Além da atribuição de sentidos

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/2/2019 Alm da atribuio de sentidos

    1/4

    Verso e Reverso, XXIV(57):183-186, setembro-dezembro 2010 2010 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2010.24.57.07ISSN 1806-6925

    Alm da atribuio de sentido

    Beyond the aribution of sense

    Fabrcio Silveira

    Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-00, So Leopoldo, RS, [email protected]

    GUMBRECHT, H.U. 2010. Produo de Presena. O que o sentido no consegue transmitir.Rio de Janeiro,Ed. Contraponto/Ed. PUC-Rio, 206 p.

    Resenha

    Alemo radicado nos Estados Unidos,atuando como pesquisador e docente junto Universidade de Stanford, Hans Ulrich Gum- brecht no um desconhecido no Brasil. Jteve vrios livros publicados em lngua por-tuguesa, por algumas das mais prestigiosase consideradas editoras nacionais. Entre eles,destacam-se, por exemplo, Modernizao dosSentidos (Editora 34, 1998), Corpo e Forma (Ed.UFRJ, 1998), Em 1926. Vivendo no limite do tempo(Record, 1999),As Funes da Retrica Parlamen-tar na Revoluo Francesa (Ed. UFMG, 2003) eElogio da Beleza Atltica (Cia. das Letras, 2007).

    Soma-se a esse conjunto uma srie igual-mente considervel de outras publicaes or-ganizadas por ele, escritas em co-autoria ou,enfim, apenas ancoradas, de algum modo,no projeto acadmico que Gumbrecht (e seuscompanheiros, afinal, como vemos, ele noest s) vem desenvolvendo h mais de duasdcadas. Se considerarmos ainda as inmerasvezes em que visitou o pas e os artigos publi-cados em jornais de grande circulao (alis,o livro Elogio da Beleza Atltica uma verso

    ampliada de um artigo escrito originalmentepara o jornal Folha de So Paulo), veremos queGumbrecht, de fato, h muito circula, tem boaacolhida, bom trnsito e causa relevante im-pacto no meio acadmico brasileiro.

    surpreendente ento que Produo de Pre-sena. O que o sentido no consegue transmitir(Ed. Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2010, 206p.)possa ser saudada, desde j, como uma daspublicaes mais inquietantes, auspiciosas enecessrias do ano que corre. Em torno do li-vro, ainda h um inegvel sabor de novidade.

    A importncia fundamental da obra (seumaior frescor e sua urgncia) est em sistema-tizar um conjunto de formulaes e propostastericas que, at ento, haviam aparecido ao lei-tor brasileiro de forma esparsa, parcial e frag-mentria. Critico literrio em pele de filsofo,Hans Ulrich Gumbrecht possui interesses di-versos, que vo do esporte retrica parlamen-tar, dos mundos televisivos obra do drama-turgo alemo Heinrich von Kleist (1777-1811).Posicionado entre a histria e a teoria literria,valendo-se habilmente dessas duas disciplinas1,

    1 Cf. Arajo (2006) e Gumbrecht (2005, 2008, 2009).

  • 8/2/2019 Alm da atribuio de sentidos

    2/4

    Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 57, setembro-dezembro 2010

    Alm da atribuio de sentido

    2 Aqueles que forjam o campo hermenutico, para Gumbrecht, so Dilthey, Heidegger e Gadamer. Mesmo Saussure e Hjelmslev seencontrariam tambm a. Ressalte-se que Gumbrecht no faz uma discusso sobre teorias especficas (de cada um dos autores citados,por exemplo dentre eles apenas Heidegger mais largamente comentado), mas tenta, fazendo alguns rpidos recorridos tericos,evidenciar justamente a emergncia de um campo, um amplo paradigma ou um amplo posicionamento epistmico que tem sidodominante, nos ltimos anos, na rea das Cincias Humanas (chamadas tambm, muito curiosamente, cincias do esprito). O

    autor alega que o campo no-hermenutico deveria equiparar-se ao campo hermenutico, seja enquanto prtica acadmica, sejaenquanto objeto de reconhecimento institucional.

    Gumbrecht aglutina seus interesses (lhes d or-dem e sistematicidade) em torno da rubrica dasmaterialidades da comunicao.

