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Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

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Memórias de um médico: O Colar da Rainha

Volume I

Alexandre Dumas

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AO LEITOR Permitam os leitores que lhes dirijamos uma curta explicação a propósito do título que

demos a este nosso escrito. Há já vinte anos que vivemos em excelentes relações, e as poucas linhas que seguem, em vez de enfraquecer a nossa antiga amizade, é de esperar que, pelo contrário, a estreitem mais intimamente.

Depois das últimas linhas que escrevemos, sobreveio uma revolução, que profetizáramos em 18321, tendo exposto as suas causas, seguido a progressão, e até descrito o desfecho; mais ainda: dissemos há dezesseis anos o que faríamos há oito meses.

Permitam-nos que transcrevamos aqui as últimas linhas do epílogo profético, que termina o nosso livro Gália e França.

“Eis o abismo em que vai precipitar-se o governo actual. O farol que lhe colocamos no

caminho só alumiará o seu naufrágio, porque ainda que ele quisesse virar de bordo já não o poderia fazer : a corrente que o arrasta é fortíssima, e o vento que o impele muito violento. Mas, na hora da perdição, as nossas recordações de homem, sobrepujando o nosso estoicismo de cidadão, farão ouvir uma voz, que dirá: Morra a realeza, mas Deus salve o rei!”

“Essa voz será a nossa.” Faltámos à nossa promessa ? E não bradou bastante alto para que a ouvissem a única voz

que em França disse adeus a uma augusta amizade, no meio da queda de uma dinastia? A revolução prevista e anunciada por nós não veio encontrar-nos desprevenidos.

Saudámo-la como uma aparição fatalmente esperada ; não a esperávamos melhor, e temíamo-la pior. Há vinte anos que perscrutamos o passado dos povos, e sabemos por isso o que são as revoluções.

Dos homens que a fizeram, e dos que com ela aproveitaram, não falaremos. Toda a tempestade turva a água, todos os abalos da terra trazem escórias à superfície. Depois, pela lei natural do equilíbrio, cada molécula retoma o seu lugar. A terra une-se, a água purifica-se, e o céu, momentaneamente toldado, reflecte no lago eterno as suas estrelas de ouro.

Os nossos leitores vão, pois, encontrar-nos o mesmo que éramos antes do dia 2 de Fevereiro ; apenas uma ruga de mais na fronte, e uma chaga no coração foram a mudança que em nós se operou durante os terríveis oito meses que acabam de decorrer.

Os que estimávamos, continuamos a estimá-los; os que temíamos, já os não tememos; os que desprezávamos, desprezamo-los mais do que nunca.

Assim, pois, tanto na nossa obra como em nós, não há mudança alguma; a única que se notará, como já dissemos, será uma ruga de mais na nossa fronte, e uma chaga novamente aberta no nosso coração.

Até esta data temos escrito pouco mais ou menos quatrocentos volumes; temos registrado bastantes séculos, e evocado muitos personagens, maravilhados por se verem de pé à luz da publicidade.

Desafiamos toda essa falange de espectros para que digam se alguma vez sacrificámos os seus vícios ou as suas virtudes às exigências do tempo em que vivemos. Tanto a respeito dos reis e dos grandes fidalgos, como a respeito do povo, sempre dissemos a verdade, ou o que cremos ser a verdade ; e, se os mortos pudessem reclamar como os vivos, do mesmo modo que nunca, perante estes, tivemos de desdizer-nos, estamos certos que também não teríamos que fazer qualquer retratação perante aqueles.

Para certos corações toda a desventura é sagrada, toda a desgraça respeitável; seja esta da vida à morte, ou do trono ao desterro, é dever do homem inclinar-se diante de um sepulcro aberto, ou de uma coroa despedaçada.

1 Epílogo de Gália e França.

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Ao escrever o título na primeira página do livro que hoje começamos, importa dizer que não foi ele determinado por livre escolha nossa ; a sua hora e a sua vez tinham de chegar. A cronologia é inflexível; depois de 1774 devia vir 1784 ; depois de José Bálsamo, o Colar da Rainha.

Sosseguem, contudo, as susceptibilidades mais escrupulosas. Por isso mesmo que hoje tudo se pode dizer, será o historiador o censor do poeta. Nada de inexacto, de exagerado ou de equívoco se dirá sobre a rainha mártir. Ao descrever a fraqueza da humanidade e o orgulho da jerarquia, procuraremos fazê-lo como os pintores idealistas, que também sabiam tomar o lado belo da semelhança: procuraremos fazer como aquele artista denominado o Anjo, quando ao pintar uma santa madonna retratava a mulher que adorava, e seguiremos através dos libelos infamantes e das acusações exageradas, com passo firme e imparcial, a florida senda da poesia.

A mulher, cuja cabeça o carrasco mostrou à multidão, comprou bastante caro o direito de não ter que recear a posteridade.

Paris, 29 de Novembro de 1847.

ALEXANDRE DUMAS

PRÓLOGO

I

Um antigo fidalgo e um mordomo antigo Num dos primeiros dias do mês de Abril de 1784, pelas três horas da tarde, mirava-se o

velho marechal de Richelieu, nosso antigo conhecido, a um espelho, que lhe fora apresentado pelo seu criado de quarto, indigno sucessor do fiel Rafté. Depois de ter pintado as sobrancelhas com uma composição aromática, movendo a cabeça com o modo que lhe era particular, o duque disse :

– Bom! assim estou bem... E ergueu-se da cadeira, com ademanes juvenis, sacudindo com os dedos os pós brancos

que da cabeleira lhe tinham caído sobre os calções de veludo azul-claro. Depois, dando duas ou três voltas no seu quarto de vestir, estendendo a perna e

endireitando-se, ordenou: – Chamem o mordomo! Cinco minutos depois apareceu o mordomo em trajo de cerimónia. O marechal tomou o aspecto grave que a situação exigia, e disse-lhe: – Suponho que mandou fazer um excelente jantar? – Sim, Sr. duque. – Mandei dar-lhe a lista dos meus convidados, não? – E lembra-me fielmente o número deles. Nove talheres, não é assim? – Há talheres de várias espécies, senhor mordomo. – Sim, Sr. duque, mas... Richelieu interrompeu o mordomo com um leve movimento de impaciência,

acompanhado de um certo modo majestoso. – Mas... não é resposta, senhor; cada vez que ouço a palavra mas, – que bastantes vezes a

tenho ouvido em oitenta anos, – sinto muito ver-me na necessidade de lho dizer, Sr. mordomo, cada vez que a tenho ouvido, tem sido sempre precedida de uma grande tolice.

– Senhor! – Vamos primeiro a saber : a que horas me dá de jantar? – Sr. duque, a gente do povo janta às duas horas, os magistrados às três, e os nobres às

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quatro. – E eu, Sr. mordomo? – V. Exª. jantará hoje às cinco horas. – Oh! Oh! às cinco horas! – Sim, senhor, como el-rei. – E por que há-de ser como el-rei? – Porque na lista que V. Exª. fez a honra de me dar vejo um nome de rei. – Não há tal, Sr. mordomo, está enganado; entre os meus convidados de hoje não há

senão simples fidalgos. – V. Exª. quer, sem dúvida, caçoar com o seu humilde servo, e agradeço a honra que me

faz. Mas o Sr. conde de Haga, que é um dos convivas de V. Exª.... – Depois? – Depois... o Sr. conde de Haga é rei. – Não conheço rei nenhum assim chamado, Sr. mordomo. – Perdoe-me então V. Exª. – disse o mordomo inclinando-se – eu julgava... eu supunha... – A sua obrigação não é de julgar, senhor mordomo! O seu dever não é de supor nem

julgar! O que tem que fazer é ler as ordens que lhe dou, sem lhes acrescentar comentários. Quando quero que saibam uma coisa, digo-a; quando não a digo, é porque quero que a ignorem.

O mordomo inclinou-se segunda vez, e talvez com mais profundo respeito do que se estivesse falando com um imperante.

– Assim, pois, senhor – prosseguiu o velho marechal – como os meus convidados são simples fidalgos, espero que me fará o favor de mandar pôr o jantar na mesa às horas do costume, isto é, às quatro horas.

Ouvindo esta ordem, a fronte do mordomo anuviou-se, como se acabasse de ouvir proferir a sua sentença de morte. Tornou-se pálido e vergou com o golpe.

Depois, endireitando-se com a coragem do desespero, disse: – Seja o que Deus quiser, mas V. Exª. não jantará senão às cinco horas. – Por que, e como se entende isso? – bradou o marechal endireitando-se. – Porque é materialmente impossível que V. Exª. jante mais cedo. – Sr. mordomo – disse o velho marechal erguendo com altivez a cabeça – há vinte anos,

creio eu, que está ao meu serviço? – Vinte e um anos, um mês e duas semanas, senhor duque. – Pois, senhor mordomo, a esses vinte e um anos, um mês e duas semanas não

acrescentará nem mais um dia, nem mais uma hora. Ouviu? – replicou o ancião mordendo os lábios delgados, e franzindo os pintados sobrolhos; – pode hoje mesmo procurar outro cómodo. Não percebo que em minha casa só pronuncie a palavra impossível; e não será na idade que tenho que aprenda a significação dessa palavra. Tenho mais em que empregar o tempo.

O mordomo inclinou-se pela terceira vez. – Esta noite – disse ele – terei a honra de me despedir de V. Exª., mas até ao último

momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que chama convenientemente? – bradou o marechal. – Deve saber que aqui as coisas

têm de ser feitas como me convém a mim, e que é esse o único convenientemente que eu entendo. Ora, eu quero jantar às quatro horas, e quando quero jantar às quatro horas, não me convém que tenha a lembrança de me fazer jantar às cinco.

– Sr. marechal – disse secamente o mordomo – servi de despenseiro ao Sr. príncipe de Soubise, e de mordomo ao Sr. príncipe cardeal Luís de Rohan; em casa do primeiro jantava Sua Majestade o falecido rei de França uma vez cada ano; em casa do segundo jantava uma vez cada mês Sua Majestade o imperador de Áustria. Portanto, Sr. marechal, sei como devem ser tratados os soberanos. Debalde el-rei Luís XV se chamava em casa do Sr. de Soubise barão de Gonesse, que sempre era rei. Em vão em casa do segundo, isto é, em casa do Sr. de Rohan, o imperador

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José se dizia conde Packenstein, era sempre o imperador. Hoje recebe o Sr. marechal um conviva, que se diz conde de Haga sem por isso deixar de ser el-rei da Suécia. Sairei portanto esta noite do palácio de V. Exª., mas o Sr. conde de Haga há-de aqui ter sido tratado como um rei.

– Ora aí está exactamente o que quebro a cabeça em proibir-lhe, Sr. teimoso; o Sr. conde de Haga quer conservar o incógnito mais estrito, mais absoluto. Com os diabos, nisto reconheço eu perfeitamente as suas vaidades, srs. chefes do guardanapo! Não é a coroa que assim honram a quem querem glorificar, é a si mesmos, mas com o nosso dinheiro.

– Não creio – disse amargamente o mordomo – que seja a sério que V. Exª. me fale em dinheiro.

– Não, senhor – disse o marechal quase humilhado: – não. Dinheiro! quem é que lhe fala em dinheiro? Não transforme a questão; repito-lhe que não quero por forma alguma que se trate aqui de rei.

– Mas, Sr. marechal, quem julga V. Exª. que eu seja? Pensa que ando assim às cegas? Não se há-de tratar aqui de rei.

– Então acabe com essa obstinação, e dê-me de jantar às quatro horas. – Não, Sr. marechal, porque às quatro horas não terá chegado o que eu espero. – Então o que espera? algum peixe, como o Sr. Vatel esperava? – O Sr. Vatel, o Sr. Vatel... – murmurou o mordomo. – Que é isso! não lhe agrada a comparação? – Não me importa, mas por uma triste espadeirada que o Sr. Vatel deu em si, ficou

imortalizado? – Ah! ah! e parece ao Sr. mordomo, que o seu colega comprou a glória por baixo preço? – Não, senhor; mas quantos na nossa posição sofrem mais do que ele, e devoram penas

ou humilhações cem vezes piores do que uma espadeirada, e entretanto não se têm imortalizado?! – Ai, meu caro senhor, para ser imortalizado, não sabe que é preciso pertencer à academia

das ciências ou ter morrido? – Senhor, se assim é, mais vale estar bem vivo, e fazer o serviço. Não morrerei, e o meu

serviço há-de ser feito como o teria sido o do Sr. Vatel, se o senhor príncipe de Condé tivesse paciência de esperar meia hora.

– Oh! promete-me então maravilhas; isso é hábil. – Não, senhor, não prometo maravilhas. – Mas que espera, então? – V. Exª. quer que lho diga? – Sim, por vida minha! sou curioso. – Espero uma garrafa de vinho. – Uma garrafa de vinho! Explique-se, que o caso começa a interessar-me. – Aqui está de que se trata, senhor. Sua Majestade el-rei da Suécia... perdão, eu queria

dizer, S. Exª. o Sr. conde de Haga não bebe senão vinho de Tokay. – Pois a minha garrafeira está tão desprovida que não haja lá vinho de Tokay? Nesse caso

trate de despedir o meu despenseiro. – Não, senhor, há lá muito na garrafeira, pelo menos umas sessenta garrafas. – Julga então que o conde de Haga há-de beber sessenta e uma garrafas de vinho ao

jantar? – Tenha paciência, meu senhor; quando o Sr. conde de Haga veio pela primeira vez a

França, apenas era príncipe real; então, jantou em casa do falecido rei, que tinha recebido doze garrafas de Tokay de Sua Majestade o imperador da Áustria. V. Exª. sabe que o Tokay de primeira qualidade é reservado para a adega dos imperadores, e que os próprios reis não bebem semelhante vinho, senão quando Sua Majestade o imperador se digna mandar-lhe algum.

– Bem sei. – Pois bem, dessas doze garrafas, de que o príncipe real provou, e que achou de óptima

qualidade, só duas existem hoje.

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– Oh! oh! – Uma delas está ainda na garrafeira de el-rei Luís XVI. – E a outra? – Ah! chegamos ao caso, senhor duque – disse o mordomo com sorriso triunfante,

porque sentia que depois da longa luta que acabava de sustentar, se aproximava o momento da vitória; – a outra, ah! A outra foi furtada.

– Por quem? – Por um amigo meu, que era despenseiro do falecido rei e me devia grandes obrigações. – Ah! ah! E ele deu-lha? – Decerto deu – disse o mordomo com orgulho. – E que fez dela? – Guardei-a precisamente na adega de meu amo, senhor. – De seu amo? E quem era o seu amo naquela época? – Era o Sr. cardeal príncipe Luís de Rohan. – Ah, santo Deus! em Estrasburgo? – Em Saverne. – E mandou buscar essa garrafa para o jantar que dou?! – bradou o velho marechal. – Mandei, sim, Sr. duque – respondeu o mordomo, no tom em que diria: ingrato! O duque de Richelieu tomou da mão ao velho servidor, bradando: – Peço-lhe perdão; o senhor é o rei dos mordomos! – E despede-me! – respondeu este com um movimento de cabeça e de ombros

intraduzível. – Pagarei pela garrafa cem escudos. – Com mais cem que custarão a V. Exª. as despesas da jornada, soma duzentos escudos.

Mas o Sr. marechal há-de confessar que ainda assim é de graça. – Confessarei tudo quanto quiser; e, de hoje em diante, dobro-lhe o ordenado. – Mas, Sr. marechal, V. Exª. nada tem de que me recompensar; não fiz mais que o meu

dever. – E quando chega o seu correio de cem escudos? – V. Exª. ajuizará se perdi tempo: em que dia encomendou o Sr. marechal o jantar? – Há-de haver três dias, creio eu. – Para um correio que vá a toda a brida são precisas vinte e quatro horas para ir e vinte e

quatro horas para voltar. – Sobejam portanto vinte e quatro horas, príncipe dos mordomos: o que fez dessas vinte

e quatro horas? – Ai, senhor duque! perdi-as. A idéia de mandar buscar o vinho só me ocorreu no dia

seguinte àquele em que V. Exª. me deu a lista dos convidados. Calculemos agora o tempo que levou a negociação e verá, que não pedindo senão até às cinco horas, só peço o tempo estritamente necessário.

– Como! pois a garrafa ainda não chegou? – Não senhor. – E se se desse o caso do seu colega de Saverne ser tão fiel ao Sr. príncipe de Rohan

como o senhor o é a mim? – E daí, Sr. marechal? – Se ele recusasse dar a garrafa, como o senhor decerto recusaria? – Eu, senhor? – Sim; estou persuadido que se tivesse na minha adega semelhante garrafa, o senhor não a

daria. – Peço humildemente perdão a V. Exª.. Se um colega meu tivesse que dar de jantar a um

rei e me viesse pedir a garrafa do melhor vinho da adega de V. Exª. eu dava-lha imediatamente. – Oh! oh ! – disse o marechal, fazendo uma visagem.

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– Devemo-nos ajudar uns aos outros, senhor duque. – Então estou mais sossegado – disse o marechal suspirando; – mas temos um perigo. – Qual é, senhor? – O de quebrar-se a garrafa. – Oh! senhor, não há exemplo de se ter quebrado nunca uma garrafa de vinho de tanto

valor. – É verdade, estou em erro, não falemos mais nisso. Agora, diga-me, a que horas lhe

parece que o seu correio chegará? – Às quatro em ponto. – Então, por que não jantamos às quatro horas? – perguntou o marechal, que era teimoso

como uma mula espanhola. – Porque o vinho precisa pelo menos uma hora para descansar, graças a um processo que

inventei, e sem o qual seriam precisos três dias. Vencido mais esta vez, o marechal fez uma cortesia ao seu mordomo. – E demais – continuou este – os convivas de V. Exª., sabendo que hão-de ter a honra de

jantar com o Sr. conde de Haga, só chegarão às quatro horas e meia. – Essa é nova! – Decerto, Sr. marechal; os convivas de V. Exª. são: o Sr. de Launay, a Srª. condessa

Dubarry, o Sr. de Lapeyrouse, o Sr. de Favras, o Sr. de Condorcet, o Sr. de Cagliostro e o Sr. de Taverney; não é exacto?

– Sim, e depois? – Depois, senhor, procedamos por ordem: o Sr. de Launay vem da Bastilha, de Paris, e

com o gelo que há por essas estradas, não gasta menos de três horas. – Sim, mas há-de partir, logo depois do jantar dos presos, isto é, ao meio-dia; isso sei eu

muito bem. – Perdão, mas depois que V. Exª. esteve na Bastilha, a hora do jantar mudou; agora na

Bastilha janta-se à uma hora. – Sr. mordomo, agradeço a notícia; todos os dias aprendemos alguma coisa. Prossiga. – A Srª. Dubarry vem de Luciennes, uma descida contínua, por cima da neve. – Oh! isso não a há-de impedir de ser exacta. Desde que apenas é favorita de um duque,

só faz de rainha com os barões. Mas o caso é este, Sr. mordomo; eu queria jantar cedo por causa do Sr. de Lapeyrouse, que deve partir hoje mesmo, e não há-de querer sair tarde.

– O Sr. de Lapeyrouse está com el-rei: conversa em geografia e cosmografia com Sua Majestade. El-rei não o deixará portanto sair do palácio tão cedo.

– É possível... – É certo, senhor duque, e o mesmo há-de acontecer ao Sr. de Favras, que está com o Sr.

conde de Provença, e que sem dúvida discorre sobre a peça do Sr. Caron de Beaumarchais. – Do casamento de Fígaro? – Sim senhor. – Estou-o achando muito letrado, Sr. mordomo! – Nas minhas horas vagas, leio alguma coisa, Sr. marechal. – Temos o Sr. de Condorcet, que na sua qualidade de geómetra há-de querer ser exacto. – Sim, mas começará a traçar o círculo, e quando acabar há-de ser meia hora mais tarde

do que ele queria. Quanto ao Sr. conde de Cagliostro, como é um fidalgo estrangeiro, e que há pouco tempo se acha em Paris, é provável que não conheça ainda perfeitamente o viver de Versalhes, e há-de fazer-se esperar.

– Ora bem – disse o marechal – exceptuando Taverney, nomeou todos os meus convivas, e por uma ordem de categoria digna de Homero ou do meu pobre Rafté.

O mordomo inclinou-se. – Não falei do Sr. de Taverney – disse ele – porque é um homem velho, que se há-de

conformar com os usos. Parece-me, Sr. marechal, que são estes os oito talheres do jantar, não é

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verdade? – Perfeitamente. E em que casa nos serve a mesa? – Na sala grande de jantar, Sr. marechal. – Teremos lá um frio de gelar. – Há três dias que se está aquecendo, e graduei a atmosfera a dezoito graus. – Muito bem! mas aí dá meia hora. O marechal olhou para o relógio. – São quatro horas e meia, Sr. mordomo. – Sim, Sr. marechal, e lá entra um cavalo no pátio; é a minha garrafa de vinho de Tokay

que chega. – Possa eu ser ainda servido vinte anos deste modo – disse o velho marechal voltando ao

seu espelho, enquanto o mordomo corria para fora da sala. – Vinte anos! – disse uma voz alegre, que interrompeu o duque no primeiro lance de

olhos dirigido ao espelho; – vinte anos! meu caro marechal, desejo muito que lá chegue; mas então hei-de eu ter sessenta, duque, e hei-de estar velhíssima.

– A condessa! – bradou o marechal; – a condessa é a primeira a chegar?! Meu Deus, como está sempre formosa e fresca!

– Fresca? diga antes gelada, duque. – Entre no meu gabinete. – Oh! sozinha, marechal? – Não, comigo – respondeu uma voz trémula. – O barão de Taverney! – bradou o marechal. – O diabo leve o desmancha-prazeres! –

disse ele ao ouvido da condessa. – Presunçoso! – murmurou a Srª. Dubarry soltando uma estrepitosa gargalhada. E entraram, todos três na casa contígua.

II

Lapeyrouse No mesmo instante o rodar de várias carruagens na calçada, recamada de neve, advertiu o

marechal da chegada dos seus convidados, e pouco depois, graças à exactidão do mordomo, nove convivas assentavam-se em torno da mesa oval da sala de jantar. Nove criados, silenciosos como sombras, ágeis sem precipitações, atentos sem impertinência, correndo sobre os tapetes, passavam entre os convivas, sem nunca lhes tocar, sem bater de encontro às cadeiras em que estavam assentados, as quais, enterradas numa montanha de peles, cobriam até aos joelhos as pernas dos convivas.

Era este o confortável dos convidados do marechal, acompanhado com o doce calor dos fogões, o vapor das iguarias, o aroma dos vinhos, e o sussurrar das primeiras palavras que soltavam depois da sopa.

Não se ouvia rumor algum de fora, porque as janelas tinham surdinas; do interior também se não ouvia ruído, salvo o que faziam os convivas; os pratos mudavam de lugar sem bulha, a prata passava dos bufetes para a mesa sem uma única vibração; o mordomo não se ouvia e dava as suas ordens com os olhos.

Por isso, ao cabo de dez minutos, sentiram-se perfeitamente sós naquela sala; e de facto, servidores tão calados, escravos tão impalpáveis, deviam necessariamente ser surdos.

Foi o Sr. de Richelieu o primeiro que rompeu tão solene silêncio, que dura geralmente o tempo preciso para comer a sopa, dizendo ao seu vizinho da direita:

– O Sr. conde não bebe? A pessoa a quem se dirigiam estas palavras era um homem de trinta e oito anos, cabelos

louros, pequena estatura, largo de ombros; os olhos eram algumas vezes vivos, e muitas vezes

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melancólicos; na fronte generosa e franca via-se-lhe desenhada a nobreza com a mais viva expressão.

– Só bebo água, marechal – respondeu ele. – Excepto em casa do rei Luís XV – disse o duque. – Tive a honra de lá jantar com o Sr. conde, e dessa vez dignou-se beber vinho. – Traz-me à memória uma excelente recordação, Sr. marechal; sim, em 1771, era vinho de

Tokay, de qualidade imperial. – Era irmão deste que o meu mordomo tem a honra de servir neste momento ao Sr.

conde – respondeu Richelieu inclinando-se profundamente. O conde de Haga levou o copo à altura dos olhos e examinou-o à luz das velas. O vinho cintilava no copo como um rubi líquido. – É verdade, Sr. marechal – disse ele; – oh! muito obrigado. E o conde pronunciou esta palavra obrigado num tom cheio de graça, e tão nobre, que os

assistentes, electrizados, levantaram-se com um único movimento, bradando: – Viva Sua Majestade! – É verdade – respondeu o conde de Haga; – viva sua Majestade o rei de França! Não é

da minha opinião, Sr. de Lapeyrouse? – Sr. conde – respondeu o oficial de marinha com uma expressão ao mesmo tempo

acariciadora e respeitosa de homem acostumado a falar com as cabeças coroadas – acabo de estar com el-rei, há-de haver uma hora, e el-rei mostrou-se tão cheio de bondade para comigo, que ninguém bradará mais alto do que eu: Viva Sua Majestade! Somente, como daqui a uma hora hei-de correr a posta para ir ao mar, onde me esperam duas charruas, que el-rei põe à minha disposição, quando eu estiver fora daqui, pedir-lhe-ei licença para levantar uivos a outro rei, a quem eu teria grande gosto de servir, se não tivesse tão bom amo.

E levantando o copo, o Sr. de Lapeyrouse saudou humildemente o conde de Haga. – Nessa saúde que quer fazer – disse a Srª. Dubarry, que estava à esquerda do marechal –

estamos todos prontos a acompanhá-lo, Sr. almirante. Mas é preciso que o nosso decano dê o exemplo, como diriam no parlamento.

– É a ti que isso se dirige, Taverney, ou é a mim? – disse o marechal rindo e olhando para o seu velho amigo.

– Não creio – disse um novo personagem colocado em frente do marechal de Richelieu. – O que é que não crê, Sr. de Cagliostro? – disse o conde de Haga cravando no

interlocutor o seu olhar penetrante. – Não creio, Sr. conde – disse Cagliostro inclinando-se – que o decano aqui seja o Sr. de

Richelieu. – Oh! agora sim – disse o marechal; – segundo parece, és tu, Taverney. – Ora adeus, tenho menos oito anos que tu. Nasci em 1704 – redargüiu o velho fidalgo. – Incivil! – disse o marechal – denunciou os meus oitenta e oito anos. – Realmente! Sr. duque, vossa excelência tem oitenta e oito anos? – perguntou o Sr. de

Condorcet. – Tal qual: oitenta e oito. O cálculo é bem fácil de fazer, e por isso mesmo indigno de um

matemático da sua força, marquês. Eu sou do século passado, do grande século, como lhe chamam, e 1696 não é má data!

– É impossível – disse de Launay. – Oh! se aqui estivesse seu pai, Sr. governador da Bastilha – redargüiu Richelieu – esse

não acharia impossível, porque me teve a mim por pensionista em 1714. – Aqui o decano – disse o Sr. de Favras – é o vinho que o Sr. conde de Haga vasa neste

momento no seu copo. – Um Tokay de cento e vinte anos; tem razão, Sr. de Favras – redargüiu o conde. – A este

Tokay pertence a honra de ser bebido à saúde de el-rei. – Esperem, meus senhores – disse Cagliostro pondo-se de pé, e erguendo a sua bela

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cabeça brilhante de vigor e de inteligência – eu reclamo. – Reclama contra o direito de antiguidade do Tokay? – atalharam em coro os convivas. – Certamente – disse o conde tranqüilamente – pois que fui eu mesmo quem o lacrei na garrafa. – O senhor? – Sim, eu, e foi isso no dia da vitória ganha por Montecuculli contra os Turcos, em 1664. Estrondosa gargalhada acolheu estas palavras, que Cagliostro pronunciara com

imperturbável gravidade. – Por essa conta, senhor – disse a Srª. Dubarry – deve ter uns cento e trinta anos, porque

devo dar-lhe pelo menos dez anos para ter podido meter este excelente vinho na bojuda garrafa. – Tinha mais de dez anos, minha senhora, quando fiz essa operação, visto que no dia

seguinte Sua Majestade o imperador da Áustria me confiou a honrosa incumbência de felicitar Montecuculli, que, pela vitória de Saint-Gothard, tinha vingado a jornada de Especk, na Esclavónia, jornada em que os infiéis bateram tão desastrosamente os imperiais, meus amigos e companheiros de armas em 1536.

– E – disse o conde de Haga com tanta frieza como Cagliostro – e o Sr. conde devia naquela época ter pelo menos dez anos, pois que assistiu pessoalmente a essa memorável batalha?

– Uma terrível derrota, Sr. conde – respondeu Cagliostro inclinando-se. – Menos cruel, contudo, que a derrota de Crécy – disse Condorcet sorrindo. – É verdade, senhor – disse Cagliostro sorrindo – a derrota de Crécy foi terrível porque

não foi só um exército, mas a França que foi batida. Devemos porém convir em que a derrota não foi uma vitória perfeitamente leal da parte dos Ingleses. O rei Eduardo tinha artilharia, circunstância inteiramente ignorada de Filipe de Valois, ou melhor direi, circunstância à qual Filipe de Valois não quis dar crédito, apesar de eu lhe dizer que com os meus próprios olhos tinha visto as quatro peças de artilharia, que Eduardo comprara aos Venezianos.

– Ah! ah! – disse a Srª. de Dubarry – ah! Conheceu Filipe de Valois? – Minha senhora, tive a honra de ser um dos cinco cavaleiros que lhe serviram de escolta

quando saiu do campo da batalha – respondeu Cagliostro. – Eu tinha vindo a França com o pobre velho rei da Boémia, que era cego, e que se fez matar no momento em que lhe disseram que estava tudo perdido.

– Oh! – disse Lapeyrouse, dirigindo-se a Cagliostro – o Sr. conde não pode imaginar o quanto deploro que em vez de ter assistido à batalha de Crécy, vossa excelência não tivesse estado na de Actium.

– E qual o motivo, Sr. almirante? – Porque, nesse caso, o Sr. conde podia dar-me esclarecimentos sobre vários episódios

náuticos dessa batalha, que, apesar da excelente narrativa de Plutarco, permanecem para mim muito confusos.

– Estimaria muito ser-lhe de alguma utilidade. – Assistiu também a ela? – Não, senhor, eu estava então no Egipto, encarregado pela rainha Cleópatra de

recompor a biblioteca de Alexandria, coisa que eu podia fazer melhor que ninguém, pois que tinha pessoalmente conhecido os autores da antiguidade.

– E viu a rainha Cleópatra, Sr. de Cagliostro? – perguntou a condessa Dubarry. – Como a estou vendo, minha senhora. – Era tão formosa como se diz? – A Srª. condessa sabe perfeitamente que a formosura é relativa. Rainha encantadora no

Egipto, Cleópatra não passaria, em Paris, de uma adorável grisette. – Não fale mal das grisettes, Sr. conde. – Deus me livre de tal! – Então Cleópatra era... – Baixa, delgada, viva, cheia de espírito, com os olhos lindos e rasgados, o nariz grego, os

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dentes de pérola, e a mão como a sua, minha senhora, uma verdadeira mão para o ceptro. Olhe! aqui está um brilhante que ela me deu e que tinha recebido de seu irmão Ptolomeu; trazia-o no dedo polegar.

– No dedo polegar?! – exclamou a Srª. Dubarry. – Sim, era moda egípcia, e eu, como vê, mal posso enfiá-lo no dedo mínimo. E tirando o anel do dedo, apresentou-o à Srª. Dubarry. Era um magnífico brilhante, de uma água maravilhosa, habilmente lapidado, e que

poderia valer trinta ou quarenta mil francos. O anel depois de fazer o giro da mesa, voltou às mãos de Cagliostro que sossegadamente

o enfiou no dedo. – Ah! bem o vejo – disse ele – falo a incrédulos; fatal incredulidade, que toda a minha

vida tenho sido obrigado a combater. Filipe de Valois não me quis dar crédito quando eu lhe disse que António seria batido. Os Troianos não me quiseram dar crédito quando a propósito do cavalo de pau, lhes disse: “Cassandra está inspirada, oiçam-na.”

– Oh! mas isto é maravilhoso – disse a Srª. Dubarry estorcendo-se com riso; – realmente nunca vi homem ao mesmo tempo tão sério e tão divertido como o senhor.

– Asseguro-lhe – disse Cagliostro inclinando-se – que Jónatas era muito mais divertido do que eu. Oh! que encantador companheiro! Chegava a tal ponto que, quando foi morto por Saul, estive prestes a endoidecer.

– Se assim continua a falar, conde – disse o duque de Richelieu – vai endoidecer este pobre Taverney, que tanto teme a morte, e olha para o senhor com olhos espantados, julgando-o imortal. Vejamos francamente, é-o ou não?

– O quê, imortal? – Sim. – Isso não sei, mas o que sei, é que posso afirmar uma coisa. – Qual é? – perguntou Taverney, o mais ávido de todos os auditores do conde. – É que vi todas as coisas e freqüentei todos os personagens que ainda há pouco citei. – Conheceu Montecuculli? – Como conheço o Sr. de Favras, e até mais intimamente, porque é esta a segunda ou

terceira vez que tenho a honra de lhe falar, ao passo que vivi perto de um ano no mesmo campo e na mesma tenda com o hábil estrategista de quem falámos.

– Conheceu Filipe de Valois! – Como tive a honra de lho dizer, Sr. Condorcet; mas apenas ele chegou a Paris, saí de

França, e voltei para a Boémia. – E Cleópatra? – Também a conheci, Srª. condessa. Já lhe disse que tinha olhos pretos como os seus, e o

colo quase tão formoso como o que todos lhe admiramos. – Mas, o conde não sabe como é o meu colo. – É semelhante ao de Cassandra, minha senhora, e para que nada falte à semelhança, ela

tinha assim como a senhora, ou a senhora tem assim como ela, um pequeno sinal preto na altura da sexta costela do lado esquerdo.

– Oh! conde, desta vez digo que é feiticeiro. – Não, condessa – disse o marechal de Richelieu rindo-se – fui eu quem lho disse. – E como o sabe o senhor? O marechal estendeu os lábios. – Oh! – disse ele – é segredo de família. – Está bom, está bom – disse a Srª. Dubarry – Realmente, marechal, é preciso pôr duas

camadas de carmim para vir a sua casa. Depois, voltando-se para Cagliostro: – Realmente, senhor – disse ela – tem o segredo de remoçar, porque com três ou quatro

mil anos, que deve ter, parece apenas ter quarenta.

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– Sim, minha senhora, tenho o segredo de remoçar. – Oh! remoce-me então a mim. – À Srª. condessa é inútil, porque o milagre está feito. Cada um tem a idade que aparenta,

e a Srª. condessa tem quando muito trinta anos. – Isso é lisonja. – Não, minha senhora, é um facto. – Explique-se. – É coisa fácil. Usou do meu processo para si mesma. – Como? – Tomou o meu elixir. – Ora essa! – Condessa, estará lembrada de uma casa na rua de Saint-Claude; lembra-se de ter ido

àquela casa para um negócio que dizia respeito ao Sr. de Sartines? Lembra-se de ter prestado um serviço a um amigo meu chamado José Bálsamo? Lembra-se que José Bálsamo lhe deu de presente um frasco de elixir, recomendando-lhe que tomasse três gotas dele todas as manhãs? Lembra-se de ter cumprido o receituário até ao ano passado, época em que se acabou o conteúdo do frasco? Se já se não lembrasse de nada disto, condessa, realmente não seria esquecimento, seria ingratidão.

– Oh! Sr. de Cagliostro, diz-me aí tais coisas... – Que só a senhora conhece, bem sei. Mas onde estaria o merecimento de ser feiticeiro,

se não se adivinhassem os segredos do próximo? – Mas José Bálsamo tinha, como o senhor, a receita desse admirável elixir? – Não, minha senhora; mas como era um dos meus melhores amigos, eu tinha-lhe dado

dois ou três frascos. – E tem ele ainda algum? – Oh! isso não sei eu. Há três anos já que o pobre Bálsamo desapareceu. A última vez que

o vi, foi na América, nas margens do Ohio; ia partir para uma expedição nas montanhas e depois disso ouvi dizer que tinha morrido.

– Vejamos, vejamos, conde! – bradou o marechal; – basta de gracejo! O segredo, conde, venha o segredo!

– Fala seriamente, senhor? – perguntou o conde de Haga. – Falo muito seriamente a Vossa Majestade. Perdão, eu queria dizer ao Sr. conde. E Cagliostro inclinou-se mui respeitosamente, mas de modo a indicar que o erro que

acabava de cometer era inteiramente voluntário. – Então – disse o marechal – a Srª. condessa não é velha bastante para ser remoçada? – Não, em consciência. – Bem, então vou apresentar-lhe outro sujeito. Aqui está o meu amigo Taverney. Que

pensa dele? Não lhe parece ser contemporâneo de Pôncio Pilatos? Mas talvez seja o contrário, e o ache velho de mais?

Cagliostro olhou para o barão. – Não acho – disse ele. – Ah! meu caro conde – bradou Richelieu – se me remoça o barão, proclamo-o discípulo

de Medeia. – Deseja-o? – perguntou Cagliostro dirigindo a palavra ao dono da casa e os olhos a todo

o auditório. Todos fizeram sinal que sim. – E o Sr. Taverney também o deseja? – Eu, mais do que ninguém, com os diabos! – disse o barão. – Pois bem! é fácil – disse Cagliostro. E meteu dois dedos na algibeira, de onde tirou uma garrafinha octaedra. Depois pegou num copo de cristal ainda limpo, e vazou-lhe dentro algumas gotas do licor

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que a garrafinha continha. Então, misturando essas gotas em meio copo de champanhe gelado, deu a bebida assim

preparada ao barão. Todos os olhos lhe tinham seguido os menores movimentos, todos estavam

boquiabertos. O barão pegou no copo, mas no momento de o levar à boca, hesitou. Vendo essa hesitação, começaram todos a rir tão estrepitosamente, que Cagliostro

impacientou-se. – Beba depressa, barão – disse ele – quando não vai deixar perder-se um licor do qual

cada gota vale cem luíses. – Diacho! – disse Richelieu querendo gracejar – é mais caro do que o vinho de Tokay. – Devo beber? – perguntou o barão quase trémulo. – Ou passar o copo a outra pessoa, senhor, a fim de que o elixir aproveite pelo menos a

alguém. – Passa para cá – disse o duque de Richelieu estendendo a mão. O barão cheirou o copo, e decidido, sem dúvida, pelo cheiro agradável e balsâmico, pela

bela cor de rosa que as gotas do elixir tinham comunicado ao vinho de champanhe, engoliu a bebida mágica.

No mesmo instante pareceu-lhe que um tremor lhe abalava o corpo e fazia refluir para a epiderme todo o sangue velho e lento que lhe dormia nas veias, desde os pés até ao coração. A pele enrugada distendeu-se-lhe, os olhos flacidamente cobertos pelo véu das pálpebras dilataram-se, sem que nisso tivesse parte a vontade, as pupilas brilharam-lhe, desapareceu o tremor das mãos, que adquiriram firmeza musculosa, a voz tornou-se firme, e os joelhos, elásticos como nos mais belos dias da mocidade, endireitaram-se ao mesmo tempo que o corpo, e tudo isto por tal forma como se o licor, descendo nele, tivesse regenerado todo aquele corpo de uma a outra extremidade.

Um grito de surpresa, de estupefacção, de admiração principalmente, soou na casa. Taverney, que comia com as gengivas, sentiu-se com uma fome devoradora. Pegou vigorosamente num talher, serviu-se de um prato que estava à sua esquerda, e mastigou até ossos de perdiz, dizendo que sentia os seus dentes com a firmeza dos vinte anos.

Comeu, riu, bebeu e gritou de prazer durante meia hora: e durante essa meia hora conservaram-se os outros convivas estupefactos olhando para ele; depois, a pouco e pouco, foi afrouxando como uma lâmpada a que falta o azeite. Começou a envelhecer novamente pelo rosto, onde as antigas rugas se mostraram outra vez. Os olhos amorteceram-se-lhe, perderam o brilho. Perdeu o paladar, e os joelhos começaram novamente a tremer.

– Oh! – disse ele suspirando. – Então? – perguntaram os convivas a um tempo. – Então, foi-se a mocidade! E soltou profundo suspiro, acompanhado por duas lágrimas, que lhe umedeceram as

pálpebras. Instintivamente e ao triste aspecto daquele ancião remoçado um instante, e que aquele

momento de mocidade mais envelhecera ainda, um suspiro, semelhante ao que Taverney soltara, saiu do peito de cada conviva.

– Isto é simples, meus senhores – disse Cagliostro; – não vazei no copo do senhor barão de Taverney senão trinta e cinco gotas do meu elixir da vida, e portanto só remoçou por trinta e cinco minutos.

– Oh! mais! mais! meu caro conde – murmurou o ancião com avidez. – Não, senhor – respondeu Cagliostro – porque uma segunda prova poderia matá-lo. De todos os convivas, fora a Srª. Dubarry, que conhecia as virtudes do elixir, quem

seguira com mais curiosidade as particularidades desta cena. À proporção que a mocidade e a vida enchiam as artérias do velho Taverney, os olhos da

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condessa seguiam-lhe curiosamente o progresso da mocidade e da vida. Ria, aplaudia e regenerava-se pela vista.

Quando o êxito da bebida alcançou o seu apogeu, a condessa esteve a ponto de se lançar sobre a mão de Cagliostro para lhe arrancar o frasco do elixir da vida.

Mas, como Taverney envelhecesse então mais depressa do que remoçara... – Ai – disse ela tristemente – bem o vejo, tudo é vaidade, tudo é quimera, o segredo

maravilhoso durou apenas trinta e cinco minutos. – Isto é – atalhou o conde de Haga – para alcançar dois anos de mocidade, seria preciso

beber um rio. Todos se riram com exclusão de Cagliostro, que se conservou tranqüilo e imperturbável. – E contudo, senhor – disse a condessa – não sucedeu assim comigo, pois que uma

garrafinha, que mal levaria quatro frascos desses, e que o seu amigo José Bálsamo me dera, bastou para suspender em mim a marcha do tempo durante dez anos.

– Exactamente, minha senhora, e é a senhora a única que acertou com a misteriosa realidade. O homem que tem envelhecido, e envelhecido demasiado, precisa dessa quantidade para que lhe produza um efeito imediato e poderoso. Mas uma mulher de trinta anos, como a senhora, ou um homem de quarenta anos como eu tinha quando comecei a tomar o elixir da vida, essa mulher ou esse homem, ainda cheios de vida e de mocidade, não precisam mais que beber dez gotas desta água em cada período de decadência, e com essas gotas, a pessoa que as beber fixará eternamente a mocidade e a vida no grau de encanto e de energia.

– A que chama o senhor os períodos de decadência? – perguntou o conde de Haga. – Os períodos naturais, Sr. conde. No estado de natureza as forças do homem crescem

até aos trinta e cinco anos. Chegado a esse ponto, fica estacionário até aos quarenta. Depois dos quarenta, começa a decrescer, mas quase imperceptivelmente até aos cinqüenta. Então, os períodos aproximam-se e precipitam-se até ao dia da morte. No estado de civilização, isto é, quando o corpo está gasto pelos excessos, pelos cuidados, pelas enfermidades, o desenvolvimento cessa aos trinta anos. Começa o decrescimento aos trinta e cinco. Pois bem! é então, tanto no homem da natureza como no homem civilizado, que se deve atacar a natureza no momento em que ela está estacionária, a fim de se opor ao seu movimento de decrescença, mesmo no momento em que ele se vai operar. Aquele que possuir, como eu, o segredo deste elixir, sabendo combinar o ataque de modo que surpreenda o decrescimento e o detenha, viverá como eu vivo, sempre moço ou pelo menos moço bastante para o que neste mundo lhe convém fazer.

– Oh! meu Deus! Sr. de Cagliostro – bradou a condessa – visto que era senhor de escolher a idade, por que não escolheu vinte anos em vez de quarenta?

– Porque, Srª. condessa – disse Cagliostro sorrindo – me convém ser sempre um homem de quarenta anos, são e completo, e não um incompleto rapaz de vinte anos.

– Oh! oh! – disse a condessa. – Decerto, minha senhora – prosseguiu Cagliostro; – aos vinte anos agrada-se às

mulheres de trinta; aos quarenta governam-se as mulheres de vinte e os homens de sessenta. – Eu cedo, senhor – disse a condessa; – e demais, como poderia eu discutir com uma

prova viva? – Então eu – disse tristemente Taverney – estou irremissivelmente condenado, comecei

muito tarde. – O Sr. de Richelieu foi mais hábil do que o senhor, – disse lhanamente Lapeyrouse com

a sua franqueza de homem do mar – e sempre ouvi dizer que o marechal tinha uma certa receita... – Isso é balela que as mulheres têm espalhado – disse o conde de Haga rindo-se. – Será razão para lhe não dar crédito, duque? – perguntou a Srª. Dubarry. O velho marechal corou, ele a quem isso tão raro sucedia. E acto contínuo: – Querem saber, meus senhores – disse – em que tem consistido a minha receita?

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– Decerto queremos. – Pois bem! tem sido em me poupar. – Oh! oh! – disseram todos. – É como lhes digo – bradou o marechal. – Eu contestaria a receita – respondeu a condessa – se não acabasse de ver o efeito da

outra do Sr. de Cagliostro. Mas acautele-se, Sr. feiticeiro, que ainda não acabaram as minhas perguntas.

– Pode perguntar o que quiser, minha senhora. – O senhor diz que a primeira vez que fez uso do seu elixir de vida tinha quarenta anos? – Sim, minha senhora. – E que desde essa época, isto é, desde o cerco de Tróia... – Algum tempo antes, minha senhora. – Pois sim, tem desde então conservado quarenta anos? – Como vê. – Mas nesse caso, senhor – disse Condorcet – prova mais do que o seu teorema

comporta... – O que lhe provo, Sr. marquês? – Prova não só a perpetuação da juventude, mas também a conservação da vida, porque

se desde a guerra de Tróia, tem quarenta anos, é sinal que nunca morreu. – E é verdade, Sr. marquês, nunca morri, humildemente o confesso. – Todavia, não é invulnerável como Aquiles, e ainda assim, quando digo invulnerável

como Aquiles não me explico bem, pois que Paris matou-o com uma seta no calcanhar. – Não – disse Cagliostro – não sou invulnerável, e com grande mágoa o digo. – Então pode ser morto, morrer de morte violenta? – Infelizmente, posso. – Como tem então feito para escapar a todos os desastres em três mil e quinhentos anos? – É um acaso, Sr. conde; queira seguir o meu raciocínio. – Eu sigo-o. – Nós seguimo-lo. – Sim! sim! – repetiram todos os convivas. E com sinais de interesse não equívocos, prestaram todos a maior atenção. A voz de Cagliostro rompeu o silêncio. – Qual é a primeira condição da vida? – disse ele mostrando, com um gesto elegante e

fácil, duas belas mãos brancas carregadas de anéis, entre os quais brilhava como a estrela polar o de Cleópatra – a saúde, não é verdade?

– Sim, decerto – responderam todos ao mesmo tempo. – E a condição da saúde é... – O regímen – disse o conde de Haga. – Tem razão, Sr. conde, é o regímen que dá a saúde. Pois bem! Por que motivo não

constituiriam essas gotas do meu elixir o melhor regímen possível? – Quem sabe? – O senhor mesmo. – Sim, certamente, mas... – E ninguém mais – disse a Srª. Dubarry. – Isso, minha senhora, é assunto que trataremos logo. Portanto, segui sempre o regímen

do meu elixir, e como nele reside a realização do eterno sonho dos homens de todos os tempos, como é o que os antigos procuravam com o nome de água de juventude, o que os modernos têm procurado com o nome de elixir de vida, tenho constantemente conservado a minha mocidade; portanto, a minha saúde; portanto, a minha vida, está claro.

– Mas entretanto tudo se gasta, conde; tanto o mais belo corpo como qualquer outro. – O de Páris como o de Vulcano – disse a condessa. – Conheceu certamente Páris, Sr. de

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Cagliostro? – Perfeitamente, minha senhora; era um belo rapaz, mas também não merece tanto como

dele diz Homero ou como dele pensam as mulheres. Em primeiro lugar era ruivo. – Ruivo! oh! que horror! – disse a condessa. – Infelizmente – disse Cagliostro – Helena não era da sua opinião, minha senhora. Mas

voltemos ao nosso elixir. – Sim, sim – disseram todos a um tempo. – Dizia o Sr. de Taverney, que tudo se gasta. Seja; mas deve também saber que tudo se

conserta, tudo se regenera ou se substitui, como quiserem. A célebre faca de santo Huberto, que tantas vezes tem mudado de folha e de cabo, é exemplo do que digo, porque, apesar dessa mudança, se tem conservado sempre a faca de santo Huberto. O vinho que na adega conservam os monges de Heidelberg é sempre o mesmo vinho, e contudo vaza-se todos os anos no gigantesco tonel uma nova colheita. Também o vinho dos monges de Heidelberg é sempre claro, vivo e saboroso, ao passo que o vinho lacrado por Opimus e por mim, em ânforas de barro, quando dali a cem anos tentei bebê-lo, estava tornado em massa, que talvez pudesse ser comida, mas que decerto se não podia beber. Pois bem, em lugar de seguir o exemplo de Opimus, adivinhei o remédio que mais tarde haviam de usar os monges de Heidelberg. Entretive o meu corpo vazando nele todos os anos novos princípios, encarregados de lhe regenerar os velhos elementos. Todas as manhãs um átomo novo e fresco vem substituir no meu sangue, na minha carne, nos meus ossos uma molécula usada, inerte. Reanimei os detritos, pelos quais o homem vulgar deixa insensivelmente invadir todo o seu ser; obriguei todos esses soldados, que Deus deu à natureza humana para a defenderem contra a destruição, soldados que o geral das criaturas reforma ou deixa paralisar na ociosidade; obriguei-os a um trabalho porfiado, que facilitava, que ordenava mesmo a introdução de um estimulante sempre novo. Deste assíduo estudo da vida, resulta que o meu pensamento, os meus gestos, os meus nervos, o meu coração, a minha alma, nunca suspenderam as suas funções, e como tudo neste mundo se encadeia, como aqueles que têm por hábito fazer uma coisa conseguem sempre fazê-la melhor do que quem não tem conhecimento dela, tenho-me achado naturalmente mais hábil do que qualquer outro para evitar os perigos de uma existência de três mil anos, e isso porque consegui ter de tudo uma tal experiência, que prevejo as desvantagens, que sinto os perigos de uma posição qualquer. Assim não me farão entrar numa casa que tem o risco de se desmoronar. Oh! não, tenho visto muitas casas para não distinguir, à primeira vista, as boas das más. Não conseguirão fazer-me ir à caça com um desastrado que não sabe manejar a espingarda. Desde Céfalo, que matou sua mulher Prócris, até ao regente que vazou o olho do Sr. príncipe, tenho visto muitos desastrados; não farão com que na guerra eu tome tal ou tal posto, que qualquer outro aceitará, porque num instante terei calculado todas as linhas rectas e todas as linhas parabólicas que de maneira mortal se dirigem àquele ponto; dir-me-ão que ninguém pode evitar uma bala perdida, e eu responderei que um homem que tem evitado um milhão de tiros, não tem desculpa de se deixar matar por uma bala perdida. Ah! não façam gesto de incredulidade, porque enfim aqui estou eu, que sou uma prova viva do que digo. Não lhes digo que sou imortal: digo-lhes só que sei o que ninguém sabe, isto é, evitar a morte quando vem por desastre. Assim, por exemplo, por coisa nenhuma do mundo me deixaria aqui ficar a sós um quarto de hora com o Sr. de Launay, que pensa neste momento que se me tivesse num dos seus quartos da Bastilha, experimentaria a minha imortalidade por meio da fome. Não me deixaria tão-pouco ficar com o Sr. de Condorcet, porque pensa neste momento em deitar no meu copo o conteúdo do seu anel, que é venenoso; e ambos sem má intenção, unicamente por curiosidade científica, simplesmente para saber se eu morreria.

Os dois personagens que o conde de Cagliostro acabava de nomear fizeram um movimento.

– Confesse francamente, Sr. de Launay, isto aqui não é tribunal de justiça, além disso não é costume castigar as intenções. Vamos, pensou no que acabo de dizer? E o Sr. de Condorcet tem realmente nesse anel um veneno que me queria fazer provar, em nome da sua amada

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senhora, a ciência? – Por minha vida! – disse o Sr. de Launay rindo e corando – confesso que tem razão, Sr.

conde; era uma loucura, loucura que me passou pelo espírito no próprio momento em que me acusava.

– E eu – disse Condorcet – não serei menos franco que o Sr. de Launay. Pensei efectivamente que se o senhor provasse do que tenho no meu anel, eu não daria um óbolo pela sua imortalidade.

Um grito de admiração acompanhou estas declarações. Esta confissão provava, não a imortalidade, mas a penetração do conde de Cagliostro. – Bem vê – disse Cagliostro serenamente – bem vê que adivinhei. Pois o mesmo faço

com tudo o que tem de acontecer. O hábito de viver revelou-me logo à primeira vista o passado e o porvir das pessoas que vejo. Neste ponto é tal a minha infalibilidade, que se estende aos animais, à matéria inerte. Se entro para uma carruagem, vejo logo pelo aspecto dos cavalos, se hão-de tomar o freio nos dentes, e pelo modo do cocheiro, se há-de tombar a carruagem; se embarco, adivinho se o capitão do navio é um ignorante ou um teimoso, que não há-de poder ou não há-de querer fazer as manobras necessárias. Então evito o cocheiro e o capitão, deixo os cavalos e o navio. Não nego o caso, mas modifico-o; em vez de lhe deixar cem probabilidades, como toda a gente faz, destruo-lhe noventa e nove e ponho-me em guarda contra a centésima. Eis aqui de que me serve ter vivido três mil anos.

– Então – disse Lapeyrouse rindo no meio do entusiasmo ou da estupefacção produzida pelas palavras de Cagliostro; – então, meu caro profeta, deveria vir comigo até às embarcações que devem levar-me na minha viagem à roda do mundo. Prestar-me-ia um serviço assinalado.

Cagliostro não deu resposta. – Sr. marechal – continuou o almirante rindo – visto o Sr. conde de Cagliostro não querer

deixar tão boa companhia, o que facilmente se compreende, dar-me-á licença para que eu o faça. Perdoe, Sr. conde de Haga, perdoe, minha senhora, mas estão dando sete horas, e prometi a el-rei que partiria às sete e um quarto. Agora, visto que o Sr. conde de Cagliostro não se resolve a vir ver as minhas duas charruas, que me diga pelo menos o que me há-de acontecer de Versalhes a Brest. De Brest ao pólo, tenho-o por quite, é negócio comigo. Mas, por minha vida! de Versalhes a Brest, deve-me uma consulta.

Cagliostro olhou outra vez para Lapeyrouse, mas com um olhar tão melancólico, com um modo tão doce e triste ao mesmo tempo, que causou estranha impressão na maior parte dos convivas. O navegador porém não reparou em tal. Despediu-se dos convivas, os lacaios vestiram-lhe um pesado sobretudo forrado de peles, e a condessa Dubarry meteu-lhe nas algibeiras alguns desses delicados cordiais, tão gratos aos viajantes, de que quase nunca se lembram, mas que lhes trazem à memória os amigos ausentes, durante as longas noites de viagem.

Lapeyrouse, sempre jovial, cortejou respeitosamente o conde de Haga e estendeu a mão ao velho marechal.

– Adeus, meu caro Lapeyrouse – disse-lhe o duque de Richelieu. – Não me despeço, Sr. duque, digo até à vista – respondeu Lapeyrouse. – Mas, realmente,

dir-se-ia que parto para a eternidade: é uma viagem à roda do mundo, nada mais; não passa de uma ausência de quatro ou cinco anos; por tão pouco não se diz adeus.

– Quatro ou cinco anos! – bradou o marechal – Ah! Sr. almirante, por que não diz quatro ou cinco séculos? Na minha idade os dias são anos. Adeus, senhor, adeus.

– Ora! pergunte ao adivinho – disse Lapeyrouse rindo – que lhe prometerá ainda vinte anos. Não é verdade, Sr. de Cagliostro? Ai! conde, por que não falou mais cedo do seu divino elixir? Quisera a todo o preço embarcar uma pipa dele no Astrolábio, que é como se chama o meu navio. Meus senhores... Minha senhora, deixe-me dar-lhe mais um beijo na formosa mão, certamente a mais formosa de quantas hei-de ver daqui até ao meu regresso. Até à volta!

E partiu. Cagliostro conservava sempre o mesmo silêncio de mau agouro.

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Ouviram-se os passos do marinheiro nos degraus sonoros da escada, a sua voz sempre alegre no pátio, e os seus últimos cumprimentos às pessoas reunidas para o verem.

Depois, os cavalos sacudiram as guizeiras, a portinhola da carruagem fechou-se, e as rodas soaram nas pedras da rua.

Lapeyrouse acabava de dar o primeiro passo dessa viagem misteriosa, donde nunca deveria voltar.

Escutavam todos. Quando nada mais se ouviu, todas as vistas, como que levadas por uma força superior, se

dirigiram para Cagliostro. Naquele momento havia nas feições daquele homem uma iluminação pítica, que fez

estremecer os convivas. O singular silêncio durou alguns instantes. O conde Haga foi o primeiro que o rompeu. – Por que não lhe respondeu o senhor? Esta pergunta era a expressão da ansiedade geral, Cagliostro estremeceu como se a

pergunta o tirasse da sua contemplação. – Porque – disse ele, dirigindo-se ao conde – teria de dizer-lhe uma mentira ou profetizar-

lhe uma desgraça. – Como? – Porque seria necessário dizer-lhe: Sr. de Lapeyrouse, o Sr. duque de Richelieu tem razão

em lhe dizer adeus e não até à vista. – Ora, Sr. Cagliostro – disse Richelieu empalidecendo – que diabo está aí dizendo do Sr.

de Lapeyrouse? – Oh! tranquilize-se, Sr. marechal – disse Cagliostro vivamente – não é para V. Exª. que a

profecia é triste. – Como! -disse a Srª. Dubarry – pois o pobre Lapeyrouse que acaba de me beijar a mão... – Não só não lha tornará a beijar, minha senhora, mas nem sequer tornará a ver aqueles

de quem se apartou há pouco – disse Cagliostro olhando atentamente para o seu copo cheio de água, e no qual, pelo modo por que estava colocado, se viam umas camadas luminosas de cor opaca, cortadas transversalmente pelas sombras dos objectos que o cercavam.

Um clamor de admiração saiu ao mesmo tempo de todas as bocas. A palestra chegara ao ponto em que cada minuto lhe fazia crescer o interesse; dir-se-ia, ao

ver o modo grave, solene e quase ansioso, quer da voz, quer do olhar, que se tratava das profecias infalíveis dos oragos da antiguidade.

No meio dessa preocupação, o Sr. de Favras, resumindo o geral sentimento, levantou-se, fez um sinal, e foi no bico dos pés escutar se nas antecâmaras algum criado os estava ouvindo.

Mas, já o dissemos, os serviçais do Sr. marechal de Richelieu eram dos melhores, e o Sr. de Favras só viu na antecâmara um criado velho, que, severo como uma sentinela num posto perdido, defendia a entrada da casa de jantar na hora solene da sobremesa.

Veio de novo assentar-se no seu lugar, fazendo sinal aos convidados de que estavam perfeitamente sós.

– Nesse caso – disse a Srª. Dubarry respondendo à afirmativa do Sr. de Favras como se houvesse sido feita em voz alta – nesse caso, conte-nos o que há-de suceder ao pobre Lapeyrouse.

Cagliostro abanou a cabeça. – Vejamos, vejamos, Sr. de Cagliostro! – disseram os homens. – Sim, rogamos-lhe que diga. – Pois bem, o Sr. de Lapeyrouse parte, como ele disse, com tenção de fazer uma viagem à

roda do mundo; quer continuar as viagens de Cook, do desgraçado Cook, que, como bem sabem, foi assassinado nas ilhas Sandwich.

– Sim, sim, sabemos isso – disseram todos ao mesmo tempo.

Page 20: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– Tudo pressagia um feliz êxito à empresa. O Sr. de Lapeyrouse é um bom oficial de marinha, e, além disso, el-rei delineou-lhe habilmente o itinerário.

– Sim – interrompeu o conde de Haga – o rei de França é um hábil geógrafo; não é verdade, Sr. de Condorcet?

– Mais hábil geógrafo do que é necessário para um rei – respondeu o marquês. – Os reis só deviam ter idéias gerais sobre todas as coisas, porque talvez desse modo se deixassem guiar pelos que as soubessem profundamente.

– É uma lição, Sr. marquês? – perguntou o conde de Haga sorrindo. Condorcet corou. – Oh! não Sr. conde – disse ele – é uma simples reflexão, uma generalidade filosófica. – Portanto parte – disse a Srª. Dubarry, empenhada em romper qualquer conversação

particular, que tendesse para desviar a conversação geral do caminho que tomara. – Parte, sim – respondeu Cagliostro; – mas apesar de o terem visto com tanta pressa, não

julguem que parta imediatamente; não, estou-o vendo perder muito tempo em Brest. – É pena – disse Condorcet – porque é agora a monção das partidas. Até é já alguma

coisa tarde; Fevereiro ou Março teria sido melhor. – Oh! não lhe leve a mal os dois ou três meses, Sr. de Condorcet; durante este tempo pelo

menos o almirante vive e tem esperança. – Deram-lhe ao menos boa companhia, suponho eu? – disse Richelieu. – Sim – disse Cagliostro – o que comanda o segundo navio é um oficial distinto. Estou-o

vendo, moço ainda, ousado, e valente por desgraça. – Como? por desgraça! – Sim, porque um ano depois procuro esse amigo, e já o não vejo – disse Cagliostro, que

manifestava inquietação consultando o copo. – Nenhum dos senhores é parente, nem das relações do Sr. de Langle?

– Nenhum. – Ninguém o conhece? – Ninguém. – Pois a morte há-de começar por ele! Já não o vejo. Um murmúrio de terror saiu do peito de todos os assistentes. – Mas ele... ele... Lapeyrouse? – disseram várias vozes ansiosas. – Navega, aporta, torna a embarcar. Um ano, dois anos de feliz navegação... Recebem-se

novas dele 2 E depois... – E depois? – Passam os anos. – Afinal? – Afinal, o oceano é grande, o céu carregado. De um e outro lado surgem terras

inexploradas, figuras hediondas como os monstros do arquipélago grego. Espreitam o navio, que corre através dos nevoeiros, por entre os recifes, levado pelas correntes... Finalmente a procela, a procela, mais hospitaleira do que a costa... e daí fogos sinistros. Oh! Lapeyrouse! Se tu me pudesses ouvir, dir-te-ía: Partes como Cristóvão Colombo para descobrir um novo mundo: Lapeyrouse, desconfia das ilhas desconhecidas.

Calou-se. Um calafrio glacial percorreu a assembléia, enquanto no espaço vibravam ainda as últimas

palavras de Cagliostro. – Mas por que motivo o não preveniu? – bradou o conde de Haga, sentindo como os

outros a influência daquele homem extraordinário, que a seu talante revolvia todos os corações. – Sim, sim – disse a Srª. Dubarry. – Por que se não corre atrás dele até o alcançar? A vida

de um homem como Lapeyrouse vale bem a viagem de um correio, caro marechal. 2 O oficial que trouxe as últimas notícias que se receberam de Lapeyrouse foi o Sr. de Lesseps, o único homem da expedição que tornou a Terra de França.

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O marechal percebeu e ergueu-se para chamar um criado. Cagliostro estendeu o braço. O marechal assentou-se novamente. – Infelizmente – prosseguiu Cagliostro – seria inútil qualquer aviso; o homem pode

prever o destino, mas não o pode mudar. O Sr. de Lapeyrouse rir-se-ia, se tivesse ouvido as minhas palavras, como riam os filhos de Príamo ao ouvir as profecias de Cassandra; e senão, veja, o senhor mesmo está rindo, Sr. conde de Haga, e o riso vai comunicar-se aos seus companheiros. Oh! nada de constrangimento, Sr. de Condorcet, nada de constrangimento, Sr. de Favras; nunca achei um ouvinte crédulo.

– Oh! nós cremos – bradaram a Srª. Dubarry e o velho duque de Richelieu. – Eu creio – murmurou Taverney. – Também eu – disse com toda a cortesia o conde de Haga. – Sim – redargüiu Cagliostro – os senhores crêem no que acabo de dizer, porque se trata

de Lapeyrouse, mas se se tratasse dos senhores, não haviam de crer. – Oh! – Estou certo disso. – Confesso que o que me faria crer – disse o conde de Haga – seria que o Sr. de

Cagliostro tivesse dito ao Sr. de Lapeyrouse: Cautela com as ilhas desconhecidas, que ele então se teria acautelado. Seria sempre uma probabilidade.

– Asseguro-lhe que não, Sr. conde, e ainda que ele me desse crédito, veja quanto essa revelação seria horrível, quando em presença do perigo, ao aspecto dessas ilhas desconhecidas que lhe devem ser fatais, o desgraçado, crédulo na minha profecia, sentisse aproximar-se dele a morte misteriosa que o ameaça, sem poder fugir-lhe. Não seria uma morte, seriam mil mortes, que então padeceria; porque é padecer mil mortes o caminhar nas trevas com o desespero ao lado. A esperança que eu lhe tirasse, note isto bem, seria a última consolação que o desgraçado conserva sob o cutelo, quando já o cutelo o fere, quando sente o corte do aço, quando lhe corre o sangue. Apaga-se a vida e o homem ainda espera.

– É verdade! – disseram em voz baixa alguns dos convivas. – Sim – continuou Condorcet – o véu que lhe encobre o final da vida é o único bem real

que Deus deu ao homem sobre a terra. – Pois bem! seja como for – disse o conde de Haga – se me acontecesse ouvir dizer por

um homem como o senhor: Acautele-se de tal homem ou de tal coisa, eu receberia como verdadeiro o aviso e agradeceria reconhecido ao conselheiro.

Cagliostro abanou brandamente a cabeça, acompanhando esse gesto com um triste sorriso.

– Realmente, Sr. de Cagliostro – prosseguiu o conde – advirta-me, e eu lho agradecerei. – Queria que eu lhe dissesse, o que não quis dizer ao Sr. de Lapeyrouse? – Queria, sim. Cagliostro fez um movimento como se fosse para falar; porém, depois de uma curta

pausa, disse: – Oh! não, Sr. conde, não. – Rogo-lhe. Cagliostro desviou o rosto. – Nunca! – murmurou ele. – Cuidado! – disse o conde sorrindo – que vai tornar-me incrédulo. – Mais vale a incredulidade do que a angústia. – Sr. de Cagliostro – disse gravemente o conde esquece uma coisa. – Qual? – perguntou respeitosamente o profeta. – Que, se há certos homens que sem inconveniente podem ignorar os seus destinos,

outros há que teriam necessidade de conhecer o futuro, pois que o seu destino não lhes importa só a eles, senão a milhões de homens.

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– Então – disse Cagliostro – ordene. Não, sem ordem expressa não falarei. – Que quer dizer? – Que Vossa Majestade ordene – disse Cagliostro em voz baixa – e eu obedecerei. – Ordeno que me revele o meu destino, Sr. de Cagliostro – disse o rei com majestade

cheia de cortesia. Ao mesmo tempo, como o conde de Haga se deixara tratar como rei e rompera o

incógnito até então mantido, dando uma ordem, o Sr. de Richelieu levantou-se, veio humildemente cortejar o príncipe, e disse-lhe:

– Agradeço a honra que o rei da Suécia fez à minha casa, meu senhor; digne-se Vossa Majestade tomar o lugar de honra. A partir deste momento, só pode pertencer a Vossa Majestade.

– Fiquemos, fiquemos como estamos, Sr. marechal, e não percamos uma palavra do que o Sr. conde de Cagliostro vai dizer-me.

– Aos reis não se diz a verdade, senhor. – Ora! não estou no meu reino. Tome o seu lugar, Sr. duque; fale, Sr. de Cagliostro, rogo-

lho. Cagliostro lançou os olhos para o copo; glóbulos semelhantes aos que atravessam o vinho

de Champanhe subiam do fundo à superfície; parecia que a água, atraída pelo seu olhar poderoso, se agitava sob a influência da sua vontade.

– Senhor, diga-me o que quer saber – disse Cagliostro; – estou pronto para responder. – Diga-me de que morte hei-de morrer? – De um tiro, senhor. A fronte de Gustavo iluminou-se. – Ah! numa batalha – disse ele – com a morte de um soldado. Obrigado, Sr. de

Cagliostro, mil vezes obrigado. Oh! eu prevejo batalhas, e Gustavo Adolfo e Carlos XII mostraram-me já como sabem morrer os reis da Suécia.

Cagliostro abaixou a cabeça sem responder. O conde de Haga franziu o sobrolho. – Oh! – disse ele – não é numa batalha que hei-de levar o tiro? – Não, senhor. – Numa sedição; sim, também é possível. – Não é numa sedição. – Mas então onde será? – Num baile, senhor. O rei tornou-se pensativo. Cagliostro, que se levantara, tornou a assentar-se e escondeu a cabeça entre as mãos. Todos empalideceram em volta do autor da profecia, e daquele que dela era objecto. O Sr. de Condorcet aproximou-se do copo de água, no qual o adivinho lera o sinistro

augúrio, pegou nele, elevou-o à altura dos olhos e examinou escrupulosamente os seus brilhantes lavores e o misterioso conteúdo.

Via-se aquele olhar inteligente, mas frio, escrutador, pedir ao duplo cristal, sólido e líquido, a solução de um problema, que a razão reduziu ao valor de uma especulação puramente física.

Efectivamente o sábio calculava a profundidade, as refracções e os jogos microscópicos da água. Perguntava a si mesmo, ele que a tudo queria uma causa, o motivo e o pretexto desse charlatanismo exercido sobre homens do valor daqueles que cercavam essa mesa, por outro a quem não se podiam negar conhecimentos extraordinários.

Sem dúvida que não achou a solução do seu problema, porque cessou de examinar o copo, colocou-o na mesa, e no meio da estupefacção resultante do prognóstico de Cagliostro, exclamou:

– Pois eu também pedirei ao nosso ilustre profeta que interrogue o seu espelho mágico. Infelizmente – acrescentou ele – não sou um fidalgo poderoso, não ordeno, e a minha vida

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obscura não pertence a milhões de homens. – Sr. marquês – disse o conde de Haga – o senhor ordena em nome da ciência, e a sua

vida importa, não a um povo, mas à humanidade. – Agradecido, Sr. conde, mas talvez que a sua opinião neste ponto não seja a do Sr. de

Cagliostro. Cagliostro ergueu a cabeça, como um animal aguilhoado. – Pelo contrário, marquês – disse ele com um princípio de irritabilidade nervosa, que nos

tempos antigos se teria atribuído à influência do deus que o atormentava. – Pelo contrário, é um senhor poderoso no reino da inteligência. Vamos, olhe de frente para mim. Também o senhor deseja seriamente que lhe faça uma profecia?

– Seriamente, Sr. conde – redargüiu Condorcet; – pela minha honra que falo muito seriamente.

– Pois bem! marquês – disse Cagliostro com voz surda e descaindo as pálpebras sobre o seu olhar fixo – há-de morrer do veneno que traz no anel que tem no dedo. Morrerá...

– Ora! e se eu o deitasse fora? – interrompeu Condorcet. – Pois deite. – Enfim, confesse que a coisa é fácil? – Pois sim, deite-o fora, vamos. – Oh: sim, marquês – bradou a Srª. Dubarry – por favor deite fora esse veneno; deite-o

fora, quando mais não seja, para fazer mentir este profeta aziago, que nos aflige a todos com as suas profecias. Porque, então, se o deitar fora, decerto não será envenenado por esse; e como é por esse mesmo que o Sr. de Cagliostro afirma que o há-de ser, então, bom ou mau grado seu, o Sr. de Cagliostro terá mentido.

– A Srª. condessa tem razão – disse o conde de Haga. – Bravo! Condessa – disse Richelieu; – vamos, marquês, deite fora o veneno; é na verdade

o que pode fazer de melhor, porque agora, como sei que traz na mão a morte de um homem, tremerei cada vez que tocarmos os nossos copos, e bebermos juntos. O anel pode abrir-se... e...

– E dois copos que se tocam estão muito perto um do outro – disse Taverney. – Deite fora, marquês, deite...

– É inútil – disse Cagliostro tranquilamente – o Sr. de Condorcet não o deitará. – Não – disse o marquês – não o deitarei fora, é verdade; e não quer isto dizer que queira

auxiliar o destino; mas é porque Cabanis foi quem me compôs este belíssimo veneno, que é uma substância solidificada pelo efeito do acaso, acaso que talvez não torne a achar; eis aí o motivo por que não o deitarei fora. Triunfe se quiser, Sr. de Cagliostro.

– O destino – disse este – sempre encontra agentes fiéis que auxiliem a execução dos seus decretos.

– Então, hei-de morrer envenenado – disse o marquês. – Pois bem! seja. Nem todos podem morrer envenenados. É uma morte admirável a que me acaba de profetizar; um pouco de veneno na ponta da língua, e acabou-se tudo. Isso já não se chama morrer; chama-se menos a vida, como em álgebra dizemos.

– Não é meu desejo que padeça, senhor – respondeu Cagliostro friamente. E fez um sinal que indicava não desejar passar dali, pelo menos com Condorcet. – Senhor – disse então o marquês de Favras estendendo-se sobre a mesa como para ir ao

encontro de Cagliostro – aí está um naufrágio, um tiro e um envenenamento, que me fazem crescer a água na boca. Não me fará a mercê de me profetizar também a mim alguma mortezinha do mesmo género?

– Oh! Sr. marquês – disse Cagliostro começando a animar-se com a ironia – não faz bem em invejar estes senhores, porque, por minha vida, terá coisa melhor.

– Melhor! – bradou o Sr. de Favras rindo; – cuidado, é obrigar-se a muito; melhor do que o mar, o fogo e o veneno, é difícil.

– Ainda resta a corda – disse graciosamente Cagliostro.

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– A corda... Oh! oh! que diz? – Digo que será enforcado – respondeu Cagliostro com uma espécie de raiva profética de

que já não era senhor. – Enforcado! – repetiu a assembléia; – com os diabos! – O senhor esquece que sou fidalgo – disse Favras um pouco frio; – e se porventura quer

falar de um suicídio, previno-o que conto respeitar-me bastante, até ao último momento, para não me servir da corda enquanto tiver uma espada.

– Não lhe falo de um suicídio, senhor. – Fala então de um suplício? – Sim. – O senhor é estrangeiro, e por isso lhe perdôo. – O quê? – A sua ignorância. Em França um fidalgo não se enforca, decapita-se. – É negócio que tratará com o carrasco, senhor – disse Cagliostro esmagando o seu

interlocutor com esta resposta brutal. Houve um momento de hesitação na assembléia. – Oh! oh! Sr. de Launay – disse a Srª. Dubarry – espero que não deixará de ter tanto

ânimo como estes senhores. – Também assim o espero, minha senhora – disse o governador inclinando-se. E voltando-se para Cagliostro: – Vamos, senhor – disse – Peço-lhe que me gratifique também com o meu horóscopo. – É fácil – disse Cagliostro; – um golpe de machado na cabeça e nada mais. Um grito de terror soou na sala. Os Srs. de Richelieu e de Taverney suplicaram a

Cagliostro que nada mais dissesse; mas a curiosidade feminina teve mais poder, que os rogos deles.

– Realmente, conde, ao ouvi-lo – disse a Srª. Dubarry – o universo inteiro acabaria de morte violenta. Estamos aqui oito, e destes oito já cinco estão condenados pelo senhor!

– Oh! bem sabe que resolvemos rir de tudo, minha senhora – disse o Sr. de Favras, esforçando-se efectivamente por sorrir.

– E decerto que havemos de rir – disse o conde de Haga – verdadeiras ou falsas que sejam as profecias.

