Alexandre Dumas - Memórias de um Médico 4 (A condessa de Charny 5)

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    Memrias de um mdico:A condessa de Charny

    Volume V

    Alexandre Dumas

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    I

    A revoluo sanguinolenta

    A revoluo de 1789, isto , a dos Necker, dos Sicyes e dos Bailly terminou em 1790, a

    dos Barnave, dos Mirabeau, dos Lafayette teve o seu fim em 1791.A grande revoluo, a revoluo sanguinria, a revoluo dos Danton, dos Marat, dosRobespierre comeava.

    Reunindo o nome destes trs homens, no queremos confundir em uma s apreciao,pelo contrrio, representam as suas individualidades bem distintas as trs faces dos trs anos que

    vo decorrer.Danton est encarnado em 1792.Marat em 1793.Robespierre em 1794.Demais os acontecimentos que vo seguir-se melhor nos demonstraro o que eram estes

    homens; examinemos os acontecimentos e por eles veremos como lhe fazem face a Assemblia

    Nacional e a Comuna.O que narramos da histria, porque quase todos os personagens desta histria, compequenas excepes, dispuseram e figuraram a tempestade revolucionria.

    O que feito dos trs irmos Charny, Jorge, Isidoro e Olivier?Morreram.O que feito da rainha e de Andria?Esto presas.O que feito de Lafayette?

    Anda fugido.A 17 de Agosto Lafayette tinha convidado o exrcito a marchar sobre a capital para

    restabelecer a constituio, destruir o 10 de Agosto e restabelecer o rei.

    Lafayette, o homem leal, tinha perdido a cabea como os outros; o que ele queria eraconduzir directamente os prussianos e os austracos a Paris.O exrcito repeliu-o por instinto, como dezoito meses depois repeliu Dumouriez.

    A histria teria unido os nomes destes dois homens, se Lafayette detestado pela rainha,no houvesse tido a ventura de ser preso pelos austracos e enviado a Olmutz.

    O cativeiro fez esquecer a desero.A 18, Lafayette passou a fronteira.A 21 os inimigos de Frana, os aliados da realeza, contra os quais se vai fazer o 2 de

    Setembro; os austracos que Maria Antonieta chamara em seu socorro, durante aquela clara noiteem que a lua, passando pelos vidros da cmara da rainha, ia baixar sobre o seu leito, os austracosatacavam Longwy.

    Depois de vinte e quatro horas de bombardeamento, Longwy rendeu-se.Na vspera de se render na outra extremidade da Frana levantava-se a Vendeia.O pretexto para esse levantamento era a obrigao dos eclesisticos de prestarem

    juramento.Para fazer face a estes acontecimentos, a Assemblia nomeava Dumouriez para comandar

    o exrcito de Este e decretava a acusao de Lafayette.Tambm se decretava que todas as casas, excepto os edifcios pblicos de Longwy,

    fossem destrudas logo que a cidade tornasse a entrar no poder da nao francesa.Fazia uma lei, que bania no territrio francs todo o padre, que no tivesse prestado

    juramento.Autorizava as visitas domicilirias.

    Confiscava e punha venda os bens dos emigrados.Entretanto, o que fazia a Comuna?J dissemos quem era o seu orculo: Marat.

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    A Comuna guilhotinava na praa do Carroussel.Dava-lhe uma cabea por dia, era muito pouco; mas numa brochura, que apareceu nos

    fins de Agosto, os membros do tribunal explicam o enorme trabalho, que haviam tido paraobterem este resultado apesar de pouco satisfatrio.

    verdade que a brochura era assinada por Fouquier-Tinville.

    Vede pois com que sonhava a Comuna; agora mesmo vamos assistir realizao do seusonho.Na noite do dia 23 que apresentou o seu programa.Seguida por uma turbamulta, apanhada nos bairros mais nfimos, a Comuna apresentou-

    se meia-noite na Assemblia Nacional.O que exigia ela?Que os presos de Orleans fossem conduzidos a Paris para serem guilhotinados.Mas os presos de Orleans no tinham sido sentenciados.Esta falta, porm, no era sensvel para a Comuna, que prescindia de tal formalidade.Demais, a festa do dia 10 de Agosto ia servir-lhe de auxlio.Sergent, artista da Comuna, e o director da festa, tinha j posto em cena a procisso da

    ptria em perigo, e vimos como se saiu.Desta vez Sergent h-de exceder-se.Trata de encher de luto, de vingana, de sede de sangue, a alma de todos aqueles que

    perderam no dia 10 de Agosto um ser, que lhe era querido.Defronte da guilhotina, que funcionava na praa do Carroussel, mandou construir uma

    pirmide coberta de crepe, e na qual estavam escritos os assassnios de que acusam os realistas, amatana de Nancy, a matana de Nantes, a carnificina de Montauban, a carnificina do Campo deMarte.

    A guilhotina dizia: eu mato.A pirmide dizia: Mata!Era um domingo, 27 de Agosto, cinco dias depois da insurreio da Vendeia, feita pelos

    padres; quatro dias depois da tomada de Longwy, da qual o general Clairfayt acabava de tomarposse em nome de Lus XVI. Foi ento que a procisso se ps em marcha s oito horas da noite,para aproveitar a misteriosa majestade, que as trevas do a todas as coisas.

    Adiante, entre nuvens de perfumes queimados em todo o trnsito, iam vivas e os rfosdo 10 de Agosto, vestidos de branco com os cintos pretos, levando em uma arca, feita pelomodelo da arca antiga, a petio que vimos ditada pela Sr. Roland, e escrita pela Keralio, cujasfolhas ensangentadas tinham sido encontradas no Campo de Marte, petio que desde o dia 17de Julho de 1791, pedia a Repblica.

    Depois seguiam-se gigantescos sarcfagos pretos, fazendo aluso aos carros cheios decadveres, que se enchiam nas Tulherias, e que transportavam para os diferentes bairros,gemendo com o peso dos cadveres.

    Depois bandeiras de luto e de vingana, pedindo morte por morte.Seguia-se a lei, esttua colossal, de espada cinta.Era seguida pelos juzes dos diferentes tribunais, frente dos quais marchava o tribunal

    revolucionrio do dia 10 de Agosto, aquele que se desculpava por fazer cair s uma cabea emcada dia.

    Atrs dos tribunais ia a Comuna, a me sangrenta daquele tribunal, conduzindo nas suasfileiras a esttua da Liberdade, da mesma altura do que a da lei.

    Finalmente, fechava a marcha a Assemblia, levando as coroas cvicas que talvezconsolem os mortos, mas que so insuficientes para os vivos.

    Tudo isto marchava lentamente, no meio dos sombrios cnticos de Chnier e da msicasevera, de Gossec, marchando lentamente como a vingana, mas como ela, com passo seguro.

    Parte da noite de 27 para 28 passou-se no complemento desta festa expiatria, festafnebre, da multido, durante a qual a populaa, mostrando os punhos s Tulherias vazias,

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    ameaava as prises, fortalezas de segurana, que tinham dado aos reis e aos realistas, em trocados seus palcios e castelos.

    Finalmente, apagado o ltimo lampio, reduzido a fumo o ltimo archote, retirou-se opovo.

    S ficaram as duas esttuas da Lei e da Liberdade para guardarem o imenso sarcfago.

    Mas como ningum as guardasse a elas, ou fosse imprudncia, ou sacrilgio, durante anoite, tiraram s esttuas os hbitos inferiores.No dia seguinte as duas pobres deusas eram menos do que mulheres.O povo vendo isto, deu um grito de raiva, acusou os realistas, correu Assemblia, pediu

    vingana, apoderou-se das esttuas, tornou a vesti-las e levou-as em triunfo para a praa de LusXV.

    Mais tarde, para ali as seguiu o cadafalso, que lhes deram no dia 21 de Janeiro uma terrvelsatisfao do ultraje, que lhes fora feito a 28 de Agosto.

    A 28 de Agosto a Assemblia fez a lei sobre as visitas domicilirias.Comeava a correr entre o povo o boato da juno dos exrcitos prussiano e austraco e

    da tomada de Longwy pelo general Clairfayt; por esta forma o inimigo chamado pelo rei, pelos

    nobres e pelos padres marchava sobre Paris, e supondo que nada o fizesse parar podia estar aliem seis dias de marchas.O que sucederia ento a essa Paris, em ebulio como uma cratera e cujos choques

    abalavam o mundo havia trs anos?O que tinha dito a carta de Bouill, insolente gracejo, de que se tinham rido tanto e que ia

    tornar-se uma realidade.No ficaria pedra sobre pedra.

    Ainda havia mais, falava-se como em coisa certa de um julgamento geral terrvel, quedepois de ter destrudo Paris destruiria os parisienses.

    De que maneira e por quem seria dada esta sentena?Dizem-no os escritos do tempo.

    A mo sanguinolenta da Comuna v-se claramente nesta legenda, que em lugar deescrever o passado, conta o futuro.E porque no se h-de dar crdito legenda?Eis o que se lia numa carta achada nas Tulherias a 10 de Agosto, e que lemos no arquivo,

    onde ainda existe:

    Os tribunais chegam atrs dos exrcitos: juzes emigrados vo de caminho instaurando,no acampamento do rei da Prssia, os processos dos jacobinos e preparam-lhes as forcas.Portanto, quando os exrcitos prussiano e austraco chegarem a Paris est instaurado o processo,dada a sentena e s restar p-la em execuo.

    Demais, para confirmar o que diz a carta, eis o que se l no boletim oficial da guerra.A cavalaria Austracaaprisionou nos arredores de Sarrelouis os maiores patriotas e os

    republicanos conhecidos. Alguns hulanos apanharam membros da municipalidade, cortaram-lhesas orelhas e pregaram-lhas na testa.

    Se se cometiam actos tais numa provncia inofensiva, o que sucederia na Parisrevolucionria?

    O que lhes fariam no era segredo.Eis a notcia que por toda a parte se espalhava, contando-se pelas esquinas, derramando-

    se de cada centro para as extremidades.

    Levantar-se- um grande trono para os reis aliados vista do monto de runas, que tersido Paris.

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    Toda a populao parisiense ser empurrada, arrastada, levada cativa a chicote aos ps dotrono.

    Ali, como no juzo final, ser feita escolha entre os bons e os maus.Os bons, isto , os realistas, os nobres; os padres, passaro direita, e ser-lhes- entregue

    a Frana para fazerem dela o que bem lhes parecer.

    Os maus, isto , os revolucionrios, passaro esquerda, e ali acharo a guilhotina,instrumento inventado pela revoluo, e pelo qual a revoluo h-de morrer.A revoluo, isto , a Frana, no s a Frana, porque isso nada seria, pois que os povos

    so feitos para servir de holocausto s idias, mas o pensamento da Frana.E por que motivo foi a Frana a primeira a pronunciar a palavra liberdade? Julgou

    proclamar uma causa santa: a luz dos olhos, a vida das almas. Disse: Liberdade para a Europa;liberdade para o mundo. Julgou fazer uma coisa grande emancipando a terra, mas ao que pareceDeus condena-a; enganou-se; a Providncia contra ela; julgando-se inocente e sublime, eracriminosa e infame; julgando cometer uma grande aco, cometeu um crime; portanto julgam-na,condenam-na, decapitam-na, arrastam-na s gemnias do universo, e o universo, pela salvao doqual ela morre, aplaude a sua morte.

    No havia exemplo semelhante na histria dos povos.Um nico o de Jesus Cristo crucificado pela salvao do mundo, e morrendo no meiodos escrnios e insultos do mundo.