    Para o autor, em sntese, importam as condi-es materiais que possibilitam a emergncia do

    sentido. Ou seja: trata-se de problematizar (e, noextremo, evitar) o ato interpretativo. Movido con-tra os excessos hermenuticos, o livro, alis, fazuma interessante crtica ao que chama de culturado sentido, assumindo, de sada, o compromisso

    de lutar contra a tendncia da cultura contem- pornea de abandonar, e at esquecer, a possibi-lidade de uma relao com o mundo fundada napresena. Mais especificamente, assume o compro-misso de lutar contra a diminuio sistemtica dapresena e contra a centralidade incontestada dainterpretao nas disciplinas do que chamamos

    Artes e Humanidades (Gumbrecht, 2010, p.15).

    Nesse contexto, trata-se de focalizar (ou detentar focalizar, na medida do possvel) o sig-nificante (as coisas do mundo) independen-temente de seus significados. H, em Gumbre-cht, uma certa fascinao com as formas (osmateriais, os suportes, a corporeidade bruta)da expresso. Apreender a produo de pre-sena apreender todos os tipos de eventose processos nos quais se inicia ou se intensificao impacto dos objetos presentes sobre corpos

    humanos (p. 13). Para o autor, uma presen-a algo tangvel, com o qual mantenho umarelao no espao e que tem algum tipo de im-pacto sobre o meu corpo e os meus sentidos.

    Entre a substancialidade do ser e a univer-salidade da interpretao, Gumbrecht opta pelaprimeira. Prope uma espcie de ajuste de contas,um equilbrio de nfases entre os efeitos de senti-do e os efeitos de presena, uma reequalizao dastenses entre ambos. Historicamente, tais tensesforam silenciadas, acarretando uma preponde-rncia excessiva do paradigma do sentido sobre

    o paradigma da presena. A empreitada, comovemos, no modesta. Um dos maiores mritosda publicao delimitar esse debate, dando-lheuma conformao que ainda no dispnhamos(embora pudssemos intui-la).

    At agora, em lngua portuguesa, ao me-nos, tnhamos, de um lado, os textos mencio-

    nados acima, assinados pelo prprio Gum- brecht, que sugeriam, que aludiam, rpidos,direta ou indiretamente, s vezes de modo er-rtico, ao tema das materialidades da comuni-cao. De outro lado, tnhamos uma nuvem de

    dados, uma relativamente extensa literaturasecundria (composta por artigos de comen-tadores, captulos isolados em livros, papersproduzidos para congressos, marcados por in-tenes de pesquisa e vises muito prprios).Recuperando esses escritos todos, lidandocom eles, poderamos apenas depreender (ousupor) as linhas de fora, o campo de aplica-bilidade, os ngulos e os temas preferenciais,as heranas tericas e os modos de operaodas Materialidades da Comunicao. De todomodo, se trataria sempre de uma sntese. Tal-

    vez uma projeo ou a montagem de um que-bra-cabeas. Ou seja: como se tivssemos, ataqui, na maior parte, textos escritos ou antesou depois das formulaes nucleares da Teoriadas Materialidades. como se tivssemos es-critos mais ou menos (ora mais ora menos) de-dicados fundao mesma dessa perspectiva.Agora, Produo de Presena refaz esse quadro,insere-se justamente nesse hiato, cobrindo essalacuna, dedicando-se exatamente apresenta-o desse ncleo conceitual, apresentaodo histrico e dos bastidores desse processoinvestigativo (logicamente, nos ltimos vinteanos, Gumbrecht no esteve s no amadureci-mento da proposta; ao lado dele, encontram-se vrios outros, como Friedrich Kiler, KarlLudwig Pfeiffer e Paul Zumthor).

    A maior contribuio do livro, portanto, reinstaurar com mais solidez esse debate, cir-cunscrev-lo, dando-lhe a voz, a internalidadee o foco apropriados. Pavimenta-se assim umavia de entendimento do mundo para alm dametafsica do sentido. Aqui, desconfia-seda suposio de que a verdade (o verdadei-ro sentido, a felicidade, a boa vida, enfim,

    como quisermos chamar) algo que se encon-tra oculto, sempre profundo e transce-dental. Ao contrrio, Gumbrecht defende umtipo de aderncia s coisas do mundo, pre-sena no instante e intensidade do momen-to. Este o campo no-hermenutico que oautor quer sondar2.

  • 8/2/2019 Alm da atribuio de sentidos

    3/4

    Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 57, setembro-dezembro 2010 185

    Fabrcio Silveira

    3 Sobre Benjamin, alis, Gumbrecht (2003) colaborou tambm na organizao do volume Mapping Benjamin. The work of art in thedigital age.4 na situao da experincia esttica que podemos perceber, mais facilmente, o jogo tenso entre presena e sentido. Gumbrecht dassim importantes subsdios para a compreenso das estticas da comunicao. Cf. Guimares et al. (2006).

