Alexandre Dumas - Memórias de um médico 1 - José Bálsamo 5 (doc)(rev)

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    Memrias de um mdico:Jos Blsamo

    Volume V

    Alexandre Dumas

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    I

    O COFRE

    Quando se viu s, o senhor de Sartines levantou o cofre, virou-o e

    revirou-o como homem que sabe apreciar o valor de uma descoberta.Depois estendeu a mo e apanhou o molho de chaves que cara dasmos de Lorenza.

    Experimentou-as todas, nenhuma servia.Tirou da gaveta trs ou quatro outros molhos semelhantes.Continham chaves de todas as dimenses: chaves de mveis, de

    cofres, de caixas; desde a chave usual at chave microscpica, pode-sedizer que o senhor de Sartines possua uma amostra de todas as chavesconhecidas.

    Experimentou vinte, cinqenta, cem, nenhuma delas pde sequerdar uma volta.

    Concluiu o magistrado que a fechadura era uma aparncia defechadura, e, que, por conseqncia, as suas chaves eram simulacros dechaves.

    Ento tirou da mesma gaveta uma tesourinha, um martelo, e com asua mo branca, cercada por um farto punho de rendas de Malinas, fezsaltar fora a fechadura, guarda fiel do cofre.

    Achou logo um mao de papis, em lugar de mquinas fulminantesque receava, ou dos venenos, cujo aroma deveria exalar-se mortalmentee privar a Frana do seu magistrado mais essencial.

    As primeiras palavras que saltaram aos olhos do chefe de polcia

    foram as seguintes, escritas por mo que visivelmente quisera disfarar aletra:Mestre, tempo de deixar o nome de Blsamo.No havia assinatura, mas unicamente estas trs letras: L. P. D.- Ah! Ah! - disse ele passando os dedos pelos anis da cabeleira - se

    no conheo a letra, parece-me que me no desconhecido o nome.Blsamo, vejamos, procuremos na letra B.

    Abriu ento uma das suas vinte e quatro gavetas e tirou umpequeno registro, no qual, por ordem alfabtica, estavam escritos emletra mida e cheia de abreviaturas, trezentos ou quatrocentos nomesprecedidos, seguidos e acompanhados de referncias, que se lhes

    ligavam por vistosas chaves.- Oh! Oh! - murmurou ele - temos muita coisa a respeito do talBlsamo.

    E leu a pgina toda com sinais no equvocos de desagrado.Depois, tornou a meter na gaveta o seu registro para continuar no

    inventrio do cofre.No profundou muito sem ficar seriamente impressionado. Depois

    achou uma nota cheia de nomes e de algarismos.A nota pareceu-lhe importante: estava muito apagada nas margens,

    muito carregada de sinais feitos a lpis.Tocou a campainha, e apareceu imediatamente um criado.

    - O ajudante da chancelaria - disse ele - que venha cimediatamente. Que atravesse a secretaria para chegar mais depressa.

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    O criado saiu.Dois minutos depois, um escrevente, com a pena na mo, o chapu

    debaixo de um brao, e um grande registro debaixo do outro, com asmangas de sarja preta enfiadas por cima das do fato, apresentou-se nolimiar do gabinete. O senhor de Sartines viu-o no espelho do seu armrio

    e estendeu para ele o papel por cima do ombro.- Decifre-me isso - disse ele.- Sim, meu senhor - respondeu o empregado.Este adivinhador de charadas era um homenzinho delgado, de

    lbios cerrados, sobrancelhas carregadas, pelo hbito de investigar aimaginao, plido, de cabea bicuda, barba delgada, testa fugitiva, ossosdas faces salientes, e olhos encovados e amortecidos, mas que por vezesse animavam.

    O senhor de Sartines chamava-lhe o Fuinha.- Sente-se - disse-lhe o magistrado ao v-lo embaraado com o

    canhenho, os cifrantes, a nota e a pena.

    O Fuinha sentou-se modestamente num banco, uniu as pernas, ecomeou a escrever sobre os joelhos, folheando o dicionrio einterrogando a memria com uma fisionomia impassvel.

    Ao cabo de cinco minutos, tinha escrito o que se segue:

    Ordem para reunir em Paris trs mil irmos.

    Ordem de organizar trs crculos e seis lojas.

    Ordem de organizar uma guarda para o Gro-Copta, e de lhe

    fornecer quatro domiclios, um dos quais dever ser numa casa real.Ordem para pr sua disposio quinhentos mil francos para uma

    polcia.

    Ordem para alistar no crculo principal toda a flor da literatura e dafilosofia.

    Ordem de seduzir ou comprar a magistratura, e de se apoderar

    particularmente do chefe da polcia, por corrupo, violncia ou astcia.O Fuinha parou um momento; no que o pobre homem quisesse

    meditar sobre isto, no se atrevia a faz-lo, seria um crime; seno porquea pgina estava cheia e a tinta fresca, e precisava esperar que secassepara continuar.

    O senhor de Sartines, impaciente, arrancou-lhe a folha das mos eleu.

    No ltimo pargrafo, desenhou-se-lhe no rosto uma tal expressode terror, que empalideceu ao ver-se nos espelhos do armrio.

    No restituiu a folha ao empregado, mas deu-lhe outra limpa.O homem ento comeou novamente a escrever proporo que ia

    decifrando, o que alis executava com uma facilidade aterradora para ossenhores fazedores de cifras.

    Desta vez, o senhor de Sartines leu por cima do ombro doempregado o seguinte:

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    Deixar em Paris o nome de Blsamo, que comea a ser muito

    conhecido, para tomar o de conde de F...O resto da palavra no se podia ler por causa de um borro de tinta

    que lhe cara em cima.

    No momento em que o senhor de Sartines estava procurando queslabas seriam as que ali faltavam para completar a palavra, ouviu-se umtoque de campainha, e logo depois entrou um criado anunciando:

    - O Sr. Conde de Fnix!O senhor de Sartines soltou um grito, e, em riscos de demolir o

    edifcio harmonioso da sua cabeleira, juntou as mos acima da cabea eapressou-se em despedir o escrevente, que saiu por uma porta oculta.

    Depois, sentando-se no seu lugar diante da secretria, disse aolacaio:

    - Mande entrar.Alguns instantes depois, viu o senhor de Sartines no seu espelho o

    perfil grave do conde, que j vira no dia da apresentao da senhora duBarry.

    Blsamo entrou sem hesitar.O senhor de Sartines ergueu-se, dirigiu um frio cumprimento ao

    conde, e cruzando uma perna sobre a outra, apoiou-se cerimoniosamentena cadeira.

    primeira vista percebera o magistrado a causa e o fim daquelavisita.

    Blsamo tambm vira logo o cofre aberto e os papis espalhadossobre a mesa do senhor de Sartines.

    O seu olhar, por mais rpido que o dirigisse para o cofre, noescapou ao chefe da polcia.- A que acaso devo a honra da sua visita, senhor conde? -

    perguntou o senhor de Sartines.- Senhor - respondeu Blsamo com um sorriso amenssimo - tive a

    honra de ser apresentado a todos os soberanos da Europa, a todos osministros, a todos os embaixadores, mas ainda no achei quem meapresentasse ao senhor de Sartines; venho portanto apresentar-me eumesmo.

    - Realmente, senhor - respondeu o chefe da polcia - chega emptima ocasio, porque estou persuadido que se no tivesse vindo, eu

    teria tido a honra de o mandar chamar aqui.- Ah! - disse Blsamo - que feliz acaso.O senhor de Sartines inclinou-se com um sorriso irnico.- Seria eu bastante feliz, senhor - prosseguiu Blsamo - para lhe

    poder ser til!Estas palavras foram pronunciadas sem que uma sombra de

    comoo ou de desassossego lhe anuviasse a risonha fisionomia.- Tem viajado muito, senhor conde? - perguntou o chefe de polcia.- Muito, senhor.- Ah!- Deseja talvez alguns esclarecimentos geogrficos? Um homem da

    sua capacidade no se ocupa exclusivamente da Frana, abraa a Europa,o mundo...

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    - Geogrficos, no, senhor conde, uma informao moral que euprecisava.

    - No faa cerimnia, senhor, quer para uma, quer para outra coisaestou s suas ordens.

    - Pois bem, senhor conde, procuro um homem muito perigoso, pela

    minha vida, um homem que ao mesmo tempo ateu...- Oh!- Conspirador.- Oh!- Falsrio.- Oh!- Adltero, fabricante de moeda falsa, emprico, charlato, chefe de

    seita; um homem cuja histria tenho a escrita nas folhas dos meusregistros, nos papis da caixa que a v, por toda a parte...

    - Ah! Sim, compreendo - disse Blsamo; - tem a histria, mas notem o homem.

    - No.- Diacho! Falta-lhe o mais importante.- Certamente; mas vai ver como estou perto de o apanhar. Proteu

    no tem mais formas, nem Jpiter mais nomes do que o tal viajantemisterioso: Acharat no Egipto, Blsamo na Itlia, Somini na Sardenha,marqus de Anna em Malta, marqus Pellegrini na Crsega, enfim condede...

    - Conde de?... - acrescentou Blsamo.- Este ltimo nome que no pude ler bem, senhor, mas h-de

    ajudar-me, no verdade? Tenho a certeza disso, porque h-de por fora

    ter conhecido o homem, h-de t-lo encontrado nas suas viagens, nasterras que h pouco citei.- D-me mais alguns esclarecimentos - disse Blsamo.- Ah! Compreendo; deseja que lhe d os sinais do indivduo, no

    verdade, senhor conde?- Tal qual, se do seu agrado.- Pois bem - disse o senhor de Sartines cravando em Blsamo um

    olhar que tentava mostrar inquisidor - um homem da sua idade, da suaestatura e configurao; umas vezes grande fidalgo e semeando eespalhando o ouro, outras charlato, procurando os segredos naturais, ousombrio filiado de alguma confraria misteriosa, que jura nas trevas a

    morte dos reis e o derrubamento dos tronos.- Oh! - disse Blsamo - isso muito vago.- Como vago?- Se soubesse quantos homens tenho visto que se parecem com o

    retrato que acaba de fazer!- Realmente?- Sem dvida, e faria bem precisando um pouco os factos, se quer

    que o auxilie. Em primeiro lugar: sabe qual o pas que ele habita depreferncia?

    - Habita todos.- Mas neste momento, por exemplo?

    - Neste momento est em Frana.- E o que faz ele em Frana?

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    - Dirige uma imensa conspirao.- Ah! Agora com esse esclarecimento, percebe-se; e se sabe qual

    a conspirao que ele dirige, nesse caso, facilmente ter a possibilidadede descobrir o seu homem, pondo em aco os seus agentes.

    - Assim o creio tambm.

    - Pois ento, se o cr assim, por que me pede que lhe d conselho? intil.- Ah! porque estou ainda em dvida.- Sobre qu?- Sobre isto mesmo.- Queira falar.- Deverei mand-lo prender, sim ou no?- Sim ou no?- Sim ou no.- No compreendo a palavra no, senhor chefe de polcia; porque

    enfim, se ele conspira...