    Mas finalmente para sustent-lo contra o estrangeiro, esse pobre povo encontra talvezalgum apoio em si mesmo.

    Aqueles que ele adorou, aqueles a quem enriqueceu, aqueles a quem pagou, talvez odefendam.

    No.O seu rei conspira com o inimigo, e do Templo onde est encerrado continua a

    corresponder-se com os prussianos e austracos.A sua nobreza marcha contra ele s ordens dos prncipes.

    Os seus padres fazem revoltar os camponeses.Nas prises onde esto metidos, os presos batem as palmas s derrotas da Frana.Os prussianos, entrando em Longwy, fizeram soltar gritos de alegria no Templo, na

    Abadia e na Force.Por isso Danton o homem das resolues extremas, entrou bramindo na Assemblia.O ministro da justia julga a justia impotente e vem pedir que lhe dem fora, e ento a

    justia proceder apoiada na fora.Danton sobe tribuna, sacode a sua juba de leo, e estende a mo potente, que em 10 de

    Agosto arrombou as portas das Tulherias. preciso uma convulso nacional, que faa retrogradar os dspotas disse ele; at

    aqui s temos tido uma guerra simulada mas no de to miservel brinquedo que se deve tratar

    agora. mister que o povo corra, role em massa contra os inimigos para os exterminar de um sgolpe. mister ao mesmo tempo amarrar todos os conspiradores, para os impedir de fazeremmal.

    E Danton pede o recrutamento em massa, as visitas domicilirias, as pesquisas nocturnas,com pena de morte contra todo aquele que se opuser s operaes do governo provisrio.

    E Danton obtm quanto pede.E se mais houvesse pedido mais obteria.

    Nunca diz Michelet povo algum esteve mais prximo da morte. Quando a Holanda,ao ver Lus XIV s suas portas, no teve outro recurso seno inundar-se, esteve em menorperigo; tinha por si a Europa. Quando Atenas viu o trono de Xerxes sobre o rochedo de

    Salamina, perdeu terra, lanou-se a nado, e no teve seno gua por ptria, esteve em menorperigo; esteve toda sobre a sua poderosa frota, organizada pelo grande Temstocles, e mais felizdo que a Frana, no tinha a traio no seu seio.

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    A Frana estava desorganizada, dissolvida, trada e entregue.A Frana estava como Efignia sob o cutelo de Calchas.Os reis s esperavam a sua morte para soprarem nas velas o vento do despotismo.Estendia os braos aos deuses e os deuses estavam surdos.

    Mas, finalmente, quando sentiu toc-la a mo da morte, por uma contraco violenta eterrvel, dobrou-se sobre si mesma, depois, vulco da vida, fez rebentar das suas entranhas estachama, que pelo espao de meio sculo esclareceu o mundo.

    verdade que houve uma ndoa de sangue, que manchou este Cu.Vamos tocar nesta ndoa de sangue de 2 de Setembro, vamos ver quem derramou esse

    sangue, e se ele deve ser imputado Frana.Mas primeiro, para fecharmos este captulo, reproduzamos duas pginas de Michelet.Reconhecemo-nos impotentes ao p deste gigante, e, como Danton, chamemos a fora

    em nosso socorro.Vejam:

    Paris parecia uma praa forte; tinha o aspecto de Lille ou de Estrasburgo. Por toda aparte corpos de guarda, sentinelas, precaues militares e prematuras, pois o inimigo ainda estavaa cinqenta lguas de distncia. O que era mais srio, verdadeiramente tocante, era o sentimentode solidariedade, profunda, admirvel, que se revelava por toda a parte; todos se falavam, todosoravam pela ptria, todos se faziam recrutadores, iam de casa em casa oferecendo armas, o quetinham a quantos podiam vestir farda; todos eram oradores, todos pregavam, todos discutiam,todos entoavam cnticos patriticos. Quem deixava de ser autor no momento singular? Quemno imprimia? Quem no fixava nas paredes? Quem no era actor no grandioso espectculo?Representavam-se as mais ingnuas cenas, em que todos figuravam; em toda a parte, nas praas,nos teatros de alistamento, nas tribunas, em volta das quais se inscreviam, tudo eram cnticos,gritos, lgrimas de entusiasmo ou de despedida, e por cima de tudo isto uma grande voz troava

    repercutindo em todos os coraes, voz muda, e por isso mesmo mais profunda, a prpria voz daFrana, eloqente em todos os seus smbolos, pattica no que havia de mais trgico, o estandartesanto e terrvel do perigo da ptria desenrolado nas janelas do palcio do municpio, estandarteimenso, que flutuava ao vento e parecia fazer sinal s legies populares para marcharem pressados Pireneus ao Escalda, do Sena ao Reno."

    Para se saber o que era este momento de sacrifcio, seria mister ver em cada cabana, emcada habitao a pattica separao das esposas, a dor cruel das mes, naquele segundo parto,mais cruel cem vezes do que aquele em que o filho fizera a primeira partida das suas entranhasensangentadas; haveria mister ver a pobre velhinha, com os olhos secos, o corao torturado,juntar pressa alguma pobre roupa que o filho tem de levar, as parcas economias, os cobrezitospoupados pelo jejum e que a si mesma roubou para o filho, para esse dia de extrema dor.

    Dar os filhos a essa guerra, que se anunciava com to fracas probabilidades devantagem, imol-los quela situao extrema e desesperada, era mais do que a maior parte delaspodia fazer; sucumbiam a estes pensamentos, ou ento, por uma reaco natural, caam em actosde furor, nada poupavam, nada temiam; em tal estado de esprito, nenhum terror tinha poder;que terror pode haver para quem deseja a morte?

    Contaram-nos que num dia, sem dvida em Agosto ou Setembro, um bando destasmulheres furiosas encontraram Danton na rua, injuriaram-no como injuriariam a prpria guerra,lanando-lhe em rosto toda a revoluo, todo o sangue que se derramasse e a morte dos filhos,amaldioando-o, e pedindo a Deus que fizesse recair tudo sobre a cabea dele. Danton no seadmirou, e apesar de sentir em volta de si as unhas delas, voltou-se bruscamente, olhou para asmulheres e teve d delas. Danton tinha muito nimo, subiu a um marco e para as consolar,

    comeou a injuri-las na sua linguagem; as suas primeiras palavras foram violentas, burlescas,obscenas; e as mulheres ficaram interditas. O furor de Danton, verdadeiro ou simulado,desconcerta o furor delas; o prodigioso orador, instintivo e calculado, tinha por base popular um

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    temperamento sensual e forte, todo feito para o amor fsico, onde dominava a carne e o sangue.Danton, acima de tudo, era homem, havia nele muito do leo e do co, bastante do touro, amscara metia medo; a sublime fealdade de um rosto transtornado, tornava as suas palavrassacudidas, dardejadas pelo acesso, uma espcie de aguilho selvagem.

    As massas, que prezam a fora, sentiam diante dele o receio e simpatia que faz

    experimentar todo o ser poderosamente gerado, e demais sob aquela mscara violenta, furiosa,sentia-se bater um corao; acabava-se por desconfiar de uma coisa, era que aquele homemterrvel, que s falava por ameaas, no fundo era um bom homem. As mulheres amotinadas emredor dele sentiram confusamente tudo isto e deixaram-no falar-lhes, domin-las, assenhorear-sedelas, e fez delas tudo quanto quis. Explicou-lhes grosseiramente para que serve a mulher, paraque serve o amor, para que serve a gerao; que se no geravam os filhos para si, mas para aptria. Chegando a este ponto, elevou-se de repente, e deixando de falar para os outros, pareciaque falava para si. Todo o corao lhe saiu, dizem, do peito com palavras de uma ternura violentapela Frana, e pelo rosto singular, picado de bexigas parecendo as escrias do Vesvio ou doEtna, comearam a correr-lhe grossas bagas, e essas bagas eram lgrimas. As mulheres nopuderam conter-se; choraram a Frana, em lugar de chorarem os filhos, e soluando fugiram,

    tapando a cara com os aventais. grande historiador, que vos chamais Michelet, onde estais?Em Nervi! grande poeta que vos chamais Hugo, onde estais?Em Jersey!

    II

    A vspera do dia 2 de Setembro

    Quando a ptria se acha em perigo, tinha dito Danton, a 28 de Agosto, na AssembliaNacional, tudo pertence ptria.A 29, s quatro da tarde, ouvia-se tocar a rebate.Sabia-se do que se tratava; iam comear as visitas domicilirias.O aspecto de Paris mudou a este rufar do tambor, como se fosse tocado por uma vara

    mgica.De populosa que era tornou-se deserta.Fecharam-se as lojas e as ruas foram ocupadas por patrulhas de sessenta homens.

    As barreiras foram guardadas e o rio tambm.As visitas comearam uma hora da madrugada.Os comissrios das seces batiam s portas da rua em nome da lei.

    E abriam-lhes as portas da rua.Batiam s portas de cada quarto, sempre em nome da lei.E abriam-lhes as portas de cada quarto.

    Abriam fora as portas das casas que no estavam habitadas.Apanharam duas mil espingardas e prenderam trs mil pessoas.Tinham preciso de terror e conseguiram faz-lo.Desta medida tambm nasceu uma coisa em que no haviam pensado, ou talvez tivessem

    pensado muito.As visitas domicilirias abriram aos pobres as habitaes dos ricos; os seccionrios

    armados, que seguiam os magistrados, puderam contemplar atnitos as riquezas dos magnficospalcios, que ou eram habitados pelos donos, ou de que eles estavam ausentes, e isto no os

    iniciou pilhagem, mas aumentou neles o dio aos ricos.

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    Foram to pequenos os roubos, que Beaumarchais, ento preso, conta que, apanhandocerta mulher uma rosa nos seus magnficos jardins da rua de Santo Antnio, quiseram lan-la aorio.

    E de notar que isto sucedia no momento em que a Comuna acabava de decretar queaqueles que vendessem prata seriam punidos com a pena capital.

    Portanto eis a Assemblia substituda pela Comuna, que decretava a pena de morte.Acabava de dar a Chaumette o direito de abrir as prises e de soltar os presos.Arrogava-se o direito de perdoar.Finalmente, acabava de ordenar que se afixasse porta de cada priso a lista dos presos,

    que continha.Era apelar para o dio e para a vingana.Qualquer podia guardar a porta em que estava encerrado o seu inimigo.

    A Assemblia viu para que abismo a levavam.Iam, mau grado seu, molhar as mos em sangue.E ento quem?

    A Comuna, sua inimiga!

    A mais pequena coisa podia pois fazer rebentar terrvel luta entre os dois poderes.Esta causa apareceu em conseqncia de uma nova crueldade da Comuna.A 20 de Agosto, dia das visitas domicilirias, a Comuna, em conseqncia do artigo de

    um jornal, chamou barra Girey-Dupr, um dos Girondinos mais ousados, porque era um dosmais moos.

    Girey-Dupr refugiou-se no ministrio da guerra, porque no teve tempo para refugiar-sena Assemblia.

    Huguenin, presidente da Comuna, mandou atacar o ministrio da guerra para lhe tirar fora o jornalista girondino.

    Ora a Gironda tinha a maioria na Assemblia, e esta, insultada em um dos seus membros,levantou-se altamente indignada.

    Chamou tambm barra o presidente Huguenin.No dia 30 a Assemblia publicou um decreto, que dissolvia a municipalidade de Paris.Um facto, que prova o horror que o roubo ainda causava nessa poca, contribuiu para o

    decreto que a Assemblia acabava de aprovar.Um membro da Comuna, ou um indivduo que se dizia membro dela, tinha conseguido

    abrir o guarda-mveis e dele tirou uma pequena pea de artilharia, de prata, ddiva feita pelacidade a Lus XIV quando menino.