– Oh! também hei-de rir – disse a Srª. Dubarry, – porque não quero pela minha cobardia desonrar a assembléia. Infelizmente, que sou apenas uma mulher, e nem sequer terei a honra de ser colocada na sua categoria para ter um desenlace sinistro. Uma mulher é coisa que morre na cama. Ah! a minha morte de mulher velha, triste e esquecida, há-de ser a pior de todas as mortes, não é verdade, Sr. de Cagliostro?

E dizendo estas palavras hesitava, e não só pelas palavras, senão também pelo modo, dava pretexto ao adivinho para que a sossegasse; Cagliostro porém não lhe falava.

A curiosidade teve mais poder que o desassossego, e venceu. – Vamos, Sr. de Cagliostro – disse a Srª. Dubarry – responda-me. – Como lhe hei-de responder, minha senhora, se nada me pergunta? A condessa hesitou. – Vamos – perguntou Cagliostro – interroga-me ou não? A condessa fez um esforço, e depois de ter cobrado ânimo no sorriso da assembléia,

bradou: – Pois bem! sim, corro-lhe o risco; vamos, diga como virá a acabar Joana de Vaubernier,

condessa Dubarry. – No cadafalso, minha senhora – respondeu o fúnebre profeta. – Isso é brincadeira! não é verdade, senhor? – balbuciou a condessa com olhar suplicante. Mas instara com Cagliostro e ele não via esse olhar. – E por que há-de então ser brincadeira ? – disse ele.

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– Porque para ir ao cadafalso é preciso ter cometido mortes, assassínios, algum crime, enfim, e segundo toda a probabilidade nunca cometerei crimes. É brincadeira, não é verdade?

– Sim, sim, é brincadeira – disse Cagliostro – assim como tudo mais quanto tenho profetizado.

A condessa soltou uma gargalhada, que algum hábil observador acharia demasiado estrídula para ser natural...

– Então, Sr. de Favras – disse ela – tratemos de encomendar os nossos coches de luto. – Oh! para a senhora é escusado – disse Cagliostro. – Por que? – Porque será levada ao cadafalso num carro. – Oh! que horror! – bradou a Srª. Dubarry. – Oh! que feio homem! Marechal, para outra

vez escolha convivas mais alegres, quando não ver-me-ei obrigada a não voltar a sua casa. – Desculpe-me, minha senhora – disse Cagliostro – mas a senhora assim o quis, bem

como todos os mais. – A mim como a todos os mais pelo menos, dar-nos-á tempo para escolhermos

confessor, não é verdade? – Seria trabalho inútil, condessa – disse Cagliostro. – Por que? – Porque a última pessoa que subirá ao cadafalso com um confessor há-de ser... – Há-de ser quem? – perguntaram todos. – O rei de França. E Cagliostro disse estas últimas palavras com uma voz surda e por tal forma lúgubre, que

passou sobre os convivas como um sopro de morte, e os gelou até ao coração. Seguiu-se um silêncio de alguns minutos. Durante esse silêncio, Cagliostro levou à boca o copo de água em que lera aquelas

lúgubres profecias; mas apenas o chegou aos lábios, repeliu-o com invencível repugnância, como houvera feito a um cálix de qualquer líquido amargo.

Enquanto fazia este movimento, os olhos de Cagliostro dirigiram-se para Taverney. – Oh! – bradou este, que julgou que ele ia falar – não me diga o que será de mim; eu não

lho pergunto. – Pois bem! em seu lugar pergunto-o eu – disse Richelieu. – Sossegue, Sr. marechal, de nós todos é o único que há-de morrer na cama. – Vamos ao café, meus senhores! – disse o velho marechal encantado com a profecia. –

Vamos ao café ! Levantaram-se todos. Mas antes de passar a outra sala, o conde de Haga, aproximando-se de Cagliostro, disse: – Senhor, não quero fugir ao destino, mas diga-me de que devo acautelar-me? – De um regalo de peles, senhor – respondeu Cagliostro. O conde de Haga afastou-se. – E eu? – perguntou Condorcet. – De uma fritada de ovos. – Bom, renuncio aos ovos. E foi ter com o conde. – E eu – disse Favras – o que devo temer? – Uma carta. – Bom, agradecido pelo aviso. – E eu? – perguntou o Sr. de Launay. – A tomada da Bastilha. – Oh! então estou sossegado. E afastou-se rindo. – E agora eu, senhor? – disse a condessa perturbada.

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– Formosa condessa, tome muito cuidado com a Praça de Luís XV! – Ah! – respondeu a condessa – já uma vez me desencaminhei por lá; muito padeci.

Nesse dia tinha eu perdido a cabeça. – Pois bem! desta vez, perdê-la-á outra vez, mas não há-de tornar a achá-la. A Srª. Dubarry soltou um grito e fugiu para a sala, para se reunir aos outros convivas. Cagliostro ia seguir os seus companheiros. – Espere – disse Richelieu – só restamos eu e Taverney, a quem ainda não vaticinou coisa

alguma, meu caro feiticeiro. – O Sr. de Taverney rogou-me que nada dissesse, e o Sr. marechal nada me perguntou. – Oh! e ainda lhe rogo que não diga nada – bradou Taverney de mãos postas. – Mas, vejamos, para nos provar o poder do seu génio, não nos poderia dizer uma coisa,

que só nós ambos saibamos? – Qual é? – perguntou Cagliostro rindo. – É o que veio este bom Taverney fazer a Versalhes em vez de viver sossegadamente na

sua bela propriedade de Casa-Vermelha, que el-rei lhe desempenhou, há-de haver três anos? – A coisa é simples, Sr. marechal – respondeu Cagliostro. – Há dez anos, o Sr. de

Taverney quis dar sua filha Andréia ao rei Luís XV, e não o conseguiu. – Oh! oh! – resmungou Taverney. – Hoje, o Sr. barão quer dar seu filho Filipe de Taverney à rainha Maria Antonieta.

Pergunte-lhe se minto. – Por minha vida – disse Taverney todo trémulo – os diabos me levem se este homem

não é feiticeiro. – Oh! oh! – disse o marechal – não fales incivilmente do diabo, meu velho camarada. – Terrível! terrível! – murmurou Taverney. E voltou-se para implorar pela última vez a discrição de Cagliostro; mas este

desaparecera. – Vamos, Taverney, vamos à sala – disse o marechal; – olha que tomam o café sem nós,

ou tomá-lo-emos frio, o que será pior. E ambos correram para a sala. Mas a sala estava deserta; nem um único dos convivas tivera ânimo para tornar a encarar

de frente o autor das terríveis profecias. As velas ardiam nos candelabros; o café fumegava na cafeteira, e o fogo crepitava na

chaminé. Tudo isso inutilmente. – Por vida minha! meu velho camarada, parece que vamos tomar o café a sós... Ah! onde

diabo te escondeste?... E Richelieu olhou para todos os lados em volta de si, mas o ancião desaparecera assim

como os demais. – Não importa – disse o marechal motejando, como o teria feito Voltaire, e esfregando

uma contra a outra as suas mãos secas e brancas carregadas de anéis – Sou o único dos que hoje nos reunimos que hei-de morrer na cama. Ah! ah! na cama! Conde de Cagliostro, eu não sou nenhum incrédulo. Na minha cama, não é verdade, hei-de morrer na minha cama, e daqui a muito tempo ainda? Olá! tragam-me o meu elixir.

O criado do quarto entrou com um frasco na mão, e o marechal entrou com ele no quarto da cama.

FIM DO PRÓLOGO

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O COLAR DA RAINHA I

Duas mulheres incógnitas O inverno de 1784, esse monstro que devorou uma sexta parte da França, conquanto se

ouvisse bramir às portas, não o puderam sentir em casa do Sr. duque de Richelieu, fechados como estavam, no dia do jantar, nessa casa tão agasalhada e perfumada.

Uma pouca de geada nos vidros é o luxo da natureza que se junta ao luxo dos homens. O inverno tem os seus diamantes, os seus pós e os seus bordados de prata para o rico, enterrado nas suas peles ou calafetado na sua carruagem, ou embalado nos algodões e veludo de um quarto bem aquecido. A geada é uma pompa e a intempérie uma mudança de vista, que o rico vê executar, através dos vidros das janelas do seu palácio, por esse grande e eterno maquinista chamado Deus.

Efectivamente, quem tem calor pode admirar as árvores negras e achar encantos nas sombrias perspectivas das planícies embalsamadas pelo inverno.

Aquele que sente subir-lhe ao cérebro os suaves perfumes do jantar que o espera, pode aspirar de vez em quando pela fenda de uma janela entreaberta o áspero perfume da brisa, e o glacial vapor da neve que lhe regenera as idéias.

Aquele, enfim, que, depois de um dia isento de padecer, quando milhões dos seus concidadãos têm padecido, se estende sob um edredão, dentro de lençóis bem finos, numa cama bem quente, semelhante ao egoísta de que fala Lucrécio e que Voltaire glorifica, pode achar que tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis.

Mas aquele que tem frio não vê todos esses esplendores da natureza, tão rica com o seu manto branco como com o seu manto verde.

Aquele que tem fome procura a terra e foge do céu; o céu sem sol não tem, por conseqüência, sorrisos para o desgraçado.

Ora, na época a que chegámos, isto é, pelo meado do mês de Abril, trezentos mil desgraçados morrendo de frio e fome gemiam em Paris, onde, sob pretexto de que nenhuma cidade contém mais pessoas abastadas, nada estava prevenido para evitar que os pobres perecessem pelo frio e pela miséria.

Havia quatro meses que um rigoroso inverno impelia os desgraçados das aldeias para as cidades, como geralmente o inverno impele os lobos dos bosques para as aldeias.

Não havia já pão, nem lenha. Não havia pão para aqueles que suportavam o frio, não havia lenha para cozer o pão. Todo o provimento de víveres que havia em Paris tinha sido devorado num mês; o

preboste dos mercadores, sem previdência nem capacidade, não sabia mandar vir para Paris, confiadas ao seu cuidado, duzentas mil cargas de lenha disponíveis num raio de dez léguas em torno da capital.

Dava por desculpas: Quando gelava, que o gelo impedia os cavalos de andar; quando degelava, a insuficiência

dos carros e dos cavalos. Luís XVI, sempre bom, humano sempre, e sempre o primeiro a conhecer as necessidades físicas do povo, cujas necessidades sociais lhe escapavam facilmente, Luís XVI começou por destinar uma soma de duzentas mil libras ao aluguel de carros e de cavalos, depois mandou embargar os que eram necessários.

Entretanto o consumo continuava a fazer desaparecer o que vinha de fora. Era preciso diminuir os compradores. Foi primeiramente proibido a qualquer, levar de uma só vez mais de uma carga de lenha da estância geral; depois foi isso reduzido, e não podiam levar mais de meia carga. Começou então a ver-se ajuntamentos à porta das estâncias, como pouco tempo depois se deviam ver à porta dos padeiros.

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El-rei gastou todo o dinheiro do seu bolsinho em esmolas. Contraiu um empréstimo de três milhões sobre as receitas das portas da cidade, e aplicou esses três milhões ao alívio dos desgraçados, declarando que todas as urgências deviam ceder e calar na presença da urgência do frio e da fome.

A rainha, da sua parte, deu quinhentos luíses das suas economias. Os conventos foram convertidos em salas de asilo, os hospitais, os monumentos públicos e os pátios das grandes casas abriram-se à ordem dos seus senhores, seguindo o exemplo dos palácios reais, para dar entrada aos pobres que vinham agrupar-se em torno de uma grande fogueira.

Esperavam desta forma que diminuísse o rigor da estação. Mas o céu era inflexível! Todas as noites se desdobrava no firmamento um véu de cobre

vermelho; as estrelas brilhavam tristemente como se fossem fachos da morte, e o gelo nocturno condensava novamente num lago de cristal, a pálida neve que o sol do meio-dia tinha um momento fundido.

Durante o dia, milhares de trabalhadores com picaretas e pás tiravam a neve e o gelo de diante das casas, de modo que uma dupla parede, grossa e úmida, obstruía metade das ruas, que pela maior parte eram já de si muito estreitas. Pesados carros com grossas rodas, cavalos caindo a cada passo, esmagavam contra essas paredes de gelo as pessoas que transitavam e que se viam expostas ao tríplice perigo das quedas, dos encontros e dos desmoronamentos.

Em pouco tempo os montes de neve e de gelo foram tais, que escondiam as portas das lojas, as ruas foram obstruídas, e foi preciso renunciar a tirar o gelo, porque já não havia forças nem meios para isso.

Paris deu-se por vencido, e deixou o inverno caminhar sem impedimentos. Dezembro, Janeiro, Fevereiro e Março assim passaram; algumas vezes um degelo de dois ou três dias transformava Paris num oceano, porque a cidade não tinha escoantes para tanta água.

Certas ruas, nesses momentos, só a nado se podiam atravessar. Chegaram a afogar-se nelas alguns cavalos. As carruagens e os carros não podiam sair, porque seriam transformados em botes.

Paris, fiel ao seu carácter, fez cantigas à morte pelo degelo, como fizera cantigas à morte pela fome. O povo ia em procissão aos mercados para ver as regateiras venderem as suas mercadorias, e correrem para os barcos do peixe com enormes botas de couro, calças metidas nas botas e saias arregaçadas até à cintura, tudo isto rindo, gesticulando e salpicando-se umas às outras no pântano que habitavam. Como, porém, os degelos fossem efémeros, a neve caísse cada vez mais forte e mais viva e os lagos da véspera se tornassem no outro dia em cristal resistente, os trenós substituíram as carruagens e corriam impelidos pelos patinadores ou levados por cavalos ferrados expressamente, nas calçadas das ruas, mudadas em brilhantes espelhos. O Sena, gelado em alguns pés de profundidade, tornara-se o ponto de reunião dos ociosos, que ali se exercitavam em corridas, quedas, patinagens, jogos de toda a qualidade, e que, aquecidos por aquela ginástica, assim que o cansaço os obrigava a ir descansar, corriam à fogueira mais próxima para não deixarem o suor gelar-se-lhes nos membros.

Previa-se o momento em que, interrompidas as comunicações pela água, tornadas impossíveis as comunicações por terra, os víveres não pudessem chegar a Paris, levando aquele corpo gigantesco a sucumbir por falta de alimento, como os monstruosos cetáceos que, despovoados os seus cantões, ficam fechados pelos gelos do pólo, e morrem de inanição por não terem podido escapar-se pelas fendas, como os peixes mais pequenos, para alcançarem uma zona mais temperada e águas mais fecundas.

El-rei, naquela extremidade, reuniu o conselho. Foi decidido que seriam desterrados de Paris, isto é, que se convidariam a voltar para as suas terras e províncias todos os bispos, abades e frades que se achavam fora das suas residências naturais; os governadores e os intendentes de província, que tinham estabelecido em Paris a sede dos seus governos; e os magistrados, que preferiam o teatro e a sociedade, o regalo e a ostentação de Paris à cadeira ornada de flores-de-lis que tinham nos seus tribunais de província.

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Em verdade aquela gente consumia muita lenha nos seus opulentos palácios, muitos víveres nas suas vastas cozinhas.

Residiam também em Paris alguns proprietários de província que haviam de ser convidados a fechar-se nas suas quintas ou castelos. O Sr. Lenoir, chefe da polícia, fez contudo observar a el-rei que aquela gente não era composta de criminosos e que não podiam ser assim obrigados a sair de Paris, de um dia para o outro; que por conseqüência, empregariam em se retirar uma lentidão tal, resultante da má vontade e da dificuldade dos caminhos, que chegaria o degelo antes que a medida que se queria tomar produzisse vantagem, ao passo que, pelo contrário, produziria todos os inconvenientes que eram de esperar.

Entretanto, a piedade do rei, que esgotara os cofres, a misericórdia da rainha, que esgotara as suas economias, tinham excitado a engenhosa gratidão do povo, que consagrou por monumentos, efémeros como o mal e como o bem, a memória das caridades que Luís XVI e a rainha tinham espalhado pelos indigentes. Como outrora os soldados erigiam troféus ao general vencedor com as armas do inimigo de que o general os libertava, os parisienses, no mesmo campo de batalha em que lutavam contra o inverno, erigiram obeliscos de neve dedicados ao rei e à rainha. Cada qual concorreu com o que pôde: o trabalhador com os braços, o artista com o talento, e os obeliscos elevavam-se elegantes, ousados e sólidos, nos cantos das ruas principais, e o pobre homem de letras, a quem a caridade do soberano tinha ido procurar na sua mansarda, trouxe a oferta de uma inscrição redigida mais pelo coração do que pelo espírito.

No fim de Março voltou o degelo, mas desigual, incompleto, com interrupções, que prolongavam a miséria, a dor e a fome na população parisiense, e conservavam de pé, firmes e sólidos, os monumentos de gelo.

Nunca a miséria fora tão grande como neste último período; e que as intermitências de um sol suave mais ásperas faziam parecer as noites enevoadas e ventosas; as grandes camadas de gelo tinham-se derretido e haviam corrido para o Sena, fazendo trasbordar o rio por toda a parte. Nos primeiros dias de Abril manifestou-se porém um desses aumentos de frio de que já falámos; os obeliscos, ao longo dos quais correra já aquele suor que lhes pressagiava a morte, meio derretidos, tornaram-se novamente sólidos, ficando informes e diminuídos no volume; uma bela camada de gelo cobriu os passeios e os cais, e viram-se os trenós aparecer novamente com os seus cavalos fogosos. Nos cais e passeios era aquilo bonito; mas nas ruas, as carruagens e os cabriolés rápidos eram o terror dos que caminhavam a pé, que por não ouvirem a bulha das rodas e impedidos pelas paredes e montes de gelo, muitas vezes não tinham onde refugiar-se e, quase sempre, caíam e ficavam esmagados debaixo das rodas quando queriam fugir.

Em poucos dias, Paris cobriu-se de feridos e moribundos. Aqui, uma perna quebrada por uma queda no gelo; ali, um peito esmagado pelas varas de uma carruagem que, rapidamente levada, não pudera estacar no gelo. Começou então a polícia a ocupar-se de livrar das rodas os que escapavam à fome, ao frio e às inundações. Multavam-se os ricos que esmagavam os pobres. Naquele tempo, em que imperavam as aristocracias, havia aristocracia até no modo de conduzir um cavalo; os príncipes levavam-nos a toda a brida, sem soltarem um grito de aviso; um duque e par, um fidalgo ou uma actriz, levavam os cavalos a trote largo; um presidente ou um banqueiro, a trote; o elegante guiava propriamente o seu cabriolé como se andasse à caça, ao passo que o jóquei, de pé na traseira, gritava: “Olá!” quando o amo deitava por terra ou pisava algum desgraçado.

E depois, como diz Mercier, quem pudesse que se levantasse; mas afinal, uma vez que o parisiense visse belos trenós em forma de cisnes correrem pelos passeios, contanto que admirasse, envoltas nas suas capas de marta zibelina ou de arminhos, as formosas damas da corte, levadas como meteoros sobre os luzentes sulcos do gelo; contanto que os guizos dourados, os frisos de púrpura e os penachos dos cavalos divertissem as crianças paradas na passagem de todas essas bonitas coisas, o burguês de Paris esquecia a incúria da gente da polícia e as brutalidades dos cocheiros, e o pobre esquecia por um instante a sua miséria, habituado como ainda naquele tempo estava a ser protegido pelas pessoas ricas ou pelas que afectavam sê-lo.

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Ora bem, foi nestas circunstâncias que, oito dias depois do jantar dado em Versalhes pelo Sr. de Richelieu, se viu num dia de belo sol, mas muito frio, entrarem em Paris quatro trenós elegantes, deslizando sobre o gelo que cobria o Cours-la-Reine e a extremidade dos bulevares, do lado dos Campos Elíseos. Fora de Paris pode o gelo por muito tempo conservar a sua virginal alvura, porque são raros os caminhantes; mas em Paris cem mil passos em cada hora depressa defloram, enxovalhando-o, o esplêndido manto do inverno.

Os trenós, que a seco tinham caminhado pela estrada, pararam nos bulevares, isto é, quando a lama sucedeu ao gelo. O sol do dia amolecera a atmosfera, e o degelo momentâneo começava; e dizemos momentâneo, porque a pureza do ar prometia para a noite a geada glacial, que em Abril queima as primeiras flores da Primavera.

No trenó que ia na frente estavam dois homens vestidos de sobrecasaca cor de castanha, de duplo cabeção; a única diferença que entre os dois fatos se notava, é que um tinha botões e cordões de ouro, e outro cordões e botões de seda da mesma cor.

O trenó daqueles dois homens era puxado por um cavalo preto, de cujas ventas saía espesso fumo, e seguia-se-lhe outro trenó, para o qual olhavam de vez em quando.

No segundo trenó iam duas mulheres tão embrulhadas em peles, que ninguém lhes poderia ver o rosto. Pode mesmo acrescentar-se, que seria difícil dizer a que sexo pertenciam as duas personagens, se não fossem denunciadas pela desmarcada altura dos penteados, em cujo cimo traziam um pequeno chapéu de plumas.

Uma nuvem de pós brancos se escapava do colossal edifício daquele penteado cheio de tranças, de fitas e de jóias, semelhantes à nuvem de geada e orvalho que cai dos ramos das árvores, quando a brisa do inverno os sacode com violência.

Estas duas senhoras, assentadas uma ao lado da outra e o mais chegadas possível, iam conversando, sem fazer caso dos numerosos transeuntes que as viam passar.

Esquecera-nos dizer que, depois de um instante de hesitação às portas da cidade, tinham resolvido prosseguir no seu caminho.

Uma delas, a mais alta e mais majestosa, tapava a boca com um lenço bordado de cambraia fina, e erguia a cabeça firme e direita, apesar da brisa que o trenó cortava na sua rápida carreira. Acabavam de dar cinco horas no relógio da torre de Saint-Croix-d’Antin, começava a anoitecer, e com a noite viera o frio.

Naquele momento os trenós tinham chegado pouco mais ou menos à porta de Saint-Denis.

A senhora do trenó, a que trazia o lenço na boca, fez um sinal aos dois homens que iam adiante, os quais distanciaram o trenó do das duas senhoras, apressando o passo do cavalo preto. Depois a mesma senhora voltou-se para trás, para dois outros trenós conduzidos cada um por um cocheiro sem libré, os quais, obedecendo ao sinal que acabavam de compreender, desapareceram pela rua de Saint-Denis.

Da sua parte, como já dissemos, o trenó dos dois homens distanciou-se daquele em que vinham as duas senhoras, e acabou por desaparecer também por entre as primeiras névoas da noite, que se condensavam em torno do colossal edifício da Bastilha.

Chegado ao bulevar de Menilmontant, o trenó das senhoras estacou; daquele lado os passeantes não eram muitos, porque a noite dispersara-os, além disso naquele bairro longínquo, poucas pessoas se aventuravam sem levar lanterna e escolta, desde que o inverno aguçara os dentes de três ou quatro mil mendigos suspeitos que se tinham ido gradualmente transformando em ladrões.

A senhora que já designámos aos nossos leitores como sendo a que dava ordens, tocou com a ponta do dedo no ombro do cocheiro que conduzia o trenó.

Este parou. – Weber – disse ela – quanto tempo lhe é preciso para levar o cabriolé aonde sabe? – Quer o cabriolé? – perguntou o cocheiro com um acento alemão. – Quero, sim; voltarei pelas ruas para ver as fogueiras. Ora, nas ruas há ainda mais lama

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do que nos bulevares, e seria difícil ir no trenó. Além disso, esfriei um pouco; a senhora também, não é verdade? – disse ela dirigindo-se à companheira.

– Um poucochinho – respondeu esta. – Então, ouviu, Weber? no lugar que sabe, com o cabriolé. – Bem, minha senhora. – Quanto tempo lhe é preciso? – Meia hora. – Bem. Veja que horas são, menina. A mais nova das duas senhoras procurou o relógio debaixo da capa, e viu as horas com

bastante dificuldade, porque, como já dissemos, a noite aproximava-se. – Seis horas menos um quarto – disse ela. – Então, às sete menos um quarto, Weber. E dizendo estas palavras, saiu do trenó, deu a mão à amiga, e começou a afastar-se,

enquanto o cocheiro, com gestos de respeitoso desespero, murmurava, alto bastante para ser ouvido pela ama:

– Que imprudência! Ah! Mein Gott! que imprudência! As duas mulheres riram, embuçaram-se nas capas, cujas golas lhes tapavam as orelhas, e

atravessaram o bulevar, divertindo-se em fazer estalar o gelo sob os seus pezinhos, calçados de finos sapatos forrados de peles.

– Como a Andréia vê bem – disse a que parecia ser mais velha, mas que não podia ter mais de trinta ou trinta e dois anos – veja se pode ler naquela esquina o nome da rua.

– Rua do Pont-au-Choux, minha senhora – disse a outra rindo. – Que rua é? Rua do Pont-au-Choux! Ai, meu Deus, que estamos perdidas! Tinham-me

dito a segunda do lado direito. Mas repare, Andréia, como cheira aqui bem a pão quente? – Não admira – respondeu a companheira – porque estamos à porta de um padeiro. – Pois então perguntemos-lhe onde é a rua de Saint-Claude. E a que acabava de falar fez um movimento para o lado da porta. – Oh! não entre, minha senhora – disse a outra com vivacidade – deixe-me a mim. – A rua de Saint-Claude, minhas lindas meninas – disse uma voz muito alegre – querem

saber onde é a rua de Saint-Claude? As duas senhoras voltaram-se ao mesmo tempo e com um único movimento na direcção

da voz, e viram de pé encostado à porta da padaria, um rapaz de véstia, mas com as pernas e o peito nus, apesar do frio e do gelo.

– Oh, um homem nu! – bradou a mais nova das duas mulheres. – Estaremos nós na Oceania?

Recuou um passo e foi esconder-se por detrás da amiga. – Procura a rua de Saint-Claude? – prosseguiu o moço de padeiro, que nada

compreendera do movimento que a mais nova das duas mulheres fizera, e que, acostumado ao seu vestuário extravagante e ligeiro, estava bem longe de lhe atribuir a força centrífuga, cujo resultado acabamos de ver.

– Sim, senhor, a rua de Saint-Claude – respondeu a mais velha das duas mulheres comprimindo uma forte vontade de rir.

– Oh! não é difícil de achar, e de mais eu vou acompanhá-las até lá – respondeu o rapaz enfarinhado, que, unindo as obras às palavras, começou a desdobrar o compasso das imensas pernas magras, no fim das quais se viam dois enormes sapatos, que muito se pareciam com dois barcos.

– Não! não! – disse a mais velha das duas mulheres, que certamente preferia não ser encontrada com semelhante guia; – ensine-nos a rua sem se incomodar, e faremos o possível por seguir as suas indicações.

– É a primeira rua do lado direito, minha senhora – respondeu o guia retirando-se discretamente.

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– Agradecidas – disseram ambas. E correram na direcção indicada, levando os regalos à boca para abafar o riso.

II

Um interior Cremos que os nossos leitores se não esqueceram ainda da rua de Saint-Claude, que

confina a leste com o bulevar e a oeste com a rua de Saint-Louis, porque viram mais de um dos personagens, que representaram ou que têm de representar um papel nesta história, percorrê-la noutro tempo, isto é, quando lá habitava o grande físico José Bálsamo com a sua sibila Lorenza e o seu mestre Althotas.

Tanto em 1784 como em 1770, época em que pela primeira vez lá conduzimos os nossos leitores, a rua de Saint-Claude era uma rua pacata, pouco clara, é verdade, pouco asseada, também é verdade, numa palavra pouco freqüentada, pouco edificada e pouco conhecida. Mas tinha o nome de um santo e a sua qualidade de rua do Marais, e como tal abrigava três ou quatro casas, que compunham o seu efectivo, vários proprietários pobres, vários pobres mercadores e vários pobres indigentes, esquecidos nos registros da paróquia.

Além dessas três ou quatro casas havia ainda, na esquina do bulevar, um palácio de boa aparência, com que a rua de Saint-Claude se poderia glorificar, como sendo um edifício aristocrático; mas esse edifício, cujas grandes janelas teriam podido alumiar toda a rua num dia de festa, lançando por cima do muro do pátio o simples reflexo dos candelabros e dos lustres, era o mais escuro, o mais mudo e o mais fechado de todos os daquele bairro.

A porta nunca se abria; as janelas, com almofadas de couro por dentro, tinham em cada tábua das gelosias, em cada plinto das portas, uma camada de poeira, que os fisiologistas ou os geólogos acusariam de datar de dez anos.

Não raro algum caminhante ocioso, algum curioso ou algum vizinho, se chegava ao portão, e pelo grande buraco da fechadura examinava o interior do palácio.

Então só via as ervas que cresciam por entre as pedras que calçavam o pátio, e o musgo que cobria as lajes. Por vezes uma enorme ratazana, habitante daquele domínio abandonado, atravessava tranquilamente o pátio e ia meter-se nos subterrâneos, modéstia supérflua, visto ela ter à sua inteira e plena disposição salas e gabinetes muito cómodos e onde os gatos não podiam ir perturbá-la.

Se o sujeito era um caminhante ou um curioso, depois de se ter certificado da solidão do palácio, continuava o seu caminho; mas se era um vizinho, como era maior o interesse que o ligava à casa, ficava-se quase sempre bastante tempo em observação, até que outro vizinho fosse tomar lugar ao pé dele, atraído por igual curiosidade; então quase sempre entabolavam uma conversa, de que temos quase a certeza de poder contar o fundo, senão os pormenores.

– Vizinho – dizia o que não espreitava ao que estava observando – o que vê na casa do Sr. conde de Bálsamo?

– Vizinho – respondia o que espreitava ao que não estava espreitando – vejo a rata. – Sim? Dá-me licença? E o segundo curioso ia por sua vez espreitar. – Vê-a? – perguntava o que se retirara ao que estava espreitando. – Vejo, sim – respondia este – vejo. Ai, senhor, como ela tem engordado! – Acha? – Tenho-o por certo. – Também não é de admirar, porque está à vontade. – E seguramente, digam lá o que disserem, devem-lhe ter ficado bons bocados na casa. – Bons bocados, diz o senhor? – Sim, o Sr. de Bálsamo desapareceu muito de súbito para que não lhe esquecesse alguma

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coisa. – Ah! vizinho, quando uma casa está meio queimada, o que quer o senhor que lhe tenham

esquecido dentro? – Na verdade, vizinho, pode ser que tenha razão. E depois de ter novamente contemplado a ratazana, separavam-se aterrados por terem

dito tanta coisa sobre assunto tão misterioso e delicado. Efectivamente, desde o incêndio daquela casa, ou antes de uma parte da casa, Bálsamo

desaparecera, nenhum conserto se fizera, e o palácio tinha ficado abandonado. Deixemos surgindo no meio da noite, sombrio e úmido, com os terraços cobertos de

neve e o telhado aberto pelas chamas, o velho palácio diante do qual não quisemos passar sem nos demorarmos, como diante de um conhecimento antigo; e dali, atravessando a rua para passar da esquerda para a direita, olhemos para essa casa alta e estreita, contígua a um pequeno jardim fechado por um muro alto, e que se eleva no ar como uma grande torre branca sobre o fundo azul-pardacento do céu.

No cimo dessa casa, via-se uma chaminé direita como um pára-raios, em cujo zénite cintilava uma estrela.

O último andar da casa ficaria despercebido no espaço, se não fosse um raio de luz, que avermelhava duas janelas das três de que se compõe a frontaria.

Os outros andares são tristes e sombrios. Dormirão já os moradores? Estarão economizando, metidos nas suas camas, a luz, que tão cara é, e a lenha, tão rara neste ano. O facto é que os quatro andares nem sinal dão de existência, ao passo que o quinto não só existe, senão que brilha com certa afectação.

Batamos à porta; subamos a sombria escada, que termina nesse quinto andar, onde temos que fazer. Uma simples escada postada contra a parede conduz ao andar superior.

Da porta pende uma aldraba; um capacho e uma placa de madeira compõem os adornos da escada.

Aberta a primeira porta, entremos num quarto escuro e nu; é a esse quarto, que pertence a janela que não tem luz. Serve de saleta e dá para outra casa, cujas particularidades merecem a nossa atenção.

Ladrilho por sobrado, portas toscamente pintadas, três cadeiras de madeira branca estofadas de veludo amarelo e um pobre sofá, cujas almofadas cheias de pregas acusam velhice.

As pregas e a flacidez são as rugas e a atonia de um sofá velho; enquanto novo, resistia afagando; depois de velho, em vez de repelir o hóspede, acompanha-o na pressão; e quando está vencido, isto é, quando se lhe assentam em cima, geme.

Dois retratos pendurados na parede atraem a atenção. Um castiçal e um candeeiro, postos um sobre um velador de três pés e o outro sobre o fogão, combinam os lumes de maneira que faz dos dois retratos dois focos de luz.

Gorro na cabeça, rosto pálido e comprido, olhos sem brilho, barba pontiaguda, gorjeira de roca, o primeiro desses retratos recomenda-se pela notoriedade; é o rosto heroicamente semelhante de Henrique III, rei da França e da Polónia.

Por baixo lê-se uma inscrição traçada em letras pretas na moldura mal dourada:

HENRIQUE DE VALOIS O outro retrato, mais recentemente dourado, cuja pintura tem de fresco quanto a outra

tem de antiga, representa uma mulher nova de olhos pretos, nariz fino e direito, faces salientes e boca circunspecta. Está toucada, ou antes esmagada sob uma construção de cabelos e de sedas, ao pé da qual o gorro de Henrique III toma as proporções de um monte de terra ao pé de uma pirâmide.

Debaixo deste retrato lê-se igualmente em letras pretas:

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JOANA DE VALOIS E se depois de termos examinado o lar do fogão sem lume, as miseráveis cortinas de

cassa da cama, coberta de damasco verde desbotado, houver quem deseje saber que relação têm esses retratos com os moradores daquele quinto andar, basta que se volte para uma pequena mesa de pinho, onde, encostada ao cotovelo do braço esquerdo, está uma mulher vestida com simplicidade examinando várias cartas fechadas e relendo-lhes os sobrescritos.

Esta mulher é o original do retrato. Três passos distante dela, em atitude meio curiosa, meio respeitosa, uma criada velha, de

sessenta anos, vestida como as aias de Greuze, espera e olha. “Joana de Valois”, dizia a inscrição. Mas, se essa mulher é uma Valois, como é que Henrique III, o rei sibarita e voluptuoso,

suportava, mesmo em pintura, o espectáculo de semelhante miséria, quando se tratava, não só de uma pessoa da sua raça, senão também do seu nome?

E contudo, a Srª. do quinto andar não desmentia pessoalmente a origem. Tinha as mãos claras e delicadas, que aquecia, de vez em quando, debaixo dos braços encruzados. O pé pequeno, fino, arqueado, metido numa chinelinha de veludo ainda elegante, tentava aquecer-se, batendo contra o ladrilho luzente e frio como o gelo que cobria a cidade de Paris.

Depois, como a brisa sibilava por baixo das portas e pelas fendas das janelas, a criada abanava tristemente a cabeça, encolhia os ombros e olhava para o fogão sem lume.

Quanto à senhora, a dona da casa, continuava contando as cartas e lendo os sobrescritos. Em seguida, depois de cada leitura, fazia um pequeno cálculo. – A Srª. de Misery, – murmurava ela – primeira açafata de Sua Majestade. Deste lado não

se deve esperar mais de seis luíses, porque já me deu. E suspirou. – O Sr. de Ormesson, uma audiência. – O Sr. de Callone, um conselho. – O Sr. de Rohan, uma visita. E há-de ser preciso fazer com que ma venha pagar – disse

ela sorrindo. – Temos portanto – continuou no mesmo tom de salmodia – oito luíses certos daqui a

oito dias. E ergueu a cabeça. – Srª. Clotilde, espevite essa vela. A criada obedeceu, e voltou para o seu lugar séria e atenta. A espécie de espionagem, de que estava sendo objecto, pareceu cansar a ama. – Veja – disse – se há por aí algum coto de cera, e dê-mo. Não posso suportar as velas de

sebo. – Não há – respondeu a velha. – Veja sempre. – Onde? – Na saleta. – Está lá muito frio. – Sempre tem de lá ir, porque tocam a campainha – disse a ama. – A senhora engana-se – respondeu teimosa a velha. – Pareceu-me que ouvi tocar, Srª. Clotilde. E vendo que a velha resistia, cedeu, murmurando consigo, como fazem as pessoas que,

por qualquer motivo, têm deixado os inferiores tomarem direitos que lhes não deveriam pertencer.

Depois voltou aos seus cálculos. – Oito luíses, dos quais devo três aqui no sítio. Pegou na pena e escreveu:

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– Três luíses... cinco prometidos ao Sr. de La Motte, para lhe fazer suportar a sua permanência em Bar-sur-Aube... Pobre diabo! não o enriqueceu o nosso casamento; paciência!

E sorriu novamente; mas desta vez contemplando-se num espelho colocado entre dois retratos.

– Agora – continuou ela – jornadas de Versalhes a Paris e de Paris a Versalhes, um luís. E escreveu essa quantia na coluna das despesas. – Agora sustento da casa por oito dias, um luís. E escreveu novamente. – Vestuário, carruagens, gratificações aos porteiros das casas a que recorro: quatro luíses.

Não me esqueceria coisa nenhuma? Vejamos a soma. Mas no meio da soma interrompeu-se. – Digo-lhe que tocam a campainha. – Não, minha senhora – respondeu a velha entorpecida no seu lugar. – Não é aqui, é em

baixo no quarto andar. – Quatro, seis, onze, catorze luíses: vêm a faltar seis, e preciso renovar toda a minha

guarda-roupa, e pagar a esta velha estúpida para a despedir. Depois, de repente, bradou enraivecida: – Repito-lhe que estão tocando, senhora. E desta vez, força é confessá-lo, o ouvido mais indócil não poderia negar-se a

compreender o chamamento exterior; a campainha, puxada com vigor, estremeceu e vibrou tanto tempo que o badalo bateu-lhe nas paredes mais de meia dúzia de vezes.

A essa bulha, e enquanto a velha, despertada afinal, corria à saleta, a ama, ágil como um esquilo, tirava os papéis e as cartas espalhadas por cima da mesa, metia tudo numa gaveta, e depois de passar uma vista de olhos rápida pelo quarto, para assegurar-se de que tudo estava em boa ordem, assentava-se no sofá na atitude humilde e triste de uma pessoa doente, mas resignada.

Mas, apressemo-nos a dizê-lo, só o corpo descansava. Os olhos activos, inquietos, vigilantes, interrogavam o espelho, que reflectia a porta da entrada, ao passo que o ouvido, sempre à escuta, preparava-se para receber o mais leve rumor.

A criada abriu a porta, e ouviram-se murmurar palavras na antecâmara. Então uma voz fresca e suave, mas cheia de firmeza, pronunciou estas palavras: – É aqui que mora a Srª. condessa de La Motte? – A Srª. condessa de La Motte de Valois? – repetiu Clotilde, com voz fanhosa. – Isso mesmo, minha boa senhora, a Srª. de La Motte está em casa? – Está, sim, minha senhora, e demasiado doente para poder sair. Durante este colóquio, de que ela não perdera uma única sílaba, a fingida doente viu no

espelho uma mulher fazendo perguntas a Clotilde, e percebeu que essa mulher pertencia, segundo todas as aparências, a uma classe elevada da sociedade.

Levantou-se do sofá e foi assentar-se na poltrona, para deixar à visita o lugar de honra. Enquanto ela fazia este movimento, não pôde ver que a visitante voltara no patamar da

escada e dissera a outra pessoa, que ficara na sombra: – Pode entrar, minha senhora, é aqui. A porta fechou-se de novo, e as duas mulheres, que vimos perguntando o caminho da rua

de Saint-Claude, acabavam de entrar em casa da condessa de La Motte de Valois. – Quem deverei eu anunciar à Srª. condessa? – perguntou Clotilde levantando

curiosamente, mas com respeito, a vela, de modo que alumiasse o rosto das mulheres. – Anuncie uma dama de caridade – disse a mais velha. – De Paris? – Não de Versalhes. Clotilde entrou na sala; as desconhecidas seguiram-na e acharam-se na sala, no momento

em que Joana de Valois se erguia custosamente da sua cadeira para cortejar com toda a civilidade as suas visitas.

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Clotilde puxou as duas cadeiras, para que as senhoras pudessem escolher, e retirou-se para a saleta com tão prudente vagar, que bem deixava perceber que escutaria pelo buraco da fechadura a conversa que ia ter lugar.

III

Joana de La Motte de Valois O primeiro cuidado de Joana de La Motte, logo que pôde erguer os olhos, foi ver a

qualidade das pessoas com quem tinha de tratar. A mais velha das duas senhoras, como já dissemos, teria trinta ou trinta e dois anos, era

de formosura distinta, apesar da altivez que se lhe pintava na fisionomia lhe tirar naturalmente uma parte do encanto que podia ter. Pelo menos assim o julgou Joana, pelo pouco que pôde ver do rosto da sua visita.

Com efeito, preferindo uma das cadeiras ao sofá, assentara-se longe da claridade que vinha da lâmpada, recuando para um dos cantos da casa e puxando para a testa o capuz de tafetá acolchoado do mantelete, que, por essa conveniente disposição, lhe projectava a sombra no rosto.

Mas era tão altivo o porte da cabeça, os olhos tão vivos e tão naturalmente dilatados, que ainda que se disfarçassem todas as particularidades, a visita, pelo seu todo, devia ser reconhecida como sendo de boa raça e principalmente de raça nobre.

Menos nobre, tímida, pelo menos na aparência, a companheira, ainda que quatro ou cinco anos mais nova, não dissimulava a sua verdadeira formosura.

Um rosto admirável de desenho e colorido, um penteado que lhe descobria bem as fontes, fazendo destacar o perfeito oval da cara; dois grandes olhos azuis, de grande serenidade, vivos e penetrantes; boca de um suave desenho, a que a natureza dera franqueza e a educação e a etiqueta discrição; nariz que, pela forma, nada tinha que invejar ao da Vênus de Médicis, foi o que Joana pôde avaliar num rápido olhar. Depois, passando a outros pormenores, a condessa pôde notar que a cintura da mais nova das duas senhoras era mais fina e mais flexível que a da sua companheira, o peito mais vasto e dilatado, e finalmente a mão tão polpuda, quanto a da outra senhora era ao mesmo tempo fina e nervosa.

Em poucos segundos fez Joana de Valois todas estas observações, isto é, em menos tempo do que o que empregamos em consigná-las aqui.

Depois, feitas as observações, perguntou a que feliz circunstância devia a visita daquelas senhoras.

As duas senhoras olharam uma para a outra, e a um sinal da mais velha, disse a mais nova: – Minha senhora... Creio que é casada, não é verdade? – Tenho a honra de ser mulher do Sr. conde de La Motte, minha senhora, um excelente

fidalgo. – Pois bem, nós, Srª. condessa, somos superioras de um estabelecimento de caridade.

Contaram-nos, relativamente à sua condição, certas circunstâncias que nos interessaram, e por conseqüência quisemos ter alguns esclarecimentos exactos sobre quanto lhe diz respeito.

Joana deteve-se um instante antes de responder. – Minhas senhoras – disse por fim, notando o modo reservado da outra dama – vêem

acolá o retrato de Henrique III, isto é, do irmão de meu avô; porque sou verdadeiramente do sangue dos Valois, como sem dúvida lho hão-de ter dito.

E esperou nova pergunta, olhando para as duas senhoras com uma espécie de humildade orgulhosa.

– Minha senhora – interrompeu então a voz grave e doce da mais velha das duas senhoras – é verdade, como dizem, que sua mãe fosse porteira numa casa chamada Fontette, situada em Bar-sur-Seine?

Page 37: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

Joana corou a tal lembrança, mas respondeu logo sem se perturbar: – É verdade, minha senhora; minha mãe era porteira de uma casa chamada Fontette. – Ah! – disse a interlocutora. – E como Maria Jossel, minha mãe, era de rara beleza -– prosseguiu Joana, – meu pai

namorou-se dela e casou. É pela parte de meu pai que sou de raça nobre. Meu pai, minha senhora, era Saint-Remy de Valois, descendente directo dos Valois que reinaram.

– Mas como desceu a tal grau de miséria, minha senhora? – perguntou a que tinha já feito as outras perguntas.

– É fácil de compreender. – Queira dizer. – Não ignora que depois da elevação de Henrique IV, que fez passar a coroa da casa dos

Valois para a dos Bourbons, a família decaída tinha ainda alguns ramos, sem dúvida obscuros, mas incontestavelmente saídos da raça comum aos quatro irmãos, que todos pereceram fatalmente.

As duas senhoras fizeram um sinal que podia passar por assentimento. – Ora – prosseguiu Joana – os ramos dos Valois, receando, apesar da sua obscuridade,

afrontar a nobre família real, mudaram o nome de Valois para o de Remy, tomado de uma propriedade que possuíam, e a partir de Luís XIII, encontram-se com esse nome na genealogia até ao penúltimo Valois, meu avô, que vendo segura a monarquia e esquecido o antigo ramo, julgou não dever por mais tempo privar-se de um nome ilustre, que era o seu único apanágio. Tornou, portanto, a usar do nome de Valois, e levou-o consigo para a sombra da pobreza, no fundo da província, sem que na corte de França houvesse quem se lembrasse que, fora do brilho e esplendor do trono, vegetasse um descendente dos antigos reis de França, se não os mais gloriosos da monarquia, pelo menos os mais infelizes.

Joana interrompeu-se. Tinha falado singelamente e com uma moderação que havia sido notada. – Tem certamente as suas provas em boa ordem, minha senhora? – disse a mais velha das

senhoras com doçura e fitando um olhar escrutador na que se dizia descendente dos Valois. – Oh! minha senhora – respondeu esta com amargo sorriso – provas não me faltam. Meu

pai tinha-as mandado exigir e organizar, e quando morreu deixou-mas todas, à falta doutra herança: mas de que servem as provas de uma inútil verdade ou de uma verdade que ninguém quer reconhecer?

– Seu pai morreu? – perguntou a mais nova das duas senhoras. – Infelizmente, morreu sim, minha senhora. – Na província? – Não, minha senhora. – Em Paris, então? – Em Paris. – Nesta casa? – Não, minha senhora; meu pai, barão de Valois, segundo neto do rei Henrique III,

morreu de miséria e de fome. – É impossível! -– bradaram ao mesmo tempo as duas senhoras. – Não aqui – prosseguiu Joana; – não nesta pobre casa, não na sua cama, fosse essa cama

uma enxerga! Não; meu pai morreu ao lado dos mais pobres, dos mais miseráveis e doentes. Meu pai morreu numa cama do Hotel Dieu, em Paris.

As duas mulheres soltaram um grito de surpresa, que muito se parecia com um grito de terror.

Joana, satisfeita com o efeito que produzira, pela arte com que tinha conduzido o período e chegado ao desenlace, ficou imóvel, com os olhos voltados para o chão e a mão inerte.

A mais velha das duas senhoras examinava-a ao mesmo tempo com atenção e inteligência, e não vendo naquela dor, tão simples e natural, coisa alguma do que caracteriza o

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charlatanismo e a vulgaridade, prosseguiu: – Pelo que me diz, minha senhora, experimentou grandes desgraças, e a morte de seu pai

principalmente... – Oh! se eu lhe contasse a minha vida, minha senhora, veria que a morte de meu pai não

avulta no número das minhas desgraças. – Como, minha senhora, olha como pequena desgraça a perda de seu pai? – disse a

senhora franzindo o sobrolho com modo severo. – Olho, sim, minha senhora; e, dizendo isto, falo como mulher piedosa, porque meu pai,

morrendo, achou-se livre de todos os males que sobre a terra o perseguiam e continuam a perseguir a sua desgraçada família. Portanto, no meio da dor que a sua perda me causa, sinto um certo prazer em pensar que meu pai morreu, e que o descendente de reis já se não vê reduzido a mendigar o pão!

– Mendigar o pão?! – Oh! sem vergonha o digo, porque nas suas infelicidades não há nem culpa de meu pai

nem minha. – Mas sua mãe... – Minha mãe! com a mesma franqueza com que ainda há pouco eu lhe dizia, que

agradecia a Deus por ter chamado a si meu pai, me queixo que a deixasse viver. As duas mulheres olhavam uma para a outra, estremecendo quase, àquelas singulares

palavras. – Seria indiscrição, minha senhora, pedir-lhe uma narração mais circunstanciada das suas

desgraças? – disse a mais velha. – A indiscrição, minha senhora, só seria minha porque lhes cansaria os ouvidos com a

narração de desgraças, que só lhes podem ser indiferentes. – Eu ouço, minha senhora – respondeu majestosamente a mais velha das duas senhoras, a

quem a sua companheira dirigiu no mesmo instante um olhar significativo, como para a convidar a conter-se.

Efectivamente, a Srª. de La Motte notara o tom imperioso daquela voz, e contemplava com admiração a senhora.

– Eu ouço, se quer fazer-me a mercê de falar. E cedendo a um movimento de desconforto, causado certamente pelo frio, estremeceu e

esfregou os pés contra o ladrilho em que gelavam. Então a mais moça chegou-lhe, oferecendo-lho, uma espécie de tapete que estava debaixo

da sua cadeira, atenção que a companheira lhe repreendeu com um olhar. – Guarde para si esse tapete, minha irmã, é mais delicada do que eu. – Perdão, minha senhora – disse a condessa de La Motte – estou profundamente

penalizada pelo frio que devem sentir; mas o preço da lenha acaba de aumentar seis libras, o que o eleva a setenta libras cada carga, e o provimento que eu tinha acabou há oito dias.

– Dizia, minha senhora – redargüiu a mais velha das duas senhoras – que era uma desgraça ter mãe?

– Sim, minha senhora e concebo que semelhante blasfémia requeira explicação – disse Joana – e essa explicação vou dar-lha, visto dizer-me que a desejava.

A interlocutora da condessa fez um sinal afirmativo com a cabeça. – Tive já a honra de lhe dizer, minha senhora, que meu pai tinha feito um casamento

desigual. – Sim, casando com uma porteira. – Pois bem, Maria Fossel, minha mãe, em lugar de se mostrar agradecida e soberba pela

honra que lhe faziam, começou por arruinar meu pai, o que aliás não era difícil, satisfazendo a avidez das suas exigências, à custa do pouco que o marido possuía. Depois, tendo-o levado a vender o último pedaço de terra, persuadiu-o a vir a Paris para reivindicar os direitos que lhe provinham do nome. Meu pai deixou-se facilmente seduzir, talvez pela esperança da justiça de el-

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rei. Veio portanto, depois de ter convertido em dinheiro o pouco que possuía. Além de mim, tinha meu pai mais um filho e uma filha. O filho, desgraçado como eu,

vegeta nas últimas fileiras do exército; a filha, minha irmã, foi abandonada na véspera da partida de meu pai para Paris, diante da porta de um lavrador, que era seu padrinho.

A viagem consumiu o pouco dinheiro que tínhamos; meu pai cansou-se em fazer requerimentos inúteis e sem resultado. Só o víamos aparecer em casa, trazendo a miséria para onde só a miséria encontrava. Na sua ausência, minha mãe, a quem era necessária uma vítima, azedou-se contra mim. Começou por me lançar em rosto a parte que eu tomava na comida. A pouco e pouco ia eu preferindo comer só pão seco ou não comer coisa alguma a assentar-me à nossa pobre mesa; mas não faltaram à minha mãe pretextos de castigo: à mais leve falta, mesmo destas que algumas vezes provocariam o sorriso de uma mãe qualquer, a minha batia-me; alguns vizinhos, julgando prestar-me serviço, denunciaram a meu pai os maus tratos que minha mãe me dava. Meu pai tentou defender-me, mas não percebeu que a sua protecção mudava a minha inimiga de um momento em eterna madrasta. Ah! eu não podia dar-lhe um conselho no meu próprio interesse, era muito moça, muito criança. Nada sabia explicar. Experimentava os efeitos sem procurar adivinhar as causas. Só conhecia a dor, nada mais.

Meu pai adoeceu, viu-se obrigado a ficar em casa, e poucos dias depois, nem da cama se podia levantar. Então fizeram-me sair do quarto de meu pai, sob pretexto de que a minha presença o incomodava e que eu não sabia reprimir a necessidade de movimento que é a vida das crianças. Uma vez fora do quarto, pertenci como dantes a minha mãe. Ensinou-me uma frase, que me fez decorar à força de pancadas; e depois, quando eu soube de cor essa frase humilhante, que instintivamente não queria aprender, quando as lágrimas tornaram os meus olhos vermelhos, mandou-me para a porta da rua, e de lá ordenou-me que me dirigisse à primeira pessoa de bom aspecto que passasse, com ordem de lhe dizer a tal frase, se não queria ser espancada até à morte.

– Oh! horrível! horrível! – murmurou a mais nova das duas mulheres. – E que frase era essa? – perguntou a mais velha. – A frase, era esta: “Senhor, compadecei-vos de uma orfãzinha, que descende em linha

recta de Henrique de Valois”. – Oh! que horror! – bradou a mais velha com repugnância. – E que efeito produzia essa frase naqueles a quem a dirigia? – perguntou a mais moça. – Uns escutavam-me condoídos – disse Joana – outros enfadavam-se e ameaçavam-me;

outros, enfim, mais caridosos que os primeiros, preveniam-me do grande perigo que eu corria pronunciando semelhantes palavras, que podiam ser ouvidas por pessoas desprevenidas. Mas eu só conhecia um perigo, o de desobedecer a minha mãe, só tinha um receio, o de ser espancada.

– E que sucedeu? – Meu Deus ! sucedeu, minha senhora, o que minha mãe esperava; trouxe um pouco de

dinheiro para casa, e meu pai viu demorar-se por mais alguns dias a horrível perspectiva que o ameaçava: o hospital.

As feições da mais velha das duas senhoras contraíam-se, e as lágrimas assomaram aos olhos da mais nova.

– Enfim, minha senhora, apesar do alívio que trazia a meu pai, aquele horrível meio repugnava-me. Um dia, em vez de correr atrás das pessoas que passavam e de as perseguir com a minha frase habitual, assentei-me junto de um marco de pedra, onde me deixei ficar parte do dia como esquecida de tudo. À noite voltei para casa com as mãos vazias, e minha mãe tanto me espancou, que adoeci. Foi então que meu pai, vendo-se sem recursos, teve de ir para o hospital, onde morreu.

– Oh! que horrível história! – murmuraram as duas senhoras. – Mas então, depois da morte de seu pai, que fez? – perguntou a mais nova das duas

senhoras. – Compadeceu-se Deus de mim. Um mês depois da morte de meu infeliz pai, minha mãe

fugiu com um soldado, seu amante, abandonando-nos a meu irmão e a mim.

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– Ficaram órfãos? – Oh! minha senhora, nós éramos mais órfãos quando tínhamos mãe. A caridade pública

adoptou-nos. Mas como nos repugnava mendigar, só íamos mendigar até colher o preciso. Deus ordena às suas criaturas que façam pela vida.

– Ah! – Um dia, minha senhora, tive a fortuna de encontrar uma carruagem, que lentamente

subia a encosta do bairro Saint-Marcel; quatro lacaios, vinham na tábua, dentro estava uma mulher ainda moça e bonita; estendi a mão para ela; fez-me algumas perguntas; a minha resposta e o meu nome surpreenderam-na, depois mostrou-se incrédula. Ensinei-lhe a minha morada. No dia seguinte já ela sabia que eu não tinha mentido; adoptou-nos, colocou meu irmão num regimento e a mim numa modista. Estávamos ambos salvos da fome.

– Essa senhora, não era a Srª. de Boulainvilliers? – Era ela mesma. – Parece-me que já morreu. – Morreu, e a sua morte lançou-me de novo no abismo. – Mas o marido ainda vive; é rico. – O marido, minha senhora, a ele devo eu todas as minhas infelicidades de moça, como

devo a minha mãe todas as minhas infelicidades de menina. Eu tinha crescido, tinha-me talvez tornado formosa: ele conheceu-o, e quis pôr um preço aos seus benefícios: recusei. Foi por este tempo que a Srª. de Boulainvilliers morreu, e eu, que ela tinha casado com um militar leal e valente, o Sr. de La Motte, achei-me, pela morte daquela senhora, mais abandonada de que o havia sido depois da morte de meu pai, porque meu marido estava ausente. É esta a minha história, minha senhora: encurtei-a o mais que pude; os padecimentos são sempre enfadonhos aos ouvidos das pessoas felizes, por bom coração que tenham, como as senhoras mostram ter.

A este último período da história da Srª. de La Motte, sucedeu longo silêncio. A mais velha das duas senhoras foi a primeira que o rompeu. – E que faz seu marido? – perguntou ela. – Meu marido está de guarnição em Bar-sur-Aube, minha senhora; serve na gendarmaria,

e espera, como eu, tempos mais felizes. – Mas a senhora dirigiu-se à corte?... – Certamente! – O nome de Valois, justificado por títulos, deve ter despertado simpatias. – Não sei, minha senhora, que sentimentos pode o meu nome ter despertado, porque não

recebi despacho nenhum aos meus requerimentos. – Contudo, esteve com os ministros, com o rei, com a rainha? – Não, minha senhora. Têm sido vãs todas as minhas tentativas – redargüiu a Srª. de La

Motte. – Entretanto, não pode mendigar. – Não, minha senhora, perdi o uso de o fazer. Mas... – Mas o que? – Mas posso morrer de fome, como meu pai. – Não tem filhos? – Não, minha senhora, e meu marido, fazendo-se matar pelo serviço de el-rei, achará pelo

menos da sua parte um glorioso termo às nossas misérias. – A senhora pode – sinto muito ter que insistir neste ponto, – pode fornecer-me as

provas justificativas da sua genealogia? Joana levantou-se, abriu uma gaveta e tirou dela alguns papéis, que apresentou à sua

interlocutora. Mas como queria aproveitar o momento em que, para os examinar, a senhora se

aproximasse da luz e descobrisse inteiramente as feições, revelou a sua intenção, pelo cuidado com que foi levantar mais a torcida do candeeiro, a fim de aumentar a claridade.

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Então a dama de caridade, como se a luz demasiadamente viva lhe ferisse a vista, voltou as costas ao candeeiro e por conseqüência à Srª. de La Motte.

Foi nesta posição que leu atentamente e examinou cada documento, um depois do outro. – Mas – disse depois – só vejo aqui algumas cópias de documentos, minha senhora, e não

papéis devidamente autênticos. – Os originais, minha senhora – respondeu Joana – estão depositados em lugar seguro e

hei-de apresentá-los. – Se uma ocasião importante se oferecer, não é verdade? – disse a senhora sorrindo. – Minha senhora, é sem dúvida bem importante a ocasião que me fornece a honra de a

ver; mas os documentos de que me fala são para mim tão preciosos que... – Percebo. Não os pode assim entregar a uma pessoa avulsa, desconhecida... – Oh! minha senhora – bradou a condessa, que finalmente acabava de entrever o rosto,

cheio de dignidade, da sua protectora – oh! minha senhora, parece-me que para mim não é uma pessoa avulsa.

E logo depois, indo rapidamente abrir outra gaveta, que era de segredo, tirou os originais das peças justificativas, cuidadosamente fechados numa pasta velha com o brasão dos Valois.

A senhora recebeu-os, e depois de um exame inteligente e atento, disse: – Tem razão, estes documentos estão perfeitamente em regra, e convido-a a que não

deixe de os fazer valer oportunamente. – E que alcançarei com isso, minha senhora? – Sem dúvida, alcançará para si uma pensão e um adiantamento para o Sr. de La Motte,

por pouco que ele seja digno disso. – Meu marido é o modelo da honra, minha senhora, e nunca faltou aos deveres do

serviço militar. – Basta, minha senhora – disse a dama de caridade, puxando de todo para diante o capuz

do mantelete. A Srª. de La Motte seguia-lhe com ansiedade todos os movimentos. Viu-a meter a mão na algibeira, de onde retirou primeiramente o lenço bordado, que lhe

servira para ocultar o rosto quando atravessara os bulevares no trenó. Depois do lenço, tirou um pequeno rolo com uma polegada de diâmetro e três ou quatro

de comprimento. A dama de caridade pôs o rolo em cima da cómoda, dizendo: – A sociedade das Obras Pias autoriza-me a oferecer-lhe este pequeno socorro, enquanto

lhe não presta auxílio um pouco mais eficaz. A Srª. de La Motte lançou um rápido olhar para o rolo. – São escudos de três libras – pensou ela; – deve ter pelo menos cinqüenta ou talvez cem.

Bem; são cento e cinqüenta ou talvez trezentas libras que nos caem do céu. Assim mesmo para cem acho-o demasiadamente curto; mas também me parece muito comprido para cinqüenta.

Enquanto ela fazia estas observações, tinham as duas jovens senhoras saído para a saleta, onde a Srª. Clotilde dormia numa cadeira ao pé de uma vela, cujo pavio vermelho e fumacento saía do centro de um pouco de sebo derretido.

O cheiro acre e nauseabundo incomodou muito a dama de caridade, que pusera o rolo sobre a cómoda.

Levou vivamente a mão à algibeira e tirou dela um frasco. Mas ao chamamento de Joana, tinha a Srª. Clotilde acordado, e agarrando com as mãos

ambas a vela de sebo, elevara-a como um farol acima da cabeça, a despeito do protesto das duas estranhas, a quem alumiava sufocando-as.

– Até outra vez, até outra vez, Srª. condessa – bradaram elas e correram para a escada. – Onde poderei eu ter a honra de lhes agradecer, minhas senhoras? – perguntou Joana de

Valois. – Nós lho mandaremos dizer – respondeu a mais velha das duas senhoras descendo a

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escada o mais rapidamente possível. E o ruído produzido pelos passos perdeu-se na profundidade dos andares inferiores. A Srª. de Valois voltou para dentro, impaciente por verificar se eram exactas as suas

observações sobre o rolo. Mas atravessando a saleta, deu com o pé num objecto que rolou de cima do capacho, que servia para calafetar a fenda da porta.

Abaixar-se, apanhar o objecto e correr ao candeeiro, foi a primeira inspiração da condessa de La Motte.

Era uma caixa de ouro, chata e singelamente lavrada. Continha algumas pastilhas de chocolate perfumadas; mas apesar de ser tão chata, via-se

bem que tinha um fundo falso, cujo segredo a condessa levou algum tempo a procurar. Achou a mola e abriu o fundo. Apareceu logo um retrato de mulher, severo, deslumbrante, de formosura varonil e

imperiosa majestade. Um toucado alemão, um colar magnífico, semelhante ao de uma ordem militar, davam à

fisionomia desse retrato uma estranheza admirável. Uma firma composta de um M e um T, enlaçados numa coroa de louro, ocupava a tampa

da caixa. Graças à semelhança do retrato com o rosto da sua benfeitora, a Srª. de La Motte supôs

que seria um retrato de mãe ou de avó, e o seu primeiro movimento, devemos dizê-lo, foi de correr à escada para chamar as duas senhoras.

A porta da rua fechava-se. Depois correu à janela para as chamar, porque era já tarde para correr na rua em seu

alcance. Mas só viu um cabriolé, que partia rapidamente da extremidade da rua de Saint-Claude

para a rua de Saint-Louis. A condessa, não tendo já esperança de alcançar as suas protectoras, contemplou outra vez

a caixa, prometendo a si mesma que a levaria a Versalhes; depois, pegando no rolo que ficara sobre a cómoda, disse:

– Não me enganei, só tem cinqüenta escudos. E o papel rasgado caiu no chão. – Luíses! luíses duplos! – bradou a condessa – Cinqüenta luíses duplos! duas mil e

quatrocentas libras! E a mais viva alegria se lhe pintou no rosto, enquanto Clotilde, maravilhada com o

aspecto do ouro, que nunca em sua vida vira em tal quantidade, ficava boquiaberta e de mãos postas.

– Cem luíses!... – repetiu a Srª. de La Motte. Aquelas senhoras devem ser riquíssimas. Oh! hei-de tornar a encontrá-las!

IV

Belo Não se enganara a Srª. de La Motte, pensando que o cabriolé que vira levava as duas

senhoras que acabavam de socorrê-la. Tinham, efectivamente, encontrado ao pé da casa um cabriolé como naquela época se

construíam, isto é, de rodas grandes, caixa leve e atrás um assento muito cómodo para o jóquei. Este cabriolé, tirado por um magnífico cavalo irlandês, de cauda curta, ancas redondas e

baio, fora levado à rua de Saint-Claude pelo mesmo criado que conduzira o trenó e a quem a ama chamara Weber, conforme ouvimos.

Weber segurava o cavalo pelo freio quando as senhoras chegaram; tentava moderar a impaciência do fogoso animal, que batia com pé nervoso sobre o gelo, que com a noite enrijara.

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Assim que as duas senhoras apareceram, Weber disse: – Minha senhora, eu tinha mandado pedir o Cipião, que é muito manso e fácil de guiar,

mas o Cipião está com um quarto aberto desde ontem à noite; não havia senão o Belo, que é muito fogoso.

– Oh! para mim, bem sabes, Weber – respondeu a mais idosa – que isso pouco importa; tenho pulso vigoroso e estou costumada a guiar.

– Sei que guia muito bem, mas os caminhos estão péssimos. Onde vai a minha senhora? – A Versalhes. – Pelos boulevards? – Não, Weber, está muito frio e deve haver por lá muito gelo. As ruas, graças aos

milhares de pessoas que as transitam, devem oferecer menos resistência. Vamos, depressa, Weber, depressa!

Weber segurou o cavalo, enquanto as senhoras subiam ligeiramente para o carro; depois saltou para o banco de trás e avisou que estava pronto.

Então a mais velha das duas senhoras, dirigindo-se à sua companheira, disse: – Então! que pensa daquela condessa, Andréia? E dizendo estas palavras, deu a mão ao cavalo, que partiu como um raio e voltou para a

rua de Saint-Louis. Era no momento em que a Srª. de La Motte abria a janela para as chamar. – Penso, minha senhora – respondeu a outra senhora – penso que a Srª. de La Motte é

pobre e desgraçadíssima. – É bem criada, não lhe pareceu? – Decerto. – Acho-a fria a respeito dela, Andréia. – Se quer que lhe confesse, notei-lhe na fisionomia alguma coisa de malicioso, que me

não agradou. – Oh! bem sei que é desconfiada, Andréia; e quem lhe quiser agradar há-de reunir todas

as qualidades. Eu acho aquela condessinha interessante e simples no seu orgulho e na sua humildade.

– É uma fortuna para ela, minha senhora, a felicidade que teve de agradar a vossa... – Tome cuidado! – bradou a senhora desviando vivamente o cavalo, que ia lançar por

terra um homem na esquina da rua de Saint-Antoine. – Cuidado!: cuidado... – bradou Weber com voz de estentor. E o cabriolé continuou o seu caminho.. Quanto a Belo, firme nas suas pernas de aço, nem sequer uma vez escorregara, tanto a

mão que o guiava sabia prever as inclinações e os perigos ao terreno. Já se não murmurava em torno do cabriolé, vociferava-se; a senhora que ia guiando

conheceu isso, e atribuindo a hostilidade a alguma causa comum, como o rigor dos tempos e a indisposição dos espíritos, resolveu abreviar a jornada.

Deu um estalo com a língua, e a esse único incentivo Belo estremeceu e passou do trote curto ao trote largo.

As lojas desapareciam, a gente que transitava fugia para os lados. Os avisos para que tomassem cuidado não cessavam. O cabriolé chegava quase ao Palais-Royal, acabava de passar diante da rua Coq-Saint-

Honoré, em frente da qual o mais belo dos obeliscos de neve erguia ainda com soberba o seu colo diminuído pelos degelos, como um pedaço de açúcar cândi depois de chuchado por uma criança.

Coroava o obelisco um glorioso penacho de fitas, um pouco desbotadas, que seguravam um papel em que o escritor público daquele bairro traçara, em letras maiúsculas, a seguinte quadra, que flutuava entre duas lanternas:

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Ergamos aqui singelo monumento A rainha gentil, ao rei munificente: Do gelo que o compõe quão diverso é O fogo d’amor que nosso peito sente!

Foi neste lugar que Belo experimentou a primeira dificuldade séria. O monumento, que

estavam iluminando, atraía grande número de curiosos, os quais tinham formado um ajuntamento, que não era possível atravessar a trote.

Foi portanto necessário meter Belo a passo. Mas Belo fora visto chegar como um raio; tinham ouvido os gritos com que o vinham

perseguindo, e ainda que ao aspecto do obstáculo ele tivesse repentinamente parado, a vista do cabriolé pareceu produzir péssimo efeito na multidão.

Todavia a multidão afastou-se. Mas depois do obelisco, havia ainda outra causa de ajuntamento. Só se ouviram as imprecações do homem, que escapara às rodas, e várias vozes, que lhe

corresponderam como um eco, deram no mesmo instante o apoio de um clamor hostil ao cabriolé.

Em alguns segundos, porém, pôs Belo entre a sua ama e os blasfemadores todo o espaço que vai da rua de Sainte-Catherine à praça de Baudoyer.

O caminho ali é bifurcado, como todos sabem, mas a hábil condutora meteu resolutamente pela rua Tixéranderie, rua populosa, estreita e pouco aristocrática.

Entretanto, apesar dos reiterados avisos da senhora, apesar dos brados de Weber, não se ouviam senão exclamações furiosas das pessoas que passavam.

– Abaixo o cabriolé! Abaixo o cabriolé! Belo passava sempre, e quem o guiava, apesar da delicadeza da sua mãozinha de criança,

fazia-o correr rapidamente, sobretudo habilmente, nos charcos de neve derretida, ou nos gelos ainda mais perigosos, que se formavam nas regueiras das ruas.

Todavia, contra o que era de esperar, nenhuma desgraça sucedera. Na dianteira do carro, uma lanterna brilhante despedia os seus raios, luxo previdente, que não fora ainda imposto pela polícia aos cabriolés daquele tempo.

Nenhuma desgraça, dizemos, acontecera; nem fora de encontro às outras carruagens, nem roçara contra os marcos de pedra; ninguém fora pisado; era um milagre, e contudo os gritos e ameaças sucediam-se sempre.

Com a mesma rapidez e felicidade o cabriolé atravessou a rua de Saint-Martin e a rua Aubry-le-Boucher.

Talvez pensem os nossos leitores que o ódio contra o trem aristocrático se tornasse menos feroz na proximidade dos bairros civilizados.

Foi o contrário; apenas Belo entrou na rua Ferronerie, Weber, sempre perseguido pelas vociferações da plebe, reparou que se formavam grupos no caminho do cabriolé, e que várias pessoas iam para correr atrás dele a fim de o agarrarem.

Todavia Weber não quis assustar a ama. Notou o sangue frio e destreza que ela desenvolvia, a habilidade com que vencia todos os obstáculos inertes ou vivos, que são ao mesmo tempo o desespero e o triunfo dos cocheiros de Paris.

As grades do Palais-Royal estavam abertas, e no pátio alguns imensos braseiros aqueciam um exército de mendigos, a quem os lacaios do Sr. de Orleans distribuíam sopas em tigelas de barro.

Mas a gente que comia e a gente que se aquecia, por numerosa que fosse, era menos ainda do que aquela que estava ali para ver os que se aqueciam e comiam. É hábito de Paris: para um actor, faça ele o que fizer, há sempre espectadores.

Portanto, depois de ter vencido o primeiro obstáculo, viu-se o cabriolé obrigado a parar diante do segundo, como um navio no meio dos escolhos.

No mesmo instante chegaram distintamente aos ouvidos das duas senhoras os gritos que

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até então se tinham ouvido como uma bulha vaga e confusa. Gritavam: – Abaixo o cabriolé! abaixo os esmagadores do povo! – Será a nós que se dirigem estes clamores? cabriole perguntou visivelmente inquieta à sua

companheira, a senhora que ia guiando. – Na verdade, minha senhora – respondeu esta – receio muito que seja. – Esmagaríamos alguém? – Ninguém. – Abaixo o cabriolé! abaixo os esmagadores do povo! – bradava furiosamente a multidão. Formava-se a tempestade, o cavalo acabava de ser agarrado pela rédea, e o Belo, que

gostava pouco de contacto daquelas mãos rudes, fazia corcovas e espumava. – Para o comissário, para o comissário de polícia! – bradou uma voz. As duas mulheres, no cúmulo da admiração, olharam uma para a outra. Logo mil vozes repetiram: – Para o comissário de polícia! para o comissário de polícia! Entretanto as pessoas curiosas corriam para o cabriolé. Os comentários circulavam entre a multidão. – Olha, são mulheres! – disse uma voz. – Sim, são raparigas dos Soubises, amantes do Hennin. – Raparigas do teatro, que julgam ter direito para esmagar a gente pobre, porque têm dez

mil libras por mês para lhe pagarem as despesas do hospital. Um brado furioso acolheu esta última imprecação. As duas mulheres foram diversamente impressionadas. Uma recostou-se no cabriolé,

trémula e pálida; a outra avançou resolutamente a cabeça, franziu o sobrolho e mordeu os beiços. – Ai! senhora – bradou-lhe a companheira puxando-a para trás – que vai fazer? – Para o comissário de polícia! para o comissário de polícia! – continuavam a gritar os

encarniçados – é preciso conhecê-las. – Ai! minha senhora, que estamos perdidas – disse a mais nova ao ouvido da

companheira. – Ânimo, Andréia, ânimo! – respondeu esta. – Mas vão vê-la, e talvez conhecê-la! – Veja pelo vidro do fundo se Weber vem ainda no seu lugar. – Vem, mas quer descer; atacam-no, defende-se. Ah! lá vem ele. – Weber! Weber! – disse a senhora em alemão – ajude-nos a apear. O criado obedeceu e, graças a dois encontrões que deu com os ombros, repeliu a

multidão e aproximou-se do cabriolé. As duas mulheres saltaram ligeiramente ao chão. Durante aquele tempo a ira do povo descarregava-se sobre o cavalo e o cabriolé, cuja

caixa ameaçava quebrar. – Mas, santo Deus, que é isto? – prosseguiu em alemão a mais velha das duas senhoras; –

compreendes alguma coisa disto, Weber? – Por minha vida, não, minha senhora – respondeu, o criado, falando muito mais à

vontade naquela língua do que em francês, e dando para um e outro lado formidáveis pontapés para livrar a ama.

– Mas não são homens, são animais ferozes! – continuou a senhora falando sempre em alemão. – Que me levam eles a mal? vamos a saber.

No mesmo instante uma voz delicada, que fazia singular contraste com as ameaças e injúrias de que as duas senhoras estavam sendo vítimas, respondeu em puríssimo saxónio:

– Levam a mal, minha senhora, que transgredisse o edital da polícia, que foi afixado esta manhã em Paris, e que proíbe até à primavera que circulem cabriolés pelas ruas, que são já muito perigosas quando estão boas, mas que se tornam mortais aos que andam a pé quando gela, e não

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podem fugir das rodas. A senhora voltou-se para ver donde vinha aquela voz cortês no meio de tantas vozes

ameaçadoras. Divisou então um jovem oficial, que, para se aproximar dela, vira-se certamente obrigado

a usar de tanta valentia quanta empregava Weber para se conservar onde estava. A figura delicada e distinta, os ademanes nobres, o modo marcial do mancebo, agradaram

à senhora, que se apressou em responder em alemão: – Oh! meu Deus! senhor, eu não sabia desse edital; ignorava-o completamente. – É estrangeira, minha senhora? – perguntou o jovem oficial. – Sou, sim, senhor; mas diga-me, que devo fazer? Quebram o meu cabriolé! – É preciso deixá-lo quebrar, minha senhora, e fugir durante esse tempo. O povo de

Paris, está furioso contra os ricos, que ostentam o luxo em frente da miséria, e em virtude do edital publicado esta manhã, é capaz de a levar ao comissário de polícia.

– Oh! isso nunca!... – bradou a mais nova das senhoras – isso nunca! – Então – redargüiu o oficial rindo – aproveitem a aberta que vou fazer na multidão, e

fujam. Estas palavras foram proferidas num tom desembaraçado, que fez compreender às duas

estranhas que o oficial tinha ouvido os comentários do povo sobre as amantes dos senhores de Soubise e de Hennin.