    No campo dos estudos de comunicao, au-tores como Joo Czar de Castro Rocha (1998),Simone S (2004), Michael Hanke (2006) e Eri-ck Felinto (2007) vm h alguns anos chaman-do ateno para a Teoria das Materialidades

    da Comunicao. Nesses casos, Gumbrecht sempre citado como um dos principais formu-ladores e um dos mais notveis propagadoresdessa perspectiva terica que, se no inventa aroda, se no traz uma novidade inaudita paraos estudos de mdia, ao menos atualiza e drenovado flego para abordagens e modos deentendimento que, embora houvessem estadoum tanto adormecidos, mostram ainda muitapertinncia para a pesquisa em Comunicaoe, sobretudo, para o estudo de determinadosfenmenos sociais e objetos miditicos confi-

    gurados (e afetados, sobremaneira) pelos lti-mos avanos tecnolgicos.Dentre os estudos de mdia, Gumbre-

    cht insere-se numa tradio que remontaa Walter Benjamin e Marshall McLuhan. McLuhan quem ir dizer, por exemplo, quea principal conseqncia ou repercussodos meios de comunicao tem muito poucoa ver com o nvel das opinies e dos juzosemitidos e muito mais a ver com o nvel dasexperincias sensveis e das estruturas depercepo que eles tipificam.

    Salienta-se assim que h algo que poder-amos chamar, na esteira do filsofo italianoMario Perniola (2005), de sensualismo tcno-corpreo da experincia comunicacional con-tempornea. Gumbrecht recoloca a questo,com provocativa radicalidade, com maiorespretenses de sistematizao e/ou numa linha-gem genealgica tambm muito prpria darea. Mesmo antes de McLuhan, diversos tex-tos de Benjamin tambm seriam perfeitamentecabveis para discutirmos as materialidadesda comunicao e o particular sex appeal doinorgnico de que elas se revestem (e com o

    qual nos interpelam). No surpreende, por-tanto, que Benjamin seja citado em Produo dePresena , num momento importante da obra,quando Gumbrecht refere ao perodo histricoe ao contexto intelectual em que floresce a tesedas materialidades da comunicao3.

    A prpria Susan Sontag, num artigo de1964, intitulado Contra a interpretao (reu-nido no volume homnimo), tambm falava

    sobre a necessidade de que uma hermenuti-ca da arte fosse substituda pelo que chamava,na poca, de uma ertica da arte. Para ela,os discursos explicativos e exegticos, esclare-cedores dos mltiplos sentidos da obra arts-

    tica no deveriam implicar num afastamentoda obra, mas deveriam ser, ao contrrio, ummodo de obtermos maior proximidade com aobra de arte.

    Gumbrecht aceita essa perspectiva. Defato, Sontag tambm citada. No entanto, aoseu modo, Produo de Presena d ateno smedialidades e os prprios fenmenos estti-cos so assim redefinidos, sem restringirem-se mais aos produtos artsticos especficos4.O trecho a seguir bastante direto, pessoale esclarecedor:

    O passo em direo s materialidades da comu-nicao abrira nossos olhos para uma multipli-cidade de temas fascinantes, que poderiam serresumidos (pelo menos, aproximadamente) nosconceitos de histria dos media e cultura docorpo. Nosso fascnio fundamental surgiu daquesto de saber como os diferentes meios asdiferentes materialidades de comunicaoafetariam o sentido que transportavam. J noacreditvamos que um complexo de sentidopudesse estar separado da sua medialidade, isto, da diferena de aspecto entre uma pgina im-pressa, a tela de um computador ou uma men-sagem eletrnica. Mas ainda no sabamos muitobem como lidar com essa interface de sentido ematerialidade (Gumbrecht, 2010, p.32).

    Esse registro remonta ao incio da dcada

    de 1970 e ao ambiente universitrio em quegerminam os primeiros esboos (os primei-ros passos) em torno das materialidades.Hoje, passados mais de vinte anos, ainda nose pode atribuir s Materialidades da Comu-nicao o estatuto de uma teoria em bom n-vel de formulao, slida e consistente, sufi-

    cientemente testada. Antes, trata-se ainda deum frtil campo de estudos, uma perspectivade trabalho em funo da qual alguns concei-tos vem sendo formulados e discutidos (almde presena, presentificao, forma,acoplagem, simultaneidade, epifania,medialidade, corporificao [ou embodie-ment] e sensorialidade so alguns dos con-ceitos propostos).