    Cambon, que tinha sido nomeado guarda dos bens pblicos, soube deste roubo e chamou barra o acusado; o homem no negou, no se desculpou e contentou-se com dizer: quereceando que fosse roubado este objecto precioso, julgara que estava mais seguro em sua casa doque na de outro qualquer.

    Esta tirania da Comuna era insuportvel, Louvet, o homem das iniciativas corajosas, era opresidente da seco da rua dos Lombardos e fez com que a sua seco declarasse que a Comunaestava incursa no crime de usurpao.

    Vendo-se apoiada, a Assemblia decretou ento que o presidente da Comuna, Huguenin,que no queria comparecer barra fosse a ela arrastado fora, e que dentro de vinte e quatrohoras seria nomeado pelas seces de uma nova Comuna.

    O decreto foi promulgado a 30 de Agosto, s cinco horas da tarde.Contemos as horas, porque desde as cinco da tarde do dia 30 de Agosto, caminhmos

    para a carnificina do dia 12 de Setembro, e cada hora faz dar um passo para a deusaensangentada, de braos torcidos, de cabelos desgrenhados, chamada Terror.

    Todavia a Assemblia, por um resto de temor da sua formidvel inimiga, declarava no

    acto de a dissolver, que ela bem merecera da ptria, o que no era na verdade muito lgico.Ornandum, tollendum! dizia Ccero a propsito de Octvio.A Comuna fez como Octvio, deixou-se coroar, mas no consentiu que a dissolvessem.

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    Passadas duas horas depois da publicao do decreto, Tallien, um triste escrivo,gabando-se de ser o homem de Danton, Tallien, secretrio da seco das Termas, props que semarchasse contra a seco dos Lombardos.

    Ah! Desta vez era decerto a guerra civil; no era o povo contra o rei, os burgueses contraos aristocratas, as choupanas contra os castelos, as casas contra os palcios; era a seco contra

    seco, chuo contra chuo, cidado contra cidado.Ao mesmo tempo Marat e Robespierre, o ltimo como membro da Comuna, o primeirocomo amador, elevaram a voz.

    Marat pedia que fosse imediatamente aniquilada a Assemblia Nacional.Isto no causou admirao; todos estavam costumados a ver-lhe fazer semelhantes

    moes.Mas Robespierre, o denunciante vago e astuto, props que se pegasse nas armas, e no s

    que defendessem, mas que atacassem.Era mister que Robespierre sentisse grande fora na Comuna para se pronunciar assim!Com efeito, a Comuna estava muito forte, porque naquela mesma noite, Tallien, seu

    secretrio, foi Assemblia com trs mil homens armados de chuos.

    A Comuna disse ele e s a Comuna, fez reassumir aos membros da Assemblia ograu de representantes de um povo livre; a Comuna fez publicar um decreto contra os padresconspiradores, e prendeu estes homens com quem ningum se atrevia a tocar; a Comuna, ajuntouele finalmente, ter purgado em poucos dias da sua presena o solo da liberdade.

    Assim foi na noite de 30 e 31 de Agosto que a Comuna proferiu a primeira palavra decarnificina, na presena da mesma Assemblia, que acabava de a dissolver.

    Quem que pronunciou esta primeira e tremenda palavra?J o sabemos, foi Tallien, o homem que h-de fazer o 9 Thermidor.A Assemblia, preciso fazer-lhe justia, levantou-se.Manuel, o procurador da Comuna, conheceu que se tinham excedido muito; mandou

    prender Tallien e exigiu que Huguenin fosse dar uma satisfao Assemblia.

    E todavia Manuel, apesar de mandar prender Tallien, de exigir que Huguenin dessesatisfao, sabia muito bem o que ia suceder, porque eis o que fez o pobre pedante, espritocurto, mas corao honrado.

    Tinha na Assemblia um inimigo pessoal.Beaumarchais, grande escarnecedor, tinha zombado de Manuel; ora Manuel pensou que

    se Beaumarchais fosse morto com os mais, poderiam atribuir este assassnio a uma baixavingana do seu amor prprio.

    Correu abadia e mandou chamar Beaumarchais.Este, vendo-o, quis desculpar-se e dar explicaes sua vtima literria.

    No se trata de literatura, nem de jornalismo, nem de crtica; a porta est aberta, escape-se hoje, seno quer ser assassinado amanh.

    O autor do Fgaro no esperou que lho repetissem.Meteu-se pela porta entreaberta e desapareceu.Supondo que ele tivesse apupado Callot de Herbois, comediante, em vez de ter criticado

    Manuel, autor, Beaumarchais era morto.Chegou o dia 31 de Agosto, este grande dia, que devia decidir entre a Assemblia e a

    Comuna.Isto , entre os moderados e os terroristas.

    A Comuna queria conservar-se a todo custo.A Assemblia tinha-se demitido em favor de uma nova Assemblia.Era naturalmente a Comuna quem devia vencer.Demais, o movimento favorecia-a.

    O povo, sem saber aonde queria ir, queria ir a alguma parte.Impelido no dia 20 de Junho, lanado mais longe a 10 de Agosto, sentia uma vagapreciso de sangue e de destruio.

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    mister dizer, que Marat de um lado e Hbert do outro, lhe faziam andar a cabea roda.

    S Robespierre, querendo recobrar a sua popularidade muito abalada, aconselhava a paz,apesar da Frana inteira querer a guerra. No houve, nem o prprio Robespierre, quem se nofizesse novelista, e pelo absurdo das suas notcias, no ultrapassasse as mais absurdas.

    Um partido poderoso tinha ele dito oferece o trono ao duque de Brunswick.Quais eram neste momento os trs partidos poderosos que lutavam?A Assemblia, a Comuna e os Jacobinos.E rigorosamente a Comuna e os Jacobinos poderiam ser considerados como um s

    partido.No era nem a Comuna, nem os Jacobinos, Robespierre era membro do clube e da

    municipalidade e no era capaz de se acusar a si mesmo.Esse poderoso partido era portanto a Gironda.

    J dissemos que Robespierre ultrapassava em absurdos os mais absurdos novelistas.Com efeito, que coisa poder haver mais absurda do que acusar a Gironda, que tinha

    declarado guerra Prssia e ustria, de oferecer o trono ao general inimigo.

    E quais eram os homens a quem acusavam?Os Vergniaud, os Roland, os Clavires, os Servan, os Gensonn, os Gaudet, osBarbaroux, no s conhecidos como bons patriotas, mas tambm as pessoas mais honestas daFrana.

    Mas h momentos, em que um homem como Robespierre diz tudo o que lhe vem boca.E o pior que h momentos em que o povo cr tudo.Estava-se a 31 de Agosto.O mdico, que tivesse entre os seus dedos o pulso da Frana, teria sentido neste dia

    aumentarem-lhe a cada momento as pulsaes.No dia 30, s quatro horas da tarde, a Assemblia tinha dissolvido a Comuna.O decreto ordenava que as seces haviam de nomear um novo conselho geral dentro de

    vinte e quatro horas.Por conseqncia, o decreto devia ser executado no dia 31 s quatro horas da tarde.Mas as vociferaes de Marat, as ameaas de Hbert e as calnias de Robespierre

    tornaram a Assemblia to odiosa, que as seces no se atreveram a votar.Tomavam por protesto que o decreto no lhes tinha sido notificado oficialmente.A 31 de Agosto, a Assemblia foi informada de que o seu decreto da vspera no tinha

    sido executado, nem sequer o seria.Era mister apelar para a fora. Quem sabia se a fora seria pela Assemblia?

    A Comuna tinha por si Santerre, pelas relaes de seu cunhado Panis; Panis era de mais amais o fantico de Robespierre, que tinha proposto a Rebecqui e a Barbaroux nomear umditador, e que lhe tinha dado a entender que era necessrio que esse ditador fosse o Incorruptvel.

    Santerre eram os bairros; os bairros eram o irresistvel poder do Oceano.Os bairros tinham arrombado as portas das Tulherias, e muito melhor arrombariam as daAssemblia.

    Demais, a Assemblia temia, se se armasse contra a Comuna, ver-se abandonada no spelos patriotas extremos, por aqueles que queriam a revoluo a todo custo, mas tambm, o queera pior, ser sustentada contra a sua vontade pelos realistas moderados.

    Neste caso estava completamente perdida.s seis horas foi a Assemblia avisada de que havia grande movimento em redor da

    Abadia.Acabavam de prender um Montmorin.O povo julgou que era o ministro que tinha assinado os passaportes, com que Lus XVI

    tentara fugir.Dirigiu-se amotinado priso, ameaando fazer justia por suas mos se o Sr. deMontmorin no fosse condenado morte.

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    Custou muito fazer-lhe compreender a razo e atender verdade.Durante toda a noite houve nas ruas de Paris terrvel fermentao.Conhecia-se que o menor acontecimento seria capaz de no dia seguinte fazer tomar a esta

    fermentao propores gigantescas.Este acontecimento, que diligenciamos contar com todos os pormenores, por ser um

    rasgo caracterstico de um heri da nossa histria, que h muito perdemos de vista, agitava-se nasprises do Chtelet.

    III

    Em que novamente se encontra o Sr. Beausire

    No fim do dia 10 de Agosto tinha sido institudo um tribunal especial para sindicar dosroubos que pudessem ter sido cometidos nas Tulherias.

    O povo como conta Peltier, tinha fuzilado duzentos ou trezentos ladres, que tinhamsido apanhados em flagrante; mas devemos acreditar que a par destes havia outros tantos, ou

    mais, que tinham ocultado os roubos.No nmero desses honrados industriosos, achava-se o nosso antigo conhecido o Sr.Beausire, antigo oficial de sua majestade.

    As pessoas que conhecem os antecedentes do amante da jovem Oliva, do pai do meninoToussaint, no ficaro admirados de o encontrarem no fim deste grande dia, em que tinham quedar contas, no nao, mas aos tribunais, da parte que nele haviam tomado.

    Com efeito, o Sr. Beausire havia entrado nas Tulherias envolto com a turbamulta.Era um homem de muito bom senso para cometer a loucura de ser o primeiro a entrar

    num stio onde se corria perigo, mesmo de roldar com os outros.No eram as opinies patriticas do Sr. Beausire que o levavam ao palcio dos reis, nem

    para ali chorar sobre a queda da realeza nem para aplaudir o triunfo do povo. No, o Sr. Beausire

    ia ali como amador; elevado acima dessas fraquezas humanas, que se chamam opinies, s tinhaum fim, era ver se aqueles, que acabavam de perder um trono, no teriam perdido ao mesmotempo alguma jia mais porttil e mais fcil de se salvar.

    Entretanto para salvar as aparncias, o Sr. Beausire tinha enfiado na cabea um bonencarnado, tinha-se armado com um enorme sabre, e havia tingido as mos no sangue doprimeiro morto que encontrara, de sorte que este lobo, seguindo o exrcito conquistador, esteabutre, adejando depois do combate sobre o campo de batalha, podia ser tomado por um

    vencedor.Foi com efeito por um vencedor que o tomaram aqueles que o ouviram gritando: Matem

    os aristocratas! e que o viram barafustando debaixo das camas, abrindo armrios, at gavetas decmodas para ver se estaria escondido nelas algum aristocrata.