Mas não era esse o momento de estar com escrúpulos. – Dê-nos o seu braço até à estação mais próxima de carruagens, senhor – disse a mais

velha das duas senhoras, em tom de autoridade. – Eu ia fazer escoicear o seu cavalo, e na confusão necessariamente produzida por esse

movimento, poderia fugir, porque – acrescentou o mancebo, que desejava declinar a responsabilidade da sua perigosa protecção – o povo cansa-se de nos ouvir falar numa língua que não entende.

– Weber! – bradou a senhora com voz forte – toca o Belo para fazer afastar toda esta chusma.

– E depois, minha senhora? – Depois, deixa-te ficar enquanto nos retiramos. – E se quebrarem o cabriolé? – Que quebrem, não importa; salva o Belo se puderes, e salva-te a ti principalmente; é

quanto te recomendo. – Bem, minha senhora – respondeu Weber. E no mesmo instante tocou com o chicote no fogoso irlandês que escoiceou no meio da

chusma e deitou por terra os mais furiosos, que se tinham lançado às rédeas e varais. Grande foi neste momento o terror e a confusão. – O seu braço, senhor – disse então a senhora de mais idade ao oficial; – venha, menina –

acrescentou voltando-se para Andréia. – Vamos, vamos, mulher de coragem – murmurou em voz baixa o oficial, que deu

imediatamente e com verdadeira admiração o braço àquela que o reclamava. Em poucos minutos tinha ele conduzido as duas senhoras à praça fronteira, onde havia

uma estação de carruagens que esperavam fregueses, enquanto os cocheiros dormiam sobre as almofadas, e os cavalos, com os olhos meio fechados e a cabeça baixa, esperavam a mesquinha ração da noite.

V

O trajecto para Versalhes Estavam já as senhoras fora do alcance da multidão; era todavia de recear ainda que as

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tivessem seguido alguns curiosos, e que, dando-as a conhecer, se renovassem cenas semelhantes às que acabavam de ter lugar e de que seria então mais difícil escapar.

O moço oficial compreendeu esta alternativa, o que facilmente se conhecia, ao ver a actividade que empregava para despertar o cocheiro, que dormia ou estava entorpecido de frio na almofada do carro.

Era efectivamente tão horrível o frio, que contra o costume dos cocheiros, que se enchem de emulação roubando os fregueses uns aos outros, nenhum deles se mexeu, nem sequer aquele a quem se dirigiam.

O oficial agarrou o cocheiro pela gola do miserável sobretudo, e sacudiu-o tão fortemente que o tirou do seu torpor.

– Olá! eh! – bradou-lhe o mancebo ao ouvido, vendo que começava a mexer-se. – Pronto; meu amo, pronto – disse o cocheiro sonhando ainda e cambaleando na

almofada como um ébrio. – Onde querem ir, minhas senhoras? – perguntou o oficial, sempre em alemão. – A Versalhes – respondeu a mais velha das duas senhoras continuando a falar na mesma

língua. – A Versalhes! – bradou o cocheiro; – disse Versalhes? – Certamente. – Ora pois não, a Versalhes! Quatro léguas e meia com semelhante gelo! Nada, nada,

nada. – Pagamos bem – disse a mais velha das alemãs. – Hás-de ser bem pago – repetiu em francês o oficial ao cocheiro. – Quanto me dão? – perguntou este do alto da sua almofada, porque não parecia ter

grande confiança no que lhe diziam. – Porque enfim, meu oficial, bem sabe que não é só ir a Versalhes; depois de lá estar, é preciso voltar.

– Um luís será bastante? – disse a mais nova das duas mulheres para o oficial, continuando a fingir-se alemã.

– Oferecem-te um luís! – repetiu o mancebo. – Um luís, não é grande coisa – rosnou o cocheiro – porque os cavalos correm o risco de

quebrar as pernas. – Maroto! não tens direito a mais de três francos para ir daqui ao castelo da Muette, que é

metade do caminho. Bem vês, portanto, por este cálculo, que pagando a ida e a volta, só tens direito a doze libras, e, em vez de doze, vais receber vinte e quatro.

– Oh! não faça preço – disse a mais velha das senhoras; – dois luíses, três luíses, vinte luíses... dou o que ele quiser, contanto que parta imediatamente e que caminhe sem se demorar.

– Basta um luís, minha senhora – respondeu o oficial. Depois, voltando-se para o cocheiro: – Vamos, maroto, desce da almofada e abre a portinhola. – Primeiro que tudo, quero que me paguem... – Queres! – Estou no meu direito. O oficial fez um movimento para ele. – Paguemos adiantado, paguemos – disse a mais velha. E meteu rapidamente a mão na algibeira, na firme resolução de pagar ao cocheiro. – Oh! meu Deus – disse ela em voz baixa para a sua companheira – não trago a minha

bolsa. – Deveras? – E a menina traz a sua? Andréia procurou nas suas algibeiras com a mesma ansiedade. – Eu... eu, também não. – Procure bem, menina, procure em todas as suas algibeiras.

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– É inútil – exclamou a senhora com o maior despeito, porque via o oficial segui-las com a vista durante este tempo, e o desconfiado cocheiro abria já muito a boca para sorrir, felicitando-se do que talvez em voz baixa chamasse uma feliz precaução.

Em vão procuraram as duas senhoras, nem uma nem outra achou sequer um soldo. O oficial viu-as impacientar-se, corar e empalidecer; a situação complicava-se. As duas senhoras iam decidir dar um grilhão de ouro, ou uma jóia qualquer de penhor,

quando o oficial, para lhes poupar tudo quanto pudesse ferir-lhes a delicadeza, tirou da sua bolsa um luís de ouro e entregou-o ao cocheiro.

Este recebeu o luís, examinou-o, pesou-o nos dedos, enquanto uma das duas senhoras agradecia ao oficial; depois abriu a portinhola, e a senhora meteu-se na carruagem com a sua companheira.

– E agora, maroto – disse o mancebo ao cocheiro – conduz estas senhoras bem e fielmente, ouviste?

– Oh! não é preciso recomendar isso, meu oficial: está sabido. Durante este pequeno colóquio, as duas senhoras consultaram-se. Com efeito, era com o maior terror que viam o seu guia e protector próximo a deixá-las. – Minha senhora – disse em voz baixa a mais moça à sua companheira – é preciso não o

deixar ir. – Porquê? – perguntemos-lhe o nome e a morada, e amanhã mandar-lhe-emos o seu luís

de ouro, com duas palavras de agradecimento, que lhe escreverá. – Não, minha senhora, não; tratemos de ver se fica, rogo-lhe; se o cocheiro é de má fé, se

apresentar dificuldades no caminho... Com semelhante tempo, os caminhos estão maus; a quem nos dirigiríamos nós para pedir socorro?

– Oh! temos-lhe o número e a letra de polícia. – Muito bem, minha senhora, bem sei que depois o mandará açoutar; mas, não chegará

esta noite a Versalhes, e o que dirão, santo Deus! A mais velha das duas senhoras reflectiu. – É verdade – disse ela. Mas já o oficial se inclinava para se despedir. – Senhor, senhor – disse Andréia em alemão – uma palavra, ainda uma palavra, se faz

favor. – Às suas ordens, minha senhora – redargüiu o oficial visivelmente contrariado, mas

conservando no modo, no tom e até no acento da voz a maior civilidade. – Senhor – prosseguiu Andréia – depois de tantos serviços que acaba de prestar-nos, não

pode recusar-nos uma mercê. – Queira dizer o que é? – Confessamos que temos receio deste cocheiro, que tão mal encetou a negociação. – Não tem razão de se assustar – disse ele; – eu sei o número, é o 107 e a letra de polícia é

um Z. Se ele se portar mal, dirijam-se a mim. – Ao senhor! – disse Andréia em francês; – como nos havemos de dirigir ao senhor, se

nem o seu nome sabemos? O mancebo recuou um passo. – Fala francês! – exclamou ele estupefacto – fala francês e há mais de uma hora que me

condena a escorchar o alemão! Oh! realmente, minha senhora, é mal feito. – Desculpe, senhor – disse em francês também a outra senhora, que veio

desembaraçadamente em auxílio da companheira. – Vê muito bem, que, sem talvez sermos estrangeiras, achamo-nos estranhas em Paris, e muito mais numa carruagem de aluguel. Tem bastante experiência do mundo para compreender que nos não achamos numa posição regular. Não nos servir agora até ao fim, equivaleria a um desserviço. Ser menos discreto de que até agora o tem sido, seria uma indiscrição. Nós ajuizámos bem de si, senhor; esperamos que não ajuizará mal de nós; e se nos pode prestar algum serviço, faça-o francamente, ou então permita que lhe

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agradeçamos e que procuremos outro apoio. – Minha senhora – respondeu o oficial, admirado do tom ao mesmo tempo nobre e

encantador da desconhecida – disponha de mim. – Então, senhor, tenha a bondade de vir connosco. – Na carruagem? – E de nos acompanhar. – A Versalhes? – Sim, senhor. O oficial, sem dar réplica, meteu-se na carruagem, assentou-se no banco em frente e

bradou ao cocheiro: – Vamos! Os postigos fecharam-se, as senhoras embuçaram-se nas suas peles e manteletes, a

carruagem entrou na rua de Saint-Thomas-du-Louvre, atravessou a praça do Carroussel e seguiu pelos cais.

O oficial recostou-se num canto em frente da mais velha das duas senhoras, com a sobrecasaca cuidadosamente estendida sobre os joelhos.

O silêncio mais profundo reinava no interior. O cocheiro, fosse porque quisesse fielmente cumprir o ajuste, ou fosse que a presença do

oficial o contivesse no círculo da lealdade, o cocheiro, dizemos nós, fez correr com perseverança os seus magros rocins sobre as escorregadias calçadas dos cais e da estrada da Conferência.

Entretanto, a respiração dos três viajantes aquecia insensivelmente o interior da carruagem. Um perfume delicado embalsamava o ar e levava ao cérebro do mancebo impressões que, de instante para instante, se tornavam menos desfavoráveis às suas companheiras.

– “São mulheres que se demoraram mais do que queriam nalguma entrevista – pensava ele – e que voltam para Versalhes, um pouco assustadas, um pouco envergonhadas.”

Entretanto, como é que estas senhoras – continuava o oficial a pensar – se são mulheres de distinção, como é que vinham de cabriolé, e principalmente guiado por elas mesmas?

Oh! isso pode ter uma resposta. O cabriolé era muito estreito para três pessoas, e duas mulheres não iriam incomodar-se

em fazer assentar um lacaio ao lado. Mas ambas sem dinheiro! Esta objecção é desfavorável e pede reflexão. Certamente quem tinha a bolsa havia de ser o lacaio. O cabriolé, que agora deve estar

feito em pedaços, era de uma perfeita elegância. E o cavalo?... se entendo de cavalos, aquele valia pelo menos cento e cinqüenta luíses.

Só mulheres muito ricas podem abandonar sem pena semelhante cabriolé e semelhante cavalo, portanto a falta de dinheiro não significa nelas coisa nenhuma.

Sim, mas a mania de falar uma língua estrangeira sendo francesas... Bom; isso, afinal, o que prova é óptima educação. Não é natural que aventureiras falem

alemão com uma pureza perfeitamente germânica, e francês como verdadeiras parisienses. Além disso, têm um certo modo naturalmente distinto. A súplica da mais nova era tocante. O pedido da mais velha era nobremente imperioso. Depois, realmente – continuava a pensar o mancebo dispondo a espada na carruagem de

modo que não incomodasse as suas companheiras desconhecidas – dir-se-ia que um militar corre perigo em passar duas horas numa carruagem com duas mulheres bonitas.

Bonitas e discretas – acrescentou ele – porque não falam e esperam que eu encete a conversa.

Da sua parte as duas senhoras pensavam sem dúvida no oficial assim como o oficial pensava nelas, porque no momento em que ele acabava de formular esta idéia, uma das duas senhoras, dirigindo-se à companheira, disse-lhe em inglês:

– Realmente, querida amiga, este cocheiro leva-nos como defuntos; assim, nem amanhã

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chegaremos a Versalhes. Aposto que o nosso pobre companheiro está mortalmente aborrecido? – Também – respondeu a mais nova sorrindo – a conversação não é das mais

interessantes. – Não lhe parece que tem modos de homem muito de bem? – Parece, sim, minha senhora. – Além disso, já o há-de ter notado, traz farda de marinha. – Não entendo muito de uniformes. – Pois é como lhe digo, traz uniforme de oficial de marinha, e todos os oficiais de

marinha são de boa família; e está-lhe bem. É um belo rapaz, não acha? A mais nova das duas senhoras ia responder e provavelmente abundar no sentido da

interlocutora, quando o oficial fez um gesto que a deteve. – Perdão, minhas senhoras – disse-lhes em bom inglês – devo preveni-las de que falo

correntemente inglês; mas não sei espanhol e se o falam, e quiserem conversar nessa língua, podem ter pelo menos a certeza de que as não hei-de entender.

– Senhor – redargüiu a mais velha rindo – não queríamos dizer mal do senhor, como há-de ter percebido, portanto não nos incomodemos, e falemos só em francês, se temos que dizer.

– Muito obrigado, minha senhora; mas, entretanto, no caso de lhes ser importuna a minha presença...

– Não pode supor semelhante coisa, senhor, visto que foi requisitada por nós. – Exigida até – disse a mais nova das duas senhoras. – Não me confundam, minhas senhoras, e perdoem-me um instante de indecisão;

conhecem Paris, é uma cidade cheia de laços, de decepções, de perigos... – Então, pensou que éramos... Vamos, fale com franqueza – disse uma delas. – O senhor desconfiou de nós, nada mais – acrescentou a outra. – Oh! minhas senhoras – disse o mancebo humilhando-se – juro-lhes que não tive

semelhante idéia. – Perdão; que sucedeu? a carruagem parou. – Porquê? – Vou ver, minhas senhoras. – Parece-me que o trem vai tombar; cuidado, senhor! E a mão da mais moça, estendendo-se em repentino movimento, pousou no ombro do

mancebo. A pressão daquela mão fê-lo estremecer. Por um movimento inteiramente natural, tentara pegar na mão que se apoiara nele, mas já

Andréia, que cedera a um primeiro movimento de temor, a havia retirado, recostando-se no fundo da carruagem.

O oficial, a quem nada detinha já, saiu portanto e achou o cocheiro muito ocupado em fazer levantar um dos cavalos, que se achava enleado entre os tirantes e a vara.

Viu nessa ocasião que estavam um pouco adiante da porta de Sèvres. Graças ao auxílio que o oficial prestou, o cocheiro conseguiu em pouco tempo levantar o

pobre cavalo. O mancebo entrou novamente na carruagem. Quanto ao cocheiro, felicitando-se por ter tão amável freguês, fez alegremente estalar o

chicote, com o duplo fim de se aquecer e de animar os rocinantes. Mas dir-se-ia que o frio, que penetrara pela portinhola, gelara a conversa e congelara a

nascente intimidade a que o mancebo começava a achar inexplicável encanto. Perguntaram-lhe simplesmente o que tinha acontecido, e ele contou-o. E nada mais; o silêncio veio de novo pesar sobre os viajantes. O oficial, a quem aquela mão quente e palpitante perturbara, quis pelo menos ter um pé

em troca. Estendeu portanto a perna, mas por mais hábil que fosse, nada encontrou, ou se

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encontrava, tinha o gosto de ver fugir o obstáculo. Até uma vez, tendo tocado no pé da mais velha das duas senhoras: – Incomodo-o horrivelmente, não é verdade, senhor? – lhe disse ela com o maior sangue

frio; – peço perdão! O mancebo corou, dando graças a Deus que a noite fosse escura bastante para lhe ocultar

a vermelhidão. Nada mais tentou e ali terminaram os seus empreendimentos. Tornando-se novamente mudo, imóvel e respeitoso, como se estivesse num templo, teve

medo de respirar e fez-se pequeno como uma criança. Mas a pouco e pouco, mau grado seu, uma estranha impressão lhe invadia o pensamento

e todo o ser. Achava, sem lhes tocar, as duas senhoras encantadoras; vi-as sem as ver; acostumando-se

a pouco e pouco a viver junto delas, parecia-lhe que uma parcela da sua existência vinha fundir-se na dele. Daria tudo no mundo para renovar a conversação terminada, e não o ousava; receava as banalidades, ele que ao princípio se dignava de proferir sequer uma dessas palavras, que são as mais simples da linguagem humana. Tinha medo de parecer estúpido ou impertinente diante das duas senhoras, a quem uma hora antes julgava ter feito muita honra dando-lhes a esmola de um luís e de uma cortesia.

Numa palavra, como todas as simpatias nesta vida se explicam pela relação dos fluidos postos a propósito em contacto, um poderoso magnetismo, emanado dos perfumes e do calor juvenil daqueles três corpos reunidos pelo acaso, dominava o mancebo e desabrochava-lhe na alma dilatando-lhe o coração.

Assim nascem, vivem e morrem, algumas vezes no espaço de poucos momentos, as mais verdadeiras, mais gratas, mais ardentes paixões. Têm encanto porque são efémeras, têm força porque são contidas.

O oficial não disse nem mais uma palavra. As senhoras falaram em voz baixa entre si. Entretanto, como tinha incessantemente o ouvido alerta, ouviu algumas palavras

destacadas, que todavia apresentavam um sentido à sua imaginação. Eis o que ele ouviu: – A hora adiantada... as portas... o pretexto de saída... A carruagem tornou a parar. Desta vez nem era um cavalo caído, nem uma roda quebrada. Depois de três horas de animosos esforços, o cocheiro conseguira aquecer os braços, isto

é, fizera suar os cavalos e chegara a Versalhes, cujas longas avenidas, desertas e sombrias, apareciam sob os clarões vermelhos de alguns lampiões cobertos de gelo, semelhantes a uma dupla procissão de espectros negros e descarnados.

O mancebo percebeu que tinha chegado. Por que arte mágica lhe parecera o tempo tão curto?

O cocheiro inclinou-se para o postigo da frente: – Meu amo – disse ele – estamos em Versalhes. – Onde querem parar, minhas senhoras? – perguntou o oficial. – Na praça de armas. – À praça de armas! – bradou o mancebo ao cocheiro. – É preciso ir à praça de armas? – perguntou este. – Está claro, não lho acabo de dizer? – Bem, sempre há-de haver para uma pinga? – disse o cocheiro rindo. – Vá andando. As chicotadas começaram novamente. – É preciso falar – pensou consigo o oficial. – Vou passar por estúpido, depois de ter

passado por impertinente. – Minhas senhoras – disse, hesitando ainda um pouco – estão em suas casas.

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– Graças ao seu generoso auxílio. – Que incómodo lhe demos! – disse a mais nova. – Oh! nem já disso me lembro, minha senhora. – Mas nós, senhor, nunca o esqueceremos. Tenha a bondade de nos dizer o seu nome? – O meu nome? Oh! – Tome cuidado! é a segunda vez que lhe fazemos esta pergunta. – E não quererá dar-nos de presente um luís, não é verdade? – Oh! sendo assim – disse o oficial um pouco despeitado – cedo: sou o conde de Charny.

Quanto ao mais, sou, como já notaram, oficial da marinha real. – Charny! – repetiu a mais velha das duas senhoras no tom que empregaria para dizer:

Muito bem, não me há-de esquecer. – Jorge, Jorge de Charny – acrescentou o oficial. – Jorge! – murmurou a mais nova das senhoras. – E mora? – No hotel dos príncipes, rua de Richelieu. A carruagem parou. A mais idosa abriu a portinhola do lado esquerdo, e de um salto ágil apeou-se,

estendendo a mão à companheira. – Mas pelo menos – exclamou o mancebo que se dispunha a segui-las – dignem-se aceitar

o meu braço; não estão ainda em casa, e a praça de armas não é um domicílio. – Não se afaste daí – disseram simultaneamente as desconhecidas. – Como! que me não afaste daqui? – Não; fique na carruagem. – Mas hão-de ir sós, minhas senhoras? De noite, com semelhante tempo, é impossível. – Bom! depois de ter quase recusado servir-nos, quer agora servir-nos demasiado – disse

alegremente a mais velha. – Mas... – Não há aqui mas. Seja até ao fim um leal e amável cavalheiro. Muito obrigada, Sr. de

Charny, muito obrigada do íntimo do peito; e como é um leal e amável cavalheiro, como acabei de dizer, nem a sua palavra lhe pedimos.

– A minha palavra, para quê? – Para fechar a portinhola e dizer ao cocheiro que volte para Paris; o que vai fazer, não é

verdade, sem sequer olhar para que lado vamos? – Têm razão, minhas senhoras, e seria inútil a minha palavra. Cocheiro, voltemos para

Paris. E o mancebo estremeceu de contentamento. – Com os diabos! – disse – arrebentem os cavalos se quiserem! – Pudera não, estão bem pagos se morrerem – disse o oficial em voz baixa. A carruagem partiu, e depressa. O rumor das rodas abafou um dos suspiros do mancebo,

suspiro voluptuoso, porque o sibarita deitara-se sobre as almofadas ainda quentes do calor das gentis e misteriosas desconhecidas.

Quanto a elas, deixaram-se ficar no mesmo lugar, e foi só depois de desaparecer a carruagem que se dirigiram para o palácio.

VI

A ordem Ao porem-se as duas senhoras a caminho, um forte tufão de vento trouxe-lhes aos

ouvidos o som de três quartos de hora, que davam no relógio da igreja de Saint-Louis. – Oh! meu Deus! São onze horas e três quartos – bradaram ao mesmo tempo as duas

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senhoras. – E repare que as grades estão todas fechadas – acrescentou a mais nova. – Oh! quanto a isso pouco cuidado me dá, querida Andréia; porque, ainda que as grades

estivessem abertas, decerto não havíamos de entrar pela porta principal. Vamos, depressa, depressa, vamos pelo lado das Reservas.

E ambas se dirigiram para o lado direito do palácio. Todos sabem que daquele lado há com efeito um caminho particular, que conduz aos

jardins. Chegaram a esse caminho. – A porta pequena está fechada, Andréia – disse com inquietação a mais velha das duas

senhoras. – Bate-se, minha senhora. – Não, é melhor chamar. O Lourenço deve esperar-me, preveni-o de que talvez voltasse

tarde. – Bem, então vou chamar. E Andréia aproximou-se da porta. – Quem vem lá? – bradou uma voz do interior, que nem sequer esperou que chamassem. – Oh! não é a voz de Lourenço – disse a senhora, assustada. – E não é, com efeito. A outra senhora aproximou-se também. – Lourenço! – murmurou ela através da porta. Ninguém respondeu. – Lourenço! – repetiu a senhora batendo. – Não há aqui nenhum Lourenço – redargüiu a voz asperamente. – Mas – disse Andréia insistindo – seja Lourenço ou não seja, é o mesmo, abra a porta. – Não abro. – Mas não sabe que o Lourenço costuma a abrir-nos a porta? – Bem me importa a mim com isso! Eu cumpro as ordens que me deram. – Então quem é o senhor? – Quem sou? – Sim. – E as senhoras quem são? A pergunta era um pouco brutal, mas não era ocasião para fazer observações, e importava

responder. – Somos damas de Sua Majestade, moramos no palácio e queremos entrar para nossa

casa. – Pois bem, eu, minhas senhoras, sou um suíço da primeira companhia Salischamade, e

farei o inverso do tal Lourenço, porque não lhes abrirei a porta. – Oh – murmuraram as duas senhoras, uma das quais apertou com raiva a mão da outra. Depois, fazendo um esforço, disse: – Concebo que observe as ordens que tem, isso é próprio de um bom soldado, e não

serei eu quem o faça faltar às suas obrigações; mas só lhe peço o serviço de mandar prevenir o Lourenço que não pode estar longe; nada mais.

– Não posso abandonar o meu posto. – Mande alguém. – Não está aqui ninguém. – Por favor! – Ora, adeus, minha senhora! Vá dormir a outra parte. Esta é boa! Oh! se me fechassem a

porta do quartel no nariz, eu acharia facilmente um asilo; retire-se. – Granadeiro, ouça – disse com resolução a mais velha das duas senhoras – dou-lhe vinte

luíses se abrir a porta.

Page 54: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– E dez anos de grilheta; nada, muito obrigado! Quarenta e oito libras cada ano, não é bastante.

– Farei com que o promovam a sargento. – Sim, e quem me deu as ordens manda-me fuzilar; muito agradecido! E ouviram-se os passos da sentinela, que continuava passeando. – Quem lhe deu essas ordens? – El-rei. – El-rei! – repetiram com espanto as duas senhoras – oh! estamos perdidas. A mais nova parecia quase louca. – Vejamos, vejamos – disse a mais velha – não há outras portas? – Oh! minha senhora, se fecharam esta, hão-de ter fechado as outras. – E se não achamos o Lourenço nesta porta, que é a sua, onde julga que o acharemos? – Oh! não, não há que ver, pregaram-nos uma partida. – É verdade, tem razão, Andréia, é uma horrível partida a que nos pregou el-rei! Oh! oh! E a senhora acentuou as últimas palavras em tom de desprezo e como que de ameaça. Aquela porta particular era praticada na espessura de uma parede grossa bastante, para

fazer dela uma espécie de vestíbulo. De cada lado havia um banco de pedra. As senhoras deixaram-se cair assentadas sobre os bancos, num estado de excitação que

muito se parecia com desespero. Via-se por debaixo da porta um raio luminoso; ouviam-se, por detrás, os passos do suíço,

que ora levantava, ora descansava a espingarda. Para além daquele pequeno obstáculo de madeira estava a salvação; aquém estava a

vergonha, o escândalo, quase a morte. – Oh! amanhã, amanhã! quando souberem! – murmurou a mais idosa. – Mas dirá a verdade. – E quem a acreditará? – Tem provas. Minha senhora, o soldado não há-de ficar de sentinela toda a noite – disse

a mais nova, que parecia cobrar ânimo à proporção que a companheira o perdia; – numa hora ou noutra há-de ser rendido e o sucessor será talvez mais amável. Esperemos.

– Sim, mas em dando meia noite hão-de passar patrulhas; encontrar-me-ão cá fora, esperando que me abram a porta e ocultando-me. Isto é infame! Ah! Andréia, sobe-me o sangue ao rosto e sufoca-me.

– Oh! ânimo, minha senhora! A senhora, habitualmente tão forte, e eu, ainda há pouco tão fraca, sou quem terei de a consolar!?

– Nisto, Andréia, há um trama qualquer de que somos vítimas. Nunca tal coisa sucedeu, nunca mandaram fechar a porta. Oh! isto há-de matar-me, Andréia, isto mata-me!

E recostou-se para trás como se efectivamente se sentisse sufocada. No mesmo momento, sentiram passos naquele chão seco e branco de Versalhes, que tão

pouco pisado está sendo actualmente. Ouviu-se uma voz de mancebo, alegre e feliz, que cantava uma dessas canções afectadas,

que pertencem essencialmente à época que tentamos descrever.

Porque não hei-de acreditar. Se é verdade simples, pura. Termos ambos passado a noite Ocultos na sombra escura. Morreu cerrando-me as pálpebras. Em fino aço me tornou; Do íman, tu foste a pedra Que junto a ti me arrastou.

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– Esta voz! – exclamaram as duas senhoras ao mesmo tempo. – Conheço-a – disse a mais velha. – É a de... A voz continuou a cantar:

Deus, por hábil estratagema, O íman em eco trocou.

– É ele – disse ao ouvido de Andréia a senhora, cuja inquietação tão energicamente se

manifestara; – é ele; há-de salvar-nos. E no mesmo instante, um homem envolto em vasto casacão de peles entrou no pequeno

vestíbulo, e sem ver as duas mulheres bateu à porta, chamando: – Lourenço! – Meu irmão! – disse a mais velha das duas senhoras, tocando no ombro do mancebo. – A rainha! – exclamou este dando um passo para trás e levando a mão ao chapéu. – Caluda! meu irmão. Boa noite. – Boa noite, minha senhora; boa noite, minha irmã. Não vem só? – Não; estou com Andréia de Taverney. – Ah! muito bem. Boa noite, Srª. Andréia. – Senhor... – murmurou Andréia inclinando-se. – Vão sair, minhas senhoras? – perguntou o mancebo. – Não. – Então voltam para casa? – Isso queríamos nós, mas não podemos entrar. – Não chamaram o Lourenço? – Chamamos. – E então? – Chame também por ele e verá. – Sim, sim, chame-o o senhor, e verá. O mancebo, que os nossos leitores certamente conheceram já pelo conde de Artois,

aproximou-se da porta e bradou: – Lourenço! Lourenço! vem abrir. – Bom, lá começa novamente a brincadeira – disse a voz do suíço; – previno-as que, se

continuam a atormentar-me, chamo pelo meu oficial. – Que é isto? – disse o mancebo estupefacto, voltando-se para a rainha. – É um suíço que substituíram ao Lourenço, nada mais. – E quem o substituiu? – El-rei. – El-rei! – É o que a sentinela acaba de nos dizer. – Com uma ordem?... – Ferocíssima, segundo parece. – Diacho! Capitulemos. – Como? – Dando dinheiro a este velhaco. – Ofereci-lho; rejeitou. – Ofereçamos-lhe promoção. – Também já lha ofereci. – E?... – Nada quis ouvir. – Então só temos um meio.

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– Qual é? – Fazer motim. – Vai comprometer-nos, meu querido Carlos... pelo amor de Deus! – Não ficarão por forma alguma comprometidas. – Oh! – Afastar-se-ão um pouco, que vou bater como um surdo, gritar como um cego; hão-de

acabar por abrir, e quando abrirem, entram atrás de mim. – Experimente. O príncipe começou novamente a chamar o Lourenço, depois a bater, e finalmente fez tal

motim com o punho da sua espada, que o suíço lhe bradou. – Ah! a coisa vai assim! Pois bem, eu chamo pelo meu oficial! – Com os diabos! chama por ele, maroto! é o que estou pedindo há mais de um quarto de

hora. Um instante depois ouviram-se passos do outro lado da porta. A rainha e Andréia

colocaram-se atrás do conde de Artois, prontas para se aproveitarem da passagem que, segundo todas as probabilidades, se ia abrir.

Ouviu-se o suíço explicar a causa de todo aquele motim. – Meu tenente – disse ele – são umas senhoras com um homem, que acaba de me chamar

maroto, e que querem por força entrar. – Pois que admiração é que queiramos entrar, se somos do palácio? – Esse desejo é muito natural, senhor, mas é proibido – redargüiu o oficial. – Proibido! e por quem, com os diabos? – Por el-rei. – Peço perdão, mas el-rei não pode querer que um oficial do palácio fique fora. – Senhor, não me pertence investigar as intenções de el-rei, pertence-me só cumprir as

ordens de Sua Majestade, nada mais. – Vejamos, tenente, abra um instante a porta a fim de conversarmos de outro modo, que

não seja através de umas tábuas. – Senhor, repito-lhe que tenho ordem de conservar a porta fechada. Ora, se é oficial,

como diz, deve saber o que são estas ordens. – Tenente, está falando com o coronel dum regimento. – Meu coronel, desculpe-me, mas as ordens são formais. – As ordens não são para um príncipe. Vamos, senhor, um príncipe não pode ficar no

meio da rua, e eu sou príncipe. – Meu príncipe, faz-me desesperar, mas a ordem de el-rei é positiva. – El-rei ordenou-lhe que repelisse seu irmão como se fosse um ladrão ou um mendigo?

Eu sou o conde de Artois. Com os diabos! arrisca-se muito em me deixar assim gelar fora da porta.

– Sr. conde de Artois – disse o tenente – sirva-me Deus de testemunha em que eu daria todo o meu sangue por Vossa Alteza, mas el-rei fez-me a honra de me dizer, a mim mesmo, quando me confiou a guarda desta porta, que a ninguém a abrisse, fosse quem fosse, nem mesmo a ele, el-rei, se viesse depois das onze horas. Assim, pois, senhor, peço-lhe humildemente perdão; mas sou soldado, e ainda que eu visse no seu lugar, por detrás dessa porta, Sua Majestade a rainha gelada de frio, responder-lhe-ia o mesmo que acabo de ter o desgosto de responder a Vossa Alteza.

Dito isto, o oficial deu respeitosamente as boas noites e retirou-se lentamente. Quanto ao soldado, firme no seu posto, pegado mesmo com a porta, nem sequer ousava

respirar, e o coração batia-lhe com tanta força, que o conde de Artois, encostando-se à porta, podia, se quisesse, contar-lhe as pulsações.

– Estamos perdidas – disse a rainha para seu cunhado, pegando-lhe na mão. Este não respondeu.

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– Sabem que saiu? – perguntou ele. – Não sei – respondeu a rainha. – Talvez que esta ordem me diga unicamente respeito, minha irmã. El-rei sabe que saio

algumas vezes de noite, e que muitas vezes volto tarde. A Srª. condessa de Artois terá sabido alguma coisa disso, e terá feito queixa a Sua Majestade; talvez que daí proceda esta ordem absurda e tirânica.

– Oh! não, não, meu irmão; agradeço-lhe a delicadeza com que me quer sossegar; mas é por mim, ou melhor direi contra mim, que foi tomada a medida.

– É impossível, minha irmã, el-rei tem demasiada estima... – Entretanto, estou na rua, e amanhã um horrível escândalo resultará de uma coisa bem

inocente. Oh! bem sei que tenho um inimigo junto de el-rei. – Tem junto de el-rei um inimigo? É possível, minha irmã? Pois bem, eu tenho uma idéia. – Uma idéia? Vejamos o que é. – Uma idéia, que vai tornar o seu inimigo num tolo mais tolo de que um burro enforcado

no cabresto. – Oh! contanto que nos salve da ridícula posição em que estamos, é o que lhe peço. – Salvá-la? Pudera não! Oh! eu não sou menos esperto do que ele, apesar de ele ser mais

sábio do que eu! – Ele, quem? – Ora! o Sr. conde de Provença. – Ah! então conhece o meu inimigo tão bem como eu? – Ora! não é ele inimigo de tudo quanto é moço e belo, de tudo quanto pode... o que ele

não pode!... – Meu irmão, sabe alguma coisa a respeito desta ordem? – Talvez; mas, em primeiro lugar, retiremo-nos daqui, que está um frio de rachar; venha

comigo, querida mana. – Aonde? – Verá; vamos para um sítio mais agasalhado; venha, e no caminho lhe direi a minha

opinião sobre o terem fechado esta porta. Ah! Sr. de Provença, meu caro e digno irmão! Dê-me o braço, minha irmã; tome o outro braço, Srª. de Taverney, e voltemos para a direita.

Puseram-se a caminho. – Diz então que o Sr. de Provença?... – prosseguiu a rainha. – Aí vai o caso. Esta noite, depois da ceia de el-rei, foi ele ao grande gabinete; el-rei tinha

durante o dia conversado muito com o conde de Haga, e não vira Vossa Majestade. – Às duas horas saí para Paris. – Eu bem o sabia; el-rei, permita que lho diga, querida mana, el-rei não pensava mais na

mana do que em Harum-al-Raschild e no seu grão-vizir Giaffar, e falava de geografia. Eu ouvia-o com bastante impaciência, porque tinha também necessidade de sair. Ah! perdão, provavelmente não saíamos pelo mesmo motivo, de modo que não deveria dizer...

– Diga, diga sempre... – Voltemos à esquerda. – Mas aonde me leva? – A vinte passos daqui. Tome cuidado, está aí um monte de neve. Ah! Srª. de Taverney,

se me larga o braço arrisca-se a cair, eu previno-a. Mas voltemos a el-rei. Ele não pensava senão em latitudes e longitudes, quando o Sr. de Provença lhe disse: que desejava fazer os seus cumprimentos a Sua Majestade a rainha.

– Ah! ah! – disse Maria Antonieta. – A rainha está no seu quarto – respondeu el-rei. – Ah! eu pensava que ela tinha ido a Paris – contestou meu irmão. – Não! está no seu quarto – respondeu sossegadamente el-rei. – De lá venho, e não me receberam – redargüiu o conde de Provença.

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Então vi el-rei carregar o sobrolho. Despediu-se de meu irmão e de mim, e certamente, assim que nos retirámos, foi averiguar. Luís tem momentos de ciúme, bem o sabe; terá querido vê-la, não o deixaram entrar, e terá desconfiado dalguma coisa.

– Exactamente; a Srª. de Misery tinha ordem de me negar. – É isso; e para assegurar-se da sua ausência, terá el-rei dado esta ordem severa, que nos

deixa ficar na rua. – Oh! mas confesse, conde, que é uma horrível acção! – Confesso. Mas eis-nos chegados. – Esta casa! – Não lhe agrada, mana? – Oh! não digo isso; pelo contrário, encanta-me. Mas os criados? – Então! – Se me virem... – Entre sempre, mana, e asseguro-lhe que ninguém a verá. – Nem o que me abrir a porta? – perguntou a rainha. – Nem esse. – É impossível. – Vamos ver – disse o conde de Artois, rindo. E levou a mão à porta. A rainha deteve-o. – Pelo amor de Deus, mano, cuidado! O príncipe levou a outra mão a uma almofada da porta esculpida com elegância. A porta abriu-se. A rainha não pôde reprimir um movimento de receio. – Entre, mana – disse o príncipe; – bem vê que não tem aparecido ninguém. A rainha olhou para a Srª. de Taverney como quem se aventura; entrou com um desses

gestos tão encantadores nas mulheres, e que querem dizer: – Seja o que Deus quiser! A porta fechou-se sobre eles sem rumor. Achou-se, então, num vestíbulo estucado, com rodapé de mármore; vestíbulo de

medíocre comprimento, mas de muito bom gosto. O chão era de mosaico representando ramalhetes de flores, enquanto, sobre mesas de mármore, centos de roseiras baixas e copadas metidas em vasos do Japão, desfolhavam as suas flores odoríferas, tão raras naquela época do ano.

Um suave calor, um cheiro mais suave ainda, cativavam tanto os sentidos, que apenas chegaram ao vestíbulo, as duas senhoras esqueceram não só uma parte dos seus receios, mas também uma parte dos seus escrúpulos.

– Agora, sim; aqui estamos ao abrigo – disse a rainha – e até é preciso confessar que o abrigo é muito cómodo. Mas não lhe pareceria bom tratar de uma coisa, meu irmão?

– De que? – De afastar daqui os criados. – Oh! coisa facílima. E o príncipe, avançando até ao fim da sala, puxou por uma campainha colocada numa

das meias canas de uma coluna, fez ouvir um som, produzido por um só toque, que vibrou misteriosamente nas profundezas da escada.

As duas senhoras soltaram um grito de espanto. – Então é assim que afasta os seus criados, meu irmão? Eu pensava, pelo contrário, que

era este o meio de os chamar. – Se eu tocasse segunda vez, sim, apareceria alguém; mas como só toquei uma vez,

sossegue a mana que ninguém virá. A rainha riu-se.

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– Muito bem; é homem precavido – disse ela. – Agora, querida irmã – prosseguiu o príncipe – não há-de ficar no vestíbulo; tenha o

incómodo de subir. – Obedeçamos – disse a rainha; – o génio da casa não me parece ser maléfico. E subiu. O príncipe precedi-a. A bulha dos passos era abafada pela alcatifa de Aubusson que forrava a escada. Chegando acima, o príncipe tocou outra campainha, cujo som fez novamente estremecer

a rainha e a Srª. de Taverney, que estavam desprevenidas. Mas cresceu a sua admiração quando viram as portas daquele pavimento abrirem-se por

si. – Realmente, Andréia – disse a rainha – começo a tremer, e a menina? – Eu, minha senhora, enquanto Vossa Majestade caminhar adiante, hei-de segui-la com a

maior confiança. – Nada, minha irmã, nada é mais simples do que o que se passa – disse o moço príncipe;

– a porta que lhe fica em frente é a do seu quarto. Olhe! E indicava à rainha um sítio encantador, cuja descrição não podemos omitir. Uma pequena antecâmara mobiliada de pau-santo, com dois escaparates, o tecto

primorosamente pintado, o chão de bela madeira embutida, dava para um toucador todo ornado de cachemira branca bordada com flores de ouro pelos artistas mais hábeis.

A mobília do toucador era de tapeçaria de seda bordada com a perícia, que naquele tempo fazia de um tapete dos Gobelins um quadro de mestre.

Ao toucador seguia-se um belo quarto de cama, com cortinas de rendas e de seda de Tours. Um leito sumptuoso numa alcova escura, um fogo vivo numa chaminé de mármore branco, doze velas perfumadas metidas em candelabros de Clodion, um biombo de charão azul e ouro, tais eram as maravilhas que apareceram aos olhos das senhoras, que entraram timidamente naquele elegante recinto.

Nenhum ente vivo aparecia, por toda a parte havia calor e luz, sem que fosse possível adivinhar em ponto algum as causas de tão felizes efeitos.

A rainha, que entrara receosa no toucador, hesitou um pouco antes de entrar no quarto de cama.

O príncipe pediu desculpa, com a máxima cortesia, da necessidade que o obrigava a pôr sua irmã numa confidência indigna dela.

A rainha respondeu com um meio sorriso, que exprimia muito mais do que todas as palavras que ela tivesse podido pronunciar.

– Minha irmã – acrescentou então o conde de Artois – esta é a minha casa de rapaz; sou o único que aqui entro, e sempre entro só.

– Quase sempre, quer dizer – observou a rainha. – Não, eu disse sempre. – Ah! – disse a rainha. – E demais – prosseguiu ele – há aqui no toucador um sofá e uma poltrona, sobre os

quais muitas vezes, quando a noite me surpreende depois da caça, durmo tão bem como na minha cama.

– Compreendo agora – disse a rainha – que a Srª. condessa de Artois esteja algumas vezes inquieta.

– Sim, mas a mana há-de confessar que se a condessa estiver inquieta esta noite por minha causa, não tem razão.

– Esta noite, decerto, mas outras noites... – Minha irmã, quem uma vez não tem razão nunca a tem. – Sim, sim – disse a rainha assentando-se na poltrona – estou horrivelmente cansada; e a

minha pobre Andréia também, não é assim?

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– Oh! eu sucumbo de fadiga, e se Vossa Majestade permite... – Efectivamente está empalidecendo, minha senhora – disse o conde de Artois. – Assente-se, minha querida – disse a rainha; – assente-se, deite-se mesmo, o Sr. conde de

Artois entrega-nos este quarto, não é verdade, Carlos? – Decerto, minha senhora. – Espere, conde, uma palavra mais. – O que é? – Se se retira, como o poderemos chamar, se for preciso? – A mana não precisa de mim para nada; uma vez instalada, disponha da casa como lhe

aprouver. – Há outros quartos sem ser este? – Sem dúvida; há primeiro que tudo uma casa de jantar, que a convido a visitar. – Com a mesa posta? – Ora! decerto, e sobre a qual a Srª. de Taverney, que me parece estar muito fraca, achará

um caldo, uma asa de ave e um copo de vinho de Xerez, e onde achará igualmente uma colecção de compotas, que tanto aprecia.

– E tudo isso sem criados? – Sem criados. – Veremos. Mas depois? – Depois? – Sim, para voltarmos ao palácio. – É preciso não pensar em voltar ao palácio de noite, visto que está dada a ordem. Mas a

ordem é só para de noite e acaba apenas for dia: às seis horas, abrem-se as portas. Saia daqui às seis horas menos um quarto. Achará nos armários mantas de todas as cores e de todos os feitios, se quiser ir disfarçada; entre, portanto, no palácio como eu lho digo, vá ao seu quarto, deite-se, e não se importe com mais nada.

– Mas o mano? – Como, eu? – Sim, que vai fazer? – Vou sair. – Como! É posto fora de sua casa por nós, meu pobre irmão? – Não seria conveniente que passasse a noite debaixo do mesmo tecto que a mana. – Mas enfim, precisa um abrigo, e nós roubamos este que lhe pertencia. – Ora adeus! tenho ainda mais, tenho três iguais a este. A rainha deu uma gargalhada. – E diz ele que é sem razão que a Srª. condessa de Artois tem cuidados! Eu lhe contarei

tudo – disse ela com um encantador gesto de ameaça. – E eu direi tudo a el-rei – redargüiu o príncipe no mesmo tom. – Tem razão, estamos na sua dependência. – Inteiramente; é humilhante, mas que se lhe há-de fazer? – Submeter-nos. Assim, pois, dizia que para sairmos daqui amanhã, sem encontrar

ninguém... – Basta tocar uma só vez na campainha da coluna, lá em baixo. – Em qual? na da direita ou na da esquerda? – Em qualquer delas. – E a porta fecha-se? – Por si mesma. – Obrigada. Boa noite, mano. O príncipe cortejou. Andréia fechou as portas após ele e desapareceu.

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VII

A alcova da Rainha No dia seguinte, ou antes naquela mesma manhã, porque o nosso último capítulo acabou

pelas duas horas da madrugada, el-rei Luís XVI, em trajo de manhã, sem condecorações nem pós, enfim, tal como acabava de sair do quarto, bateu à porta da antecâmara da rainha.

Uma criada entreabriu a porta, e reconhecendo el-rei, disse: – Senhor... – A rainha? – perguntou Luís XVI num tom seco. – Sua Majestade dorme, senhor. El-rei fez um gesto como para afastar a mulher, mas esta não se arredou. – Então! – disse el-rei – muito lhe custa a mexer-se! Não vê que quero passar? El-rei tinha por vezes certa prontidão de movimentos, a que os seus inimigos chamavam

brutalidade. – A rainha está descansando, senhor – observou timidamente a criada de serviço. – Eu já lhe disse, que me deixasse passar – redargüiu el-rei. E, ditas estas palavras, arredou a mulher e passou. Chegando à porta do quarto da cama, viu el-rei a Srª. de Misery, primeira aia da rainha,

que lia orações no relicário. Esta senhora levantou-se logo que viu el-rei. – Meu senhor – disse ela em voz baixa e fazendo respeitosa mesura – Sua Majestade

ainda não chamou. – Ah! deveras? – disse el-rei em tom irónico. – Mas, meu senhor, parece-me que são apenas seis horas e meia, e nunca Sua Majestade

chama antes das sete. – Está certa de que a rainha esteja na cama? Está certa de que esteja dormindo? – Meu senhor, eu não afirmarei que Sua Majestade esteja dormindo, mas tenho a certeza

de que está deitada. – Está deitada? – Está, sim, meu senhor. El-rei não se pôde conter por mais tempo. Foi direito à porta e abriu precipitadamente o

fecho dourado, o que produziu grande ruído. O quarto da rainha estava escuro como se fosse alta noite. As portas das janelas e as

cortinas estavam hermeticamente fechadas, e conservavam naquele lugar as mais profundas trevas.

Uma lamparina, que estava sobre um velador em um dos cantos mais afastados do quarto, deixava a cama da rainha inteiramente imersa na sombra, e as imensas cortinas de seda branca com flores de lis de ouro pendiam em ondas sobre o leito em desordem.

El-rei caminhou para o leito com passo rápido. – Oh! Srª. de Misery – bradou a rainha – que bulha fez! Acordou-me! El-rei parou estupefacto. – Não é a Srª. de Misery – murmurou ele. – Ah! é o senhor! – exclamou Maria Antonieta erguendo-se e assentando-se na cama. – Bons dias, minha senhora – disse el-rei em tom agridoce. – A que feliz motivo devo eu a sua visita, senhor? – perguntou a rainha. – Srª. de Misery!

Srª. de Misery! Abra as janelas. As mulheres entraram, e segundo o costume em que a rainha as pusera, abriram no

mesmo instante as portas e as janelas para dar passagem à invasão de ar puro, que Maria Antonieta respirava com delícia assim que acordava.

– Dorme com boa vontade, minha senhora – disse el-rei assentando-se ao pé da cama,

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depois de ter olhado em roda de si com um olhar investigador. – Sim, senhor, li até muito tarde, e por conseqüência, se Vossa Majestade me não tivesse

vindo acordar, ainda eu estaria dormindo. – Minha senhora, por que motivo não quis ontem receber... – Receber quem? Seu irmão, o Sr. de Provença? – disse a rainha com uma presença de

espírito que destruía as suspeitas de el-rei. – Exactamente, sim, meu irmão; ele quis cumprimentá-la, e não o deixaram entrar. – E depois? – Disseram-lhe que estava ausente. – Disseram-lhe isso? – perguntou a rainha com indiferença. – Srª. de Misery! Srª. de

Misery! A primeira aia apareceu à porta, trazendo numa bandeja de ouro uma grande quantidade

de cartas dirigidas à rainha. – Vossa Majestade chamou? – perguntou respeitosamente a Srª. de Misery. – Sim. Disseram ontem ao Sr. de Provença que eu estava fora do palácio? A Srª. de Misery, para não passar diante de el-rei, foi de roda e estendeu para a rainha a

bandeja com as cartas. Tinha debaixo dos dedos uma dessas cartas, cuja letra a rainha logo reconheceu.

– Resposta a el-rei, Srª. de Misery – prosseguiu Maria Antonieta no mesmo tom indiferente; – diga a Sua Majestade que resposta se deu ontem ao Sr. de Provença quando me veio procurar. Quanto a mim, não posso responder, porque já me não lembra.

– Meu senhor – disse a Srª. de Misery enquanto a rainha abria a carta – o Sr. conde de Provença veio aqui ontem para cumprimentar Sua Majestade, e eu respondi-lhe que Sua Majestade não recebia ninguém.

– E quem lhe mandou dar essa resposta? – A rainha. – Ah! – disse el-rei. Durante este tempo abrira a rainha a carta e lera estas linhas. “Voltou ontem de Paris e entrou em casa às oito horas da noite. Lourenço viu-a.” Depois, sempre com o mesmo modo descuidado, tinha a rainha aberto mais meia dúzia

de cartas, bilhetes e requerimentos, que ficaram todos espalhados sobre a cama. – Então? – disse ela olhando para el-rei. – Obrigado, minha senhora – disse este à primeira aia. A Srª. de Misery afastou-se. – Perdão, senhor – disse a rainha – tenha a bondade de me esclarecer num ponto. – Qual é, minha senhora? – Tenho ou não tenho eu já liberdade de ver o Sr. de Provença quando me convier? – Oh! a mais plena liberdade, minha senhora; mas... – Mas o seu espírito cansa-me; e demais, ele não gosta de mim; verdade seja que lhe pago

na mesma moeda. Eu esperava já aquela enfadonha visita e meti-me na cama às oito horas para não o receber. Que tem, senhor?

– Nada, nada. – Dir-se-ia que duvida. – Mas... – Mas o que? – Mas pensava que tinha ido ontem a Paris. – A que hora? – À hora que diz ter-se deitado. – É verdade que fui a Paris. Mas então! de Paris não se volta? – Volta, sim; depende tudo da hora a que se volta. – Ah! ah! quer então saber ao certo à que horas vim de Paris?

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– Quero. – A coisa é fácil, senhor. A rainha chamou: – Srª. de Misery! A aia tornou a aparecer. – Que horas eram quando cheguei ontem de Paris, Srª. de Misery? – perguntou a rainha. – Seriam, minha senhora, pouco mais ou menos oito horas. – Não creio – disse el-rei; – está enganada, Srª. de Misery: vá perguntar. A aia, direita e impassível, voltou-se para a porta. – Srª. Duval! – bradou ela. – Minha senhora! – respondeu uma voz. – A que horas voltou Sua Majestade ontem à noite de Paris? – Seriam oito horas, minha senhora – disse a segunda aia. – Não está enganada, Srª. Duval? – disse a Srª. de Misery. A Srª. Duval inclinou-se pela janela da antecâmara, e bradou: – Lourenço! – Quem é esse Lourenço? – perguntou el-rei. – É o guarda da porta por onde Sua Majestade entrou ontem – disse a Srª. de Misery. – Lourenço! – chamou a Srª. de Duval – a que horas entrou ontem Sua Majestade? – Seriam oito horas – respondeu Lourenço do terraço onde estava. El-rei abanou a cabeça. A Srª. de Misery despediu a Srª. Duval, e esta despediu Lourenço. Os dois esposos ficaram sós. Luís XVI estava envergonhado e fazia quantos esforços podia para disfarçar essa

vergonha. Mas a rainha, em vez de se mostrar triunfante pela vitória que acabava de alcançar, disse-

lhe friamente: – Vamos, senhor, que mais deseja saber? – Oh! nada, nada – bradou el-rei apertando nas suas a linda mão de sua mulher; – nada! – Contudo... – Perdoe-me, minha senhora, nem eu sei o que me tinha passado pela cabeça. Vê a minha

alegria, é tão viva como o meu arrependimento. Não me queira mal por isto, não é verdade? não esteja de mau modo : à fé de gentil-homem, que isso desespera-me.

A rainha, um pouco despeitada, retirou a mão que estava entre as de el-rei. – Então! que está fazendo? – perguntou Luís. – Senhor – disse Maria Antonieta – uma rainha de França não mente! – E depois? – perguntou el-rei admirado. – Quero dizer que não voltei ontem às oito horas da noite! El-rei recuou admirado. – Quero dizer – prosseguiu a rainha com o mesmo sangue-frio – que não voltei senão

esta manhã às seis horas. – Senhora! – E que, se não fosse o Sr. conde de Artois, que por dó me ofereceu um asilo numa casa

sua, tinha eu de passar a noite no meio da rua, como se fosse uma mendiga. – Ah! não tinha voltado – disse el-rei em tom severo; – então tinha eu razão? – Senhor, permita que lho diga, tira do que acabo de dizer uma solução de aritmético, mas

não uma conclusão de cavalheiro. – Por que, minha senhora? – Para saber se eu voltava tarde ou cedo, não tinha necessidade, nem de mandar fechar a

porta do seu palácio, nem de dar semelhantes ordens às sentinelas; bastava para isso vir ter comigo, e perguntar-me: A que horas volta, senhora? Pode crer que lhe responderia a verdade.

Page 64: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– Oh! – disse el-rei. – Já lhe não é permitido duvidar, senhor; os seus espiões foram enganados ou

subornados, as suas portas arrombadas ou abertas, a sua apreensão combatida, as suas desconfianças dissipadas. Eu vi-o envergonhado de ter usado de violência contra uma mulher, no seu direito. Eu podia continuar a gozar da minha vitória. Mas acho o seu procedimento vergonhoso para um rei, impróprio de um fidalgo, e não quero privar-me da satisfação de lho lançar em rosto.

O rei endireitou os bofes da camisa, como homem que medita uma réplica. – Oh! é escusado, senhor – disse a rainha abanando a cabeça – nunca poderá desculpar o

seu procedimento para comigo. – Pelo contrário, minha senhora, é coisa facílima – respondeu el-rei. – Havia porventura

aqui no palácio uma única pessoa sequer, que duvidasse de que estivesse já de volta? Pois, se todos pensavam que estava no palácio, ninguém poderia pensar que era por sua causa a ordem dada à sentinela. Que a atribuíssem às dissipações do Sr. conde de Artois ou de qualquer outro, pouco cuidado me dá.

– E depois, senhor? – interrompeu a rainha. – Depois? eu resumo e digo: se salvei para si as aparências, minha senhora, tenho razão, e

digo-lhe que a Antonieta não a tem, que não praticou o mesmo para comigo; e se eu quis simplesmente dar-lhe uma lição secreta, se a lição lhe aproveita, como creio, ao ver a irritação que me testemunha, ainda mais me convenço de que tenho razão, e que tudo quanto fiz foi bem feito.

Sossegando a pouco e pouco, tinha a rainha ouvido a resposta de seu augusto marido; não que ela estivesse menos irritada, senão porque queria guardar todas as forças para a luta que, na sua opinião, em lugar de estar terminada, apenas começava.

– Muito bem – disse ela; – então não se desculpa de ter feito esperar fora da porta de sua casa, como teria feito a qualquer pessoa avulsa, a filha de Maria Teresa, sua mulher, a mãe dos seus filhos? Não, no seu entender é um brinquedo perfeitamente real, cheio de sal ático e cujo valor de mais a mais aumenta pela moralidade. Assim, segundo entende, é a coisa mais natural do mundo ter obrigado a rainha de França a passar a noite na casa onde o Sr. conde de Artois recebe as raparigas do teatro e as mulheres que o querem ouvir? Oh! isso de nada vale, um rei deve ser superior a todas essas misérias, e principalmente um rei filósofo, e o Sr. é filósofo! Note bem, nisto tudo o melhor papel foi o que desempenhou o Sr. conde de Artois. Prestou-me um serviço relevante. Note bem, que tive de dar graças a Deus de que meu cunhado fosse um rapaz extravagante, porque a sua extravagância serviu de capa à minha vergonha, porque os seus vícios foram a defesa da minha honra.

El-rei corou e agitou-se desassossegadamente na poltrona em que estava sentado. – Oh! – continuou a rainha – eu bem sei que é um rei moral, senhor! Mas já pensou

porventura qual será o resultado da sua moral? Ninguém sabia que eu estava fora, diz o senhor, e o senhor pensava que eu estivesse aqui!? Dirá também que assim o acreditou o seu instigador, o Sr. de Provença? Dirá que o Sr. de Artois o acreditou? Dirá que o acreditaram as minhas aias, que por ordem minha lhe mentiram esta manhã? Dirá que o acreditou Lourenço, comprado pelo Sr. conde de Artois e por mim? Ora, o rei tem sempre razão, mas é certo que a rainha pode também tê-la algumas vezes. Acostumemo-nos a isto, senhor, quer? Continue a mandar-me espiões e guardas suíços, e eu continuarei a comprar uns e outros, e juro-lhe que antes de um mês, porque bem me conhece e sabe que hei-de cumprir o que digo, antes de um mês, repito, algum dia pela manhã somaremos tudo junto, a majestade do trono e a dignidade do casamento, como hoje, por exemplo, e veremos o que nos custará isso a ambos.

Era evidente que estas palavras tinham produzido grande efeito naquele a quem eram dirigidas.

– Sabe muito bem – disse el-rei com voz alterada – que sou sincero, e que sempre confesso os meus erros. Quer provar-me que teve razão em sair de Versalhes, com homens do seu séquito, estouvados, que a comprometem nas graves circunstâncias em que nos achamos?!

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Quer provar-me que teve razão em desaparecer com eles em Paris, como mascarados num baile, e em só aparecer de noite, escandalosamente tarde, quando a minha luz se apagava no meu trabalho, e já toda a gente dormia? Falou da dignidade do casamento, da majestade do trono e da sua qualidade de mãe. O que acaba de fazer, julga que é digno de uma esposa, de uma rainha, de uma mãe?

– Em duas palavras vou responder-lhe, senhor, e previno-o de que o vou fazer mais desdenhosamente do que até agora, porque, na realidade, parece-me que certas partes da sua acusação só merecem o meu desprezo. Saí de Versalhes em trenó, para chegar mais depressa a Paris; saí com a Srª. de Taverney, que, graças a Deus, goza da reputação mais pura da corte, e fui a Paris, verificar, por meus próprios olhos, que o rei de França, esse pai da grande família, esse rei filósofo, esse sustento moral de todas as consciências, ele que deu de comer aos pobres estranhos, que agasalhou os mendigos e mereceu o amor do povo pelo seu génio benfazejo; quis verificar, dizia eu, que o rei deixava morrer de fanas, sepultado no esquecimento, exposto a todos os ataques do vício e da miséria, alguém da sua família, tanto como o rei: enfim, um descendente de um dos reis que governam a França.

– Eu! – disse el-rei admirado. – Subi – prosseguiu a rainha – a uma espécie de água-furtada, e vi, sem lume, sem

dinheiro, a neta de um grande príncipe; dei cem luíses à vítima do esquecimento, da negligência real. E como me demorei, reflectindo na insignificância das nossas grandezas neste mundo, porque eu também sou algumas vezes filósofa, como o frio era intenso, e quando gela, os cavalos não andam bem, principalmente os cavalos de uma carruagem de aluguel...

– Os cavalos de uma carruagem de aluguel! – exclamou el-rei. – Voltou em carruagem de aluguel?

– Sim, senhor, no número 107. – Oh! oh! – murmurou el-rei balanceando a perna direita que estava cruzada sobre a

esquerda, o que era nele sintoma de viva impaciência. – Em carruagem de aluguel! – Sim, e muito feliz me considero ainda por ter achado essa carruagem – redargüiu a

rainha. – Minha senhora – interrompeu el-rei – procedeu muito bem; tem sempre inspirações

nobres, talvez pouco reflectidas, mas a culpa é do ardor de generosidade que tanto a distingue. – Obrigada, senhor – respondeu a rainha em tom de zombaria. – Note bem – prosseguiu el-rei – que não a acusei de nenhuma acção desonrosa ou ilegal;

só o que me desagradou foi o seu procedimento um pouco arriscado e aventuroso; fez o bem como sempre: mas fazendo bem aos mais, achou meio de fazer mal a si. É de que a acuso. Agora, tenho que reparar algum esquecimento, tenho que acudir a uma família de reis? Estou pronto: diga-me quem é, que eu não me demorarei em acudir.

– O nome de Valois, senhor, é ilustre bastante, creio eu, para estar presente na sua memória.

– Ah! – exclamou Luís XVI com uma estrondosa gargalhada – já sei de quem quer falar. Da pequena Valois, não é verdade? uma condessita de... Espere... de...

– De La Motte. – É isso mesmo; de La Motte; o marido é gendarme? – É, sim, senhor. – E a mulher uma intrigante? Oh! não se enfade; ela tem revolvido céu e terra; não larga

os ministros, persegue as minhas tias, carrega-me a mim mesmo de súplicas, de requerimentos, de provas genealógicas.

– Ah! .senhor, o que isso prova é que até hoje tem ela reclamado sempre em vão, e nada mais.

– Não digo o Contrário! – É ela Valois ou não é? – Ah! sim, por certo que o é.

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– Então, dê-lhe uma pensão. Uma pensão honrosa para ela, um regimento para o marido, um estado enfim para aqueles ramos da árvore real.

– Oh! devagar, minha senhora. Diacho, como vai longe a sua generosidade! A Valois há-de arrancar-me sempre bastantes penas sem precisar do seu auxílio; descanse, que ela tem bom bico!

– Oh! nada receio pelo senhor; as suas penas não caem com facilidade. – Uma pensão honrosa! Santo Deus! como vai longe a sua generosidade, minha senhora!

Não sabe a terrível sangria que este inverno ela deu à minha bolsa?... Um regimento àquele gendarmesito, que fez a especulação de casar com uma Valois! Nem eu tenho já regimentos que dar, minha senhora, nem àqueles que os pagam ou que os merecem. Dar a esses mendigos um estado digno dos reis de que descendem! Ora adeus! quando nós mesmos, os reis, não temos já sequer um estado digno dos ricos particulares. O Sr. duque de Orleans mandou para Inglaterra os seus cavalos e mulas para se venderem, e suprimiu dois terços do pessoal da sua casa. Eu suprimi também muitas despesas. O Sr. de Saint-Germain fez-me reformar a minha casa militar. Todos vivemos com privações, minha querida, tanto os grandes como os pequenos.

– Mas, senhor, não se devem deixar morrer de fome os Valois! – Não me disse que lhe tinha dado cem luíses? – Ora! bela esmola! – É uma esmola real. – Dê-lhe outro tanto. – Deus me livre. O que a senhora lhe deu é por ambos. – Então, conceda-lhe uma pequena pensão. – Não, não; coisa nenhuma fixa. Essa gente terá o cuidado de nos apanhar bastante,

porque são da classe dos roedores. Quando eu tiver vontade de dar, eu darei uma soma sem precedentes, sem obrigações futuras. Numa palavra, eu darei quando o dinheiro me sobejar. Esta Valois... na realidade, nem lhe posso contar tudo quanto sei dela. O seu bom coração fê-la cair num laço, minha querida Antonieta. Peço perdão ao seu bom coração.

E dizendo estas palavras, Luís estendeu a mão à rainha, que, cedendo a um primeiro movimento, a levou aos lábios.

Depois, repelindo-a repentinamente, disse: – Já não é meu amigo, e eu estou por isso muito mal com o senhor. – Está mal comigo?! Pois eu... eu... – Oh! sim, diga que é meu amigo, o senhor, que mandou fechar-me as portas de

Versalhes; que às seis horas da madrugada vem aos meus aposentos, abre as portas, entra à força e olha para todos os lados com olhos furibundos!

El-rei riu-se. – Não – disse ele – não lhe quero mal. – Já me não quer mal, é o que deve dizer. – Que me dará se eu lhe provar que não lhe queria mal, mesmo quando aqui vim? – Vejamos primeiramente a prova do que diz. – Oh! É coisa fácil – redargüiu el-rei – a prova trago-a na algibeira. – Ora! – bradou a rainha com curiosidade, assentando-se na cama; – tem alguma coisa

para me dar? Oh! então é realmente muito amável: mas não o acreditarei senão mostrando-me imediatamente a prova; compreende-me bem? Oh! nada de subterfúgios. Aposto que vai fazer-me alguma promessa?

Então, com um sorriso cheio de bondade, el-rei meteu a mão na algibeira, com a lentidão que aumenta o desejo, que faz morrer de impaciência a criança quando espera que lhe dêem um brinquedo, o animal quando espera alguma coisa para comer, a mulher quando espera um presente. Finalmente, tirou da algibeira uma caixa de marroquim escarlate artisticamente dourada e enfeitada.

– Um adereço! – disse a rainha; – oh! vejamos.

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Apenas tinha aberto a caixa, quando ébria e deslumbrada, exclamou: – Oh! como é belo! meu Deus, como é belo! El-rei sentiu um estremecimento de alegria, que lhe nascia do coração. – Acha isso? – disse ele. A rainha nem podia responder, tal era o estado de comoção em que ficou. Tirou então de dentro da caixa um colar de brilhantes, tão grandes, tão puros, tão

luminosos e tão habilmente engastados, que lhe pareceu ver correr-lhe nas mãos um rio de fósforo e de chamas.

O colar formava ondas como as roscas de uma serpente cujas escamas fossem todas de fogo.

– Oh! é magnífico – disse finalmente a rainha, assim que pôde articular algumas palavras – é magnífico – repetiu ela com uns olhos que se animavam, fosse ao contacto dos riquíssimos brilhantes, fosse porque se lembrasse que mulher nenhuma no mundo poderia ter um colar igual àquele.

– Então, está contente? – disse el-rei. – Entusiasmada, senhor. Dá-me assim demasiada felicidade. – Realmente! – Veja esta primeira fiada, os brilhantes são do tamanho de avelãs. – Efectivamente, são bons. – E tão semelhantes! Não se poderiam distinguir uns dos outros. Como está habilmente

combinada a gradação dos tamanhos! Que elegantes proporções entre as diferenças da primeira fiada à segunda, e da segunda à terceira! O ourives que reuniu estes brilhantes e fez o colar é decerto um grande artista.

– Foram dois. – Aposto então que foram Bohemer & Bossange? – Adivinhou. – Na verdade não há como eles para tentar semelhantes empresas. Como isto é belo! – Cuidado, minha senhora, cuidado – disse el-rei – que paga por esse colar muito mais do

que ele vale. – Oh! – exclamou a rainha. – Oh! senhor. E de repente anuviou-se-lhe a fronte radiante. Esta mudança na fisionomia foi tão rápida em se operar e tão rápida em desaparecer, que

nem el-rei teve tempo de notá-la. – Vamos – disse ele – conceda-me um prazer. – Qual? – O de lhe pôr este colar ao pescoço. A rainha deteve-o. – É muito caro, não é verdade? – disse ela tristemente. – É, sim – redargüiu el-rei rindo; – mas já lho disse, acaba de mo pagar por mais do que

vale, e só no seu lugar, isto é, no seu pescoço, é que deverá ter verdadeiro valor. E dizendo isto, Luís aproximou-se da rainha, segurando nas mãos as duas extremidades

do magnífico colar, para o fixar no pescoço pelo fecho, que era também formado por um grande brilhante.

– Não, não -disse a rainha – nada de criancices. Guarde o colar na caixa, senhor. E abanou a cabeça. – Recusa-me o prazer de lho ver no pescoço primeiro que ninguém? – Deus me livre de lhe negar esse prazer, se eu aceitasse o colar; mas... – Mas... – disse o rei admirado. – Mas nem o senhor, nem pessoa alguma verá no meu pescoço um colar deste preço. – Não o quer pôr? – Nunca!

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– Rejeita-o? – Recuso pôr ao pescoço um milhão, ou talvez milhão e meio, porque enfim, eu avalio

este colar num milhão e quinhentas mil libras; não é verdade? – Não digo que não – redargüiu el-rei. – Recuso pôr ao pescoço milhão e meio, quando os cofres do rei estão vazios, quando o

rei se vê obrigado a medir os socorros e a dizer aos pobres: Já não tenho mais dinheiro, Deus os favoreça!

– Como! é sério o que está dizendo? – Olhe! uma vez disse-me o Sr. de Sartines, que se podia ter uma nau de linha com um

milhão e quinhentas mil libras, e na realidade, senhor, é mais necessária uma nau ao rei de França do que um colar à rainha.

– Oh! – bradou el-rei no cúmulo da alegria e com os olhos rasos de água – oh! essa acção é sublime. Mil vezes agradecido, Antonieta! É uma santa mulher. E para dignamente coroar a sua demonstração cordial e burguesa, o bom rei lançou os braços ao pescoço de Maria Antonieta, e deu-lhe um beijo.

– Oh! como será abençoada em França, minha senhora – bradou ele – quando conhecerem esta acção tão sublime.

A rainha suspirou. – Se isso é um suspiro de arrependimento, está ainda a tempo – disse el-rei com

vivacidade. – Não, senhor, é um suspiro de alívio; guarde o adereço e restitua-o aos ourives. – Eu tinha já disposto as prestações para o pagamento e o dinheiro está pronto; vejamos,

que hei-de fazer dele? Não seja tão desinteressada, minha senhora. – Não, eu já reflecti bem. Não, decididamente, senhor, não quero esse colar; mas quero

outra coisa. – Diacho! quer cercear alguma coisa do milhão e seiscentas mil libras? – Um milhão e seiscentas mil libras? Pois quê! era tão caro? – Na verdade, minha senhora, já que me escapou o preço não me desdigo. – Sossegue: o que quero pedir não é tão caro. – Que me pede? – Licença para ir outra vez a Paris. – Oh! isso é fácil, e não é caro. – Espere! espere! – Diacho! – A Paris, à praça Vendôme. – Diacho! – A casa de Mesmer. El-rei abanou a cabeça. – Enfim disse ele – rejeitou um presente de um milhão e seiscentas mil libras, não é

muito que eu lhe conceda isso. Vá pois a casa de Mesmer, mas permita que lhe ponha uma condição.

– Qual? – De ir acompanhada por uma princesa de sangue. A rainha, depois de reflectir, disse: – Quer que vá com a Srª. de Lamballe? – Com a Srª. de Lamballe? Pois sim. – Está dito? – Concedido. – Obrigada. – E vou imediatamente encomendar a nau de linha – acrescentou el-rei – que há-de ser

baptizada com o nome de Colar da Rainha. A senhora será a madrinha, e a nau hei-de mandá-la a

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Lapeyrouse. El-rei beijou a mão de sua mulher e saiu alegremente do quarto.

VIII

O erguer da Rainha

Apenas el-rei saiu, a rainha ergueu-se e foi para a janela respirar o ar puro e frio da

manhã. O dia estava brilhante e cheio desse encanto, que a chegada da primavera muitas vezes dá

aos dias de Abril. Aos gelos da noite sucedia o suave calor de um sol já sensível. O vento mudara do Norte para Leste.

Se o vento se conservasse naquela direcção, o inverno, esse terrível inverno de 1784, estava acabado.

Com efeito, já se via surgir no horizonte vermelho esse vapor cinzento, que não passa da umidade fugindo diante do sol.

Nos jardins ia caindo gradualmente o gelo dos ramos, e os passarinhos começavam já a empoleirar-se nalguns rebentos novos.

A flor de Abril, semelhante às pobres flores de que o Dante nos fala, erguia do centro da neve apenas derretida o cimo enegrecido, e por baixo das folhas da violeta, grossas, duras e largas, o botão oblongo da flor misteriosa lançava os dois folíolos elípticos, que nelas precede o perfume e o desabrochar.

Nas ruas da quinta, por sobre as estátuas e por sobre as grades de ferro, via-se o gelo escorregar como diamantes; não era bem água nem propriamente gelo.

Tudo anunciava a luta surda da primavera com o inverno, e pressagiava a sua próxima conquista.

– Se quisermos aproveitar ainda o gelo – disse a rainha interrogando a atmosfera – creio que nos devemos apressar. Não é verdade, Srª. de Misery – acrescentou voltando-se – porque temos a primavera à porta?

– Há muito tempo que Vossa Majestade estava com desejo de dar um passeio no lago dos Suíços – redargüiu a primeira aia da rainha.

– Pois daremos esse passeio hoje mesmo – disse a rainha – porque amanhã talvez seja tarde.

– Então a que horas quer Vossa Majestade vestir-se? – Já; almoçarei levemente e sairei em seguida. – São unicamente essas as ordens da rainha? – Mande saber se a Srª. de Taverney está levantada, e dizer-lhe que desejo falar-lhe. – A Srª. de Taverney está no gabinete de Vossa Majestade – redargüiu a primeira aia. – Já? – perguntou a rainha, que melhor que ninguém sabia a que horas Andréia se deitara. – Oh! minha senhora, há já mais de vinte minutos que ela espera. – Mande-a entrar. Com efeito, Andréia entrou no quarto da rainha no momento em que o relógio do pátio

de mármore dava nove horas. Já esmeradamente vestida como as senhoras da corte, que não tinham direito de se

apresentar em trajos de manhã diante da soberana, a Srª. de Taverney chegou sorrindo-se, mas dando sinais de inquietação.

A rainha também sorriu, o que sossegou Andréia. – Basta, minha boa Misery – disse ela – mande-me o Leonardo, o meu cabeleireiro. Depois, seguindo com os olhos a Srª. de Misery e vendo cair o reposteiro, disse: – Nada! El-rei esteve encantador, riu-se e ficou, desarmado. – Mas Sua Majestade soube? – perguntou Andréia.

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– Bem deve compreender, Andréia, que é inútil a mentira, quando se não tem culpa e se é rainha de França.

– É verdade, minha senhora – respondeu Andréia corando. – No entanto, minha querida Andréia, parece que fizemos mal numa coisa. – Numa coisa só, minha senhora? Talvez em mais de uma. – É possível; mas, enfim, falo de uma: foi de nos termos interessado pela Srª. de La

Motte; el-rei não gosta dela; contudo a mim, confesso, agradou-me. – Oh! Vossa Majestade é muito bom juiz para que os seus decretos deixem de ser justos. – Aqui está o Leonardo, minha senhora – disse a Srª. de Misery entrando. A rainha assentou-se diante do toucador, e o célebre cabeleireiro começou a sua tarefa. A rainha tinha os mais lindos cabelos do mundo, e a sua presunção consistia em fazê-los

admirar. Leonardo sabia isso, e em lugar de penteá-la rapidamente, como faria a qualquer outra

senhora, deixava à rainha o tempo e a satisfação de admirar-se a si mesma. Nesse dia Maria Antonieta estava contente e até alegre; a sua formosura resplendia.

Quando desviava os olhos do espelho fixava-os em Andréia com expressão de máximo afecto. – Com a menina não ralharam – disse ela; – com a menina, que é livre e altiva, e a quem

todos respeitam, porque, como a divina Minerva, é virtuosíssima. – Eu, minha senhora! – balbuciou Andréia. – Sim, a menina, o desespero de todos os estorninhos da corte. Oh! quanto é feliz no seu

estado de solteira, Andréia, e principalmente por se considerar feliz em o ser! Andréia corou e quis sorrir. – Foi um voto que fiz -– disse ela. – E que há-de cumprir, minha formosa vestal? – perguntou a rainha. – Assim o espero. – A propósito – bradou a rainha – lembra-me... – O que, minha senhora? – Que, sem ser casada, tem contudo desde ontem um senhor. – Um senhor! – Sim, o seu caro irmão. Como se chama ele?... Filipe, creio eu? – Sim, minha senhora, é Filipe. – Sempre chegou? – Ontem mesmo, como Vossa Majestade me fez honra de dizer. – E ainda o não viu? Egoísta que eu sou! separei-a dele ontem para a levar a Paris. Na

realidade, é imperdoável. – Oh! minha senhora – disse Andréia sorrindo – de todo o coração lho perdôo, e Filipe

também. – Isso é certo? – Eu respondo por tudo. – Quanto à menina? – Quanto a mim e quanto a ele. – Como está ele? – Sempre belo e sempre bom, minha senhora. – Que idade tem ele agora? – Trinta e dois anos. – Pobre Filipe! Sabe que haverá alguns catorze anos que o conheço, e que nesse lapso de

tempo estive nove ou dez anos sem o ver? – Quando Vossa Majestade houver por bem recebê-lo, ele há-de julgar-se felicíssimo por

poder vir assegurar a Vossa Majestade que a ausência não influiu em mal nos sentimentos de profundo respeito e devoção, que sempre consagrou à rainha.