    - Sim; mas se tiver algum nome ou ttulo que o garanta?- Ah! Sim, compreendo. Mas que nome? Que ttulo? Seria preciso

    dizer-me quais so para eu o poder auxiliar nas suas investigaes.- Ah! Senhor, eu j lho disse, sei o nome com que ele se esconde,

    mas...- Mas no sabe aquele com que ele se mostra, no assim?- Exactamente, seno...- Seno mand-lo-ia prender?- Imediatamente.- Pois bem, meu caro senhor de Sartines, uma fortuna, como

    ainda h pouco me dizia, que eu tenha chegado neste momento, porquevou prestar-lhe o servio que me pede.- O senhor?- Eu.- Vai dizer-me o nome?- Vou.- O nome com que ele se apresenta?- Sim.- Ento sabe-o?- Perfeitamente.- E que nome esse? -perguntou o senhor de Sartines, esperando

    ouvir alguma patranha.- O conde de Fnix.- Como! O mesmo nome com que se fez anunciar?...- Exactamente o mesmo nome com que me fiz anunciar.- O seu nome?- O meu nome.- Ento o tal Acharat, o tal Somini, o tal marqus de Anna, o tal

    marqus Pellegrini, o tal Jos Blsamo, o senhor?- Sim, senhor - disse Blsamo simplesmente - sou eu mesmo.O senhor de Sartines levou um minuto em voltar a si do

    deslumbramento que lhe causou to descarada franqueza. Depois disse:

    - Eu tinha adivinhado, como v, senhor... Conhecia-o, sabia que JosBlsamo e o conde de Fnix eram a mesma personagem.

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    - Ah! Confesso que o senhor um grande ministro - disse Blsamo.- E o senhor um grande imprudente - retorquiu o magistrado

    dirigindo-se para a campainha.- Imprudente, por qu?- Porque vou mand-lo prender.

    - Ora adeus - disse Blsamo dando um passo para interpor-se entrea campainha e o magistrado; - quem capaz de prender-me?- Ora essa! O que far para mo impedir?- Pergunta-mo?- Pergunto, sim.- Meu caro senhor chefe de polcia, vou fazer-lhe saltar os miolos.E Blsamo tirou do bolso uma linda pistola com fechos de prata

    dourada, que se diriam cinzelados por Benvenuto Cellini, e apontou-atranquilamente cara do senhor de Sartines, que empalideceu e sedeixou cair numa cadeira.

    - Bem - disse Blsamo puxando outra cadeira para junto do chefe da

    polcia e sentando-se; - agora estamos sentados e podemos conversar umpouco.

    II

    PALESTRA

    O senhor de Sartines levou algum tempo em tornar a si de togrande susto. Vira, como se tivesse querido mirar-lhe o interior, a goelaameaadora da pistola; chegara a sentir na testa o frio do anel de ferro.

    Por fim sossegou, e disse:- Tenho sobre o senhor uma vantagem; sabendo a que qualidade dehomem falava, no tinha tomado as precaues que geralmente setomam contra os malfeitores ordinrios.

    - Ora, meu caro senhor - redargiu Blsamo - a est a irritar-se e aproferir palavres; pois bem injusto. Aqui onde me v venho prestar-lheum servio.

    O senhor de Sartines fez um movimento.- Um servio, sim, senhor - repetiu Blsamo - e a est enganando-

    se nas minhas intenes. Fala de conspiradores, mesmo no momento emque eu vinha denunciar-lhe uma conspirao.

    Mas por mais que Blsamo dissesse, naquele momento o senhor deSartines no prestava grande ateno s palavras do seu perigosovisitante, tanto assim que a palavra conspirao, que em temposordinrios o teria feito saltar na cadeira, mal conseguiu fazer-lhe apuraros ouvidos.

    - O senhor compreende, pois que sabe to bem como eu quem sou,compreende, repito, qual a minha misso em Frana? Sou enviado porSua Majestade o grande Frederico, isto , embaixador mais ou menosparticular de Sua Majestade prussiana; ora, quem diz embaixador dizcurioso, e na minha qualidade de curioso, no ignoro coisa nenhuma dasque se passam, e uma das que melhor conheo, o monoplio dos

    cereais.

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    Simples como eram, as ltimas palavras que Blsamo pronuncioutiveram mais poder no chefe da polcia do que todas as outras, porqueatraram-lhe a ateno.

    Ergueu vagarosamente a cabea.- O que o monoplio dos cereais? - disse ele, afectando tanta

    segurana como o prprio Blsamo desenvolvera no comeo da conversa;- digne-se dar-me tambm alguns esclarecimentos, senhor.- De boa vontade - disse Blsamo. - Eu lhe digo o que .- Estou ouvindo.- Oh! No precisava diz-lo... Alguns especuladores hbeis

    persuadiram a Sua Majestade el-rei de Frana que devia mandar construirceleiros para o caso de que viessem a escassear os cereais do seu povo.Construram-se pois esses celeiros, e como se encontravam com as mosna obra, pensaram que era melhor faz-los grandes do que pequenos;nada se poupou, nem pedra, nem cal, e fizeram-nos bem grandes.

    - E depois?

    - Depois foi preciso ench-los; celeiros vazios eram inteis, eportanto, encheram-nos.

    - E da? - disse o senhor de Sartines, no percebendo bemclaramente ainda o que Blsamo queria dizer.

    - E da, bem deve saber que para encher celeiros muito grandes foipreciso meter-lhes dentro grande quantidade de cereais. Isto parece-menatural.

    - Certamente.- Ento continuo. Retirar muitos cereais da circulao um meio

    certo de matar de fome o povo; porque, note isto bem, todo o gnero

    retirado da circulao equivale a uma falta de produo. Mil sacos detrigo no celeiro so mil sacos de menos na praa. Multiplique isto por dez,e o preo sobe imediatamente.

    O senhor de Sartines teve um ataque de tosse de irritao.Blsamo calou-se, e esperou sossegadamente que passasse o

    ataque de tosse.- Portanto - continuou ele quando o chefe da polcia lhe deu ocasio

    para isso - a temos o nosso especulador do celeiro enriquecendo com oaumento do valor; ora diga, no acha isto claro?

    - Perfeitamente claro - disse o senhor de Sartines; - mas, pelo quevejo, o senhor tem a pretenso de me imputar uma conspirao ou um

    crime de que Sua Majestade autor?...- Justamente - redargiu Blsamo; - vejo que compreende.- uma grande ousadia, senhor, e tenho realmente curiosidade de

    saber de que modo receber el-rei a sua acusao; receio muito que oresultado seja exactamente o mesmo que eu me propunha quandoestava examinando os papis deste cofre, antes da sua chegada; cuidado,senhor, que sempre vai parar Bastilha.

    - Ah! Agora vejo que j me no compreende.- Por qu?- Jesus! Como o senhor me julga mal e que injustia me faz em

    supor que sou um estpido. Pois imagina que havia de ir atacar el-rei, eu,

    um embaixador, um curioso?... Mas isso que est dizendo s seriaperdovel a um tolo. Peo-lhe que me oua at ao fim.

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    O senhor de Sartines fez um sinal de assentimento com a cabea.- Os que descobriram a conspirao contra o povo francs...

    (perdoe-me o tempo precioso que lhe roubo, senhor, mas em breve verque no tempo perdido), os que descobriram a conspirao contra opovo francs so uns economistas, que, laboriosssimos e muito

    minuciosos, aplicando a este negcio o seu microscpio investigador,notaram que el-rei no jogava s. Sabem muito bem que Sua Majestadetem um preo corrente exacto dos cereais dos diversos mercados; sabemmuito bem que Sua Majestade esfrega as mos de contentamentoquando o aumento do preo lhe d um lucro de oito ou dez mil escudos;mas tambm sabem que ao lado de Sua Majestade est um homem, cujaposio facilita as transaces, um homem que, do modo mais natural,graas a certas funes, - um funcionrio, compreende? - vigia ascompras, as chegadas, os encaixotamentos, homem, enfim, que figurapor El-rei; ora esses economistas, como eu lhes chamo, no atacam o rei,porque no so imbecis; atacam o homem, meu caro senhor, atacam o

    funcionrio, o agente, o testa de ferro de Sua Majestade.O senhor de Sartines tentou baldadamente restituir o equilbrio

    cabeleira.- Ora - prosseguiu Blsamo - chego ao ponto principal. Assim como

    o senhor sabia, o senhor que tem uma polcia s suas ordens, que eu erao conde de Fnix, eu sei que o senhor se chama Sartines.

    - Bem, e depois? - disse o magistrado deveras perturbado - verdade, sou Sartines. Olhe que na realidade adivinhou grande coisa!

    - Ah! Mas compreenda bem o que lhe digo, o senhor de Sartines dequem falo exactamente o homem dos preos correntes dos cereais, dos

    negcios, que arrecada lucros, aquele que, com conhecimento ou no deel-rei, trafica com os estmagos de vinte e sete milhes de franceses, aquem tem obrigao, pelo seu emprego, de sustentar nas melhorescondies possveis. Ora, imagine o efeito de semelhante descoberta! Osenhor no muito querido do povo; el-rei no passa por sensvel; assimque o brado dos esfaimados pedir a cabea do senhor conde, SuaMajestade, para afastar de si toda a suspeita de conivncia com o senhor,se com efeito el-rei conivente, ou para fazer justia, se no existecumplicidade, Sua Majestade h-de dar-se pressa em faz-lo pendurarnuma forca semelhante de Enguerrand de Marigny; est lembrado?

    - Pouco me lembra - disse o senhor de Sartines muito plido - e

    parece-me que d prova de muito mau gosto, falando de forca a umhomem da minha condio.- Oh! Se eu lhe falo nisso, meu caro senhor, que ainda me parece

    estar vendo Enguerrand. Era um perfeito cavaleiro da Normandia, de umafamlia muito antiga e de uma casa nobilssima. Era camarista de Frana,capito do Louvre, intendente da fazenda e das obras pblicas; era condede Longueville, que um condado mais considervel que o de Alby, que o seu. Pois bem, senhor, vi-o pendurado na forca de Montfaucon, que eletinha mandado construir, e graas a Deus, no foi por falta de lhe terrepetido: Enguerrand, meu caro Enguerrand, tome cuidado, entra pelosdinheiros pblicos com tal desembarao, que Carlos de Valois no lho

    perdoar. Ele no me quis dar ouvidos, e morreu desgraadamente! Ah!Se soubesse quantos prefeitos de polcia tenho visto, desde Pncio

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    Pilatos, que condenou Jesus Cristo, at Bertin de Belle-Isle, conde deBourdeilles, senhor de Brantme, seu antecessor, que instituiu oscandeeiros, e proibiu os ramalhetes!

    O senhor de Sartines levantou-se, tentando em vo disfarar aagitao que dele se tinha apoderado.

    - Pois bem -disse ele - acuse-me, se quiser; que me importa otestemunho de um homem como o senhor?- Cuidado, senhor! - disse Blsamo - olhe que muitas vezes os que

    parecem no ter valor so os que valem tudo, e quando eu escrever comtodas as suas circunstncias a histria do monoplio dos cereais, ao meucorrespondente ou ao rei Frederico, que filsofo, como sabe; quando omonarca prussiano se der pressa em escrever o caso, comentado por ele,ao Sr. Arouet de Voltaire, que conhece de nomeada; quando este tiverescrito, pelo menos, um conto jocoso no gnero do Homem dos QuarentaEscudos; quando o senhor de Alembert, admirvel gemetra, tivercalculado que com os gros de trigo pelo senhor roubados subsistncia

    pblica se poderiam ter sustentado cem milhes de homens durante trsou quatro anos; quando Helvetius tiver estabelecido que posto o valordesse trigo em escudos de seis francos uns sobre os outros, poderiamchegar at Lua, ou que em notas de banco postas umas ao lado dasoutras, poderiam estender-se at S. Petersburgo; quando tal clculo tiverinspirado um mau drama ao senhor de La Harpe, uma palestra do Pai deFamlias a Diderot e uma terrvel parfrase dessa palestra, seguida decomentrios, a Joo Jacques Rousseau, de Genebra, que tambm nomorde mal quando quer, uma memria ao Sr. Caron de Beaumarchais, aquem Deus o livre de ofender, uma cartinha ao Sr. Grimm, um dito

    picante ao Sr. Holbac, um belo conto moral ao senhor de Marmontel, queo assassinar defendendo-o mal; quando se falar disso no caf daRegncia, no Palais-Royal, em casa de Audinot, e em casa dos danarinosdo rei, dirigidos como se sabe pelo Sr. Nicolet; ai! Sr. Conde de Alby, serum chefe de polcia muito mais doente do que o pobre Enguerrand deMarigny, de quem no quer ouvir falar, que ainda na forca protestava asua inocncia e fazia-o com to boa f, que, palavra de honra, euacreditei-o quando ele mo afirmou.

