carpintaria do passado, portanto, é obra
do historiador, ele é o carpina que de posse dos escombros que o passado deixou, os submete a um trabalho de corte, de
rejuntamento, de limagem, de aparas, de encaixe e aprumo que os põem novamente para funcionarem como acesso ao que foi,
como porta ou janela por onde podemos espiar ou adentrar a dramaturgia dos tempos idos. O historiador é um padeiro que
faz, com aparas das atitudes, dos costumes, das ações das massas, fermentar novas imagens dos tempos, que servem de
alimento para nossos sonhos de continuidade, para nossa fome de identidade, para nossa inanição de sentidos para vida, para
o estarmos aqui na terra, para a nossa existência finita e ilimitada. A história pode ser delicioso pão que alimenta nossas
vaidades, nossa onipotência, nossos preconceitos, que explica e justifica nossas desigualdades e diferenças, mas pode ser
também o licor amargo que tragamos para nos darmos conta de nossas veleidades, de nossos crimes, de nossas injustiças, de
nossas ignomínias, de tudo que nos amarga a existência individual e coletiva. Historiador, o cozinheiro do tempo, aquele que
traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de
outras gentes, de outros lugares, de outras formas de vida social e cultural. “Sempre o pirão de farinha da história”. Farinha
moída pelos moinhos do tempo, grãos minúsculos de tempos que podem vir a fazer liga, podem vir a se espessarem, a
engrolarem, a se escaldarem, sob a atividade concentrada, vigorosa, da pá do historiador. Pá feita de letras, habilidade
narrativa, vórtice da linguagem a tragar, misturar e conectar todos estes grãos de tempo, linguagem a produzir a
transubstanciação dos elementos que captura, experiências humanas reexperimentadas, provas novamente provadas, o
estranho que se encontra, o sentido que se transporta, metáforas a fazerem o trânsito entre o indizível e o dizível, o ontem e o
hoje, o assignificante e o significado, o reaquecer do esquecido dando novamente caldo, fazendo vir à tona, emergir, borbulhar
depósitos de tempo, camadas de acontecimentos que, sedimentadas, adormecidas no fundo do caldeirão da história, voltam
novamente a circularem, a exalarem sentidos e valores, projetos e desejos, voltam a ser o prato do dia.
O historiador ainda realiza todas as etapas de seu trabalho. Aqui o parcelamento das tarefas e a alienação do trabalho ainda
não fizeram a sua aparição de forma completa. Embora cada vez mais trabalhemos em equipe e sejam deixadas para os
bolsistas de iniciação científica as tarefas mais duras e inóspitas, como levantar, fichar, copiar ou digitalizar aquela
documentação coberta de poeira e veneno, infestada de fungos e tomada pelo mofo, aquele jornal que se rasga só de pegar em
suas páginas – pois, na oficina da história a hierarquia entre mestres e aprendizes também está presente, de forma rigorosa,
se manifestando na diferença de remuneração, na hierarquia de poder e saber, no tipo de atividade que cada um exerce,
sendo a relação orientadorbolsista uma relação de exploração mascarada pelo caráter pedagógico e educativo de que se
reveste, tal como acontecia nas corporações medievais o historiador ainda detém, ou pelo menos deve deter, o conhecimento
sobre todas as etapas que compõem a sua atividade e deve possuir um saber fazer, uma sabedoria, que deve ter nascido da
prática, do freqüentar os arquivos, do resumir documentos e bibliografia, do escrever notas parciais, até do redigir o artigo ou
o livro. Aprendizes de historiador têm que enfiar a mão na massa, têm que praticar cada etapa do ofício, sob pena de nada
aprender.