    Mas ao mesmo tempo, e para desgraa do Sr. Beausire, achava-se nas Tulherias umhomem que no gritava, que no procurava debaixo das camas, que no abria os armrios, masque, tendo entrado no meio do fogo, apesar de no estar armado juntamente com os vencedores,apesar de no ter vencido ningum, passeava com as mos atrs das costas, como se faz numjardim pblico em qualquer noite de festa, frio e tranqilo, com o seu fato preto muito asseado econtentando-se em elevar de tempos a tempos a voz para dizer:

    No esqueais, cidados, que no digno matar as mulheres, nem tocar nas jias.Enquanto queles que se contentavam com matar homens ou lanar mveis pelas janelas,

    no se julgava com direito de lhes dizer nada.Tinha conhecido logo primeira vista que o Sr. Beausire no era destes.Portanto, s nove horas e meia, Pitou, que, como j sabemos, tinha obtido, a ttulo de

    posto de honra, a guarda do vestbulo do relgio, viu dirigir-se para ele, descendo a escada, umaespcie de gigante, colossal e lgubre, que falando-lhe em poltica, mas como se tivesse recebidoa misso de pr em ordem a desordem e a justia na vingana, lhe disse:

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    Capito, no tarda que desa um homem de bon encarnado, sabre em punho egesticulando muito; prend-lo-, mandar que lhe dem busca pois furtou um estojo dediamantes.

    Sim, Sr. Maillard respondeu Pitou levando a mo ao chapu. Ah! Ah! disse o antigo porteiro conhece-me, meu amigo?

    Julgo que o conheo respondeu Pitou; no se chama Maillard? Tommos juntos aBastilha. possvel disse Maillard. Alm disso, tambm estivemos em Versalhes nos dias 5 e 6 de Outubro. Com efeito, l estive. Parece-me que sim, e a prova que teve um duelo porta das Tulherias com um guarda

    que no o queria deixar entrar. Ento disse Maillard h-de fazer o que lhe disse, no assim? Isso e outra qualquer coisa, tudo o que quiser. Ah! O senhor um patriota! Disso me gabo respondeu Maillard e por essa razo que no devemos permitir

    que desonrem o nome, a que temos direito! Eis o nosso homem.

    Com efeito, neste momento, o Sr. Beausire descia a escada, agitando a grande catana egritando: Viva a nao.Pitou fez sinal a Tellier, e a Maniquet, os quais, sem afectao se colocaram porta, e ele

    foi esperar o Sr. Beausire no ltimo degrau da escada.Este tinha percebido as precaues tomadas, e sem dvida lhe deram cuidado essas

    disposies, porque parou, e como, se lhe tivesse esquecido alguma coisa, fez um movimentopara tornar a subir.

    Perdo! disse Pitou a sada por aqui. Ah! por aqui? E como h ordem de evacuar as Tulherias, tenha a bondade de sair.Beausire empertigou-se e continuou a descer a escada.

    Chegando ao ltimo degrau, levou a mo ao bon, afectando o garbo militar. Saibamos, camaradas disse ele passa-se por aqui ou no se passa? Sim disse Pitou mas primeiramente tem que se sujeitar a certa formalidade. Mas para qu, meu belo capito? necessrio que lhe dem busca, cidado. Que me dem busca! Sim. Dar busca a um patriota! Um vencedor, um homem que acaba de exterminar os

    aristocratas! a ordem que recebi respondeu Pitou portanto, camarada, embainhe a sua grande

    espada, que para nada serve agora, pois que os aristocratas esto mortos, e sujeite-se de bom

    grado, alis terei de empregar a fora. A fora replicou Beausire... Ah! Falas assim porque tens s tuas ordens vintehomens, porque, se estivssemos ss...

    Se estivssemos ss, cidado disse Pitou eis o que eu faria; agarrava no seu pulsocom a mo esquerda, e tirando-lhe a espada com a direita parti-la-ia com o p, porque no digna de ser tocada por um homem de bem, a espada que foi empunhada por um ladro.

    E Pitou, pondo em prtica a sua teoria, agarrou no pulso do suposto patriota, tirou-lhe aespada e partiu-lha debaixo do p, atirando para longe o punho.

    Um ladro! exclamou o homem do bon encarnado; um ladro! Eu, o Sr. Beausire! Passem revista a este homem disse Pitou, entregando Beausire sua gente. Pois bem, procurem disse ele, estendendo os braos como uma vtima procurem.

    No era precisa a permisso de Beausire para se proceder busca, mas, com grandeadmirao de Pitou, e principalmente de Maillard, debalde lhe voltaram as algibeiras, erevolveram at as partes mais secretas; apenas se lhe encontrou um baralho de cartas, cujas

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    figuras mal se percebiam, to velho era, mas que estava certo, e uma pequenssima soma desoldos.

    Pitou olhou para Maillard.Este encolheu os ombros, como se quisesse dizer:

    Que quer?

    Torne a dar busca disse Pitou, que, como sabemos tinha por principal qualidade apacincia.Tornaram a procurar, mas a segunda busca foi to intil como a primeira; no se achou

    mais do que o baralho de cartas e onze soldos.O Sr. de Beausire triunfava.

    E ento disse ele sempre ficar desonrada uma espada por ter sido tocada pelaminha mo?

    No senhor respondeu Pitou e a prova que, se no ficar satisfeito com asdesculpas que vou dar-lhe, um dos meus soldados lhe emprestar a sua e dar-lhe-ei quantassatisfaes exigir.

    Obrigado, mancebo disse ele obrou em conseqncia de uma instruo, e um

    antigo militar como eu, sabe que as instrues so uma coisa sagrada. Agora previno-o de que aSr. Beausire deve estar em cuidado pela minha longa ausncia, e se me permitido retirar-me... Sem dvida disse Pitou est livre.Beausire cumprimentou com naturalidade e saiu.Pitou procurou Maillard, e no o vendo, perguntou:

    Viram Maillard? Parece-me disse um dos soldados que o vi subir a escada. E no se enganou disse Pitou porque ele a vem.Com efeito Maillard descia a escada e, graas s suas longas pernas, galgando os degraus

    dois a dois, depressa chegou abaixo. E ento perguntou ele achou alguma coisa?

    Nada respondeu Pitou. Pois eu fui mais feliz, achei o estojo. Ento no tnhamos razo. Pelo contrrio, tnhamos razo.E Maillard, abrindo o estojo, mostrou um relgio de ouro, a que faltavam todas as pedras

    preciosas que dantes o ornavam. Mas disse Pitou que quer isso dizer? Isto quer dizer que o tratante desconfiou, e que tirando s os diamantes deitou fora o

    relgio. Mas os diamantes? Decerto achou meio de os esconder.

    Oh! Que maroto! H muito que saiu? perguntou Maillard. Quando o senhor vinha descendo a escada transpunha ele a porta do ptio do meio. E para que lado tomaria? Parece-me que foi para o lado do cais. Adeus, capito. Ento j se retira, Sr. Maillard? Quero ter a conscincia tranqila disse o antigo porteiro.E abrindo como um compasso as compridas pernas, foi na pista de Beausire.Pitou ficou muito preocupado pelo que se acabava de passar, e ainda estava sob a

    influncia desta preocupao, quando julgou reconhecer a condessa de Charny, e foi ento que se

    passaram os acontecimentos, que contamos no seu lugar competente, no julgando devercomplic-los com um incidente, que na nossa opinio, devia ocupar outro lugar.

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    IV

    O purgante

    Por mais rpida que fosse a marcha de Maillard, no lhe foi possvel apanhar Beausire,

    que tinha por si trs circunstncias favorveis.Em primeiro lugar, dez minutos de avano, depois a escurido, e finalmente o grandenmero de pessoas, que transitavam de um para outro lado, e por entre as quais ele se meteu.

    Mas chegado ao cais das Tulherias o ex-porteiro do Chtelet continuou a caminhar;morava como j dissemos no bairro de Santo Antnio, e tinha de seguir o cais at Grve.

    No Pont-Neuf e no Pont-au-Change havia grande afluncia de povo, porque tinhamexposto os cadveres na praa do palcio da justia, e todos eram ali chamados pela esperana ouantes pelo receio de acharem ali um pai, um parente, um amigo.

    Maillard foi seguindo este caminho. esquina da praa do palcio da justia, tinha Maillard um amigo que era farmacutico, a

    que naquela poca se chamava ainda boticrio.

    Maillard entrou na loja do seu amigo, assentou-se e comeou a falar nos negcios, nomeio dos cirurgies, que andavam de um para outro lado, reclamando do farmacutico adesivo,ungentos, ataduras, finalmente tudo quanto necessrio para o tratamento dos feridos.

    Porque entre os mortos, reconhecia-se de tempos a tempos, por um gemido, algumdesgraado que ainda respirava, o qual era tirado imediatamente de entre os cadveres,aplicavam-se-lhes todos os socorros e eram depois levados ao Hotel Dieu.

    Havia uma grande azfama na loja do digno boticrio.Mas Maillard no incomodava, pois era sempre recebido com prazer; em tais dias um

    patriota da tmpera de Maillard muito estimado; por conseqncia, o boticrio recebeu Maillardcom toda a afabilidade, e ele, assentando-se e encolhendo as pernas, fez-se o mais pequenino quelhe era possvel.

    Estava assim havia um quarto de hora quando entrou uma mulher de trinta e sete a trintae oito anos, a qual sobre o trajo da mais abjecta misria, conservava certo aspecto da antigaopulncia, certo garbo, que traa a sua aristocracia, seno nativa, ao menos estudada.

    Mas o que impressionou Maillard foi a semelhana desta mulher com a rainha.A sua admirao foi de tal natureza, que teria dado um grito, se no tivesse sobre si o

    maior poder.A mulher levava pela mo um rapazito que teria sete a oito anos.Aproximou-se com certa timidez, procurando ocultar a misria do fato, o que ainda a

    tornava mais saliente.Durante algum tempo foi-lhe impossvel fazer-se ouvir to grande era a concorrncia;

    finalmente dirigindo-se ao dono do estabelecimento, disse:

    Senhor, preciso de um purgante para meu marido! Que purgante quer? perguntou o boticrio. Aquele que lhe parecer, contanto que no custe mais de onze soldos.Esta quantia era precisamente a soma achada nas algibeiras do Sr. Beausire.

    Mas por que motivo no h-de o purgante custar mais de onze soldos? Porque o dinheiro que meu marido pde dar-me. Faa uma mistura de ruibarbo e de jalapa e d-a cidad; disse o boticrio ao seu

    primeiro ajudante.O primeiro ajudante foi fazer a preparao, enquanto o boticrio aviava outras receitas.Mas Maillard, que no tinha distraco alguma, dedicou toda a ateno mulher, que

    pedia o purgante por onze soldos.

    Aqui tem, cidad disse o primeiro ajudante aqui est o purgante. Vamos, Toussaint disse a mulher com voz pausada, que parecia ser-lhe habitual dos onze soldos, meu filho.

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    Aqui esto disse o rapazito.E ps a mo sobre o balco.

    Vem, mam Oliva disse ele vem depressa, o pap espera. E puxando pela me,repetiu:

    Vem, mam Oliva, vem.

    Perdo, senhora disse o ajudante mas aqui s esto nove soldos. Como, s nove soldos! disse a mulher. Ora conte bem disse o rapazito.A mulher contou e com efeito s havia nove soldos. Que fizeste aos dois soldos, meu menino? perguntou a mulher. No sei... Vamo-nos embora, mam. Tu deves sab-lo, pois da minha mo recebeste o dinheiro. Perdi-os respondeu o rapazito; vamos. Tem um filho lindo, cidad disse Maillard parece ter muita inteligncia, mas

    preciso tomar cuidado para que no d em ladro. Em ladro, senhor disse a mulher muito admirada; mas por qu?