    A estas palavras o senhor de Sartines, sem olhar mais ao decoro,tirou a cabeleira e limpou a calva, inundada de suor.

    - Pois bem - disse ele - seja assim: com isso nada evitar. Deite-me

    muito embora a perder, se puder. Tem as suas provas, eu tenho asminhas. Guarde o seu segredo, que eu guardo tambm o cofre.- A est, meu caro senhor - disse Blsamo - outro erro grave em

    que estou admirado de ver cair um homem da sua fora; esse cofre...- E ento, este cofre?- No h-de guard-lo.- Oh! - exclamou o senhor de Sartines com um sorriso irnico -

    verdade; no me lembrava que o Sr. Conde de Fnix um fidalgo deestrada, que ataca mo armada. J me no lembrava da pistola, porquea meteu na algibeira. Perdoe-me o senhor embaixador.

    - Qual histria! No se trata aqui de pistola, senhor de Sartines;

    decerto no pode pensar que eu v agora arrancar-lhe esse cofre dasmos viva fora, lutando com o senhor, para, chegado escada, ouvir o

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    som da sua campainha e a sua voz para que me prendam como ladro.No! Quando digo que no h-de guardar o cofre, quero dizer que vairestituir-mo de boa vontade e com o melhor modo possvel.

    - Eu! - bradou o magistrado, pondo a mo sobre o objecto em litgiocom tanta fora que por pouco o no quebrou.

    - O senhor mesmo.- Pois v zombando, que eu lhe juro que s levar este cofre custada minha vida. Que digo eu, custa da minha vida? No a tenho euexposto mil vezes? No a devo ao servio de Sua Majestade? Mate-me,pode faz-lo; mas a bulha h-de atrair quem me vingue, e hei-de terainda voz bastante para denunciar todos os seus crimes. Ah! Restituir-lheeste cofre - acrescentou com um riso amargo - nem que o Inferno oreclamasse eu o restituiria!

    - Pois asseguro-lhe que no hei-de empregar para isso ainterveno das potncias subterrneas; bastar-me- a interveno dapessoa que neste momento bate porta da sua casa.

    E de facto acabavam de soar trs fortes argoladas.- E cuja carruagem - prosseguiu Blsamo - escute, entra neste

    momento no ptio do seu palcio.- uma pessoa da sua amizade, segundo parece, que faz a honra

    de me visitar?- como diz, uma pessoa da minha amizade.- E hei-de restituir-lhe este cofre?- Sim, meu caro senhor de Sartines, h-de restituir-lho.Ainda o chefe da polcia no tinha acabado um gesto de soberano

    desprezo, quando um lacaio diligente abriu a porta e anunciou que a Sr.

    Condessa du Barry pedia uma audincia.O senhor de Sartines estremeceu e olhou admirado para Blsamo,que abusava de todo o poder que tinha sobre si para no soltar umagargalhada na cara do respeitvel magistrado.

    Naquele momento, atrs do criado entrou rapidamente, e todaperfumada, uma mulher, que entendeu no precisar de licena parapenetrar ali; era a formosa condessa, cujas saias ondeantes roaram comgrato rumor pela porta do gabinete.

    - A senhora condessa! - murmurou o chefe da polcia, que, por umresto de terror, segurara entre as mos e apertara contra o peito o cofreainda aberto.

    - Bons dias, Sartines - disse a condessa com o seu alegre sorriso.Depois, voltando-se para Blsamo:- Bons dias, caro conde - acrescentou ela.E estendeu a mo para este ltimo, que se inclinou familiarmente

    sobre aquela mo branca e pousou os lbios onde tantas vezes haviampousado os lbios reais.

    Neste movimento teve Blsamo ocasio de dizer condessa trs ouquatro palavras, que o senhor de Sartines no pde ouvir.

    - Ah! Justamente - bradou a condessa - a est o meu cofre.- O seu cofre! - balbuciou o senhor de Sartines.- Sem dvida, o meu cofre. Ah! Abriu-o! Est bom, no fez

    cerimnia!- Mas, minha senhora...

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    - Oh! Isto belo, eu tinha j tido essa idia... Esse cofre foi-meroubado e eu ento disse comigo: preciso ir ter com Sartines, que h-de achar-mo. No esperou pela minha reclamao, achou-oprimeiramente; mais agradecida lhe fico.

    - E como v - disse Blsamo - o senhor de Sartines at o abriu.

    - E verdade!... Quem tal diria? uma aco muito feia, Sartines.- Minha senhora, salvo o respeito que lhe tenho disse o chefe dapolcia - receio muito que se deixe enganar.

    - Enganar, senhor! - disse Blsamo; - ser porventura a mim quedirige essa palavra?

    - Eu sei o que digo - redargiu o senhor de Sartines.- E eu nada sei - disse em voz baixa a senhora du Barry a Blsamo; -

    vamos a saber, o que , caro conde? Reclamou de mim a promessa quelhe fiz de lhe conceder a primeira coisa que me pedisse. Cumpro a minhapalavra como um homem; aqui me tem. Vamos, o que devo fazer por seurespeito?

    - Minha senhora - respondeu Blsamo em voz alta - h poucos diasconfiou-me aquele cofre com tudo quanto tem dentro.

    - No h dvida - redargiu a senhora du Barry, respondendo com oseu olhar ao do conde.

    - No h dvida! - bradou o senhor de Sartines no h dvida, diza senhora condessa?

    - Parece-me que a senhora condessa pronunciou essas palavras emvoz bastante alta para que as ouvisse.

    - Um cofre que contm talvez dez conspiraes!- Ah! Senhor de Sartines, bem sabe que infeliz com essa palavra;

    aconselho-o a que no a repita. A senhora condessa pede-lhe o seu cofre,restitua-lho, nada mais.- Pediu-me este cofre, minha senhora? - disse o senhor de Sartines

    tremendo de raiva.- Pedi, sim, caro magistrado.- Mas, pelo menos, saiba...Blsamo olhou para a condessa.- Nada tenho que saber que no saiba j - disse a senhora du Barry;

    - restitua-me a minha caixa; no foi para me divertir que me incomodei,percebe?

    - Em nome do Deus vivo, em nome do interesse de Sua Majestade,

    minha senhora!Blsamo fez um gesto de impacincia.- Esse cofre, senhor - disse secamente a condessa - esse cofre, sim

    ou no! Pense antes de dizer no.- Como lhe aprouver, minha senhora - disse o senhor de Sartines

    humildemente.E estendeu condessa o cofre, no qual Blsamo tinha j metido

    todos os papis espalhados pela secretria.A senhora du Barry voltou-se para este e com um sorriso

    encantador.- Conde - disse ela - tem a bondade de me trazer este cofre

    carruagem e de me oferecer a mo para eu no atravessar sozinha todasessas casas cheias de gente mal encarada? Obrigada, senhor de Sartines.

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    E Blsamo dirigiu-se para a porta com a sua protectora, quando viuo senhor de Sartines correr campainha.

    - Senhora condessa - disse Blsamo suspendendo o seu inimigo como olhar - tem a bondade de dizer ao senhor de Sartines, que me quer malpor eu lhe ter reclamado o seu cofre; tem a bondade de lhe dizer quanto

    a penalizaria que me acontecesse qualquer desgraa por interveno dochefe de polcia, e quanto isso lhe desagradaria?A condessa sorriu para Blsamo.- Ouviu o que disse o senhor conde, meu caro Sartines? Pois bem,

    a verdade pura; o senhor conde um dos meus melhores amigos, e levar-lhe-ia mortalmente a mal que lhe causasse o mais pequeno incmodo,fosse no que fosse. Adeus, Sartines.

    E desta vez, com a mo na de Blsamo, que levava o cofre, asenhora du Barry saiu do gabinete do chefe da polcia.

    O senhor de Sartines viu afastar ambos sem mostrar a clera queBlsamo esperava ver.

    - Vai! - murmurou o magistrado vencido; - vai, levas o cofre, mas eutenho a mulher!

    E para se desforrar, tocou de modo a quebrar todas as campainhas.

    III

    O SENHOR DE SARTINES COMEA A CRER QUE BLSAMO FEITICEIRO

    Ao toque precipitado da campainha do senhor de Sartines, acudiuum criado.

    - Ento? - perguntou o magistrado - a mulher?- Que mulher, senhor?- A que perdeu aqui os sentidos e que mandei conduzir para o

    quarto fronteiro?- Est j boa, senhor - redargiu o criado.- Bem; que venha aqui.- Onde a deverei ir buscar, senhor?- Onde? Ao quarto para onde a levaram.- Mas j l no est, senhor.- J l no est?! Ento onde est?- No sei.

    - Saiu?- Saiu, sim, senhor.- S?- Sim, senhor.- Mas ela nem podia ter-se em p!- Isso verdade, senhor, ela esteve alguns instantes sem sentidos,

    mas cinco minutos depois que o Sr. Conde de Fnix foi introduzido nogabinete, acordou daquele singular desmaio a que nem essncias, nemsais tinham conseguido dar remdio. Ento abriu os olhos, levantou-se nomeio de ns todos, e respirou com modo de satisfao.

    - E depois?

    - Depois, dirigiu-se para a porta, e como V. Ex. no tinha ordenadoque a detivessem, deixamo-la sair.

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    - Sair! - exclamou o senhor de Sartines; - ah! Desgraados! Hei-defaz-los apodrecer todos em Bictre! Depressa! Digam ao meu primeiroagente que venha falar-me.

    O criado saiu apressadamente para obedecer ordem queacabavam de lhe dar.

    - O miservel feiticeiro - murmurou o desditoso magistrado. - Eusou chefe da polcia de el-rei; ele chefe da polcia do diabo!O leitor compreendeu j certamente o que o Sr. Conde de Sartines

    no podia perceber. Logo em seguida cena da pistola, e enquanto ochefe da polcia procurava tornar a si, Blsamo, aproveitando-se dessemomento, tinha-se orientado e voltando-se sucessivamente para osquatro pontos cardeais, bem certo de encontrar Lorenza nalgum deles,tinha-lhe ordenado que se levantasse, que sasse, e que voltasse paracasa por o caminho por onde viera.

    Logo depois de formulada essa vontade no esprito de Blsamo,tinha-se estabelecido uma corrente magntica entre ele e a romana, que

    obedecendo ordem que recebia por intuio, levantara-se e sara semachar quem se opusesse sua partida.

    Naquela mesma noite o senhor de Sartines meteu-se na cama emandou que o sangrassem; o choque fora muito forte para que o pudessesuportar impunemente, e se deixasse passar mais um quarto de hora sema sangria, sucumbiria, segundo a opinio do mdico, a um ataque deapoplexia.

    Durante aquele tempo, acompanhara Blsamo a condessa carruagem, e apressava-se em despedir-se dela; mas no era a du Barrymulher que assim o deixasse, sem saber, ou pelo menos sem procurar

    saber, a causa do estranho acontecimento que acabava de se passar nasua presena.Rogou portanto ao conde que entrasse para a carruagem; o conde

    obedeceu, e um criado levou Djrid mo.- V, conde, se sou leal - disse ela - e se quando chamo amigo a

    algum digo essa palavra com os lbios ou com o corao? Eu ia voltarpara Luciennes, onde el-rei me tinha dito que viria ver-me amanh pelamanh; mas veio a sua carta, e deixei tudo para lhe obedecer. Muitos ter-se-iam aterrado com os palavres de conspiraes e conspiradores que osenhor de Sartines lhe lanou em rosto; mas olhei para o senhor antes deproceder e fiz o que ordenou.