– Posso vê-lo imediatamente?

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– Se Vossa Majestade o permite, poderá, dentro de um quarto de hora, estar aos pés de Vossa Majestade.

– Pois bem! permito-o; ordeno até que venha. Apenas acabava a rainha de pronunciar estas palavras quando entrou alguém rápida e

alegremente, ou melhor diremos, apareceu no gabinete da rainha, e veio mostrar o rosto risonho e zombeteiro no mesmo espelho em que Maria Antonieta admirava o seu.

– Meu irmão de Artois! – disse a rainha; – ah! na realidade, meteu-me medo. – Bons dias a Vossa Majestade! – disse o jovem príncipe; – como passou Vossa Majestade

a noite? – Muito mal; muito obrigada, meu irmão. – E a manhã? – Muito bem. – Isso é o essencial. Ainda há pouco me persuadi de que tudo se tinha passado bem,

porque encontrei el-rei e mostrou-me um sorriso delicioso. O que é a confiança! A rainha riu-se; o conde de Artois, que nada mais sabia, riu também, mas por algum outro

motivo. – Mas, é verdade – disse ele – que estouvado que eu sou! nem sequer perguntei à Srª. de

Taverney em que empregou o tempo. A rainha olhou para o espelho, graças ao qual nada do que se passava no quarto lhe

escapava. Leonardo concluíra o penteado, e a rainha, tirando o penteador de cassa da índia, vestiu

um roupão de manhã. A porta abriu-se. – Olhe – disse ela ao conde de Artois – se quer saber alguma coisa de Andréia, aí a tem. Com efeito, naquele momento entrava Andréia conduzindo pela mão um belo rapaz

trigueiro, de olhos pretos, cheios de nobreza e melancolia, um vigoroso soldado de fronte inteligente, garbo severo, semelhante a esses belos retratos como os pintam Coypel e Gainsboroug.

Filipe de Taverney vestia um fato cinzento escuro, bordado de prata; mas aquela cor cinzenta parecia negra, a prata parecia ferro; a gravata branca e os bofes da camisa, igualmente brancos, destacavam ao lado da casaca de cor escura, e os pós do penteado realçavam a varonil energia da tez e das feições.

Filipe adiantou-se, levado pela mão da irmã, e segurando na outra o chapéu. – Minha senhora – disse Andréia, inclinando-se com respeito – aqui está meu irmão. Filipe cortejou com gravidade. Quando ergueu a cabeça, ainda a rainha não tinha cessado de olhar para o espelho. É

certo, porém, que no espelho via Filipe tão bem como se tivera olhado para ele de frente. – Bons dias, Sr. de Taverney – disse a rainha. E voltou-se ao dizer estas palavras. Tinha a deslumbrante e real formosura, que confundia em roda do seu trono os amigos

da realeza e os adoradores da mulher. Tinha o poder da formosura, e, perdoe-se-nos a inversão da idéia, tinha também a formosura do poder.

Filipe, vendo-a sorrir, sentindo aquele olhar límpido, soberbo e doce ao mesmo tempo, fitar-se nele, empalideceu e mostrou em toda a sua pessoa a mais viva comoção.

– Segundo parece, Sr. de Taverney, foi para nós a sua primeira visita? Muito obrigada. – Vossa Majestade digna-se esquecer que sou eu quem devo agradecer – redargüiu Filipe. – Tantos anos – disse a rainha – tanto tempo se tem passado desde a última vez que nos

vimos! oh, o mais belo tempo da vida! – Para mim, sim, minha senhora; mas não para Vossa Majestade, para quem todos os dias

são dias de felicidade. – Gostou então muito da América, Sr. de Taverney, para assim se deixar por lá ficar,

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quando toda a gente voltava? – Minha senhora, o Sr. de Lafayette, quando se retirou do Novo-Mundo, precisava de um

oficial de confiança a quem pudesse deixar uma parte do comando dos auxiliares. Em conseqüência disto, propôs-me ao general Washington, que se dignou aceitar-me.

– Parece – disse a rainha – que desse novo mundo de que fala vêm muitos heróis? – Não é aludindo a mim que Vossa Majestade diz isso – respondeu Filipe sorrindo. – E por que não? – disse a rainha. Depois, voltando-se para o conde de Artois: – Olhe, meu irmão – disse a rainha – que belo ar marcial que tem o Sr. de Taverney! Filipe, vendo-se assim posto em relação com o conde de Artois, que não conhecia, deu

para ele um passo, solicitando do príncipe a permissão de o cumprimentar. O conde fez um sinal com a mão; Filipe inclinou-se. – Um belo oficial! – bradou o jovem príncipe; – um nobre e gentil fidalgo, com quem

estimo muito ter ocasião de ligar amizade. Quais são as suas intenções voltando assim à França? Filipe olhou para sua irmã. – Senhor – disse ele – tenho o interesse da minha irmã que domina o meu; hei-de fazer o

que ela quiser que eu faça. – Mas – disse o conde de Artois – creio que há ainda o Sr. de Taverney pai. – Ah! não importa – interrompeu vivamente a rainha – gosto mais que Andréia esteja

aqui sob a protecção de seu irmão do que sob a do pai. O conde, encarrega-se de Taverney, não é verdade?

O conde de Artois fez um sinal de assentimento. – Sabe o senhor – prosseguiu a rainha – que nos ligam laços muito estreitos? – Laços muito estreitos!... Oh! por favor, conte-me isso, minha irmã. – Sim, o Sr. Filipe de Taverney foi o primeiro francês que eu vi quando entrei em França,

e eu tinha prometido sinceramente que havia de fazer a felicidade do primeiro francês que encontrasse.

Filipe sentiu subir-lhe a cor ao rosto, e mordeu os lábios para parecer impassível. Andréia olhou para ele e abaixou a cabeça. Maria Antonieta surpreendeu um desses olhares que o irmão e a irmã tinham trocado

entre si. Como teria ela adivinhado tudo quanto semelhante olhar ocultava de segredos dolorosamente acumulados?

Maria Antonieta nada sabia dos acontecimentos que relatámos na primeira parte desta história.

A aparente tristeza que se apoderou deles, atribuiu-a a rainha a outra causa. Por que motivo, quando tanta gente se tinha namorado da rainha em 1774, não teria também o Sr. de Taverney padecido um pouco desse amor epidémico dos Franceses pela filha de Maria Teresa?

Nada havia que tornasse inverossímil essa suposição, nem sequer o exame efectuado no espelho dessa formosura de rapariga, que era agora mulher e rainha.

Maria Antonieta atribuiu portanto o suspiro de Filipe a alguma confidência deste género feita pelo irmão à irmã; sorriu para o irmão, e acariciou a irmã com um dos seus olhares mais meigos. Não adivinhara inteiramente, mas não se tinha totalmente enganado; e naquela inocente idéia não se atreva pessoa alguma a ver um crime: a rainha foi sempre mulher e gloriava-se de ser amada. Certas almas têm essa aspiração para a simpatia de tudo o que as cerca. E não são estas as almas menos generosas deste mundo.

Ah! um momento virá, pobre rainha, em que esse sorriso que te levam a mal e que diriges às pessoas que te amam, em vão o dirigirás às pessoas que já te não tiverem amor!

O conde de Artois aproximou-se de Filipe enquanto a rainha consultava Andréia sobre o adorno de um vestido de caça.

– É realmente um grande general, o Sr. de Washington? – É um grande homem, Sr. Infante.

Page 73: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– E que efeito faziam lá os Franceses? – Faziam, em bem, o mesmo efeito que os Ingleses faziam em mal. – Bem; é partidário das idéias novas, meu caro Sr. Filipe de Taverney. Mas pensou bem

numa coisa? – Em que, Sr. infante? Confesso que por lá, sobre a erva dos campos, nos bosques

virgens, nas margens dos grandes lagos, tive muitas vezes ocasião de pensar em muitas coisas. – E nesta, por exemplo, que não foi nem contra os índios, nem contra os Ingleses, que lá

guerreou. – Contra quem foi então, Sr. infante? – Contra nós! – Não desmentirei a Vossa Alteza; é muito possível. – Sim, mas uma reacção pode ser mortal para os que curaram o mal primitivo. – Ah! senhor. – Aí está porque não acho tão gloriosas como por aí dizem as vitórias de Washington e

do marquês de Lafayette. Será talvez egoísmo, não o nego; mas desculpe-mo, porque não é egoísmo para mim só.

– Oh! senhor. – E sabe por que o auxiliarei com todas as minhas forças? – Senhor, qualquer que seja o motivo, eu agradecerei vivamente a Vossa Alteza real. – É que, meu caro Sr. de Taverney, não é daqueles cuja fama foi apregoada aí pelas ruas.

Combateu com honra, mas não se pôs a cada momento na boca da fama; em Paris não o conhecem, e é esse o motivo por que sou seu amigo. Quando não... Ah! por minha alma... Sr. de Taverney... quando não... Eu sou egoísta, e bem deve compreender.

Nisto o príncipe beijou a mão da rainha rindo-se, cortejou Andréia com modo afável e mais afectuoso do que geralmente mostrava às mulheres, depois abriu a porta e desapareceu.

A rainha deixou então, quase de repente, a sua conversação com Andréia, e voltando-se para Filipe, disse-lhe:

– Já foi ver seu pai? – Antes de vir aqui, não, minha senhora; esperava encontrá-lo nas antecâmaras, visto

minha irmã tê-lo mandado prevenir. – Por que não foi primeiramente ver seu pai? – Eu tinha mandado a casa dele o meu criado, com a minha pequena bagagem; e o Sr. de

Taverney mandou-me pelo mesmo homem ordem para que me apresentasse primeiramente a el-rei ou a Vossa Majestade.

– E obedeceu? – Com grande prazer, minha senhora, e pude assim abraçar minha irmã. – Está um tempo óptimo! – exclamou a rainha alegremente. – Srª. de Misery, amanhã já

não teremos gelo, portanto preciso um trenó imediatamente. A primeira aia ia sair para fazer executar a ordem. – E o meu chocolate aqui – acrescentou a rainha. – Vossa Majestade não quer almoçar? – bradou a Srª. de Misery. – Já ontem Vossa

Majestade não ceou. – Está enganada, minha boa Misery. Ceamos ontem; pergunte à Srª. de Taverney. – E muito bem – respondeu Andréia. – Mas nem por isso deixarei de tomar o meu chocolate – disse a rainha. – Depressa,

depressa, minha boa Srª. de Misery: este formosíssimo sol atrai-me. Há-de haver muita gente no lago dos Suíços.

– Vossa Majestade vai patinar ? – perguntou Filipe. – Oh! vai escarnecer de nós, Sr. Americano – exclamou a rainha – o senhor que percorreu

os imensos lagos em que se andam mais léguas de que passos se dão aqui! – Senhora – respondeu Filipe – aqui diverte-se Vossa Majestade com o frio e as

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distâncias, e lá, os frios e as distâncias matam. – Aí vem o meu chocolate; a Andréia toma uma chávena dele. Andréia corou de prazer e inclinou-se. – Vê, Sr. de Taverney, sou sempre a mesma: a etiqueta aborrece-me, como dantes. Está

lembrado daquele tempo, Sr. Filipe? O senhor é também o mesmo, não é assim? Estas palavras chegaram ao coração do mancebo. Muitas vezes a saudade de uma mulher é uma punhalada para os interessados. – Não, senhora – respondeu ele com voz firme – não estou mudado, pelo menos o

coração é o mesmo. – Então, se conservou o mesmo coração – disse a rainha alegremente – como o coração

era bom, nós lho agradecemos a nosso modo; Srª. de Misery, uma chávena para o Sr. de Taverney.

– Oh! Senhora – bradou Filipe todo perturbado – pois Vossa Majestade quer conceder semelhante honra a um pobre soldado, tão desconhecido como eu?

– É um antigo amigo! – bradou a rainha – é o que sei. Este dia faz-me subir ao cérebro todos os perfumes da mocidade; este dia encontra-me feliz, livre, soberba e louçã!... Este dia traz-me à memória os primeiros dias no meu grande Trianon, e as sortidas que Andréia e eu fazíamos; este dia faz-me lembrar as minhas flores, os meus morangos, os pássaros que eu procurava reconhecer entre as minhas plantas. Tudo, até os meus bons jardineiros, cujos rostos alegres significavam sempre uma flor nova, uma fruta saborosa; e o Sr. de Jussieu, e aquele original Rousseau, que já morreu... Este dia... digo-lhes que este dia me enlouquece. Mas, que tem, Andréia? Está vermelha! Que tem, Sr. Filipe? está pálido!

Com efeito, as fisionomias dos dois irmãos tinham suportado mal a cruel recordação, em que flutuava a forma indecisa de Gilberto.

Mas as últimas palavras da rainha fizeram-lhes cobrar ânimo. – Queimei-me com o chocolate, senhora – disse Andréia; – desculpe-me Vossa

Majestade. – E eu, senhora – disse Filipe – não posso afazer-me à idéia de Vossa Majestade me

honrar como um grande fidalgo. – Vamos, vamos – interrompeu Maria Antonieta servindo o chocolate a Filipe; – é

militar, e como tal, acostumado ao fogo: queime-se gloriosamente com o chocolate, que não tenho tempo para esperar.

E a rainha riu-se. Mas Filipe tomou o caso a sério, como teria feito um aldeão; com a diferença que o que este faria por perturbação, aquele fazia-o por heroísmo.

A rainha não o perdia de vista e dobrou de riso. – Tem um belo carácter – disse ela. E ergueu-se. Já as suas aias lhe tinham trazido um lindo chapéu, uma manta de arminho e luvas. – Sr. de Taverney, não quero que me deixe – disse a rainha – e por motivos de política,

quero hoje confiscar um Americano. Venha à minha direita, Sr. de Taverney. Taverney obedeceu, e Andréia passou para a esquerda da rainha. Quando a rainha desceu a escadaria, quando os tambores rufaram, quando o clarim das

guardas reais e a bulha das armas subiu ao palácio, impelida pelo vento dos vestíbulos, essa pompa real, esse respeito de todos, essas adorações, que se dirigiam ao coração da rainha e encontravam Taverney no caminho; esse triunfo, dizemos, produziu uma vertigem na cabeça já perturbada do mancebo; orvalhou-lhe a fronte um suor de febre, e afrouxou os passos. Se não fosse o frio turbilhão que de repente lhe feriu os lábios e os olhos, teria decerto perdido os sentidos.

Para aquele mancebo, cujos dias tão lugubremente se tinham passado nas penas e no exílio, o regresso às grandes alegrias do orgulho e do coração era demasiado rápido.

Enquanto na passagem da rainha, deslumbrante de formosura, se curvavam as frontes e

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se apresentavam as armas, um velho, a quem a preocupação fazia esquecer a etiqueta, ficara-se de cabeça estendida, e com os olhos cravados na rainha e em Taverney, em lugar de curvar a cabeça e baixar os olhos.

Quando a rainha se afastou, o velho rompeu a fileira da ala que se formara, e se ia desmanchando depois da passagem da rainha, e correu com toda a velocidade, que lhe permitiam as suas pernas de setenta anos.

IX

O Lago dos Suíços É bastante conhecido esse quadrado escuro e ondulado no verão, branco e rugoso no

inverno, a que ainda hoje se dá o nome de Lago dos Suíços. Uma rua de tílias, que alegremente desdobram ao sol os braços vermelhos, orla as

margens do lago; a rua está povoada de passeantes de todas as classes e idades, que vão gozar do espectáculo dos trenós e dos patins.

O vestuário das mulheres oferece a brilhante confusão do luxo um pouco incómodo da antiga corte, e a desenvoltura um tanto caprichosa da nova moda.

Os penteados altos, os mantos que assombreavam os rostos novos, os chapéus pela maior parte de seda ou de veludo, as capas de peles e os vastos folhos dos vestidos de seda, confundiam-se extravagantemente com as casacas encarnadas, os casacões de azul-celeste, as librés amarelas e as vastas judias brancas.

Lacaios de azul e encarnado atravessam a chusma, como lóios e papoulas, que o vento faz ondear por entre as espigas ou os trevos.

Por vezes ouve-se sair um grito de admiração do meio da assembléia; é Saint-Georges, o ousado patinador, que acaba de executar um círculo tão perfeito, que se um geómetra o medisse, não lhe acharia defeito sensível.

Enquanto as margens do lago estão cobertas de tantos espectadores, que se aquecem pelo contacto, e apresentam de longe o aspecto de um tapete multicor, por sobre o qual flutua um vapor, o dos hálitos que o frio recebe, o próprio lago, tornado em grosso espelho de gelo, apresenta o aspecto mais variado e sobretudo o mais animado possível.

Acolá vê-se um trenó, que três enormes cães, aparelhados como os troikas russos, fazem voar por sobre o gelo.

Os cães, cobertos de xairéis de veludo com as armas dos donos e de plumas na cabeça, parecem-se com esses animais quiméricos das infernarias de Callot ou das bruxarias de Goya.

O dono, o Sr. de Lauzun, negligentemente recostado no trenó, coberto de peles de tigre, inclina-se para o lado para respirar livremente, o que provavelmente não poderia conseguir, se afrontasse o curso do vento.

De um e outro lado alguns trenós modestos procuram o isolamento. Uma senhora mascarada, sem dúvida por causa do frio, vem num desses trenós; ao passo que um belo patinador, trajando vasto casaco de veludo preso com alamares de ouro, se inclina sobre as costas do trenó para lhe comunicar mais rápido impulso e dar-lhe ao mesmo tempo direcção.

As palavras entre a senhora da máscara e o patinador de casaca de veludo trocam-se quase ao ouvido um do outro, e ninguém decerto malsinaria uma entrevista concedida assim debaixo da abóbada do céu e à vista de Versalhes em peso.

Que importa aos mais o que eles dizem, se podem vê-los? que importa que os vejam, se os não ouvem? É evidente, que no meio de toda essa gente, vivem eles uma vida isolada: passam por entre a multidão como dois pássaros viajantes. De repente, no meio desses silfos que escorregam mais do que andam, opera-se grande movimento, e eleva-se grande ruído.

É que acabava de aparecer a rainha no Lago dos Suíços. Reconheceram-na e aprontam-se para lhe deixar o lugar, quando ela a todos faz sinal com a mão para que se deixem ficar. Rompeu

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o grito de “Viva a rainha!”, e a partir de então, fortalecidos com a licença concedida, os patinadores voam e os trenós são impelidos, formando como por um movimento eléctrico, um grande círculo em volta do lugar onde parou a augusta recém-chegada.

Fixou-se nela a atenção geral. Os homens aproximam-se então por meio de manobras habilmente calculadas. As

mulheres chegam-se com respeitosa discrição, e finalmente cada qual acha meio de se misturar com o grupo de gentis-homens e de oficiais superiores que vem apresentar os seus cumprimentos à rainha.

Entre os principais personagens notados pelo público, estava um notabilíssimo, que em vez de seguir o impulso geral e ir cumprimentar a rainha, ao conhecê-la pelo vestuário e pelas pessoas que a cercavam, saiu do trenó, dirigiu-se para uma das ruas de arvoredo, e desapareceu com as pessoas da sua comitiva.

O conde de Artois, que se notava no número dos patinadores mais elegantes e ligeiros, não foi dos últimos a transpor o espaço que o separava da cunhada e ir beijar-lhe a mão.

Nessa ocasião disse-lhe ao ouvido: – Veja, mana, repare como meu irmão, o Sr. de Provença, foge de Vossa Majestade. E dizendo estas palavras, designava com o dedo a alteza real, que, a passos largos,

caminhava pelo bosque cheio de neve, para ir por um atalho procurar a sua carruagem. – Não quer ouvir-me – disse a rainha. – Oh! isso é comigo; não é por isso que ele foge de si, é que parece temê-la. – É a consciência – disse então a rainha com gravidade. – Ainda é outra coisa. – Então que é? – Vou dizer-lho. Acaba de saber que o Sr. de Suffren, o glorioso vencedor, deve chegar

esta noite, e como a notícia é importante, não lha quer dar. A rainha viu em volta de si alguns curiosos a quem o respeito não afastava por tal modo,

que não pudessem ouvir o que o cunhado lhe dizia. – Sr. de Taverney – disse ela – tenha a bondade de tomar sentido no meu trenó, e se seu

pai estiver aí, abrace-o: dou-lhe um quarto de hora de licença. O mancebo inclinou-se e atravessou a multidão para ir executar a ordem da rainha. A multidão, que algumas vezes tem instintos maravilhosos, também entendera e portanto

alargou o círculo e a rainha achou-se assim mais à vontade com o conde de Artois. – Meu irmão – disse então a rainha – explique-me o que pode meu irmão ganhar em me

não dar parte da chegada do Sr. de Suffren. – Oh! mana, será possível que a senhora, mulher, rainha, e inimiga, não perceba logo a

intenção daquele astuto político ? O Sr. de Suffren chega, ninguém na corte o sabe. O Sr. de Suffren é o herói dos mares da índia, e por conseqüência tem direito a uma recepção magnífica em Versalhes. Portanto, chega o Sr. de Suffren; el-rei ignora-o; el-rei, como não sabe que chegou, parece que o despreza; a rainha procede do mesmo modo. Entretanto o Sr. de Provença, que sabe da chegada do Sr. de Suffren, vai receber o ilustre oficial, sorri-lhe, acaricia-o, faz-lhe uma quadra, e chegando-se muito ao herói da Índia, julga ficar sendo o herói da França.

– Está claro – disse a rainha. – Pudera! – disse o conde. – Só esquece uma coisa, ilustre gazeteiro. – Qual? – Dizer-me como conhece todo esse belo projecto do nosso querido irmão. – Como o sei? Como sei tudo quanto ele faz. É simples: como tenho conhecido que o Sr.

de Provença se empenha em descobrir o que eu faço, pago a quem me venha contar tudo quanto ele faz. Oh! isso poderá ser-me útil e à mana também.

– Agradeço muito a sua aliança, meu irmão; mas el-rei?

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– Oh! el-rei está prevenido. – Pelo senhor? – Não; está prevenido pelo ministro da marinha, que eu lhe enviei. Essas coisas não são

da minha competência; bem compreende que sou muito louco, muito frívolo, muito dissipador para me ocupar de coisas de tal importância.

– E o ministro da marinha ignorava também a chegada a França do Sr. de Suffren? – Ah! meu Deus, querida irmã, em catorze anos, que é delfina ou rainha de França, tem

conhecido bastantes ministros, creio eu, para saber que esses senhores ignoram sempre as coisas mais importantes. Pois bem, preveni o nosso e está entusiasmado.

– Pudera não! – Compreende, minha querida irmã; o ministro há-de ficar-me toda a sua vida agradecido,

e justamente preciso da sua gratidão. – Para quê? – Para negociar um empréstimo. – Oh! -– exclamou a rainha rindo-se – aí está a sua bela acção estragada. – Minha irmã – disse o conde de Artois com modo grave – deve ter necessidade de

dinheiro: à fé de infante de França, que ponho à sua disposição metade da soma que receber. – Oh! meu irmão – bradou Maria Antonieta – guarde o seu dinheiro; graças a Deus, de

nada preciso neste momento. – Diacho! não leve muito tempo em reclamar o cumprimento da minha promessa,

querida mana. – Por quê? – Porque, havendo muita demora, pode bem ser que não possa desempenhar a minha

palavra. – Ora! nesse caso, tentaria eu também ver se descobria algum segredo de Estado. – Minha irmã, está esfriando – disse o príncipe – e tem já as faces roxas. – Aí vem o Sr. de Taverney, que volta com o meu trenó. – Então já não precisa de mim? – Não. – Nesse caso, Peço-lhe que me mande retirar. – Por que? imagina por acaso que me incomoda em qualquer coisa que seja? – Não; sou eu que preciso da minha liberdade. – Então, adeus. – Até à vista, querida irmã. – Quando aparece? – Esta noite. – Que há hoje? – Por ora não há nada, mas há-de haver. – Então que há-de haver? – Há-de haver enchente na partida de el-rei. – Por que? – Porque o ministro há-de trazer consigo o Sr. de Suffren. – Bem. Até à noite. A estas palavras, o príncipe cortejou a cunhada com a encantadora cortesia que tão

natural lhe era, e desapareceu por entre a multidão. O barão de Taverney, seguia o filho com a vista, enquanto este se afastava da rainha para

ir tratar do trenó. Mas não tardou que tornasse a dirigir para a rainha o seu olhar vigilante. Não deixou de lhe causar alguns cuidados a conversação animada de Maria Antonieta

com o cunhado, porque viera interromper a familiaridade, ainda há pouco manifestada a seu filho pela rainha.

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Contentou-se por isso em fazer um gesto amigável a Filipe; quando este acabou os preparativos indispensáveis para a partida do trenó, e tendo querido o mancebo, conforme lho ordenara a rainha, ir abraçar o pai a quem havia dez anos não abraçava, este fez-lhe sinal com a mão para que se não chegasse, dizendo-lhe:

– Depois, depois; vem quando acabares o teu serviço, e conversaremos. Filipe afastou-se portanto e o barão viu com satisfação o conde de Artois despedir-se da

rainha. Esta meteu-se no trenó acompanhada por Andréia, e como se apresentassem dois

grandes heiduques para empurrar o trenó, a rainha disse: – Não, não; não quero ir assim. Não sabe patinar, Sr. de Taverney? – Um pouco, real senhora – respondeu Filipe. – Tragam patins ao Sr. cavalheiro – bradou a rainha. Depois, voltando-se para o lado dele, acrescentou: – Diz-me o coração que patina tão bem como Saint-Georges. – Mas já noutro tempo – disse Andréia – Filipe patinava com muita elegância. – E agora já não conhece rival, não é assim, Sr. de Taverney? – Real senhora – disse Filipe – como Vossa Majestade se digna de ter essa confiança em

mim, vou fazer o melhor que possa. E dizendo estas palavras, Filipe calçara uns patins aguçados como navalhas. Colocou-se atrás do trenó, deu-lhe impulso com uma das mãos e começou o passeio. Então viu-se um espectáculo curiosíssimo. Saint-Georges, o rei dos ginastas, o elegante mulato, o homem da moda, o homem

superior em todos os exercícios do corpo, pressentiu um rival naquele moço, que ousava entrar em competência com ele na carreira.

Por isso começou logo a girar em torno do trenó da rainha, com reverências tão respeitosas, tão cheias de encanto, como nunca outras mais sedutoras haviam sido executadas por cortesão algum nas salas de Versalhes.

Descrevia em volta do trenó círculos rápidos e certíssimos, enleando-o por uma seqüência de anéis maravilhosamente ligados uns aos outros; de modo que a nova curva prevenia sempre a chegada do trenó, que deixava ficar atrás; depois do que, com um impulso vigoroso, ganhava pela elipse quando perdera pela circunferência.

Os circunstantes não afastavam a vista de Saint-Georges. Ninguém podia seguir aquela manobra, nem sequer com os olhos, sem ficar atordoado,

deslumbrado, maravilhado. Então Filipe, despeitado, tomou um partido cheio de temeridade: impeliu o trenó com

tão espantosa velocidade, que duas vezes Saint-Georges, em lugar de lhe sair ao encontro, veio acabar o círculo por detrás do trenó; e como a rapidez deste fazia com que muita gente soltasse gritos de susto, que podiam ter causado medo à rainha, Filipe disse:

– Se Vossa Majestade deseja, pararei, ou pelo menos tornarei menos rápida a corrida. – Oh! não, não – bradou a rainha com o fogoso ardor, que empregava tanto no trabalho

como no prazer; – não, não tenho medo. Mais depressa, se pode, cavalheiro, mais depressa! – Oh! ainda bem! Agradeço a licença, real senhora. Vai bem segura, digne-se Vossa

Majestade confiar em mim. E como firmou de novo as mãos robustas nas costas do trenó, foi tão vigoroso o

movimento, que o fez estremecer muito sensivelmente. Parecia que o tinha levantado com os braços. Então, aplicando a outra mão no trenó, esforço que até então não quisera empregar,

levou adiante de si o carro, que se tornou um brinquedo de crianças entre os seus braços de ferro. A partir daquele momento, cruzou cada um dos círculos de Saint-Georges por círculos

ainda maiores, de modo que o trenó movia-se como o homem mais ágil, virando e revirando em todo o seu comprimento, como se não fosse mais do que os simples patins com que Saint-

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Georges corria pelo gelo. Apesar do peso, e apesar do volume, o trenó da rainha estava convertido em patim. Virava, voava, andava num turbilhão como um dançarino.

Saint-Georges, mais elegante, mais correcto nesses meandros, começou em breve a sentir-se desassossegado; havia já uma hora que andava patinando. Filipe, vendo-o todo em suor, reparando-lhe nos esforços das pernas trémulas, resolveu vencê-las pelo cansaço.

Mudou de processo, e abandonando os círculos, que lhe davam o trabalho de levantar de cada vez o trenó, impeliu-o em linha recta diante de si.

O trenó partiu mais rápido do que uma flecha. Saint-Georges, num único impulso, tê-lo-ia em breve alcançado; mas Filipe aproveitara o

momento em que o segundo impulso multiplica a força do primeiro: levou portanto o trenó por uma camada de gelo ainda intacto e com tanta força que ele mesmo se deixou ficar atrás.

Saint-Georges avançou para alcançar o trenó. Então, Filipe, reunindo as forças, deixou-se escorregar tão delicadamente sobre a extrema curvatura do patim, que passou adiante de Saint-Georges e veio pôr as mãos ambas no trenó. Depois, por um movimento hercúleo, fez-lhe dar meia volta, e lançou-o de novo em sentido contrário, ao passo que Saint-Georges, levado por um dos seus supremos esforços, não podendo parar na carreira, e perdendo grande espaço, ficou completamente vencido.

Tais aclamações soaram no espaço, que Filipe corou de pejo. Mas bem admirado ficou quando a rainha, depois de ela própria ter dado palmas, se

voltou para ele, e em tom de voluptuosa opressão, lhe disse: – Oh! Sr. de Taverney, agora que ganhou a vitória, piedade! piedade, que me mata!

X

O tentador Àquela ordem, ou antes àquele pedido da rainha, Filipe retraiu os seus músculos de aço,

firmou-se nas pernas, e o trenó parou de repente como o cavalo árabe, que treme sobre as pernas rijas e finas nas areias da planície.

– Oh! agora vá descansar – disse a rainha saindo do trenó, ainda vacilante. – Na verdade, nunca pensei que houvesse tanta embriaguez na velocidade. Esteve a ponto de me fazer enlouquecer!

E encostou-se vacilante no braço de Filipe. Um sussurro de admiração que percorreu toda aquela chusma dourada e colorida,

advertiu-a de que acabava de cometer uma dessas faltas contra a etiqueta, que aos olhos da inveja e do servilismo se tornam gravíssimas.

Quanto a Filipe, atordoado com aquele excesso de honra, estava mais trémulo e mais envergonhado do que se a soberana o tivesse ultrajado publicamente.

A cada instante baixava os olhos; o coração batia-lhe com tal violência que parecia querer despedaçar-lhe o peito.

Uma singular comoção, a da carreira seguramente, agitava igualmente a rainha, porque retirou imediatamente o braço e travou do da Srª. de Taverney, pedindo ao mesmo tempo uma cadeira.

Trouxeram-lha: – Perdão, Sr. de Taverney – disse a rainha. Depois disse em voz baixa com enfado: – Meu Deus! que infelicidade a de estar-se sempre cercada de curiosos e de tolos! Gentis-homens da câmara e damas de honor tinham-se aproximado, e devoravam com os

olhos Filipe, que para ocultar a sua vermelhidão, desatava os patins. Logo que os desatou, recuou para dar lugar aos cortesãos. A rainha permaneceu alguns momentos pensativa.

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Depois, erguendo a cabeça, disse: – Oh! sinto que me constiparei continuando aqui imóvel; demos mais uma volta. E entrou novamente no trenó. Filipe esperou, mas inutilmente, que a rainha lhe desse alguma ordem. Então vinte gentis-homens se apresentaram. – Não, meus senhores, agradeço muito – disse ela – quero os meus heiduques. Depois, assim que os criados chegaram aos seus postos, disse: – Devagar, vamos muito devagar. E fechando os olhos, entregou-se a grata meditação. O trenó afastou-se devagar como a rainha ordenara, seguido por uma chusma imensa de

ávidos curiosos e de invejosos. Filipe ficou só, limpando o suor da fronte. Procurava Saint-Georges com a vista para o ir consolar da sua derrota por meio de algum

cumprimento leal. Mas este recebera um recado do duque de Orleans, seu protector, e retirara do campo de

batalha. Filipe, um pouco triste, alguma coisa cansado e quase assustado do que acabava de se

passar, ficara imóvel no seu lugar, seguindo com os olhos o trenó da rainha, que se afastava, quando sentiu que lhe haviam tocado com alguma coisa nas costas.

Voltou-se e achou-se em presença do pai. O velho barão, encarquilhado como um personagem de Hoffmann, envolto em peles

como um Samoiedo, tocara no filho com o cotovelo, para não tirar as mãos do regalo em que as trazia.

Os olhos, dilatados pelo frio ou pela alegria, apareceram chamejantes a Filipe. – Não me abraças, meu filho? – disse ele. E pronunciou estas palavras no mesmo tom em quê o pai do Atleta grego deve ter

agradecido a seu filho a vitória alcançada no circo. – De todo o coração, meu caro pai – redargüiu Filipe. Mas facilmente se compreendia que não havia harmonia alguma entre a acentuação das

palavras e a sua significação. – Bem, bem, e agora que me abraçaste, vai, vai depressa. E empurrou-o. – Mas onde quer que eu vá? – perguntou Filipe. – Ora, para acolá, com os diabos! – Para acolá? – Sim, para o pé da rainha. – Oh! não, meu pai, não, obrigado. – Como, não! Como obrigado! Estás doido; não queres ir ter com a rainha? – Não, é impossível; não reparou no que disse, meu querido pai. – Como! impossível ir ter com a rainha quando ela te espera? – Que me espera, a mim? – Mas sim, sim; a rainha, que te deseja. – Que me deseja? E Filipe olhou fixamente para o barão. – Realmente, meu pai – disse ele friamente – creio que não está bem em si. – Palavra de honra que és digno de admiração – disse o ancião endireitando-se e batendo

com o pé no chão. – Ora vamos, Filipe, tem a bondade de me dizer donde vens? – Senhor – disse tristemente o cavalheiro – estou, na verdade, com grave receio de me

convencer de uma coisa. – De qual? – De que está zombando de mim, ou então...

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– O que? – Perdoe-me, meu pai... ou que então não está em seu perfeito juízo. O ancião agarrou o filho pelo braço com um movimento nervoso tão enérgico, que o

mancebo franziu o sobrolho de dor. – Oh! Sr. Filipe – disse o ancião – a América é um país muito distante da França, bem o

sei. – Sim, meu pai, muito distante – repetiu Filipe; – mas não compreendo o que quer dizer.

Rogo-lhe que se explique melhor. – Um país onde não há rei nem rainha. – Nem súbditos. – Muito bem! Nem súbditos, Sr. filósofo; não o nego. É isso um ponto que me não

interessa por forma alguma, e me é absolutamente indiferente; o que me humilha, é que eu receio também muito convencer-me de uma coisa.

– Qual é, meu pai? Em todo o caso, parece-me que as nossas desconfianças diferem totalmente.

– A minha é de que és um estúpido, meu filho. E isso não é permitido a um grande mocetão modelado como tu és. Olha, ora olha para acolá!

– Estou olhando, senhor. – Então! A rainha volta-se para trás e é esta a terceira vez que o faz. Sim, senhor, a rainha

voltou-se já três vezes! E olha, lá se volta ela novamente; procura quem, Sr. estúpido, Sr. puritano, Sr. da América? Oh!...

E o ancião mordeu, não já com os dentes, mas com as gengivas, as suas luvas de pelica cinzenta, em cada uma das quais poderia meter bem duas mãos:

– Pois bem, senhor – disse o mancebo – quando assim fosse, o que provavelmente não é, quando a rainha me procurasse a mim...

– Oh! – repetiu outra vez o ancião batendo com os pés – ele disse: “Quando assim fosse!” Mas este homem não é do meu sangue, este homem não é Taverney!

– Não sou do seu sangue! – murmurou Filipe. E depois em voz alta e erguendo os olhos ao céu: – Deverei dar disso graças a Deus? – disse ele. – Senhor – disse o ancião – digo-lhe que a rainha procura-o; digo que a rainha quer vê-lo. – Tem óptima vista, meu pai – disse Filipe secamente e com a maior indiferença. – Vejamos – continuou o ancião mais brandamente e tentando moderar a sua

impaciência; – vejamos, deixa-me explicar-te... É verdade, tens as tuas razões; mas enfim, eu tenho a experiência. Vejamos, Filipe, és ou não és tu homem?

Filipe encolheu levemente os ombros e não respondeu. O velho, vendo que esperava baldadamente uma resposta, decidiu-se mais por desprezo

do que por necessidade, a fixar os olhos no filho, e conheceu então toda a dignidade, toda a impenetrável reserva, toda a inexplicável vontade de que esse rosto estava armado para o bem!

Comprimiu a sua dor, esfregou com o regalo a ponta vermelha do nariz; e com uma voz doce como a de Orfeu falando aos rochedos da Tessália, disse:

– Filipe, meu filho, vamos, ouve-me. – Há mais de uma hora, meu pai -– respondeu o mancebo – que não faço outra coisa. – Vou fazer-te cair do alto da tua majestade, meu Americano – disse consigo o pai. –

Também hás-de ter o teu lado fraco, colosso. Deixa-me rasgar-te esse lado com as minhas velhas garras e verás!

Depois, em voz alta, acrescentou: – Ainda não percebeste uma coisa? – O que? – Uma coisa que faz honra à tua simplicidade. – E vem a ser?

Page 82: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– Também tens razão: chegas agora da América; partiste num momento em que não havia senão rei, em que já não havia rainha, a não ser a Dubarry, que era uma majestade pouco respeitável. Voltas, vês uma rainha, e dizes contigo: respeitemo-la.

– Sem dúvida. – Pobre criança! – disse o ancião. E começou a abafar ao mesmo tempo no regalo com a sua tosse seca uma risada

estrondosa. – Como? – perguntou Filipe – admira-se de que eu respeite a realeza, o senhor, um dos

melhores fidalgos da França? – Mais devagar! Eu não te falo da realeza, falo-te da rainha. – Mas, não sei que diferença haja! – Ora! Que é a realeza, meu caro? é uma coroa. Alto, que aí não se toca! que é a rainha? é

uma mulher. Oh! uma mulher muda muito de figura, pode tocar-se. – Pode tocar-se! – exclamou Filipe, corando ao mesmo tempo de raiva, e acompanhando

a palavra com um gesto tão sublime, que mulher nenhuma o teria podido ver sem o amar, nenhuma rainha sem o adorar.

– Tu não crês no que digo, não. Pois bem! Pergunta – redargüiu o ancião em voz baixa e com inflexão quase feroz, tanto era o seu cinismo – pergunta ao Sr. de Coigny, ao Sr. de Lauzun e ao Sr. de Vaudreuil.

– Silêncio, silêncio! meu pai – bradou Filipe com voz surda; – silêncio, quando não, por essas blasfémias, como não posso dar-lhe três estocadas com a minha espada, sou eu, juro-lho, que as darei imediatamente em mim mesmo, sem dó nem piedade!

Taverney recuou um passo, girou nos calcanhares como faria Richelieu aos trinta anos, e sacudindo o regalo, disse:

– Oh! realmente, és um animal muito estúpido, és o cavalo feito burro, a águia mudada em ganso, o galo em capão. Adeus, boa noite, encheste-me de regozijo; julgava-me velho, aí um Cassandro, e vejo que sou um Valério, um Adónis, um Apolo. Boa noite! boa noite!

E girou outra vez nos calcanhares. Filipe tornara-se triste; deteve o pai. – Não falou seriamente, não é verdade, meu pai? – disse-lhe – porque é impossível que

um fidalgo de tão boa raça continue a acreditar semelhantes calúnias, semeadas pelos inimigos não só da rainha senão também da realeza.

– Ainda duvida, o grande bruto! – exclamou o barão de Taverney. – Falou-me como se falasse diante de Deus? – Está claro. – Diante de Deus, de quem cada dia o senhor mais se aproxima? O mancebo renovara a conversação, que tão desdenhosamente interrompera. Era isso um

triunfo para o barão, que se aproximou mais. – Mas – disse ele – parece-me que sou fidalgo, Sr. meu filho, e que não minto? – E quem o acusa de mentir, meu pai? Um nobre não mente, mas a rainha tem inimigos,

não faltam panfletários que a ultrajem nos papéis públicos. – Julgas, porventura, que eu seja algum periodiqueiro? – Não, mas é triste que homens como o meu pai repitam semelhantes infâmias, que sem

isso se desvaneceriam como os vapores, que por vezes escurecem o sol mais brilhante. São o senhor e as outras pessoas bem nascidas que, repetindo essas infâmias, lhes dão terrível consistência: oh! senhor, pelo amor de Deus, não repita semelhantes coisas!

– Contudo, repito-as. – E por que as repete? – exclamou o mancebo batendo com o pé no chão. – Ora! – disse o ancião, agarrando-se ao braço do filho e olhando para ele com o seu riso

diabólico – para te provar com quanta razão eu te dizia: “Filipe, a rainha volta-se; Filipe, a rainha deseja; Filipe, corre, corre, a rainha espera!”.

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– Oh! – exclamou o mancebo escondendo a cabeça entre as mãos – em nome do céu, cale-se, meu pai, que me enlouquece.

– Realmente, Filipe, não te compreendo – disse o ancião. – É algum crime amar? É prova de que se tem coração: e nos olhos daquela mulher, na sua voz, nos seus modos, não se vê que tem coração? Ela ama. Será a ti? Não sei. Será a outro? É possível; mas crê na minha velha experiência, ela agora ama, ou começa a amar alguém. Mas tu és um filósofo, um puritano, um quaker, um homem da América. Tu não amas? Deixa-a voltar-se, deixa-a esperar, insulta-a, despreza-a, repele-a, Filipe, quero dizer, José de Taverney!

E dizendo estas palavras acentuadas por feroz ironia, o ancião, ao ver o efeito que produzira, desapareceu como o tentador, depois de dar a idéia do crime.

Filipe ficou só, com o coração opresso e o cérebro escandecente; nem sequer reparou que havia meia hora que estava pregado no mesmo lugar, que a rainha tinha acabado o seu passeio, que voltava, que olhava para ele, e que, do centro do seu cortejo, dissera:

– Deve estar já bem descansado, Sr. de Taverney! Venha, venha! não há outro como o senhor para conduzir realmente uma rainha. Afastem-se, senhores!

Filipe correu para ela, cego, deslumbrado, inebriado. E pondo a mão nas costas do trenó, sentiu-se queimar: a rainha estava negligentemente

recostada; os dedos do mancebo tinham tocado levemente nos cabelos de Maria Antonieta.

XI

A Suffren Contra o costume da corte, o segredo fora fielmente guardado. Ninguém sabia a que horas e de que modo devia chegar o Sr. de Suffren. El-rei determinara que haveria partida nessa noite. Às sete horas entrou nas salas com os príncipes e princesas da sua família. A rainha chegou, trazendo pela mão a princesa real, que não tinha mais de sete anos. A assembléia era numerosa e brilhante. Durante os preliminares da reunião, no momento em que cada um tomava o seu lugar, o

conde de Artois chegou-se à rainha e disse-lhe a meia voz: – Minha irmã, olhe bem em torno de si. – Que é ? – disse ela – estou olhando. – Que vê? A rainha examinou bem em volta de si, e ao ver amigos por todos os lados, entre os quais

se contavam Andréia e seu irmão, disse: – Vejo caras muito agradáveis, caras de pessoas amigas principalmente. – Não olhe a mana para quem está; veja quem falta. – Ah! é verdade! – exclamou ela. O conde de Artois riu-se. – Ainda ausente – continuou a rainha. – Ora sempre o farei fugir assim? – Não – disse o conde de Artois; – mas o caso prolonga-se. O Sr. de Provença foi à

barreira esperar o bailio de Suffren. – Mas, nesse caso, não vejo por que motivo se ri? – Não vê por que motivo rio? – Não; se o Sr. de Provença foi à barreira esperar o bailio de Suffren, foi mais esperto que

nós, porque será o primeiro a vê-lo, e por conseqüência há-de cumprimentá-lo primeiro que ninguém.

– Ora vamos, minha irmã – redargüiu o príncipe rindo – bem fraca idéia tem da nossa diplomacia. É verdade que o Sr. de Provença foi esperar o bailio à barreira de Fontainebleau, mas nós temos alguém que o espera na estação de Villejuif.

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– Realmente? – De modo que – prosseguiu o conde de Artois – o Sr. de Provença há-de perder o

tempo na barreira, ao passo que, por ordem de el-rei, o Sr. de Suffren, vindo por fora de Paris, há-de chegar directamente a Versalhes, onde nós o esperamos.

– Isso é maravilhosamente imaginado. – Não é de todo mal, e estou satisfeito comigo. Vamos, mana, determine os parceiros

para o seu jogo. Havia naquele momento na sala do jogo pelo menos cem pessoas da mais alta nobreza: o

Sr. de Penthièvre, o Sr. de La Tremouille, e as princesas. Só o rei viu que o conde de Artois fazia rir a rainha, e para meter-se um pouco na confidência deles, dirigiu-lhes um olhar dos mais significativos.

A notícia da chegada do comendador de Suffren não se espalhara, conforme dissemos, e contudo conhecia-se uma espécie de presságio, que pairava acima dos espíritos.

Sentia-se alguma coisa de oculto, que ia aparecer, alguma coisa de novo, que ia desabrochar: era um interesse desconhecido, que se espalhava por toda aquela gente, para quem o menor acontecimento toma logo importância, quando o senhor franziu o sobrolho para reprovar, ou dilatou a boca para sorrir.

O rei, que por costume não jogava senão um escudo de seis libras, no empenho de moderar o jogo dos príncipes e senhores da corte, não reparou que pusera na mesa todo o ouro que trazia na algibeira.

A rainha, muito senhora do seu papel, fez de política e desviou a atenção da sua roda pelo ardor factício com que se entregou ao jogo.

Filipe, admitido na partida, colocado em frente de sua irmã, absorvia com todos os seus sentidos ao mesmo tempo a impressão inaudita, admirável, daquela protecção e acolhimento, que tão inopinadamente encontrava.

Por mais que fizesse, as palavras do pai vinham-lhe constantemente à memória. Perguntava a si mesmo se com efeito o barão, que vira três ou quatro reinados de favoritas, não conhecia bem a história dos tempos e dos costumes.

Perguntava se aquele puritanismo que participava da adoração religiosa, não era um ridículo mais, que consigo trouxera de remotos países.

A rainha, tão poética, tão formosa, tão fraternal para ele, não era afinal mais do que uma terrível namoradeira, desejosa de prender mais uma paixão às suas recordações, como um naturalista prende um insecto ou uma borboleta na sua colecção, sem importar-se com o que padece o pobre bicho, a quem atravessam o coração com um alfinete.

E todavia a rainha não era uma mulher vulgar, um carácter comum; um olhar dela tinha alguma significação, porque ela nunca dava direcção ou expressão ao olhar sem previamente lhe calcular o alcance.

– Coigny, Vaudreuil – repetia Filipe – amaram-na; é possível. Mas poderia a rainha amá-los? Oh! Por que não vem um raio de luz alumiar esse profundo abismo a que chamam o coração da mulher, e que mais profundo se torna ainda quando é o coração de uma rainha?

E quando Filipe tinha suficientemente baralhado aqueles dois nomes no pensamento, olhava pela extremidade da mesa para os srs. de Coigny e de Vaudreuil, que, por singular capricho do acaso, se achavam sentados lado a lado, com os olhos voltados para um outro ponto oposto aquele onde estava a rainha, indiferentes, por não dizermos esquecidos.

E Filipe dizia consigo que era impossível que aqueles dois homens tivessem amado, e se mostrassem tão indiferentes e tão esquecidos, Oh! se a rainha o amasse, a ele, enlouqueceria de felicidade; se depois de o ter amado o esquecesse, matar-se-ia de desespero.

E dos srs. de Coigny e de Vaudreuil, passava à rainha Maria Antonieta. E meditando sempre, interrogava aquela fronte tão imperiosa, aquele olhar tão majestoso;

e a todas as formosuras da mulher pedia a revelação do segredo da rainha. – Oh! não! Calúnias! calúnias! é o que são todos esses boatos vagos, que começam a

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circular entre o povo, e aos quais os interesses, os ódios ou as intrigas da corte dão consistência. Filipe estava neste ponto das suas reflexões, quando deram sete horas e três quartos no

relógio da sala dos guardas. No mesmo instante ouviu-se grande rumor. Soaram uns passos rápidos e apressados. Ouviu-se a bulha das coronhas das espingardas

batendo nas lajes. Uma confusão de vozes que penetrara pela porta entreaberta, atraiu a atenção do rei, que inclinou a cabeça para trás, a fim de ouvir melhor, e fez um sinal à rainha.

Maria Antonieta compreendeu perfeitamente a indicação e imediatamente levantou o jogo.

Cada jogador, recolhendo o dinheiro que tinha diante de si, esperou, para tomar uma resolução, que a rainha deixasse perceber a sua.

A rainha passou à sala de grande recepção. Já o rei lá tinha chegado. Um ajudante de ordens do Sr. de Castries, ministro da marinha, aproximou-se de el-rei, e

disse-lhe algumas palavras em voz baixa. – Bem – respondeu o rei – vá. Depois disse para a rainha: – Tudo vai bem. Cada qual interrogou com os olhos quem tinha ao alcance; aquele “tudo vai bem” dera

que cismar a todos. De repente, o Sr. marechal de Castries entrou na sala, dizendo em voz alta: – Vossa Majestade quer receber o Sr. bailio de Suffren, que chega de Toulon? Àquele nome, pronunciado em voz alta, satisfeita, triunfante, houve na assembléia

inexplicável tumulto. – Sim, senhor – respondeu o rei – e com muito prazer. O Sr. de Castries saiu. Houve um movimento quase unânime na direcção da porta por onde o Sr. de Castries

acabava de desaparecer. Para explicar a simpatia da França para com o Sr. de Suffren, para se poder compreender

o interesse que um rei, uma rainha, e príncipes de sangue real tinham em ser os primeiros a gozar da presença do Sr. de Suffren, poucas palavras serão necessárias. Suffren é um nome essencialmente francês, como Turenne, como Catinat, como João Bart.

Desde a guerra com a Inglaterra, ou melhor diremos, desde o último período de combates que precedera a paz, o Sr. de Suffren dera sete grandes batalhas navais sem ter uma única derrota; tomara Trinquemale e Gondelour, assegurara as possessões francesas, limpara os mares, e ensinara ao nababo Hayder-Aly que a primeira potência da Europa era a França. No exercício da sua profissão de homem do mar, seguira a diplomacia de um honrado e astuto negociador, provara a valentia e a táctica de um soldado, e todos os costumes de um sábio administrador. Ousado, incansável, orgulhoso quando se tratava da honra da bandeira francesa, fatigara os Ingleses em terra e no mar, a ponto tal que nunca aqueles soberbos marinheiros puderam concluir uma vitória começada, nem tentar um ataque contra Suffren, quando este leão mostrava os dentes.

Além disso, depois da acção em que arriscara a vida com tanta indiferença, como o mais humilde marinheiro, mostrava-se humano, generoso e complacente, era o tipo do verdadeiro homem de mar, um tanto esquecido depois de João Bart e Duguay-Trouin, que a França novamente encontrava no bailio de Suffren.

Não tentaremos descrever a bulha e o entusiasmo que a chegada do bailio a Versalhes produziu entre os gentis-homens convocados para aquela reunião.

Suffren era homem de cinqüenta e seis anos, grosso, baixo, com olhar de fogo, e de maneiras nobres e naturais. Ágil apesar de obeso, majestoso apesar da sua flexibilidade, trazia o cabelo penteado soberbamente, ou melhor diremos, a sua cabeleira; como homem acostumado a zombar de todas as dificuldades, achara meio de ser vestido e penteado mesmo na carruagem de

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posta. Trajava casaca azul bordada a ouro, colete vermelho e calção azul. Conservara o colarinho

militar, sobre o qual se lhe arredondava a farta papeira, como complemento obrigado da sua cabeça colossal.

Logo que entrou na sala dos guardas, alguém foi dizer algumas palavras ao Sr. de Castries, que passeava impaciente, e logo este exclamara:

– Meus senhores, chegou o Sr. de Suffren! E imediatamente os guardas, correndo às armas, tinham-se por si mesmo alinhado como

se se tratasse do rei de França, e depois do bailio ter passado, formaram atrás dele, a quatro e quatro, como para lhe servir de comitiva.

Ele entrou, apertando a mão ao Sr. de Castries, ministro da marinha, o qual, repelindo-o suavemente, disse-lhe:

– Não, não, senhor, não o quero privar do prazer de abraçar em primeiro lugar alguém que é mais digno disso do que eu sou.

E deste modo conduziu o Sr. de Suffren à presença de Luís XVI. – Sr. bailio – exclamou alegremente o rei assim que o viu – seja bem-vindo a Versalhes.

Traz-lhe a glória, traz-lhe tudo quanto os heróis dão aos seus contemporâneos, e não falo do futuro, que esse pertence-lhe. Abrace-me, Sr. bailio.

O Sr. de Suffren dobrara um pouco o joelho; o rei fê-lo levantar e tão cordialmente o abraçou, que em toda a assembléia houve uma convulsão de alegria e de triunfo.

Não há dúvida que se não fosse o respeito devido a el-rei, todos os assistentes se teriam confundido em bravos e gritos de aprovação.

O rei voltou-se para a rainha. – Senhora – disse-lhe – eis aqui o Sr. de Suffren, o vencedor de Trinquemale e de

Gondelour, o terror dos nossos vizinhos Ingleses, o meu João Bart. – Senhor – disse a rainha – não posso fazer elogios. Só lhe direi que não disparou um

único tiro pela glória da França, que não viesse repercutir no meu coração cheio de admiração e de agradecimento pelos seus assinalados serviços.

Acabara a rainha quando o conde de Artois se aproximou com seu filho, o duque de Angoulême.

– Meu filho – disse ele – está na presença de um herói. Olhe bem para ele, que são raros. – Senhor – respondeu o jovem príncipe a seu pai – ainda há pouco estava eu lendo os

grandes homens de Plutarco, mas não os via. Agradeço-lhe ter-me mostrado o Sr. de Suffren. Ao murmúrio que em torno dele se produziu, pôde a criança compreender que soltara

palavras que nunca mais haviam de esquecer. El-rei travou então do braço do Sr. de Suffren, e dispôs-se a levá-lo consigo para o seu

gabinete para lhe falar como geógrafo das suas viagens e da sua expedição. Mas o Sr. de Suffren fez uma respeitosa resistência. – Senhor – disse – digne-se Vossa Majestade permitir, já que tão bem disposto se mostra

em meu favor... – Oh! – exclamou el-rei – tem alguma coisa que pedir, Sr. de Suffren? – Senhor, um dos meus oficiais cometeu uma falta tão grave contra a disciplina, que

pensei que Vossa Majestade devia julgá-lo. – Oh! Sr. de Suffren, eu esperava que o seu primeiro pedido fosse uma mercê e não um

castigo. – Senhor, já tive a honra de o dizer; Vossa Majestade será o juiz e haverá por bem decidir

o que se deve fazer. – Estou ouvindo. – No último combate, o oficial, de quem falo a Vossa Majestade, estava a bordo do Severo. – Oh! o navio que arreou a bandeira – disse o rei franzindo o sobrolho. – Senhor, o comandante do Severo arreara efectivamente a bandeira – respondeu o Sr. de

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Suffren inclinando-se, – e já Sir Hugues, o almirante inglês, mandava uma lancha para tomar conta da presa, quando o tenente, que vigiava as baterias das entrepontes, vendo que cessava o fogo, e tendo recebido ordem de não atirar mais, subiu ao tombadilho; viu então arreada a bandeira e o capitão próximo a entregar-se. Peço perdão a Vossa Majestade, mas vendo isso, tudo o que havia nele de sangue francês revoltou-se. Pegou na bandeira que estava ao pé dele, apoderou-se de um martelo, e ordenando que de novo começasse o fogo, foi ele mesmo pregar a bandeira no topo do mastro, por baixo da flâmula. Foi deste modo que o Severo foi conservado a Vossa Majestade.

– Bela acção – disse o rei. – Valente acção – disse a rainha. – Sim, senhor, sim, senhora; mas grave rebelião contra as ordens e a disciplina. A ordem

fora dada pelo capitão e o tenente devia obedecer. Peço portanto o perdão deste oficial, senhor, e tanto mais me empenho por ele, que é meu sobrinho.

– Seu sobrinho! – bradou el-rei – e não mo tinha dito! – A Vossa Majestade, não, mas tive a honra de fazer a competente participação ao Sr.

ministro da marinha, rogando-lhe que nada dissesse a el-rei antes de eu alcançar o perdão do culpado.

– Concedido! concedido! – bradou el-rei – e desde já prometo a minha protecção a todo o indisciplinado, que souber assim vingar a honra da bandeira e do rei de França. Deveria ter-me apresentado esse oficial, Sr. bailio.

– Está aqui – redargüiu o Sr. de Suffren – e como Vossa Majestade o permite... O Sr. de Suffren voltou-se. – Aproxime-se, Sr. de Charny – disse ele. A rainha estremeceu. Aquele nome despertava-lhe uma recordação muito recente para

estar esquecida. Então destacou-se um jovem oficial do grupo formado pelo Sr. de Suffren e apareceu

repentinamente aos olhos de el-rei. A rainha fizera um movimento para ir ao encontro do mancebo, entusiasmada como

estava pela narração que acabava de ouvir. Mas ouvindo-lhe o nome, e vendo o oficial da marinha que o Sr. de Suffren apresentava a

el-rei, parou, empalideceu e soltou um pequeno murmúrio. A Srª. de Taverney também empalideceu e olhou com ansiedade para a rainha. Quanto ao Sr. de Charny, sem nada ver, sem olhar para nada, sem que no rosto

exprimisse outra coisa que não fosse o respeito, inclinou-se perante o rei, que lhe deu a mão a beijar; depois, modesto e trémulo, voltou, sob as vistas ávidas da assembléia, para o círculo de oficiais que o felicitavam em voz alta, e o esmagavam com abraços.

Houve então um movimento de silêncio e de comoção, durante o qual se viu o rei radiante, a rainha sorrindo indecisa, o Sr. de Charny com os olhos baixos, e Filipe, a quem não escapara a comoção da rainha, desassossegado e observador.

– Vamos, vamos! – disse por fim el-rei – venha, Sr. de Suffren, venha para conversarmos, ardo em desejos de o ouvir, e quero provar-lhe quanto pensei no senhor.

– Senhor, tanta bondade... – Oh! verá as minhas cartas, Sr. bailio; verá cada fase da sua expedição prevista ou

adivinhada pela minha solicitude. Venha, venha. Depois, tendo dado alguns passos, levando consigo o Sr. de Suffren, voltou-se para a

rainha e disse: – A propósito, senhora, mandei construir, como sabe, uma nau de cem peças; mudei de

parecer a respeito do nome que se lhe há-de dar. Em lugar de lhe chamar, como tínhamos combinado, não é verdade, senhora?...

Maria Antonieta, já um pouco mais senhora de si, completou o pensamento de el-rei. – Sim, sim – disse ela – há-de chamar-se a Suffren; eu serei a madrinha e o Sr. bailio o

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padrinho. Os brados, até então contidos, soaram com entusiasmo: viva el-rei! viva a rainha! – E viva a Suffren! – acrescentou el-rei com extrema delicadeza; porque ninguém podia, na

presença do rei, bradar: Viva o Sr. de Suffren! ao passo que os mais minuciosos observadores da etiqueta podiam bradar: Viva a nau de Sua Majestade!

– Viva a nau Suffren! – repetiu então a assembléia cheia de entusiasmo. O rei fez um sinal de agradecimento pelo bem que fora compreendida a sua idéia, e saiu

levando consigo o bailio.

XII

O Senhor de Charny Assim que o rei desapareceu, os príncipes e princesas que estavam na sala, foram agrupar-

se em volta da rainha. Um sinal do Sr. de Suffren ordenara ao sobrinho que esperasse por ele; e depois de uma

cortesia que indicava a obediência, este deixara-se ficar no grupo em que o vimos. A rainha, que trocara com Andréia uns olhares significativos, não perdia de vista o

mancebo, e cada vez que olhava para ele, dizia consigo: – Não há que duvidar, é ele. Era a isto que a Srª. de Taverney respondia por uma pantomima, que não deixava dúvidas

à rainha, pois que significava: – Oh! sim, minha senhora, é ele, é seguramente ele, não há que duvidar. Filipe, já dissemos, via essa preocupação da rainha; via-a e compreendia, quando não a

causa, pelo menos o sentido vago. Nunca aquele que ama se engana sobre as impressões daqueles a quem ama. Adivinhava portanto que algum acontecimento singular, misterioso, desconhecido de

todos, menos de Andréia, acabava de influir na rainha. Efectivamente, a rainha não estava bem em si e procurava um refúgio, escondendo o

rosto com o leque, ela que, geralmente, fazia baixar os olhos a toda a gente. Enquanto o mancebo pensava em que acabaria aquela preocupação de Sua Majestade,

enquanto procurava sondar a fisionomia dos Srs. de Coigny e de Vaudreuil, a fim de certificar-se de que não tinham parte alguma naquele mistério, e que os via indiferentemente entretidos em conversar com o Sr. de Haga, que se achava também em Versalhes, um personagem, revestido do majestoso hábito de cardeal, entrou na sala onde se achavam todos reunidos, seguido por oficiais e alguns prelados.

A rainha, logo que reconheceu monsenhor Luís de Rohan, mesmo da extremidade da sala onde se achava, imediatamente voltou a cara, sem sequer se dar ao incómodo de disfarçar o franzir das sobrancelhas.

O prelado atravessou toda a assembléia sem cortejar ninguém e foi direito à rainha, diante da qual se inclinou mais como homem de sociedade que cumprimenta uma mulher, do que como súbdito que corteja uma rainha.

Depois dirigiu um cumprimento a Sua Majestade, que apenas voltou a cabeça, murmurou duas ou três palavras de frio cerimonial e continuou conversando com as Srªs. de Lamballe e de Polignac.

O príncipe Luís fingiu não perceber a má recepção da rainha. Acabou as suas cortesias, voltou sem precipitação, e com toda a elegância de perfeito homem de corte, dirigiu-se às senhoras princesas, tias de el-rei, que largamente praticaram com ele, pois que em virtude do jogo da redouça, que estava muito em moda na corte, faziam-lhe aí uma recepção tão amável, quanto havia sido glacial a da rainha.

Era o cardeal Luís de Rohan um homem na força da idade, de rosto respeitável e modos

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nobres, e cujas feições revelavam inteligência e doçura; tinha a boca fina e circunspecta, a mão admirável; a fronte, alguma coisa calva, acusava nele o homem dado a prazeres ou a estudos; e no príncipe de Rohan havia efectivamente uma e outra coisa.

Era estimado das mulheres que nele apreciavam o galanteio sem banalidade nem ruído, e era conhecido pela sua magnificência. Efectivamente, tinha achado meio de se julgar pobre com um milhão e seiscentos mil libras de renda.

El-rei prezava-o porque era sábio, a rainha, pelo contrário, odiava-o. Os motivos daquele ódio nunca foram bem sabidos, mas podem achar probabilidade em

duas qualidades de comentários, que corriam. Em primeiro lugar, diziam que o príncipe Luís, na sua qualidade de embaixador em

Viena, escrevera a Luís XV, a respeito de Maria Teresa, umas cartas cheias de ironia, que nunca Maria Antonieta lhe pôde perdoar.

Além disso, e esta razão é mais racional e verossímil, parece que o embaixador escreveu também ao rei Luís XV uma carta, que fora lida em voz alta numa ceia em casa da Dubarry, carta em que dizia, a respeito do casamento da jovem arquiduquesa, certas particularidades hostis ao amor-próprio da mulher, que naquela época era magríssima.

Aqueles ataques parece que feriram vivamente Maria Antonieta, que não podia publicamente confessar-se vítima deles, mas jurara, tarde ou cedo, vingar-se do autor.

Havia naturalmente em tudo isso alguma intriga política. A embaixada de Viena fora tirada ao Sr. de Breteuil para se dar ao Sr. de Rohan. O Sr. de Breteuil, fraco de mais para abertamente lutar contra o príncipe, empregara o

que em diplomacia se chama habilidade. Obtivera as cópias ou os originais das cartas do prelado, então embaixador, e opondo aos serviços reais prestados pelo diplomata, a pequena hostilidade que mostrava à família imperial austríaca, encontrara na delfina um auxiliar decidido para perder algum dia o Sr. príncipe de Rohan.

Este ódio conservava-se abafadamente na corte, e tornava difícil a posição do cardeal. Cada vez que ele via a rainha, passava pelo glacial acolhimento de que tentámos dar idéia. Todavia, superior ao desprezo em que o tinham, ou porque fosse realmente forte, ou

porque um sentimento irresistível o levasse a tudo perdoar à sua real inimiga, Luís de Rohan aproveitava todas as ocasiões de se chegar a Maria Antonieta, os meios não lhe faltavam, porque o príncipe Luís de Rohan era esmoler-mor da corte.

Nunca se queixara, nunca dissera coisa alguma a semelhante respeito. Uma pequena roda de amigos, entre os quais se distinguia o barão de Planta, oficial alemão, seu íntimo confidente, consolavam-no do mau acolhimento real, quando as damas da corte, que a respeito de severidade para com o cardeal nem todas moldavam o seu proceder pelo da rainha, não conseguiam operar esse feliz resultado.

O cardeal acabava de passar como uma sombra por sobre o alegre quadro que a rainha desenhava na imaginação, e logo que se afastou, Maria Antonieta, sossegando, disse à princesa de Lamballe:

– Na verdade, a acção daquele jovem oficial, sobrinho do Sr. bailio, é uma das mais notáveis desta guerra! Como se chama ele?

– É o Sr. de Charny, creio eu – respondeu a princesa. Depois, voltando-se para Andréia, a fim de interrogá-la, perguntou: – Não é esse o nome, Srª. de Taverney? – É Charny, sim, real senhora – respondeu Andréia. – É preciso – continuou a rainha – que o próprio Sr. de Charny nos conte esse episódio,

sem omitir uma única circunstância. Vão procurá-lo. Ele ainda cá está? Destacou-se um oficial de um grupo e apressou-se em sair para executar a ordem da

rainha. No mesmo momento, quando ela olhava em volta de si, viu Filipe, e impaciente como

sempre, disse-lhe:

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– Sr. de Taverney, veja se o encontra. Filipe corou, pensando talvez que devera ter prevenido o desejo da sua soberana. Foi

portanto procurar o feliz oficial, a quem, desde que ele fora apresentado, não perdera de vista. Encontrou-o facilmente. O Sr. de Charny chegou um instante depois entre os dois mensageiros da rainha. A roda abriu-se perante ele, e a rainha, então, examinou-o com a maior atenção do que na

véspera. Era um rapaz de vinte e sete ou vinte e oito anos, direito e delgado, de ombros largos, e

pernas bem modeladas. O rosto, suave e fino ao mesmo tempo, tomava um carácter de energia singular cada vez que ele dilatava os olhos azuis, rasgados e penetrantes; e, coisa rara num homem que acabava de chegar das guerras da índia, a pele era tão clara quanto a de Filipe tinha de trigueira. No pescoço, forte e admiravelmente contornado, tinha uma gravata, cuja alvura era menos bela que a da tez.

Quando se aproximou do grupo, no centro do qual estava a rainha, ainda não manifestara por forma alguma que conhecia nem a Srª. de Taverney, nem a rainha.

Cercado de oficiais que lhe faziam perguntas, e a quem respondia cortesmente, parecia ter esquecido que havia um rei a quem falara e uma rainha, que olhara para ele.

Tanta civilidade, tamanha discrição atraíram ainda mais a atenção da rainha, que tão delicada era no que respeitava a maneiras de proceder.

Não era só aos estranhos que o Sr. de Charny procurava ocultar a sua surpresa, à vista inesperada da senhora que encontrara em Paris. O seu maior empenho consistia, se possível fosse, em que ela mesma ignorasse que a conhecera.

– Sr. de Charny – disse-lhe a rainha – estas senhoras estão com desejo, desejo naturalíssimo, e que eu experimento como elas, de lhe ouvir essa história sucedida consigo a bordo da fragata.

– Senhora – redargüiu o mancebo no meio do profundo silêncio que reinava – suplico a Vossa Majestade, não por modéstia, mas por humanidade, que me dispense de semelhante narração; o que eu fiz como oficial do Severo, dez outros oficiais, meus camaradas, tiveram ao mesmo tempo que eu a idéia de o fazer; tive a fortuna de ser o primeiro a pôr em execução essa idéia, e é esse o meu único merecimento. Quanto a dar ao que fiz a importância de uma narração dirigida a Vossa Majestade, isto é impossível, e o real coração de Vossa Majestade facilmente o compreenderá.

“O comandante do Severo é um valente oficial, que naquele dia perdera a cabeça. Ai, senhora, aos mais valentes o haverá Vossa Majestade ouvido dizer já, nem todos os dias se tem coragem; àquele oficial bastavam-lhe dez minutos para tornar a si; a nossa resolução de não nos entregarmos, durou o tempo suficiente para que ele recobrasse o ânimo, como recobrou; desde então foi o mais valente de nós todos. Aí está o motivo por que suplico a Vossa Majestade que não exagere o mérito da minha acção; seria uma razão para afligir profundamente o pobre oficial, que todos os dias chora o erro de um minuto.”

– Muito bem – disse a rainha sensibilizada e radiante de alegria, ao ouvir o favorável murmúrio que em redor dela havia acolhido as generosas palavras do moço oficial; – muito bem, Sr. de Charny, muito bem; é um homem honrado e como tal o conhecia já.

A estas palavras o oficial ergueu a cabeça, e uma vermelhidão juvenil lhe assomou às faces; os olhos desviaram-se da rainha para Andréia com uma espécie de terror. O valente marinheiro temia a vista daquela natureza tão generosa e temerária na sua generosidade.

Efectivamente, o Sr. de Charny tinha ainda que passar por outra experiência. A intrépida rainha prosseguiu assim: – Porque, minhas senhoras, devem saber que o Sr. de Charny, este jovem oficial, que

apenas desembarcou ontem, este desconhecido, era já muito nosso conhecido antes da sua apresentação aqui, e merece ser conhecido e admirado por todas as mulheres.

Via-se que a rainha ia falar, que ia contar uma história em que cada qual podia recolher

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um pequeno escândalo ou um pequeno segredo. Fizeram portanto roda, que estreitaram muito, e prestaram atenção.

– Saibam, minhas senhoras – disse a rainha – que o Sr. de Charny é tão indulgente para com as mulheres quanto é desapiedado para com os Ingleses. Contaram-me dele uma história, que, desde já declaro, lhe fez grande honra no meu espírito.

– Senhora!... – balbuciou o jovem oficial. Adivinha-se que as palavras da rainha e a presença daquela a quem se referiam, fizessem

crescer a curiosidade. Um estremecimento percorreu todo o auditório que escutava atento. Charny, com a fronte banhada em suor, de boa vontade daria um ano de vida para estar

ainda na Índia. – O caso é este – prosseguiu a rainha: – Duas senhoras que eu conheço, tinham-se

demorado por fora, e acharam-se envoltas numa multidão tumultuosa. Corriam grande perigo, um perigo iminente. O Sr. de Charny passava naquele momento por acaso, ou antes por felicidade. Afastou a multidão e tomou, sem as conhecer e apesar de ser difícil reconhecer-lhes a posição social, tomou as duas senhoras sob a sua protecção, e acompanhou-as muito longe, a dez léguas de Paris, creio eu.

– Oh! Vossa Majestade exagera – disse Charny rindo e tranquilizando-se com a forma que a narração tomara.

– Vamos, seriam cinco léguas – disse o conde de Artois, metendo-se subitamente na conversa.

– Seja, meu irmão – continuou a rainha; – mas o que há de mais belo, é que o Sr. de Charny nem sequer indagou o nome das duas senhoras, a quem prestara tão relevante serviço, deixou-as no lugar que elas lhe indicaram, e afastou-se, sem sequer olhar para traz para as espreitar, de modo que elas escaparam-lhe das mãos protectoras sem terem sido um só instante incomodadas.

Todos se admiraram, e Charny foi cumprimentado por vinte senhoras ao mesmo tempo. – É uma bela acção, não é verdade? – acrescentou a rainha; – um cavalheiro da Távola

Redonda, não procederia melhor. – É sublime! – responderam todos em coro. – Senhor de Charny – prosseguiu a rainha – el-rei está certamente ocupado em

recompensar o Sr. de Suffren, seu tio; eu, da minha parte, desejava muito ser útil nalguma coisa ao sobrinho de tão grande homem.

E estendeu-lhe a mão. E enquanto Charny, pálido de alegria, a beijava, Filipe, pálido de dor, escondia-se entre os

cortinados da sala. Andréia empalidecera também, e contudo não podia adivinhar quanto seu irmão sofria. A voz do conde de Artois interrompeu esta cena, que tão curiosa seria para um

observador. – Ah! meu irmão, Sr. de Provença – disse ele em voz alta – venha, senhor, venha, que

faltou a um belo espectáculo, à recepção do Sr. de Suffren; realmente, foi um momento que nunca os corações franceses hão-de esquecer. Como diacho faltou a isto, meu irmão, o senhor que é por excelência o homem exacto?

O príncipe mordeu os lábios, cortejou distraidamente a rainha e respondeu uma banalidade.

Depois, em voz baixa, perguntou ao Sr. de Favras, capitão das suas guardas: – Como veio ele a Versalhes? – Ah! senhor – respondeu este – há mais de uma hora que procuro adivinhar como foi,

mas não o posso compreender.

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XIII

Os cem luíses da Rainha Agora que fizemos conhecer ou renovar o conhecimento dos nossos leitores com os

principais personagens desta história, agora que já os introduzimos na casa de recreio do conde de Artois, e no palácio do rei Luís XVI, em Versalhes, vamos conduzi-los novamente à casa da rua de Saint-Claude onde a rainha de França entrou incógnita, subindo ao quarto andar com Andréia de Taverney.

Apenas desapareceu a rainha, sabemos nós que a Srª. de La Motte contou e tornou a contar alegremente os cem luíses que tão milagrosamente acabavam de cair do céu.

Cinqüenta belos dobrões de quarenta libras cada um, estavam espalhados sobre a pobre mesa, reflectindo os raios da lâmpada, e pareciam humilhar com a sua aristocrática presença tudo quanto havia de humildade e pobreza na modesta e pobre água-furtada.

Depois do prazer de receber, a Srª. de La Motte não conhecia maior prazer no mundo do que o de gastar. Possuir de nada valia, no seu modo de entender, se da posse não nascesse a vontade.

Havia já tempo que lhe repugnava ter a sua aia por confidente da grande miséria em que vivia; apressou-se portanto a chamá-la para que fosse também confidente da sua riqueza.