    Porque no perdeu os dois soldos, pois os tem escondidos dentro do sapato. Eu disse a criana no tenho tal.A mam Oliva, apesar dos gritos de Toussaint, descalou-lhe o p esquerdo e achou os

    dois soldos dentro do sapato.Deu os dois soldos ao ajudante, e saiu puxando pelo pequeno e ameaando-o com um

    castigo que parecia terrvel aos circunstantes, seno se lembrassem de quanto devia mitig-lo aternura maternal.

    O acontecimento, pouco importante em si mesmo, teria decerto passado despercebido nomeio das circunstncias graves em que se achavam, se a semelhana da mulher com a rainha notivesse impressionado Maillard.

    Desta precauo resultou dizer ele ao seu amigo boticrio quando o viu um momento

    desocupado: Reparou? Em qu? Na semelhana da cidad que daqui saiu. Com a rainha? disse o boticrio rindo. Ah! Tambm notou? H muito tempo. Como, h muito tempo? Sim, uma semelhana histrica. No compreendo. No est lembrado da clebre histria do colar?

    Como quer que um porteiro do Chtelet esquea tal histria? Ento deve lembrar-se de uma certa Nicola Legay, conhecida pela menina Oliva. Oh! Sim; representou para com o cardeal de Rohan o papel de rainha. E que vivia com um tratante, um homem cheio de dvidas, um homem chamado

    Beausire. Hein? disse Maillard, pulando como se o tivesse mordido uma serpente. Chamava-se Beausire afirmou o boticrio. E ao tal Beausire que ela chama seu marido? sim. E para ele o purgante que a cidad levou. O maroto talvez apanhasse alguma indigesto fora de comer e beber.

    Um purgante! repetiu Maillard, como quem busca descobrir um segredo e no querperder o fio das idias. Sim um purgante afirmou o boticrio.

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    Ah! disse Maillard, batendo na testa encontrei o homem. Que homem? O dos onze soldos. Mas quem o homem dos onze soldos? Ora! o tal Beausire.

    E diz que o encontrou? Sim, se souber onde mora. Onde mora sei eu. Bom, ento onde ? Na rua da Judiaria, n. 6. perto daqui? So dois passos. Muito bem! J no me admira... O qu? Que o pequeno Toussaint roubasse dois soldos me. Como! No se admira?

    No; filho do tal Beausire, no verdade? o seu retrato vivo. Oh! Filho de gato mata rato; mas, querido amigo continuou o Sr. Maillard diga-me

    com a mo na conscincia quanto tempo preciso para que o purgante comece a fazer efeito? Seriamente, deseja saber? Sim, seriamente. So precisas duas horas. quanto me basta. Toma tanto interesse pelo Sr. Beausire. Tanto que, receando que ele esteja mal, vou buscar... O qu?

    Dois enfermeiros. Adeus, querido amigo.E saindo da botica do seu amigo com um sorriso nos lbios, o nico que jamaisdesenrugou aquele lgubre rosto, tomou o caminho das Tulherias.

    Pitou estava ausente.Devemos estar lembrados de que ele no jardim seguira atrs de Andria, que procurava o

    conde de Charny.Mas, na ausncia do capito, Maillard encontrou Maniquet e Tellier, que guardavam a

    porta.Ambos o reconheceram. Ah o Sr. Maillard? perguntou Maniquet ento encontrou-o? No, mas sei onde a toca.

    Oh! uma ventura disse Tellier porque sou capaz de apostar que tinha consigo osdiamantes. Pode apostar, cidado disse Maillard porque ganha. Muito bem disse Maniquet mas como se ho-de apanhar? Com o seu auxlio podemos apanh-los. Oh! Cidado Maillard, estamos s suas ordens.Maillard fez sinal aos dois oficiais para se aproximarem.

    Escolham-me entre a sua guarda dois homens de confiana. Como valentes? Como honrados. Oh! Ento escusado escolher, pode ser qualquer deles, disse Dsir.

    Depois voltando-se para a porta, bradou: Dois homens para um servio!Levantaram-se doze homens.

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    Vem c, Boulanger disse Maniquet.Aproximou-se um dos homens. E tu tambm, Molicar.Perfilou-se o segundo ao lado do primeiro.

    Quer mais gente, Sr. Maillard? perguntou Tellier.

    Bastam-me dois homens, venham meus valentes.Os dois homens seguiram Maillard.Maillard conduziu-os rua da Judiaria e parou em frente da porta n. 6.

    aqui disse ele subamos.Os dois soldados, guiados por Maillard, subiram a escada at ao quarto andar.

    Ali foram guiados pelos gritos de Toussaint, que ainda lastimava a correco nomaternal, mas paternal; porque a me batera-lhe; mas Beausire, vista a gravidade do caso, julgoudever intervir ajuntando alguns sopapos s pancadas que Oliva dava brandamente e como quecontra vontade, no seu querido filho.

    Maillard quis abrir a porta.O fecho estava corrido.

    Bateu. Quem ? perguntou Oliva. Abra em nome da lei respondeu Maillard.Seguiu-se um dilogo em voz baixa, cujo resultado foi calar-se Toussaint, julgando que

    por causa dos dois soldos, que tinha roubado, a justia se incomodava, enquanto Beausire, apesarde pouco tranqilo, procurava tranqilizar Oliva.

    Finalmente a Sr. Beausire decidiu-se, e abriu a porta no momento em que Maillard iabater segunda vez.

    Os trs homens entraram, causando grande terror a Oliva e a Toussaint, o qual foiesconder-se atrs de uma velha cadeira de palha.

    Beausire estava deitado; ao p dele, em cima da mesa, alumiada por um velho candeeiro,

    estava uma garrafa, que Maillard viu com grande prazer estar despejada.Como Beausire tinha tomado o purgante, s faltava esperar pelo efeito dele.Pelo caminho Maillard havia explicado a Boulanger e a Molicar do que se tratava, de sorte

    que, entrando no quarto de Beausire, j sabiam o que deviam fazer.Portanto Maillard, depois de os ter postado, um de cada lado da cama de Beausire, disse-

    lhes: Cidados, o Sr. de Beausire exactamente como a princesa das Mil e uma Noites, que

    s falava quando a obrigavam, mas que, de cada vez que abria a boca deixava cair dela umdiamante. No deixem pois cair uma s palavra da boca do Sr. Beausire sem saber o que contm.

    Vou esper-los municipalidade; quando ele j no tiver nada que dizer, conduzi-lo-o aChtelet, onde o recomendaro da parte do Sr. Maillard, e iro depois ter comigo, levando o que

    ele tiver dito, municipalidade.Os dois guardas nacionais inclinaram-se em sinal de obedincia e colocaram-se cabeceira da cama do Sr. Beausire.

    O boticrio no se havia enganado; passadas duas horas, comeou o efeito do purgante.O efeito durou mais de uma hora mas foi muito satisfatrio.

    s duas horas da madrugada, viu Maillard chegarem os seus dois homens.Traziam, pouco mais ou menos, o valor de cem mil francos em belos diamantes.Maillard depositou em seu nome e no dos dois guardas nacionais os diamantes sobre a

    secretria do procurador da Comuna, o qual lhe entregou um atestado, certificando que oscidados Maillard, Molicar e Boulanger tinham bem merecido da ptria.

    VO primeiro de Setembro

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    Ora eis o que sucedera em conseqncia do acontecimento trgico-cmico, que

    acabmos de contar.O Sr. Beausire conduzido ao Chtelet tinha sido entregue a um jri encarregado

    especialmente de sindicar dos roubos cometidos no dia 10 de Agosto e seguintes.

    No havia meio de negar, o ru fora apanhado em flagrante.Portanto, limitou-se a confessar humildemente a sua falta, e a implorar a clemncia dotribunal.

    O tribunal mandou informar sobre os precedentes do acusado.Como a informao no lhe fosse favorvel, foi condenado exposio e a cinco anos de

    gals.O Sr. de Beausire debalde alegou que fora arrastado a este roubo por sentimentos

    honrosos, isto , pela esperana de assegurar um futuro tranqilo a sua mulher e a seu filho, epelo desejo de se tornar homem honrado; nada disto foi capaz de comover o tribunal, e comodele no se podia apelar, a sentena devia ser executada no dia imediato ao da sua condenao.

    Ora, a desgraa permitiu que na vspera da execuo da sentena, isto , na vspera do

    dia em que o Sr. de Beausire devia ser exposto, entrasse para a priso um dos seus antigoscamaradas de trapaa; depois de se reconhecerem, seguiram-se as confidncias.O recm-chegado dizia que fora preso em conseqncia de uma conspirao

    perfeitamente organizada que devia rebentar na praa de Grve, ou no palcio.Os conjurados deviam reunir-se em grande nmero, sob pretexto de verem a primeira

    exposio, que se realizasse naquela poca; as exposies eram feitas ou na Grve, ou na praa dopalcio; e ao grito de: Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nao! deviam apoderar-se dopalcio da municipalidade, chamar em seu socorro a guarda nacional, cujos dois teros eramrealistas, abolirem a Comuna e operarem desta forma a contra-revoluo.

    Infelizmente o preso amigo do Sr. Beausire, que devia dar o sinal, e como os outrosconjurados ignoravam a sua priso haviam de ir praa no dia da exposio do condenado, e

    como no ouvissem a ningum gritar: Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nao! no podiaverificar-se o movimento. E isto tanto mais para lastimar ajuntou o preso porquanto nunca houve

    movimento mais bem organizado e com tantas probabilidades de ser bem sucedido.A priso do amigo do Sr. Beausire por mais de um motivo era deplorvel, pois que do

    meio do tumulto o condenado podia escapar e fugir.O Sr. de Beausire, apesar de no ter opinio, propendia contudo para a realeza; comeou

    pois por deplorar amargamente, pelo rei, e por si, que no se verificasse o movimento.De repente bateu na testa.

    Acabava de ser iluminado por uma idia sbita. Mas disse ele ao seu camarada a primeira exposio que deve realizar-se a minha.

    Sem dvida e ento? E dizes que no sabem da tua priso? Decerto que no. Ento os conjurados ho-de reunir-se como se no estivesses preso? Sem dvida. De sorte que se algum desse o sinal ajustado, a conspirao havia de rebentar? Sim; mas quem queres tu que o d estando eu preso, e sem poder ter comunicaes

    para fora da priso? Eu disse Beausire, no tom de Medeia na tragdia de Corneille. Tu?Sim, eu. Hei-de ser exposto, no assim? Pois bem, gritarei: Viva el-rei! Vivam os

    prussianos! Morra a nao! Parece-me que no muito difcil.O companheiro de Beausire ficou maravilhado. Sempre disse exclamou ele que eras homem de gnio.

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    Beausire inclinou-se. E se fizeres o que dizes continuou o preso realista no s hs-de ser solto e

    perdoado, mas tambm, como hei-de declarar que se deve a ti o bom xito da conspirao, podesdesde j contar com a bela recompensa que hs-de receber.

    No disso que se trata respondeu Beausire com ar desinteressado.

    Ora essa, meu amigo! Aconselho-te a que no recuses a recompensa. Se me aconselhas... disse Beausire. Fao mais, convido-te a aceit-la, e, se tanto for preciso, at o ordeno ajuntou

    majestosamente o realista. Pois aceitarei disse Beausire. Est bem disse o conspirador amanh havemos de almoar juntos, o director da

    priso no h-de recusar este favor a dois amigos, e havemos de beber uma garrafa de vinho pelobom xito da conspirao.