    - Minha senhora - respondeu Blsamo - pagou largamente opequeno servio que pude prestar-lhe; mas comigo nunca se perde. Eusei agradecer o que me fazem, ver. No julgue entretanto que soualgum criminoso, algum conspirador, como diz o senhor de Sartines. Obom magistrado recebeu das mos de algum, que me atraioou, estecofre cheio com os meus segredinhos qumicos e hermticos, segredos,senhora condessa, de que lhe quero fazer participar, para que conserveessa imortal, essa esplndida formosura, essa deslumbrante mocidade.Ora, vendo a cifra das minhas frmulas, o caro senhor de Sartineschamou o seu ajudante da chancelaria, que, para no dar o brao atorcer, interpretou a cifra a seu modo. Creio ter-lho j dito uma vez,

    minha senhora, este ofcio no est ainda livre de todos os perigos que ocercavam na Idade Mdia: s os espritos inteligentes e novos como o seu

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    lhe so favorveis. Enfim, minha senhora, tirou-me de um embarao,confesso-o, e hei-de provar-lhe a minha gratido.

    - Mas o que lhe teria ele feito, se eu lhe no tivesse acudido?- Para pregar uma pea ao rei Frederico, que Sua Majestade odeia,

    mandava-me fechar em Vincennes ou na Bastilha. Bem sei que havia de

    sair de l, graas ao meu processo para derreter a pedra com o bafo, masteria perdido nisso o meu cofre, que contm, como tive a honra de lhedizer, muitas frmulas curiosas e impagveis, arrancadas por um felizacaso da cincia s trevas eternas.

    - Ai, conde, sossega-me e encanta-me ao mesmo tempo. Promete-me portanto uma receita para me tornar mais nova?

    - Prometo.- E quando ma d?- Oh! No h pressa, h-de pedir-ma daqui a vinte anos, formosa

    condessa. Agora no creio que deseje tornar-se criana.- Na verdade, um homem encantador; mas ainda lhe quero fazer

    uma pergunta e depois deixo-o, porque me parece estar com pressa.- Fale, condessa.- Disse-me que algum o tinha atraioado; homem ou mulher?- mulher.- Ah! Ah! Conde; amor!- Ah! Sim, amor e cime, que chegam ao desespero, e que

    produzem o lindo efeito que viu. A est uma mulher, que, no seatrevendo a dar-me uma punhalada, porque sabe que me no podematar, quis fazer-me enterrar numa priso e arruinar-me.

    - Arruin-lo, como?

    - Assim o julgava ela, pelo menos.- Conde, eu mando parar - disse a condessa rindo. - o azougueque lhe gira nas veias, que lhe d essa imortalidade que faz com que odenunciem em vez de o matar? Quer apear-se aqui ou deseja que aminha carruagem o leve a casa?

    - No, minha senhora, seria demasiada bondade da sua parte torcero caminho por minha causa. Tenho a o meu cavalo Djrid.

    - Ah! Aquele maravilhoso animal que, segundo dizem, corre mais doque o vento?

    - Vejo que lhe agrada, minha senhora.- Na realidade um cavalo magnfico.

    - Permite que lho oferea, com a condio que s a senhoracondessa o montar?- Oh! No, muito agradecida; no monto a cavalo, ou pelo menos

    monto com grande timidez. Agradeo tanto a sua oferta como se aaceitasse. Adeus, caro conde, no esquea daqui a dez anos o meu filtroregenerador.

    - Eu disse vinte anos.- Conde, conhece o ditado: Mais vale um pssaro... E mesmo, se

    mo pudesse dar dentro de cinco anos... Ningum sabe o que podersuceder.

    - Quando lhe aprouver, condessa. No sabe que estou sempre s

    suas ordens?- Uma ltima palavra, conde.

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    - Diga, minha senhora.- S por ter grande confiana no senhor que lha dirijo.Blsamo, que j se tinha apeado, venceu a impacincia e

    aproximou-se novamente da condessa.- Dizem por toda a parte - continuou a senhora du Barry - que el-rei

    gosta da menina de Taverney.- Ah! Minha senhora - disse Blsamo - possvel?- E que gosta muito, segundo afirmam. Se isso verdade, preciso

    que mo diga. Conde, no me oculte nada; trate-me como amigo, peo-lhoe diga-me a verdade.

    - Minha senhora - redargiu Blsamo - farei mais; afiano-lhe quenunca Andria h-de ser amante de el-rei.

    - E por qu? - bradou a senhora du Barry.- Porque no o quero eu - disse Blsamo.- Oh! - disse a senhora du Barry incrdula.- Duvida?

    - No permitido?- Nunca duvide da cincia, minha senhora. Acreditou quando eu

    disse: sim, creia-me tambm quando digo: no.- Mas enfim tem meios?...Deteve-se sorrindo.- Acabe.- Meios capazes de aniquilar a vontade de el-rei ou de combater as

    suas fantasias?Blsamo tambm sorriu.- Sei criar simpatias - disse ele.

    - Sim, isso sei eu.- E cr?- Creio.- Pois bem, do mesmo modo criarei repugnncias, e sendo preciso

    impossibilidades. Assim, sossegue, condessa, eu velo.Blsamo soltava todas essas pequenas frases com tal distraco,

    que a senhora du Barry no as teria tomado como tomou poradivinhao, se soubesse a sede febril que Blsamo tinha de ver quantoantes Lorenza.

    - Vamos - disse ela - decididamente o conde no s o meu profetade felicidade, seno tambm o meu anjo da guarda. Conde, d ateno,

    eu o defenderei, defenda-me a mim. Aliana! Aliana!- Conte comigo, minha senhora - redargiu Blsamo.E beijou mais uma vez a mo da condessa.Depois, fechando a portinhola da carruagem, que a condessa fizera

    parar nos Campos Elsios, montou o seu cavalo, que relinchou de prazer,e em breve desapareceu na escurido da noite.

    - Para Luciennes! - bradou a Sr. Condessa du Barry maissossegada.

    Desta vez, Blsamo soltou um leve assobio, apertou ligeiramente osjoelhos e deu a mo a Djrid, que o levou a galope.

    Cinco minutos depois, estava no vestbulo da Rua de Saint-Claude,

    olhando para Fritz.- Ento? - perguntou ele com ansiedade.

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    - Sim, mestre - respondeu o criado, que tinha o costume de ler-lhenos olhos.

    - Voltou?- Est l em cima.- Em qual das casas?

    - Na cmara das peles.- Em que estado?- Oh! Muito cansada; corria to rapidamente que eu, que de longe a

    vi chegar, porque esperava por ela, nem tive tempo de lhe correr aoencontro.

    - Realmente?- Oh! At me assustou; entrou aqui como um furaco, subiu a

    escada sem tomar flego, e de repente, entrando na cmara, caiu sobre apele grande de leo preto; l a encontrar.

    Blsamo subiu precipitadamente e achou com efeito Lorenza quelutava sem foras contra as primeiras convulses de uma crise nervosa.

    Havia tempo demasiado que o fluido pesava sobre ela e a impelia paraactos violentos. Padecia, gemia; dir-se-ia que sobre o peito lhe pesavauma montanha, que ela tentava afastar com as mos.

    Blsamo contemplou-a um instante com olhar enraivecido, elevantando-a nos braos, levou-a para o quarto, cuja porta misteriosa sefechou aps ele.

    IV

    O ELIXIR DA VIDA

    conhecida a disposio em que Blsamo acabava de entrar noquarto de Lorenza.

    Dispunha-se a acord-la e a fazer-lhe as admoestaes quemeditava na sua clera silenciosa; queria castig-la severamente,seguindo os ditames da mesma clera, quando soaram trs pancadas notecto, avisando-o de que Althotas espreitara o seu regresso e queria falar-lhe.

    Blsamo porm demorou-se ainda; esperava que se tivesseenganado, ou que o sinal fosse unicamente casual, quando o impacienteancio reiterou a chamada; de modo que Blsamo, receando sem dvida

    v-lo descer, como j por vezes acontecera, ou que Lorenza, acordada poruma influncia contrria sua, tomasse conhecimento de alguma novaparticularidade, no menos perigosa para ele do que os seus segredospolticos; de modo que Blsamo, dizemos depois de ter, se assim permitido exprimir-nos, carregado Lorenza com uma nova poro defluido, saiu para ir ter com Althotas.

    Era tempo, o alapo descia. Althotas abandonara a sua cadeira derodas, e mostrava-se agachado sobre a parte mvel do sobrado, quedescia e subia.

    Viu sair Blsamo do quarto de Lorenza.Daquele modo agachado, o ancio era ao mesmo tempo terrvel e

    hediondo.

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    No rosto, ou antes nalguns pontos dele em que parecia haver vida,ardia o fogo da clera; as mos afiladas e nodosas como as de umesqueleto, tremiam-lhe; os olhos encovados pareciam vacilar-lhe nasrbitas profundas, e numa linguagem, que nem o discpulo conhecia,proferia as invectivas mais violentas contra ele.

    Ergueu-se da poltrona para fazer saltar a mola; parecia que s viviae se movia com o auxlio dos braos, compridos, delgados e redondoscomo os de uma aranha; e saindo, como dissemos, do quarto apenasacessvel a Blsamo, tratava de se transportar para o quarto inferior.

    Para que o fraco velho, de si to preguioso, tivesse deixado a suapoltrona, mquina inteligente que lhe poupava todas as fadigas; para quese tivesse dado ao incmodo de operar semelhante mudana nos seuscostumes, era preciso que uma grande excitao o tivesse obrigado a sairda vida contemplativa para entrar na vida real.

    Blsamo, surpreendido por assim dizer em flagrante delito,mostrou-se a princpio admirado, depois inquieto.

    Blsamo, segundo costumava quando falava com o velho, chamouem auxlio toda a sua pacincia.

    - Ah! - gritou Althotas - eis a, preguioso, eis a, poltro, queabandonas teu mestre!

    - Mas - redargiu brandamente - parece-me, meu amigo, que mechamou neste mesmo instante.

    - Teu amigo! - bradou Althotas - teu amigo, vil criatura humana?Parece-me que me falas na linguagem dos teus semelhantes. Amigo parati, pudera no. Mais que amigo, pai, que te nutriu, que te criou, que teinstruiu, que te enriqueceu. Mas tu no s meu amigo, no, porque me

    abandonaste, porque me matas, porque me assassinas!- Vamos, mestre; exalta assim a blis, corrompe o sangue, podeadoecer.

    - Doente! Eu! Irriso! Estive eu nunca doente, a no ser quando mefizeste participar, contra minha vontade, de algumas das misrias da vilcondio humana? Doente! J te no lembras que sou eu quem cura osoutros?

    - Enfim, mestre - redargiu Blsamo friamente - aqui estou; nodesperdicemos tempo.

    - Sim, fazes bem em mo lembrar: o tempo que me obrigas aeconomizar, a mim, para quem no deveria ter fim nem limite essa

    fazenda, medida e contada para cada criatura humana; sim, o meu tempopassa-se; sim, o meu tempo, como o tempo de todos, cai minuto porminuto na eternidade, quando o meu tempo devia ser a prpriaeternidade!

    - Vamos, mestre - disse Blsamo com inaltervel pacincia, fazendodescer de todo o alapo, colocando-se nele ao lado do ancio ecarregando na mola que o fazia subir; - vamos a saber, o que preciso,diga? Diz que o mato. fome? No est agora na sua quarentena dedieta absoluta?

    - Estou, sim, h trinta e dois dias que comecei a obra deregenerao.

    - Ento, diga-me, de que se queixa? Vejo a duas ou trs garrafas degua da chuva, nica de que bebe.