  • 8/2/2019 Alm da atribuio de sentidos

    4/4

    Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 57, setembro-dezembro 2010

    Alm da atribuio de sentido

    O melhor acabamento textual que a teo-rizao das materialidades ganhou, at aqui,ocorreu em 2004, justamente com a publica-o da primeira edio de Production of Pre-sence (2004), agora finalmente disponvel ao

    leitor brasileiro. Mesmo o volume Materiali-ties of Communication (2004), resultado de umimportante colquio realizado em Dubrov-nik, na Crocia, em 1987, no uma obra queprocure algum acabamento ou ordenaoformal, sistematizao de categorias, meto-dologias, definio de objetos e campos deaplicao, etc.

    Como tal, a edio brasileira de Produo dePresena. O que o sentido no consegue transmitirdeve ser saudada. Trata-se de um texto corajo-so, arrojado, irnico e auto-reflexivo. Dono de

    uma escrita densa e fluente, at comovedoraem determinadas passagens, Gumbrecht nosdesvela um amplo conjunto de questes, umamplo panorama intelectual, por certo, bastan-te teis rea da Comunicao e, no extremo,capazes, inclusive, de apresentar novos desa-fios, dar novo impulso e novos direcionamen-tos aos estudos que fizemos. Trata-se de umlivro voltado para o futuro.

    Referncias

    ARAJO, V.L. 2006. Para alm da autoconscinciamoderna: a historiografia de Hans Ulrich Gum-brecht. Vria Histria, 22(36):314-328.

    FELINTO, E. 2007. Passeando no Labirinto. Ensaiossobre as tecnologias e as materialidades da co-municao. Porto Alegre, Ed.PUCRS, 116 p.

    GUIMARES, C.; LEAL, B.; MENDONA, C.C.(orgs.). 2007. Comunicao e Experincia Esttica.Belo Horizonte, Ed. UFMG, 208 p.

    GUMBRECHT, H.U. 1998. Modernizao dos Senti-dos. So Paulo, Ed.34, 318 p.

    GUMBRECHT, H.U. 1998. Corpo e Forma. Ensaiospara uma crtica no-hermenutica. Rio de Janeiro,Ed. UERJ, 175 p.

    GUMBRECHT, H.U. 1999. Em 1926. Vivendo no limi-te do tempo. Rio de Janeiro, Record, 560 p.

    GUMBRECHT, H.U. 2003. As Funes da RetricaParlamentar na Revoluo Francesa. Belo Horizon-te, Ed. UFMG, 220 p.

    GUMBRECHT, H.U. 2004. Production of Presence.What meaning cannot convey. Stanford, StanfordUniversity Press, 200 p.

    GUMBRECHT, H.U. 2005. Hans Ulrich Gumbrecht.Nmero especial da revista Floema Caderno deTeoria e Histria Literria, 1A, Vitria da Conquis-ta (BA), Edies UESB, 105 p.

    GUMBRECHT, H.U. 2007. Elogio da Beleza Atltica.So Paulo, Cia. das Letras, 184 p.

    GUMBRECHT, H.U. 2008. Kleist por H. U. Gum-brecht. Nmero especial da revista Floema Ca-derno de Teoria e Histria Literria, 4A, Vitria daConquista (BA), Edies UESB, 100 p.

    GUMBRECHT, H.U. 2009. A presena realizada nalinguagem: com ateno especial para a presen-a do passado. Histria da Historiografia, 3:10-22.

    GUMBRECHT, H.U.; PFEIFFER, K.L. (orgs). 1994. Materialities of Communication. Stanford, Stan-ford University Press, 447 p.

    GUMBRECHT, H.U.; ROCHA, J.C. (orgs.). 1999.Mscaras da Mmesis. A obra de Luiz Costa Lima.Rio de Janeiro, Record, 378 p.

    GUMBRECHT, H.U.; MARRINAN, M. 2003. Map- ping Benjamin. The work of art in the digital age.Stanford, Stanford University Press, 268 p.

    HANKE, M. 2006. A Materialidade da Comunica-o: um conceito para a cincia da comunica-o? Interin, 1:1-8.

    PERNIOLA, M. 2005. O Sex Appeal do Inorgnico. SoPaulo, Studio Nobel, 152 p.

    ROCHA, J.C. (org.). 1998. Intersees: a materialidadeda comunicao. Rio de Janeiro, Ed.UFRJ, 368 p.

    S, S. 2004. Exploraes da noo de materialidade dacomunicao. Revista Contracampo, 10/11:31-44.

    SONTAG, S. 1987. Contra a Interpretao. Porto Ale-gre, LP&M, 352 p.