    Beausire ainda tinha algumas dvidas sobre a complacncia do director da priso,relativamente ao almoo do dia seguinte; mas almoasse ou no com o seu amigo, estavadecidido a cumprir a promessa que lhe tinha feito.

    Com grande satisfao sua foi-lhes dada a licena para almoarem juntos.Foi servido o almoo aos dois amigos; mas no se limitaram a despejar s uma garrafa,veio segunda, terceira e quarta.

    quarta j o Sr. Beausire estava um realista furioso. Felizmente foram busc-lo para oconduzirem praa de Grve antes que encetasse a quinta.

    Subiu ao carro, como se fosse a um carro triunfante, olhando desdenhosamente para essamultido, a que ia causar terrvel surpresa.

    Na esquina da ponte de Nossa Senhora, era esperado na passagem por uma mulher e umacriana.

    O Sr. Beausire conheceu a pobre Oliva lavada em lgrimas e o jovem Toussaint, o qualvendo seu pai entre os soldados gritou:

    bem feito, para que me bateu ele?Beausire enviou-lhe um sorriso de proteco, a que certamente teria juntado um gesto demais majestade, se no tivesse as mos presas atrs das costas.

    Sabia-se que o condenado expiava um roubo feito nas Tulherias, e como eram sabidas ascircunstncias em que fora feito e descoberto, ningum sentia por ele compaixo.

    Portanto, quando o carro parou ao p do pelourinho, a guarda teve muito trabalho paraconter o povo.

    Beausire olhou para todo este movimento, para este tumulto, para esta multido com umcerto ar, que queria dizer:

    Daqui a pouco vereis.Quando ele apareceu sobre o pelourinho, retumbou um hurra geral; todavia quando o

    carrasco despiu a manga do condenado, lhe ps mostra o ombro e se abaixou para tirar dafornalha o ferro em brasa, sucedeu o que sempre sucede, isto , todos se calaram diante dasuprema majestade da justia.

    Beausire aproveitou a ocasio, e reunindo todas as suas foras, com voz sonora eretumbante, exclamou:

    Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nao!Por maior que fosse o tumulto, que o Sr. Beausire esperasse, o resultado excedeu muito

    as suas esperanas, e no foi um grito, foi um bramido que lhe respondeu.Toda a multido deu um rugido e precipitou-se sobre o pelourinho.Desta vez a guarda no teve fora para proteger o Sr. de Beausire, as fileiras foram rotas,

    o cadafalso invadido, o carrasco lanado abaixo do estrado, o condenado arrancado, no se sabe

    como, do poste e arremessado no devorador formigueiro que se chama multido.

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    Ia ser morto, esmagado, feito em pedaos, quando felizmente do alto da escada dopalcio da municipalidade onde presidia execuo, se precipitou um homem cingido com umabanda.

    Era o procurador da Comuna, era Manuel.Neste homem havia um grande sentimento de humanidade, que algumas vezes era

    obrigado a ocultar, mas que se lhe escapava em circunstncias como esta.Com grande custo chegou onde estava Beausire, estendeu a mo sobre ele, e com vozforte, disse:

    Em nome da lei, reclamo este homem!O povo hesitou em obedecer; Manuel desenrolou a sua banda, e f-la flutuar por cima da

    multido bradando: A mim, todos os bons cidados!1 Correram vinte homens, que se agruparam em volta

    dele.Beausire foi tirado, meio morto, das mos do povo.Manuel f-lo transportar para o palcio da municipalidade, mas dentro em pouco foi o

    palcio ameaado seriamente, to grande era o desespero do povo.

    Manuel apareceu janela e disse: Este homem culpado, certo, e de um crime para que no h perdo. Nomeai entrevs um jri, o qual se reunir numa das salas do palcio da cmara e decidir da sorte docriminoso. Seja qual for a sentena ser executada; haja porm uma sentena.

    No curioso que na vspera do dia da mortandade das prises, um dos homensacusados dessa mortandade use com perigo da vida tal linguagem?

    H anomalias em poltica; explique-as quem puder.Este compartimento tranqilizou a multido; passado um quarto de hora, anunciaram a

    Manuel que estava escolhido o jri popular.O jri constava de vinte e um membros.Os vinte e um membros apareceram s janelas.

    Estes homens so vossos delegados? perguntou Manuel ao populacho.A resposta foi baterem palmas. Est bem disse Manuel como h juzes far-se- justia.E como tinha prometido, instalou o jri numa das salas do palcio.O Sr. de Beausire, mais morto do que vivo, compareceu perante o tribunal improvisado.Procurou defender-se, mas o seu segundo crime estava to bem provado como o

    primeiro, com a diferena de que, na opinio do povo, era mais grave.Gritar viva o rei! quando o rei, reconhecido por traidor, estava preso no Templo.Bradar vivam os prussianos! quando eles acabavam de tomar Longwy e estavam,

    quando muito, a sessenta lguas da capital.Gritar morra a nao! quando esta se estorcia no seu leito de morte; era isto um crime

    inaudito, que merecia supremo castigo.Portanto, o jri decidiu que o culpado no s seria condenado morte, mas que para ligara esta morte a vergonha que a lei tinha separado dela substituindo a guilhotina forca, o Sr.Beausire, por revogao da lei, seria enforcado.

    E enforcado na mesma praa onde perpetrara o crime.

    1No nossa inteno glorificar Manuel, um dos homens da revoluo mais atacado; o nosso fim dizer s a

    verdade.

    Eis como Michelet relata o facto:

    No 1. de Setembro sucedeu na praa de Grve uma cena espantosa; um ladro, que ia ser marcado, e que sem

    dvida estava bbado, lembrou-se de gritar: Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nao! No mesmo instante

    foi arrancado do pelourinho; e ia ser feito em pedaos, quando Manuel, procurador da Comuna, correu a tir-lo

    das mos do povo e o salvou no palcio da municipalidade; ele mesmo porm esteve tambm em extremo perigo,vendo-se obrigado a prometer que um jri popular julgaria o culpado; este jri pronunciou a sentena de morte: a

    autoridade teve esta sentena por boa e vlida, a sentena foi executada e o homem morreu no dia seguinte.

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    Por conseqncia, o carrasco recebeu ordem de levantar a forca no mesmo cadafalsoonde estava o pelourinho.

    A vista deste trabalho, e a certeza de que o criminoso no podia escapar, acabou deacalmar o povo.

    Eis pois um acontecimento que, como dissemos no fim de um dos captulos precedentes,

    preocupava a Assemblia.O dia que se seguia era um domingo, circunstncia agravante, e a Assemblia conheceuque tudo caminhava para a mortandade: a Comuna queria manter-se a todo preo, e a carnificina,isto , o terror era um dos meios mais seguros para o conseguir.

    A Assemblia recuou diante da resoluo novamente tomada.Publicou o seu decreto.Levantou-se ento um dos membros da Assemblia e disse:

    No basta publicardes o vosso decreto; h dois ao promulg-lo, dissestes que a Comunabem merecera da ptria; o elogio um vago, porque pode vir um dia em que digais que aComuna bem mereceu da ptria, mas que todavia tal ou tal dos membros da Comuna no compreendido no elogio, ento ser perseguido tal ou tal membro; pois preciso dizer: no a

    Comuna, mas os representantes da Comuna.A Assemblia votou que os representantes da Comunatinham bem merecido da ptria.Ao mesmo tempo que Robespierre emitia este voto, fazia Comuna um longo e enrgico

    discurso, no qual dizia que, tendo a Assemblia, por infames manobras, feito perder ao conselhogeral a segurana pblica, o conselho geral devia retirar-se e empregar o nico meio, que lherestava para salvar o poder, isto , entregar o poder ao povo.

    Robespierre era ambguo e vago, mas terrvel.Entregar o poder ao povo!Que significava esta frase?Era aceitar o decreto da Assemblia sujeitando-se reeleio. No era provvel.Era depor o poder legal, e depondo-o declarar por esta mesma deposio que a Comuna,

    depois de ter feito o 10 de Agosto, se considerava impotente perante a continuao da grandeobra revolucionria e encarregava o povo de a concluir?Ora, o povo sem freio, encarregado, com o corao cheio de vingana, de continuar a

    obra do 10 de Agosto, era a mortandade dos homens, que tinham combatido contra ele no dia 10de Agosto, e que depois deste dia estavam encerrados nas diversas prises de Paris.

    Eis o estado de Paris no 1. de Setembro noite, isto , o estado em que se acha aatmosfera, quando sobre ela pesa uma tempestade, e quando se sentem, sobre todas as cabeas,os relmpagos, e o raio.

    VI

    Durante a noite de 1 para 2 de SetembroNo 1. de Setembro, s nove horas da noite, o oficioso de Gilberto o ttulo de criado

    tinha sido abolido como anti-republicano o oficioso de Gilberto entrou no quarto dizendo: Cidado Gilberto, a sege est esperando porta.Gilberto ps um chapu de abas largas, abotoou o casaco e disps-se para sair.Mas porta estava um homem embuado num capote e tambm com um chapu de abas

    largas.Gilberto recuou um passo; na escurido e em tais circunstncias, todos so inimigos.Porm uma voz benvola pronunciou estas palavras:

    Sou eu, Gilberto.

    Cagliostro! exclamou o doutor.

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    Bem; j se esqueceu de que no me chamo Cagliostro, mas sim o baro Zanone; verdade que para o senhor no mudo de nome, nem de corao, querido Gilberto, e serei semprepelo menos assim o espero, Jos Blsamo.

    Oh! Sim respondeu Gilberto e a prova que ia a sua casa. Disso desconfiava eu disse Cagliostro e a razo por que venho aqui; deve pensar

    que, em ocasies como a actual, no fao o que acaba de fazer o Sr. de Robespierre, no partopara o campo. Pois eu receava no o encontrar, e dou-me por muito feliz com a sua presena; entre. Aqui estou; agora diga o que pretende respondeu Cagliostro, seguindo o doutor casa

    mais retirada. Assente-se, mestre.Cagliostro assentou-se.

    Sabe o que se passa? perguntou Gilberto. Quer dizer, o que vai passar-se respondeu Cagliostro porque na ocasio esto todos

    sossegados. Tem razo, mas est-se dispondo o quer que seja de terrvel, no assim?

    Terrvel, diz o senhor, mas o que terrvel, torna-se s vezes necessrio. Mestre disse Gilberto quando pronuncia tais palavras com o seu incrvel sanguefrio, realmente faz-me estremecer.

    Que quer, Gilberto? No sou mais de que um eco, j lho disse, eco da fatalidade.Gilberto baixou a cabea.

    Est lembrado, Gilberto, do que lhe disse no dia em que o vi em Bellevue, a 5 deOutubro, e quando lhe predisse a morte do marqus de Favras?

    Gilberto estremeceu.Ele, to forte na presena dos homens e dos acontecimentos, sentia-se fraco como uma

    criana perante aquele misterioso personagem. J lhe disse continuou Cagliostro que o rei, se tivesse no seu pobre crebro um gro

    de esprito de conservao, fugiria. Pois bem disse Gilberto ele fugiu. Ah! Sim; mas eu tinha-o dito enquanto ainda era tempo, e quando ele o quis fazer,

    como sabe, j no o era. Tambm sabe que ajuntei que se o rei, a rainha, os nobres resistissem,ns faramos uma revoluo.

    Oh! disse Gilberto com um suspiro desta vez ainda tem razo, porque a revoluofez-se.