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    - certo, mas imaginas que eu seja algum bicho-da-seda, paraoperar por mim s esta grande transformao? Imaginas que, no tendoj foras, poderei compor sozinho o meu elixir da vida? Imaginas tu que,deitado de lado, amolecido pelas bebidas refrigerantes, meu nicosustento, terei o esprito muito tranqilo, se me no auxiliares, para fazer,

    abandonado aos meus nicos recursos, o trabalho minucioso da minharegenerao, no qual tu bem o sabes, desgraado - devo ser ajudado esocorrido por um amigo?

    - Pois aqui me tem, mestre, aqui estou; mas vamos, responda -redargiu Blsamo assentando quase fora o velho na poltrona, como oteria feito a uma criana disforme - vamos, responda: no lhe tem faltadogua destilada, porque, como h pouco lhe dizia, vejo a trs garrafascheias; essa gua foi apanhada no ms de Maio, bem o sabe; estotambm a os seus biscoitos de aveia, e eu mesmo lhe forneci as gotasbrancas que pediu.

    - Sim, mas o elixir! O elixir no est composto. No te podes

    lembrar disso, que no estavas ento presente: era teu pai, teu pai, maisfiel que tu; na minha ltima cinquentena, compus o elixir com um ms deantecipao. Tinha-me retirado para o monte Ararat. Um judeu forneceu-me pelo que pesava em prata uma criana crist, que mamava ainda;sangrei-a segundo o rito, recolhi as ltimas trs gotas de sangue arterial,e uma hora depois o meu elixir, a que s faltava aquele ingrediente, ficoupronto; por isso a minha regenerao de cinquentena passou-semaravilhosamente; os cabelos e os dentes caram-me durante asconvulses que sucederam absoro do feliz elixir, outros, porm,vieram, os dentes maus, verdade, porque desprezei a precauo de

    introduzir o elixir na garganta por meio de um pequeno tubo de ouro, masos cabelos e as unhas nasceram-me de novo nessa segunda mocidade, eachei-me a viver novamente como se tivesse quinze anos. Mas tornei aenvelhecer, e chego quase ao ltimo termo; se o elixir no estiver pronto,se o no meter nesta garrafa, se no prestar toda a minha ateno a estaobra, morrer comigo a cincia de um sculo, e o segredo admirvel,sublime, que conheo, ser perdido para o homem, que em mim e pormim toca a divindade. Oh! Se eu faltar, se me enganar, a culpa ser tua,Acharat, e toma sentido, que a minha clera h-de ser terrvel!

    E pronunciando estas ltimas palavras, que lhe fizeram sair comoque lvida fasca dos olhos moribundos, o sbio caiu numa pequena

    convulso, a que sucedeu um violento ataque de tosse seca.Blsamo prestou-lhe imediatamente todos os socorros possveis.O ancio tornou a si, j no estava plido, estava lvido. O fraco

    acesso de tosse esgotara-lhe as foras a ponto tal que parecia estar paramorrer.

    - Vamos, mestre - disse-lhe ento Blsamo - pea o que quiser.- O que quiser... - disse ele olhando fixamente para Blsamo.- Sim, o que quiser...- O que eu quero, isto...- Diga e eu obedecerei, se a coisa que desejar for possvel.- Possvel... Possvel... - murmurou desdenhosamente o ancio. -

    Tudo possvel, bem o sabes.- Sim, decerto, com o tempo e a cincia.

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    - A cincia, tenho-a; o tempo, estou a ponto de o vencer; a minhadose teve bom xito; as minhas foras desapareceram quaseinteiramente; as gotas brancas provocaram a expulso de uma parte dosrestos da natureza envelhecida. A juventude, semelhante seiva dasrvores de Maio, cresce debaixo da casca antiga e nutre por assim dizer a

    nova madeira. Nota, Acharat, que os sintomas so excelentes; a minhavoz est enfraquecida, a minha vista descaiu trs quartos; sinto porintervalos a cabea perdida; a transio do calor ao frio tornou-se-meinsensvel; portanto de urgncia para mim acabar o meu elixir, a fim deque no prprio dia da minha segunda cinquentena, passe de cem anospara vinte sem hesitao; os meus ingredientes para esse elixir estopreparados, o canal est feito, j me no faltam seno as ltimas trsgotas de sangue, de que te falei.

    Blsamo fez um movimento de repugnncia.- Est bom - disse Althotas - renunciemos criana, visto que to

    difcil , e que tu achas prefervel fechar-te no quarto com a tua amante a

    procurar-me alguma.- Sabe muito bem, mestre, que Lorenza no minha amante -

    respondeu Blsamo.- Oh! Oh! Oh! - disse Althotas - julgas fazer-me crer a mim o que

    fazes crer outra gente? Pretendes que eu creia nessa criaturaimaculada, e s homem!

    - Juro-lhe, mestre, que Lorenza casta como a santa me de Deus,juro-lhe que amor, desejos, voluptuosidade terrestres, tudo sacrifiquei minha obra, porque eu tambm tenho a minha obra regeneradora, com adiferena que em vez de aplic-la a mim mesmo, h-de ser aplicada ao

    mundo inteiro.- Louco, pobre louco! - bradou Althotas. - Parece-me que me vaisfalar outra vez dos teus cataclismos de insectos, das tuas revolues deformigas, quando te falo da vida eterna, da eterna juventude.

    - Que s pode alcanar-se por meio de um crime horrvel, e aindaassim...

    - Duvidas? Parece-me que duvidas, desgraado?- No, mestre; mas enfim, se renuncia criana, fale, vamos, o que

    precisa?- -me preciso a primeira criatura virgem que me cair debaixo das

    mos: homem ou mulher, pouco importa, entretanto seria melhor que

    fosse mulher. Descobri isto por causa da afinidade dos sexos; arranja-sepois o que te peo, e avia-te, porque j no tenho seno oito dias.- Bem, mestre; - disse Blsamo - eu verei, eu procurarei.Novo raio, mais terrvel que o primeiro, cintilou nos olhos do ancio.- Vers, procurars! - bradou ele. - Oh! essa a tua resposta? Eu j

    a esperava tal qual, nem sei como me admiro. E desde quando, nfimoverme, se atreve a criatura a falar assim ao criador? Ah! Vs-me semforas, ah! Vs-me deitado, solicitando, e s bastante ignorante parajulgares que estou em teu poder? Sim ou no, Acharat, e no tenhas nosolhos nem embarao nem mentira, porque te vejo bem e leio no teucorao; porque te julgo e hei-de castigar-te.

    - Mestre - respondeu Blsamo - cautela, a sua clera vai fazer-lhemal.

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    - Responde! Responde!- No sei dizer ao meu mestre seno a verdade, verei se posso

    procurar o que deseja, sem nos prejudicar a ambos, sem nos perder, at.Procurarei um homem que nos venda a criatura de que precisa; mas nome responsabilizarei pelo crime. tudo quanto posso dizer-lhe.

    - coisa delicada - disse Althotas com amargo sorriso.- E assim exactamente, mestre - disse Blsamo.Althotas, fez um esforo to poderoso, que, com o auxlio dos

    braos apoiados nos da poltrona, ps-se de p.- Sim ou no? - disse ele.- Mestre, sim, se eu achar; no, se no achar.- Queres ento expor-me a morrer, miservel? Economizars trs

    gotas de sangue de um animal imundo e nulo, como a criatura de quepreciso, para deixar cair no eterno abismo a criatura perfeita que eu sou.Ouve, Acharat, j te no peo mais nada - disse o ancio com um sorrisoaterrador - no, absolutamente nada mais te peo. Esperarei; mas se me

    no obedeceres, hei-de servir-me a mim mesmo, se me abandonas eu mesocorrerei. Ouviste, no verdade? Agora retira-te.

    Blsamo, sem responder a esta ameaa, preparou em torno doancio o que lhe era necessrio, ps ao seu alcance a bebida e osustento, fez tudo quanto tinha que fazer, cumpriu todos os deveres,enfim, que um cuidadoso servidor teria por seu amo, que um filhodedicado teria por seu pai; depois, absorto noutro pensamento diversodaquele que atormentava Althotas, baixou o alapo para descer, semreparar que o olhar irnico do ancio o seguia quase to longe quantoalcanava o seu esprito e o seu corao.

    Althotas sorria ainda como um gnio mau, quando Blsamo seencontrou defronte de Lorenza, que se conservava adormecida.

    V

    LUTA

    Ali parou Blsamo com o corao opresso por dolorosospensamentos.

    Dizemos dolorosos e no violentos.A cena que entre ele e Althotas tivera lugar, fazendo-lhe encarar

    talvez o nada das coisas humanas, expelira-lhe da alma toda a clera.Lembrava-se do processo seguido pelo filsofo, que recitava todo oalfabeto grego antes de escutar a voz negra da divindade, conselheira deAquiles.

    Passado um instante de fria e muda contemplao diante daquelecanap onde Lorenza estava deitada, disse consigo, triste, mas resoluto eencarando claramente a sua situao:

    - Lorenza odeia-me; Lorenza ameaou trair-me e traiu-me, o meusegredo j me no pertence, deixei-o nas mos desta mulher, que odivulga; pareo-me com a raposa que, presa na armadilha de ao, sretirou dela o osso da perna, deixando l a pele e a carne, de modo que

    no dia seguinte pde o caador dizer: A raposa caiu no lao, morta ouviva facilmente a conhecerei. E essa espantosa desgraa, essa desgraa

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    que Althotas no pode compreender, e por isso nem sequer lha contei;essa desgraa, que despedaa todas as minhas esperanas de fortunaneste pas, e por conseqncia neste mundo, cuja alma a Frana, acriatura que est aqui adormecida, a esta bela esttua de encantadorsorriso que a devo. Devo a este anjo sinistro a desonra e a runa,

    enquanto lhe no dever o cativeiro, o exlio, a morte. Portanto prosseguiu ele animando-se - a soma do bem foi ultrapassada pela domal, e Lorenza prejudica-me. serpente de formosas roscas, mas queesmagam, de garganta dourada, mas cheia de veneno, dorme! Dorme!Porque, quando acordares, terei de matar-te!

    E Blsamo, com sorriso sinistro, aproximou-se lentamente deLorenza, cujos olhos, carregados de languidez, se ergueram para ele medida que se aproximava, como os girassis e os volubilis se abrem aosprimeiros raios do sol nascente.

    - Oh! - disse Blsamo - terei de fechar para sempre aqueles olhos,que neste momento se cravam em mim com tanta ternura; aqueles lindos

    olhos, que despedem raios, quando no esto cheios de amor.Lorenza sorriu docemente, e sorrindo assoalhava as duas ordens de

    dentes, que pareciam prolas.- Mas, matando a que me odeia - continuou Blsamo torcendo os

    braos - mato igualmente a que me ama!E o corao encheu-se-lhe de dor profundssima, singularmente

    unida a um vago desejo.- No - murmurou ele - no; jurei em vo. Ameacei inutilmente; no,

    nunca terei nimo de a matar; no, ela h-de viver, mas h-de viver semtornar a ser acordada; h-de viver essa vida factcia, que h-de ser para

    ela a felicidade, ao passo que a outra o desespero. Possa eu torn-lafeliz, que importa o resto?... No ter seno uma existncia, aquela queeu lhe der, aquela durante a qual se ama, aquela que vive nestemomento.

    E fixou um terno olhar no olhar amoroso de Lorenza, ao mesmotempo que ia lentamente baixando a mo sobre a cabea da gentilsonmbula.

    Naquele momento, Lorenza, que parecia ler no pensamento deBlsamo como em livro aberto, soltou profundo suspiro, ergueu-sedocemente e com todo o suave vagar do sono, foi lanar os braosbrancos e formosos ao pescoo de Blsamo, que sentiu nos lbios o hlito

    perfumado da virgem.- Oh! No, no! - bradou Blsamo passando a mo pela fronteardente e pelos olhos deslumbrados; - no, esta vida de embriaguezconduziria ao delrio; no, eu nem sempre poderia resistir, e com ela, comeste demnio tentador, com esta sereia, a glria, o poder, a imortalidadefugiriam. No, no, h-de acordar, eu quero-o, preciso.