O fazer historiográfico não se aprende apenas nos bancos escolares, não se aprende apenas ouvindo ou lendo como se faz, não
se aprende lendo manuais de metodologia ou de técnicas de pesquisa. A formação do historiador tem que ter uma dimensão
prática, tem que ser tomada como o que me parece ser, o aprendizado de uma arte, de um artesanato, o aprendizado de um
saber fazer que exige treinamento, realização e repetição das tarefas, permanente crítica e aperfeiçoamento daquilo que faz, a
busca de uma virtuosidade, de uma destreza manual e intelectual. A historiografia exige o exercitar da imaginação, da
capacidade de estabelecer conexões entre os estilhaços do passado, de preencher as lacunas entre os eventos, necessita do
exercício da capacidade de ficcionalizar, de intuir articulações naquilo que só nos chega em pedaços. O trabalho historiográfico
exige, sobretudo, a destreza narrativa, a capacidade de contar uma boa história, exige o desenvolvimento da capacidade de
enredar eventos, de elaborar boas tramas. O historiador, assim como as rendeiras, deve saber conectar os fios, amarrar os nós,
respeitando os vazios e silêncios que também constituem o desenho do passado, o entramado dos tempos. Para fazêlo deve
submeterse ao treinamento constante da habilidade de desfiar a narrativa, de utilizar as linhas de que dispõe para aí urdir
versões do passado, discursar sobre o que ocorreu numa dada época. Como toda habilidade artesanal só se aprende a escrever
história escrevendo, praticando, agindo por ensaio e erro, abusando da repetição, buscando o adestramento necessário,
elaborando várias versões do mesmo texto, corrigindoo, rasurandoo, refazendoo, escrevendo versões sucessivas.
Como toda atividade artesanal o trabalho do historiador levao a sujar as mãos, implica uma relação corpo a corpo,
subjetividade a subjetividade, com o seu material de trabalho. O historiador se mistura e sai com as roupas, o corpo e a alma
marcados pelo seu material de trabalho, pelos acontecimentos, pelas vidas e ações que vem a pôr em cena. Assim como as
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mãos e o corpo do artesão, a subjetividade do historiador sai calejada ou cheia de cicatrizes de seus encontros com as vidas
humanas, com as lutas, com as ilusões e desilusões daqueles que vieram nos anteceder. O trabalho do historiador, nestes
tempos que correm, se aproxima do trabalho do lixeiro, a apanhar os restos do que sobrou dos sonhos e grandes projetos e
promessas que já pretenderam ser o sentido do processo histórico. O historiador na pósmodernidade é um profissional
dedicado à reciclagem das versões do passado, dos sonhos dos homens, das utopias falhadas, das grandes profecias malogradas.
É alguém que, de posse das latas e garrafas vazias das grandes promessas da história, agora atiradas num canto, amassadas,
enferrujadas, chutadas sem cerimônia pelos passantes, as submete a um trabalho de reprensagem, de releitura, de redefinição
de sentido e utilidade, versões do passado que depois de passarem por um trabalho de desconstrução, de seleção, de
modelagem, voltam a estar cheias de saber e de sabor, voltam a fazer sentido, voltam a influenciar a vida dos homens de hoje,
que as podem tragar por terem novo valor.
A alienação do trabalho tem dificuldade de se fazer presente em nosso ofício. Ao acabar seu trabalho o historiador ainda pode
sentir e ver a obra como sua, ele ainda pode colocar acima da capa do livro o seu nome de autor, ainda pode dizer este é o meu
livro, o artigo que escrevi, este resumo em anais é de minha lavra. Ele vê seu rosto projetado sobre o que faz, se vê refletido no
texto que acaba de escrever, se sente de posse do saber que ali foi plasmado, se sente proprietário daquele texto, até que
alguma editora venha comprar a preço vil seus direitos autorais, que passam a pertencer a outro por, pelo menos, cinqüenta
anos.