    No foi completa replicou Cagliostro mas fez-se meu caro Gilberto; tambm deveestar lembrado de que lhe falei num instrumento inventado por um amigo meu, o doutorGuillotin. No passou pela praa do Carroussel? L est defronte das Tulherias esse instrumento,o mesmo que fiz ver rainha no castelo de Taverney, numa garrafa; deve estar lembrado, pois

    estava l um rapazote, mas j era amante da menina Nicola; a propsito, o marido de Nicola, oamvel Sr. Beausire, acaba de ser condenado forca, e l est ela erguida defronte do palcio damunicipalidade.

    Sim disse Gilberto a guilhotina comeou a funcionar, mas ainda no estosatisfeitos com a sua expedio, pois lhe ajuntam espadas, lanas e punhais.

    Oua-me disse Cagliostro h-de concordar numa coisa, e que temos de tratar comteimosos e cruis; deram-se aos aristocratas toda a sorte de advertncias, que no serviram paranada: tomou-se a Bastilha, de nada serviu; fez-se o 20 de Junho, de nada serviu; fez-se o dia 10 de

    Agosto, de nada serviu; meteu-se o rei na Abadia, na Force, em Bictre, mas isto de nada serviu;o rei no Templo alegra-se com a tomada de Longwy pelos prussianos! Os aristocratas gritam na

    Abadia: viva o rei! vivam os prussianos! bebem vinho de Champanhe nas barbas do pobre

    povo, que bebe gua; comem iguarias nas barbas do desgraado povo, que no tem po.At o prprio rei da Prssia, a quem se escreveu dizendo-lhe:

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    Tomai conta, se passais de Longwy, um passo de mais no corao da Frana ser asentena de morte do rei.

    Responde:Por mais horrorosa que seja a situao da famlia real, os exrcitos no devem

    retroceder; de toda a minha alma desejo chegar a tempo para salvar o rei de Frana, mas primeiro

    do que tudo meu dever salvar a Europa.E marcha sobre Verdum... preciso acabar com isto. Acabar com qu?! exclamou Gilberto. Com o rei, com a rainha e com os aristocratas. Ento quer assassinar o rei, a rainha e os aristocratas? Oh! No, isso seria um grande crime. preciso julg-los, conden-los, execut-los

    publicamente, como se fez a Carlos I; mas o que importa desembaraarmo-nos deles, o maisdepressa possvel.

    E quem decidiu isso? Vejamos exclamou Gilberto foi a conscincia, foi a honradez,foi a inteligncia deste povo, em que fala? Quando tinha Mirabeau como gnio, Lafayette comolealdade, Vergniaud como justia, se tivesse vindo dizer-me, em nome dos seus homens, preciso

    matar, eu teria estremecido, como hoje estremeo, mas teria duvidado. Hoje porm em nome dequem vem dizer-me isso? Em nome de um Hbert, negociante falido, de um Collot-dHerbois,comediante apupado, de um Marat, esprito doente, a quem o mdico manda sangrar todas as

    vezes que pede cinqenta mil, cem mil, duzentas mil cabeas? Deixe-me, caro mestre, desconfiardesses homens medocres, que precisam de crises rpidas e patriticas. Esses maus taumaturgos,esses retricos impotentes, que s se regozijam com as destruies rpidas, que se julgammgicos hbeis, desfizeram a obra de Deus; s acham belo, grande, sublime, fazer retroceder ogrande rio da vida, que alimenta o mundo, exterminado com uma palavra, com um gesto,fazendo desaparecer com um sopro o obstculo vivo, que a natureza tinha gasto trinta, quarentae cinqenta anos a criar. Esses homens, querido mestre, so miserveis, e o senhor no pertence atal nmero.

    Meu caro Gilberto disse Cagliostro est enganado, chama a tais indivduos homens;faz-lhe muita honra, no so mais do que instrumentos. Instrumentos de destruio. Sim, mas em benefcio de uma idia, Gilberto, a emancipao dos povos, a liberdade

    universal, a repblica, no a francesa, Deus me defenda de semelhante idia, que egosta, masa fraternidade do mundo. No, esses homens no tm gnio, mas tm o que mais inexorvel, oque mais irresistvel do que tudo isto, tm o instinto.

    O instinto de tila. Precisamente, o instinto de tila, que se intitulava o Martelo de Deus, e que vinha com

    o sangue brbaro dos Hunos, dos Alanos e dos Suevos reformar a civilizao humana,corrompida por quatrocentos anos de reinado dos Neros, dos Vespazianos e dos Heliogabalos.

    Mas, finalmente disse Gilberto resumamos, em lugar de estar a falar emgeneralidades; onde o conduzir a matana? Oh! A uma coisa muito simples; a comprometer a Assemblia, a Comuna, o povo, todo

    Paris. preciso manchar Paris de sangue, para que Paris, o crebro da Frana, o pensamento daEuropa, a alma do mundo, para que Paris, conhecendo que no h para ela perdo possvel, selevante como um s homem, e expulse o inimigo do terreno sagrado da ptria.

    Mas o senhor, que no francs, o que tem com isso?! exclamou Gilberto.Cagliostro sorriu.

    possvel que o senhor, inteligncia superior, uma organizao potente, diga a umhomem: No te intrometas nos negcios da Frana, porque no s francs? Acaso os negcios daFrana, no so negcios de todo o mundo? Acaso a Frana pobre egosta trabalha s para si?

    Acaso Jesus morreu s para os Judeus? Com que direito iria dizer a um apstolo: Tu no sNazareno? Oua, Gilberto; discuti todas essas coisas com um gnio muito mais forte do que omeu, do que o seu, com um homem ou um demnio chamado Althotas, num dia, em que ele

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    calculava o sangue que era preciso derramar primeiro que o Sol se levantasse sobre a liberdade domundo. Pois os raciocnios daquele homem no abalaram a minha convico. Marchei, marcho,hei-de marchar, derrubando tudo o que encontrar diante de mim, gritando com voz sossegada,com olhar sereno: Ai dos obstculos, sou o porvir!

    Vejo porm que tem que pedir-me o perdo de algum, no assim? Concedo-lhe o

    perdo que requer: diga-me o nome daquele ou daquela que pretende salvar. Quero salvar uma mulher, que nem eu nem o senhor podemos deixar morrer. Quer salvar a condessa de Charny? Quero salvar a me de Sebastio. Bem sabe que Danton quem pode abrir e fechar as prises. Sim, mas tambm sei que pode dizer-lhe abra ou feche tal porta.Cagliostro levantou-se, chegou secretria e traou sobre um bocado de papel uma

    espcie de sinal cabalstico, e apresentando o papel a Gilberto, disse: Aqui tem, meu caro, v procurar Danton e pea-lhe o que quiser.Gilberto levantou-se.

    Mas depois perguntou Cagliostro que tenciona fazer?

    Depois do qu? Depois dos dias que vo decorrer, quando chegar a vez do rei? Tenciono fazer-me nomear, se puder, da nova conveno, e opor-me com todas as

    minhas foras morte do rei. Est bem replicou Cagliostro obra segundo os ditames da sua conscincia; mas

    prometa-me uma coisa. Qual ? J l vai o tempo em que prometia sem condies. Nesse tempo no vinha dizer-me que um povo se curava com o assassnio, uma nao

    com a carnificina. H-de prometer-me que depois de julgado e executado o rei, seguir o conselho que eu

    lhe der.Gilberto estendeu-lhe a mo. Todo o conselho que vier do senhor ser precioso para mim. E ser seguido? perguntou Cagliostro. Juro que sim, se no for contra a minha conscincia. Gilberto injusto disse Cagliostro tenho-lhe oferecido muito, e nunca exigi nada. verdade, e agora mesmo acaba de me conceder uma vida, que mais preciosa do que

    a minha. Pois v, e que o gnio da Frana, da qual um dos mais nobres filhos, o guie.Cagliostro saiu; Gilberto seguiu-o.Gilberto meteu-se na sege, que estava porta, e dirigiu-se ao ministrio da justia.

    Era ali onde estava Danton.Danton, como ministro da justia, tinha pretexto especioso para no aparecer naComuna.

    Demais, que preciso tinha de aparecer? Marat e Robespierre estavam l.Robespierre no havia de consentir que Marat lhe passasse adiante: presos matana,

    marchavam com o mesmo passo.Demais, vigiava-os Tallien o homem de Danton.Este esperava duas coisas:Supondo que se decidisse pela Comuna, um triunvirato com Marat e Robespierre;Supondo que a Assemblia se decidisse por ele, a ditadura como ministro da justia.No queria Robespierre e Marat.

    A Assemblia porm no o queria a ele.Quando o doutor Gilberto lhe foi anunciado, estava com ele a mulher, ou antes, digamosmelhor, a mulher estava aos ps dele.

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    A carnificina j era to sabida, que a mulher estava aos ps de Danton suplicando-lhe queno a permitisse, que se opusesse.

    E quando se verificou a carnificina, a pobre senhora morreu de dor.Danton no lhe podia fazer compreender uma coisa, que todavia era bem clara.Era que ele nada podia contra as decises da Comuna, sem uma autoridade concedida

    pela Assemblia.Com a Assemblia havia probabilidade de vitria.Sem a Assemblia era certa a derrota.

    Morre! Morre! Se tanto preciso gritava a pobre senhora mas poupa a carnificina. Um homem como eu dizia Danton no morre inutilmente. Quero morrer mas

    quando a minha morte for til ptria.Anunciaram o Dr. Gilberto. No sairei daqui disse a Sr. Danton sem me prometeres que hs-de fazer todo o

    possvel para impedir este abominvel crime. Ento fica disse Danton.A Sr. Danton deu trs passos para trs, e deixou o marido ir ao encontro de Gilberto.

    Danton conhecia de vista e de reputao o ilustre mdico.Foi ao encontro dele. Ah! Doutor disse Danton chega a propsito, e se eu soubesse a sua morada, t-lo-ia

    mandado chamar.O doutor cumprimentou Danton, e vendo uma senhora lavada em lgrimas, inclinou-se.

    Aqui tem disse o ministro aqui tem minha mulher, a mulher do cidado Danton, doministro da justia, que julga que sou assaz forte, eu s, para impedir os srs. Marat e o Sr.Robespierre, incitados pela Comuna, de fazerem o que quiserem, quero dizer, para impedir queeles matem, exterminem e destruam.

    Gilberto olhou para a Sr. Danton.Ela chorava com as mos postas.

    Senhora disse Gilberto permite-me que beije as suas mos misericordiosas? Bom disse Danton tens um reforo no doutor, Madalena. Oh! Diga, senhor exclamou a pobre mulher que se ele permite um to miservel

    crime, lana uma ndoa de sangue em toda a sua vida. E se fosse s isso disse Gilberto se essa ndoa ficasse s na fronte de um homem, e

    que julgando que essa ndoa til ao seu pas, necessria Frana, esse homem se imolasse,lanando a honra no abismo, como Dcio lanou nele o corpo, no seria nada; o que importa emacontecimentos, como os actuais, a vida, a reputao, a honra de um cidado? porm umamancha na fronte da Frana.

    Cidado disse Danton quando o Vesvio trasborda, diga-me se h uma mo assazpotente para fazer recuar o Oceano?

    Quando um homem se chama Danton, no se pergunta onde est tal homem, opera. Oh! disse Danton um insensato, e vou dizer-lhe aquilo que nunca confessaria amim mesmo. Sim, tenho a vontade, tenho o gnio! Sim, se a Assemblia quisesse, teria a fora;sabe porm o que vai suceder? O que sucedeu a Mirabeau, o seu gnio no pde triunfar da suareputao.