Chamou então pela Srª. Clotilde, que ficara na antecâmara, e dispondo habilmente a luz da lâmpada de modo que o ouro reluzisse sobre a mesa, disse-lhe:

– Clotilde! A criada avançou um passo no quarto. – Venha cá e veja – acrescentou a Srª. de La Motte. – Oh! minha senhora! – exclamou a velha pondo as mãos e estendendo o pescoço. – Estava com cuidado no seu ordenado? – perguntou a condessa. – Oh! minha senhora, eu nunca proferi uma palavra sequer a semelhante respeito. O mais

que fiz, foi perguntar à Srª. condessa quando me poderia pagar, pergunta naturalíssima, porque havia três meses que eu não recebia coisa alguma.

– Chegará para lhe pagar? – Santo Deus! se eu tivesse quanto aí está, ficaria rica para toda a vida. A condessa de La Motte olhou para a velha e encolheu os ombros num gesto de

inexplicável desdém. – Ao menos é uma felicidade – disse ela – que certas pessoas se lembrem do meu nome,

quando as que mais se deveriam lembrar, tanto se esquecem dele. – E em que vai empregar todo esse dinheiro? – perguntou Clotilde. – Em tudo! – Em primeiro lugar, eu, minha senhora, o que achava mais importante e urgente,

segundo entendo, era reformar a cozinha, porque enfim, como agora tem dinheiro, vai dar jantares, não é verdade?

– Caluda! – disse a Srª. de La Motte – que estão batendo. – A Srª. condessa engana-se – disse a velha, sempre económica dos passos. – Digo-lhe que batem! – Oh! asseguro à Srª. condessa... – Vá ver! – Eu não ouvi coisa alguma. – É como ainda agora, que também não tinha ouvido; e se as duas senhoras se tivessem

ido embora sem entrar? Esta razão pareceu convincente à velha Clotilde, que se encaminhou para a porta. – Ouviu agora? – bradou a Srª. de La Motte. – Ah! é verdade – disse a velha. – Eu vou, eu vou.

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A condessa de La Motte apressou-se em esconder numa gaveta os cinqüenta dobrões que estavam em cima da mesa.

E fechando a gaveta, murmurou: – Vamos, Providência, envia-me outro cento de luíses! E a frase foi pronunciada com uma expressão de céptica avidez, que teria feito sorrir

Voltaire. Entretanto, abriu-se a porta do patamar e ouviram-se passos de homem na casa de

entrada. Trocaram-se algumas palavras entre o homem e Clotilde, sem que a condessa lhes

pudesse perceber o sentido. Depois fechou-se de novo a porta, os passos sumiram-se na escada e a velha voltou

vagarosamente com uma carta na mão. – Aqui está – disse ela – dando a carta à ama. A condessa examinou atentamente a letra do sobrescrito e o sinete, e depois, erguendo a

cabeça, perguntou: – Era um criado? – Era, sim, minha senhora. – Com que libré ? – Não trazia libré. – Era algum moço de recados? – Creio que sim. – Eu conheço estas armas – disse a condessa de La Motte examinando novamente o

sinete. Depois, chegando-o à luz da lâmpada para poder ver melhor, disse: – Nove tributos de ouro em campo vermelho; ora quem é que usa nove tributos de ouro

em campo vermelho? Pensou um instante, mas baldadamente. – Vejamos o que diz a carta – murmurou ela. E abrindo-a cuidadosamente para não lhe estragar o sinete, leu: “Minha senhora: Poderá falar à pessoa a quem se dirigiu, amanhã à noite, se lhe fizer o

favor de a receber.” – E nada mais? A condessa fez novo esforço de memória. – Escrevi a tanta gente – disse ela. – Vejamos, a quem escrevi eu?... A todos. É homem

ou mulher quem me responde?... A letra não significa nada... é regularíssima... verdadeira letra de secretário. O estilo é de protector... comum e velho.

Depois repetiu: “Poderá falar à pessoa a quem se dirigiu...” – Nesta frase há intenção de humilhar. É de mulher. E continuou: “...amanhã à noite, se lhe fizer o favor de a receber.” – Nada, se fosse mulher, diria simplesmente: Espero-a em casa amanhã à noite. Será de

homem?... Mas aquelas senhoras vieram aqui, e entretanto eram senhoras da alta sociedade... Não traz assinatura!... Quem diacho usa de nove tributos de ouro em campo vermelho? Oh! onde tinha eu a cabeça? são os Rohan, por vida minha! Sim, escrevi ao Sr. de Guémenée e ao Sr. de

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Rohan; um deles responde-me, é muito simples. Mas o escudo não é quarteado, então a carta é do cardeal. Ah! o cardeal de Rohan, um galanteador, um lamecha, um ambicioso, há-de vir visitar a Srª. de La Motte, se todavia a Srª. de La Motte o quiser receber!

– Bem! sossegue que há-de ser recebido. E quando? Amanhã à noite. E a condessa tornou-se pensativa. – Uma dama de caridade que dá cem luíses pode ser recebida numa água-furtada; pode

gelar-se nos meus quartos frios, padecer assentada nas minhas cadeiras duras como as grelhas de S. Lourenço, sem fogo. Mas um príncipe da igreja, um homem dos toucadores, um conquistador de corações! Não, não, a miséria que este esmoler há-de vir visitar deve ter mais luxo do que podem muitos opulentos ostentar.

Em seguida, voltando-se para a criada, que acabava de lhe preparar a cama, disse: – Até amanhã, Srª. Clotilde, lembre-se de me acordar bem cedo. E com isto, decerto no intuito de estar mais à vontade para meditar, a condessa fez um

sinal à velha para que a deixasse só. A Srª. Clotilde espertou o fogo, que abafara com cinzas para dar aspecto ainda mais

miserável ao quarto, fechou a porta e retirou-se para o cubículo onde dormia. Joanna de Valois, em vez de dormir, traçou os seus planos durante a noite. Tomou notas

com um lápis à luz da lamparina, e, descansada quanto ao dia seguinte, deixou-se cair em grato entorpecimento, do qual, segundo a sua recomendação, Clotilde, que pouco mais dormira, foi acordá-la ao amanhecer.

Pelas oito horas estava já vestida e pronta, com um vestido de seda elegante e um toucado de muito gosto.

Calçada a um tempo como uma grande fidalga e como mulher bonita, com um sinal na face esquerda, e de corpete bordado, mandou buscar uma espécie de carrinho de mão à praça mais próxima onde se achava para alugar aquele género de transporte.

Preferiria decerto uma cadeirinha, mas era preciso mandá-la buscar muito longe. O carrinho era tirado por um robusto auvernhês, que se encarregou de conduzir a Srª.

condessa a praça Real, onde, debaixo das arcadas do lado do sul, numas antigas lojas de um palácio abandonado, morava mestre Fingret, armador e estofador, com mobília nova e usada para vender ou alugar, tudo por preços cómodos.

O auvernhês levou rapidamente a freguesa da rua de Saint-Claude à praça Real. Dez minutos depois da sua saída, chegava a Srª. condessa aos armazéns de mestre

Fingret, onde vamos encontrá-la admirando e fazendo a sua escolha numa espécie de pandemónio, cujo aspecto tentaremos esboçar ao leitor.

Imagine-se um casarão duns cinqüenta pés de comprimento por trinta de largura e dezessete de altura; as paredes estavam cobertas de tapeçarias do reinado de Henrique IV e de Luís XIII, o tecto ficava encoberto com a grande quantidade de lustres do século XVII, que dele pendiam juntamente com animais embalsamados, lâmpadas de igreja, peixes voadores e muitas outras coisas, que tinham atravessado já bom número de séculos.

No chão, coberto de tapetes e esteiras, havia mobília de colunas torcidas, de pés esquadrados, bufetes de madeira esculpida, trenós à Luís XV, de pés dourados, sofás de damasco cor de rosa ou de veludo de Utrecht, canapés, grandes poltronas de marroquim como as de Sully, armários de ébano com as almofadas das portas em relevo, frisos e escudetes de latão, mesas de Boule com esmalte ou porcelana, jogos de xadrez, toucadores e seus pertences, e cómodas com embutidos de diferentes instrumentos ou de flores.

Leitos de pau-rosa ou de carvalho de estrado ou de armação, cortinas de todos os feitios, de todos os lavores, de todas as fazendas, embaraçando-se, confundindo-se, casando-se ou repelindo-se nas penumbras dos armazéns.

Cravos, pianos, espinetas, harpas, sistros; o cão Malborough empalhado, com olhos de vidro.

Além disto, roupa de toda a qualidade: vestidos pendurados ao lado de casacas de veludo;

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armas com punhos de aço, de prata ou de madrepérola. Castiçais, retratos de avoengos, pinturas pardacentas, gravuras emolduradas e todas as

imitações de Vernet, então em voga, daquele Vernet a quem a rainha dizia com tanta graça: – Decididamente, Sr. Vernet, não há outro em França como o senhor, para fazer a chuva

e o bom tempo.

XIV

Mestre Fingret Tais eram os objectos que seduziam os olhos, e por conseqüência a imaginação da gente

de poucos meios nos armazéns de mestre Fingret, na praça Real. Nenhumas daquelas mercadorias eram novas, francamente o confessava a tabuleta ; mas,

reunidas, faziam-se valer umas às outras e representavam um todo muito mais considerável do que o poderiam exigir os compradores mais desdenhosos.

A Srª. de La Motte, uma vez admitida a contemplar todas aquelas riquezas, começava a perceber melhor tudo quanto lhe faltava na sua casa da rua de Saint-Claude.

Faltava-lhe uma sala capaz, onde pudesse ter um sofá e poltronas. Uma casa de jantar, que pudesse receber bufetes, escaparates e aparadores. Um gabinete de toucador, onde tivesse cortinas, espelhos e mesas. E finalmente, o que sobretudo lhe faltava, ainda que tivesse sala, casa de jantar e

toucador, era dinheiro para adquirir a mobília necessária para encher essas casas todas. Mas com os armadores de Paris foi sempre fácil entrar em transacção, e nunca ouvimos

dizer que uma mulher moça e bonita morresse no limiar de uma porta, por não conseguir fazer que lha abrissem.

Em Paris, o que se não compra, aluga-se, e foram os que alugam, que puseram em moda o rifão: ver, é ter.

A condessa de La Motte, na esperança de poder alugar o que desejasse, depois de ter deitado contas, viu um certo objecto de seda amarela cor de ouro, que logo à primeira vista lhe agradou bastante.

Aquele objecto, composto de dez peças, fazia parte de um jogo completo de uma casa e era impossível que coubesse no quarto andar da rua de Saint-Claude.

Para combinar tudo, seria preciso alugar o terceiro andar, que era composto de saleta, casa de jantar, uma salinha e um quarto de cama.

De forma que o terceiro andar ficaria destinado para receber as esmolas dos cardeais, e o quarto para receber as dos estabelecimentos de caridade, isto é, no luxo as esmolas das pessoas que as dão por ostentação, e na miséria as das pessoas cheias de preconceitos, que não gostam de dar esmola a quem não precisa dela.

A condessa, tomado o seu partido, voltou-se para o lado escuro do armazém, isto é, para o lado onde as riquezas se apresentavam com maior esplendor, que era o lado dos cristais, dos dourados e dos espelhos.

Viu então um homem de boné na mão, com modo impaciente e sorriso algum tanto amarelo, que fazia girar uma chave que tinha enfiada nos dedos indicadores, unidos um ou outro pelas unhas.

Aquele digno inspector de objectos em segunda mão era o próprio mestre Fingret, a quem os oficiais tinham anunciado a visita de uma formosa senhora, que chegava num carrinho de mão.

No pátio viam-se os mesmos oficiais, vestidos de burel e camelão, com as barrigas das pernas ao ar por causa das meias estarem algum tanto risonhas. Ocupavam-se em restaurar os móveis menos usados com os mais velhos, ou, por melhor dizer, a abrir sofás, poltronas e bancos antigos, para deles tirarem a crina e a lã, que devia servir para estofar os seus sucessores.

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Um cardava a crina, misturava-a generosamente com estopa e estofava com ela outro objecto.

Outro brunia as poltronas em bom estado. Um terceiro engomava fazendas que tinham sido lavadas com sabões aromáticos. E com esses velhos materiais se compunham aqueles móveis tão bonitos, que a Srª. de La

Motte admirava naquele momento. O Sr. Fingret, lembrando-se de que a senhora podia ver as operações dos seus oficiais, e

interpretar a traficância menos convenientemente do que convinha aos seus interesses, fechou uma porta de vidraça que dava para o pátio, receando, disse ele, que a poeira fizesse mal à senhora...

Ao dizer a palavra, senhora... parou. Era uma interrogação. – Condessa de La Motte Valois – redargüiu Joana negligentemente. Ouvindo este título pomposo, o Sr. Fingret desuniu as unhas, meteu a chave no bolso e

aproximou-se. – Oh! – disse ele – aqui nada há que convenha à Srª. condessa. Tenho objectos novos,

belos, magníficos. Não imagine a Srª. condessa que, por estar na praça Real, a casa de Fingret não tenha mobília tão boa como a do armador da casa real. Deixe estas coisas, minha senhora, e tenha a bondade de entrar no outro armazém.

Joana corou. Tudo quanto ali vira parecia-lhe tão bom, que nem sequer pensava em poder comprá-lo. Ao mesmo tempo que a lisonjeava o ver-se julgada pelo Sr. Fingret, não podia deixar de

ter receio de que ele a julgasse bem de mais. Maldisse o seu orgulho, e arrependeu-se de não se ter anunciado como simples particular. Mas de todo o mau vício sabe um espírito subtil sair-se. – Nada de objectos novos, senhor, que não é isso o que pretendo. – Quer naturalmente mobilar alguns quartos a alguém? – Tal qual, quero mobilar uns quartos a uma pessoa. Ora, deve perceber que para isso... – Perfeitamente. A Srª. condessa pode escolher – redargüiu Fingret, fino como um lojista

de Paris, que não tem amor-próprio em vender objectos novos de preferência aos velhos, uma vez que tanto ganhe nuns como noutros.

– Aquela mobília cor de ouro, por exemplo? – perguntou a condessa. – Oh! é pouca coisa, minha senhora, tem apenas dez peças. – A casa é medíocre – redargüiu a condessa. – Está nova, como a Srª. condessa pode ver. – Nova... em segunda mão. – Sem dúvida – disse o Sr. Fingret rindo; – mas enfim, tal qual está, vale oitocentas libras. O preço fez estremecer a condessa; como havia ela de confessar que a herdeira dos Valois

se contentava com uma mobília em segunda mão, mas que não podia dar por ela oitocentas libras?

Tomou o partido de se fingir zangada. – Mas – disse ela – ninguém lhe fala em comprar, senhor. Como presumiu que eu

quisesse comprar estes cacos? Trata-se apenas de alugar, e ainda assim... Fingret fez uma visagem, porque insensivelmente a freguesa ia perdendo o seu valor. Já se

não tratava de vender nem mobília nova, nem sequer em segunda mão; era apenas alugar. – Deseja a mobília cor de ouro? – perguntou ele. – É por um ano? – É por mês. É para uma pessoa da província. – São cem libras por mês – disse mestre Fingret. – O senhor está brincando; por esse preço, ao cabo de oito meses, era a mobília minha. – Concordo, Srª. condessa. – Bem, então?

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– Então, minha senhora, se fosse sua, deixava de ser minha, e por conseqüência não teria que ocupar-me em mandá-la consertar e limpar, o que custa, algum dinheiro.

A Srª. de La Motte reflectiu um momento. – Cem libras por mês – disse ela – é muito; mas é preciso raciocinar: ou será muito caro

daqui a um mês e então restituo a mobília deixando grande opinião de mim ao armador, ou então mudam as coisas, e daqui a um mês, posso encomendar mobília nova. Eu tencionava empregar quinhentas ou seiscentas libras; pois bem, cortemos à larga; vou gastar até cem escudos. – E elevando a voz: – Tomo a mobília cor de ouro para uma sala e quero todas as cortinas correspondentes.

– Sim, minha senhora. – E os tapetes? – Aqui estão, minha senhora. – E que me dá para outra casa? – Aquelas cadeiras verdes, aquele armário de carvalho, aquela mesa de pés torcidos, e

cortinas de damasco verde. – Bem, e para o quarto da cama? – Um leito grande e bom, excelente colchão e coberta de veludo cor de rosa bordada a

prata, cortinas azuis, guarnição de chaminé um tanto gótica, mas ricamente dourada. – E toucador? – Com rendas de Malines. Queira examiná-las, minha senhora. Cómoda delicadamente

embutida, armário correspondente, sofá estofado, cadeiras iguais, e fogão elegantíssimo, que pertenceu ao quarto de cama da Srª. de Pompadour, em Choisy.

– E tudo isso por que preço? – Por um mês? – Sim. – Quatrocentas libras. – Vejamos, Sr. Fingret, não me tome por nenhuma costureira. Às pessoas da minha

qualidade não se deita poeira nos olhos. Tenha a bondade de reflectir, quatrocentas libras cada mês valem quatro mil e oitocentas libras cada ano, e por esse preço posso ter um palácio todo mobiliado.

Mestre Fingret coçou a cabeça. – Faz-me desgostar da praça Real – continuou a condessa. – Terei nisso grande pesar, minha senhora. – Pois prove o que diz. Não dou mais de cem escudos por toda essa mobília. Joana pronunciou as últimas palavras com tal autoridade, que fez pensar o armador muito

seriamente no futuro. – Pois seja assim, minha senhora – disse ele afinal. – Mas com uma condição, mestre Fingret. – Qual, minha senhora? – Que tudo há-de estar posto nos seus lugares, na casa que lhe indicar, até às três horas da

tarde. – São dez horas, minha senhora! reflicta bem que estão dando dez horas. – Sim ou não? – Onde há-de ser, minha senhora? – Na rua de Saint-Claude. – A dois passos daqui? – Exactamente. O armador abriu a porta do pátio e bradou: Silvano! Landry! Remy! Três dos aprendizes

acudiram, encantados de ter um pretexto para interromper o trabalho e ver a linda freguesa. – As padiolas, os carros – pediu mestre Fingret. – Remy, leve a mobília cor de ouro. O Silvano, conduzirá no carrão de mão a mobília da

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saleta, e o Landry, como é mais cuidadoso, levará a do quarto de cama. – Verifiquemos a lista, minha senhora, e se quiser, vou passar o recibo. – Aqui estão seis duplos luíses – disse a condessa – e mais um luís singelo; dê-me o troco. – Aqui tem dois escudos de seis libras, minha senhora. – Dos quais darei um àqueles senhores, se o trabalho for bem feito – respondeu a

condessa. E tendo dado a morada, voltou para o carrinho. Uma hora depois, tinha ela alugado o terceiro andar, e não eram passadas duas horas,

estavam mobiliando e armando, simultaneamente, a sala, a saleta e o quarto de cama. O escudo de seis libras foi ganho pelos Srs. Latidry, Remy e Silvano, com uma diferença

de dez minutos. Transformada assim a casa, lavados os vidros, acesos os fogões, Joana meteu-se no

toucador e desfrutou duas horas de felicidade, a felicidade de pisar um bom tapete, de sentir em volta de si a repercussão de uma atmosfera quente sobre paredes cobertas de tapeçarias, e de respirar o perfume dalguns goivos, que banhavam alegremente as suas hastes em vasos do Japão, e abriam a flor no morno vapor do quarto.

Mestre Fingret não esquecera as serpentinas douradas para velas, dos dois lados dos espelhos, nem os lustres de vidros lapidados, que à luz da cera tomam todas as cores do arco-íris.

Fogo, flores, ceras, rosas perfumadas, tudo Joana empregou para o aformoseamento daquele paraíso, que destinava a Sua Eminência.

Teve até o cuidado de deixar a porta do quarto de cama maliciosamente entreaberta, divisando-se ali um belo fogo bem vermelho, a cujos reflexos luziam os pés das poltronas, o leito e as ferragens do fogão que fora da Srª. de Pompadour, e que consistiam numas cabeças de quimeras sobre as quais tinham descansado já os encantadores pés da marquesa.

O desvanecimento de Joana não tinha limites. Se o fogo animava o interior daquela casa misteriosa, se os perfumes denunciavam a

mulher, a mulher denunciava uma formosura, um espírito, uma graça, um gosto dignos de uma eminência.

Joana vestiu-se com tal apuro que o Sr. de La Motte, seu marido ausente, se ali estivesse, havia de tomar-lhe contas desse apuro. A mulher foi digna da casa e da mobília alugada por mestre Fingret.

Depois de comer alguma coisa, mas pouco, a fim de conservar toda a presença de espírito e a elegante palidez, Joana recostou-se numa grande poltrona, junto do fogão no seu quarto de cama.

Com um livro na mão, um dos sapatos bordados sobre o banquinho dos pés, esperou, prestando atento ouvido ao leve rumor do relógio, e ao rodar das carruagens, que raras vezes perturbavam o sossego do Marais.

Esperou. O relógio deu nove horas, dez, onze, e ninguém aparecia, nem de carruagem nem a pé.

Onze horas! Era aquela a hora dos prelados galantes, que aguçavam a sua caridade nalguma ceia folgazã, e que, não tendo muito que andar para entrar na rua de Saint-Claude, se regozijam de ser humanos, filantropos e religiosos tão comodamente.

Deu lugubremente meia noite na torre do convento das Irmãs do Calvário. Nem prelado, nem carruagem. As velas começam a amortecer, cobrindo algumas de

sombras diáfanas, as placas de cobre dourado. O fogo, renovado várias vezes, tornara-se em brasas, e pouco depois em cinza. Havia um

calor africano naqueles dois quartos. A criada velha, que se preparara e vestira, rosnava entre dentes por causa do mau

emprego que fizera da sua touca de fitas pretensiosas, cujos laços, acompanhando os movimentos da cabeça da velha, quando ela adormecia diante da vela da saleta, não se tornavam a erguer intactos, quer porque lhes chegasse o fogo, quer porque sobre eles pingasse a cera derretida.

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À meia noite, Joana ergueu-se furiosa da cadeira, de onde mais de cem vezes se levantara já para abrir a janela e olhar para as profundezas da rua.

O bairro estava tão sossegado como antes da criação do mundo. Mandou à velha que a despisse, recusou a ceia, e como as repetidas perguntas começavam

a importuná-la, despediu-a. E só, no meio das sedas, debaixo das belas cortinas, na sua excelente cama, não dormiu

melhor do que na véspera, em que se sentia mais feliz, porque tinha esperanças. Entretanto, depois de dar mil voltas na cama, depois de deplorar a sua desgraça, achou

desculpas para o cardeal. A primeira foi ser cardeal, esmoler-mor, ter mil negócios a tratar, e todos certamente mais

importantes do que fazer uma visita à rua de Saint-Claude. A outra desculpa era esta: Não conhecer a condessinha de Valois, o que realmente era uma consoladora desculpa

para Joana. Oh! por certo, que ficaria inconsolável se o Sr. de Rohan tivesse faltado à sua palavra depois de uma primeira entrevista.

Esta razão, que Joana dava a si mesma, para ser boa carecia de prova. Joana não teve mão em si: saltou fora da cama, embrulhou-se no roupão branco, acendeu

velas ao fogo da lamparina e contemplou-se por largo tempo no espelho. Efectuado o exame, sorriu, apagou as luzes e tornou a deitar-se. A desculpa era boa.

XV

O Cardeal de Rohan No dia seguinte Joana não desanimou, preparou-se novamente e dispôs-se a esperar. Disse-lhe o espelho que o Sr. de Rohan viria, por pouco que dela tivesse ouvido falar. Davam sete horas, e o fogo na sala estava na força do seu esplendor, quando se ouviu o

rodar duma carruagem que descia a rua de Saint-Claude. Ainda Joana não tivera ocasião para impacientar-se nem para chegar à janela a observar

quem viria. Da carruagem apeou-se um homem envolto num grande casacão; fechada a porta da rua

após esse homem, a carruagem retirou-se para uma viela próxima, onde foi esperar o dono. Pouco depois ouviu-se a campainha da Srª. de La Motte, e o coração desta bateu com tal

violência que se lhe poderiam contar as palpitações. Mas, envergonhada por ter cedido a uma comoção desarrazoada, Joana não fez caso

daquelas palpitações, dispôs conforme pôde um bordado em cima da mesa, pôs uma peça de música nova sobre o piano, e uma gazeta ao pé da chaminé.

Passados alguns segundos, a Srª. Clotilde veio anunciar à Srª. condessa: – A pessoa que escreveu anteontem, um bilhete! – Mande entrar – redargüiu Joana. Ouviu-se um passo leve, o ranger de uns sapatos, e Joana, levantando-se para o ir receber,

viu um homem vestido de veludo e seda, de cabeça bem erguida e que naquelas casas tão pequenas, parecia de uma altura extraordinária.

Impressionara-a desagradavelmente o incógnito que aquela pessoa afectava. – A quem tenho a honra de falar? – perguntou a condessa fazendo uma mesura, não de

protegida, mas de protectora. O príncipe olhou para a porta da sala onde a velha desaparecera, e respondeu. – Sou o cardeal de Rohan. Ao que a Srª. de La Motte, fingindo corar e desfazer-se em humildades, respondeu com

uma mesura como as que se fazem aos reis. Depois, em lugar de assentar-se numa cadeira, como a etiqueta requeria, puxou por uma

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poltrona e nela se assentou. O cardeal, vendo que o punham à vontade, colocou o chapéu em cima da mesa, e

olhando de frente para Joana, que também olhava para ele, disse: – É então certo, menina... – Senhora – interrompeu Joana. – Perdão... Eu esquecia... É então verdade, minha senhora... – Meu marido chama-se o conde de La Motte, senhor. – Sim, sim, muito bem; é gendarme do rei ou da rainha. – Sim, senhor. – E a senhora – disse ele – é da casa de Valois, não é assim? – De Valois, sim senhor. – Bom nome! – disse o cardeal cruzando as pernas uma na outra; – é um nome raro,

extinto. Joana adivinhou a dúvida do cardeal. – Extinto, não senhor – disse ela – pois que o uso e tenho um irmão que é o barão de

Valois. – Reconhecido por tal? – Isso não é indispensável, senhor: meu irmão pode ser rico ou pobre, mas não deixará

nunca de ser quem é, o barão de Valois. – Minha senhora, rogo-lhe que me explique essa transmissão. Interessa-me; eu gosto de

saber estas coisas de brasões. Joana contou simplesmente, negligentemente, o que o leitor sabe já. O cardeal ouvia-a e mirava-a. Não se incomodava em dissimular as suas impressões. Para que? Não dava crédito ao

mérito nem às qualidades de Joana; via-a bonita e pobre: olhava para ela e era bastante. Joana, que tudo percebia, adivinhou a má idéia do futuro protector. – De modo que – disse o Sr. de Rohan distraidamente – tem sido realmente infeliz? – Eu não me queixo, senhor. – Com efeito, tinha-me exagerado muito as dificuldades da sua posição. Olhou em volta de si. – Esta casa é cómoda, está bem mobiliada. – É óptima para uma costureira, não há dúvida – redargüiu Joana, impaciente por

empenhar a acção. – Sim, senhor. O cardeal fez um movimento. – Como? – interrogou com espanto – chama a isto uma casa de costureira? – Não creio, senhor – disse ela – que lhe possa chamar casa de princesa. – E a senhora é princesa--disse ele com uma dessas imperceptíveis ironias, que só os

espíritos elevados ou as pessoas de qualidade distinta sabem o segredo de introduzir no seu modo de falar, sem se tornarem de todo impertinentes.

– Eu sou da casa de Valois, assim como o senhor é da casa de Rohan. É tudo quanto sei. E estas palavras, pronunciadas com a suave majestade da desgraça revoltada, majestade da

mulher não compreendida, foram ao mesmo tempo tão harmoniosas e dignas, que o príncipe não se deu por ofendido, e o homem sentiu-se comovido.

– Minha senhora – disse ele – esquecia que, primeiro que tudo, tinha de lhe pedir desculpa. Mandei-lhe dizer que viria ontem, mas tive que fazer em Versalhes por causa da recepção do Sr. de Suffren, o que me forçou a renunciar ao prazer de a ver.

– É ainda grande honra que tivesse pensado hoje em mim, senhor, e o Sr. conde de La Motte, meu marido, sentirá ainda mais o exílio em que o detêm a minha miséria, pois que esse exílio o priva de gozar de tão ilustre presença.

A palavra “marido” chamou a atenção do cardeal. – Vive só, minha senhora – disse ele.

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– Absolutamente só. – Isso é realmente muito bonito para uma mulher nova e formosa... – É simplesmente natural, senhor, da parte de uma mulher que não estaria bem em

qualquer sociedade que não fosse aquela de que a sua pobreza a afasta. O cardeal calou-se. – Parece – redargüiu ele – que os genealogistas não contestam a sua genealogia? – De que me serve isso? – disse ela desdenhosamente, levantando com gesto encantador

os anéis de cabelos frisados que lhe ornavam as fontes. O cardeal chegou a sua cadeira como querendo aproximar os pés do fogo. – Minha senhora, desejava saber em que posso ser-lhe útil. – Ora, em coisa nenhuma, senhor. – Como, em coisa nenhuma! – Vossa Eminência honra-me muito. – Falemos mais francamente. – Não posso ser mais franca, senhor. – Ainda há pouco se queixou – disse o cardeal circunvagando a vista como para lembrar a

Joana o que ela lhe dissera da mobília de costureira. – Decerto que me queixava. – Pois bem, então, minha senhora... – Pois bem, senhor, vejo que Vossa Eminência quer dar-me esmola, não é verdade? – Oh! minha senhora... – Não pode ser outra coisa. Eu recebi, efectivamente, esmolas, mas não quero mais

recebê-las. – Não compreendo bem... – Senhor, tenho sido bastante humilhada há algum tempo: já me não é possível resistir. – Minha senhora, abusa das palavras. Na adversidade não é nenhuma desonra... – Mesmo com o meu nome, vejamos; o Sr. de Rohan quereria mendigar? – Não falo de mim – disse o cardeal com certa perturbação não isenta de altivez. – Senhor, só conheço dois modos de pedir esmola: de carruagem ou à porta de uma

igreja; com ouro e veludo ou em farrapos. Pois bem! ainda agora, eu não esperava a honra da sua visita: pensava que tinha sido esquecida.

– Ah! sabia então que fora eu quem lhe escrevera? – disse o cardeal. – Vi as suas armas no sinete da carta. – Contudo, fingiu não me conhecer quando entrei?! – Porque não me tinha feito a honra de se fazer anunciar pelo seu nome. – Pois bem! agrada-me essa altivez – disse vivamente o cardeal olhando com benévola

atenção para os olhos animados e a fisionomia altiva de Joana. – Dizia eu portanto – continuou esta – que antes de o ver, tomara a resolução de pôr de

parte o miserável manto que encobre a minha miséria e a nudez do meu nome, e de sair em farrapos como qualquer mendiga cristã para implorar o meu pão, não do orgulho, mas da caridade dos viandantes.

– Espero, contudo, que não tenha esgotado todos os seus recursos, minha senhora. Joana não respondeu. – Tem umas terras quaisquer, mesmo que estejam hipotecadas; jóias de família! Essa, por

exemplo. Mostrava uma caixa com que Joana se divertia, passando-a de uma para outra mão. – Esta? – disse ela. – Realmente é uma caixa original! Dá licença? E pegou na caixa. – Ah! tem um retrato! E fez um gesto de surpresa.

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– Conhece o original desse retrato? – perguntou Joana. – É Maria Teresa. – Maria Teresa?! – Sim, a imperatriz de Áustria. – Realmente! – exclamou Joana. – Parece-lhe isso, senhor? O cardeal examinou atentamente a caixa. – Donde lhe veio isto? – perguntou ele. – De uma senhora que esteve aqui anteontem. – Em sua casa? – Em minha casa. – Uma senhora... E o cardeal olhou com atenção para a caixa. – Enganei-me, senhor, não era uma, eram duas. – E uma dessas duas senhoras foi quem lhe deu esta caixa? – perguntou ele com

desconfiança. – Não ma deu, não, senhor. – Como está ela, então, em seu poder? – Deixou-a aqui por esquecimento. O cardeal ficou pensativo, tão absorto que despertou a curiosidade em Joana e fez com

que ela pensasse, que seria conveniente falar com prudência. Depois o cardeal, erguendo a cabeça e olhando atentamente para a condessa, disse: – E como se chama essa senhora? Perdoa-me, não é verdade, que eu lhe dirija esta

pergunta? Eu mesmo estou envergonhado de a fazer; hei-de parecer um juiz. – Com efeito, senhor, a pergunta é singular – disse a condessa. – Indiscreta talvez; mas singular... – Singular, repito. Se eu conhecesse a senhora que deixou aqui esta caixa... – O quê? – Ter-lha-ia já mandado. Naturalmente tem-na em grande estimação, e eu não queria

pagar com a inquietação de quarenta e oito horas a sua amável visita. – Então não a conhece? – Não; sei unicamente que é superiora de uma casa de caridade. – De Paris? – De Versalhes. – De Versalhes!... a superiora de uma casa de caridade!... – Senhor, eu aceito o que as mulheres me dão; as mulheres não humilham uma pobre

trazendo-lhe socorros, e essa senhora, que alguns avisos de pessoas caritativas tinham esclarecido sobre a minha posição, deixou cem luíses sobre a minha mesa, na ocasião da sua visita.

– Cem luíses! – disse o cardeal com admiração; depois, vendo que podia ferir a susceptibilidade de Joana, que fizera um movimento nesse sentido, o cardeal prosseguiu:

– Perdão, minha senhora – acrescentou ele – não me admira de que lhe tivessem dado semelhante soma. Acho, pelo contrário, que merece toda a solicitude das pessoas caritativas, e o seu nascimento impõe-lhes uma lei para que lhe sejam úteis. É só o título da dama de caridade, que me admira; as irmãs de caridade costumam fazer esmolas mais pequenas. A Srª. condessa poderia dar-me os sinais dessa senhora?

– Dificilmente – redargüiu Joana para aguçar a curiosidade do seu interlocutor. – Como, dificilmente? mas se ela esteve aqui... – Certamente. Mas como, provavelmente, não queria que a conhecessem, encobria o

rosto e a cabeça com um grande capuz; além disso, vinha toda embrulhada em peles. Contudo... A condessa pareceu querer recordar-se. – Contudo... – repetiu o cardeal. – Pareceu-me ver... Não afirmo, senhor.

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– Que lhe pareceu ver? – Olhos azuis. – Boca? – Pequena, ainda que os beiços eram algum tanto grossos, principalmente o beiço

inferior. – Era alta ou baixa? – Era de altura regular. – E as mãos? – Eram perfeitas. – O pescoço? – Comprido e delgado. – A fisionomia? – Nobre e severa. – E a pronúncia? – Alguma coisa embaraçada. Mas talvez o Sr. cardeal conheça essa senhora? – Como a podia eu conhecer, Srª. condessa? – disse vivamente o prelado. – Pelo modo porque me interroga, ou mesmo pela simpatia que todos os membros das

obras pias têm uns pelos outros... – Não, minha senhora, não a conheço. – Entretanto, se o Sr. cardeal, efectivamente, tivesse alguma desconfiança... – Ora! a que propósito? – Inspirada por este retrato, por exemplo. – Ah! – redargüiu o cardeal, que receava ter deixado suspeitar demasiado; – sim,

certamente, este retrato... – Então! este retrato? – Pois bem! esse retrato parece-me ser... – O de Maria Teresa, imperatriz de Áustria, não é verdade? – Parece-me que sim. – Então julga... – Julgo que tenha recebido a visita de alguma senhora alemã, daquelas, por exemplo, que

fundaram uma casa de socorros... – Em Versalhes? – Em Versalhes, sim, minha senhora. E o cardeal calou-se. Mas claramente se conhecia que duvidava ainda, e que a presença daquela caixa na casa da

condessa tinha renovado as suas desconfianças. Só o que Joana não distinguia completamente, o que em vão procurava explicar, era o

fundo do pensamento do príncipe, pensamento visivelmente desvantajoso para ela e que a nada menos tendia, que a suspeitá-la de lhe querer armar um laço com certas aparências.

Efectivamente, podia ter sabido o quanto o cardeal se interessava pela rainha; era coisa que na corte estava longe de se ter conservado sequer no estado de meio segredo, e até apontámos todo o cuidado que empregavam certos inimigos em entreter a animosidade entre a rainha e o seu esmoler-mor.

Aquele retrato de Maria Teresa, aquela caixa de que ela habitualmente se servia, e que cem vezes o cardeal lhe vira nas mãos, como sucedia achar-se nas mãos de Joana, a mendiga?

A rainha teria realmente ido àquela pobre casa? E tendo ido, não se teria dado a conhecer a Joana? Teria esta algum motivo para

dissimular a honra que recebera? O prelado desconfiava. Já desconfiava desde a véspera. O nome de Valois tinha-lhe aconselhado que se

acautelasse; e então via que se não tratava já de uma mulher pobre, mas sim de uma princesa

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socorrida por uma rainha, que pessoalmente lhe trazia os seus benefícios. Era Maria Antonieta caritativa a esse ponto? Enquanto o cardeal assim desconfiava, Joana, que o não perdia de vista, e a quem

nenhum dos sentimentos do príncipe escapava, sentia-se num suplício. É, com efeito, um verdadeiro martírio, para consciências carregadas com o peso de uma desconfiança, ver a dúvida daqueles a quem desejavam convencer de pura verdade.

O silêncio era incómodo para ambos; o cardeal interrompeu-o com esta pergunta: – E a senhora que acompanhava a sua benfeitora, reparou nela? Pode dizer-me que

aspecto teria? – Oh! essa, vi-a eu bem – disse a condessa; – é alta e bonita, tem uma expressão decidida,

uma bela cor, e é muito bem feita. – E a outra senhora não a tratou pelo nome? – Sim, uma vez; mas foi pelo nome de baptismo. – Esse nome era? – Andréia. – Andréia! – exclamou o cardeal. E estremeceu. Este movimento, assim como os outros, não escapou à condessa de La Motte. O cardeal sabia já o que pretendia; o nome de Andréia tirara-lhe todas as dúvidas. Efectivamente, na antevéspera sabia-se que a rainha fora a Paris com a Srª. de Taverney.

Espalhara-se em Versalhes uma história de porta fechada, de fora de horas, de uma questão conjugal entre o rei e a rainha.

O cardeal respirou. Não havia laço nem trama na rua de Saint-Claude. A Srª. de La Motte pareceu-lhe pura e bela como o anjo da candura. Todavia precisava de uma última prova; o príncipe era diplomata. – Condessa – disse ele – confesso que há uma coisa que sobretudo me admira. – E qual é, senhor? – É que com tal nome e tais documentos, não se tenha dirigido a el-rei. – A el-rei? – Sim. – Mas, senhor, tenho dirigido a el-rei vinte requerimentos, vinte petições, e... – Sem resultado? – Sem resultado. – Mas, na falta do rei, todos os príncipes da casa real teriam acolhido as suas reclamações.

O Sr. duque de Orleans, por exemplo, é caritativo, e gosta muitas vezes de fazer o que el-rei não faz.

– Recorri a Sua Alteza o Sr. duque de Orleans, senhor, mas baldadamente. – Realmente! Admira-me isso. – Ora! é sempre assim, quando se não é rica nem recomendada, vêem-se os

requerimentos sumirem-se nas antecâmaras dos príncipes. – E o Sr. conde de Artois ? As pessoas extravagantes têm às vezes melhores acções do

que as caritativas. – Aconteceu com o Sr. conde de Artois o mesmo que com Sua Alteza o duque de

Orleans, e com Sua Majestade o rei de França. – Mas, enfim, há as senhoras princesas, tias de el-rei. Oh! essas, condessa, ou eu me

engano muito, ou devem ter respondido favoravelmente. – Pois nem essas responderam. – Oh! não posso crer que a princesa Isabel, irmã do rei, tivesse o coração insensível. – É verdade, senhor, Sua Alteza real, a quem solicitei uma audiência, tinha prometido

receber-me; mas não sei porquê, depois de ter recebido a minha petição, não se dignou mais dar-me notícias suas, por mais instâncias que eu fizesse.

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– É na verdade singular – disse o cardeal. Depois, subitamente, e como se esse pensamento só naquele instante se lhe apresentasse

ao espírito, exclamou: – Mas, santo Deus! nós esquecemos... – Quem? – Ora, a pessoa a quem primeiro que a ninguém se deveria ter dirigido. – A quem me deveria ter dirigido? – À dispensadora de todas as mercês, àquela que nunca recusou um socorro merecido, à

rainha. – À rainha? – Sim, à rainha; não a procurou? – Nunca – respondeu Joana com perfeita simplicidade. – Como! então não dirigiu nenhuma súplica à rainha? – Nenhuma. – Nem sequer procurou obter de Sua Majestade nenhuma audiência? – Tentei, mas não consegui. – Pelo menos há-de ter procurado fazer-se encontrada com ela, para que a chamasse à

corte. Era um meio bom. – Nunca empreguei esse meio. – Realmente, minha senhora, diz-me coisas incríveis. – Não, realmente, nunca fui a Versalhes senão duas vezes, e não estive senão com duas

pessoas; o Dr. Luís, que tratara o meu desgraçado pai no hospital do Hotel-Dieu, e o Sr. barão de Taverney, a quem fui recomendada.

– Que lhe disse o Sr. de Taverney? Ele tinha facilidade de a dirigir e encaminhar para a rainha.

– Respondeu-me que eu dava provas de desastrada. – Como assim? – Procurando reivindicar como um título para a benevolência de el-rei um parentesco que

devia naturalmente contrariar Sua Majestade, pois que nunca se gosta de parentes pobres. – Nisso se conhece bem o barão egoísta e brutal! – disse o cardeal. Depois, pensando naquela visita de Andréia a casa da condessa, disse consigo: – É singular! O pai afasta a suplicante, e a rainha traz-lhe a filha a casa. Realmente, deve

resultar alguma coisa desta contradição! – À fé de gentil-homem – disse ele em voz alta – que estou maravilhado de ouvir dizer a

uma solicitadora, a uma mulher da primeira nobreza, que nunca viu o rei nem a rainha. – A não ser em pintura – disse Joana sorrindo. – Pois bem! – exclamou o cardeal, convencido desta vez da ignorância e sinceridade da

condessa – eu próprio a levarei a Versalhes, se preciso for, e farei com que se lhe abram as portas. – Oh! senhor, tanta bondade – exclamou a condessa no cúmulo da alegria. O cardeal aproximou-se dela. – Mas é impossível – disse ele – que antes de pouco tempo não se interessem todos pela

senhora. – Ah! senhor – disse Joana com encantador suspiro – julga isso sinceramente? – Oh! estou certíssimo. – Parece-me que me lisonjeia. E olhou para ele fixamente. Efectivamente, tão súbita mudança era para surpreender a condessa, a quem, dez minutos

antes, o cardeal tratava com tão poucas considerações. O olhar de Joana, despedido como pela flecha de um archeiro, feriu o cardeal ou no

coração, ou na sua sensualidade. Encerrava o fogo do desejo; mas, em todo o caso, era fogo. O Sr. de Rohan, que era entendido em toda a classe de mulheres, havia certamente de ter

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confessado, a si mesmo, que poucas tinha visto tão sedutoras. – Ah! por vida minha – disse para consigo, com a eterna desconfiança das pessoas da

corte, criadas para a diplomacia – ah! por vida minha, que seria muito extraordinário ou muita fortuna junta, que eu encontrasse ao mesmo tempo uma mulher honrada com as aparências de uma intrigante, e na miséria uma poderosa protectora.

– Senhor – interrompeu a sereia – tem ocasiões em que persiste num silêncio que me inquieta; perdoe que lho diga.

– Em que, condessa ? – perguntou o cardeal. – Em que? Senhor, um homem da sua qualidade nunca deixa de ser civil senão com duas

qualidades de mulheres. – Oh! meu Deus, o que vai dizer-me, condessa, palavra de honra, assusta-me. E pegou-lhe na mão. – Sim – respondeu a condessa – com duas qualidades de mulheres, já o disse e repito-o. – Quais são, vejamos? – São aquelas a quem se ama muito, ou a quem se não estima bastante. – Condessa, condessa, faz-me corar. Pois eu terei sido incivil para consigo? – Ora! – Não me diga isso; seria horrível! – E com efeito, senhor, assim é; porque não me pode ter muito amor, e até agora, pelo

menos, ainda lhe não dei o direito de me estimar pouco. O cardeal tomou novamente da mão de Joana. – Oh! condessa, realmente, fala-me como se estivesse agastada comigo. – Não estou, porque ainda não mereceu a minha cólera. – E nunca a merecerei, minha senhora, partindo deste dia em que tive o prazer de a ver e

de a conhecer. – Oh! o meu espelho! o meu espelho! – pensou Joana. – E partindo deste dia – prosseguiu o cardeal – nunca mais a abandonará a minha

solicitude. – Oh! senhor – disse a condessa, que não retirara a mão de entre as do cardeal; – basta! – Que quer dizer? – Não me fale da sua protecção. – Deus me livre de pronunciar a palavra protecção. Oh! não a humilharia, minha senhora,

humilhar-me-ia a mim próprio. – Então, Sr. cardeal, admitamos uma coisa, que me há-de lisonjear infinitamente. – Se assim é, minha senhora, admitamo-la. – Pois bem, senhor, concordemos em que fez uma visita de civilidade à Srª. de La Motte

Valois. Nada mais. – Mas também nada menos – respondeu o cardeal. E levando aos lábios as mãos de Joana, deu-lhe um beijo. A condessa retirou a mão. – Oh! civilidade – disse o cardeal com um modo e uma seriedade divinos. Joana tornou a dar-lhe a mão, na qual, desta vez, o cardeal deu um beijo inteiramente

respeitoso. – Ah! muito bem, senhor. O cardeal inclinou-se. – Saber – prosseguiu a condessa – que hei-de ocupar uma parte, por mínima que seja, no

espírito tão eminente e ocupado de um homem como o senhor, é quanto basta para me consolar um ano.

– Um ano! É tão pouco tempo!... Esperemos que seja mais, condessa. – Pois bem! não digo que não, Sr. cardeal – respondeu ela sorrindo. A simplicidade da expressão, Sr. cardeal, era uma familiaridade de que a Srª. de La Motte se

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tinha já tornado culpada. O prelado, irritável no seu orgulho, teria podido admirar-se disso; mas tinham as coisas chegado a tal ponto, que nem só não se admirava, senão que apreciava essa honra.

– Ah! confiança! – exclamou ele aproximando-se ainda mais. – Bem, ainda bem! – Tenho confiança, sim, senhor, porque conheço em Vossa Eminência... – Tratava-me por senhor, ainda há pouco, condessa. – É preciso perdoar-me, não conheço a corte. Dizia eu portanto, que tenho confiança,

porque é capaz de compreender um espírito como o meu, aventureiro, ousado, e um coração ainda puro. Apesar dos perigos da pobreza, apesar dos combates, que sustentei contra vis inimigos, Vossa Eminência saberá receber de mim, isto é, da minha conversação, o que achar digno de si. Para tudo o mais Vossa Eminência saberá ser indulgente.

– Temos então um pacto de amizade, minha senhora. Assinado? jurado? – Assim o desejo. O cardeal levantou-se imediatamente e dirigiu-se para a Srª. de La Motte; mas como tinha

os braços alguma coisa abertos de mais para um simples juramento, a condessa, com imensa ligeireza, evitou o círculo.

– Pacto de amizade entre três? – disse ela com uma inimitável inflexão de zombaria e inocência.

– Como, amizade entre três ? – perguntou o cardeal. – Certamente. Não se lembra que anda por este mundo um pobre gendarme, um exilado

a quem chamam o conde de La Motte? – Oh! condessa, que horrível memória tem! – Mas, está claro que lhe hei-de falar dele, já que a seu respeito não disse palavra. – Sabe por que motivo não lhe falo dele, condessa? – Diga. – É porque ele terá o cuidado de falar; os maridos nunca se esquecem a si, acredite no

que lhe digo. – E se ele falar de si? – Então falarão da senhora... de nós. – Como? – Dirão, por exemplo, que o Sr. conde de La Motte achou bom ou achou mau que o

cardeal de Rohan viesse três, quatro ou cinco vezes por semana visitar a Srª. de La Motte à rua de Saint-Claude.

– O Sr. cardeal, fala com um tal desembaraço! Três, quatro ou cinco vezes por semana?! – Que seria então a amizade, condessa? Eu disse cinco vezes? Foi engano; seis eu sete é

que eu queria dizer, sem contar os anos bissextos. Joana riu-se. O cardeal notou que era a primeira vez que ela dava mostras de honrar os seus gracejos, o

que também o lisonjeou. – E como há-de impedir que falem? – perguntou ela; – bem sabe que é uma coisa

impossível. – Não é – respondeu ele. – Como? – Há um meio muito simples; por bem ou por mal, o povo de Paris conhece-me. – Oh! por certo, senhor. – Mas à senhora tem a infelicidade de não a conhecer. – E depois? – Invertamos. – Inverter; como?... – Isto é... se por exemplo... – Acabe.

Page 108: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– Se saísse em vez de me fazer sair? – Ir eu ao seu palácio, senhor! – Pois teria dúvida em ir a casa de um ministro? – Um ministro não é um homem, senhor? – É encantadora! Pois bem, não se trata do meu palácio, tenho uma casa. – Uma casa para entrevistas, falemos claro. – Não, uma casa que é sua. – Ah! – disse a condessa – tem uma casa que é minha? E onde é? Eu não conhecia essa

minha casa. O cardeal que se tornara a assentar, levantou-se. – Amanhã, às dez horas da manhã, receberá o nome da rua e o número da porta. A condessa corou; o cardeal pegou-lhe na mão. E desta vez foi o beijo ao mesmo tempo respeitoso, terno e ousado. Ambos então se cortejaram com esse resto de cerimónia que indica uma próxima

intimidade. – Alumie a Sua Eminência – bradou a condessa. Apareceu a velha com a luz na mão. O prelado saiu. – Bem, bem – pensou Joana – parece-me que este passo que dei no mundo, foi um passo

de gigante. – Bem – pensou o cardeal, metendo-se na carruagem – parece que fiz um bom e duplo

negócio. Esta mulher tem demasiado espírito para não prender a rainha como me prendeu a mim.

XVI

Mesmer e Saint-Martin Houve um tempo em que Paris, desembaraçado de negócios e cheio de ócio, se

apaixonava por questões que actualmente são monopólio dos ricos, a quem tratam de inúteis, e dos doutos, a quem apodam de preguiçosos.

Em 1784, isto é, na época a que chegámos, a questão em moda, a que flutuava acima de todas, que pairava no ar, que pousava sobre todas as cabeças um tanto elevadas, como o vapor nas montanhas, era o mesmerismo ciência misteriosa, mal definida pelos seus inventores, que, não achando conveniente democratizar uma descoberta logo à nascença, tinham-lhe deixado tomar um nome de homem, isto é, um título aristocrático, em vez de um desses nomes que a ciência vai buscar ao grego, com cujo auxílio a pudibunda modéstia dos modernos sábios vulgariza hoje todos os elementos científicos.

Efectivamente, que utilidade poderia haver em 1784 em democratizar uma ciência? O povo, que havia mais de século e meio não era consultado pelos que o governavam,

fazia porventura no Estado vulto com que se contasse? Não. O povo era a terra fecunda que produzia, era a colheita rica que ceifavam, mas o dono da

terra era o rei, e segadora a nobreza. Hoje tudo está mudado: a França parece-se com uma ampulheta secular; durante

novecentos anos marcou a hora da realeza; a destra poderosa do Senhor voltou-a; depois de tantos séculos vai marcar a era do povo.

Portanto, em 1784, um nome de homem era uma recomendação, quando hoje, pelo contrário, qualquer sucesso dá um nome às coisas.

Mas deixemo-nos de hoje para nos ocuparmos de ontem. Na conta da eternidade o que vale esta distância de meio século? Nada, nem sequer é

comparável à que existe entre a véspera e o dia seguinte.

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O doutor Mesmer estava em Paris, como no-lo deu a conhecer a própria Maria Antonieta, pedindo licença a el-rei para visitá-lo.

Permitam-nos, pois, que digamos algumas palavras do doutor Mesmer, cujo nome, hoje apenas lembrado por pequeno número de adeptos, andava, na época que tentamos descrever, na boca de toda a gente.

Pelo ano de 1774 tinha o doutor Mesmer trazido da Alemanha, essa terra dos sonhos plácidos e fantásticos, uma ciência cheia de nuvens e de raios, de luz e de trevas. Ao clarão desses raios só via o sábio as nuvens que acima da cabeça lhe formavam uma espessa abóbada; o vulgo só via os raios.

Mesmer estreara-se na Alemanha por uma tese sobre a influência dos planetas. Quisera estabelecer que os corpos celestes, em virtude da força que produz as suas mútuas atracções, influem sobre os corpos animados e particularmente sobre o sistema nervoso por intermédio de um fluido subtil, que enche todo o Universo. Para compreender, era preciso estar iniciado na ciência dos Galileus e dos Newtons. Era um misto de grandes verdades astronómicas com os sonhos astrológicos, que não podiam, não diremos popularizar-se, mas aristocratizar-se, porque era necessário que para isso o corpo da nobreza fosse convertido em sociedade douta. Mesmer abandonou esse primeiro sistema para se dedicar ao dos imanes.

Os imanes, naquela época, eram muito estudados; as suas faculdades simpáticas ou antipáticas faziam viver os minerais uma vida quase igual à vida humana, a que iam buscar as duas grandes paixões: o amor e o ódio. Por conseqüência, atribuíam-se aos imanes virtudes pasmosas para a cura de várias enfermidades. Portanto, Mesmer juntou a acção dos maus ao seu primeiro sistema e tentou ver o que poderia resultar dessa junção.

Infelizmente para Mesmer, quando chegou a Viena achou lá estabelecido um rival, que se chamava Hall, e que dizia ter-lhe Mesmer roubado a sua descoberta. Ao ver isto, Mesmer, como homem cheio de imaginação, declarou abandonar os imanes como inúteis e não fazer mais curas pelo magnetismo universal, servindo-se unicamente do magnetismo animal.

O termo, bem que proferido como novo, não designava uma nova descoberta. O magnetismo, conhecida dos antigos, empregado nas iniciações egípcias e no pitismo grego, conservara-se, na idade média, no estado de tradição. Alguns fragmentos dessas ciências tinham produzido os feiticeiros dos séculos treze, catorze e quinze, e foram queimados muitos, que, no meio da fogueira, como na força da tortura, confessaram a religião estranha de que eram mártires.

Urbano Grandier não passava de um magnetizador. Mesmer ouvira falar nos grandes milagres daquela ciência. José Bálsamo, o herói de uma das nossas obras, deixara vestígios da sua passagem na

Alemanha e principalmente em Estrasburgo. Mesmer andou em busca dessa ciência, espalhada e flutuante como os duendes que de noite correm por cima das lagoas; fez dela uma teoria completa, um sistema uniforme, a que deu o nome de mesmerismo.

Chegado a esse ponto, anunciou o seu sistema à Academia das Ciências de Paris, à Sociedade Real de Londres e à Academia de Berlim; as duas primeiras nem se cansaram em lhe responder, a terceira chamou-lhe doido.

Mesmer lembrou-se daquele filósofo grego que negava o movimento, e a quem o seu antagonista confundiu andando. Foi a França, tirou ao médico Storck e ao oculista Wenzel uma rapariga de dezessete anos, que padecia uma doença de fígado e tinha gota serena, e, depois de três meses de tratamento, a doente estava totalmente curada, a cega via claramente.

Esta cura convencera grande número de pessoas, e, entre outras, um médico chamado Deslon, que de inimigo se tornou em apóstolo.

A partir daquele momento, a reputação de Mesmer fora crescendo; a Academia tinha-se declarado contra o inovador, a corte declarou-se a favor dele; abriram-se negociações no ministério para convidar Mesmer a enriquecer a humanidade com a publicação da sua doutrina. O médico pôs-lhe preço. Houve propostas, Em nome de el-rei, ofereceu-lhe o Sr. de Breteuil uma pensão vitalícia de vinte mil libras e uma gratificação de dez mil para ensinar três pessoas

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que o governo indicasse. Mas Mesmer, indignado pela parcimónia do rei, recusou, e foi para Spa com alguns dos seus enfermos.

Uma inesperada catástrofe ameaçava Mesmer. Deslon, seu discípulo, possuidor do famoso segredo que Mesmer recusara vender por trinta mil libras cada ano, abriu em sua casa um tratamento público pelo método mesmeriano.

Mesmer soube a dolorosa notícia, bradou que era um roubo, uma traição, uma fraude; esteve a ponto de enlouquecer. Então um dos seus doentes, o Sr. de Bergasse, teve a feliz lembrança de formar uma sociedade para a compra da ciência do ilustre professor; formou-se uma companhia de cem pessoas, com o capital de trezentas e quarenta mil libras, com a condição de que ele revelaria a sua doutrina aos accionistas. Mesmer anuiu, recebeu o capital e voltou a Paris. A ocasião era propícia. Há instantes na idade dos povos, aqueles que tocam as épocas de transformação, em que a nação inteira pára como diante de obstáculo desconhecido, hesita, sente o abismo a cuja beira chegou, e percebe-o sem contudo o poder enxergar.

A França estava num desses momentos, apresentava o aspecto de uma sociedade sossegada, cujo espírito estava agitado; estava-se de alguma forma entorpecido numa felicidade factícia, cujo fim se entrevia, como quando se chega à borda de uma floresta e se conhece a planície pelos interstícios das árvores. Esse sossego, que nada tinha de constante, nada de real, cansava; procuravam-se comoções em tudo, e as novidades, fossem elas quais fossem, eram recebidas com prazer. Tinham-se tornado muito frívolas para, como outrora, curarem das graves questões do governo e do molinismo. Mas levantavam questões sobre músicas, tomava-se partido por Gluck ou Piccini, apaixonavam-se pela Enciclopédia, inflamavam-se pelas Memórias de Beaumarchais.

A aparição de uma ópera nova preocupava mais as imaginações do que o tratado de paz com a Inglaterra e o reconhecimento da república dos Estados Unidos. Era, numa palavra, um desses períodos em que os espíritos, conduzidos para o desencanto, se enfadam com essa limpidez do possível, que deixa ver o fundo de todas as coisas, e tenta, adiantando um passo, transpor os limites do mundo real para entrar no mundo dos sonhos e das ficções.

De facto, se está provado que as verdades bem claras, bem lúcidas são as únicas que se popularizam prontamente, não está menos provado que os mistérios são uma atracção poderosíssima para os povos.

O povo da França estava portanto arrebatado, atraído de um modo irresistível por esse estranho mistério do fluido mesmeriano, que, segundo os adeptos, dava saúde aos doentes, espírito aos doidos e loucura aos sábios.

Por toda a parte se falava de Mesmer. O que tinha ele feito? Em quem tinha operado os seus divinos mistérios? A que fidalgo restituíra a vista ou a força? A que senhora fatigada das vigílias do jogo restituíra a elasticidade dos nervos? A que donzela fizera ele, numa crise magnética, prever o futuro?

O futuro! a grande palavra de todos os tempos o grande interesse de todos os espíritos, a solução de todos os problemas. Efectivamente o que era o presente?

Uma realeza sem raios, uma nobreza sem autoridade, um país sem comércio, um povo sem direitos uma sociedade sem confiança.

Desde a família real, inquieta e isolada no trono até à família plebéia, esfaimada no seu covil, tudo era miséria, vergonha e susto.

Esquecer todos para só tratar de si, ir buscar a novas fontes a segurança de uma vida mais longa, de saúde inalterável, arrancar alguma coisa ao céu avaro, não era esse o objecto de uma aspiração fácil de compreender para aquele ponto ignorado, cujas dobras Mesmer desenrolava?

Voltaire morrera. Já não havia em França uma gargalhada, a não ser o riso de Beaumarchais, mais amargo ainda que o do seu mestre. Rousseau morrera também. Já não havia filosofia religiosa em França. Rousseau quisera sustentar Deus; mas desde que Rousseau desaparecera, ninguém mais se arriscava a isso, temendo ficar esmagado debaixo do peso.

Noutro tempo fora a guerra uma grave ocupação para os Franceses. Os reis sustentavam

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o heroísmo nacional; mas na época que tentamos descrever, a única guerra francesa que havia era a americana, e nessa não entrava o rei de modo nenhum. Os que se batiam então faziam-no por essa causa desconhecida chamada independência, palavra que os Franceses traduziam por uma abstracção: a liberdade.

E ainda assim aquela guerra longínqua, aquela guerra não só de outro povo, mas de outro mundo, acabara.

Ora pensando bem, não valia mais a pena ocuparem-se de Mesmer, o médico alemão que pela segunda vez em seis anos chamava a atenção da França, do que de Lord Cornwallis ou de Sir Washington, que estavam tão longe, que o mais provável seria que nunca os vissem nem a um nem a outro?

Mesmer estava ali, vivia entre eles, podiam vê-lo, apalpá-lo, e na verdade que a ambição de três quartas partes de Paris eram serem apalpadas por ele.

Assim, aquele homem, desde que chegara a Paris, por ninguém fora sustentado, nem pela rainha sua patrícia, que contudo se mostrava sempre tão favorável às pessoas da sua terra; aquele homem, que a não ser o doutor Deslon, que depois o atraiçoara, se conservaria na obscuridade, aquele homem reinava verdadeiramente sobre a opinião pública, deixando muito atrás de si o rei, de quem nunca se falara, o Sr. de Lafayette, de quem se não falava ainda, e o Sr. de Necker de quem se não falava já.

E como se aquele século tivesse imposto a si a tarefa de dar a cada espírito o que requeria a sua aptidão, a cada corpo o necessário para as suas necessidades, em frente de Mesmer, o homem do materialismo, elevava-se Saint-Martin, o homem do espiritualismo, cuja doutrina vinha consolar todas as almas que o positivismo do doutor alemão feria.

Imaginem o ateu com uma religião mais doce que a própria religião; suponham um republicano cheio de civilidades e atenções para com os reis; um fidalgo afectuoso, terno, amoroso para com o povo; represente-se o tríplice ataque desse homem, dotado da mais sedutora eloqüência, contra os cultos da terra, a que chama insensatos, pela única razão de serem divinos!

Figurem-se, finalmente, um Epicuro empoado, de farda bordada, roupão coberto de ouropel, calções de cetim, meias de seda, salto vermelho; Epicuro que se não contenta em derribar os deuses, em que não crê, mas abala os governos, que trata como os cultos, porque não concordam nunca, e a maior parte das vezes não fazem mais que a desgraça da humanidade.

Vejam-no trabalhando contra a lei social, que perverte com estas únicas palavras: pune semelhantemente erros dessemelhantes, pune o efeito sem apreciar a causa.

Suponha-se agora que esse tentador, que se intitula o filósofo desconhecido, reúne para prender os homens a um círculo de idéias diferentes, quanto a imaginação pode acrescentar de encantos às promessas de um paraíso moral, e que em lugar de dizer: “os homens são iguais”, o que é um absurdo, inventa esta fórmula, que parece ter escapado da mesma boca que a nega:

“Os homens inteligentes são todos reis!”

Depois calcule-se o efeito de semelhante moral caindo repentinamente no meio de uma

sociedade sem esperanças, sem guias, de uma sociedade, que é um verdadeiro arquipélago semeado de idéias, ou, o que é o mesmo, de escolhos. Lembrem-se que naquela época eram as mulheres ternas e loucas, os homens ávidos de poder, de honras e de prazeres, e, enfim, que os reis deixavam pender a coroa sobre a qual, pela primeira vez, de pé e perdido na sombra, se cravava o olhar curioso e ameaçador do povo, e digam se será para admirar que tivesse prosélitos uma tal doutrina, que dizia às almas:

“Escolhei entre vós a alma superior, mas superior pelo amor, pela caridade, pela vontade poderosa de amar bem, de vos tornar bem felizes: e depois, quando essa alma, mudada em homem, se houver revelado, curvai-vos, humilhai-vos, aniquilai-vos, todos os que tendes almas inferiores, a fim de deixar o espaço à ditadura dessa alma, cuja missão é de vos reabilitar no vosso princípio essencial, isto é, na igualdade dos padecimentos, no seio da desigualdade forçada das

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aptidões.” Acrescente-se a isto que o filósofo desconhecido cercava-se de mistérios; que adoptava a

sombra profunda para discutir em paz, longe dos espiões e dos parasitas, a grande teoria social, que podia vir a ser a política do mundo.

Acrescente-se a isto que o filósofo desconhecido cercava-se de mistérios; que adoptava a sombra profunda para discutir em paz, longo dos espiões e dos parasitas, a grande teoria social, que podia vir a ser a política do mundo.

“Escutai-me, dizia ele, almas fiéis, corações crentes, escutai-me e vede se me podeis compreender, ou antes, escutai-me só se tendes interesse e curiosidade em me compreender, porque vos será difícil, e não direi o meu segredo àqueles que não quiserem arrancar o véu. Eu digo o que finjo não dizer, e é essa a razão porque hei-de muitas vezes parecer dizer coisa muito diferente do que digo.”

E Saint-Martin tinha razão, e tinha realmente em volta da sua obra os defensores silenciosos, sombrios e invejosos das suas idéias, misterioso cenáculo, cujo obscuro e religioso misticismo ninguém percebia.

Assim trabalhavam para a glorificação da alma e da matéria, pensando na aniquilação de Deus e na religião de Cristo, esses dois homens que em dois campos e duas necessidades tinham dividido todos os espíritos inteligentes, todas as naturezas escolhidas da França.

Por isso, uns se agrupavam em redor da celha de Mesmer, donde saía o bem-estar, toda a vida de sensualidade, todo o materialismo elegante dessa nação degenerada; ao passo que em torno do livro dos erros e da verdade se reuniam as almas pias, caritativas, amantes, sequiosas de realidade depois de terem vivido de quimeras.

Se acima dessas esferas privilegiadas, as idéias divergissem ou se perturbassem, facilmente se compreenderia o esboço do estado em que jazia a sociedade subalterna, isto é, a burguesia e o povo, o que mais tarde se chamou o terço, o qual unicamente adivinhava que curavam dele, e que, na sua impaciência e resignação, ardia em desejos de roubar o fogo sagrado, como Prometeu, e de animar com ele um mundo, que seria seu, e no qual trataria pessoalmente os seus negócios.

As conspirações no estado de palestras, as associações no estado de círculos, e os partidos sociais no estado de quadrilhas, isto é, a guerra civil e a anarquia, eis o que em tudo isso aparecia ao pensador, que ainda não via a segunda vida dessa sociedade.

Ah! hoje, que já se rasgaram os véus, hoje que os novos Prometeus têm sido derribados dez vezes pelo mesmo fogo que roubaram por suas próprias mãos, dizei-nos o que podia ver o pensador no fim desse estranho século dezoito, senão a decomposição de um mundo, senão alguma coisa semelhante ao que se passava depois da morte de César e antes da exaltação de Augusto.

Augusto foi o homem que separou o mundo pagão do mundo cristão, como Napoleão foi o homem que separou o mundo feudal do mundo democrático.

Talvez tenhamos demorado os nossos leitores numa digressão, que lhes há-de ter parecido demasiado longa; mas, na realidade, seria difícil tocar naquela época sem roçar com a pena por estas graves questões, que são a carne e a vida dela.

Agora está feito o esforço: esforço de uma criança que raspasse com a unha a ferrugem de uma estátua antiga para descobrir e ler debaixo dessa ferrugem uma inscrição meio apagada.

Voltemos à aparência, que se continuássemos a ocupar-nos da realidade, diríamos muito para romancista, pouco para historiador.

XVII

A celha A pintura que, no capítulo antecedente, tentamos fazer daquela época, dos homens e das

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profissões em que se ocupavam naquele momento, pode legitimar, aos olhos dos nossos leitores, a inexplicável curiosidade dos parisienses pelo espectáculo das curas operadas publicamente pelo Dr. Mesmer.

O rei Luís XVI, que tinha, senão a curiosidade, pelo menos a apreciação das novidades que davam brado na sua boa cidade de Paris, também permitira à rainha que fosse ver uma vez o que toda a gente tinha visto já, com a condição, o leitor decerto se lembrará, de que fizesse a sua augusta visita acompanhada por uma princesa.

Fora juntamente dois dias antes desta visita que o cardeal de Rohan se dirigira a casa da Srª. de La Motte.

O tempo serenara e começava a degelar. Um exército de varredores, satisfeitos por verem acabado o inverno, impelia para os canos, com o ardor de soldados que abrem uma brecha, os últimos pedaços de gelo, todos enxovalhados e derretendo-se em água lodosa.

O céu, azul e límpido, iluminava-se com as primeiras estrelas, quando a Srª. de La Motte, vestida como mulher elegante, oferecendo todas as aparências da opulência, chegou numa carruagem de aluguer, escolhida pela Srª. Clotilde, e parou na praça de Vendôme em frente de uma casa de aspecto grandioso, cujas elevadas janelas estavam esplendidamente alumiadas em toda a frontaria.

Era a casa do doutor Mesmer. Fora, a carruagem da Srª. de La Motte, grande número de carruagens diversas, estavam

paradas diante daquela casa; e além dessas carruagens, duzentos ou trezentos curiosos patinavam na lama, esperavam a saída dos enfermos curados ou a entrada dos enfermos por curar.

Quase todos nobres e ricos, vinham nas suas carruagens de brasão, faziam-se apear e levar pelos seus lacaios, e estes fardos serviam de importante consolação aos desgraçados esfaimados e meio nus, que à porta contemplavam a prova evidente de que Deus faz os homens sãos ou doentes sem consultar a sua árvore genealógica.

Quando um desses doentes, de cor pálida e membros enfraquecidos, desaparecia pelo portão, havia um murmúrio entre os curiosos, e bem raras vezes sucedia que essa chusma curiosa e inteligente, que via concorrer à porta dos bailes e sob os pórticos dos teatros toda essa aristocracia ávida de prazer, o que também era um prazer para toda essa chusma, não conhecesse, quer um duque paralítico de um braço e de uma perna, quer um marechal de campo, cujos pés se negavam ao serviço, menos por causa das fadigas das marchas militares, do que pelos altos feitos praticados em casa das dançarinas do teatro francês ou do italiano.

Está sabido que as investigações da multidão não se limitavam aos homens. Aquela mulher também, que tinham visto passar nos braços dos seus heiduques, de cabeça

baixa e olhar fixo, como as damas romanas, que eram levadas nos braços dos seus Tessálios depois dos banquetes, aquela senhora, sujeita a padecimentos nervosos, ou debilitada por excessos e vigílias, e que não pudera ser curada ou ressuscitada pelos comediantes da ópera ou pelos vigorosos anjos, de quem madame Dugazon fazia contos tão maravilhosos, vinham pedir à celha de Mesmer o que debalde tinham procurado em outra parte.

E não se julgue que exageramos aqui por gosto o aviltamento dos costumes. É força confessar que, naquela época, se davam assaltos entre as senhoras da corte e as raparigas dos teatros. Estas tiravam às senhoras os seus amantes e maridos, aquelas roubavam às raparigas do teatro os colegas e os primos.

Algumas destas senhoras eram tão conhecidas como os homens, e os seus nomes circulavam na multidão de um modo tão ruidoso como o deles; mas muitas, e não eram certamente daquelas cujo nome produziria menos escândalo, muitas escapavam naquela noite à bulha da publicidade, indo a casa de Mesmer encobertas por mascarilhas de cetim.

É que naquele dia, que era o meio da Quaresma, havia baile de máscaras no teatro da Ópera, e aquelas senhoras tencionavam sair da praça Vendôme e irem direitas ao Palais-Royal.

Foi no meio desta multidão queixosa, irónica, admirada e murmurante, que a Srª. condessa de La Motte passou firme e direita, com a máscara na cara, e não deixando outro

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vestígio da sua passagem senão esta frase repetida no seu caminho: – Ah! esta não deve estar muito doente. Mas não se iludam, esta frase não implicava ausência de comentários. Porque se a Srª. de La Motte não estava doente, o que vinha ela fazer a casa de Mesmer? Se a multidão estivesse, assim como nós, ao facto dos acontecimentos que acabamos de

referir, teria achado que esta verdade era a coisa mais simples. Com efeito, a Srª. de La Motte reflectira muito na sua entrevista com o cardeal de Rohan,

e principalmente na atenção particular com que o cardeal honrara a caixa do retrato que tinham esquecido, ou antes que tinham perdido em sua casa.

E como no nome da dona da caixa estava toda a revelação da súbita amabilidade do cardeal, a Srª. de La Motte imaginara dois meios de saber esse nome.

Recorreu primeiro ao mais simples. Fora a Versalhes para indagar onde era o estabelecimento ou o escritório das irmãs de

caridade alemãs. Como facilmente se pode supor, nada conseguiu saber. As senhoras alemãs que viviam em Versalhes eram muitas, por causa da declarada

simpatia da rainha pelas suas compatriotas: havia lá algumas cento e cinqüenta ou duzentas. Com a diferença que todas elas eram muito caritativas, mas nenhuma se lembrara de pôr

tabuleta no escritório da caridade. Foi portanto debalde que Joana pedira esclarecimentos a respeito das duas senhoras que a

tinham ido visitar; em vão declarara que uma delas se chamava Andréia. Ninguém conhecia em Versalhes senhora alguma alemã com semelhante nome, que além disso era bem pouco alemão.

Portanto, desse lado não tinham as indagações produzido resultado algum. Perguntar directamente ao Sr. de Rohan que nome ele suspeitava, era, em primeiro lugar,

deixar-lhe perceber que tinha vistas sobre ele; e, depois, privar-se do prazer e do mérito de uma descoberta feita a despeito de todos e fora de todas as possibilidades.

Ora, pois que havia mistério no proceder daquelas senhoras em casa de Joana, mistério nas admirações e reticências do Sr. de Rohan, era com esse mistério que queria chegar a adivinhar tantos enigmas.

Além disso, havia no carácter de Joana um poderoso atractivo para esta luta com o desconhecido.

Tinha ouvido dizer que desde algum tempo, em Paris, um homem, um iluminado, um fazedor de milagres, achara meio de expulsar do corpo humano as enfermidades e os padecimentos, como outrora Cristo expulsava o demónio do corpo dos possessos.

Sabia que não só aquele homem curava os males físicos, senão que arrancava da alma o doloroso segredo que a minava... Tinham visto, à sua poderosa conjuração, amolecer e transformar-se em docilidade de escravo a vontade tenaz dos clientes.

Assim, no sono que sucedia às dores, depois de o sábio médico ter sossegado a organização mais irritada lançando-a em completo esquecimento, a alma encantada do sossego que devia ao encantador, entregava-se inteiramente à disposição daquele novo senhor. Dirigia-lhe desde então todas as operações, todos os fios, e cada pensamento dessa alma agradecida aparecia-lhe transmitido por uma linguagem, que tinha sobre a linguagem humana a vantagem e a desvantagem de nunca mentir.

Ainda mais, saindo do corpo que lhe servia de prisão à primeira ordem daquele que momentaneamente a dominava, essa alma corria pelo mundo, misturava-se com as outras almas, sondava-as sem descanso, revolvia-as desapiedadamente, e tão bem procedia, que semelhante a um cão que faz sair a caça do mato em que se esconde, julgando-se lá segura, começava por fazer sair o segredo do coração em que estava sepultado, perseguia-o, alcançava-o e acabava por vir depô-lo aos pés do seu senhor. Imagem fiel do falcão ou do gavião bem amestrado, que vai buscar nas nuvens, por conta do falcoeiro, seu dono, a perdiz, a garça real ou a cotovia designadas ao seu feroz servilismo

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Dali provinha a revelação de uma grande quantidade de segredos maravilhosos. A Srª. de Duras achara assim uma criança que lhe tinham roubado; a Srª. de Chantoné um

cão inglês, que se fechava numa mão e pelo qual teria dado todas as crianças do mundo; e o Sr. de Vaudreuil um anel de cabelos por que de boamente daria metade da sua fortuna.