Tal como no artesanato, o trabalho historiográfico é marcado pela superexploração em todas as suas etapas. Poderíamos dizer
que temos aqui a presença da extração da mais valia absoluta. O texto do historiador tem, como o artefato fabricado por um
artesão, valor de uso, mas também, cada vez mais, valor de troca. O escrito do historiador é consumido pelo saber que encerra,
pelas informações que veicula, pelas elaborações éticas, estéticas e políticas que formula, pelos modelos subjetivos que fornece,
pelo prazer ou fruição que pode oferecer, pelos elementos de identidade e de localização temporal e espacial que constrói, esse
é o seu valor de uso. Mas não podemos esquecer que hoje o texto do historiador é também um objeto de mercado. Muitos deles
visam a atender a demanda que vem das editoras, das empresas educacionais, da mídia, do público consumidor deste gênero,
o que não os torna necessariamente ruins ou suspeitos. Mas quero chamar atenção para o fato de que, o historiador, tal como o
artesão, o produtor direto, realiza, quase sempre, uma troca bastante desigual quando seu produto é colocado à venda. O texto
do historiador, como o objeto fabricado pelo artesão, exige muitas horas de trabalho, é um produto que exige um trabalho
extensivo, mas que será adquirido por preços que estão muito longe de corresponder ao tempo gasto para sua produção. O
mesmo vai darse na relação entre pesquisadores e auxiliares de pesquisa, estes realizam as tarefas mais árduas e são
remunerados de maneira vergonhosa. O trabalho do historiador, como o de qualquer artesão, senão penaliza o corpo com a
intensividade do trabalho fabril, submetendoo a velocidade da máquina, da linha de montagem, cobra do corpo a submissão a
longas permanências em dadas posições, a repetição de dados gestos, a tensão permanente de quem está em estado de criação,
de quem está concentrado num trabalho de invenção. Este desgaste excessivo do corpo não é levado em conta na hora de se
remunerar seu trabalho, pois este é visto como um trabalho leve, como uma atividade cerebral, mental, que não exige ou
desgasta a sua força de trabalho.
Como todo trabalho artesanal o ofício do historiador exige atenção para o detalhe, o debruçarse sobre o material singular e
raro que se tem a frente. Como diz Michel Foucault, a raridade é a característica do que chamamos de fontes para o nosso
trabalho. Ao contrário do aguadeiro, quando o historiador vai às fontes não é para encontrar aí abundância e refrigério, mas
escassez e trabalho árduo. O historiador é um bricoleur que tem que dar forma a seus objetos a partir de cacos, de fragmentos,
de restos, de rastros, de sinais. Para pôr de pé seus sujeitos e seus objetos tem que ser especialista no uso da cola da
imaginação histórica, tem que ser um exímio costureiro dos retalhos de tempos que tem em suas mãos, tem que ser um
experimentado ventríloquo para tentar falar por aqueles que as vozes já se calaram, tem que partilhar a habilidade da
bordadeira para com as linhas coloridas da teoria e da metodologia conseguir dar forma a um desenho, a uma configuração do
passado, ordenando o caos dos eventos que deixaram suas marcas em alguma forma de registro.