    Embriagado, fora de si, Blsamo teve ainda foras para repelirLorenza, que se desprendeu dele, e como um vu flutuante, como umasombra, como um floco de neve, foi cair no sof.

    A mais ansiosa coquete no escolheria, para se oferecer vista doamante, posio mais tentadora.

    Inebriado, fora de si, Blsamo teve foras para dar alguns passos eafastar-se: mas, como Orfeu, voltou-se e perdeu-se!

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    - Oh! Se a acordar, ela mata-se, ou mata-me ou obriga-me a mat-la. Abismo! Abismo! Sim, o destino desta mulher est escrito, parece-mel-lo em caracteres de fogo: morte! Amor! Lorenza! Lorenza! spredestinada para amar e morrer. Lorenza! Lorenza! Tenho nas minhasmos a tua vida e o teu amor.

    A nica resposta da feiticeira foi levantar-se, caminhar direita aBlsamo, cair-lhe aos ps, olhar para ele com os olhos banhados em sonoe volpia, pegar-lhe numa das mos e lev-la ao corao.

    - Morte! - disse ela em voz baixa, com os lbios midos e brilhantescomo o coral que sai do mar - morte, mas amor!

    Blsamo recuou dois passos, com a cabea reclinada para trs, e amo nos olhos.

    Lorenza, arquejante, seguiu-o de rastos.- Morte! - repetiu ela com a sua voz inebriante - mas amor! Amor!Blsamo no pde resistir mais tempo; uma nuvem de chamas o

    cercava.

    - Oh! - disse ele - de mais; lutei tanto tempo quanto o pode fazerum ente humano. Demnio ou anjo do porvir, quem quer que tu sejas,deves estar contente! Bastante tempo sacrifiquei ao egosmo e aoorgulho todas as generosas paixes que em mim fervem. Oh! No, notenho direito de assim me revoltar contra o nico sentimento humanoque fermenta no fundo do meu corao. Amo esta mulher; amo-a e esteamor apaixonado faz contra ela mais do que faria o dio mais terrvel.Este amor d-lhe a morte; oh! Covarde! Oh! Louco varrido que eu sou,nem sei satisfazer os meus desejos. Como! Quando eu exalar o ltimosuspiro, quando me aprontar para comparecer diante de Deus, eu, o

    enganador, eu, o falso profeta; quando despir o meu manto de artifcios ehipocrisia diante do Soberano Juiz, no terei uma nica aco generosa deque me confessar, no terei uma nica felicidade cuja recordao venhaconsolar-me no meio dos padecimentos eternos. Oh! No, no, Lorenza,bem sei que amando-te perco o futuro; bem sei que o meu anjo reveladorvai subir aos cus desde que a mulher descer aos meus braos. Masassim o queres, Lorenza, assim o queres!

    - Meu querido! - disse ela suspirando.- Ento aceitas essa vida factcia, em lugar da vida real?- Peo-a de joelhos, rogo, suplico; esta vida o amor, a felicidade.- E h-de bastar para ti, quando fores minha mulher, porque te amo

    ardentemente.- Oh! Bem o sei, pois que leio claramente em teu corao.- E nunca me acusars, nem perante os homens, nem perante Deus,

    de ter surpreendido a tua vontade, de ter iludido o teu corao?- Nunca! Nunca! Oh! Perante os homens e perante Deus eu te

    agradecerei de me teres dado o amor, o nico bem, a nica prola, onico diamante deste mundo.

    - Nunca ters saudades das tuas asas, pobre pomba; porque, devessab-lo, no tornars a voar pelos espaos radiosos a fim de procurarpara mim, junto do trono de Jeov, o raio de luz que ele outrora mandava fronte dos seus profetas. Quando eu quiser saber o futuro, quando

    quiser dar ordens aos homens, oh! A tua voz j me no responder; eu

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    tinha em ti ao mesmo tempo a mulher amada e o gnio auxiliar, j noterei seno um dos dois, e ainda assim...

    - Ah! Duvidas - bradou Lorenza; - vejo a dvida como uma ndoanegra sobre o teu corao.

    - Hs-de amar-me sempre, Lorenza?

    - Sempre, sempre!Blsamo passou a mo pela fronte.- Pois bem, seja - disse ele. - E demais...Permaneceu um instante mergulhado nos seus pensamentos.- Demais, preciso eu absolutamente desta? prosseguiu ele. - ela

    a nica no mundo? No, no; enquanto esta me fizer feliz, outracontinuar a fazer-me rico e poderoso. Andria moa, pura, virgem, eeu no amo Andria; e contudo, durante o seu sono, Andria mostra-seto submissa para mim como tu; tenho em Andria uma vtima prontapara tomar o teu lugar, e para mim essa a alma vil do mdico, que podeservir para as experincias; ela voa to longe como tu, talvez mais longe

    ainda, rasga o vu do desconhecido. Andria! Andria! Tomo-te paraminha realeza. Lorenza, vem aos meus braos; guardo-te para minhaamante. Com Andria sou poderoso; com Lorenza sou feliz. A comeardesta hora unicamente, a minha vida completa, e, menos aimortalidade, sou o igual dos deuses!

    VI

    AMOR

    Comeara para Blsamo outra vida, vida desconhecida at entoquela existncia activa, perturbada, mltipla. Havia j trs dias que noconhecia apreenses, nem cleras, nem cimes; havia trs dias que noouvia falar em poltica, nem em conspiraes, nem em conspiradores.Junto de Lorenza, de quem no se apartara um s instante, esquecera omundo inteiro. Aquele amor estranho, inaudito, que decerto modo pairavaacima da humanidade, aquele amor cheio de embriaguez e de mistrios,aquele amor de fantasma, porque no esquea que bastava uma palavrapara transformar a amante terna em inimiga implacvel; aquele amor,arrancado ao dio, graas a um inexplicvel capricho da natureza ou dacincia, lanava Blsamo numa felicidade, que participava a um tempo do

    delrio e do assombro.Mais de uma vez, durante aqueles trs dias, ao acordar dosentorpecimentos de amor, Blsamo olhava para a gentil companheira,sempre risonha, sempre exttica, porque na existncia que acabava delhe criar, fazia-a repousar da vida factcia lanando-a no xtase, sonoigualmente enganador; e quando assim a via tranqila, terna, feliz,tratando-o pelos nomes mais doces e sonhando em voz alta a suamisteriosa voluptuosidade, mais de uma vez perguntou a si mesmo seDeus no estaria irritado contra o Tit moderno, que tentara roubar-lhe osseus segredos, se no comunicara a Lorenza a idia de o enganar pormeio de uma mentira, para desse modo adormecer a sua vigilncia, e

    adormecida ela, fugir para no tornar a aparecer seno como Eumnidesvingadora.

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    Em tais momentos, Blsamo duvidava daquela cincia, recebida portradio da antiguidade, mas de que s tinha exemplos para prova.

    Em breve porm aquela chama perptua, aquela sede constante decarcias o sossegavam.

    - Se Lorenza dissimulasse - dizia consigo - se tivesse teno de fugir

    novamente, procuraria ocasio de me afastar de si, de estar s; mas,longe disso, so sempre os seus braos que me prendem comoinextricvel cadeia; sempre o seu olhar ardente que me diz: No tevs; sempre a sua doce voz que me diz: Fica!

    Ento Blsamo readquiria a sua confiana em si e na cincia.Por que efectivamente, havia aquele segredo mgico, a que devia

    todo o seu poder, de tornar-se repentinamente, sem transio, umaquimera to desprezvel como uma recordao desvanecida, como o fumode um fogo apagado? Nunca, relativamente a ele, Lorenza fora maislcida, mais vidente; todos os pensamentos que no esprito se lheformulavam, todas as impresses que lhe faziam estremecer o corao,

    reproduzia-as Lorenza no mesmo instante.Faltava saber se aquela lucidez no era simptica; se fora dele e da

    amante, do outro lado do crculo traado pelo amor de ambos e que oamor de ambos inundava de luz; faltava saber se os olhos da alma, queto claro viam antes da queda dessa nova Eva, poderiam ainda penetrara escurido.

    Blsamo no ousava fazer a experincia decisiva, esperava sempre,e a esperana formava uma coroa estrelada sua felicidade.

    Algumas vezes Lorenza lhe dizia, com branda melancolia:- Acharat, tu pensas noutra mulher, uma mulher do norte, de

    cabelos louros, de olhos azuis; Acharat, ai! Acharat, aquela mulher andousempre ao meu lado no teu pensamento.Ento Blsamo olhava ternamente para Lorenza.- Vs isso em mim? - dizia ele.- Oh! Sim, to claramente como o poderia ver num espelho.- Ento, bem vs que no por amor que penso nessa mulher - lhe

    respondeu Blsamo; - l, l em meu corao, querida Lorenza.- No - dizia esta abanando a cabea - no, bem o sei; mas divides o

    teu pensamento por ambas ns, como no tempo em que Lorenza Felicianite atormentava, aquela m Lorenza, que dorme e j no queres acordar.

    - No, meu amor, no - bradou Blsamo; - s penso em ti, com o

    corao, pelo menos; tudo tenho esquecido e descurado depois da nossafelicidade: estudos, poltica, trabalhos.- E faz estual - disse Lorenza - porque nesses trabalhos posso

    ajudar-te.- Como?- Sim, antigamente no passavas horas inteiras fechado no teu

    laboratrio?- Certamente, mas renuncio a todas essas vs tentativas; seriam

    outras tantas horas diminudas da minha existncia, porque durante essetempo no te poderia ver.

    - E por que te no acompanharei eu nos teus trabalhos como no teu

    amor? Por que te no farei poderoso como te fao feliz?

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    - Porque a minha Lorenza formosa, verdade, mas a minhaLorenza no estudou. Deus d a formosura e o amor, mas a cincia s ad o estudo.

    - A alma tudo sabe.- ento realmente com os olhos da alma que tu vs?

    - .- E podes guiar-me, dizes tu, nesta grande obra de procurar a pedrafilosofal?

    - Creio que sim.- Vem comigo.E Blsamo, cingindo com o brao a cintura da romana, conduziu-a

    ao seu laboratrio.A fornalha gigantesca, que havia quatro dias estava abandonada,

    tinha o fogo apagado.Os cadinhos estavam frios.Lorenza olhou sem admirao para todos aqueles instrumentos to

    singulares, derradeiras combinaes da moribunda alquimia; pareciaconhecer a serventia de cada um.

    - Procuras fazer ouro? - disse ela sorrindo.- Procuro, sim.- Todos esses cadinhos contm preparaes em diferentes graus?- Todas paradas, todas partidas; mas no as lamento.- E tens razo, porque o teu ouro nunca h-de ser seno mercrio

    colorido, talvez consigas torn-lo slido, mas nunca o transformars.- Mas pode fazer-se ouro?- No.

    - Mas Daniel de Transilvnia vendeu por vinte mil ducados, a CosmeI, a receita para a comutao dos metais.- Daniel de Transilvnia enganou Cosme I.- Mas o saxnio Payken, condenado morte por Carlos II, resgatou

    a vida mudando uma barra de chumbo em ouro, de que se tiraramquarenta ducados, e uma medalha, que foi cunhada grande glria dohbil alquimista.

    - O hbil alquimista que era um hbil prestmano substituiu a barrade chumbo, nada mais. O teu modo mais certo de fazer ouro, Acharat, fundir em barras, como costumas faz-lo, as riquezas que os teusescravos vm trazer-te das quatro partes do mundo.