Aquelas descobertas tinham sido feitas por videntes, por meio de operações magnéticas do doutor Mesmer.

E ainda mais outros milagres. Também se podia ir escolher, na casa do ilustre doutor, os segredos mais próprios para

exercer esta faculdade de adivinhação sobrenatural; e bem esperava a Srª. de La Motte, assistindo a uma sessão, encontrar essa Fénix das suas curiosas indagações, a proprietária da caixa que era naquele momento o assunto das suas mais ardentes preocupações.

E aí está porque corria com tanta pressa à sala onde se reuniam os doentes. Aquela sala pede uma descrição especial e minuciosa, que os nossos leitores hão-de

permitir-nos. Será breve. Havia duas salas principais. Quando se atravessavam as antecâmaras e se mostravam os bilhetes de admissão aos

empregados de serviço, era-se admitido na sala principal, cujas janelas, hermeticamente fechadas, interceptavam de dia a luz e o ar, de noite o ar e a bulha.

A meio da sala, debaixo de um lustre, cujas velas derramavam uma luz fraca, quase mortiça, via-se uma grande cuba coberta com uma tampa.

Esta cuba nada de elegante tinha na sua forma. Não ostentava adornos e nenhuma tapeçaria lhe disfarçava a nudez das paredes de metal.

Era a esta cuba que chamavam a celha de Mesmer. Que virtude encerrava aquela celha? Nada mais fácil de explicar. Estava quase completamente cheia de água, carregada de princípios sulfurosos, que

concentravam os miasmas debaixo da tampa, para irem saturar depois as garrafas metodicamente dispostas no fundo da celha em posições inversas.

Deste modo dava-se o cruzamento de correntes misteriosas, a cuja influência deviam os doentes a sua cura.

À tampa estava soldado um anel de ferro, que sustentava uma corda comprida, cujo destino conheceremos quando contemplarmos os doentes.

Estes, que há pouco vimos transpor a porta da entrada, estavam pálidos e abatidos, assentados em cadeiras dispostas em volta da cuba. Homens e mulheres misturados, indiferentes, sérios ou inquietos, esperavam o resultado da experiência.

Um criado pegava numa ponta da corda que estava presa à tampa da celha e passava uma volta a cada membro doente, de modo que todos, ligados pela mesma cadeia, recebessem ao mesmo tempo os efeitos da electricidade contida na celha.

Depois, para que não fosse interrompida a acção dos fluidos animais transmitidos e modificados conforme as naturezas, os doentes tinham o cuidado, seguindo a recomendação do doutor, de se porem em contacto uns com os outros, tocando-se pelo cotovelo, pelos ombros ou pelos pés, de modo que a celha salvadora simultaneamente transmitisse a todos os corpos o seu calor e a sua potente regeneração.

Era, realmente, um curioso espectáculo o daquela cerimónia médica, e não será portanto de admirar que excitasse em tão elevado grau a curiosidade parisiense.

Vinte ou trinta doentes estavam dispostos em volta daquela cuba; um criado, mudo como os assistentes, enlaçava-os com uma corda, como Laocoente e os filhos nas roscas das serpentes, retirando-se em seguida nas pontas dos pés, depois de ter designado aos doentes as varas de ferro, que, penetrando na cuba por certos orifícios, deviam servir de condutores mais imediatamente locais à acção salutar do fluído mesmeriano.

E daí, assim que estava aberta a sessão, começava de circular na sala um certo calor suave

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e penetrante, que amolecia as fibras um tanto tensas dos enfermos, subia por gradações do chão ao tecto e não tardava em carregar-se de perfumes delicados, a cujo vapor se curvavam, abatidos, os cérebros mais rebeldes.

Via-se então os doentes entregarem-se à voluptuosa impressão daquela atmosfera, e uma música suave e vibrante, executada por instrumentos e músicos invisíveis, perder-se como grata chama no meio daqueles perfumes e daquele calor.

Pura como o cristal ao lado do qual nascia, aquela música feria os nervos com um poder irresistível. Dir-se-ia um desses misteriosos e desconhecidos rumores da natureza, que aos próprios animais encantam e causam espanto, um queixume do vento nas espirais sonoras dos rochedos.

Não tardou que aos sons da harmónica se juntassem vozes harmoniosas, agrupadas como um monte de flores, cujas notas, destacando-se como folhas, chegaram à cabeça dos assistentes.

Em todos os semblantes, que de princípio a surpresa animara, se ia pintando a satisfação material, acariciada em todos os pontos sensíveis. A alma cedia; saía do refúgio onde se oculta quando os padecimentos do corpo a assaltam, e espalhando-se livre e jubilosa por todo o organismo, dominava a matéria e transformava-se.

Era esse o momento em que cada enfermo tomava entre os dedos uma das barras de ferro que estavam presas à tampa da tina e a dirigia ao peito, ao coração ou à cabeça, sede mais especial da enfermidade.

Figurem-se a beatitude substituindo então em todos os rostos o padecimento e a ansiedade, imaginem a egoísta absorção produzida por aquelas satisfações, o silêncio cortado de suspiros, que pesava sobre aquela assembléia, e ter-se-á a idéia quanto possível exacta da cena, que acabamos de esboçar, dois terços de século depois do dia em que se representou.

Agora algumas palavras mais particularizadas sobre os actores. Em primeiro lugar os actores dividem-se em duas classes. Uns, doentes, importando-lhes pouco o que se chama respeito humano, limite

veneradíssimo pelas pessoas de condição medíocre, mas constantemente transposto pelos muito elevados ou muito humildes; uns, dizemos, verdadeiros actores, só ali tinham ido para ser curados, e procuravam de todo coração conseguir o fim.

Os outros, cépticos ou simples curiosos, não padecendo moléstia alguma, tinham penetrado na sala de Mesmer como se entra no teatro, ou porque quisessem conhecer o efeito experimentado por quem se assentava em volta da celha encantada, ou porque, simples espectadores, quisessem unicamente estudar o novo sistema físico e apenas se ocupassem em contemplar os doentes e até os que, não o sendo, se prestavam à operação.

Entre os primeiros, fogosos adeptos de Mesmer, porventura ligados à doutrina do doutor pelo reconhecimento, distinguia-se uma mulher nova, bonita e airosa, vestida um tanto extravagantemente, que, submetida à acção do fluído e aplicando-se com a barra as mais fortes doses à cabeça e ao epigastro, começava a revolver os formosos olhos, como se tudo nela se tornasse lânguido, ao passo que as mãos lhe estremeciam às primeiras titilações nervosas que indicam a invasão do fluído magnético.

Quando a cabeça lhe descaía para trás no respaldo da cadeira, os assistentes podiam contemplar-lhe à vontade a fronte pálida, os lábios convulsos e a garganta marmoreada pelo fluxo e refluxo mais rápido do sangue.

Então, de entre os assistentes, muitos dos quais não desfitavam, no auge da admiração, os olhos daquela mulher, duas ou três cabeças, inclinando-se umas para as outras, comunicaram-se uma idéia singular, que sem dúvida redobrou a recíproca atenção dos curiosos.

No número destes, contava-se a condessa de La Motte, que, sem receio de ser conhecida, ou inquietando-se pouco com que a conhecessem, tinha na mão a máscara de cetim com que cobrira o rosto para atravessar a multidão.

Que, afinal, pelo modo por que estava colocada, pode-se dizer que escapava a todas as vistas.

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Estava ao pé da porta, encostada a uma pilastra, encoberta por um cortinado, e dali via tudo sem ser vista.

Mas entre tudo o que via, o que lhe parecia mais digno de atenção era decerto a cara daquela mulher electrizada pelo fluído mesmeriano.

Efectivamente aquele rosto impressionara-a de tal modo, que havia alguns minutos se conservava pregada no mesmo sítio, ansiosa por ver e por saber.

– Oh! – murmurava ela sem arredar a vista da formosa doente – não há dúvida, é a dama de caridade que esteve em minha casa, e que motivou todo o interesse que me testemunhou o cardeal de Rohan!

E bem convencida de que se não enganava, satisfeita do acaso, que por ela fazia o que todas as suas investigações não tinham conseguido, aproximou-se mais.

Mas naquele momento a convulsionária fechou os olhos, franziu a boca e sacudiu fracamente o ar com as mãos ambas.

Essas mãos, importa que o digamos, não eram verdadeiramente as mãos finas e delicadas, as mãos, de uma alvura de cera que a condessa em sua casa admirara alguns dias antes.

O contágio da crise foi eléctrico na maior parte dos doentes, o cérebro tinha-se-lhes saturado de perfumes e de rumores. A irritação nervosa estava inteiramente solicitada. Não tardou que homens e mulheres, arrastados pelo exemplo da formosa companheira, se pusessem a soltar suspiros, murmúrios, gritos e agitando os braços, as pernas, a cabeça, entrassem franca e irresistivelmente no acesso a que o mestre dera o nome de crise.

Sairia ele da cuba, como Febo? Apolo das águas, era ele o vapor embalsamado e harmonioso da sala, que se condensava? O caso é que se encontrou ali subitamente, e que a casaca lilás, fresca e grata à vista, o belo aspecto, pálido, inteligente e sereno, não desmentiram o carácter um tanto divino daquela aparição.

Empunhava uma vara comprida, apoiada, ou melhor diremos mergulhada na famosa celha.

Fez um sinal; as portas abriram-se, acudiram vinte robustos criados, e, apoderando-se de cada um dos doentes, que começavam a perder o equilíbrio nas cadeiras, transportaram-nos em menos de um minuto para a sala próxima.

No momento que se completava esta operação, que sobretudo se tornava interessante pelo paroxismo da furiosa beatitude a que se entregava a convulsionária, a condessa de La Motte, que entrara com os curiosos na nova sala destinada aos doentes, ouvia um homem exclamar:

– Mas é ela! é ela com certeza! A condessa preparava-se para lhe perguntar: – Ela quem? De repente entraram duas senhoras na primeira sala, apoiadas uma na outra e seguidas a

certa distância por um homem que tinha toda a aparência de criado de confiança, bem que o disfarçasse um vestuário burguês.

O ar daquelas duas senhoras, principalmente de uma delas, impressionou de tal modo a condessa de La Motte, que deu um passo para elas.

Naquele momento um forte grito, que partiu da sala, tendo-se escapado dos lábios da convulsionária, atraiu para lá toda a gente.

E logo o homem que soltara já: “É ela!” e que se encontrava próximo da condessa de La Motte, exclamou com voz surda e misteriosa:

– Mas, senhores, vejam bem: é a rainha! Àquelas palavras, Joana estremeceu. – A rainha! – exclamaram ao mesmo tempo muitas vozes assustadas e surpreendidas. – A rainha na casa de Mesmer! – A rainha numa crise ! – repetiram outras vozes. – Oh! – dizia um – é impossível. – Pois olhem, conhecem a rainha? Sim ou não?

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– Efectivamente – murmurou a maior parte dos assistentes – a parecença é incrível. A condessa tinha uma máscara como todas as mulheres, que ao sair de casa de Mesmer,

deviam dirigir-se para o baile da Ópera. Portanto, podia fazer perguntas sem risco. – Senhor – perguntou ao homem das exclamações, sujeito volumoso e rubicundo, com os

olhos fulgurante e singularmente observadores – diz que a rainha está aqui? – Sim, minha senhora, não pode haver dúvida – respondeu ele. – E onde está, faz favor de me dizer? – Olhe, aquela senhora que acolá vê, recostada naquelas almofadas violetas, numa crise

tão ardente que não pode moderar os seus transportes, é a rainha. – Mas em que se funda o senhor para afirmar que aquela mulher seja a rainha? – Simplesmente nisto, minha senhora: aquela mulher é a rainha – replicou

imperturbavelmente o personagem acusador. E deixou a sua interlocutora para ir propagar e apoiar a notícia pelos diversos grupos. Joana afastou-se do espectáculo quase revoltante que dava a epiléptica. Mas, assim que

deu alguns passos para a porta, encontrou-se face a face com as duas senhoras, que, enquanto não passavam aos convulsionários, examinavam com vivo interesse a celha, as barras de ferro e a tampa.

Assim que Joana viu o rosto da mais velha, soltou um grito. – Que foi? – perguntou esta. Joana arrancou vivamente a máscara. – Conhece-me? – perguntou. A senhora fez um movimento, que logo reprimia. – Eu não, senhora – respondeu um tanto perturbada. – Pois eu conheço-a, e vou dar uma prova disso. A tal interpelação, as duas senhoras apertaram-se uma contra a outra, assustadas. Joana tirou da algibeira a caixa do retrato. – Esqueceu isto em minha casa, minha senhora – disse. – Mas, ainda que assim fosse – perguntou a mais idosa – por que é semelhante comoção? – Estou comovida por causa do perigo que Vossa Majestade corre aqui. – Explique-se. – Ah! digne-se Vossa Majestade pôr primeiro que tudo esta máscara, minha senhora. E ofereceu a mascarilha à rainha, que hesitava em a receber, julgando-se suficientemente

escondida com o toucado. – Por piedade, não tem um instante que perder – prosseguiu Joana. – Ponha, ponha, minha senhora – disse em voz baixa a outra senhora para a rainha. A rainha pôs maquinalmente a máscara na cara. – E agora venha, venha – disse Joana. E levou consigo tão apressadamente as duas senhoras, que só pararam na porta da rua,

onde se acharam ao cabo de alguns segundos. – Mas enfim... – disse a rainha respirando. – Vossa Majestade não foi vista por pessoa nenhuma? – Creio que não. – Ainda bem. – Mas, enfim, não me explicará... – Por enquanto, baste a Vossa Majestade que esta sua fiel súbdita lhe diga que corre o

maior perigo. – Pois sim; mas que perigo é esse? – Terei a honra de o dizer a Vossa Majestade, se se dignar conceder-me a honra de uma

audiência, porque a história é comprida, e Vossa Majestade pode ser vista... conhecida... E, como viu que a rainha manifestava alguma impaciência: – Oh! minha senhora – disse ela à princesa de Lamballe – una os seus rogos aos meus,

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suplico-lho, para que Sua Majestade se retire, e se retire imediatamente. A princesa fez um gesto suplicante. – Vamo-nos – disse a rainha – uma vez que insiste. Depois, voltando-se para a Srª. de La Motte, disse: – Pediu-me uma audiência? – Aspiro à honra de explicar a Vossa Majestade o meu procedimento. – Pois bem, leve-me essa caixa e pergunte pelo porteiro Lourenço, que há-de estar

prevenido. E, voltando-se para o lado da rua: – Kommen sie da, Weber! (Venha cá, Weber!) – bradou ela em alemão. Aproximou-se rapidamente uma carruagem, para a qual subiram as duas princesas. A Srª. de La Motte demorou-se no limiar da porta até perder de vista a carruagem. – Fiz bem em proceder assim – disse ela em voz baixa; – mas para o futuro... é preciso

reflectir.

XVIII

A Senhora Oliva Durante este tempo, o homem que designara a suposta rainha aos olhos das pessoas

presentes, batia no ombro de um dos espectadores, sujeito de olhar ávido e fato safado, e dizia-lhe:

– Belo assunto para um artigo; o senhor, que é jornalista, deve aproveitá-lo. – Como? – perguntou o periodiqueiro. – Quer que eu lhe dê o sumário? – Diga-o. – Aí vai; “Do perigo que há em ser súbdito de uma nação, cujo rei é governado pela

rainha, que adora as crises.” O periodiqueiro riu-se. – E a Bastilha? – disse ele. – Ora adeus! E de que servem os anagramas senão para evitar os censores régios? Sempre

quero que me diga qual é o censor que o impedirá de contar a história do príncipe Lilu e da princesa Etteniotna, soberana de Norfeç? Hem? Que tal?

– Oh! Sim – exclamou o periodiqueiro encantado – a idéia é óptima. – E Peço-lhe que acredite, que um capítulo intitulado: As crises da princesa Etteniotna em casa

do fakir Remsem, teria muita voga nas salas. – Também creio. – Vá, então, e redija isso com a sua melhor pena. O periodiqueiro apertou a mão ao desconhecido. – Quer que lhe mande alguns exemplares? – disse ele; – terei nisso muito gosto, se quer

ter a bondade de me dizer o seu nome. – Certamente! A idéia é boa, e executada pelo senhor há-de ganhar cento por cento. Qual

é a tiragem usual dos seus panfletos? – Dois mil. – Presta-me então um serviço? – De boa vontade. – Receba estes cinqüenta luíses e faça uma tiragem de seis mil. – Como, senhor! enche-me de favores... Quero saber pelo menos o nome de tão

generoso protector das letras. – Eu lho farei saber mandando a sua casa, daqui a oito dias, buscar mil exemplares, a duas

libras cada um, não é isso?

Page 120: Alexandre Dumas - Memórias de um médico 2 - O Colar da ......momento o meu serviço há-de ser feito convenientemente. E deu dois passos recuando para o lado da porta. – E a que

– Trabalharei dia e noite, senhor. – E que tenha graça! – Quanta baste para fazer rebentar de riso toda a população de Paris, excepto uma

pessoa. – Que chorará lágrimas de sangue, não é verdade? – Oh! o senhor tem muito espírito! – Muito obrigado. É verdade, será bom que a publicação venha datada de Londres. – Como sempre. – Muito boa noite, senhor, sou um seu criado. E o gordo desconhecido despediu o periodiqueiro, que com os cinqüenta luíses na

algibeira, desapareceu ligeiro como uma ave de mau agouro. O desconhecido, achando-se só, ou antes sem companheiro, contemplou mais uma vez,

na sala das crises, a mulher, a cujo êxtase sucedera uma prostração verdadeira, e a quem uma criada, destinada ao serviço das mulheres que passavam por crises, abaixava castamente as saias algum tanto indiscretas.

Ao notar aquela delicada formosura, aquelas feições finas e voluptuosas, a graça nobre daquele sono descuidado, exclamou:

– Decididamente, a semelhança é pasmosa. Deus, que a fez, tinha seus projectos; condenou de antemão a outra com quem esta se parece.

No momento em que ele acabava de formular este ameaçador pensamento, a mulher ergueu-se lentamente das almofadas, e auxiliando-se com o braço de um vizinho que acordara já do êxtase, tratou de compor as roupas, que estavam um tanto descompostas.

Corou um pouco de pejo ao ver a atenção que lhe prestavam as pessoas presentes, respondeu com uma civilidade encantadora às perguntas graves e ao mesmo tempo amáveis de Mesmer; e depois, estendendo os braços roliços e as pernas, que eram belíssimas, como uma gata que acaba de dormir, atravessou as três salas, colhendo, sem perder um único deles, os olhares motejadores, cobiçosos ou espantados que lhe dirigiam.

Mas o que a admirou a ponto de a fazer sorrir foi, que, ao passar diante de um grupo que estava cochichando num canto da sala, em lugar de lhe dirigirem olhares ou ditos provocadores, fizeram-lhe uma cortesia tão profunda e respeitosa, como nenhum cortesão francês deixaria de fazer diante da rainha.

E realmente, aquele grupo, estupefacto e reverente, fora apressadamente composto pelo incansável desconhecido que, escondido por detrás dele, lhe dizia em voz baixa:

– Não importa, meus senhores, não importa, não deixa por isso de ser a rainha de França; cumprimentemo-la com respeito.

A rapariga, que era objecto de tanto respeito, saiu um tanto inquieta do vestíbulo e chegou ao pátio.

Ali, os seus olhos fatigados procuraram uma carruagem ou uma cadeirinha: não achou nem uma nem outra coisa; ao cabo, porém, de um instante de indecisão, quando já punha o pé delicado nas pedras da calçada, chegou-se a ela um lacaio.

– A carruagem da senhora! – bradou ele. – Mas – redargüiu ela – eu não tenho carruagem. – A senhora não veio numa carruagem? – Vim, sim. – Da rua Dauphine? – Sim. – Vou conduzir a senhora a casa. – Pois conduza-me – disse ela com modo desembaraçadíssimo, sem ter conservado mais

de um minuto a espécie de desassossego, que uma tal proposta, assim imprevista, teria causado a outra qualquer mulher.

A um sinal do lacaio, acudiu uma carruagem de boa aparência, que veio receber a senhora

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ao peristilo. O lacaio fechou o degrau e a portinhola, e bradou para o cocheiro: – Rua Dauphine! Os cavalos partiram rapidamente; chegando ao Pont-Neuf, a senhora, a quem muito

agradava aquele modo de andar, como diz Lafontaine, lamentava não morar ao pé do Jardim Botânico, a fim de ter mais caminho que percorrer.

A carruagem parou. Abriu-se a portinhola, abaixaram-se os degraus. O lacaio, bem ensinado, estendeu a mão para receber a chave do trinco, com cujo auxílio entravam em casa os habitantes das trinta mil casas de Paris, que não moravam em palácios, e que por isso não tinham porteiro nem guarda-portão.

O lacaio abriu portanto a porta para que a senhora não magoasse os dedos; depois, no momento em que esta entrava no sombrio corredor, cortejou-a e fechou a porta.

A carruagem voltou para trás e desapareceu. – Realmente, aqui está uma aventura agradável. Isto é muito bonito da parte do Dr.

Mesmer. Oh! como estou cansada! Naturalmente previa que assim havia de ficar. É um grande médico.

E dizendo estas palavras, chegou ao segundo andar da casa, a um patamar, para o qual davam duas portas.

Assim que bateu, veio uma velha abrir-lhe. – Boa noite, mãe; a ceia está pronta? – Está, sim; e até está esfriando. – Ele está cá? – Ainda não veio; mas o senhor está. – Que senhor? – Aquele a quem precisas falar esta noite. – Eu! – Sim, a senhora. Este colóquio dava-se numa saleta de portas de vidraça, que separava o patamar da sala

que dava para a rua. Através das vidraças via-se distintamente a lâmpada que alumiava a sala, cujo aspecto, se

não era satisfatório, era pelo menos suportável. Umas cortinas velhas de seda amarela, que o tempo desbotara, algumas cadeiras de

veludo de Utrecht verde, uma cómoda de doze gavetas, com embutidos, e um velho sofá amarelo, compunham as magnificências daquele compartimento.

A recém-chegada não reconheceu o homem que a esperava; mas os nossos leitores facilmente o reconhecerão: era o que ajuntara os curiosos na passagem da suposta rainha, o homem que dera cinco luíses pelo panfleto.

O fogão era ornado com dois vasos rachados, de louça azul do Japão. Abriu repentinamente a porta e dirigiu-se para o sofá, onde viu assentado, com toda a

tranqüilidade, um homem de boa aparência, mais gordo que magro, que passava a mão alvíssima pelos bofes da camisa, que eram de rendas riquíssimas.

A rapariga não teve tempo de encetar a conversa. O singular personagem fez uma espécie de cortesia, inclinou-se um pouco, e cravando na

dona da casa um olhar vivo e benévolo, disse: – Sei o que vai perguntar-me; mas a melhor resposta que lhe poderei dar, será dirigir-lhe

eu mesmo umas perguntas. É a Srª. Oliva? – Sou, sim, senhor. – Uma senhora encantadora e muito partidária do sistema de Mesmer. – De onde venho neste momento. – Muito bem! e contudo, isso não lhe explica, segundo leio nos seus olhos, o motivo por

que me vê assentado no seu sofá, e é isso provavelmente o que deseja saber.

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– Adivinhou, senhor. – Queira fazer-me o favor de se assentar; se ficasse de pé, ver-me-ia também obrigado a

levantar-me, e não conversaríamos comodamente. – Pode gabar-se de ter umas maneiras muito extraordinárias – redargüiu a rapariga a

quem chamaremos a Srª. Oliva, pois que se dignava dar por este nome. – Menina, vi-a ainda há pouco em casa de Mesmer, e achei-a tal qual a desejava. – Senhor! – Oh! não se assuste, menina, eu não disse que a tinha achado encantadora; não, isso

havia de parecer uma declaração de amor, e não é essa a minha intenção. Peço-lhe que se não afaste, porque me obrigará a gritar como um surdo, para que me possa ouvir.

– Então o que quer? – disse Oliva singelamente. – Bem sei – continuou o desconhecido – que está acostumada a ouvir dizer que é

formosa; eu, que aliás também assim penso, tenho coisa muito diversa que dizer-lhe e que propor-lhe.

– Senhor, na realidade, fala-me num tom... – Não se espante antes de me ouvir... Está aqui alguém escondido? – Não, senhor, ninguém está aqui escondido; mas, enfim... – Então, se ninguém está aí escondido, não nos incomodemos para falar... O que diria se

houvesse entre nós uma pequena associação? – Uma ligação... Bem vê... – Lá torna a confundir. Eu não disse ligação, disse associação. Não lhe falo de amor, falo

de negócio. – Que género de negócio? – perguntou Oliva, cuja curiosidade se traía por verdadeiro

pasmo. – O que faz a senhora durante o dia todo? – Mas... – Nada receie; não vim aqui para a repreender; diga-me o que lhe aprouver. – Não faço nada, ou antes, faço o menos possível. – É preguiçosa. – Se sou! – Muito bem. – Ah! diz muito bem! – Certamente. Que me importa a mim que seja preguiçosa! Gosta de passear? – Muito. – De ir a teatros, a bailes? – Imenso. – De Levar boa vida? – Principalmente. – Se eu lhe desse vinte e cinco luíses por mês, recusaria? – Senhor! – Ora minha querida Srª. Oliva, aí começa a duvidar. Tínhamos, contudo, convencionado

que não se zangaria. Ouça-me, pois, sossegadamente. Eu falei em vinte e cinco luíses como teria falado em cinqüenta.

– Eu antes queria cinqüenta do que vinte e cinco, mas o que ainda prefiro a cinqüenta, é o direito de escolher o meu amante.

– Com os diabos! já lhe disse que não quero ser seu amante. Sossegue, portanto. – Então, também com os diabos, o que quer o senhor que eu faça para ganhar os seus

cinqüenta luíses? – Dissemos cinqüenta? – Dissemos. – Pois seja cinqüenta. Receber-me-á em casa, mostrar-me-á a melhor cara possível, dar-

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me-á o braço quando eu lho pedir, e irá esperar-me onde eu lhe disser que me espere. – Mas tenho um amante, senhor. – Muito bem, depois... – Como, depois? – Sim... ponha-o na rua, com os demónios! – Oh! Beausire não é homem que se ponha assim na rua. – Quer que eu a ajude a isso? – Não; gosto dele. – Ora! – Um poucochinho. – Mas esse pouco é de mais. – Mas é assim. – Então, deixe ficar Beausire. – O senhor é acomodatício! – Bem o vê. Servem as condições? – Servem, se as disse todas completamente. – Ouça, minha querida, eu disse tudo quanto tenho que dizer por enquanto. – Palavra de honra? – Palavra de honra. Entretanto, deve perceber uma coisa... – Qual? – É que se, por acaso, eu precisasse que fosse na realidade a minha amante... – Ah! senhor, isso é coisa de que nunca há necessidade. – Mas de parecê-lo? – Oh! lá isso é diferente. – Então, está dito? – Está dito. – Aqui está a primeira mesada adiantada. Ofereceu-lhe um rolo de cinqüenta luíses, sem lhe tocar sequer na ponta dos dedos. E

como ela hesitasse, meteu-lho na algibeira do vestido, sem tocar nem de leve com a mão naquele quadril tão redondo e móvel, que os finos gulosos de Espanha não teriam desprezado como ele.

Apenas o ouro caíra no fundo da algibeira, duas fortes pancadas dadas na porta da rua fizeram saltar Oliva para o lado da janela.

– Santo Deus! – exclamou ela – fuja depressa, é ele! – Ele? Quem? – Beausire... o meu amante... Mexa-se, senhor. – Ah! paciência. – Como, paciência? Mas vai fazê-lo em pedaços. – Ora, adeus! – Não ouve como bate? Vai arrombar a porta. – Mande-lha abrir; mas também, com os diabos, porque lhe não dá a chave do trinco?... E o desconhecido estendeu-se no sofá, dizendo em voz baixa: – É preciso que eu veja este velhaco, para saber o que vale. As pancadas continuavam e eram entrecortadas de tremendas pragas, que subiam muito

acima do segundo andar. – Vá, mãe! vá abrir – disse Oliva furiosa. – E enquanto ao senhor, se lhe acontecer

alguma desgraça, a culpa não é minha. – Pois sim, sossegue – disse o impassível desconhecido sem se levantar do sofá. Oliva, toda trémula, estava no patamar da escada.

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XIX

O Senhor Beausire Oliva correu ao encontro de um homem furioso que, com as mãos estendidas, o rosto

pálido, o vestuário em desordem, invadia o quarto, vociferando e praguejando. – Beausire! então! Beausire! – disse Oliva com uma voz que não era bastante assustada

para que se pudesse dizer que ela fosse medrosa. – Larga-me! – bradou o recém-chegado, desembaraçando-se-lhe com brutalidade das

mãos. E continuou em tom agressivo: – Ah! não me abriam a porta porque estava aqui um homem! O desconhecido, como sabemos, tinha-se deixado ficar no sofá, numa atitude sossegada e

imóvel, que o Sr. Beausire tomou naturalmente por indecisão ou por medo. E chegando defronte do homem com um ranger de dentes de mau agouro, disse: – Espero que me responda, senhor! – O que quer que lhe diga, meu caro Sr. Beausire? – redargüiu o desconhecido. – O que faz aqui? e primeiro que tudo, quem é? – Sou um homem muito pacífico a quem mostra uns olhos capazes de o engolirem, e que

conversava com esta senhora o mais honestamente possível. – E decerto – murmurou Oliva – falava-me com a maior honestidade. – Cale-se! – bradou Beausire para Oliva. – Tá, tá tá! – disse o desconhecido – não maltrate a senhora, que está inocente, e se está

de mau humor... – Estou, sim. – Terá perdido ao jogo? – disse Oliva em voz baixa. – Estou roubado, depenado! com os diabos – bradou Beausire. – E não desgostaria de depenar alguém – disse o desconhecido sorrindo; – isso é natural,

meu caro Sr. Beausire. – Basta de chalaça! Faça-me favor de sair daqui. – Oh! Sr. Beausire, indulgência! – Com todos os diabos do inferno! levante-se e saia, quando não quebro o sofá e tudo

quanto tem em cima. – A senhora não me tinha dito que o Sr. Beausire era tão terrível. Santo Deus! que

ferocidade! Beausire, desesperado, fez um grande movimento de comédia, e para puxar pelo espadim,

descreveu com o braço e com o ferro um círculo de vinte pés de circunferência, pelo menos. – Ainda uma vez – disse ele – levante-se, quando não prego-o nas costas do sofá. – O senhor é realmente muito desagradável – respondeu o desconhecido puxando

vagarosamente, com a mão esquerda, o seu espadim para fora da bainha. Oliva soltou agudos gritos. – A menina cale-se – disse com todo o sossego o homem que tinha a espada na mão,

continuando a ficar assentado no sofá; – cale-se, porque, de contrário, sucederão duas coisas; a primeira será que, atordoando o Sr. Beausire, fará com que ele se espete na minha espada; a segunda, é subir a guarda e levá-la direitinha para S. Lázaro.

Oliva substituiu os gritos por uma pantomima das mais expressivas. Era um espectáculo curioso. De um lado, o Sr. Beausire esfarrapado, embriagado,

trémulo de raiva, despedia golpes para a direita e para a esquerda, sem táctica, contra um adversário imperturbável.

De outro lado, um homem assentado no sofá, com uma das mãos nos joelhos e a outra armada, defendendo-se com agilidade, sem abalos, e rindo de modo capaz de espantar o próprio

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S. Jorge. A espada de Beausire não tinha podido nem um instante conservar-se direita, porque era

sempre levada para um e outro lado pela espada do adversário. Beausire começava a cansar-se, a assoprar, mas a cólera dera nele lugar a um terror

involuntário; pensava que se a espada do seu contrário se quisesse alongar, estender-se numa ocasião de defesa, estaria perdido. Perturbou-se com a incerteza e já não dava senão no fraco da espada do adversário.

Este atacou-o vigorosamente em terça, e fez-lhe voar logo a espada da mão, com a ligeireza de uma pena.

A espada atravessou a casa, quebrou um vidro e desapareceu pela janela fora. Beausire não sabia já o que deveria fazer. – Ah! Sr. Beausire – disse o desconhecido – tome cuidado, que se a sua espada cair com a

ponta para baixo, e que vá passando alguém, fica com uma morte às costas! Beausire, entrando em si a estas palavras, correu para a porta e desceu a escada para ir

buscar a sua arma e prevenir alguma desgraça, que o indispusesse com a polícia. Durante este tempo, Oliva pegou na mão do vencedor e disse-lhe: – Oh! o senhor é muito valente, mas o Sr. Beausire é traiçoeiro, e daí, ficando aqui,

compromete-me; assim que se for, ele vai seguramente bater-me. – Então fico. – Não, por piedade; quando ele me bate, também eu lhe bato, e sempre sou a mais forte,

e em nada devo poupá-lo. Retire-se, rogo-lho. – Mas olhe, minha flor, se eu sair agora, hei-de certamente encontrá-lo em baixo,

esperando-me no fim da escada; começará de novo a briga; numa escada nem sempre se pode parar dobrado contra quartas, dobrado contra terças e meio círculo, como num canapé.

– E depois? – Depois, mato o Sr. Beausire ou mata-me ele a mim. – Santo Deus, é verdade, e que barulho isso faria na casa. – Que é melhor evitar; portanto, fico. – Pelo amor de Deus, saia; subirá a escada para o andar superior até que ele tenha

entrado. Ele, julgando encontrá-lo aqui, não o procurará noutra parte. Uma vez que ele tiver entrado no quarto, ouvir-me-á fechar a porta a duas voltas. Estará o meu homem feito prisioneiro e a chave na minha algibeira. E, enquanto eu me bato corajosamente para empregar o tempo, o senhor safa-se.

– É uma rapariga encantadora! Até à vista. – Até à vista! E quando? – Esta noite, se fizer favor. – Como, esta noite! Está doido? – Esta noite, sim. Pois não há baile na ópera esta noite? – Mas já deu meia noite. – Bem sei, mas não importa. – São precisos dominós. – Beausire os irá buscar, se o tiver tosado bem tosado. – Tem razão – disse Oliva rindo. – Aqui estão dez luíses para o fato – disse o desconhecido rindo igualmente. – Adeus! adeus! Obrigada! E empurrou-o para o patamar. – Bom ! lá fecha a porta de baixo – disse o desconhecido. – É um simples fecho, facílimo de abrir. Adeus! Lá sobe ele! – Mas se por acaso ficasse magoada, como faria para mo dizer? Pensou um instante. – Há-de ter lacaios? – disse ela.

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– Sim, mandarei colocar um debaixo das suas janelas. – Muito bem, e olhará para o ar, até que lhe caia um bilhete no nariz. – Pois sim. Adeus! O desconhecido subiu para o pavimento superior. Nada era mais fácil. A escada era

escura, e Oliva, interpelando Beausire em voz alta, abafava o ruído dos passos do seu novo cúmplice.

– Chegarás ou não, homem furioso! – bradava ela a Beausire, que subia fazendo sérias reflexões sobre a superioridade moral e física daquele intruso, tão insolentemente metido no domicílio alheio.

Chegou, entretanto, ao andar onde Oliva o esperava. Trazia a espada na bainha, e vinha ruminando um discurso.

Oliva empurrou-o pelos ombros para dentro de casa, e fechou a porta com duas voltas, conforme prometera.

O desconhecido, ao retirar-se, pôde ouvir o princípio de uma luta, em que sobressaía, pelo som forte, essa qualidade de golpes a que vulgarmente e por onomatopéia chamam palmadas ou bofetadas.

Ao estalido das bofetadas misturavam-se gritos e repreensões. A voz de Beausire atroava, a de Oliva atordoava.

– Com efeito – dizia o desconhecido afastando-se – ninguém havia de acreditar, vendo o modo por que esta mulher ficou assustada com a chegada do amante, que possuísse semelhante faculdade de resistência.

O desconhecido não perdeu tempo em seguir o fim da cena. – O princípio é muito acalorado – disse ele – para que o desfecho possa estar longe. Virou para a pequena rua de Anjou-Dauphine, na qual achou a carruagem que o esperava. Disse algumas palavras a um dos criados, que se afastou e foi tomar posição em frente

das janelas de Oliva, e escondeu-se na densa sombra de uma pequena arcada pertencente à entrada de uma casa antiga.

Assim colocado, o homem, que via as janelas alumiadas, pôde julgar, pela mobilidade das sombras, quanto se passava no interior.

As imagens, muito agitadas de princípio, acabaram por sossegar um pouco. Até que afinal só ficou uma.

XX

O ouro Eis o que se passara por detrás das cortinas: Primeiramente, Beausire ficara admirado de ver assim fechar a porta da casa, depois mais

admirado ficou ao ver a menina Oliva gritar em tão altas vozes, e finalmente, ficou verdadeiramente espantado ao entrar na sala, e já não achar o seu feroz rival.

Buscas, ameaças, chamamentos, e nada; o homem, que se escondia, é que tinha medo; se tinha medo, é que Beausire triunfava.

Oliva obrigou-o a deixar as suas investigações e a responder-lhe às perguntas. Beausire, a quem Oliva tratava com aspereza, tomou também um tom arrogante. Oliva, que sabia não ser já culpada, pois que desaparecera o corpo de delito, Quia corpus

delicti aberat, como diz o texto; Oliva gritou tanto que, para a fazer calar, Beausire pôs-lhe ou quis pôr-lhe a mão na boca.

Mas enganou-se; Oliva deu outra interpretação ao gesto persuasivo e conciliador de Beausire. A essa mão rápida que lhe dirigiam à cara, opôs ela a sua, tão destra e ligeira como havia sido a espada do desconhecido.

Com a mão parou quarta e terça, atacou e tocou Beausire na face.

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Beausire respondeu com a mão direita, fazendo uma quarta forçada, que abateu as duas mãos de Oliva, e fez-lhe corar a face esquerda de um modo extraordinário.

Era este o ponto da conversa, que o desconhecido ouvira antes de sair. Uma explicação começada assim, dizemos, traz brevemente o desfecho; todavia, um

desfecho, por melhor que seja, precisa sempre grande quantidade de preparativos para ser dramático.

Oliva replicou à bofetada de Beausire com um projéctil pesado e perigoso: uma bilha de barro; Beausire treplicou ao projéctil com um jogo de pau, e quebrando várias xícaras, deitou por terra um castiçal e acabou por achar resistência no ombro da rapariga.

Esta, furiosa, saltou sobre Beausire e agarrou-o pelo gasganete. O desgraçado viu-se obrigado a deitar mão ao que pôde encontrar de Oliva.

Rasgou-lhe o vestido. Oliva, sensível a semelhante afronta e à perda, largou a presa e fez cair no meio da casa Beausire, que se levantou espumando.

Mas como o valor de um inimigo se mede pela defesa, e a defesa sempre se faz respeitar, mesmo pelo vencedor, Beausire, que concebera muito respeito por Oliva, continuou a conversa verbal no ponto em que a tinha interrompido.

– És – disse ele – uma criatura bem má; arruínas-me. – Tu é que me arruínas a mim – disse Oliva. – Oh! eu arruíno-te! A ti, que nada possuis. – Dize antes que já nada possuo! Dize que vendeste, que comeste e que bebeste ou

jogaste tudo quanto eu tinha. – E ousas lançar-me em rosto a minha pobreza? – Porque és tu pobre? Por teres vícios. – Hei-de corrigir todos os teus de uma só vez. – Batendo-me? E Oliva agitou no ar uma tenaz pesadíssima, que servia para deitar combustível no fogão,

e ao aspecto da qual Beausire recuou. – Já te não faltava mais nada – disse ele – se não tomar amantes. – E tu, que nome dás a essas desgraçadas que se assentam ao teu lado nas bodegas onde

passas os dias e as noites? – Eu jogo para viver. – Tiras disso belo resultado; estamos morrendo de fome; bela indústria, na verdade! – E tu, com a tua, vês-te obrigada a chorar quando te rasgam um vestido porque não tens

meios para comprar outro. Bela indústria, na verdade! – É melhor do que a tua! – exclamou Oliva, furiosa; – e a prova é esta! E tirou da algibeira um punhado de ouro, que atirou ao chão, para o meio do quarto. Os luíses começaram a correr sobre os discos e a tremer sobre as faces, uns escondendo-

se debaixo da mobília, outros continuando as suas evoluções sonoras até debaixo das portas; os outros, enfim, parando de repente cansados e fazendo luzir as suas efígies como palhetas de fogo.

Quando Beausire ouviu aquela chuva metálica tinir na madeira da mobília e sobre o ladrilho do chão, sentiu-se atacado como de uma vertigem, ou melhor diremos, de um remorso.

– Luíses, duplos luíses! – exclamou ele aterrado. Oliva tinha nas mãos outro punhado do precioso metal. Atirou-o à cara e às mãos abertas

de Beausire, para acabar de o cegar. – Oh! oh! – disse ele. – Como estás rica, Oliva! – É isto o que me produz a minha indústria – respondeu cinicamente a amante, repelindo

ao mesmo tempo com um vigoroso pontapé o ouro, que estava no chão, e Beausire que ajoelhava para o apanhar.

– Dezesseis, dezessete, dezoito – dizia Beausire no auge da alegria. – Miserável! – murmurou Oliva. – Dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois...

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– Covarde! – Vinte e três, vinte e quatro, vinte e seis... – Infame! Quer porque tivesse ouvido, quer porque se tivesse envergonhado, Beausire levantou-se. – Assim – disse ele num tom de seriedade tal que nada o podia igualar no cómico – assim,

menina, tu fazias economias, privando-me do necessário... Oliva, confundida, não achou resposta para dar. – Assim – prosseguiu o velhaco – deixavas-me andar por aí de meias velhas, de chapéu

usado, roto e esgarçado, enquanto tu guardavas luíses de ouro na tua arca! De onde vêm esses luíses? Naturalmente da venda que eu fiz do meu espólio, associando ao teu o meu triste destino.

– Velhaco! – murmurou Oliva em voz baixa. E encarou-o com um olhar cheio de desprezo. Beausire não fez caso disso. – Perdoo-te – disse ele – não a tua avareza, mas a tua economia. – E querias matar-me, ainda agora! – Ainda agora tinha eu razão; agora, se o fizesse, já a não teria. – Porquê? – Porque agora és uma verdadeira dona de casa, que trazes ganhos ao casal. – E eu digo-te que és um miserável. – Minha Olivasinha... – E que vais restituir-me esse dinheiro. – Oh! minha querida. – Vais restituir-mo, quando não, atravesso-te o corpo com a tua espada. – Oliva! – Sim ou não? – Não, Oliva, nunca poderei consentir em te deixar atravessar o meu corpo. – Não te arredes um passo, senão mato-te! O dinheiro! – Dá-mo. – Ah! covarde! ah! criatura vil! mendigas, solicitas os lucros do meu mau procedimento!

Ah! Eis aí está o que são os homens; eu sempre te desprezei e a todos, ouviste bem? e desprezo ainda mais aquele que dá do que aquele que recebe.

– Aquele que dá – redargüiu Beausire com gravidade – pode dar, é feliz. Eu também, quando tive, dei-te, Nicola.

– Não quero que me chamem Nicola. – Perdão, Oliva. Dizia eu que tinha dado enquanto tive. – Foram grandes as tuas generosidades! reduziram-se a uns brincos de prata, seis luíses de

ouro, dois vestidos de seda, e três lenços bordados. – É muito para um soldado. – Cala-te; os brincos foram roubados a alguma outra para me oferecer; os luíses de ouro

tinham-te sido emprestados e nunca os pagaste; os vestidos de seda... – Oliva! Oliva! – Restitui-me o meu dinheiro. – O que queres tu em troca? – Dobrada soma. – Pois bem! sim – disse o velhaco com gravidade. – Vou à rua de Bussy, à casa de jogo, e terás, não o dobro, mas cinco vezes mais. E deu dois passos para o lado da porta. Ela agarrou-o pelas abas da casaca, já demasiado

gasta. – Bonito! – disse ele – rasgaste-me o fato! – Melhor, terás um novo. – Seis luíses! Oliva, seis luíses. Felizmente que na rua Bussy, os banqueiros e os

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freqüentadores daquela casa não são rigorosos no artigo vestuário. Oliva agarrou-lhe tranquilamente na outra aba da casaca e arrancou-a. Beausire tornou-se

furioso. – Com todos os diabos! – exclamou ele – vais fazer com que eu te mate. Então! não se

lembra esta velhaca de me despir agora?! Assim, já não posso sair daqui! – Pelo contrário, vais sair imediatamente. – Havia de ser curioso, sem casaca! – Vestirás o sobretudo de inverno. – Roto, remendado! – Pois se te aprouver não o vestirás, mas repito que vais sair já. Oliva tirou da algibeira todo o ouro que ainda tinha, uns quarenta luíses, pouco mais ou

menos, e fê-los saltar nas mãos. Beausire esteve a ponto de enlouquecer e tornou a ajoelhar. – Ordena – disse ele – ordena. – Vai a correr ao Frade Mágico, na rua de Sena; vendem-se lá dominós para baile de

máscaras. – E daí? – Comprar-me-ás um completo, mascarilha e meias, tudo igual. – Bem! – Para ti, um dominó preto; para mim, um de cetim branco. – Sim. – E para isso não dou senão vinte minutos. – Vamos ao baile? – Vamos. – E levas-me a cear ao bulevar? – Levo; mas com uma condição. – Qual é? – De seres obediente. – Oh! sempre, sempre. – Vamos, mostra-me o teu zelo. – Eu corro. – Como, pois ainda aí estás! – Mas, a despesa... – Tens vinte e cinco luíses. – Como? Tenho vinte e cinco luíses! Dize-me como se entende isso? – Os que apanhaste do chão. – Oliva, Oliva, isso não é bonito! – O que queres tu dizer? – Oliva, já mos havias dado. – Não digo que os não terás; mas se eu tos desse agora não voltarias cá. Vai, vai e volta

depressa. – E ela que tem razão – disse consigo o velhaco um pouco confuso. – Tinha tenção de

não voltar cá. – Vinte e cinco minutos, ouviste? – bradou ela. – Obedeço. Foi neste momento que o lacaio, emboscado no pórtico em frente das janelas, viu

desaparecer um dos dois interlocutores. Era o Sr. Beausire, que saía com uma casaca sem abas, atrás da qual balanceava

insolentemente o espadim, enquanto a camisa aparecia em fofos nas aberturas da casaca como no tempo de Luís XIII.

Enquanto Beausire se dirigia à rua de Sena, Oliva escreveu rapidamente num pedaço de

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papel as seguintes palavras, que resumiam todo o episódio: “Está assinada a paz, a partilha fez-se, o baile adoptou-se. Em sendo duas horas,

estaremos na Ópera. O meu dominó há-de ser branco, e levarei um laço de seda azul no ombro esquerdo.”

Oliva embrulhou um pedaço da bilha quebrada no bilhete, para lhe dar peso, passou a

cabeça pela janela, e atirou com o papelinho à rua. O lacaio correu para ele, agarrou-o e fugiu. Parece certo que o Sr. Beausire não tardou trinta minutos em voltar, seguido por dois

oficiais de alfaiate, que traziam, pelo preço de dezoito luíses, dois dominós de gosto delicado, como tudo quanto saía da casa do Frade Mágico, fornecedor de Sua Majestade a rainha e das suas damas.

XXI

A casa oculta Deixámos a Srª. de La Motte à porta do palácio de Mesmer, seguindo com os olhos a

carruagem da rainha, que desaparecia rapidamente. Quando cessou de vê-la, quando a bulha do rodar deixou de ouvir-se, Joana entrou para a

sua carruagem de aluguer e foi a casa vestir um dominó e pôr uma máscara, e ao mesmo tempo ver se houvera novidade no seu domicílio.

A Srª. de La Motte prometera a si mesma, para essa bem-aventurada noite, um refrigério às comoções do dia. Resolvera, como mulher forte que era, fazer de rapaz, como vulgar e expressivamente se diz, e ir, por conseqüência, respirar sozinha as delícias do imprevisto.

Mas esperava-a um contratempo no primeiro passo que dava nesse caminho tão sedutor para imaginações vivas e por muito tempo contidas.

Esperava-a um criado no cubículo do porteiro. Pertencia ao Sr. de Rohan, e era portador de um bilhete de Sua Eminência, concebido

nestes termos: “Srª. condessa. – Não terá certamente esquecido que temos de falar sobre certos

negócios. Pode ser, porém, que não tenha boa memória; eu, que, pelo contrário, nunca esqueço o que me agrada, tenho a honra de a esperar no lugar aonde o portador há-de conduzi-la, se for da sua vontade.”

A carta era assinada com a cruz pastoral. A Srª. de La Motte, contrariada de princípio com este contratempo, reflectiu um instante

e tomou o seu partido com a rapidez de precisão que a caracterizava. – Suba para o lado do meu cocheiro – disse ao criado – e indique-lhe o sítio. O moço subiu para a almofada, e a Srª. de La Motte meteu-se na carruagem. Dez minutos bastaram para levar a condessa ao bairro de Santo António, num lugar onde

umas árvores, tão velhas como o próprio bairro, ocultavam a todas as vistas uma dessas lindas casas edificadas no tempo de Luís XV, com o gosto exterior do século dezesseis e o conforto incomparável do século dezoito.

– Oh! oh! para uma casa destas! – murmurou a condessa; – da parte de um grande príncipe é coisa naturalíssima, mas para uma Valois, é bem humilhante. Enfim!...

Esta palavra, que a resignação tornou em suspiro e a impaciência em exclamação, patenteava a ambição devoradora, a cobiça louca, que lhe dormitava no espírito.

Mas, apenas transposto o limiar da casa, estava tomada a sua resolução.

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Levaram-na de compartimento em compartimento, isto é, de surpresa em surpresa, até uma pequena casa de jantar de muito bom gosto.

Ali viu o cardeal, que estava só e a esperava. Sua Eminência folheava umas brochuras que se pareciam muito com uma colecção desses

panfletos que choviam aos milheiros naquela época, quando o vento vinha da Holanda ou da Inglaterra.

Assim que ela entrou, levantou-se o cardeal. – Ah! ei-la! Muito obrigado, Srª. condessa – disse ele. E aproximou-se para lhe beijar a mão. Joana recuou com um modo desdenhoso e ofendido. – Como! – disse o cardeal – o que tem, minha senhora? – Não está acostumado a ver uma cara assim nas mulheres a quem Vossa Eminência faz a

honra de mandar chamar para aqui; não é verdade, Sr. cardeal? – Oh! Srª. condessa! – Estamos na sua casa oculta, não é assim, monsenhor? – disse a condessa olhando

desdenhosamente em volta de si. – Mas, minha senhora... – Eu esperava que Vossa Eminência se tivesse lembrado em que condição nasci.

Esperava que Vossa Eminência se dignasse de não esquecer que, se Deus me criou pobre, deixou-me pelo menos o orgulho da minha classe.

– Vamos, vamos, condessa, eu pensava que era uma mulher de espírito – disse o cardeal. – Pelo que parece, monsenhor chama mulher de espírito a toda a mulher indiferente, que

de tudo ri, até da desonra; a essas mulheres, peço perdão a Vossa Eminência, costumo eu dar outro nome.

– Nada, não, condessa, está enganada; chamo mulher de espírito a toda a mulher que dá ouvidos quando lhe falam, ou que não fala antes de ter ouvido.

– Vamos, então fale, que eu lhe prestarei atenção. – Tinha que falar com a condessa em coisas sérias. – E para isso mandou-me vir para uma casa de jantar? – Mandei. Teria preferido que eu a esperasse num gabinete, condessa? – A distinção é delicada. – Assim o creio, condessa. – De modo que se trata unicamente de cear com o senhor. – Nada mais. – Persuada-se Vossa Eminência, que eu aprecio, como devo, tanta honra. – Moteja, condessa? – Não, rio-me. – Ri? – Rio. Prefere talvez que eu chore? Ah! Monsenhor é de génio difícil de contentar,

segundo me parece. – Oh! a condessa é encantadora quando ri, e estimaria muito vê-la sempre rir. Mas o seu

riso, neste momento, não é franco. Oh! não, não; a cólera está por detrás desses formosos lábios, que mostram os dentes.

– De modo nenhum, monsenhor, basta-me estar numa casa de jantar para estar sossegada.

– Ora ainda bem! – E espero que ceie à sua vontade. – Como, que ceie à minha vontade? E a condessa? – Eu não tenho vontade. – Como, minha senhora, não me dá de cear? – Como?

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– Manda-me embora? – Não percebo a Vossa Eminência. – Ouça, querida condessa. – Diga. – Se fosse menos arrebatada, dir-lhe-ia que, por mais que faça, é sempre encantadora; mas

como a cada cumprimento receio ser despedido, abstenho-me. – Receia ser despedido? Realmente, monsenhor, peço perdão a Vossa Eminência, mas

acho-o ininteligível. – Entretanto, tudo isto é claríssimo. – Nesse caso, desculpe Vossa Eminência a minha perturbação. – Eu me explico. Noutro dia recebeu-me com muito acanhamento; achava que a sua casa

não era própria para uma pessoa da sua classe e do seu nome. Obrigou-me isso a abreviar a minha visita, e fez com que se mostrasse fria para comigo. Pensei então que, colocá-la no seu lugar, na sua condição de viver, era restituir o ar ao pássaro que o físico tem debaixo do recipiente da máquina pneumática.

– E então?... – perguntou a condessa com ansiedade, porque começava a compreender. – Então, formosa condessa, para que me pudesse receber com franqueza, para que eu

pudesse vir visitá-la sem me comprometer ou comprometer a condessa... O cardeal olhava atentamente para a condessa de La Motte. – Então? – perguntou esta. – Esperei que se dignasse aceitar esta modesta casa. Compreende agora, condessa? Não

falo misteriosamente. – Aceitar, eu? Vossa Eminência dá-me esta casa? – exclamou a condessa, cujo coração

palpitava de orgulho e de avidez. – É insignificante, condessa, é pouquíssimo; mas se eu lhe desse mais, decerto não

aceitaria. – Oh! nem mais nem menos, monsenhor – disse a condessa. – A condessa disse?... – Disse que é absolutamente impossível aceitar semelhante dádiva. – Impossível! E porquê? – Simplesmente porque é impossível. – Oh! não pronuncie essa palavra ao pé de mim. – Porquê? – Porque ao pé da condessa não quero dar-lhe crédito. – Monsenhor!... – Minha senhora, a casa pertence-lhe, ali estão as chaves numa salva de prata. Trato-a

como a um triunfador. Também vê humilhação nisso? – Não, mas... – Vamos, aceite. – Não, monsenhor, já lho disse. – Como, minha senhora! Escreve aos ministros para solicitar uma pensão; aceita cem

luíses de duas senhoras desconhecidas!... – Oh! é muito diferente. Quem recebe... – Quem recebe, obsequeia, condessa; – disse nobremente o príncipe. – Olhe, eu esperava

pela senhora na sua casa de jantar; nem sequer vi o toucador, nem as salas, nem os quartos; limito-me a supor que há-de haver tudo isso.

– Oh! perdão! Obriga-me a confessar que não há homem mais delicado do que monsenhor.

E a condessa, que por tão longo tempo se contivera, corou de prazer pensando que ia afinal poder dizer: Minha casa!

Depois, conhecendo por um gesto do príncipe que se ia deixando arrebatar, recuou um

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pouco e disse: – Monsenhor, rogo a Vossa Eminência que me dê de cear. O cardeal tirou uma capa que ainda não largara dos ombros, chegou uma cadeira à

condessa, e vestido com um simples trajo de particular, que lhe ia às maravilhas, começou o seu ofício de mordomo.

A ceia foi servida de pronto. Enquanto os lacaios entravam na antecâmara, Joana pusera a mascarilha. – Eu é que devia pôr máscara – disse o cardeal; – está em sua casa... está entre os seus, e o

estranho aqui sou eu. Joana riu-se, mas nem por isso tirou a máscara; e apesar do prazer e da surpresa, tomou

alegremente parte na ceia. O cardeal, já por várias vezes o dissemos, era um coração rasgado e um homem de

espírito. O hábito continuado de residir nas cortes mais civilizadas da Europa, em cortes

governadas pelas rainhas, o trato freqüente com as mulheres, que naquela época complicavam, é certo, mas não raro resolviam todas as questões da política; aquela experiência, porque assim digamos, transmitida por via do sangue e multiplicada por estudo pessoal; todas essas qualidades, tão raras hoje, já raras então, faziam do príncipe um homem extremamente difícil de penetrar.

É que o seu bom modo e a sua alta cortesia lhe formavam uma couraça, que nada podia romper.

Por isso o cardeal se julgava muito superior a Joana. Aquela provinciana opada de pretensões, e cujo falso orgulho não conseguira ocultar-lhe a cobiça, parecia-lhe uma conquista fácil, desejável sem dúvida pela formosura, pelo espírito, por esse não sei quê de provocante, que seduz muito mais os homens gastos do que os novos. Pode ser que desta vez o cardeal, tão difícil de penetrar quanto tinha de penetrante, se enganasse; o facto é que Joana, formosa como era, não lhe inspirava desconfiança.

Foi a perda daquele homem superior. Nem só se fez menos forte do que era, senão que se fez pigmeu; de Maria Teresa a Joana

de La Motte era muito grande a diferença para que um Rohan daquela têmpera se desse ao trabalho de lutar.

Por isso, uma vez travada a luta, Joana, que sentia a sua aparente inferioridade, não deixou transparecer a sua superioridade real; mostrou-se sempre a mulher cheia de fracos, para conservar o adversário confiado na sua força, e por conseqüência débil nos ataques.

O cardeal, que surpreendera todos os movimentos que ela não pudera reprimir, julgou-a inebriada com o presente que acabava de lhe fazer; e ela com efeito estava-o, porque o presente fora não só superior às suas esperanças, mas ainda além das suas pretensões.

Ele, porém, não se lembrou de que ficava abaixo da ambição e da soberba de uma mulher como Joana de La Motte.

Além disso, a embriaguez da condessa foi dissipada pela sucessão de novos desejos, que de pronto substituíram os antigos.

– Vamos – disse o cardeal servindo à condessa um pouco de vinho de Chipre num copo de cristal com estrelas de ouro; – vamos, como já assinou o seu contrato comigo, condessa, não torne a mostrar-me má cara.

– Eu! oh! decerto que não. – Receber-me-á então algumas vezes aqui, sem demasiada repugnância? – Nunca serei bastante ingrata para esquecer que estou aqui em casa de Vossa Eminência. – Em minha casa? que loucura! – Não é loucura, não; é em sua casa que estou; muito sua. – Ah! cuidado comigo, se me contraria! – Porque? O que sucederia? – Vou impor-lhe outras condições.

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– Ah! tenha o senhor também cuidado. – Com que? – Com tudo... – Diga. – Estou em minha casa. – E... – E se achar as suas condições desarrazoadas, chamo os meus criados. O cardeal riu-se. – Então, vê? – perguntou a condessa. – Não vejo nada – respondeu o cardeal. – Sim, sim, bem se vê que Vossa Eminência está zombando comigo! – Eu! – Está rindo!... – Parece-me que não falta de quê. – Sim, há de quê, porque sabe muito bem que, se eu chamasse os meus criados, eles não

acudiriam. – Se acudiam! Os diabos me levem se não acudissem! – Que horror! – De que? – Praguejou, Sr. cardeal. – Aqui não sou cardeal, condessa; estou em sua casa e sou um simples particular. E riu-se novamente. – Vamos – pensou consigo a condessa; – decididamente, é um excelente homem. – A propósito – disse de repente o cardeal como se um pensamento muito afastado do

seu espírito lhe ocorresse por acaso; – o que me dizia a senhora noutro dia daquelas duas damas de caridade, daquelas duas alemãs?

– Das duas senhoras do retrato? – disse Joana que, tendo visto que se tratava da rainha, se aprontava para receber e repelir o golpe.

– Sim, das senhoras do retrato. – Monsenhor – disse a condessa olhando para o cardeal – conhece-as tão bem, e mesmo

melhor do que eu; aposto. – Eu? oh! condessa, nisso não me faz justiça. Não mostrou desejo de querer saber quem

elas eram? – Certamente, e era muito natural, porque sempre se deseja conhecer um benfeitor, creio

eu. – Pois bem, se eu soubesse quem elas eram, também a condessa o sabia já. – Pois, Sr. cardeal, eu digo-lhe que conhece as tais senhoras. – Já lhe disse que não conheço. – Diga outra vez que não, que lhe chamo mentiroso. – Oh! e eu vingo-me do insulto. – Como? – Dando-lhe um beijo. – Sr. embaixador junto da corte de Viena, Sr. amigo íntimo da imperatriz Maria Teresa,

suponho, salvo se não está parecido, que deve ter conhecido o retrato da sua verdadeira amiga. – Como? Realmente, condessa, era o retrato de Maria Teresa? – Ora, faça-se ignorante, Sr. diplomata. – Pois bem, vamos, e quando assim fosse, quando eu tivesse conhecido que era o retrato

de Maria Teresa, o que provaria isso? – Que, tendo conhecido o retrato de Maria Teresa, deve suspeitar quem sejam as

senhoras a quem o retrato pertence. – Mas por que razão o havia de eu saber? – disse o cardeal bastante inquieto.

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– Porque? porque não é muito comum ver um retrato de mãe (porque, note que aquele retrato é de mãe e não de imperatriz) em outras mãos que não as minhas...

– Acabe. – Entre as mãos de uma filha... – A rainha! – exclamou Luís de Rohan com uma verdade de tom que enganou Joana. – A

rainha! Sua Majestade em sua casa! – Pois monsenhor não tinha adivinhado que fosse ela? – Eu não – disse o cardeal num tom perfeitamente natural; – não é uso na Hungria que

os retratos dos príncipes reinantes passem de família em família. Assim, por exemplo, eu, que lhe falo, não sou filho, nem filha, nem sequer parente de Maria Teresa: pois bem! tenho comigo um retrato dela.

– Consigo! – Olhe! – disse friamente o cardeal. E tirou da algibeira uma caixa de tabaco, que mostrou a Joana confundida. – Bem vê -– acrescentou ele – que se tenho este retrato, eu que, como ainda agora lhe

dizia, não tenho a honra de pertencer à família imperial, outrem que o possuísse assim como eu, podia muito bem tê-lo esquecido em sua casa, sem por isso pertencer à augusta casa de Áustria.

Joana calou-se. Tinha todos os instintos da diplomacia, mas faltava-lhe ainda a prática. – Então, segundo a sua opinião – prosseguiu o príncipe Luís – foi a rainha Maria

Antonieta quem esteve em sua casa? – A rainha com outra senhora. – A Srª. de Polignac? – Não sei. – A Srª. de Lamballe? – Uma senhora moça, muito bonita e muito séria. – A Srª. de Taverney, talvez? – Pode ser; não a conheço. – Então, se Sua Majestade foi visitá-la, está segura da protecção da rainha. É um grande

passo para a sua fortuna. – Assim o creio, monsenhor. – Sua Majestade, perdoe-me esta pergunta, foi generosa consigo? – Deu-me uns cem luíses, creio eu. – Oh! Sua Majestade não está rica, principalmente neste tempo. – É o que duplica a minha gratidão. – E mostrou-lhe algum interesse particular? – Por certo. – Então vai tudo bem – disse o prelado pensativo e esquecendo a protegida para pensar

na protectora – já lhe não falta, portanto, senão uma coisa. – Qual? – Entrar em Versalhes. A condessa sorriu. – Oh! não o queiramos dissimular, condessa; nisso é que está a maior dificuldade. A condessa sorriu segunda vez, mas de uma maneira mais significativa que da primeira. O cardeal sorriu também. – Realmente, as senhoras provincianas – disse ele – de nada duvidam. Como vêem o

palácio de Versalhes com grades que se abrem e escadas que se sobem, imaginam que toda a gente abre essas grades e sobe essas escadas. Já viu os monstros de bronze, de mármore ou de chumbo, que ornam a quinta e os terraços de Versalhes?

– Vi. – Hipogrifos, quimeras, górgones e outros animais malfazejos, há centenares deles; pois

então imagine dez vezes maior número de animais vivos da mesma espécie daqueles que viu nos

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jardins, envolvidos com os príncipes. – Vossa Eminência decerto me ajudaria a passar por entre esses monstros, se eles me

tolhessem o passo. – Eu tentaria isso, mas havia de ser custoso. Além disso, se pronunciasse o meu nome, se

descobrisse o seu talismã, ao cabo de duas visitas ter-se-lhe-ia tornado inútil. – Felizmente – disse a condessa – desse lado estou defendida pela imediata protecção da

rainha, e, se eu penetrar em Versalhes, há-de ser num bom pé. – Como, condessa? – Ah! Sr. cardeal, isso é o meu segredo... Não, não digo bem: se o segredo me

pertencesse, dir-lho-ia, porque nada quero esconder ao meu mais amável protector. – Mas... – Mas, monsenhor, como o segredo não é meu, não o digo. Basta que fique sabendo... – O quê? – Que amanhã hei-de ir a Versalhes, que hei-de ser recebida, e que tenho toda a esperança

de que hei-de ser muito bem recebida. O cardeal olhou para a condessa, cujo modo lhe parecia uma conseqüência um pouco

directa dos primeiros vapores da ceia. – Condessa – disse ele rindo – veremos se entra. – Como? Pois levaria a curiosidade a ponto de mandar seguir-me? – Exactamente. – Não me desdigo. – A partir do dia de amanhã, condessa, tome cautela, porque eu declaro a sua honra

empenhada em cumprir a promessa que me faz de entrar no palácio de Versalhes. – Nos quartos particulares, sim, monsenhor. – Asseguro-lhe que é para mim um enigma vivo. – Um desses pequenos monstros que habitam a quinta de Versalhes? – Sabe que sou homem de gosto, não é verdade? – Por certo, monsenhor. – Pois bem! como estou aqui aos seus pés, como pego na sua mão e a beijo, poderá crer

que eu ponha a minha boca sobre umas garras ou sobre a cauda de um peixe escamoso? – Rogo-lhe, senhor – disse Joana friamente – que se lembre de que não sou modista, nem

dançarina, isto é, que me pertenço toda a mim, quando não pertenço a meu marido, e que, julgando-me igual de qualquer homem neste reino, no dia em que algum tiver sabido agradar-me, eu o receberei livre e espontaneamente. Assim, portanto, monsenhor, respeite-me um pouco, e respeitará assim a nobreza a quem ambos pertencemos.

O cardeal endireitou-se: – Vamos – disse ele – quer que a ame seriamente? – Não digo isso, Sr. cardeal, mas sou eu que quero amá-lo. Creia o que lhe digo. Quando

o momento for chegado, se chegar, facilmente o adivinhará. Eu lho participarei, no caso em que o não conheça: porque sei que sou bastante moça e bastante sofrível, para ir ao encontro de um homem, e um homem honrado não me repelirá.

– Condessa – disse o cardeal – asseguro-lhe que, se não depender senão de mim, há-de amar-me.

– Veremos. – Já me tem amizade, não é verdade? – Mais do que isso. – Deveras ? Então estamos em meio caminho. – Não devemos medir o caminho a compasso, vamos andando. – A condessa é uma mulher que eu adoraria... E suspirou. – Que adoraria?... – disse ela admirada – se...?

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– Se mo permitisse – apressou-se o cardeal em responder. – Monsenhor, eu lho permitirei talvez, quando a fortuna tiver sorrido bastante tempo

para mim, para o dispensar de cair tão depressa aos meus pés, e de me beijar tão prematuramente as mãos.

– Como? – Sim, quando eu estiver superior à sua protecção, não suspeitará mais que procuro as

suas visitas por um interesse qualquer. Então as suas visitas feitas a mim hão-de enobrecer-se, eu ganharei nisso, e monsenhor não perderá coisa nenhuma.

Ela tornou a levantar-se, porque se assentara de novo, para melhor recitar a sua moral. – Então – disse o cardeal – fecha-me num círculo de tais impossibilidades... – Como é isso? – Não me deixa fazer-lhe a corte? – Por forma nenhuma; para fazer a corte a uma mulher não há outro meio senão a

genuflexão e a prestidigitação. – Comecemos já, condessa. O que é que me permite? – Tudo o que for compatível com o meu gosto e o meu dever. – Oh! oh! aponta aí os dois terrenos mais vagos que há no mundo. – Fez mal em me interromper, senhor, porque ia mencionar um terceiro. – Qual é? – O dos meus caprichos! – Estou perdido. – Recua? O cardeal sentia-se naquele momento muito menos sob a direcção do seu pensamento do

que sob o encanto daquela formosa e provocante fascinadora. – Não – disse ele – não recuarei. – Nem ante os meus deveres? – Nem diante do seu gosto ou dos seus caprichos. – A prova? – Fale. – Quero ir esta noite ao baile da Ópera. – Isso é consigo, condessa; é livre como o ar, e não vejo nada que possa impedi-la de ir ao

baile de máscaras. – Espere, ainda não manifestei senão metade do meu desejo; a outra é que também me

acompanhe ao baile. – Eu! ao baile de máscaras!... Oh! condessa! E o cardeal fez um movimento que, insignificante em qualquer sujeito, era um salto

prodigioso num Rohan daquela força. – É assim que procura agradar-me ? – disse a condessa. – Um cardeal não vai a bailes de máscaras, condessa; é o mesmo que se eu lhe propusesse

para entrar num gabinete de fumar. – Um cardeal também não dança, não é verdade?... – Oh!... não. – Então por que li eu que o Sr. cardeal de Richelieu tinha dançado uma sarabanda? – Diante de Ana de Áustria, sim... – disse inadvertidamente o príncipe. – Diante de uma rainha, é uma verdade – repetiu Joana olhando para ele fixamente. –

Pois bem, talvez Vossa Eminência fizesse o mesmo por uma rainha... O príncipe não pôde deixar de corar, apesar de hábil e forte como era. Fosse porque a condessa tivesse dó da sua perturbação, fosse porque mais lhe conviesse

não prolongar essa situação, deu-se pressa em acrescentar: – Como deixaria de me sentir, eu, a quem faz tantos protestos, vendo que me tem em

menos estimação do que a uma rainha, quando se trata de ficar escondido sob um dominó e uma

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máscara, quando se trata de fazer no meu espírito, com uma condescendência que eu mal saberia pagar, um desses passos de gigante, que o compasso a que se referia ainda há pouco nunca poderia medir?

O cardeal, contente por se ver livre por tão baixo preço, satisfeito com aquela fácil vitória, que a perícia de Joana lhe deixava ganhar, tomou a mão da condessa e apertou-lha.

– Pela condessa – disse ele – tudo farei, até o impossível! – Agradecida, monsenhor; o homem que acaba de fazer esse sacrifício por mim é um

amigo bem precioso; todavia, como se prontificou, dispenso-o. – Não, não, o salário não pode vir senão depois de desempenhada a tarefa. Condessa, eu

acompanho-a, mas de dominó. – Vamos pela rua de Saint-Denis, que é perto do teatro; entrarei, de máscara, numa loja,

comprarei dominó e máscara para Vossa Eminência, e vesti-lo-á na carruagem. – A condessa teve óptima lembrança. – Oh! monsenhor, mostra-se de uma bondade para comigo, que me torna confusa... Mas,

agora me lembra, talvez que no palácio de Rohan Vossa Eminência tenha algum dominó mais do seu gosto do que qualquer outro que possamos comprar.

– Isso é uma malícia imperdoável, condessa. Se eu vou ao baile de máscaras, acredite uma coisa...

– Qual, senhor? – É que hei-de ficar tão admirado de me achar lá, como a condessa ficou de cear a sós

com um homem sem ser o seu marido. Joana agradeceu, porque conheceu que nada tinha que responder. Uma carruagem sem armas chegou à porta da casa, para receber os dois fugitivos, e a

trote largo dirigiu-se para os bulevares.

XXII

Algumas palavras acerca da ópera A ópera, esse templo do prazer, fora destruído por um incêndio em Junho de 1781. Vinte pessoas pereceram debaixo das ruínas, e, como em dezoito anos era a segunda vez

que acontecia essa desgraça, tendo o lugar habitual da Ópera, isto é o Palais-Royal, parecido fatal às alegrias parisienses, por uma ordem do rei fora transferido para outro bairro menos central.

Foi sempre para os vizinhos uma grande preocupação aquela cidade de panos, de madeira branca, de papelão e de pinturas.

O teatro, são e salvo, abrasava os corações dos financeiros e das pessoas distintas, produzia efeito nas jerarquias e nas fortunas, e, em combustão, podia destruir um bairro, a cidade inteira; bastava para isso um pouco de vento.

O local foi escolhido na Porta de Saint-Martin. El-rei, penalizado por ver que a sua boa cidade de Paris ia por muito tempo achar-se sem Ópera, tornou-se triste, como se tornava sempre que não chegava o trigo de fora ou quando o pão subia sete soldos em cada peso de quatro libras.

Para avaliar a calamidade, era preciso ver como todos, a velha nobreza e a jovem magistratura, a espada e a finança, se encontravam desorientados por aquele vácuo; era preciso ver errando pelos passeios as divindades sem asilo, desde a mais somenos corifeia até à primeira cantora.

Para consolar el-rei e também um pouco a rainha, apresentaram a Suas Majestades um arquitecto, o Sr. Lenoir, que prometia maravilhas e prodígios.

O estimável homem apresentava planos novos, um sistema de circulação tão perfeito, que em caso de incêndio, ninguém poderia ficar sufocado nos corredores. Abria oito portas aos fugitivos sem contar um primeiro andar com cinco janelas tão baixas, que os mais medrosos

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poderiam saltar por elas, sem temerem outra coisa mais que alguma torcedura. O Sr. Lenoir dava, para substituir a bela sala de Moreau e as pinturas de Durameaux, um

edifício de noventa e seis pés de fachada sobre o bulevar: a frontaria ornada de oito cariátides encostadas aos pilares, e para formar três portas de entrada; oito colunas assentando nas suas bases; um baixo-relevo em frontão por cima dos capitéis, e uma varanda com três janelas ornadas e arquivoltas.

A cena teria trinta e seis pés de abertura, o teatro setenta e dois de fundo e oitenta e quatro de largo, de parede a parede.

Haveria salas ornadas de espelhos, de uma decoração simples, mas nobre. Em toda a largura da sala por debaixo da orquestra, o Sr. Lenoir conservaria um espaço

de doze pés para conter um imenso reservatório e duas bombas, a cujo serviço se destinariam vinte homens das guardas francesas.

Enfim, para encher a medida, o arquitecto pedia setenta e cinco dias, para abrir ao público a sala do teatro, nem uma hora mais, nem uma hora menos.

A última condição pareceu uma fanfarronada; riram muito, mas el-rei fez os seus cálculos com o Sr. Lenoir e admitiu tudo.

O Sr. Lenoir começou a obra e cumpriu a sua promessa. A sala achou-se pronta no espaço convencionado.

Mas então o público, que nunca está satisfeito ou tranqüilo, começou a reflectir que a sala era construída de madeira, que era o único meio de construir depressa, mas que a celeridade era uma condição de enfermidade, que por conseqüência o teatro novo era pouco sólido. Esse teatro, pelo qual tanto se havia suspirado, que os curiosos tinham com tanto prazer visto levantar viga por viga, esse monumento que a cidade inteira de Paris vinha todas as tardes ver crescer, fixando de antemão o seu lugar, ninguém quis lá entrar quando se acabou. Os mais ousados, os doidos, tomaram bilhetes para a primeira representação de Adélia de Ponthieu, música de Piccini, mas ao mesmo tempo fizeram os seus testamentos.

Vendo isto, o arquitecto, aflito, recorreu a el-rei, que lhe deu uma idéia. – Os poltrões em França – disse Sua Majestade – são os que pagam; esses dão-lhe de boa

vontade dez mil libras de renda e fazem-se esmagar na imprensa, mas não se querem arriscar a ser esmagados por edifícios que abatem. Deixe de parte essa gente, e convide os que não pagam. A rainha deu-me um delfim; a cidade está cheia de regozijo. Mande anunciar, que para festejar o nascimento do meu filho, a abertura do teatro verificar-se-á por uma representação gratuita; e, se das mil e quinhentas pessoas ali metidas, isto é, um termo médio de trezentos mil arráteis, lhe não bastam para experimentar a solidez, peça a toda essa gente que salte um pouco na sala; bem sabe, Sr. Lenoir, que o peso é cinco vezes maior quando cai de uma altura de quatro polegadas. Portanto os dois mil e quinhentos valentes hão-de pesar um milhão e quinhentos mil arráteis se os fizer dançar; deve dar um baile depois da representação.