Aqui, diante de vocês que são aprendizes deste artesanato, que estão dando os primeiros passos para o conhecimento dos
mistérios que habitam a oficina da história, queria apelar para que resistamos a fazer da historiografia uma produção
industrial ou fabril, uma produção em série, uma produção afeita apenas às leis do mercado, uma mercadoria a mais nas
prateleiras repletas de receitas de autoajuda. É preciso que reafirmemos o caráter artesanal, artístico de nosso ofício. Não os
convido a se tornarem ludistas, não precisamos quebrar as máquinas para que nossa arte de inventar o passado possa ser
praticada. Os computadores fazem aquilo que os ordenamos. Embora em espanhol chamemse ordenadores, quem tem o
poder sobre eles ainda somos nós. Devemos lembrar que a pretensão de tornar a história uma ciência objetiva, metódica,
racional, realista, verista, essencialista é contemporânea à emergência da sociedade capitalista industrial, da sociedade das
máquinas e do trabalho fabril. Muitos desejaram ser operários da história, tanto ao escrevêla, como ao praticála, apostando
na sua refabricação, maquinando o desvendamento de suas engrenagens e a mudança da roda que a presidiria, se apossando
de seu motor e fazendo nele uma revolução a todo vapor e com muita energia. Homens de ferro e de nervos de aço em busca
de implantarem de vez o futuro maquinado, fazendo o processo histórico atingir a máxima aceleração, estabelecendo um corte
definitivo com o passado, para estancar num eterno presente, anulando de vez o tempo, este nosso grande inimigo. Apostaram
na técnica e na ciência como capazes de trazer a igualdade e a liberdade. Este sonho ruiu, mas como artesãos das cinzas, dos
pedaços de muros derrubados e de estátuas caídas dos pedestais, os historiadores são convocados hoje a reunirem o que
sobrou destes sonhos, destes desejos, destas ilusões, destas utopias, destas fantasias, e com eles conseguirem dar forma a novos
cenários para o presente e para o futuro. Abdicando de fazer da história uma grande usina de sonhos, mas regando a pequena,
modesta, localizada, mas insubstituível flor da esperança que nasce em pequenos canteiros por todo mundo. História que não
recusa as migalhas, mas que com elas tenta pacientemente dar forma as temporalidades, agrupandoas num trabalho poético
sobre a matéria da empiria e da utopia. Materialismo poético, mais do que dialético, contrários que não se resolvem em
unidades, mas que revolvem as unidades e as unanimidades. História como fabricação de objetos e sujeitos, como invenção
incessante de formas para o passado, de tecelagem permanente dos tempos. Trabalho e arte comprometidos com discussões
políticas, éticas e estéticas. A oficina do historiador se abrindo para aqueles que foram marginalizados pela sociedade do
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trabalho e dos trabalhadores, aqueles que nunca foram vistos como sujeitos do passado ou do futuro, aqueles que nunca
contaram, aqueles que nunca valeram nada por não se dedicarem ao que seria o fundamento de nossa sociedade: o trabalho.
Uma oficina que não mata gatos, mas aberta a gatos e ratos, aberta a mulheres, crianças, prostitutas, boêmios, ladrões,
sodomitas, loucos, bruxas, presos, artistas, saltimbancos, palhaços de ofício e na vida. Uma história que não se dirige apenas à
razão, à consciência, mas que dá lugar aos sentimentos, aos sentidos, às paixões, aos desejos, aos delírios. Uma história que
abandone sua paixão trágica pela desgraça, pelo sofrimento, pela morte. Que não deixe de falar das injustiças, das misérias, da
exploração, mas que seja capaz de ver que aí também há o riso, a alegria, a felicidade. Tudo o que desejo é que vocês sejam
felizes praticando o ofício de historiador, fazendo dele a maior arte que pode ser praticada por cada um de nós, arte bem
brasileira, a de driblar com luta, resistência, determinação, coragem, sabedoria e saber todas as situações, forças, relações
sociais e de poder, as formulações culturais e simbólicas que nos tentam fazer desistir da vida e de nela ser felizes. Ao poder,
ao capitalismo interessa pessoas infelizes, deprimidas, melancólicas porque submissas, submetidas, derrotadas e prontas a
comprar a mais nova droga que o mercado oferecer. Façam de seu ofício sua droga diária, faça da história e da arte de tecer o
passado seu prozac de todas as horas e com muito amor e humor vocês resistirão à fábrica de deprimidos que se tornou a
sociedade burguesa. Resistam encantando a vida, dando a ela arte e astúcia, tomem ciência de que só fazendo da vida e da
história uma arte, tanto como fazem os artistas ou como fizemos todos quando meninos, é que seremos felizes. Que vocês
sejam, como historiadores, artistas e arteiros, é tudo o que desejo para aprendizes de feiticeiro no atelier da história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BLANCHOT, Maurice. A conversa Infinita. São Paulo. Escuta. 2008.
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Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 4, Nº19, Rio, 2009 [ISSN 19813384]