    No sou o fantico Marat para inspirar terror Assemblia, no sou o incorruptvelRobespierre para lhe inspirar confiana; a Assemblia h-de negar-me os meios de salvar oestado; sofrerei a pena da minha m reputao, ho-de dizer em voz baixa que sou um homemsem moral, ao qual se no pde dar nem por trs dias um poder absoluto, inteiro, arbitrrio; ho-de nomear alguma comisso de pessoas honradas, e durante este tempo comear a matana, e,como diz, o sangue de um milhar de culpados, o crime de trezentos ou quatrocentos bbados,

    h-de correr sobre as cenas da revoluo uma cortina vermelha, que h-de esconder as suassublimes virtudes. Pois no ajuntou Danton com um gesto magnfico no h-de sucederassim. Serei eu o acusado e afastarei da Frana a maldio, que s pesar sobre a minha cabea.

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    E eu? E teus filhos? exclamou no auge do desespero a desgraada senhora. Tu disse Danton tu hs-de morrer, j o disseste, e no poders ser acusada como

    minha cmplice; enquanto a meus filhos, se chegarem a ser homens e se tiverem o corao dopai, usaro o meu nome com a cabea altiva; mas se forem fracos e me renegarem, tanto melhor;os fracos no so da minha raa, e nesse caso sou eu que desde j os renego.

    Mas ao menos exclamou Gilberto pea a tutoridade Assemblia. Julga que estive esperando pelo seu conselho? Mandei chamar Thuriot e Tallien, Sr.Danton, veja se j vieram e mande entrar Thuriot.

    A Sr. Danton saiu apressada. Vou tentar fortuna diante do Sr. Gilberto disse Danton ser testemunha ante a

    posteridade de que ao menos tentei.Neste momento tornou a abrir-se a porta.

    Aqui est o cidado Thuriot disse a Sr. Danton. Vem c disse Danton, estendendo a larga mo quele que representava a seu lado o

    papel que o ajudante de campo desempenha ao lado do general. H dias disseste na tribuna umacoisa magnfica. A revoluo francesa no s para ns, para todo o mundo, e devemos dar

    conta dela a toda a humanidade. Pois ento vamos tentar um ltimo esforo para salvar estarevoluo e para a conservar pura. Fale disse Thuriot. Amanh, quando se abrir a sesso, sei o que ali hs-de pedir.Que seja elevado a trezentos o nmero de membros do conselho geral da Comuna, de

    maneira que, mantendo os eleitos do dia 10 de Agosto, possam os antigos ser assinados pelosmodernos, e constituamos sobre uma base firme a representao de Paris, engrandecendo aComuna, mas neutralizando ao mesmo tempo o seu poder. Se no passar esta proposta, se nopuderes fazer compreender o meu pensamento, ento entende-te com Lacroix, dize-lhe que entrefrancamente na questo, que proponha a pena de morte para todos aqueles que, directa ouindirectamente, recusarem executar ou se opuserem por qualquer forma s ordens dadas e s

    medidas tomadas pelo poder executivo; se a proposta passar, da ditadura, o poder executivo soueu, reclamo-o, e se no quiserem dar-mo, tomo-o fora. Depois o que far? perguntou Gilberto. Depois respondeu Danton pego numa bandeira, e em lugar do ensangentado, o

    hediondo demnio da matana, que mando para as suas trevas, invoco o gnio nobre e serenodas batalhas, que bate sem medo nem clera, que encara em paz a morte; pergunto a todos essesbandos se para assassinar homens desarmados que se reuniram; declaro infame todo aquele queameaar as prises; talvez que alguns aprovem a matana, mas os assassinos so poucos:aproveito o entusiasmo que reina em Paris, envolvo o pequeno nmero dos assassinos noturbilho dos voluntrios, verdadeiros soldados, que s esperam uma ordem para partir, e levo-ospara a fronteira, isto , contra o inimigo.

    Faa isso disse Gilberto e far uma coisa grande, sublime, magnfica. Oh! Meu Deus disse Danton com indiferena, e encolhendo os ombros no hnada mais fcil; ajudem-me e vero.

    A Sr. Danton beijou as mos do marido. Oh! Ho-de ajudar dizia a virtuosa senhora quem no ser da tua opinio ouvindo-

    te falar assim? Sim respondeu Danton infelizmente porm no posso falar assim, porque se me

    ouvissem, seria por mim que comearia a matana. Pois bem disse vivamente a Sr. Danton melhor morrer desse modo. Falas mesmo como mulher. Morrendo eu o que seria da revoluo entre aquele louco

    sanguinrio chamado Marat, e o falso utopista que se chama Robespierre? No, no devo, no

    quero morrer ainda, porque devo impedir a matana, e se o no puder conseguir, quero afastar daFrana esta ndoa e tom-la sobre mim. Chama Tallien.Este entrou.

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    Tallien disse-lhe Danton pode ser que a Comuna me escreva amanh convidando-me a ir municipalidade; como secretrio da Comuna, arranje as coisas de maneira que eupossa provar que no recebi a carta de convite.

    Diabo disse Tallien como hei-de arranjar isso? No sei. Disse-lhe o que desejo e o que quero; pertence pois ao senhor arranjar os

    meios. Venha, Sr. Gilberto, visto ter alguma coisa que me pedir.E abrindo a porta de um pequeno gabinete fez entrar Gilberto e seguiu-o. Vejamos, doutor perguntou Danton em que lhe posso ser til?Gilberto tirou da algibeira o papel, que lhe entregara Cagliostro, e apresentou-o a Danton.

    Ah! Vem recomendado por ele; em que lhe posso ser til? Que deseja? A soltura de uma senhora, que est presa na Abadia. Como se chama? A condessa de Charny.Danton pegou num pedao de papel e escreveu a ordem de soltura.

    Aqui tem disse ele desejaria poder salvar todos os infelizes um por um.Gilberto inclinou-se.

    Tenho o que desejava disse ele. V, Sr. Gilberto, se alguma vez carecer de mim, venha procurar-me imediatamente;sempre me julgarei feliz quando o obsequiar.

    Depois, empurrando-o brandamente para fora do gabinete, murmurou: Ah! Se ao menos tivesse por vinte e quatro horas metade da reputao de homem

    honrado!E fechou a porta sobre Gilberto, dando um suspiro e limpando o suor, que lhe corria da

    fronte.Munido do precioso papel, que lhe restitua a vida de Andria, Gilberto correu Abadia.

    Apesar de j ser meia-noite, ainda alguns grupos estacionavam ao p da priso.Apresentou a ordem ao director.

    A ordem dizia que pusesse imediatamente em liberdade a pessoa que Gilberto designasse.O mdico designou a condessa de Charny, e o director deu ordem a um chaveiro paraque conduzisse o cidado Gilberto ao quarto da presa.

    Gilberto seguiu o chaveiro, subiu atrs dele trs lanos de escada e entrou num quartoalumiado por uma lamparina.

    Uma senhora, vestida de luto, plida como o mrmore, estava assentada ao p da mesa,lia um pequeno livro de encadernao de chagrin, ornado com uma cruz.

    Ao lado dela ardia na chamin um resto de fogo.Apesar do rudo que a porta fez ao abrir, no levantou a cabea; apesar da bulha que

    Gilberto fez aproximando-se, no levantou os olhos.Parecia absorvida pela leitura, ou antes pelos pensamentos, porque Gilberto esteve diante

    dela dois ou trs minutos sem lhe ver voltar uma pgina.O chaveiro retirara-se, puxando a porta para si. Senhora condessa disse Gilberto passado um instante.Andria levantou os olhos, olhou por uns momentos sem ver, pois o vu do pensamento

    interceptava-lhe a pessoa que tinha diante de si; todavia foi-se esclarecendo gradualmente. Ah! o Sr. Gilberto disse Andria que me quer? Minha senhora, correm sinistros boatos a respeito das prises. Bem sei disse Andria querem assassinar-nos; mas bem sabe, Sr. Gilberto, que estou

    pronta para morrer.Gilberto inclinou-se.

    Venho busc-la, minha senhora.

    Vem buscar-me? repetiu Andria admirada: para me conduzir aonde? Aonde quiser, minha senhora; est livre.E apresentou-lhe em seguida a ordem de soltura assinada por Danton.

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    Leu-a, mas em vez de a entregar ao doutor conservou-a na mo. Devia desconfiar disto, doutor disse ela tentando sorrir. De qu, minha senhora? De que vinha para me impedir que eu morra. Minha senhora, h no mundo uma existncia mais preciosa para mim do que nunca foi

    a de meu pai, ou de minha me; a sua. E essa a razo por que j faltou uma vez sua palavra? No faltei minha palavra, pois lhe enviei o veneno. Por meu filho. No lhe tinha dito por quem o enviaria. De sorte que se lembrou de mim, Sr. Gilberto, e foi por minha causa que entrou no

    covil do leo e se muniu com um talism, que abre as portas das prises. J lhe disse minha senhora que enquanto eu viver, hei-de evitar que se exponha

    morte. Oh! Contudo, desta vez disse Andria com um sorriso mais profundo do que o

    primeiro desta vez tenho a certeza de que vou morrer.

    Tentarei tudo para a salvar.Andria, sem responder, rasgou em quatro a ordem de soltura e lanou-a no lume. Experimente disse ela.Gilberto deu um grito.

    Sr. Gilberto disse ela renunciei idia do suicdio, mas no renunciei da morte. Oh! Senhora!... exclamou Gilberto. Senhor, decididamente quero morrer.Gilberto deixou escapar um gemido.

    Tudo o que lhe exijo, Sr. Gilberto, que procure o meu corpo e que o salve dosultrajes, a que no escapou enquanto vivo. O Sr. de Charny repousa nos carneiros do castelo deBoursonne; foi ali que passei os nicos dias felizes da minha vida, desejo pois repousar ao p

    dele. Oh! Minha senhora, em nome do Cu, suplico-lhe... E eu, senhor, em nome da desgraa imploro-lhe este favor. Est bem, minha senhora disse Gilberto j me disse uma vez que em tudo lhe devo

    obedecer; retiro-me, mas no me dou por vencido. No se esquea de qual o meu desejo disse a condessa. Se no a salvar, farei o que me pede.E cumprimentando-a pela ltima vez, retirou-se.

    A porta fechou-se sobre ele com o som lgubre que peculiar s portas das prises.

    VII

    O dia 2 de Setembro

    Sucedeu o que Danton previra.Logo que se abriu a sesso, Thuriot fez na Assemblia a proposta que o ministro da

    justia formulara na vspera.A Assemblia no a compreendeu.Em lugar de a votar s nove da manh, a Assemblia discutiu-a, e quando procedeu

    votao era uma hora depois do meio-dia.E Era muito tarde.

    Aquelas quatro horas retardaram um sculo a liberdade da Europa.

    Tallien foi mais esperto.Encarregado pela Comuna de dar ordem ao ministro da justia, para ir municipalidade,escreveu:

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    Sr. ministro,Logo que receber esta, apresentar-se- no palcio da municipalidade.

    Mas em lugar de pr o sobrescrito para o ministro da justia, dirigiu-o ao ministro da

    guerra. Esperavam Danton.Foi Servan que se apresentou muito embaraado, perguntando o que queriam.No lhe queriam absolutamente nada.Desfez-se o engano; mas a pea estava pregada.

    J dissemos que a Assemblia votando uma hora, votara tarde.Com efeito, a Comuna, que no demorava os seus negcios, tinha aproveitado o tempo.Que pretendia a Comuna?Queria a carnificina e a ditadura.Eis como procedeu.Como Danton tinha dito, os assassinos no eram numerosos.

    Na noite de 1 para 2 de Setembro, enquanto Gilberto tentava inutilmente tirar Andria daAbadia, Marat enviava os seus ces aos clubes e s seces.Apesar