– Agradecido, senhor – disse o arquitecto. – Mas pense bem antes, olhe que o peso é grande! – Senhor, a esse respeito estou tranqüilo, e irei eu mesmo ao baile. – Eu – redargüiu el-rei – prometo-lhe assistir à segunda representação. O arquitecto seguiu o conselho do rei. Representou-se Adélia de Ponthieu diante de três mil

plebeus, que aplaudiram mais do que o fariam reis. Estes plebeus dignaram-se dançar depois do espectáculo, e divertiram-se

consideravelmente. Aumentaram assim o peso, conforme as leis da mecânica. Nada tremeu na sala. Se havia alguma desgraça para temer, era nas seguintes representações, porque os nobres

poltrões encheram a sala, essa sala para a qual, três anos depois da sua abertura, se dirigiam para o baile de máscaras o Sr. cardeal de Rohan e a Srª. de La Motte.

Tal era o preâmbulo que devíamos aos nossos leitores. Voltemos agora aos nossos personagens.

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XXIII

O baile de máscaras

O baile estava no maior grau de animação quando o cardeal Luís de Rohan e a Srª. de La

Motte entraram furtivamente, pelo menos o prelado, entre milhares de dominós e máscaras de todas as espécies.

Viram-se logo envoltos na multidão, por entre a qual desapareceram nos grandes turbilhões os pequenos redemoinhos, por um instante vistos pelas pessoas que passeiam pela praia, mas que a corrente imediatamente arrasta.

Dois dominós ao lado um do outro, tanto quanto era possível estar-se lado a lado em semelhante chusma, tentavam, combinando os seus esforços, resistir à invasão; mas vendo que nada podiam conseguir, resolveram refugiar-se debaixo da tribuna da rainha, onde a multidão era menos compacta, e onde tinha ponto de apoio na parede.

Era um dominó preto e um dominó branco, um alto e outro baixo, um homem e outro mulher; um agitando os braços, outro virando e revirando a cabeça.

Estes dois dominós entregavam-se evidentemente a um colóquio animadíssimo. Escutemos. – Digo-te, Oliva, que esperas alguém – repetia o mais alto; – o teu pescoço parece o

espigão de um cata-vento, que não gira com o vento, mas com a entrada de novas pessoas. – Bem, e depois? – Como depois? – Sim, o que há para admirar que a minha cabeça ande à roda? Não estou eu aqui para

isso? – Sim, mas se fizeres andar à roda a aos outros... – E que mal há nisso? Para que vem a gente a um baile de máscaras? – Para mil coisas. – Os homens decerto, mas as mulheres não vêm senão para uma. – Qual? – A que disseste; para fazer andar à roda o maior número de cabeças possível. Trouxeste-

me ao baile de máscaras, estamos na sala, resigna-te. – Oliva! – Oh! não faças a voz grossa; bem sabes que me não assustas, e, sobretudo, recomendo-te

que te abstenhas de me chamar pelo nome. Bem sabes que é de mau gosto chamar as pessoas pelo seu nome num baile de máscaras.

O dominó preto fez um movimento de cólera, que foi subitamente interrompido pela chegada de um dominó azul.

– Devagar, senhor, devagar – disse o recém-chegado – deixe esta senhora divertir-se como for da sua vontade. Com os diabos! nem todos os dias é meia quaresma, e nem sempre vem a gente aos bailes de máscaras.

– Isso não é da sua conta – respondeu brutalmente o dominó preto. – Ah! senhor – disse o dominó azul – lembre-se de uma vez para sempre, que uma pouca

de cortesia nunca faz mal. – Não o conheço – respondeu o dominó preto; – por que motivo havia eu de ser cortês

com o senhor? – Não me conhece; mas... – Mas o quê? – Mas conheço-o eu, Sr. Beausire. Ouvindo pronunciar o seu nome, ele, que tão facilmente pronunciava os nomes dos

outros, o dominó preto estremeceu, sensação esta que visivelmente se conheceu pelas repetidas

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oscilações do seu capuz de seda. – Oh! não se assuste, Sr. Beausire – continuou o dominó azul – não sou quem pensa. – Ora essa! em quem penso eu? Dar-se-á o caso que se não contente em adivinhar os

nomes, terá porventura também a pretensão de adivinhar os pensamentos? – Por que não? – Então veja se adivinha o que penso. Nunca vi feiticeiros, e terei verdadeiro prazer em

encontrar algum. – Oh! o que me pede não é difícil bastante para merecer um título, que parece conceder

facilmente. – Diga sempre. – Não, veja se procura outra idéia. – Basta-me isso. Adivinhe. – Quer? – Quero, sim. – Pois bem, julga que sou um agente do Sr. de Crosne. – Do Sr. de Crosne? – Sim; conhece perfeitamente o chefe da polícia. – Senhor... – Devagar, meu caro Sr. Beausire; na realidade, dir-se-ia que procura a sua espada ao lado. – Certamente que a procuro. – Santo Deus! que natureza tão bélica. Mas sossegue, meu caro Sr. Beausire, deixou em

casa a sua espada, e fez bem. Falemos de outra coisa. Quer fazer o favor de me deixar dar o braço a essa senhora?

– A esta senhora?... – Sim, a essa senhora. Parece-me que isto é muito trivial num baile de máscaras, ou dar-

se-á o caso de que eu venha das índias Orientais? – Certamente, senhor, é coisa muito trivial, quando assim convém ao cavalheiro. – Algumas vezes, meu caro Sr. Beausire, basta que isso convenha à senhora. – E é por muito tempo que lhe pede o braço? – O meu caro Sr. Beausire é muito curioso: talvez seja por dez minutos, talvez pelo resto

da noite. – Ora adeus! o senhor está brincando comigo. – Meu caro senhor, responda, sim ou não. Quer ou não quer ceder-me o braço dessa

senhora? – Não. – Vamos, vamos, não se faça grave. – Porque? – Porque já tem uma máscara na cara, e é escusado ter duas. – Vá com Deus, senhor. – Ora! lá se enfada agora o senhor, que ainda agora estava tão brando. – Onde? – Na rua Dauphine. – Na rua Dauphine! – exclamou Beausire que ficou um pouco estupefacto. Oliva deu uma gargalhada. – Cale-se, senhora – disse o dominó preto. Depois, voltando-se para o dominó azul, continuou: – Nada compreendo do que diz, senhor. intriga-me seriamente, se isso lhe é possível. – Mas, meu caro senhor, parece-me que nada posso dizer mais sério do que a verdade,

não é assim, Srª. Oliva? – Ora! – disse esta – também me conhece a mim? – Pois o Sr. Beausire não a tratou pelo seu nome, em voz alta, há um instante?

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– É a verdade – disse Beausire, voltando à fala – a verdade é... – É que, no momento de matar esta pobre senhora, porque ainda há pouco queria matá-

la, parou ao som de uns vinte luíses. – Basta, senhor. – Se isto lhe basta, dê-me então o braço da senhora. – Oh! bem vejo – murmurou Beausire – que o senhor e esta senhora... – Então! esta senhora e eu? – Estão combinados. – Juro-lhe que não. – Ora! que lembrança! – exclamou Oliva. – E daí... – exclamou o dominó azul. – Como, e daí? – Sim, quando fosse verdade que estivéssemos combinados, seria para seu bem. – Para meu bem? – Certamente. – Quando se afirma uma coisa, prova-se – disse soberbamente Beausire. – De muito boa vontade. – Estimaria muito saber... – Provarei portanto – continuou o dominó azul – que a sua presença aqui lhe é tão

prejudicial quanta lhe seria proveitosa a sua ausência. – A mim? – Sim, ao senhor. – Em quê, tem a bondade de mo dizer? – É membro de uma certa academia, não é verdade? – Eu? – Oh! não se enfade, meu caro Beausire, que não lhe falo da academia das ciências. – Academia... academia... – murmurou o dominó preto. – Rua de Pot-de-Fer, no pavimento por baixo das lojas, não é isso, meu caro Sr. Beausire? – Caluda! – Ora! – Sim, caluda! Oh! que homem tão desagradável que o senhor é! – Isso não se diz. – Porquê? – Porque não o julga assim, com os diabos! Mas voltemos a falar da academia... – Então? O dominó azul puxou pelo relógio, que era guarnecido de brilhantes, e sobre o qual se

fitaram como duas lentes de fogo os olhos de Beausire. – E então? – repetiu este último. – Então, dentro de um quarto de hora, na sua academia da rua do Pot-de-Fer, meu caro

Sr. Beausire, vai discutir-se um pequeno projecto, que tende a dar um benefício de dois milhões aos doze verdadeiros associados, um dos quais é o senhor.

– E o senhor outro, se... – Acabe. – Se não é algum beleguim. – Realmente, julgava que o Sr. Beausire era um homem esperto, mas vejo com mágoa que

não passa de um estúpido; se eu fosse agente da polícia, já vinte vezes o teria agarrado por negócios de mais pequena monta do que esta especulação de dois milhões, que se vai discutir na sua academia dentro de alguns minutos.

Beausire reflectiu um instante. – Os diabos me levem, se não tem razão. Depois, caindo em si:

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– O senhor -– disse ele – manda-me à rua do Pot-de-Fer! – Mando, sim. – Bem sei para quê. – Diga-o. – Para me fazer prender; mas não sou tão tolo que caia nessa... – Lá diz outra vez tolices. – Senhor... – Certamente; se tenho o poder de fazer o que diz, se tenho o poder ainda maior de

adivinhar o que se faz na sua academia, por que viria eu pedir-lhe por favor que me cedesse o braço dessa senhora? Não. Nesse caso mandá-lo-ia prender imediatamente, e tanto a senhora como eu ver-nos-íamos livres do senhor; mas não, Sr. Beausire, não emprego semelhantes meios, brandura e persuasão é a minha divisa.

– Vamos a saber – exclamou de repente Beausire largando o braço de Oliva – o senhor é quem estava, haverá duas horas, assentado no sofá em casa desta senhora? Hem!

– Que sofá? – perguntou o dominó azul a quem Oliva apertou levemente a ponta de um dedo ; – a respeito de sofá, não conheço senão o do Sr. Crébillon, filho.

– Afinal, é-me indiferente – atalhou Beausire; – as suas razões são boas, e é quanto quero saber. Cedo-lhe portanto o braço da senhora, receba-o; mas se tiver armado algum laço a um homem de bem, core de vergonha!

O dominó azul riu-se daquele epíteto de homem de bem com que Beausire tão liberalmente se vangloriava; e depois, batendo-lhe no ombro disse:

– Durma sossegado, porque, mandando-o à academia, faço-lhe presente de uma parte dos dois milhões; porque, se lá não fosse esta noite, segundo o costume dos seus associados, seria excluído da partilha, ao passo que indo...

– Bem ! seja o que Deus quiser – murmurou Beausire. – Agora nós – disse ela. – Deixei-o intrigar à sua vontade aquele pobre Beausire, mas

desde já o previno de que não sou tão fácil de contentar. Assim, como se trata de continuar, diga-me coisas bonitas, quando não...

– Para lhe dizer coisas bonitas, vou contar-lhe a sua história, Srª. Nicola, que é muito interessante – disse o dominó azul apertando agradavelmente o braço roliço da sua companheira, que soltou um grito abafado, ao ouvir o nome.

Mas logo disfarçou, como pessoa acostumada a não se deixar vencer facilmente, e disse: – Oh! meu Deus! que nome é esse? Nicola!... Será de mim que quer falar? Quer

porventura designar-me por esse nome? Nesse caso, naufraga à saída do porto e despedaça o baixel contra o primeiro rochedo. Não me chamo Nicola.

– Bem sei que actualmente não se chama Nicola; o seu nome agora é Oliva. Nicola cheira muito a província. Há em si duas mulheres, bem o sei, Oliva e Nicola. Já se esqueceu do tempo em que dava por este nome? Decerto que não. Ai, minha querida menina, quando se tem usado um nome na infância, é sempre esse o que se conserva, quando não para o público, pelo menos para nós, no íntimo da alma, seja qual for o outro nome que se tenha adoptado para esquecer o primeiro. Infelizmente Oliva. Feliz Nicola!

Neste momento algumas máscaras, como a onda da procela, vieram dar de encontro aos dois dominós, e Nicola ou Oliva viu-se obrigada, quase contra sua vontade, a apertar ainda mais contra si o seu companheiro.

– Olhe – lhe disse ele – olhe para toda essa multidão variegada; veja todos esses grupos que se aproximam e se inclinam uns para os outros para devorar palavras de galanteio ou de amor, que trocam entre si; veja esses grupos que se ajuntam e se apartam, uns com risos, outros com enfado... Todas essas pessoas têm talvez tantos nomes como a menina, e muitos há que ficariam admirados dizendo-lhes nomes de que se não lembram e que julgam esquecidos.

– Há pouco disse: infeliz Oliva...? – Disse, sim.

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– Então não crê que eu seja feliz? – Seria difícil achar felicidade junto de um homem como Beausire. Oliva suspirou. – Também não digo que o seja – disse ela. – Todavia, ama-o? – Oh! razoavelmente. – Se o não ama, deixe-o. – Não. – Porquê? – Porque, se o deixasse, teria saudades dele. – Teria saudades dele?! – Receio muito que sim. – E por que teria saudades de um bêbedo, de um homem que lhe bate, de um ladrão que

mais dia menos dia há-de ser rodado na Grève? – Talvez não compreenda o que vou dizer-lhe. – Diga sempre. – Teria saudades da bulha constante que ele faz em volta de mim. – Eu devia ter adivinhado isso. É o resultado de passar a mocidade com pessoas

silenciosas. – Conhece a minha mocidade? – Perfeitamente. – Ah! meu caro senhor – disse Oliva rindo e abanando a cabeça com um modo de

dúvida. – Duvida? – Oh! não duvido; tenho a certeza de que nada sabe. – Vamos, portanto, falar da sua mocidade, Srª. Nicola. – Falemos; mas previno-o de que não o esclarecerei. – Oh! não preciso. – Então, fale. – Não lhe falarei da infância, que é um tempo que não se conta na vida; começarei pela

puberdade, no momento em que conheceu que Deus lhe havia dado um terno coração para amar e para sofrer.

– Para amar quem? – Para amar Gilberto. Ouvindo essa palavra, esse nome, um estremecimento percorreu todas as veias da

rapariga, e o dominó azul sentiu-a estremecer no braço. – Oh! – disse ela – como sabe isso? E parou de repente, dardejando com imensa comoção os olhos, pelas aberturas da

mascarilha, sobre o dominó azul. Este emudeceu. Oliva, ou antes Nicola, suspirou. – Ah! senhor – disse ela sem procurar lutar mais tempo – acaba de pronunciar um nome

para mim bem fértil em recordações. Conhece Gilberto? – Conheço, uma vez que lhe falo nele. – Ah! – Era um moço guapo, por minha vida! Amava-o? – Era belo rapaz?... Não, não era... mas eu assim o achava. Tinha muito talento, e era de

nascimento igual ao meu. Mas não, enganei-me agora. Enquanto Gilberto quiser, mulher nenhuma será sua igual.

– Mesmo... – Mesmo quem?

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– Mesmo a Srª. de Ta... – Oh! bem sei o que quer dizer – interrompeu Nicola; – oh! está bem ao facto de tudo,

senhor; sim, ele amava alguém que estava muito acima da pobre Nicola. – Bem vê que me calo. – Sim, sim, sabe segredos terríveis – disse Oliva estremecendo; – agora... E olhando para o desconhecido como se quisesse sondá-lo através da máscara,

concluindo a frase, perguntou: – Agora, o que é feito dele? – Parece que a senhora melhor do que ninguém o poderá dizer. – Porquê? – Porque, se ele a seguiu de Taverney a Paris, a menina seguiu-o de Paris ao Trianon. – Sim, é verdade, mas são passados dez anos; e demais, não é desse tempo que lhe falo.

Refiro-me aos dez anos que decorreram desde que eu fugi e que ele desapareceu. Meu Deus! passam-se tantas coisas em dez anos!

O dominó azul não respondeu. – Rogo-lhe – insistiu Nicola quase suplicante – que me diga o que foi feito de Gilberto...

Cala-se? Volta a cabeça? Talvez que o magoe, que o entristeça semelhante recordação? Com efeito, o dominó azul tinha não voltado mas inclinado a cabeça, como se o peso das

suas recordações fosse muito forte. – Quando Gilberto amava a menina de Taverney... – disse Oliva. – Diga os nomes em voz baixa – disse o dominó azul. – Não repara que eu nem sequer

os pronuncio? – Quando ele estava tão namorado – continuou Oliva suspirando – que cada árvore do

Trianon sabia o seu amor... – Bem! então já o não amava? – Eu, pelo contrário, amava-o mais que nunca, e foi esse amor que me perdeu. Sou

formosa, sou altiva, e quando quero sou insolente. Antes deixaria o carrasco decepar-me a cabeça, do que curvá-la.

– Tem coração, Nicola? – Sim, tive... naquele tempo – disse ela suspirando. – Esta conversa entristece-a? – Não, pelo contrário, faz-me bem recordar-me da minha mocidade. A vida é como um

rio, que por mais turvo que seja tem sempre uma origem e fonte pura. Continue, e não faça caso de um pobre suspiro perdido, que me sai do peito.

– Oh! – disse o dominó azul com um modo que denunciava um sorriso debaixo da máscara; – da menina, de Gilberto e de outra pessoa sei tudo, ou mais ainda, quanto a senhora mesma pode saber, minha pobre criança.

– Então – exclamou Oliva – diga-me porque fugiu Gilberto do Trianon, e se mo disser... – Ficará convencida? Pois bem! eu não lho direi, e ainda mais convencida ficará. – Como? – Perguntando-me o motivo porque Gilberto fugiu do Trianon, não é uma verdade que

quer verificar na minha resposta, uma coisa que não sabe e que deseja saber? – É verdade. De repente estremeceu mais vivamente do que até ali fizera, e agarrando-lhe

convulsivamente nas mãos, exclamou: – Meu Deus! meu Deus! – Então! o que é? Nicola pareceu sossegar e afastar de si a idéia que a obrigara a fazer essa demonstração, e

respondeu: – Nada. – Era alguma coisa; queria fazer-me alguma pergunta?

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– Queria. Diga-me francamente o que é feito de Gilberto? – Não ouviu dizer que tinha morrido? – Ouvi, mas... – Pois bem, morreu. – Morreu? – disse Nicola como duvidando. Depois, com um abalo repentino semelhante ao primeiro: – Por piedade, senhor – disse ela – preste-me um serviço. – Dois, dez, tantos quantos quiser, minha cara Nicola. – Há-de haver duas horas que o vi em minha casa... porque era o senhor, não é assim? – Certamente. – Há duas horas não procurava esconder-se de mim. – Por modo nenhum, pelo contrário, fazia diligência para que me visse bem. – Oh! louca! louca que eu sou; eu que tanto olhei para o senhor. Louca, louca, estúpida,

mulher, só mulher, nada mais que mulher, como dizia Gilberto. – Ora vamos, deixe os seus lindos cabelos. Poupe-os! – Não. Quero castigar-me por ter olhado para o senhor de modo que foi o mesmo que se

o não tivesse visto. – Não a compreendo. – Sabe o que lhe peço? – Diga. – Tire a máscara. – Aqui é impossível. – Oh! não é o receio de ser visto por outros olhos além dos meus que o impedirá, porque

ali, por detrás daquela coluna, na sombra da galeria, ninguém o veria senão eu. – Então o que é que me impede? – Receia que o conheça. – Eu? – E que exclame: é Gilberto! – Ah! disse bem: é uma louca! – Tire a máscara! – Pois sim, mas há-de ser com uma condição. – Desde já lha concedo. – É que, se eu quiser, também há-de tirar a sua. – Tirá-la-ei. Se não a tirar, dou-lhe o direito de o fazer. O dominó azul não se fez rogar mais tempo; dirigiu-se para o local indicado pela sua

companheira, e ali, tirando a máscara, mostrou-se. Oliva, durante um minuto, devorou-o com o olhar.

– Ah! não – disse ela batendo o pé no chão e fechando convulsivamente os punhos. – Ah! não, não é Gilberto!

– Quem sou? – Pouco me importa, uma vez que não é ele. – E se fosse Gilberto? – perguntou o desconhecido prendendo novamente a máscara. – Se fosse Gilberto!... – exclamou a rapariga com paixão. – Sim. – Se me tivesse dito: Nicola, Nicola, lembra-te de Taverney-Casa-Vermelha. Oh! então! – Então? – Morria para mim Beausire. – Já lhe disse, minha querida menina, que Gilberto tinha morrido. – Pois bem, talvez fosse melhor assim – disse Oliva suspirando. – Sim, Gilberto não a teria amado, apesar de formosa como é. – Quer dizer que Gilberto me desprezaria?

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– Não; ele temia-a. – É possível. O meu carácter era muito semelhante ao dele, e ele conhecia-me tão bem,

que tinha medo de mim. – Portanto, como disse, foi melhor que morresse. – Por que repete as minhas palavras ? Na sua boca fazem-me mal. Por que diz o senhor

que é melhor ter ele morrido? – Porque hoje, minha querida Oliva (repare que já não digo Nicola), porque hoje, minha

querida Oliva, tem em perspectiva um porvir de felicidade, opulência e brilho! – Julga isso? – Julgo, se está decidida a fazer tudo para chegar ao fim que lhe prometo. – Oh! fique descansado. – Mas, o que não deve tornar a fazer, é suspirar como ainda há pouco. – Pois sim. Eu suspirava por Gilberto e como não há dois Gilbertos no mundo, e que o

Gilberto que eu amava morreu, não tornarei a suspirar. – Gilberto era moço, tinha os defeitos e qualidades da juventude, e hoje... – Gilberto não é mais velho hoje do que era há dez anos. – Não, decerto, pois que Gilberto está morto. – Bem vê, morreu; os Gilbertos não envelhecem, morrem. – Oh! – exclamou o desconhecido – ó juventude! ó coragem! ó formosura! eternas

origens do amor, do heroísmo e da dedicação, aquele que vos perde, perde verdadeiramente a vida. A mocidade é o paraíso, é o céu, é tudo. O que Deus depois nos dá é apenas a triste compensação da mocidade. Quanto mais dá aos homens, uma vez perdida a mocidade, quanto mais julgou dever indemnizá-los. Mas nada substitui, santo Deus! os tesouros que essa mocidade prodigalizava aos homens.

– Gilberto teria pensado isso mesmo que tão facilmente enuncia – disse Oliva; – mas terminemos este assunto.

– Sim, falemos da senhora. – Falemos do que quiser. – Por que fugiu com Beausire? – Porque queria sair do Trianon, e precisava fugir com alguém. Era-me impossível

continuar a viver, como vivia, quase desprezada por Gilberto. – Dez anos de fidelidade por orgulho – disse o dominó azul. – Ah! caro pagou essa

vaidade! Oliva riu-se. – Oh! bem sei de que se está rindo – disse gravemente o desconhecido. – Ri por ver que

um homem que diz saber tudo, a acusa de ter sido fiel durante dez anos, quando tem a certeza do contrário. Oh! meu Deus! se se trata de fidelidade material, pobre pequena, bem sei o que há a semelhante respeito. Sim, sei muito bem que esteve em Portugal com Beausire, que viveu ali perto de dois anos, que dali fora para a Índia, não com Beausire, mas com um capitão de fragata, que a escondeu no seu camarim, e esqueceu-a em Chandernagora em terra firme, no momento em que voltava para a Europa. Sei que teve às suas ordens para gastar dois milhões de rúpias em casa de um nababo, que a trazia fechada a sete chaves. Sei, enfim, que rica, porque tinha levado duas pulseiras de pérolas finas, dois brilhantes e três grandes rubis, voltou para França, desembarcando em Brest, onde a sua má estrela fez com que encontrasse Beausire, que esteve a ponto de perder os sentidos tornando a vê-la bronzeada e magra como regressava, pobre exilada!

– Oh! – disse Nicola – quem é então o senhor para saber todas essas coisas? – Sei, enfim, que Beausire a levou, provou que a amava, vendeu-lhe as jóias e reduziu-a à

miséria... Sei que o ama, que assim o diz, pelo menos, e que como o amor é a fonte de todo o bem, deve ser a mulher mais feliz do mundo inteiro.

Oliva abaixou a cabeça; encostou a fronte à mão, viram-se-lhe correr duas lágrimas, pérolas líquidas, mais preciosas talvez que as das pulseiras, e que, contudo, ninguém teria querido

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comprar a Beausire. – E essa mulher tão soberba, essa mulher tão feliz – disse ela – comprou-a hoje por

cinqüenta luíses. – Oh! é bem pouco, minha senhora, bem o sei – disse o desconhecido com essa graça

delicada e perfeita cortesia, que nunca abandona o homem delicado, ainda que fale com a mais ínfima das mulheres.

– Oh! pelo contrário, foi demasiadamente caro, senhor, e juro-lhe que muito me admiro que uma mulher como eu valesse ainda cinqüenta luíses.

– Vale muito mais do que isso, e eu lho provarei. Ah! não me responda, porque me não percebe; e daí... – acrescentou o desconhecido inclinando-se para o lado.

– E daí? – Preciso neste momento de toda a minha atenção. – Então quer que me cale? – Não, pelo contrário, fale-me. – De que? – Oh! do que quiser: Diga-me as coisas mais insignificantes, mais indiferentes, pouco me

importa, contanto que pareça muito entretida em conversar comigo. – Pois sim. O senhor é um homem bem singular! – Dê-me o braço e caminhemos. E caminharam por entre os grupos, ela endireitando-se e dando certo garbo à cabeça,

elegante mesmo por debaixo do dominó, e por tal forma que os entendedores olhavam para ela com inveja; porque, no baile de máscaras da ópera, naquele tempo de galantes proezas, o espectador seguia com a vista o modo de andar de uma mulher com quase tanta curiosidade como os amadores seguem hoje o andar de um bom cavalo.

Oliva, ao cabo de alguns instantes, fez uma pergunta. – Silêncio! – disse o desconhecido; – ou antes, se lhe aprouver, fale quanto quiser, mas

não me obrigue a responder. Enquanto finge conversar comigo, disfarce a voz, conserve direita a cabeça, e agite o leque.

Ela obedeceu. Nesse momento os nossos dois dominós passavam perto de um grupo todo perfumado,

no centro do qual um homem de estatura elegante, de figura esbelta e desembaraçado, falava com três companheiros, que pareciam ouvi-lo com atenção e respeito.

– Quem é aquele mancebo? – perguntou Oliva. – Oh! que lindo dominó cor de pérola. – É o senhor conde de Artois – respondeu o desconhecido; – mas, por favor, não diga

mais nada! No momento em que Oliva, estupefacta ao ouvir o nome que o dominó azul acabava de

proferir, se colocava em posição de ver melhor e permanecia direita e firme, segundo a recomendação várias vezes repetida, dois outros dominós, fugindo de um grupo falador e bulhento, refugiaram-se para um lado onde não havia bancos.

Era uma espécie de ilhazinha deserta, em que penetravam por vezes os grupos repelidos do centro para a circunferência.

– Encoste-se a este pilar, condessa – disse em tom baixo uma voz, que fez impressão no dominó azul.

E quase no mesmo instante um dominó cor de laranja, cujos modos revelavam antes o homem útil do que o cortesão agradável, rompeu a multidão e veio dizer ao dominó azul:

– É ele! – Bem – redargüiu este. E com o gesto despediu o dominó amarelo. – Oiça – disse ele então ao ouvido de Oliva – minha boa amiguinha, vamos começar a

folgar um pouco. – De boa vontade, porque na realidade já me entristeceu duas vezes, a primeira tirando-

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me Beausire, que me faz sempre rir, a segunda falando-me de Gilberto, que tanta vez me fez chorar.

– Eu farei as vezes de Gilberto e de Beausire – disse o dominó azul com toda a gravidade. – Oh! – suspirou Nicola. – Não peço o seu amor, compreenda-me bem; peço-lhe que receba a vida tal qual eu lha

hei-de proporcionar, isto é, a satisfação de todas as suas fantasias, contanto que de vez em quando subscreva às minhas. Ora, eis aqui uma que eu agora tenho.

– Qual é? – Aquele dominó preto que além vê, é um alemão meu amigo. – Ah! – Um pérfido, que recusou vir ao baile sob pretexto de uma enxaqueca. – E a quem o senhor disse que não viria. – Exactamente. – Está uma mulher com ele? – Está, sim. – Quem é? – Não a conheço. Cheguemo-nos para ele, sim? Fingiremos que é uma alemã; mas não

fale para ele não conhecer pela pronúncia que é parisiense pura. – Muito bem. E o senhor vai intrigá-lo? – Oh! por isso respondo eu. Vamos, comece a designar-mo com o seu leque. – Assim? – Muito bem! Finja que me fala ao ouvido. Oliva obedeceu com uma docilidade e inteligência, que encantaram o companheiro. O dominó preto, objecto de semelhante demonstração, estava de costas voltadas para a

sala, e conversava com a senhora que o acompanhava. Esta, a quem os olhos chamejavam debaixo da máscara, viu o gesto de Oliva.

– Olhe, monsenhor – disse ela em voz baixa – estão ali duas máscaras que falam de nós. – Oh! nada deve recear, condessa; é impossível que nos conheçam. Permita, já que

estamos no caminho da perdição, permita que lhe repita que nunca vi figura tão encantadora como a sua, nunca vi uns olhos tão abrasadores; permita que lhe diga...

– Tudo o que se diz debaixo da máscara. – Não, condessa; tudo o que se diz debaixo... – Não acabe, porque se perderia... E daí, maior perigo ainda, os nossos dois espiões

poderiam ouvir. – Dois espiões ! – exclamou o cardeal inquieto. – Sim; lá se decidem eles, lá se aproximam. – Disfarce bem a voz, condessa, se a obrigarem a falar. – E o senhor faça o mesmo. Oliva e o seu dominó azul aproximaram-se. Este, dirigindo-se ao cardeal, disse: – Máscara! E inclinou-se ao ouvido de Oliva, que lhe fez um sinal afirmativo. – O que pretendes tu? – perguntou o cardeal disfarçando a voz. – A senhora que me acompanha – respondeu o dominó azul – encarrega-me de te dirigir

várias perguntas. – Depressa – disse o Sr. de Rohan. – E que sejam bem indiscretas – acrescentou com voz aguda a Srª. de La Motte. – Tão indiscretas – redargüiu o dominó azul – que tu não as ouvirás, curiosa. E inclinou-se ao ouvido de Oliva, que fez o mesmo sinal como dantes. Então o desconhecido, em óptima linguagem alemã, dirigiu ao cardeal esta pergunta: – Monsenhor, Vossa Alteza é namorado da mulher que o acompanha?

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O cardeal estremeceu. – Dá-me tratamento de Alteza?! – respondeu ele. – Dou, sim, monsenhor. – Então enganou-se, não sou quem pensa. – Oh! por certo que é o Sr. cardeal príncipe de Rohan, não o queira negar, porque é inútil.

Ainda que eu não o conhecesse, a senhora a quem sirvo de cavalheiro, encarrega-me de lhe dizer que o conhece perfeitamente.

Inclinou-se para Oliva e disse-lhe em voz baixa: – Faça sinal que sim. Faça o mesmo sinal cada vez que eu lhe apertar o braço. Ela fez o sinal. – Espanta-me – respondeu o cardeal desorientado. – Quem é essa senhora que o

acompanha? – Oh! monsenhor, eu pensava que já a tivesse conhecido. Ela adivinhou logo quem o

senhor era: verdade seja que o ciúme... – A senhora tem ciúme de mim? – bradou o cardeal. – Não dizemos isso – disse o desconhecido com certa altivez. – O que lhe estão aí dizendo? – perguntou vivamente a Srª. de La Motte, a quem este

diálogo em alemão, isto é, ininteligível para ela, contrariava no último grau. – Nada, nada! A condessa bateu impacientemente o pé. – Minha senhora – disse então o cardeal para Oliva – uma palavra sua, rogo-lhe, e

prometo adivinhar quem é por essa única palavra. O Sr. de Rohan tinha falado em alemão. Oliva nada compreendeu e inclinou-se para o

dominó azul. – Rogo-lhe – exclamou este – que não fale, minha senhora. Esse mistério despertou a curiosidade do cardeal, que acrescentou: – Como! Uma única palavra em alemão! Não é coisa que comprometa muito uma

senhora. O dominó azul, fingindo receber as ordens de Oliva, redargüiu logo: – Sr. cardeal, eis as próprias palavras desta senhora: “Aquele, cujo pensamento não vela sempre, cuja imaginação não substitui eternamente a

presença do objecto amado, não sabe amar; seria loucura dizer que ama.” O sentido destas palavras fez impressão no cardeal. Toda a sua atitude exprimiu a maior

surpresa e admiração, o maior respeito e exaltação. Mas depois deixou cair pendentes os braços. – É impossível – murmurou ele em francês. – O que é impossível? – exclamou a Srª. de La Motte, que acabava de ouvir avidamente

estas únicas palavras de toda a conversa. – Nada, minha senhora, nada. – Monsenhor – disse ela com despeito – parece que me está a fazer representar um triste

papel. E largou o braço do cardeal. Este não só lho não ofereceu outra vez, mas pareceu não dar

atenção a isso, tão grande foi a sua insistência para com a senhora alemã. – Minha senhora – disse ele a esta última, sempre direita e imóvel por detrás da sua

muralha de cetim. – as palavras que o seu companheiro me disse em seu nome... são uns versos alemães que li numa casa, talvez sua conhecida?

O desconhecido apertou o braço de Oliva. – Sim – disse ela com a cabeça. O cardeal estremeceu, e disse hesitando: – Essa casa não se chama Schoenbrun? – Sim – disse Oliva. – Foram escritos numa mesa de pau de cerejeira brava, com um buril de ouro por uma

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augusta mão? – Sim – disse Oliva. O cardeal calou-se. Uma espécie de revolução acabava de se operar nele. Vacilou e

estendeu a mão para procurar um apoio. A dois passos de distância espreitava a Srª. de La Motte qual seria o resultado de tão

estranha cena. O braço do cardeal apoiou-se no dominó azul. – E – disse ele – aqui está a continuação: – “Mas aquele que por toda a parte vê o objecto amado, que o adivinha por uma flor, por

um perfume, por véus impenetráveis, esse pode calar-se, que a voz está no coração, e basta que o outro o compreenda para se julgar feliz”.

– Ah! ah! fala-se alemão por aqui! – disse de repente uma voz suave saída de um grupo que se tinha aproximado do cardeal. – Escute um pouco o que dizem. O senhor entende o alemão, marechal?

– Não, monsenhor. – E o Sr. de Charny? – Eu entendo. – O Sr. conde de Artois! – disse Oliva chegando-se muito para o dominó azul, porque as

quatro máscaras a cercavam com demasiada liberdade. Neste momento a orquestra começou a tocar alegres músicas, e o pó do chão e o dos

penteados subia até acima dos lustres inflamados, que douravam essa névoa de âmbar e rosas. Num movimento que fizeram as máscaras, o dominó azul sentiu-se empurrado. – Cuidado! meus senhores – disse ele em tom de autoridade. – Senhor – redargüiu o príncipe sem tirar a máscara – bem vê que nos estão empurrando.

Queiram desculpar-nos, minhas senhoras. – Vamo-nos, vamo-nos, Sr. cardeal – disse em voz baixa a Srª. de La Motte. O capuz de Oliva foi amarrotado para trás por uma mão invisível; a mascarilha, soltando-

se, caiu no chão, e as feições ficaram um instante patentes na penumbra da cimalha formada pela galeria que fica por cima da platéia.

O dominó azul soltou um grito afectado de inquietação, Oliva um grito de espanto. Três ou quatro gritos de surpresa responderam a essa dupla exclamação. O cardeal esteve quase para perder os sentidos. Se naquele momento tivesse caído, teria caído de joelhos. A Srª. de La Motte segurou-o. Uma onda de máscaras, levadas pela corrente, acabava de separar o conde de Artois do

cardeal e da Srª. de La Motte. O dominó azul, que, rápido como um raio, acabara de arranjar o capuz de Oliva e de

prender-lhe a mascarilha, aproximou-se do cardeal, e apertando-lhe a mão, disse: – Senhor, isto é uma desgraça irremediável! Bem vê que a honra desta senhora está nas

suas mãos. – Oh! senhor, senhor... – murmurou o príncipe Luís, inclinando-se. E pela fronte, escorrendo em suor, passou o lenço, que lhe tremia na mão. – Vamo-nos depressa – disse o dominó azul para Oliva. E desapareceram. – Já sei o que o cardeal julgava ser impossível – disse consigo a Srª. de La Motte; – julgou

que esta mulher fosse a rainha, e foi esse o efeito que nele produziu aquela semelhança... Bem, é mais uma observação para registrar.

– Quer que nos retiremos do baile, condessa? – disse o Sr. de Rohan com voz enfraquecida.

– Como lhe aprouver, monsenhor – respondeu sossegadamente Joana. – Não há aqui grande interesse, não é verdade? – É verdade, já não vejo nenhum.

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E abriram custosamente caminho por entre a multidão. O cardeal, que era de elevada estatura, olhava para todos os lados, para ver se descobria outra vez a sua visão.

Mas desde então, dominós azuis, vermelhos, amarelos, verdes e cinzentos andavam em turbilhão no vapor luminoso que tinha diante dos olhos, confundindo as cambiantes como as cores do prisma. De longe tudo lhe parecia azul ao pobre cardeal; mas de perto, nada tinha essa cor.

Neste estado chegou à carruagem, que o esperava, a ele e à condessa. Havia já cinco minutos que a carruagem rodava com eles dentro, e ainda o prelado não

havia dirigido palavra a Joana.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

Esta obra é distribuída Gratuitamente pela Equipe Digital Source e Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. Se quiser outros títulos nos procure : http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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Romances de Alexandre Dumas

MEMÓRIAS DE UM MÉDICO

2. ° VOLUME

TRADUÇÃO DE OCTAVIO MENDES CAJADO

Edição 1 9 5 7

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ROMANCES DE ALEXANDRE DUMAS

Volumes P u b l i c a d o s : D'ABTAGNAN

1 —- O s Três Mosqueteiros — 1. volume 2 — Os Três Mosqueteiros — 2. volume

3 — Vinte Anos Depois — 1. volume 4 — Vinte Anos Depois — 2. volume 5 — Vinte Anos Depois — 3. volume

6 — O Visconde de Bragelonne — 1. volume 7 — O Visconde de Bragelonne — 2. volume 8 — O Visconde de Bragelonne — 3. volume 9 — O Visconde de Bragelonne — 4. volume

10 — O Visconde de Bragelonne — 5. volume 11 — 0 Visconde de Bragelonne — 6. volume

SÉRIE ROBIN HOOD 12 — Aventuras de Robin Hood 13 — Itobin Hood, o Proscrito

SÉKIB MEMÓRIAS DE TJM MÉDICO 14 — José Bálsamo — l . volume 15 — José Bálsamo — 2. volume 16 — José Bálsamo — 3. volume 17 — José Bálsamo — 4. volume

18 — O Colar da Bainha — 1. volume 19 — O Colar da Rainha — 2. volume

A P u b l i c a r : Ângelo Pitou

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ALEXANDRE DUMAS

MEMÓRIAS DE UM MÉDICO

O COLAR DA RAINHA 2° VOLUME

TRADUÇÃO DE

OCTÁVIO MENDES CAJADO

Edição

1 9 5 7

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Titulo do original francês:

MÉMOIEES D'UN MÉDECIN

LE COLLIER DE LA REINE

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XLI

Duas ambições que querem passar por dois amores

SEM SER RAINHA, Joana também era mulher. Disso resultou que, mal entrada no carro, comparou o belo palácio de Versalhes, os móveis esplêndidos e ricos, com o seu quarto andar da Rua de Saint-Gilles, os magníficos lacaios à sua velha criada.

Mas quase imediatamente a humilde mansarda e a velha criada se esvaíram na sombra do passado, como uma dessas visões que, já não existindo, nunca existiram, e viu a casinha do bairro de Santo António, tão distinta, tão graciosa, tão confortável, como hoje se diria, com lacaios menos bordados que os de Versalhes, mas igualmente respeitosos e obedientes.

A casa e os lacaios representavam o seu Versalhes dela, em que não era menos rainha do que Maria Antonieta, e em que os seus desejos, enquanto soubesse conformá-los, não com o necessário, mas com o razoável, eram tão bem e tão rapidamente executados como se ela empunhasse o cetro.

Foi, portanto, com o rosto desanuviado e o sorriso nos lábios, que Joana entrou em casa. Ainda era cedo; tomou de papel, pena e tinta, escreveu algumas linhas, introduziu-as num envelope fino e perfumado, redigiu o endereço e tocou a campainha.

Mal soara a última vibração da campainha, a porta se abria e um lacaio assomava ao limiar da sala.

— Eu tinha razão, — murmurou Joana, — a rainha não é mais bem servida.

Em seguida, estendendo a mão: — Esta carta para Monsenhor, o Cardeal de Rohan, — explicou. Adiantou-se o lacaio, pegou o bilhete e saiu sem dizer uma palavra, com a muda obediência dos criados das casas fidalgas. A condessa deixou-se cair em profundo devaneio, devaneio que não era novo, mas que continuava o da estrada. Cinco minutos não se haviam passado quando alguém bateu à porta. — Entrai, — disse a Sra. de La Motte. Reapareceu o lacaio.

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— E então? — perguntou ela com um leve movimento de impaciência ao ver que a sua ordem não fora executada. — No momento em que eu estava saindo para executar as ordens da Sra. Condessa, — respondeu o lacaio, — Monsenhor bateu à porta. Eu disse-lhe que ia ao seu palácio. Êle pegou na carta da Sra. Condessa, leu-a, apeou do carro e entrou, dizendo: — "Está bem; anunciai-me." — E depois? — Monsenhor está aí; esperando que vos digneis mandá-lo entrar. Breve sorriso perpassou pelos lábios da condessa. Dois segundos depois: — Fazei-o entrar, — disse ela, afinal, em tom de acentuada satisfação. Esses dois segundos teriam tido a finalidade de fazer esperar em sua

antecâmara um príncipe da Igreja, ou seriam necessários a Sra. de La Motte para completar o seu plano?

O príncipe surgiu à porta. Ao voltar para casa, ao mandar buscar o cardeal, ao sentir uma alegria tão

grande com a presença dele, teria Joana algum plano? Sim, pois a fantasia da rainha, como um desses fogos-fátuos que iluminam

um vale inteiro cheio de sombrios acidentes, essa fantasia de rainha e sobretudo de mulher, acabava de descobrir aos olhos da intrigante condessa todos os secretos refolhos de uma alma tão soberba que se não dava ao trabalho de tomar grandes precauções para escondê-los.

É longa a estrada de Versalhes a Paris e quando a percorremos em companhia do demônio da cupidez, este tem tempo suficiente para soprar-nos aos ouvidos os projetos mais temerários.

Joana sentia embriagá-la a cifra de um milhão e meio de libras, materializada em brilhantes sobre o cetim branco do escrínio dos Srs. Boehmer e Bossange.

Um milhão e quinhentas mil libras! Não era, com efeito, uma fortuna principesca, mormente para a pobre mendiga que, um mês antes, estendia a mão para a esmola dos grandes?

Sem dúvida, havia uma distância maior entre a Joana de Valois da Rua de Saint-Gilles à Joana de Valois do bairro de Santo António do que entre a Joana de Valois do bairro de Santo António e a Joana de Valois dona do colar.

Já percorrera, portanto, mais da metade do caminho que conduz à fortuna. E essa fortuna cobiçada não era uma ilusão como os termos de um

contrato, como uma propriedade imóvel, coisas sem dúvida fundamentais, mas às quais impende acrescentar a inteligência do espírito ou dos olhos.

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O COLAR DA RAINHA 353

— Não, o colar era coisa bem diversa de um contrato ou de um imóvel: era a fortuna visível; por isso mesmo, lá estava sempre, ardente e fascinante; e visto que a rainha o desejava, Joana de Valois podia sonhar com êle; visto que a rainha sabia privar-se dele, a Sra. de La Motte bem podia cifrar nele a sua ambição.

Mil idéias vagas, estranhos fantasmas de contornos imprecisos, que o poeta Aristófanes comparava aos homens em seus momentos de paixão, mil invejas, mil desejos de possuir assumiram para Joana, durante o percurso de Versalhes a Paris, a forma de lobos, raposas e serpentes aladas.

O cardeal, que devia realizar-lhe os sonhos, interrompeu-os, respondendo pela sua presença inesperada ao desejo que tinha de vê-lo a Sra. de La Motte.

Êle também acalentava sonhos, também acariciava uma ambição, que escondia sob uma máscara de zelo, sob aparências de amor.

— Ah! minha querida Joana, — exclamou, — sois vós! Tornastes-vos para mim tão necessária que passei um dia amargurado com a idéia de que estáveis longe de mim. Voltastes, pelo menos, de Versalhes bem de saúde? — Como estais vendo, Monsenhor. — Contente? — Encantada. — A rainha vos recebeu? — Assim que cheguei, fui levada à sua presença. — Tendes muita sorte. Garanto, pelo vosso ar triunfante, que ela vos dirigiu a palavra! — Passei quase três horas no gabinete de Sua Majestade. O cardeal estremeceu e pouco faltou que repetisse, em tom declamatório: —Três horas! Conteve-se, porém. — Sois, realmente, — disse êle, — uma feiticeira, e ninguém saberia resistir-vos. — Oh! Oh! estais exagerando, meu príncipe. — Não estou. Ficastes três horas com a rainha? Joana fez um sinal afirmativo com a cabeça. — Três horas! — repetiu o cardeal, sorrindo; — quantas coisas uma mulher inteligente como vós pode dizer em três horas! — Asseguro-vos, Monsenhor, que não perdi o meu tempo. — Aposto que, durante essas três horas, — arriscou o prelado,— não pensastes em mim um minuto sequer! — Ingrato! — Deveras? — bradou o cardeal. — Fiz mais do que pensar em vós. — Que fizestes?

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— Falai em vós. — Falastes em mim? A quem? — indagou o Sr. de Rohan,cujo coração principiava a bater, com voz cuja emoção nem o seu grande domínio sobre si mesmo logrou dissimular. — A quem, senão à rainha? E pronunciando essas palavras tão preciosas para o cardeal, Joana teve a

arte de não encarar com êle, como se pouco lhe importasse o efeito que haviam de produzir.

O Sr. de Rohan palpitava. — Ah! querida condessa, contai-me isso! Interesso-me a tal ponto por

quanto vos acontece, que não quero que me oculteis o mais mínimo detalhe.

Sorriu-se Joana; sabia o que interessava ao cardeal tão bem quanto êle mesmo.

Mas como o minucioso relato já estava preparado em seu espírito; como ela o teria feito ainda que o cardeal não lho tivesse pedido, começou pausadamente, valorizando as sílabas; referindo toda a entrevista, toda a conversação; exibindo, a cada palavra, a prova de que, por um desses felizes acasos que fazem a fortuna dos cortesãos, vira-se em Versalhes em circunstâncias singulares, capazes de transformar, num dia, uma estranha em amiga quase indispensável. Num dia, com efeito, Joana de La Motte se iniciara em todos os infortúnios da rainha, em todas as impotências da realeza.

O Sr. de Rohan não parecia guardar da narrativa senão o que a rainha dissera em relação à Joana.

Esta, em seu reconto, acentuava apenas o que a rainha dissera em relação ao Sr. de Rohan.

Mal terminara a exposição, quando entrou o mesmo lacaio, anunciando que a ceia estava na mesa.

Joana convidou o cardeal com um olhar. O cardeal aceitou com um sinal.

Ofereceu o braço à dona da casa, que tão depressa se habituara a fazer-lhe as honras, e passou à sala de jantar.

Concluída a ceia, depois que o prelado sorveu, em largos haustos, a esperança e o amor nas histórias vinte vezes repetidas, vinte vezes interrompidas da feiticeira, forçoso lhe foi, afinal, depor as armas diante daquela criatura, que tinha nas mãos o coração dos poderosos.

Pois observava, com surpresa vizinha do assombro, que, em vez de se fazer de rogada, como toda mulher que se procura e de que se tem precisão, ela ia ao encontro dos desejos do interlocutor com uma graça bem diferente da leonina altivez da última ceia, saboreada no mesmo lugar e na mesma casa.

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Joana, desta feita, fazia as honras da casa não só como senhora de si mesma, senão também como senhora dos outros. Nenhum embaraço no olhar, nenhuma reserva na voz. Não havia ela, para tomar essas altas lições de aristocracia, freqüentado o dia inteiro a flor da nobreza francesa? Uma rainha sem rival não lhe chamara minha querida condessa?

Daí que o cardeal, compreendendo-lhe a superioridade, como homem superior também, não tentasse resistir-lhe.

— Condessa, — disse êle, pegando-lhe na mão, — há duas mulheres em vós. — Como assim? — A de ontem e a de hoje. — E qual das duas prefere Vossa Eminência? — Não sei. Só sei que a desta noite é uma Armida, uma Circe, qualquer coisa de irresistível. — E à qual espero que Vossa Eminência não tente resistir, por príncipe que seja. Deixou-se o prelado escorregar da cadeira e foi cair aos pés da Sra. de La

Motte. — Estais pedindo esmola? — indagou ela. — E espero que não ma recuseis. — O dia é de generosidade, — respondeu Joana; — a Condessa de Valois alcançou posição, figura entre as damas da corte; dentro em pouco figurará entre as mulheres mais altivas de Versalhes.Pode, portanto, abrir a mão e estendê-la a quem lhe aprouver. — Até a um príncipe? — acudiu o Sr. de Rohan. — Até a um cardeal, — redargüiu Joana. Depôs o prelado um longo beijo ardente na linda mãozinha rebelde;

depois, tendo consultado com os olhos o olhar e o sorriso da condessa, levantou-se. E, passando à antecâmara, disse duas palavras ao criado.

Dois minutos depois, ouvia-se o ruído do carro, que se afastava. A condessa ergueu a cabeça. — À minha fé! condessa, — disse o cardeal, — queimei os meus navios. — E não tendes nisso grande mérito, — respondeu a condessa, — visto que estais no porto.

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XLII

Em que se começa a ver os rostos debaixo das máscaras

AS LONGAS palestras são o feliz privilégio das pessoas que já não têm o que dizer. Depois da felicidade de calar ou de exprimir um grande desejo por meio de interjeições, a maior, sem dúvida, é falar muito sem dizer nada.

Duas horas após haver mandado embora o carro, o cardeal e a condessa estavam na situação que descrevemos. Cedera a condessa, o cardeal vencera, e, entretanto, o cardeal era o escravo e era a condessa o triunfador.

Dois homens se enganam apertando as mãos. Um homem e uma mulher enganam-se num beijo.

Mas aqui um só enganava o outro porque o outro queria ser enganado. Cada qual tinha um objetivo. Para esse objetivo, a intimidade era

necessária. Cada qual, portanto, atingira o seu objetivo. Daí que o cardeal não se desse ao trabalho de dissimular a impaciência.

Contentou-se de fazer um pequeno rodeio e, dirigindo novamente a conversação para Versalhes e para as honras que lá esperavam a nova favorita da rainha:

— Ela é generosa, — disse êle, — e nada lhe custa quando se trata de pessoas que quer bem. Possui o raro talento de dar um pouco a muita gente, e de dar muito a poucos amigos. — Julgai-la rica? — inquiriu a Sra. de La Motte. — Ela sabe conseguir recursos com uma palavra, um gesto,um sorriso. Nenhum ministro, salvo Turgot talvez, teve até hoje coragem de recusar um pedido da rainha. — Pois eu, — sobreveio a Sra. de La Motte, — eu vejo-a menos rica do que a supondes, pobre rainha, ou melhor, pobre mulher! — Como assim? — Será rico quem se vê na contingência de impor-se privações? — Privações? Contai-me isso, minha querida Joana. — Oh! meu Deus! Dir-vos-ei o que vi, nem mais, nem menos. — Dizei, que estou escutando. — Figurai dois suplícios medonhos, que a infeliz rainha suportou.

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— Dois suplícios? Quais? — Sabeis o que é um desejo de mulher, meu caro príncipe? — Não, mas gostaria que mo ensinásseis, condessa. — Pois a rainha tem um desejo que não pode satisfazer. — Desejo de quem? — De quem, não; de quê. — Seja. De quê? — De um colar de brilhantes. — Esperai, que já sei. Não são os brilhantes de Boehmer e Bossange? — Precisamente. — A história é velha, condessa. — Velha ou nova, não é um verdadeiro desespero para uma rainha não poder possuir o que quase possuiu uma simples favorita? Bastaria que o Rei Luís XV tivesse vivido mais quinze dias,para que Joana Vaubernier tivesse o que Maria Antonieta não pode ter. — Pois é nisso, minha querida condessa, que reside o vosso engano: a rainha já pôde ter cinco ou seis vezes os brilhantes, e sempre os recusou. — Oh! — Estou-vos dizendo que o rei lhos ofereceu, e que ela não quis aceitá-los! E referiu a história do navio. Joana escutou com avidez. E quando o cardeal terminou: — Muito bem, — disse ela, — e daí? — E daí, como? — Sim, que é que prova isso? — Que ela não os quis. Joana deu de ombros. — Conheceis as mulheres, conheceis a corte, conheceis os reis,e ainda vos deixais iludir por semelhante resposta? — Apenas constato uma recusa. — Meu caro príncipe, isso apenas significa que a rainha precisou dar uma resposta brilhante, popular, e deu-a. — Assim acreditais nas virtudes reais? Ah! cética! São Tomé era um crente ao pé de vós! — Cética ou crente, asseguro-vos uma coisa. — Qual? — Que a rainha, tanto que recusou o colar, foi tomada de uma vontade louca de possuí-lo. — Fantasias vossas, minha cara! Em primeiro lugar acreditai no seguinte: a despeito de todos os seus defeitos, a uma qualidade imensa. — Qual?

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358 ALEXANDRE DUMAS

— É desinteressada! Não gosta do ouro, nem da prata, nem de pedras. Pesa os minerais pelo seu valor; para ela, uma flor no peito vale um brilhante na orelha. — Não digo que não. Mas, há esta hora, garanto que ela tem vontade de pôr vários brilhantes no pescoço. — Provai-o, condessa. — Nada mais fácil; ainda há pouco vi o colar. — Vós? — Eu; não só o vi, como também o toquei. — Onde? —Em Versalhes. — Em Versalhes? — Sim, aonde o levaram os joalheiros, procurando tentar a rainha pela última vez. — E é bonito? — Maravilhoso! — Nesse caso, vós, que sois realmente mulher, compreendeis que se pense no colar. — Compreendo que, por causa dele, se percam o apetite e o sono. — Ai de mim! por que não terei um navio para dar ao rei? — Um navio? — Sim, pois êle me daria o colar; e depois que eu o tivesse,poderíeis comer e dormir sossegada. — Estais caçoando? — Juro que não. — Pois vou dizer-vos uma coisa que vos assombrará. — Dizei-a. — Eu não quisera ter o colar! — Tanto melhor, condessa, pois eu não poderia dar-vo-lo. — Nem vós nem ninguém; sabe-o a rainha e por isso o deseja. — Mas repito que o rei lho ofereceria. Joana fez um movimento rápido, quase importuno. — E eu, — disse ela, — eu vos asseguro que as mulheres gostam

principalmente desses presentes quando não são feitos por pessoas que as obriguem a aceitá-los.

O cardeal considerou-a com mais atenção. — Não compreendo muito bem, — confessou. — Tanto melhor; fiquemos nisso. Em primeiro lugar, que vos faz o colar, se não podemos tê-lo? — Oh! se eu fosse o rei e vós, a rainha, eu saberia obrigar-vos a aceitá-lo. — Pois bem! sem ser o rei, obrigai a rainha a ficar com êle, e vereis se a vossa violência a deixará tão zangada quanto o imaginais. O cardeal olhou mais uma vez para Joana.

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— Tendes certeza de não estar enganada? A rainha tem mesmo esse desejo? — perguntou. — Ardentíssimo. Escutai, meu caro príncipe: não me dissestes uma vez, ou já não vos ouvi que gostaríeis de ser ministro? — É muito possível que eu tenha dito isso, condessa. — Pois bem! façamos uma aposta... — Qual? — Que a rainha fará ministro o homem que se houver de modo que lhe apareça o colar no toucador dentro de oito dias. — Oh! condessa. — Digo o que penso... Preferis que eu pense em voz baixa? — Nunca! — De resto, o que estou dizendo não é convosco. Está visto que não gastareis um milhão e meio para satisfazer um capricho real; seria, a meu ver, pagar muito caro por uma pasta que tereis de graça e que vos é devida. Tomai, portanto, as minhas palavras por tagarelice. Sou como os papagaios: fiquei deslumbrada pelo sol e agora vivo repetindo que está fazendo calor. Ah! Monsenhor,rude prova é um dia de valimento real para uma pobre provincianazinha! É preciso ser águia como vós para poder encarar nesses raios. O cardeal ficou pensativo. — Pronto! — acudiu Joana, — agora me julgais tão mal, achais-me tão vulgar e mesquinha, que nem sequer vos dignais de falar-me. — Homessa! — A rainha julgada por mim, sou eu. — Condessa! — Que quereis? Acreditei que ela desejasse os brilhantes por que suspirou ao vê-los; acreditei-o porque, em seu lugar, eu os teria desejado; perdoai-me a fraqueza. — Sois uma mulher adorável, condessa; tendes, por uma aliança incrível, a fraqueza do coração, como dizeis, e a força do espírito: sois tão pouco mulher em certos momentos, que chego a assustar-me. Soi-lo tão adoravelmente em outros, que por isso bendigo o céu e vos bendigo. E o galante cardeal acentuou a galanteria com um beijo, dizendo: — Não falemos mais nessas coisas. — Seja, — murmurou Joana baixinho, — mas creio que o anzol já mordeu a carne. E ao mesmo passo que dizia: "Não falemos mais nisso", o cardeal

perguntava: — E parece-vos que foi Boehmer quem voltou à carga? — Sim, com Bossange, — retorquiu, inocentemente, a Sra. de La Motte.

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— Bossange... Um momento, — volveu o prelado como que procurando lembrar-se; — Bossange não é o sócio dele? — É. — Um alto e magro? — Exatamente. — Que mora?... — Deve morar lá pelos lados do Cais da Ferraria, ou da Escola, não sei; em todo o caso, perto do Pont-Neuf. — Do Pont-Neuf, tendes razão; li esses nomes acima de uma porta, ao passar de carro. — Bem, bem, — murmurou Joana, — o peixe está mordendo cada vez mais. Joana tinha razão: o anzol penetrara fundamente na presa. Por isso mesmo, no dia seguinte, ao sair da casinha do bairro de Santo

António, fêz-se o cardeal conduzir à casa de Boehmer. Esperava manter-se incógnito, mas Boehmer e Bossange eram os joalheiros

da corte e, às primeiras palavras que êle pronunciou, chamaram-lhe Monsenhor. — Monsenhor, pois sim, — assentiu o cardeal; — mas visto que me reconheceis, procurai fazer, ao menos, que outros não me reconheçam. — Monsenhor pode ficar tranqüilo. Aguardamos as suas ordens. — Venho comprar o colar de brilhantes que mostrastes à rainha. — Lamentamos profundamente, mas Vossa Eminência chegou muito tarde. — Como assim? — O colar já foi vendido. — Impossível! Ainda ontem tornastes a oferecê-lo à rainha! — Que tornou a recusá-lo, Monsenhor; subsiste, portanto, o contrato anterior. — E com quem foi celebrado o contrato? — perguntou o cardeal. — Isso é segredo, Monsenhor. — Já são segredos demais, Sr. Boehmer. E o prelado levantou-se. — Mas, Monsenhor... — Eu cria, senhor, — prosseguiu o cardeal, — que um joalheiro da coroa de França devia comprazer-se de vender em França essas belas pedras; preferis Portugal. Como quiserdes, Sr. Boehmer. — Vossa Eminência sabe tudo! — bradou o joalheiro. — E que vedes nisso de espantoso? — É que, se Vossa Eminência sabe tudo, só pode sabê-lo por intermédio da rainha.

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— E ainda que assim fosse? — tornou o Sr. de Rohan, sem repelir a suposição, que lhe lisonjeava o amor-próprio. — Nesse caso, mudaria tudo de figura, Monsenhor. — Explicai-vos, que não estou compreendendo. — Vossa Eminência me permite falar-lhe com toda a liberdade? — Falai. — Pois bem! a rainha deseja o nosso colar. — Acreditai-lo? — Temos certeza. — Então por que não o compra? — Porque, depois de recusá-lo a el-rei, voltar atrás da decisão que lhe valeu tantos elogios de Sua Majestade, seria mostrar-se caprichosa. — A rainha está acima do que se diz. — Sim, quando é o povo, ou quando são os cortesãos que dizem; mas quando é o rei que fala... — Sabeis que o rei quis dar o colar à rainha? — Sem dúvida; mas êle não demorou em agradecer-lhe quando ela o recusou. — Vamos a ver, qual é a vossa conclusão, Sr. Boehmer? — Que a rainha gostaria muito de ter o colar, mas sem parecer comprá-lo. — Pois estais enganado, — afirmou o cardeal; — não se trata disso. — É pena, Monsenhor, pois seria essa a única razão que nos levaria a faltar à palavra já empenhada com o Sr. Embaixador de Portugal. Refletiu Sua Eminência. Por mais forte que seja a diplomacia dos diplomatas, a dos comerciantes

lhes é sempre superior... Em primeiro lugar, o diplomata negocia quase sempre valores que não possui; o comerciante segura e aperta entre as garra á o objeto que excita a curiosidade: compra-lo, ainda que pagando bem, é quase despojá-lo dele.

Vendo que estava nas mãos daquele homem, disse o Sr. de Rohan: — Imaginai, se quiserdes, que a rainha deseja o colar. — Isso modifica tudo, Monsenhor. Posso romper todos os contratos quando se trata de dar preferência a Sua Majestade. — Por quanto o vendeis? — Por um milhão e quinhentas mil libras. — E como quereis receber o dinheiro? — Portugal dava-me uma entrada e eu levaria pessoalmente o colar a Lisboa, onde receberia o restante à vista. — Esse sistema de pagamento não é praticável entre nós, Sr. Boehmer; recebereis a entrada, se for razoável.

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— Cem mil libras. — Podem arranjar-se. E o resto? — Vossa Eminência quer prazo? — volveu Boehmer. — Com a sua garantia, tudo é possível. Entretanto, a demora implica numa perda; pois bem é que note, Monsenhor: em negócio de tamanha importância, os algarismos crescem sozinhos e destemperadamente. Os juros de um milhão e meio de libras, a cinco por cento, são se tenta e cinco mil libras, e esses juros arruinariam qualquer comerciante. Dez por cento representam a menor taxa aceitável. — Seriam, portanto, segundo os vossos cálculos, cento e cinqüenta mil libras? — Exatamente, Monsenhor. — Admitamos que vendeis o colar por um milhão e seiscentas mil libras, Sr. Boehmer, e dividis o pagamento do milhão e quinhentas mil restantes em três vezes, ao prazo de um ano. Feito? — Monsenhor, perdemos cinqüenta mil libras no negócio. — Não creio. Se recebêsseis amanhã um milhão e quinhentas mil libras, ficaríeis atrapalhado: um joalheiro não compra terras desse preço. — Somos dois, Monsenhor, meu sócio e eu. — Pois mesmo assim será melhor receberdes quinhentas mil libras de quatro em quatro meses, isto é, duzentas e cinqüenta mil cada um. — Vossa Eminência esquece que os brilhantes não nos pertencem. Se nos pertencessem, teríamos dinheiro suficiente para não nos preocuparmos com a forma de pagamento nem em colocar o que recebêssemos. — A quem pertencem, então? — A uns dez credores, talvez: compramos as pedras separadamente. Devemo-las, uma a Hamburgo, outra a Nápoles; uma a Buenos Aires, duas a Moscou. Os credores estão esperando a venda do colar para se reembolsarem. A nossa única parte será o lucro que der o negócio; mas, infelizmente, Monsenhor, desde que esse desgraçado colar está à venda, isto é, há dois anos, já perdemos duzentas mil libras de juros. Calculai, assim, o nosso lucro. O Sr. de Rohan interrompeu-o: — Mas com tudo isso ainda não vi o colar. — É verdade, Monsenhor: ei-lo aqui. E Boehmer, com todas as cautelas de praxe, exibiu a preciosa jóia. — Soberbo! — exclamou o cardeal, tocando com amor nos

fechos, que deviam ter-se impresso no colo da rainha. Quando terminou e depois que os dedos lhe buscaram nas pedras, a seu

talante, os eflúvios simpáticos que pudessem ter aderido a elas:

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O COLAR DA RAINHA 363

— Negócio fechado? — perguntou. — Fechado, Monsenhor; e vou agora mesmo à Embaixada dês dizer-me. — Eu não sabia que houvesse um embaixador de Portugal em Paris neste momento. — Pois é realmente o Sr. de Sousa quem aqui está; veio incógnito. — Para tratar do caso? — emendou o cardeal, a rir. — Sim, Monsenhor. — Pobre Souza! Conheço-o bem. Pobre Souza! E redobrou de hilaridade. O Sr. Boehmer julgou dever associar-se à alegria do cliente. Riram muito tempo sobre o escrínio, às expensas de Portugal. O Sr. de Rohan fez menção de partir. Boehmer deteve-o: — Vossa Eminência não quer dizer-me como se há de concluir o negócio? — Muito naturalmente. — O intendente de Vossa Eminência? — Não; eu só e mais ninguém; tratareis apenas comigo. — Quando? — Amanhã. — As cem mil libras? — Trá-las-ei aqui. — Bem, Monsenhor. E os títulos? — Amanhã mesmo os assinarei. — Perfeitamente, Monsenhor. — E visto que sois um homem discreto, Sr. Boehmer, não vos esqueça que tendes em mãos um segredo importantíssimo. — Não me esquecerei, Monsenhor, e hei de merecer a sua confiança bem como a de Sua Majestade a Rainha, — ajuntou o ourives,com finura. O Sr. de Rohan corou e saiu perturbado, mas feliz como todo homem

que se arruína num paroxismo de paixão. No dia seguinte, dirigiu-se Boehmer, com ar composto, à Embaixada de

Portugal. No momento em que ia bater à porta, o Sr. Beausire, primeiro secretário,

tomava contas ao Sr. Ducorneau, primeiro chanceler, e D. Manuel de Sousa, o embaixador, explicava um novo plano de campanha ao seu associado, o criado de quarto.

Depois da última visita do Sr. Boehmer à Rua de Ia Jussienne, o palácio sofrera diversas transformações.

Todo o pessoal desembarcado, como vimos, dos dois carros de posta, alojara-se consoante as necessidades da ocasião e assumira as várias atribuições que lhe cabiam em casa do novo embaixador.

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Cumpre dizer que os sócios, repartindo assim os papéis que tão bem desempenhavam, e nos quais se revezavam, tinham ensejo de vigiar-se reciprocamente, o que dá sempre um pouco de coragem para as mais rudes tarefas.

Encantado com a inteligência dos lacaios, o Sr. Ducorneau se admirava, ao mesmo tempo, de que o embaixador, dando de barato o preconceito nacionalista, tivesse uma casa inteiramente francesa, desde o primeiro secretário até ao terceiro criado de quarto.

Foi, portanto, a esse propósito que, fazendo contas com o Sr. de Beausire, encetava com este último um diálogo encomiástico sobre o chefe da embaixada.

— Os Souzas, — dizia Beausire, — não são desses portugueses atrasados que ainda vivem a vida do século XIV, como muitos existem nas nossas províncias. São fidalgos viajados, riquíssimos, que seriam reis onde quer que lhes aprouvesse. — Mas não lhes apraz, — observou, espirituosamente, o Sr. Ducorneau. — Para que, Sr. Chanceler? Porventura com certo número de milhões e um nome principesco uma pessoa não vale um rei? — Mas isso são doutrinas filosóficas, Sr. Secretário! — atalhou, surpreso, o Sr. Ducorneau; — eu não esperava ouvir tais máximas igualitárias da boca de um diplomata. — Somos uma exceção, — respondeu Beausire, um tanto contrariado pelo próprio anacronismo; — sem ser voltariano nem armênio à moda de Rousseau, conhecemos o nosso mundo filosófico,conhecemos as teorias naturais da desigualdade das condições e das forças. — Sabeis, — bradou, impetuoso, o chanceler, — que é uma felicidade ser Portugal um Estado pequeno? — Por quê? — Porque, tendo homens assim no seu governo, cresceria muito depressa. — Oh! estais-nos lisonjeando, meu caro chanceler. Fazemos realmente uma política filosófica, especiosa, mas pouco aplicável. Entretanto, mudemos de assunto. Dizeis que há cento e oito mil libras em caixa? — Sim, Sr. Secretário, cento e oito mil libras. — E nenhuma dívida? — Nem um centil. — Exemplar. Dai-me, por favor, o livro de contas. — Ei-lo. E quando será o dia da apresentação, Sr. Secretário? No bairro é um assunto de curiosidade, de comentários inesgotáveis, direi até de inquietações. — Ah! ah!

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— Sim, o tempo todo não cessa de rodar em torno do palácio gente que quisera que as portas fossem de vidro. — Gente!. . . — exclamou Beausire, — gente do bairro? — Do bairro e de fora. Oh! sendo secreta a missão do Sr. Embaixador, está visto que a polícia não tardará em ocupar-se de penetrar-lhe os motivos. — Foi também o que pensei, — conveio Beausire, preocupado. — Vede, Sr. Secretário, — disse Ducorneau, conduzindo Beausire a uma janela, que se abria numa das paredes laterais do palácio. — Olhai, não distinguis na rua aquele homem de sobretudo pardo sujo? — Distingo. — Como olha, hein? — De fato. Quem imaginais que seja? — Sei l á . . . Um espia do Sr. de Crosne, talvez. — É provável. — Aqui entre nós, Sr. Secretário, o Sr. de Crosne não é um magistrado da força do Sr. de Sartines. Conhecestes o Sr. de Sartines? — Não, senhor. — Esse já vos teria adivinhado dez vezes. É verdade que tomais precauções. . Soou a campainha. — O Sr. Embaixador está chamando, — anunciou precipitada mente

Beausire, já incomodado pela conversação. E, abrindo a porta com força, empurrou com ela dois sócios que, um com

a pena na orelha e outro de vassoura na mão, o primeiro fantasiado de amanuense e o segundo de criado, estavam achando a palestra muito comprida e dela queriam participar, nem que fosse pelo sentido da audição.

Beausire compreendeu que suspeitavam dele, e prometeu a si mesmo redobrar de vigilância.

Subiu, portanto, ao quarto do embaixador, não sem haver, no escuro, apertado a mão dos dois amigos e co-interessados.

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XLIII

Em que o Sr. Ducorneau não compreende absolutamente nada do que se está passando

D. MANUEL DE SOUZA estava menos amarelo que de costume, isto é, estava mais vermelho. Acabava de ter com o Sr. Comendador Criado de Quarto uma penosa explicação.

A explicação ainda não terminara. Quando Beausire chegou, os dois galos arrancavam, um do outro, as

últimas penas. — Vamos a ver, Sr. Beausire, — pediu o comendador, — ponde-nos de acordo. — Em quê? — acudiu o secretário, assumindo ares de árbitro,depois de haver trocado um olhar com o embaixador, seu aliado natural. — Sabeis, — disse o criado de quarto, — quê o Sr. Boehmer deve vir hoje para fechar o negócio do colar. — Sei. — E que se devem entregar a êle as cem mil libras. — Também sei. — Essas cem mil libras são propriedade da associação, não são? — É claro que sim. — Ah! o Sr. Beausire me dá razão! — bradou o comendador,voltando-se para D. Manuel. — Um momento! um momento! — atalhou o português, fazendo um sinal de paciência com a mão. — Só vos dou razão nesse ponto, — esclareceu Beausire, — a saber, que as cem mil libras pertencem aos associados. — Pois é tudo o que estou pedindo. E, nesse caso, a caixa que as contém não deve ficar na única burra da embaixada contígua ao quarto do Sr. Embaixador. — Por quê? — perguntou Beausire. — E o Sr. Embaixador, — prosseguiu o comendador, — deve,pelo menos, dar a cada um de nós uma chave da caixa. — Não, — obtemperou o português. — Por que não? — É verdade: por que não? — repetiu Beausire.

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O COLAR DA RAINHA 367

— Se desconfiam de mim, — protestou o português, passando a mão pela barba, — por que não desconfiarei dos outros? Parece-me que, se posso ser acusado de estar roubando a associação, também posso suspeitar a associação de querer roubar-me.Ninguém aqui é melhor do que os outros. — De acordo, — anuiu o criado de quarto; — mas, justamente por isso, temos direitos iguais. — Nesse caso, meu caro senhor, se pretendeis estabelecer aqui a igualdade, devíeis ter decidido que nos revezaríamos no papel de embaixador. Teria sido talvez menos verossímil aos olhos do público, mas os associados ficariam mais tranqüilos. É só, não é? — De mais a mais, — interrompeu Beausire, — não estais procedendo como bom confrade, Sr. Comendador; acaso o Sr. D. Manuel não tem um privilégio incontestável, que é o da invenção? — E o Sr. Beausire partilha-o comigo, — ajuntou o embaixador. — Oh! — retrucou o comendador, — depois que começa o negócio, esquecem-se os privilégios. — De acordo, mas não se esquecem os modos que se empregam, — observou Beausire. — Não sou só eu quem faz esta reclamação, — murmurou o comendador, meio envergonhado, — todos os nossos camaradas pensam assim. — E pensam mal, — retorquiu o português. — Pensam mal, — repetiu Beausire. O comendador ergueu a cabeça. — Eu mesmo pensei mal, — disse êle, despeitado, — ao pedir a opinião do Sr. de Beausire. O secretário não podia menos de entender-se com o embaixador. — Sr. Comendador, — replicou Beausire com espantosa fleuma,— sois um salafrário cujas orelhas eu cortaria, se ainda as tivésseis; mas já foram muito puxadas. — Como? — acudiu o comendador, empertigando-se. — Estamos aqui sossegados no gabinete do Sr. Embaixador e podemos tratar do caso familiarmente. Ora, acabais de insultar-me dizendo que eu me entendo com D. Manuel. — E me insultastes também, — sobreveio friamente o português, acorrendo em auxílio de Beausire. — Tereis de dar-nos satisfações, Sr. Comendador. — Não sou nenhum espadachim! — exclamou o criado de quarto. — Bem se vê, — retrucou Beausire; — por conseguinte, levareis uma surra. — Socorro! — bramiu o comendador, já agarrado pelo amante da Srta. Oliva, e quase estrangulado pelo português. Mas no momento em que os dois chefes iam fazer justiça à sua moda, a

campainha de baixo anunciou o chegada de uma visita.

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368 ALEXANDRE DUMAS

— Larguemo-lo, — propôs D. Manuel. — E êle continua a fazer o seu ofício, — disse Beausire. — Os camaradas saberão disto, — ameaçou o comendador, recompondo-se. — Dizei-lhes o que vos aprouver; sabemos o que responder. — O Sr. Boehmer! — gritou, de baixo, o suíço. — Isto liquida o assunto, meu caro comendador, — observou Beausire, pespegando um bofetão na nuca do adversário. — Já não brigaremos por causa das cem mil libras, visto que as cem mil libras vão desaparecer com o Sr. Boehmer. Não vos façais de engraçadinho, Sr. Criado de Quarto. O comendador saiu resmungando, e reassumiu os modos humildes para

introduzir convenientemente o joalheiro da coroa. Durante o intervalo entre a sua partida e a entrada de Boehmer, Beausire e o

português trocaram um segundo olhar tão significativo quanto o primeiro. Boehmer entrou, seguido de Bossange. Traziam ambos uma expressão

humilde e encalistrada, que não enganou os finos observadores da embaixada. Ao passo que se assentavam nas cadeiras oferecidas por Beausire, este

prosseguiu na investigação e espiava D. Manuel com o rabo dos olhos para manter a correspondência.