    Blsamo ficou pensativo.- Assim - disse ele - a transmutao dos metais impossvel?- Impossvel.- Mas, por exemplo - perguntou Blsamo - o diamante?- Oh! O diamante, isso outra coisa - disse Lorenza.- Pode-se ento fazer diamante?- Pode, porque fazer diamante no operar a transmutao de um

    corpo noutro; fazer diamante, operar a simples modificao de umelemento conhecido.

    - Mas conheces ento o elemento de que se forma o diamante?- Decerto conheo: o diamante a cristalizao do carbono puro.

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    Blsamo ficou assombrado. Uma luz deslumbrante, inesperada,inaudita, lhe feria os olhos; cobriu-os com as mos como se o cegasseaquela chama.

    - Oh! Meu Deus - disse ele - meu Deus, fazes muito por mim,ameaa-me algum perigo. Meu Deus! Qual o anel precioso que eu posso

    lanar ao mar para conjurar a tua ira? Basta, basta por hoje, Lorenza,basta!- No te perteno eu? Ordena, manda!- Sim, s minha, vem, vem.E Blsamo levou Lorenza para fora do laboratrio, atravessou o

    quarto das peles, e sem prestar ateno a um leve estalar que ouviuacima da cabea, voltou com Lorenza para o quarto das grades.

    - Assim - perguntou ela - ests contente com a tua Lorenza, meuquerido Blsamo?

    - Se estou! - exclamou ele.- O que receavas tu, diz, fala?

    Blsamo, de mos postas, olhou para Lorenza com uma expressode terror, que fora impossvel ser compreendida por qualquer outrapessoa que no lhe soubesse ler na alma.

    - Oh! - murmurou ele - e eu que estive a ponto de matar este anjo,eu que estive a ponto de morrer de desespero antes de resolver esteproblema de ser feliz e poderoso ao mesmo tempo; eu que olvidei que oslimites do possvel sempre ultrapassam o horizonte marcado pelo estadopresente da cincia, e que a maior parte das verdades, que se tmtornado factos, comeam sempre por ser olhadas como vises; eu, quejulgava saber tudo, e que nada sabia!

    Lorenza sorriu divinamente.- Lorenza, Lorenza - prosseguiu Blsamo - realizou-se portanto essemisterioso desgnio do Criador, que faz nascer a mulher da carne dohomem, e que lhes ordena que tenham um s corao para ambos. Evaressuscitou para mim; Eva, que no h-de passar sem mim, e cuja vidaest suspensa do fio que tenho nas mos; demais, meu Deus, para umas criatura, e sucumbo ao peso dos teus benefcios!

    E caiu de joelhos, abraando com adorao aquela suaveformosura, que lhe sorria na Terra.

    - Pois bem! - prosseguiu - no, tu no me largars mais; sob o teuolhar, que v nas trevas, viverei com toda a segurana: hs-de auxiliar-

    me nas laboriosas indagaes que s tu, como disseste, podiascompletar, e que uma palavra tua tornar fceis e fecundas; sers tuquem me diga, se no posso fazer ouro, visto que o ouro uma matriahomognea, um elemento primitivo, em que parcela da sua criao oocultou Deus; sers tu quem me diga onde jazem os tesouros secularesque os imensos abismos do Oceano escondem. Verei com os teus olhosarredondar-se a prola na sua concha de ncar, e crescer o pensamentodo homem sob as lamacentas camadas da carne. Ouvirei, com os teusouvidos, a abafada roedura do verme debaixo da terra, e o passo doinimigo que se aproximar de mim. Serei grande como Deus, e mais felizque Deus, minha Lorenza, porque Deus Todo-Poderoso, mas est s na

    sua majestade divina e no partilha com ente algum divino como ele,essa omnipotncia que o faz ser Deus.

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    E Lorenza sorria sempre; e sorrindo, respondia s palavras comardentes carcias.

    - E contudo - murmurava ela como se tivesse visto no crnio do seuamante cada pensamento que agitava as fibras daquele crebroirrequieto - e contudo duvidas, como j disseste, que eu possa sair do

    crculo do nosso amor, duvidas que possa ver em distncia; mas consolas-te dizendo que se eu no vejo, ela h-de ver.- Ela, quem?- A mulher loura; queres que lhe diga o nome?- Diz.- Espera... Andria...- Oh! isso. Sim, ls no meu pensamento; sim, um ltimo receio me

    perturba. Vs tu sempre atravs do espao, ainda que esse espao sejacortado por objectos materiais?

    - Experimenta.- D-me a mo, Lorenza.

    Lorenza pegou vivamente na mo de Blsamo.- Podes seguir-me?- Por toda a parte.- Vem.E Blsamo, saindo, mentalmente, da Rua de Saint-Claude, levou

    consigo o pensamento de Lorenza.- Onde estamos? -perguntou ele a Lorenza.- Estamos numa montanha - respondeu ela.- Sim, isso - disse Blsamo, estremecendo de prazer; - mas o que

    vs tu?

    - Em frente, da direita, ou da esquerda?- Em frente.- Vejo um imenso vale com uma floresta de um lado, uma cidade do

    outro, e um rio que os separa e vai perder-se no horizonte, passando porp da muralha de um palcio.

    - isso, Lorenza. Essa floresta a de Vesinet, essa cidade Saint-Germain, esse palcio o palcio de Maisons. Entremos, entremos nopavilho que fica por detrs de ns.

    - Entremos.- O que vs?- Ah! Primeiramente, na antecmara vejo um pretinho exoticamente

    vestido e comendo pastilhas.- Zamora. Entremos, entremos.- Uma sala sem gente mas esplendidamente mobiliada, com

    sobreporias representando deuses e amores.- A sala no tem gente?- No.- Vamos sempre entrando.- Ah! Estamos num lindo gabinete forrado de cetim.- Tambm no tem gente?- Tem, uma mulher que est deitada num sof.- Quem essa mulher?

    - Espera.- No te parece hav-la j visto?

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    - Pois bem, segue no seu caminho para c, com toda a velocidadedos cavalos, aproxima-se, entra na Rua de Saint-Claude, pra diante daporta, bate.

    A cmara onde ambos estavam fechados ficava to retirada que abulha das argoladas na porta no lhes chegou aos ouvidos.

    Mas Blsamo, erguido um pouco sobre um joelho, prestou ouvidoatento.Duas pancadas batidas por Fritz fizeram-no levantar. O leitor deve

    estar lembrado que era o sinal de uma visita importante.- Oh! - disse ele - era verdade.- Vai certificar-te, Blsamo, mas volta depressa.Blsamo correu para o lado da chamin.- Deixa-me acompanhar-te at porta da escada disse Lorenza.- Vem.E ambos atravessaram novamente a cmara das peles.- No sairs desta cmara? - perguntou Blsamo.

    - No, porque te espero. Oh! Sossega, esta Lorenza que te ama no, bem o sabes, a Lorenza que temes. E demais...

    - O qu? - perguntou Blsamo.- No vs tu na minha alma como eu vejo na tua?- Infelizmente, no!- Ento, ordena-me que durma at que voltes; ordena-me que fique

    imvel sobre aquele sof, e eu dormirei, e eu ficarei imvel.- Pois bem, seja, minha querida Lorenza, dorme e espera por mim.Lorenza, lutando j com o sono, uniu num ltimo beijo a sua boca

    de Blsamo, e cambaleando foi cair sobre o sof, murmurando:

    - Depressa, meu Blsamo, depressa, sim?Blsamo disse-lhe adeus com a mo; Lorenza j dormia.Mas to bela, to pura com os longos cabelos soltos, a boca

    entreaberta, as faces de um vermelho febril, e os olhos inundados; masto longe de parecer uma mulher, que Blsamo voltou a ela, pegou-lhe namo, beijou-lhe os braos e o pescoo, mas no ousou beijar-lhe os lbios.

    Ouviram-se duas novas pancadas; era a senhora du Barry que seimpacientava, ou Fritz que julgava que o amo no ouvira as primeiras.

    Blsamo correu para a porta.Quando a fechou sobre si, pareceu-lhe ouvir um rumor semelhante

    quele que j ouvira quando atravessara aquela casa com Lorenza;

    tornou a abrir a porta, olhou em redor de si e nada viu.Nada, seno Lorenza deitada e arquejante sob o peso do seu amor.Blsamo fechou a porta e correu sala muito sossegado, sem

    receio, sem pressentimento, levando na alma o paraso.Blsamo enganava-se, no era s o amor que oprimia o peito de

    Lorenza e lhe tornava excessivamente penosa a respirao.Era uma espcie de sonho, que parecia fazer parte da letargia em

    que estava, letargia to semelhante morte.Lorenza sonhava, e no hediondo espelho dos sonhos sinistros,

    parecia-lhe ver no meio da escurido, que comeava a tornar tudosombrio, o tecto da sala abrir-se circularmente, e alguma coisa

    semelhante a uma grande roda destacar-se e descer com um movimentoigual, lento, compassado, acompanhado por lgubre sibilar; parecia-lhe

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    que a pouco e pouco lhe ia faltando o ar, como se estivesse prxima a serabafada sob a presso daquele crculo movedio.

    Parecia-lhe finalmente que sobre aquela espcie de alapomovedio se agitava alguma coisa informe como o Kaliban datempestade, um monstro de rosto humano, um velho, que s tinha vivos

    os olhos, que cravava nela com um modo aterrador, e os braosdescarnados, que para ela estendia.E ela, ela, a pobre criana, torcia-se em vo sem poder fugir, sem

    nada adivinhar do perigo que a ameaava; sem nada sentir, seno duastenazes cujos extremos a agarravam pelo vestido branco, e a arrancavamdo sof, transportando-a sobre o alapo, que tornava a subir lentamentepara o tecto, com o ranger lgubre do ferro roando contra o ferro, e umriso hediondo, que se escapava da hedionda boca daquele monstro derosto humano, que a levava para o cu, sem abalo nem dor.

    VII

    O FILTRO

    Como Lorenza profetizara, era a senhora du Barry quem acabava debater porta.

    A formosa cortes fora introduzida na sala. Esperava por Blsamofolheando um curioso livro da morte gravado em Mogncia, e cujasestampas, desenhadas com arte maravilhosa, mostram a mortepresidindo a todos os actos da vida do homem, esperando-o porta dobaile onde acaba de apertar a mo mulher que ama, atraindo-o ao

    fundo da gua em que se est banhando, ou escondendo-se no cano daespingarda que leva caa.A senhora du Barry estava vendo a estampa que representa uma

    bonita mulher pintando-se e mirando-se, quando Blsamo entrou e foicumpriment-la, trazendo bem visvel no rosto uma expresso defelicidade.

    - Queira perdoar, minha senhora, por a ter feito esperar; mas notinha calculado bem a distncia ou conhecia mal a velocidade dos seuscavalos, pensava que ainda estivesse ali pela Praa de Lus XV.

    - Como! - perguntou a condessa - pois sabia que eu vinha?- Sabia, sim, minha senhora; h-de haver pouco mais ou menos

    duas horas que a vi no seu gabinete de cetim azul, dando ordens paraque lhe pusessem a carruagem.- E diz que eu estava no meu gabinete de cetim azul?- Matizado de flores. Sim, condessa, e deitada num sof! Ocorreu-

    lhe ento uma idia feliz; disse consigo: vamos ver o conde de Fnix; epuxou pelo cordo da campainha.

    - E quem entrou?- Sua irm, condessa; no assim? Pediu-lhe que transmitisse as

    suas ordens, que foram logo executadas.- Realmente, conde, um feiticeiro. Olha assim para o meu

    gabinete a todos os instantes do dia? Seria bom prevenir-me, percebe?

    - Ah! Sossegue, condessa, eu no olho seno quando as portasesto abertas.

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    - E olhando pela porta aberta, viu que eu pensava no senhor?- Certamente, e at com boa inteno.- Ah! Tem razo, meu caro conde, tenho pelo senhor as melhores

    intenes do mundo, e confesso que merece mais do que inteno, osenhor que to bondoso, to til, e que na minha vida parece destinado

    a representar o papel de tutor, isto , o mais difcil de quantos conheo.- Realmente, minha senhora, torna-me bem feliz; pude ento ser-lhe til?

    - Como!... adivinho e no adivinhou?!- Deixe-me pelo menos o mrito da modstia.- Pois sim, meu caro conde, seja assim, e vou por conseqncia

    falar-lhe em primeiro lugar do que fiz por seu respeito.- No o consentirei, minha senhora: pelo contrrio, peo-lhe que

    falemos da condessa.- Pois bem, meu caro conde, comece em primeiro lugar por me

    emprestar a pedra que torna a gente visvel; porque durante a minha

    jornada, apesar de rpida como foi, pareceu-me reconhecer um doscavalos do senhor de Richelieu.

    - E depois, minha senhora?- Vinha montado por um correio e seguia a minha carruagem.- O que pensa dessa circunstncia e para que fim a mandaria seguir

    o duque?- Para o fim de me pregar alguma pea, como costuma. To

    modesto como , Sr. Conde de Fnix, acredite que Deus lhe concedeubastantes dotes pessoais para tornar um rei ciumento... Invejoso dasminhas visitas sua casa, ou das suas visitas minha.

    - O senhor de Richelieu, minha senhora respondeu Blsamo - nopode ser perigoso para a senhora condessa em recontro nenhum.- Mas era-o, caro conde, era-o contudo antes do acontecimento.Blsamo compreendeu que havia ali um segredo, que Lorenza lhe

    no revelara ainda. No se aventurou, por conseqncia, no terrenodesconhecido, e contentou-se em responder com um sorriso.

    - Era-o - repetiu a condessa - e estive a ponto de ser vtima daintriga mais bem combinada, em que o conde tinha tambm um papel.

    - Eu! Numa intriga contra a condessa? Isso nunca, minha senhora!- No foi o senhor que deu o filtro ao duque de Richelieu?- Que filtro?

    - Um filtro que faz amar loucamente?- No, minha senhora; esses filtros compe-os o senhor de Richelieumesmo, porque h muito tempo que lhes conhece a receita; eu apenaslhe dei um simples narctico.

    - Ah! Realmente?- Palavra de honra.- E o senhor duque, espere, o senhor duque veio pedir-lhe esse

    narctico? Em que dia? Veja bem o senhor se se lembra da data; damaior importncia.

    - Minha senhora, foi sbado passado. Na vspera do dia em que tivea honra de lhe mandar por Fritz aquele bilhetinho, em que lhe pedia o

    favor de vir ter comigo a casa do senhor de Sartines.

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    - Na vspera daquele dia em que el-rei foi visto dirigindo-se aoquarto da menina de Taverney. Oh! Agora percebo tudo.

    - Ento, se percebe tudo, deve conhecer que a nica parte quetenho nisso o narctico.

    - Sim, foi o narctico que nos salvou.

    Blsamo esperou desta vez; ignorava tudo.- Sou feliz, minha senhora - respondeu ele - por lhe ser til paraalguma coisa, mesmo sem inteno.

    - Oh! sempre excelente para mim. Mas pode ainda fazer mais doque tem feito at agora. Oh! Doutor, estive muito doente, poeticamentefalando, e ainda me custa a crer na minha convalescena.

    - Minha senhora - disse Blsamo - o mdico pergunta sempre ascircunstncias da doena que vai tratar. D-me portanto as informaesmais exactas sobre o que tem sentido, e sendo possvel no esqueasintoma algum.

    - Nada mais simples, caro doutor, ou feiticeiro, como quiser. Na

    vspera do dia em que o tal narctico foi empregado, tinha SuaMajestade recusado acompanhar-me a Luciennes. Tinha ficado, sobpretexto de cansao, no Trianon, e isso para cear, soube-o depois, com oduque de Richelieu e o baro de Taverney.

    - Ah! Ah!- Compreende agora? Foi durante essa ceia, que deram a el-rei o

    filtro do amor. J ele tinha inclinao pela tal Taverney; sabiam que no diaseguinte no devia estar comigo. Portanto era a favor daquela pequenaque devia operar.

    - E depois?

    - E depois operou, nada mais.- O que sucedeu ento?- Isso que difcil saber positivamente. Pessoas bem informadas

    viram Sua Majestade dirigir-se para o edifcio em que so os quartos daTaverney.

    - Bem sei onde so; e depois?- Ah! Depois; diacho! Como apressado, conde. Bem sabe que

    perigoso seguir um rei que se oculta.- Mas enfim?- Enfim, tudo quanto posso dizer-lhe que Sua Majestade, numa

    horrvel noite de tempestade, voltou para o Trianon, plido, trmulo, e

    com uma febre que participava do delrio.- E julga - perguntou Blsamo sorrindo - que no foi s datempestade que el-rei teve medo?

    - No, porque o criado ouviu-o exclamar umas poucas de vezes:Morta! Morta! Morta!

    - Oh! - bradou Blsamo.- Era o narctico - prosseguiu a senhora du Barry; - nada assusta

    mais el-rei do que os mortos, e depois dos mortos a imagem da morte.Achou a Taverney adormecida com um sono estranho, naturalmentejulgou-a morta.

    - Sim, sim, estava morta com efeito - disse Blsamo, que se

    lembrava de ter fugido sem acordar Andria; - morta ou pelo menos

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    apresentando todas as aparncias da morte. isso! isso! E depois,minha senhora, depois?

    - Ningum soube o que se passou naquela noite. S consta que,quando voltou para casa, el-rei foi acometido por um acesso de febreviolenta, e de estremecimentos nervosos, que s lhe passaram no dia

    seguinte, quando a senhora delfina teve a idia de mandar abrir asjanelas do quarto de el-rei e mostrar a Sua Majestade um belo sol, quealumiava rostos alegres. Ento todas aquelas vises desconhecidasdesapareceram com a noite que as tinha criado. Ao meio-dia, el-reiachava-se melhor, tomava um caldo e comia uma asa de perdiz, e noite...

    - noite?... - repetiu Blsamo.- noite - prosseguiu a senhora du Barry Sua Majestade, que

    certamente no queria ficar no Trianon depois do seu terror da vspera,foi ter comigo a Luciennes, onde, caro conde, tive ocasio de conhecerque o senhor de Richelieu era um feiticeiro quase to poderoso como o

    conde.O rosto triunfante da condessa, e o gesto, cheio de graa e de

    malcia completaram-lhe o pensamento e sossegaram completamenteBlsamo a respeito do poder que a favorita exercia ainda sobre el-rei.

    - Ento - disse ele - est contente, minha senhora?- Entusiasmada, conde, porque, falando-me das impossibilidades

    que criou, disse-me a verdade exacta.E como prova de agradecimento estendeu para ele aquela mo to

    branca, to delicada, to perfumada, que no era fresca como a deLorenza, mas cujo calor tinha tambm a sua eloqncia.

    - Agora, conde, vamos ao que lhe diz respeito disse ela.Blsamo inclinou-se como homem pronto para ouvir.- Se me livrou de um grande perigo - prosseguiu a senhora du Barry

    - parece-me que pela minha parte tambm o salvei de um perigo, queno era pequeno.

    - Eu - disse Blsamo, ocultando a comoo - no preciso de tantopara lhe ser reconhecido; contudo, digne-se dizer-me...

    - ainda a questo do cofre.- Pois ainda, minha senhora?- Continha muitas cifras, que o senhor de Sartines mandou traduzir

    pelos seus empregados; cada um deles assinou a traduo feita em

    particular, e todas as tradues deram o mesmo resultado. De modo queo senhor de Sartines chegou esta manh a Versalhes, enquanto eu lestava, trazendo todas as tradues e o dicionrio das cifras diplomticas.

    - Ah! Ah! E o que disse el-rei?- El-rei de princpio pareceu admirado, depois assustou-se. Sua

    Majestade d facilmente ouvidos ao que se diz quando se lhe fala emperigos. Desde a canivetada de Damiens, h uma palavra que Lus XVest pronto a ouvir de todos; : cautela!

    - Ento o senhor de Sartines acusou-me de conspirao?- Primeiro o senhor de Sartines quis ver se me fazia sair do quarto,

    mas recusei, declarando que, como ningum tinha mais amizade a el-rei

    do que eu, ningum tinha direito de me fazer sair quando se tratava deperigo. O senhor de Sartines insistiu, mas eu resisti, e el-rei disse,

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    sorrindo e olhando para mim de um modo que eu s entendo: Deixe-a,Sartines, nada lhe posso recusar hoje. Ento compreende, conde, que,estando eu presente, o senhor de Sartines, que se lembrava da nossadespedida to claramente formulada, receou desagradar-me acusando-o.Falou portando da m vontade do rei da Prssia para com a Frana, das

    disposies dos espritos se valerem do sobrenatural para facilitar oandamento da sua rebelio. Numa palavra, acusou muita gente,provando, sempre com as cifras vista, que essa gente era culpada.

    - Culpada de qu?- De qu?... Conde, devo eu dizer um segredo de Estado?- Que nosso segredo, minha senhora. Oh! Em nada periga! Parece-

    me que tenho interesse em no falar.- verdade, conde, bem sei, e at grande interesse; o senhor de

    Sartines quis provar que uma seita numerosa, poderosssima, formada deadeptos cheios de nimo, hbeis, resolutos, minava silenciosamente orespeito devido a Sua Majestade Real, espalhando certos boatos a

    respeito de el-rei.- Que boatos?- Dizendo, por exemplo, que Sua Majestade era acusado de matar o

    seu povo fome.- Ao que el-rei respondeu?- Como el-rei responde sempre, com uma zombaria.Blsamo respirou.- E desta vez qual foi a zombaria?- Como nos acusam de matar fome o nosso povo - disse el-rei -

    no temos seno uma resposta que dar a essa acusao: sustent-lo.

    - Como assim, senhor? - perguntou o senhor de Sartines cheio deassombro.- Tomo minha conta sustentar e dar de comer a todos aqueles que

    espalham esse boato, e ofereo-lhes ainda em cima casas pagas no meupalcio da Bastilha.

    Blsamo sentiu um leve estremecimento correr-lhe nas veias, maspermaneceu risonho.

    - E depois? - perguntou.- Depois el-rei pareceu consultar-me com um sorriso. Senhor,

    disse-lhe ento, nunca me faro acreditar que todas essas cifras negras,que o senhor de Sartines a apresenta a Vossa Majestade, queiram dizer

    que Vossa Majestade seja mau rei.Ento o chefe da polcia renovou as suas queixas.- Nem, acrescentei eu, voltando-me para Sartines, me provaro

    nunca que os seus empregados sabem ler.- E o que disse el-rei, condessa? - perguntou Blsamo.- Que eu podia ter razo, mas que o senhor de Sartines tambm a

    tinha.- E ento?- Ento expediram-se muitas ordens de priso, entre as quais vi

    claramente que o senhor de Sartines procurava fazer assinar uma para oconde. Mas eu afrouxei-o e suspendi-o com uma nica palavra.

  • 7/30/2019 Alexandre Dumas - Memrias de um mdico 1 - Jos Blsamo 5 (doc)(rev)

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    - Senhor, lhe disse eu em voz alta, e diante de el-rei, prenda toda apopulao de Paris, se do seu gosto, o seu ofcio; mas que se noatrevam a tocar num nico dos meus amigos, tome conta, seno...

    - Oh! Oh, disse el-rei - ela enfada-se; cautela consigo, Sartines.- Mas, senhor, o interesse da nao...

    - Oh! O senhor no um Sully, lhe disse eu, vermelha de clera,nem eu sou uma Gabriela.- Minha senhora, querem assassinar el-rei, como assassinaram

    Henrique IV!Desta vez el-rei tornou-se plido,