Manuel conservava um ar digno e oficial. Boehmer, que era o homem das iniciativas, tomou a palavra naquela difícil

circunstância. Explicou que razões políticas de alta importância o impediam de dar

prosseguimento às negociações encetadas. Manuel protestou. Beausire fez hum! O Sr. Boehmer atrapalhava-se cada vez mais. D. Manuel observou-lhe que o negócio estava fechado, que o dinheiro do

sinal estava pronto. Boehmer persistiu. Sempre por intermédio de Beausire, respondeu o embaixador que o seu

governo já tinha ou devia ter conhecimento da conclusão do negócio; que o malogro dele equivalia a expor Sua Majestade Portuguesa a uma quase afronta.

Objetou o Sr. Boehmer que pesara todas as conseqüências dessas reflexões, mas que se lhe tornara impossível cumprir a palavra empenhada.

Beausire não se conformava em aceitar os novos fatos; declarou francamente a Boehmer que o desdizer-se era de mau negociante, de homem sem palavra.

Bossange assumiu, então, a defesa do comércio incriminado na sua pessoa e na do sócio.

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O COLAR DA RAINHA 369

Mas não foi eloqüente. Beausire fechou-lhe a boca com esta pergunta: — Achastes um lance maior

pelo colar? Os joalheiros, que não eram muito fortes em política, e tinham da

diplomacia em geral e dos diplomatas portugueses em particular uma idéia excessivamente alta, coraram, julgando-se adivinhados.

Beausire conheceu que acertara no ponto exato; e como lhe importasse muito concluir o negócio, no qual pressentia a existência de uma fortuna, fingiu consultar em português o embaixador.

— Senhores, — disse, então, aos lapidários, — ofereceram-vos um lucro; nada mais natural; isso demonstra apenas que os brilhantes têm grande valor. Pois bem! Sua Majestade fidelíssima não haveria de querer fazer um negócio prejudicial a negociantes honestos.Talvez devêssemos oferecer-vos cinqüenta mil libras?

Boehmer fez um sinal negativo. — Cem mil, cento e cinqüenta mil, — continuou Beausire, decidido, sem se

comprometer, a oferecer um milhão a mais para abiscoitar a sua parte do milhão e meio de libras.

Deslumbrados, os joalheiros ficaram momentaneamente confusos; logo, tendo-se consultado:

— Não, Sr. Secretário, — responderam, — não vos deis ao trabalho de tentar-nos; o negócio está liquidado, uma vontade mais poderosa do que a nossa impede-nos de vender o colar fora do país. Compreendeis, sem dúvida; não somos nós que recusamos; portanto, não vos zangueis conosco; é de alguém maior do que nós,maior do que vós, que nasce a oposição.

Beausire e Manuel não acharam o que responder. Pelo contrário, fizeram uma espécie de cumprimento aos ourives e buscaram aparentar indiferença.

Mas nisso se aplicaram tão ativamente, que não viram na antecâmara o Sr. Comendador, criado de quarto, entretido em escutar a porta, para saber como caminhava o negócio de que pretendiam excluí-lo.

O digno associado, entretanto, foi desastrado, pois, ao inclinar--se sobre a porta escorregou e caiu com grande estrondo.

Precipitou-se Beausire para a antecâmara e foi encontrá-lo assustadíssimo. — Que fazes aqui, miserável? — exclamou. — Senhor, — respondeu o comendador, — eu vinha trazendo o correio desta manhã. — Bem! — disse Beausire; — vai. E, pegando a correspondência, despediu-o. Era a correspondência da ,chancelaria: cartas de Portugal ou da Espanha,

na maioria insignificantes, que constituíam o trabalho

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370 ALEXANDRE DUMAS

cotidiano do Sr. Ducorneau, mas que, passando sempre pelas mãos de Beausire ou de D. Manuel antes de chegarem à chancelaria, já tinham fornecido aos dois chefes úteis informações sobre os negócios da embaixada.

À palavra correio, que os joalheiros ouviram, sentiram-se aliviados, como se acabassem de ser dispensados após uma audiência embaraçosa.

Deixaram-nos sair, e o criado de quarto recebeu ordem para acompanhá-los até ao pátio.

Tanto que êle desceu a escada, D. Manuel e Beausire, trocando um desses olhares que logo redundam em ação, se reaproximaram.

— O negócio gorou, — disse D. Manuel. — Inteiramente, — conveio Beausire. — De cem mil libras, furto medíocre, temos, cada um, 8.400. — Não vale a pena, — observou Beausire. — Não é mesmo? Ao passo que lá, no cofre... E mostrava o cofre tão ardentemente cobiçado pelo comendador. — Lá, no cofre, há cento e oito mil libras. — Cinqüenta e quatro mil para cada um. — Está feito! — decidiu D. Manuel. — Repartamos. — Seja; mas agora, sabendo que o negócio falhou, o comendaro não nos largará. — Acharei um meio, — prometeu D. Manuel com ar singular. — Pois eu já achei um, — acudiu Beausire. — Qual? — O seguinte: êle vai voltar? — Vai. — Para pedir a sua parte e a dos associados? — Certo. — Pois então chamemo-lo como se fôssemos contar-lhe um segredo, e deixemos o resto por minha conta. — Parece-me que estou adivinhando, — disse D. Manuel; — ide procurá-lo. — Pois eu ia sugerir que fôsseis vós. Nenhum deles queria deixar o amigo sozinho com a caixa. A confiança é

uma jóia realmente muito rara. Respondeu D. Manuel que a sua qualidade de embaixador não lhe permitia

dar esse passo. — Para êle não sois embaixador, — observou Beausire; — mas não faz mal. — Ireis vós? — Não; chamá-lo-ei da janela.

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Com efeito, Beausire chamou da janela o Sr. Comendador, que já se preparava para confabular com o suíço. O comendador subiu.

Encontrou os dois chefes no quarto pegado ao da caixa. Dirigindo-se a êle com ar risonho: — Aposto, — disse Beausire, — que sei o que estáveis dizendo ao suíço. — Eu? — Sim: contando que o negócio co.m Boehmer foi por água abaixo. — Palavra que não. — Estais mentindo. — Juro que não! — Ainda bem; pois se houvésseis falado, teríeis cometido uma grossíssima asneira e perdido uma boa bolada. — Como assim? — bradou, surpreso, o comendador; — que bolada? — Só nós três sabemos o segredo. — É verdade. — E só nós três, por conseguinte, temos as cento e oito mil libras, visto que os outros estão na crença de que Boehmer e Bossange levaram o dinheiro. — Com a breca! — exclamou o comendador, alegríssimo, — é verdade! — Trinta e três mil, trezentos e trinta e três francos e seis soldos para cada um, — calculou Manuel. — Mais! mais! — bradou o comendador, — há ainda uma fração de oito mil libras. — É verdade, — confirmou Beausire; — aceitais? — Se aceito! — rebradou o criado de quarto, esfregando as mãos, — que dúvida! Ainda bem, isso é o que se chama falar! — Isso é o que se chama falar como um patife! — volveu Beausire, com voz tonitruante; — eu sempre disse que éreis um velhaco refinado. Vamos, D. Manuel, sois robusto, agarrai-me este biltre e entreguemo-lo aos nossos sócios para mostrar-lhes quem é. — Perdão! perdão! — gritou o desgraçado, — eu estava brincando. — Vamos! vamos! — continuou Beausire, — ficará no quarto escuro até que se faça a mais ampla justiça. — Perdão! — gemeu o comendador. — Cuidado, — disse Beausire a D. Manuel, que comprimia o pérfido comendador; — cuidado para que o Sr. Ducorneau não ouça! — Se não me largardes, — urrou o comendador, — denunciar-vos-ei a todos!

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372 ALEXANDRE DUMAS

—Eu te esganarei! — ameaçou D. Manuel com voz colérica, empurrando-o para um toucador vizinho.

— Afastai o Sr. Ducorneau, — murmurou ao ouvido de Beausire. Este não esperou segunda ordem. Passou rapidamente ao quarto contíguo,

ao mesmo passo que o português encerrava o comendador na surda espessura daquele cárcere.

Passou-se um minuto. Beausire não voltou. D. Manuel teve uma idéia; sentia-se só, a caixa estava a dez passos; para

abri-la, para tirar dela as cento e oito mil libras em notas, para saltar por uma janela e escafeder-se pelo jardim sobraçando a presa, qualquer ladrão bem organizado levaria, quando muito, dois minutos.

D. Manuel calculou que Beausire, para despachar Ducorneau e voltar ao quarto gastaria, no mínimo, cinco minutos.

Precipitou-se para a porta do quarto em que estava a caixa. A porta estava aferrolhada. Robusto e habilidoso, D. Manuel teria aberto a porta de uma cidade com uma chave de relógio.

— Beausire desconfiou de mim, — pensou, — porque só eu tenho a chave; por isso, aferrolhou a porta; é justo.

Com a espada, fez saltar o ferrolho. Aproximando-se da caixa, despediu um grito terrível: a caixa abria uma

boca enorme e vazia. Não havia nada em suas hiantes profundezas! Beausire, que tinha outra chave, entrara pela outra porta e esvaziara-a. D. Manuel correu como um insensato até ao quarto do suíço, que

encontrou cantando. Beausire levava cinco minutos de vantagem. Quando o português, com os seus gritos e lamentos, pôs todo o palácio a

par da aventura; quando, para estribar-se num testemunho, devolveu a liberdade ao comendador, só encontrou gente incrédula e furiosa.

Acusaram-no de haver urdido a trama com Beausire, que fugira primeiro, com a metade do furto.

Arrancadas às máscaras, desfeitos os mistérios, o honrado Sr. Ducorneau já não compreendia com que casta de gente se ligara.

Quase desmaiou ao ver a chusma de diplomatas preparando-se para enforcar, debaixo de um alpendre, o próprio D. Manuel!...

— Enforcar o Sr. de Souza! — berrava o chanceler. — Mas isso é um crime de lesa-majestade! Cuidado!

Como êle gritasse demais, os outros decidiram encafuá-lo numa adega. Nesse momento, três pancadas solenes à porta fizeram estremecer os

associados.

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O COLAR DA RAINHA 373

Restabeleceu-se o silêncio. Repetiram-se as três pancadas. Em seguida, uma voz aguda gritou em português: — Abri! Em nome do Sr. Embaixador de Portugal! — O embaixador! — exclamaram todos os bigorrilhas, disparando pelas dependências do palácio; e durante alguns minutos foi pelos jardins, pelos muros da vizinhança, pelos telhados, uma correria desabalada, um desordenado salve-se-quem-puder! O verdadeiro embaixador, que efetivamente acabava de chegar, só pôde

entrar em sua casa com o auxílio dos arqueiros da polícia, que arrombaram a porta em presença de imensa multidão, atraída pelo curioso espetáculo.

Depois de uma busca rigorosa, prenderam o Sr. Ducorneau, que foi conduzido à prisão do Châtelet, onde dormiu.

Assim terminou a aventura da falsa embaixada de Portugal.

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XLIV

Ilusões e realidades

SE O SUÍÇO da embaixada tivesse podido correr atrás de Beausire, como

lhe ordenava D. Manuel, convenhamos em que teria tido muito que correr. Mal saído do antro, Beausire alcançara, a galope, a rua Coquillière e, mais

depressa ainda, a Rua de Santo Honorato. Desconfiando sempre de que estava sendo perseguido, buscara confundir os

traços de sua passagem, bordejando pelas ruas sem alinhamento e sem ordem que circundam os nossos mercado de cereais; volvidos alguns minutos, tinha quase certeza de que ninguém pudera tê-lo seguido; mas tinha certeza também de outra coisa, a saber, que as forças se lhe haviam esgotado, e que um bom cavalo de corrida não poderia ter feito mais do que êle fizera.

Sentou-se num saco de trigo na Rua de Viarmes, que contorna o mercado, e lá fingiu examinar com a maior atenção a coluna de Médicis, comprada por Bachaumont para arrancá-la à picareta dos demolidores e dá-la de presente ao Paço Municipal.

Mas o caso é que o Sr. de Beausire não estava olhando nem para a coluna do Sr. Filiberto Delorme, nem para o relógio de sol com que a decorara Pingré. Arrancava penosamente do fundo dos pulmões uma respiração estridente e rouca como a de um velho fole de ferreiro.

Durante vários instantes não conseguiu completar a massa de ar que lhe cumpria despejar da laringe para restabelecer o equilíbrio entre a sufocação e a pletora.

Afinal o conseguiu, num suspiro que teriam ouvido os moradores da Rua de Viarmes se não estivessem entretidos em vender ou pesar as suas sementes.

— Ah! — pensou Beausire, — eis realizado o meu sonho: tenho uma fortuna.

E tornou a respirar. — Vou poder, enfim, converter-me num perfeito homem de bem;

parece-me até que já estou engordando. E, de feito, se não estava engordando, estava inchando. — Vou, — continuou em seu mudo monólogo, — fazer de Oliva uma

mulher tão honesta quanto eu serei honesto como homem. Ela é bela, é ingênua nos seus gostos

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O COI.AR DA RAINHA 375

Coitado! — Não desgostará de uma existência retirada na província, numa bela

propriedade a que chamaremos nossas terras, perto de alguma cidadezinha em que seremos facilmente tomados por fidalgos.

"Nicole é boa; só tem dois defeitos: a preguiça e o orgulho." Só! Pobre Beausire! Dois pecados mortais! — E com esses defeitos que satisfarei, eu, o equívoco Beausire,farei dela

para mim uma mulher perfeita. Não continuou; voltara-lhe a respiração. Enxugou a testa, certificou-se de que as cem mil libras ainda estavam em

seu bolso e, mais livre de corpo e de espírito, quis refletir. Não seria procurado na Rua de Viarmes, mas seria procurado. Os senhores

da embaixada não perderiam de boa mente o seu quinhão dos despojos. Dividir-se-iam, portanto, em diversos bandos, e começariam por explorar o

domicílio do ladrão. Nisso residia toda a dificuldade. Nesse domicílio morava Oliva, que seria

acusada, talvez maltratada. Talvez levassem a crueldade a ponto de convertê-la em refém.

Por que não saberiam os patifes que a Srta. Oliva era a paixão de Beausire, e por que, sabendo-o, não especulariam com essa paixão?

Beausire quase enlouqueceu ao pensar naqueles dois perigos mortais. O amor venceu. Não quis que ninguém tocasse no objeto do seu amor. Correu como um

dardo à casa da Rua Dauphine. Tinha, de resto, ilimitada confiança na rapidez de sua marcha; por ágeis

que fossem, os inimigos não poderiam tê-lo precedido. Aliás, precipitou-se num fiacre, a cujo cocheiro mostrou um escudo de seis

libras, dizendo-lhe: Ao Pont-Neuf. Os cavalos não correram: voaram. Entardecia. Fêz-se conduzir ao terrapleno da ponte, atrás da estátua de

Henrique IV. Naquele tempo, ali se chegava de carro; era um local de encontro muito trivial, mas freqüentado.

Arriscando a cabeça por uma portinhola, enfiou os olhos pela Rua Dauphine.

Conhecia os hábitos da gente da polícia: levara dez anos tentando reconhecê-la a fim de poder evitá-la quando fosse preciso.

Lobrigou, na descida da ponte, do lado da Rua Dauphine, dois homens separados que estendiam o pescoço na direção dessa rua, procurando o que quer que fosse.

Eram espias. Encontrar espias no Pont-Neuf, não seria coisa rara, porque, dizia um provérbio da época, para ver a qualquer

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376 ALEXANDRE DUMAS

momento um prelado, uma rameira e um cavalo branco, bastava passar pelo Pont-Neuf.

Ora, os cavalos brancos, os hábitos dos padres e as prostitutas sempre foram pontos de mira para os homens da polícia.

Beausire não se sentiu contrariado, senão embaraçado; fêz-se pequenino cocheando para disfarçar o passo e, atravessando a multidão, chegou à Rua Dauphine.

Nenhum sinal do que receava. Já avistava a casa, a cujas janelas se mostrara tantas vezes a formosa Oliva, sua estrela.

As janelas estavam fechadas; ela, sem dúvida, estaria descansando no sofá ou lendo um livro qualquer ou mastigando alguma gulodice.

Súbito, julgou ver uma farda de policial no beco fronteiro. Mais, viu assomar um soldado à janela da sala. Voltaram-lhe os suores; suores frios, malsãos. Não havia recuar: cumpria-lhe

passar diante da casa. Reunindo as forças, passou e examinou-a. Que espetáculo! Um pátio atulhado de soldados da guarda de Paris, no meio dos quais se

via um comissário do Châtelet, todo vestido de preto. Aquela gente... Beausire percebeu, num relance, que estava perturbada,

atarantada, desapontada. Uma pessoa tem ou não tem o hábito de ler nos rostos dos policiais; quando o tem, como Beausire, não precisa olhar duas vezes para saber se foram bem ou mal sucedidos.

O Sr. de Crosne, disse entre si Beausire, avisado, não importa como nem por quem, pretendera mandar prendê-lo e só encontrara Oliva. Inde irae.

Daí a decepção. Certamente, se Beausire se achasse em circunstâncias normais, se não tivesse cem mil libras no bolso, ter-se-ia lançado ao meio dos aguazis, gritando como Niso: Aqui estou! aqui estou! fui eu quem fez tudo!

Mas a idéia de que essa gente lhe apalparia as cem mil libras, e com elas passaria vida regalada, a idéia de que o golpe tão audaz e tão sutil tentado por êle aproveitaria apenas aos agentes do Chefe de Polícia, essa idéia lhe triunfou de todos os escrúpulos, digamo-lo assim, e abafou os seus cuidados de amor.

— É lógico. . . — disse consigo mesmo: — Deixo-me prender... Perco as cem mil libras. Não ajudo Oliva... Arruíno-me... Provo-lhe que a amo como um insensato... Mas mereço que ela me diga: És um cretino; devias amar-me um pouco menos e salvar-me. Decididamente, raspemo-nos e coloquemos em lugar seguro o dinheiro, que é a fonte de tudo: liberdade, felicidade, filosofia.

Dito isso, aconchegou de si as notas do banco e recomeçou a correr na direção do Luxemburgo; fazia uma hora que o guiava tão-

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-somente o instinto, e como já tivesse ido cem vezes procurar Oliva no jardim do Luxemburgo, deixava que para lá o conduzissem as pernas.

Para um homem tão cheio de lógica, era um pífio raciocínio. Com efeito, os arqueiros, que conhecem os hábitos dos ladrões, como

Beausire conhecia os hábitos dos arqueiros, teriam ido naturalmente procurá-lo no Luxemburgo.

Mas o céu ou o diabo haviam decidido que o Sr. de Crosne não o encontraria daquela vez.

Assim que o amante de Nicole virou a Rua Saint-Germain-des-Prés, quase foi derrubado por uma bonita carruagem, cujos cavalos corriam sobranceiramente para a Rua Dauphine.

Graças à ligeireza parisiense, desconhecida do resto dos europeus, Beausire só teve tempo de evitar a lança do carro. É verdade que não evitou o xingamento nem a chicotada do cocheiro; mas a um proprietário de cem mil libras não fazem mossa as misérias de semelhante ponto de honra, mormente quando tem no calcanhar as companhias da Estrela e os guardas de Paris.

Beausire, portanto, atirou-se para um lado; mas, ao voltar-se, viu no carro Oliva e um homem muito bem apessoado, conversando animadamente.

Soltou um grito, que só serviu de estimular ainda mais os cavalos. Teria seguido o veículo, se êle não se endereçasse à Rua Dauphine, a única rua de Paris em que não queria passar naquele momento.

De mais a mais, que certeza tinha êle de que era Oliva quem estava no carro? Poderia ter visto um fantasma, uma visão, uma absurdeza. Talvez estivesse vendo mal e dobrado.

Além disso, outro raciocínio se impunha: Oliva não podia estar no carro porque os arqueiros a tinham prendido em casa, na rua Dauphine.

Moral e fisicamente metido em camisa de onze varas, enveredou o pobre Beausire pela Rua des Fossés-Monsieur-le-Prince, chegou ao Luxemburgo, atravessou o bairro já deserto, e conseguiu, fora das portas da cidade, acoitar-se num gabinetezinho cuja dona tinha para êle toda a sorte de atenções.

Instalou-se na espelunca, escondeu as notas sob um ladrilho do quarto, apoiou sobre o ladrilho o pé da cama, e deitou-se, suando e praguejando, mas entremeando as blasfêmias de agradecimentos a Mercúrio e às náuseas febris de uma infusão de vinho açucarado com canela, beberagem apropriada para normalizar a transpiração da pele e devolver a confiança ao coração.

Estava certo de que a polícia não o acharia mais. Estava certo de que ninguém o despojaria do seu dinheiro.

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378 ALEXANDRE DUMAS

Estava certo de que Nicole, ainda que fosse presa, não era culpada de crime algum, e já tinham passado de moda as eternas reclusões sem motivo.

Estava certo, enfim, de que as cem mil libras lhe serviriam para arrancar da prisão, se a detivessem, Oliva, sua companheira inseparável.

Restavam os colegas da embaixada; com eles já seria mais difícil acertar contas.

Previra, porém, as chicanas. Deixava-os a todos em França e partia para a Suíça, país livre e moral, assim que a Srta. Oliva estivesse em liberdade.

Mas nada do que meditava, bebendo o vinho quente, sucedeu conforme as suas previsões: estava escrito.

Engana-se quase sempre o homem ao pensar que vê as coisas quando não as vê; e mais ainda ao pensar que não as viu quando realmente as viu.

Comentaremos o assunto para o leitor.

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XLV

Em que Srta. Oliva começa a perguntar a si mesma o que querem fazer dela SE O SR. BEAUSIRE tivesse querido louvar-se nos próprios olhos, que

eram excelentes, em vez de dar tratos ao espírito que, naquele momento, tudo cegava, teria evitado muitos dissabores e decepções.

Com efeito, fora realmente a Srta. Oliva que êle vira na carruagem, ao lado de um homem que não reconhecera olhando uma vez, mas que teria reconhecido se tivesse olhado duas; Oliva, que, de manhã, fora dar o seu passeio habitual no jardim do Luxemburgo, e que, em lugar de voltar às duas horas para jantar, fora encontrada, procurada e interrogada pelo estranho amigo que conhecera no dia do baile da Ópera.

De fato, no momento em que pagava a cadeira para voltar, e sorria para o botequineiro do jardim cuja assídua freguesa era, Cagliostro, saindo de uma alameda, aproximara-se e tomara-lhe do braço.

Ela soltou um gritinho. — Aonde ides? — perguntou êle. — Para casa, na Rua Dauphine. — Pois é precisamente o que desejam as pessoas que lá estão à vossa espera, — tornou o desconhecido. — Pessoas... que estão à minha espera... como? Ninguém está à minha espera. — Como não! Uma dúzia de visitas, pelo menos. — Uma dúzia de visitas! — exclamou Oliva, desfechando uma gargalhada; — e por que não um regimento logo de uma vez? — Se fosse possível mandar um regimento à Rua Dauphine, êle lá estaria. — Estais-me assustando! — Eu vos assustaria muito mais se vos deixasse ir à Rua Dauphine. — Por quê? — Porque lá seríeis presa, minha querida. — Eu, presa?

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380 ALEXANDRE DUMAS

— Sem dúvida; os doze senhores que estão à vossa espera são arqueiros mandados pelo Sr. de Crosne.

Oliva estremeceu: certas pessoas têm sempre medo de certas coisas. Não obstante, inteiriçando-se depois de um exame um pouco mais

profundo de consciência: — Não fiz nada, — disse ela. — Por que haveriam de prender-me? — Por que se prende uma mulher? Por intrigas, por tolices. — Não tenho intrigas. — Mas já as tivestes. — Não digo que não. — Em suma, fazem mal em prender-vos; mas o fato é que estão querendo fazê-lo. Sempre vamos à Rua Dauphine? Deteve-se Oliva, perturbada e pálida. — Brincais comigo, — disse ela, — como um gato com um pobre ratinho.

Vamos a ver; se sabeis alguma coisa, dizei-mo. Não é Beausire que estão querendo prender?

E fitou em Cagliostro um olhar suplicante. — Pode ser. Desconfio que êle tem a consciência menos limpa do que vós. — Pobre rapaz!... — Lastimai-o, se fôr preso, mas não o imiteis, deixando-vos prender também. — Mas que interesse tendes vós em proteger-me? Que interesse tendes em ocupar-vos de mim? Não é natural, — disse ela,com petulância, — que um homem como vós. . . — Não termineis, que diríeis uma tolice; e os momentos são preciosos, porque os agentes do Sr. de Crosne não vos vendo voltar,seriam capazes de vir procurar-vos aqui. — Aqui! Quem sabe que estou aqui? — Como se fosse muito difícil sabê-lo! Pois eu não sei? Mas continuemos. Como me interesso pela vossa pessoa e vos quero bem, o resto não tem importância. Depressa, vamos até à Rua do Inferno. O meu carro lá está à vossa espera. Ainda hesitais? — Sim. — Pois bem! vamos cometer uma grande imprudência, mas que, espero-o, vos convencerá de uma vez por todas. Passaremos de carro diante de vossa casa e depois que tiverdes visto os senhores da polícia de uma distância suficientemente grande para não serdes presa e suficientemente pequena para aquilatardes as suas disposições, dareis às minhas boas intenções o valor que elas têm. Pronunciando essas palavras, conduzira Oliva até ao portão da Rua do

Inferno. O carro havia-se aproximado, recebido e conduzido o casal à Rua Dauphine, onde Beausire os avistara.

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O COLAR DA RAINHA 381

Está visto que, se êle tivesse gritado naquele momento, se tivesse seguido à carruagem, Oliva teria feito tudo para juntar-se a êle, a fim de salvá-lo, perseguido, ou, livre, salvar-se com êle.

Cagliostro, porém, viu o desgraçado e desviou a atenção da moça mostrando-lhe a multidão que já principiava a aglomerar-se, curiosa, em torno dos soldados.

Assim que avistou os beleguins e a sua casa invadida, atirou-se Oliva nos braços do protetor com um desespero que teria comovido quem quer que não fosse aquele homem de ferro.

Cagliostro contentou-se de apertar-lhe a mão e de escondê-la, abaixando a cortina da portinhola.

— Salvai-me! salvai-me! — repetia, nesse em meio, a pobre rapariga. — Está prometido, — disse êle. — Mas se essa gente da polícia sabe tudo, acabará por encontrar-me. — Não, não; no lugar onde ficareis, ninguém vos descobrirá;pois se podem ir prender-vos em vossa casa, não irão prender-vos na minha. — Oh! — exclamou ela assustada, — em vossa casa. .. vamos à vossa casa? — Estais louca, — volveu êle; — até parece que já não vos lembrais do que combinamos. Não sou vosso amante, minha bela,nem o quero ser. — Então, é a prisão que me ofereceis? — Se preferis o hospital, estais livre. — Está bem, — replicou Nicole apavorada, — entrego-me em vossas mãos; fazei de mim o que quiserdes. Êle a conduziu à Rua Nova de São Gil, à mesma casa em que o vimos

receber Filipe de Taverney. E depois que a instalou longe do criado e de toda e qualquer vigilância, num

apartamentozinho do segundo andar, disse: — Cumpre que sejais mais feliz do que o sereis aqui. — Feliz! Como? — acudiu ela, a pique de chorar. — Feliz, sem liberdade, sem poder passear! É triste aqui! Não tem nem jardim! Vou morrer de tristeza. E relanceou um olhar vago e desesperado à sua volta. — Tendes razão, — disse êle, — quero que nada vos falte; aqui ficaríeis mal e, de resto, o meu pessoal vos acabaria vendo e incomodando. — Ou me vendendo, — ajuntou ela. — Quanto a isso, nada receeis, pois a minha gente só vende o que lhe compro, minha querida filha; mas para que tenhais todo o sossego desejável, buscarei encontrar-vos outra morada.

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Mostrou-se Oliva o seu tanto consolada com a promessa. Aliás, não se desagradava do novo apartamento, onde encontrava bem--estar e livros divertidos.

O protetor deixou-a, dizendo-lhe: — Não quero render-vos pela fome, minha filha. Se quiserdes ver-me,

tocai a campainha, que virei imediatamente, se estiver em casa, ou logo que voltar, se tiver saído.

Beijou-lhe a mão e deixou-a. — Ah! — bradou ela, — mandai-me principalmente notícias de Beausire. — Antes de qualquer outra coisa, — respondeu-lhe o conde.

E fechou-a no quarto. Em seguida, descendo a escada, pensativo: — Será, — disse êle, — uma profanação alojá-la na casa da Rua de São

Cláudio. Mas urge que ninguém a veja e, nessa casa, ninguém a verá. Se, ao contrário, fôr preciso que certa pessoa a veja,só poderá vê-la na casa da Rua de São Cláudio. Vamos, mais esse sacrifício. Apaguemos a última faúlha do facho que ardeu outrora.

O conde tomou um amplo sobretudo, procurou umas chaves na secretária, escolheu diversas dentre elas, considerando-as com expressão enternecida, e saiu só, a pé, do seu palácio, ressubindo a Rua de São Luís do Marais.

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XLVI

A casa deserta

O SR. DE CAGLIOSTRO chegou só à antiga casa da Rua de São Cláudio, que os nossos leitores não devem ter esquecido de todo. Anoitecia quando êle sobresteve diante do portão. Só se viam uns raros transeuntes na calçada do bulevar.

Os passos de um cavalo ressoando na Rua de São Luís, uma janela que se fechava com um rumor de ferragens velhas, o ranger das barras do maciço portão após o regresso do dono da casa vizinha, eram os únicos movimentos daquele bairro à hora de que estamos falando.

Um cão ladrava, ou melhor, uivava no pàtiozinho do convento, e uma rajada de vento morno trazia até à Rua de São Cláudio as badaladas melancólicas do relógio de São Paulo dando três quartos de hora.

Faltava um quarto para as nove. O conde chegou, como dissemos, defronte do portão, tirou do sobretudo uma

chave enorme e triturou, para fazê-la entrar na fechadura, uma série de detritos que lá se haviam aninhado, trazidos pelo vento, anos a fio.

A palha seca, cuja moinha se introduzira no buraco ogival da fechadura; a sementinha, que corria para o sul a fim de transformar-se em goivo ou malva, e que um dia se achou aprisionada naquele sombrio reservatório; a lasca de pedra que escapara do edifício vizinho; as moscas aquarteladas havia dez anos naquele hospital de ferro, e cujos cadáveres tinham acabado por encher--lhe as profundezas; tudo isso gemeu e pulverizou-se sob a pressão da chave.

Depois que a chave executou as suas evoluções na fechadura, restava apenas abrir a porta.

Mas o tempo fizera a sua obra. A madeira inchara nas juntas, a ferrugem corroerá os gonzos. O mato crescera em todos os interstícios da calçada, esverdeando a extremidade inferior da porta com as suas úmidas emanações; em toda à parte, uma espécie de massa de ninho de andorinha calafetava cada frincha, e as vigorosas vegetações das madréporas terrestres, sobrepondo as suas arcadas, escondiam a madeira debaixo da carne vivaz de seus cotilédones.

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384 ALEXANDRE DUMAS

Cagliostro sentiu a resistência; apoiou o punho, depois o cotovelo, depois o ombro, e arrombou todas aquelas barricadas, que cederam, uma após outra, com um estalar mal-humorado.

Quando a porta se abriu, todo o pátio surgiu desolado, musgoso como um cemitério, aos olhos do conde.

Tornou a fechar a porta atrás de si, e os seus passos se imprimiram sobre a grama espessa e resistente que invadira a própria área do pavimento.

Ninguém o vira entrar, ninguém poderia vê-lo no interior daqueles muros enormes. Pôde deter-se um momento e voltar, a pouco e pouco, à vida passada, como acabava de voltar àquela casa.

Uma estava desolada e vazia; a outra, em ruínas e deserta. A escadaria, de doze degraus, não tinha mais do que três inteiros. Os restantes, minados pelas águas fluviais, invadidos pelas parietárias e

papoulas, tinham, a princípio, oscilado e depois caído longe dos seus abraços. Ao caírem, as pedras haviam quebrado, a relva trepara nas ruínas e plantara, altivamente, sobre elas, os seus penachos como estandartes de devastação.

Cagliostro subiu a escada que lhe tremia debaixo dos pés e, com o auxílio de outra chave, penetrou na imensa antecâmara.

Somente aí acendeu a lanterna de que tivera o cuidado de munir-se; mas por maior cautela que empregasse no acendê-la, o hálito sinistro da casa apagou-a ao primeiro sopro.

O sopro da morte reagia violentamente contra a vida; a escuridão matava a luz.

Cagliostro reacendeu a lanterna e continuou o seu caminho. Na sala de jantar, os aparadores embolorados nos cantos tinham quase

perdido a forma primeira, e o chão viscoso já não lhes sustentava os pés. Todas as portas internas estavam abertas, deixando o pensamento penetrar livremente com a vista naquelas fúnebres profundezas em que já tinham deixado passar a morte.

O conde sentiu um como calafrio eriçar-lhe a pele pois, na extremidade do salão, no sítio em que outrora começava a escada, um rumor fizera-se ouvir.

Antigamente, esse rumor anunciava uma presença querida, despertava em todos os sentidos do dono da casa a vida, a esperança, a felicidade. Esse rumor, que nada representava no presente, recordava tudo no passado.

Com sobrecenho, respirando devagar, mãos frias, endereçou-se à estátua de Harpócrates, ao pé da qual funcionava a mola da antiga porta de comunicação, elo misterioso, intangível, que unia a casa conhecida à casa secreta.

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O COLAR DA RAINHA 385

A mola funcionou sem dificuldade, embora a madeira carunchosa tremesse ao redor. Mas tanto que o conde pôs o pé na escada secreta, o estranho rumor fêz-se ouvir de novo. Cagliostro estendeu a mão que empunhava a lanterna para descobrir-lhe à causa: viu apenas uma cobra muito grande que descia lentamente a escada e fustigava com a cauda cada degrau sonoro.

O réptil fitou os olhos tranqüilos e pretos em Cagliostro; depois, deslizou pelo primeiro buraco da madeira e sumiu.

Era, sem dúvida, o gênio da solidão. O conde continuou subindo. Por toda aquela ascensão o acompanhava uma lembrança, ou melhor, uma

sombra; e quando, nas paredes, a luz desenhava uma silhueta móvel, o conde estremecia, pensando que a sua sombra era uma sombra estranha, ressuscitada para visitar também a misteriosa estância.

Assim caminhando, assim meditando, chegou até à placa do fogão que servia de passagem entre a sala de armas de Bálsamo e o perfumado retiro de Lourença Feliciani.

As paredes estavam nuas, os quartos vazios. No fogão ainda aberto jazia um montão de cinzas, entre as quais cintilavam alguns lingotezinhos de ouro e de prata.

A cinza fina, branca e perfumada, eram os móveis de Lourença, que Bálsamo queimara até a última lasca; eram os armários de tartaruga, o cravo e o açafate de pau-rosa, a bela cama tauxiada de porcelana de Sèvres, cuja poeira micácea, como pó de mármore, ainda se distinguia do resto; eram as molduras e ornatos de metal fundidos pelo grande fogo hermético; eram as cortinas e tapeçarias de brocado de seda; eram as caixas de aloés e de sândalo, cujo perfume penetrante, exalando-se pelas chaminés, na ocasião do incêndio, aromatizara toda a zona de Paris por onde passara a fumaça; de sorte que, durante dois dias, os transeuntes haviam erguido a cabeça para respirar aqueles estranhos aromas misturados ao nosso ar parisiense; de sorte que o lojista do bairro do mercado e a costureira do bairro de Santo Honorato tinham vivido embriagados por aqueles átomos violentos e inflamados, que a brisa arranca às vertentes do Líbano e às planícies da Síria.

Esses perfumes, dizíamos, guardava-os ainda o quarto deserto e frio. Cagliostro abaixou-se, pegou num punhado de cinzas e respirou-o por muito tempo com selvagem paixão.

— Assim pudesse eu, — murmurou, — absorver um resto da alma que se comunicava outrora a esta poeira.

Em seguida, considerou as barras de ferro, a tristeza do pátio vizinho e, pela escada, os profundos estragos que o incêndio provocara na casa interior, cujo andar superior devorara.

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386 ALEXANDRE DUMAS

Sinistro e belo espetáculo! O quarto de Althotas desaparecera e das suas paredes só restavam sete ou oito ameias sobre as quais o fogo estendera as suas línguas, que devoram e enegrecem.

A quem quer que ignorasse a história dolorosa de Bálsamo e de Lourença, era impossível não deplorar aquela ruína. Tudo na casa respirava a grandeza abatida, o esplendor extinto, a felicidade perdida.

Cagliostro, portanto, deixou-se impregnar desses sonhos. O homem desceu das alturas de sua filosofia para envolver-se de novo no pouco de humanidade terna que são os sentimentos do coração e não pertencem ao raciocínio.

Depois de haver evocado os suaves fantasmas da solidão e dado ao céu à parte que lhe cabia, julgou ter pago o seu tributo à fraqueza humana quando lhe pararam os olhos num objeto brilhante ainda no meio de todo aquele desastre e de todas aquelas misérias.

Abaixou-se e viu, numa fenda do soalho, semi-enterrada no pó, uma flechinha de prata que parecia recém-caída dos cabelos de uma mulher.

Era um desses alfinetes italianos que as damas do tempo gostavam de usar para segurar os anéis da cabeleira, que se tornava pesada demais depois de empoada.

O filósofo, o sábio, o profeta, o contemplador da humanidade, o que queria que o próprio céu contasse com êle, o homem que abafara tantas dores em si mesmo e arrancara tantas gotas de sangue do coração dos outros, Cagliostro, o ateu, o charlatão, o cético zombeteiro, apanhou o alfinete, aproximou-o dos lábios e, certo de que ninguém poderia vê-lo, deixou que uma lágrima lhe assomasse aos olhos, enquanto murmurava:

— Lourença! E foi tudo. Havia algo do demônio naquele homem. Buscava a luta e, para sua própria felicidade, mantinha-a dentro em si. Depois de haver beijado ardentemente a sagrada relíquia, abriu a janela,

passou o braço através das barras e lançou o frágil pedaço de metal ao pátio do convento vizinho, aos ramos, ao ar, ao pó, sabe Deus aonde.

Castigava-se por haver deixado falar o coração. — Adeus! — disse ao insensível objeto que se perdia talvez

para sempre. — Adeus, lembrança enviada para enternecer-me, para apequenar-me sem dúvida. Doravante não pensarei senão na terra.

"Sim, esta casa vai ser profanada. Que digo? Já o foi. Reabri as portas, alumiei as paredes, vi o interior do túmulo, remexi as cinzas da morte.

"Está, portanto, profanada a casa! Pois seja-o agora de todo e para um benefício qualquer!

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"Uma mulher atravessará este pátio, uma mulher porá os pés nesta escada, uma mulher cantará talvez debaixo desta abóbada, onde vibra ainda o último suspiro de Lourença!

"Seja. Mas todas essas profanações ocorrerão com uma finalidade, com a finalidade de servir a minha causa. Se Deus perde com isso, Satanás há de ganhar."

Pousou a lanterna na escada. — Toda esta escada, — continuou, — cairá. Cairá também a casa interior.

Dissipar-se-á o mistério, o palácio será esconderijo e deixará de ser santuário. Escreveu à pressa na carteira estas linhas:

"Ao Sr. Lenoir, meu arquiteto: "Limpar o pátio e os vestíbulos; restaurar as cozinhas e cocheiras;

demolir o pavilhão interno; reduzir a casa a dois andares: oito dias."

— Agora, — disse êle, — vamos a ver se se avista daqui a janela da condessinha.

Abeirou-se de uma janela no segundo pavimento, de onde se via toda a fachada oposta da Rua de São Cláudio por cima do portão.

Defronte, a uns sessenta metros no máximo, erguia-se a casa ocupada por Joana de La Motte.

— É infalível, as duas se verão, — observou Cagliostro. — Bem. Retomou a lanterna e desceu a escada. Uma hora depois estava em casa e mandava as suas instruções ao arquiteto. Cumpre dizer que, desde o dia seguinte, cinqüenta operários invadiram o

palácio; o martelo, a serra e as picaretas ressoaram em toda parte; o mato, amontoado começou a fumegar num canto do pátio; e à noite, ao voltar para casa, o transeunte, fiel à sua cotidiana inspeção, viu uma ratazana pendurada por uma pata sob um arco de pipa no pátio, no centro de um círculo de pedreiros, que lhe escarneciam dos bigodes agrisalhados e da venerável obesidade.

O silencioso habitante do palácio vira-se emparedado no seu buraco pela queda de uma pedra. Semimorto quando o guindaste ergueu a pedra, foi agarrado pelo rabo e sacrificado ao divertimento dos pedreiros da Auvergne; fosse de vergonha, fosse por asfixia, o caso é que morreu.

O transeunte fez esta oração fúnebre: — Aí está um cara que gozou dez anos!

Sic transit gloria mundi.

Em oito dias se restaurou a casa, como Cagliostro ordenara ao arquiteto.

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XLVII

Joana protetora

DOIS DIAS após sua visita a Boehmer, o Sr. Cardeal de Rohan recebeu um bilhete deste teor:

"Sua Eminência o Sr. Cardeal de Rohan sabe sem dúvida onde ceará hoje à noite".

— Da condessinha, — disse êle, cheirando o papel. — Irei. Expliquemos porque a Sra. de La Motte pedia a entrevista ao cardeal. Dos cinco lacaios postos a seu serviço por Sua Eminência, havia ela

distinguido um, de cabelos negros, olhos castanhos, com as cores floridas do sanguíneo misturadas à sólida carnação do bilioso. Eram, para a observadora, sintomas todos de uma organização ativa, inteligente e pertinaz.

Mandou chamar o homem e, quinze minutos depois, obteve da sua docilidade e da sua perspicácia quanto quis arrancar-lhe.

O homem seguiu o cardeal e informou-a de que vira Sua Eminência ir duas vezes em dois dias à casa dos Srs. Boehmer e Bossange.

Joana já sabia o suficiente. Um homem como o Sr. de Rohan não regateia. Hábeis negociantes como Boehmer não deixam fugir um comprador. O colar fora vendido.

Vendido por Boehmer. Comprado pelo Sr. de Rohan! E este último não dissera, a respeito, nem

uma palavra à sua confidente, à sua amante! Era grave o sintoma. Joana franziu a testa, mordeu os lábios finos e dirigiu

ao cardeal o bilhete que lemos. O Sr. de Rohan apareceu à noite. Fizera-se preceder de uma cesta com

garrafas de vinho de Tokai e outras coisas raras, exata-mente como se fosse cear em casa da Guimard ou da Srta. Dangeville.

A circunstância, como tantas outras, não escapou a Joana; nada serviu do que mandara o cardeal; mas, encetando a conversação com certa ternura, quando ficaram a sós:

— Sinceramente, Monsenhor, — disse ela, — uma coisa me aflige muitíssimo.

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O COLAR DA RAINHA 389

— Qual, condessa? — acudiu o Sr. de Rohan com essa afetação de contrariedade que nem sempre é sinal de que se está realmente contrariado. — A causa da minha mortificação, Monsenhor, é ver, não que já deixastes de amar-me, porque nunca me amastes... — Oh! condessa, que estais dizendo! — Não vos desculpeis, Monsenhor, que seria tempo perdido. — Para mim, — disse, galante, o cardeal. — Não, para mim, — respondeu francamente a Sra. de La Motte. — Aliás... — Oh! condessa, — tornou o cardeal. — Não vos desoleis, Monsenhor, que isso me é perfeitamente indiferente. — Que eu vos ame ou não? — Sim. — E por quê? — Porque eu não vos amo. — Sabeis, condessa, que não é lisonjeiro o que me fazeis a honra de dizer? — Realmente, não estamos começando com delicadezas; mas é um fato, constatemo-lo. — Que fato? — Que nunca vos amei, Monsenhor, e que também nunca me amastes. — Oh! quanto a mim, não se deve dizer isso, — exclamou o príncipe, em tom quase sincero. — Já vos dediquei muita afeição,condessa. Não me coloqueis, portanto, em pé de igualdade convosco. — Ora, Monsenhor, estimemo-nos o suficiente para dizer a verdade. — E a verdade, qual é? — Há entre nós um elo bem mais forte que o amor. — Qual? — O interesse. — O interesse? Não digais isso, condessa! — Dir-vos-ei, Monsenhor, como da forca dizia ao filho o camponês normando: Se te repugna, não faças que repugne aos outros. Não vos interessa o interesse, Monsenhor? Ora. .. — Pois vamos a ver, condessa: vamos supor que estamos interessados; em que posso servir eu os vossos interesses, e vós os meus? — Em primeiro lugar, Monsenhor, e antes de qualquer outra coisa, estou com vontade de tomar-vos satisfações. — Tomai-as, condessa. — Tivestes, para comigo, uma falta de confiança e, portanto,de estima. — Eu! Quando foi isso, por favor?

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390 ALEXANDRE DUMAS

— Quando? Porventura negareis que, depois de me haverdes arrancado pormenores que eu estava morrendo por contar-vos... — Sobre o que, condessa? — Sobre o gosto de certa grande dama por certa coisa, vós vos dispusestes a satisfazê-lo sem me consultar? — Arrancar pormenores, adivinhar o gosto de certa dama por certa coisa, satisfazer esse gosto! Na verdade, condessa, sois um enigma, uma esfinge. Ah! eu já tinha visto a cabeça e o colo da mulher, mas ainda não vira as garras do leão. Parece que pretendeis mostrar-mas. Seja. — Não vos mostrarei coisa alguma, Monsenhor, visto que já não tendes desejo de ver. Dar-vos-ei pura e simplesmente a chave do enigma: os pormenores é o que se passou em Versalhes; o gosto de certa dama é a rainha; e a satisfação dada ao gosto da rainha foi à compra que fizestes ontem aos Srs. Boehmer e Bossange do famoso colar. — Condessa! — murmurou o cardeal, pálido e vacilante. Joana fitou nele o seu mais claro olhar. — Por que, — perguntou, — me olhais assim com ar tão espantado? Não

fechastes negócio ontem com os ourives do cais da Escola? Um Rohan não mente, nem sequer a uma mulher. Calou-se o cardeal. E quando já ia corar, desprazer que um homem nunca perdoa à mulher

que o provoca, Joana apressou-se em tomar-lhe a mão. — Perdão, meu príncipe, — continuou, — quero dizer-vos logo em que vos enganáveis a meu respeito. — Julgaste-me tola e má, não foi? — Oh! oh! condessa. — Enfim... — Nem mais uma palavra; deixai-me falar agora. Eu talvez consiga persuadir-vos, pois vejo claramente com quem estou tratando. Eu supunha encontrar em vós uma mulher bonita, uma mulher inteligente, uma encantadora amante; sois mais do que isso. Escutai. Chegou-se Joana ao cardeal, deixando a mão entre as mãos dele. — Quisestes ser minha amante, minha amiga, sem me amar. Vós mesma o dissestes, — prosseguiu o Sr. de Rohan. — Disse e repito, — confirmou a Sra. de La Motte. — Tínheis, então, um objetivo? — Evidentemente. — Que objetivo, condessa? — Será necessário que eu vo-lo explique?

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O COLAR DA RAINHA 391

— Não; já o adivinhei. Quereis fazer a minha fortuna. E não está claro que, feita a minha fortuna, o meu primeiro cuidado será o de garantir a vossa? E isso ou estou enganado? — Não estais enganado, Monsenhor, é isso mesmo. Entretanto, sinceramente, não persegui esse objetivo entre antipatias e repugnâncias: o caminho tem sido agradável. — Sois amável, condessa, e é um prazer falar de negócios convosco. Eu dizia, portanto, que adivinhastes. Sabeis que dedico uma respeitosa afeição a certa pessoa? — Percebi-o no baile da Ópera, meu príncipe. — Essa afeição nunca será retribuída. Deus me livre de crê-lo! — Ora! — acudiu a condessa, — uma mulher não é sempre rainha, e vós, que eu saiba, não ficais nada a dever ao Sr. Cardeal Mazarino. — Era também um belíssimo homem, — disse, rindo, o Sr. De Rohan. — E excelente primeiro ministro, — emendou Joana com a maior calma do mundo. — Diante de vós, condessa, não adianta pensar, e é uma redundância falar. Pensais e falais pelos amigos. Sim, pretendo ser primeiro ministro. Tudo me leva a isso: o nascimento, o hábito dos negócios, certa benevolência que me demonstram as cortes estrangeiras, a muita simpatia que me dedica o povo francês. — Tudo enfim, — observou Joana, — exceto uma coisa. — Exceto uma repugnância, é o que quereis dizer? — Sim, de parte da rainha; e essa repugnância é o verdadeiro obstáculo. O que a rainha quer, força é que o rei acabe querendo também; e o que ela odeia, o rei detesta antes dela. — E ela me odeia? — Oh! — Sejamos francos. Não creio que possamos parar em tão belo caminho, condessa. — Pois bem, Monsenhor, a rainha não vos quer bem. — Então, estou perdido! Não há colar que me valha. — Pois é nisso que podeis enganar-vos, príncipe. — O colar foi comprado! — Pelo menos verá a rainha que, se ela não vos ama, vós a amais. — Condessa! — Combinamos chamar as coisas pelo nome, Monsenhor! — Seja. Dizeis, então, que não desesperais de ver-me, um dia,primeiro ministro? — Tenho certeza disso. — Eu não me perdoaria se deixasse de perguntar-vos quais são as vossas ambições.

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392 ALEXANDRE DUMAS

— Eu vo-las direi, príncipe, quando estiverdes em condições de satisfazê-las. — Isso é que é falar! Estarei à vossa espera nesse dia. — Obrigada; agora, vamos cear. O cardeal pegou na mão de Joana e apertou-a como Joana tanto desejara

que a sua mão fosse apertada alguns dias antes. Mas esse tempo já passara. Retirou a mão. — E então, condessa? — Vamos cear, Monsenhor. — Já não tenho fome. — Nesse caso, conversemos. — Já não tenho o que dizer. — Separemo-nos. — É a isso que chamais a nossa aliança? Estais-me despedindo? — Para sermos realmente sinceros um com o outro, Monsenhor, — replicou ela, — cumpre que primeiro sejamos sinceros conosco. — Tendes razão, condessa; perdão se ainda uma vez me enganei a vosso respeito. Mas juro que será a última. Retomou-lhe a mão e beijou-a tão respeitosamente, que não viu o sorriso

sarcástico, diabólico, da condessa, no momento em que se ouviram estas palavras:

"Será a última vez que me enganarei a vosso respeito". Joana levantou-se, reconduziu o príncipe à antecâmara. Lá, perguntou,

baixinho: — E o resto, condessa? — É muito simples. — Que hei de fazer? — Nada. Esperai por mim. — E ireis? — A Versalhes. — Quando? — Amanhã. — Terei a resposta? — Imediatamente. — Muito bem, minha protetora, entrego-me em vossas mãos. — Deixai tudo a meu cargo. Dito isso, ela recolheu-se, deitou-se e, considerando vagamente o belo

Endimião de mármore que esperava Diana: — Decididamente vale mais a liberdade, — murmurou.

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XLVIII

Joana protegida

Senhora de um segredo tão importante, rica de tão brilhante futuro, apoiada em dois esteios tão consideráveis, Joana se sentiu com forças para levantar o mundo.

Deu a si mesma quinze dias de prazo para começar a morder com vontade o saboroso cacho que a fortuna lhe suspendia sobre a cabeça.

Aparecer na corte, não mais como solicitante, não mais como a pobre mendiga recolhida pela Sra. de Boulainvilliers, senão como descendente dos Valois, com cem mil libras de renda, um marido duque e par, ser chamada favorita da rainha e, naquela quadra de intrigas e borrascas, governar o Estado governando o rei através de Maria Antonieta, tal era o panorama que se desenvolveu diante da imaginação inexaurível da Condessa de La Motte.

Mal surgiu o dia, abalou-se para Versalhes. Não tinha audiência marcada; mas a fé que principiava depositar em sua fortuna era tal, que já não duvidava de que a própria etiqueta se sujeitaria ao seu desejo.

E tinha razão. Todos os cortesãos, tão solícitos no adivinhar os gostos do amo, já tinham

observado o prazer que sentia Maria Antonieta na sociedade da linda condessa.

Foi o bastante para que, à sua chegada, um porteiro inteligente, desejoso de fazer-se notar, se colocasse à passagem da rainha, que vinha da capela, e lá como que por acaso, pronunciasse diante do fidalgo de serviço estas palavras:

— Senhor, que hei de fazer com a Sra. Condessa de La Motte Valois, que não tem audiência marcada?

A rainha estava conversando em voz baixa com a Sra. de Lamballe. O nome de Joana, habilmente proferido pelo homem, interrompeu-lhe a conversação.

Voltou-se. — Estão dizendo, — perguntou, — que a Sra. de La Motte Valois está aí? — Creio que sim, Majestade, — replicou o gentil-homem. — Quem foi?

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— Este porteiro. Inclinou-se modestamente o porteiro. — Receberei a Sra. de La Motte Valois, — declarou a rainha,continuando

o seu caminho. E, antes de retirar-se: — Conduzi-a a sala dos banhos, — acrescentou. E passou. Joana, a quem o homem referiu simplesmente o que acabara de fazer,

levou imediatamente a mão à bolsa, mas o porteiro a deteve com um sorriso. — Sra. Condessa, — disse ele, — tende a bondade de acumular essa dívida;

logo ma pagareis com maiores juros. Joana repôs o dinheiro no bolso. — Tendes razão, meu amigo, obrigada. E por que, disse consigo só, não haveria eu de proteger um porteiro que

me protegeu? Fiz o mesmo por um cardeal! Pouco tempo depois, estava em presença da soberana. Encontrou Maria Antonieta séria, aparentemente pouco disposta, talvez

porque houvesse favorecido em demasia a condessa com uma recepção inesperada.

No íntimo, pensou a amiga do Sr. de Rohan, a rainha imagina que vim mendigar outra vez... Antes que eu tenha pronunciado vinte palavras, o seu semblante se terá desanuviado ou me terão jogado na rua.

— Senhora, — disse a rainha, — ainda não achei ocasião de falar ao rei. — Vossa Majestade já foi boa demais para mim, e não espero mais nada. Voltei aqui... — Por quê? — interrompeu a rainha, hábil em perceber as transições. — Não havíeis pedido audiência. Há urgência talvez... para vós? — Urgência... Sim, senhora; mas não para mim... — Para mim, então... Falai, condessa. E conduziu Joana à sala dos banhos, onde a esperavam as criadas. — Senhora, — começou Joana, — Vossa Majestade vê-me bem embaraçada. — Eu não disse?... — Vossa Majestade sabe, pois creio haver-lho dito, que o Sr.Cardeal de Rohan tem-se empenhado, com muita delicadeza, em obsequiar-me. A rainha franziu o cenho. — Não sei, — repontou. — Eu supunha... — Não importa... Falai.

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O COLAR DA RAINHA 395

— Pois bem, senhora, Sua Eminência me fez a honra de visitar-me anteontem. — Ah! — Por causa de uma obra de beneficência que estou organizando. — Muito bem, condessa, muito bem. Também contribuirei... para a vossa obra de beneficência. — Engana-se Vossa Majestade. Tive a honra de dizer-lhe que não vim pedir nada. O Sr. Cardeal, como é do seu costume, falou-me da bondade da rainha, da sua graça inexaurível. — E pediu que eu lhe protegesse os protegidos? — Sim, Majestade. — Pois hei de fazê-lo, não pelo Sr. Cardeal, mas pelos desgraçados que acolho sempre bem, venham de onde vierem. Entretanto, dizei a Sua Eminência que não estou muito bem de finanças. — Ah! senhora, foi exatamente o que eu lhe disse, e vem daí o embaraço que referi a Vossa Majestade. — Ah! ah! — Eu descrevia ao Sr. Cardeal a caridade tão ardente que enche o coração de Vossa Majestade, à notícia de um infortúnio qualquer,a generosidade que lhe esvazia constantemente a bolsa, sempre mui to apertada. — Bem! bem!... — "Vede, Monsenhor, por exemplo," disse-lhe eu. "Sua Majestade se torna escrava das próprias bondades. Sacrifica-se pelos pobres. O bem que faz resulta-lhe mal". . . E a esse respeito acusei-me a mim mesma. — Como assim, Condessa? — atalhou a rainha, que escutava, já porque Joana- tivesse sabido interessar-lhe o fraco, já que o seu espírito elevado percebesse, sob o longo preâmbulo, um vivo interesse, resultante para ela da preparação. — Eu disse, senhora, que Vossa Majestade me havia dado uma soma respeitável alguns dias antes; que, de dois anos a esta parte,isso devera ter acontecido pelo menos mil vezes à rainha, e que se a rainha fosse menos sensível, menos generosa, teria dois milhões em caixa, graças aos quais nenhuma consideração a impediria de ficar com aquele formoso colar de brilhantes, tão nobremente, tão corajosamente, mas, permita-me dizê-lo, senhora, tão injustamente rejeitado. A rainha corou e pôs-se de novo a olhar para Joana. A conclusão

encerrava-se evidentemente na última frase. Haveria ali algum laço? Ou seria uma simples adulação? Assim colocada à questão, havia decerto perigo para uma rainha. Mas Sua Majestade encontrou no rosto de Joana tanta doçura, tão cândida benevolência e uma verdade tão pura, que nada podia acusar-lhe a fisionomia de ser pérfida ou aduladora.

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E como apropria rainha tivesse uma alma verdadeiramente generosa, e na generosidade há sempre força, e na força há sempre uma sólida verdade, disse Maria Antonieta despedindo um suspiro:

— Sim, o colar é bonito; isto é, era bonito, e folgo muito que uma mulher de bom gosto me louve o havê-lo rejeitado. — Se soubesse, senhora, — exclamou Joana, cortando oportunamente a frase, — como a gente acaba conhecendo os sentimentos das pessoas quando se interessa por aqueles que essas pessoas querem bem! — Que quereis dizer? — Quero dizer, senhora, que vi empalidecer o Sr. de Rohan ao saber do seu heróico sacrifício do colar. — Empalidecer! — Os seus olhos se encheram imediatamente de lágrimas. Não sei, senhora, se o Sr. de Rohan é realmente o belo homem e o per feito cavalheiro que muita gente apregoa; só sei que, nesse mo mento, o seu rosto, iluminado pelo fogo de sua alma, e todo riscado das lágrimas provocadas pelo generoso desinteresse, que digo? pela sublime renúncia de Vossa Majestade, nunca mais me sairá da lembrança. Demorou-se a rainha um momento para fazer cair à água do bico de cisne

dourado que lhe mergulhava na banheira de mármore. — Pois bem, condessa, — disse ela, — visto que o Sr. de Rohan vos pareceu tão belo e tão perfeito, como acabais de dizer, não vos aconselho a demonstrá-lo em presença dele. É um prelado mundano, um pastor que toma a ovelha tanto para si quanto para o Senhor. — Oh! senhora. — Que foi? Acaso o estou caluniando? Não é essa a sua reputação? Êle mesmo não faz disso gala? Não o vedes, nos dias de cerimônia, agitar no ar as belas mãos, que são realmente belas, para torná-las mais brancas ainda, e nessas mãos, em que refulge o anel pastoral, cravam as devotas olhos mais brilhantes do que o brilhante do cardeal? Joana inclinou-se. — Os troféus do cardeal, — prosseguiu a rainha, arrebatada,— são numerosos. Alguns fizeram escândalo. O prelado é um amo roso como os da Fronda. Louve-o quem quiser por isso, mas eu nunca o farei. — Não sei, senhora, — volveu Joana, sentindo-se à vontade ante aquela familiaridade, como também ante a situação puramente física da interlocutora, — não sei se o Sr. Cardeal estava pensando nas devotas quando me falou com tanto ardor das virtudes de Vossa Majestade; mas sei que as suas belas mãos não estavam no ar, estavam postas sobre o seu coração.

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O COLAR DA RAINHA 397

A rainha sacudiu a cabeça com riso forçado. — Oh! — pensou Joana, — dar-se-á que as coisas vão melhor do que o

supúnhamos? Será porventura o despeito nosso auxiliar? As facilidades, nesse caso, aumentarão.

A rainha não tardou em reassumir o ar nobre e indiferente. — Continuai, — ordenou. — Vossa Majestade deixa-me gelada; essa modéstia que a faz repelir o próprio louvor.. . — Do Cardeal? Sim. — Mas por que, senhora? — Porque êle me é suspeito, condessa. — Já não me cabe, — voltou Joana com o mais profundo respeito, — defender quem teve a suprema desdita de incorrer no de sagrado de Vossa Majestade; há de ser bem culpado, sem dúvida,visto que desagradou à rainha. — O Sr. de Rohan não me desagradou; ofendeu-me. Entre tanto, sou rainha e cristã; duplamente levada, por conseguinte, a esquecer as ofensas. E Maria Antonieta pronunciou essas palavras com a majestosa bondade

que lhe era peculiar. Calou-se Joana. — Não dizeis mais nada? — Eu me tornaria suspeita a Vossa Majestade, incorreria no seu desagrado, mereceria a sua censura, se exprimisse uma opinião contrária à sua. — Pensais o contrário do que penso em relação ao cardeal? — Exatamente o oposto, senhora. — Não falareis assim no dia em que souberdes o que fez contra mim o Príncipe Luís. — Sei apenas o que o vi fazer pelo serviço de Vossa Majestade. — Galanterias? Joana inclinou-se. — Finezas, votos, cumprimentos? — continuou a rainha. Joana calou-se. — Voltais ao Sr. de Rohan grande amizade, condessa; não tornarei a atacá-

lo diante de vós. E a rainha desatou a rir. — Senhora, — respondeu Joana, — prefiro a cólera à zombaria de Vossa Majestade. O sentimento que o Sr. Cardeal dedica a Vossa Majestade é tão respeitoso que, se a visse escarnecê-lo, morreria, tenho certeza. — Oh! oh! Nesse caso, êle deve ter mudado muito. — Mas Vossa Majestade fez a honra de dizer que, já há dez anos, o Sr. de Rohan estava apaixonadamente... — Foi uma brincadeira, — atalhou severa, a soberana.

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Obrigada a calar-se, Joana pareceu à rainha resignada a depor as armas; enganava-se, entretanto, Maria Antonieta. Para essas mulheres, natureza de tigre e de serpente, o momento em que se encolhem é sempre o prelúdio do ataque: o repouso concentrado precede o ímpeto.

— Falastes nos brilhantes — sobreveio, imprudente, a rainha.— Confessai que andastes pensando neles. — Dia e noite, senhora, — tornou Joana, com a alegria de um general que, no campo de batalha, vê o inimigo cometer um erro decisivo. — São tão belos, ficarão tão bem em Vossa Majestade! — Como assim? — Em Vossa Majestade, sim. — Mas estão vendidos! — Estão. — Ao embaixador de Portugal? Joana sacudiu mansamente a cabeça. — Não? — perguntou a rainha, jubilosa. — Não, senhora. — A quem, então? — Comprou-os o Sr. de Rohan. A rainha estremeceu; mas, logo, com frieza: — Ah! — exclamou. — Veja, senhora, — continuou Joana com eloqüência fogosa e arrebatada,

— o que o Sr. de Rohan está fazendo é soberbo, é um gesto de generosidade, de bom coração; um belo gesto! Uma alma como a de Vossa Majestade não pode menos de simpatizar com tudo o que é bom e sensível. Assim que o Sr. de Rohan soube,por mim, confesso-o, das momentâneas dificuldades de Vossa Majestade, exclamou:

"Como! A rainha de França recusa o que não se atreveria a recusar a mulher de um burguês endinheirado? A rainha expõe--se a ver um dia a Sra. Necker galhardeando esses brilhantes?"

"O Sr. de Rohan ainda não sabia que o embaixador de Portugal havia começado a negociá-los. Contei-lho eu. A sua indignação redobrou:” Já não é “, disse êle,” uma questão de proporcionar um prazer à rainha, é uma questão de dignidade real. Conheço o espírito das cortes estrangeiras, a sua vaidade e ostentação; zombarão da rainha de França, que já não tem dinheiro para satisfazer um desejo legítimo! Hei de acaso permitir que zombem da rainha de França? Nunca!" E deixou-me precipitadamente. Uma hora depois, eu soube que êle havia comprado os brilhantes".

— Um milhão e quinhentas mil libras? — Um milhão e seiscentas mil. — E qual foi a sua intenção ao comprá-los?

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— Visto que não podiam pertencer a Vossa Majestade, Sua Eminência não quer que pertençam a mais ninguém. — E tendes certeza de que não foi para presentear com ele alguma amante que o Sr. de Rohan comprou o colar? — Tenho certeza de que foi antes para dar cabo dele do que o ver brilhar em outro pescoço que não o de Vossa Majestade. Maria Antonieta refletiu, e em sua nobre fisionomia transpareceu, sem

nuvens, tudo o que se lhe passava na alma. — O que fez o Sr. de Rohan foi bem feito, — disse ela; — um gesto nobre

e delicado. Joana absorvia-lhe ardentemente as palavras. — Agradecereis, portanto, ao Sr. de Rohan, — continuou a rainha. — Oh! sim, senhora. — Acrescentareis que a amizade do Sr. de Rohan me ficou provada, e que eu, como um homem de bem, como diz Catarina,tudo aceito da amizade, reservando-me o direito da retribuição. Por conseguinte, aceito, não o presente do Sr. de Rohan... — O que, então? — O seu adiantamento... O Sr. de Rohan teve a bondade de adiantar-me dinheiro, ou crédito, para ser-me agradável. Hei de reembolsá-lo. Boehmer, se não me engano, pedira uma parte à vista? — Sim, senhora. — Quanto? Duzentas mil libras? — Duzentas e cinqüenta mil. — É o trimestre da pensão que me dá o rei. Mandaram-na hoje cedo;

adiantada, eu sei, mas o fato é que já está comigo. A rainha chamou rapidamente as criadas, que a vestiram, depois de tê-la

envolvido em finas cambraias aquecidas. Ficando a sós com Joana, e reinstalada em seu quarto, disse ela à

condessa: — Fazei-me o favor de abrir aquela gaveta. — A primeira? — Não, a segunda. Estais vendo uma carteira? — Ei-la, senhora. — Contém duzentas e cinqüenta mil libras. Contai-as. Joana obedeceu. — Levai-as ao cardeal. Tornai a agradecer-lhe. Dizei-lhe que todo

mês darei um jeito de pagar assim. Depois acertaremos os juros. Dessa maneira, terei o colar que tanto me agradava e, ainda que me sacrifique para pagá-lo, pelo menos não sacrificarei o rei.

Recolheu-se por um minuto.

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— E terei ganho com isso, — continuou, — a certeza de que tenho um amigo delicado que me serviu...

fez nova pausa. — E uma amiga que me adivinhou, — concluiu, oferecendo a mão a

Joana, que sobre ela se precipitou. Logo, como fosse sair, depois de haver hesitado ainda uma vez: — Condessa, — disse baixinho, como se tivesse medo do que estava

dizendo, — direis ao Sr. de Rohan que será bem-vindo em Versalhes e que desejo apresentar-lhe os meus agradecimentos.

Atirou-se Joana para fora do aposento, não bêbeda, mas insensata de alegria e de orgulho satisfeito.

Apertava as notas de banco como um abutre aperta a presa roubada.

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XLIX

A carteira da rainha

Ninguém sentiu mais a importância da fortuna, no sentido próprio e figurado, que levava Joana de Valois, do que os cavalos que a reconduziram de Versalhes a Paris. Se já houve cavalos empenhados em ganhar um prêmio, e voassem em vez de correr, foram sem dúvida àqueles dois pobres animais de praça.

Estimulado pela condessa, o cocheiro deu-lhes a entender que eram os alígeros quadrúpedes do país de Elis, c que se tratava de ganhar dois talentos de ouro para o amo, e uma triplicada ração de cevada para eles.

O cardeal ainda não havia saído, quando a Sra. de La Motte chegou à sua casa, no meio dos seus criados e familiares.

Fêz-se anunciar ainda mais cerimoniosamente do que em Versalhes. — Estais chegando do paço? — Estou, Monsenhor.

Êle a examinava; ela permanecia impenetrável. Ela o viu estremecer, entristecer-se, sentir-se mal, mas não se condoeu.

— E então? — perguntou o prelado. — E então? Vamos, Monsenhor, que desejais? Dizei qualquer coisa, a fim de que eu não precise censurar-me tanto. — Ah! condessa, estais-me dizendo isso com uns modos!... — Que entristecem, não é? — Que matam. — Queríeis que eu me avistasse com a rainha? — Queria. — Pois avistei-me. Queríeis que ela me deixasse falar em vós,ela que várias vezes demonstrara repulsa e descontentamento ou vindo pronunciar o vosso nome? — Se já tive esse desejo, vejo agora que me cumpre desistir de vê-lo satisfeito. — Não, a rainha me falou de vós. — Ou melhor, tivestes a bondade de falar-lhe de mim? — É verdade.

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— E Sua Majestade ouviu? — Isso precisa de uma explicação. — Nem mais uma palavra, condessa: vejo quanta repugnância teve Sua Majestade... — Nem tanta... Atrevi-me a falar do colar. — A dizer que pensei... — Sim, comprá-lo para ela. — Oh! condessa, é sublime! E ela ouviu? — Ouviu. — Dissestes-lhe que eu lhe oferecia os brilhantes? — Ela recusou. — Estou perdido. — Recusou aceitar o presente; mas o empréstimo... — O empréstimo?... Teríeis dado uma cor tão delicada ao meu oferecimento? — Tão delicada, que ela aceitou. — Eu emprestar à rainha!...' Será possível, condessa? — Emprestar vale mais do que dar, não é verdade? — Mil vezes. — Era o que eu pensava. No entanto, Sua Majestade aceita.Levantou-se

o cardeal e tornou a sentar-se. Abeirou-se de Joana e, travando-lhe das mãos: — Não me enganeis, — disse êle. — Observai que, com uma palavra, podeis fazer de mim o último dos homens. — Não se brinca com as paixões, Monsenhor; isso só é permitido com o ridículo; e os homens da vossa posição e com os vossos méritos nunca podem ser ridículos. — É verdade. Então, o que me estais dizendo... — É a puríssima verdade. — Há um segredo entre mim e a rainha? — Um segredo... mortal. O cardeal correu para Joana e apertou-lhe ternamente a mão. — Gosto desse aperto de mão, — disse a condessa; — é um aperto de homem para homem. — De um homem feliz para um anjo protetor. — Monsenhor, não exagereis. — Oh! sim, minha alegria, meu reconhecimento... nunca... — Mas estais exagerando. Não queríeis emprestar um milhão e meio à rainha? Suspirou o cardeal. — Buckinghan teria pedido outra coisa a Ana d'Áustria, Monsenhor,

depois de ver as suas pérolas espalhadas pelo soalho do quarto real. — O que Buckinghan obteve, condessa, não quero sequer de desejar, nem

mesmo em sonhos.

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— Explicar-vos-eis sobre isso com a rainha, Monsenhor, pois ela vos manda avisar que vos verá com prazer em Versalhes.

Não acabara a imprudente de pronunciar essas palavras, e o cardeal empalideceu como um adolescente ao primeiro beijo de amor.

Agarrou-se, tateando como um bêbedo, à primeira poltrona que encontrou.

— Ah! ah! — pensou Joana, — isto é mais sério ainda do que eu pensava; eu havia sonhado com o ducado, o pariato, cem mil libras de rendas! Pois irei até o principado, até ao meio milhão de rendas; o Sr. de Rohan não trabalha por ambição nem por avareza, trabalha por amor!

O Sr. de Rohan logo tornou em si. A alegria não é doença que dure muito tempo, e como êle tivesse um espírito sólido, achou conveniente falar de negócios com Joana, a fim de fazê-la esquecer que acabava de falar de amor.

A condessa não se opôs. — Minha amiga, — disse êle, apertando-a nos braços, — que pretende fazer a rainha do empréstimo que lhe supusestes? — Perguntais-me isso porque se propala que a rainha não tem dinheiro? — Exatamente. — Ela pretende pagar-vos como pagaria a Boehmer, com uma diferença: se tivesse comprado de Boehmer, Paris inteira o saberia;ora, isso tornou-se impossível depois da famosa frase do navio, pois se ela deixasse o rei constrangido, deixaria toda a França carrancuda.A rainha quer, portanto, os brilhantes pouco a pouco, e quer pagá-los pouco a pouco. Vós lhe fornecereis a ocasião; sois um tesoureiro discreto, um tesoureiro solvável, para o caso em que ela se veja em dificuldades, mais nada; ela está contente e pagará. Não peçais mais nada. — Pagará! Como? — A rainha, mulher que compreende tudo, sabe perfeitamente que estais endividado, Monsenhor; além disso, é altiva, não é uma amiga que receba presentes... Quando eu lhe disse que havíeis adiantado duzentas e cinqüenta mil libras... — Pois lho dissestes? — Por que não? — Era impossibilitar-lhe de plano o negócio. — Era fornecer-lhe o meio, a razão para aceitá-lo. Nada por nada, tal é a sua divisa. — Meu Deus! Joana enfiou tranqüilamente a mão no bolso e dele tirou a carteira de Sua

Majestade. — Que é isso? — perguntou o Sr. de Rohan.

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— Uma carteira com duzentas e cinqüenta mil libras em notas. — Deveras? — Que a rainha vos envia com os seus agradecimentos. — Oh! — A quantia está certa. Eu contei. — Não se trata disso. — Mas que estais olhando? — Estou olhando a carteira, que não vos conhecia. — Agrada-vos? Não é bonita nem rica. — Agrada-me, não sei por quê. — Tendes bom gosto. — Estais caçoando? Por que dizeis que tenho bom gosto? — Porque tendes o mesmo gosto da rainha. — Essa carteira... — Era dela, Monsenhor... — E querei-la muito? — Muitíssimo. O Sr. de Rohan suspirou. — Concebe-se, — disse êle. — Entretanto, se vos agrada, — tornou a condessa com esse sorriso que perde os santos. — Sabeis que sim, condessa; mas não quero privar-vos dela. — Guardai-a. — Condessa! — bradou o cardeal no auge do contentamento,— sois a amiga mais preciosa, mais inteligente, mais... — Sim, sim. — E seremos amigos?... — Para todo o sempre! como sempre se diz. Não, só tive um mérito. — Qual? — O de haver cuidado dos vossos interesses com muita sorte e muito zelo. — Se tivésseis apenas essa sorte, minha amiga, eu diria que valho quase tanto quanto vós, pois enquanto íeis a Versalhes também trabalhei por vós. Joana considerou, surpresa, o cardeal. — Sim, uma nonada. Veio um homem, o meu banqueiro,propor-me

ações de não sei que firma organizada para drenar ou explorar umas lagoas. — Ah! — Era lucro certo; aceitei. — Fizestes bem. — Vereis que estais sempre em primeiro lugar no meu espírito. — Em segundo, e ainda assim não o mereço. Mas vamos a ver.

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— O meu banqueiro deu-me duzentas ações; tomei a quarta parte para vós, as últimas. — Oh! Monsenhor. — Deixai-me falar. Duas horas depois voltou. O simples fato de terem sido as ações colocadas naquele dia determinara uma alta de cem por cento. Êle entregou-me cem mil libras. — Bela especulação. — Aqui está a vossa parte, querida condessa, quero dizer, que rida amiga. E do pacote das duzentas e cinqüenta mil libras dadas pela rainha,

separou vinte e cinco mil, que pôs nas mãos de Joana. — Está bem, Monsenhor, dá-se a quem dá. O que mais me lisonjeia é o fato de haverdes pensado em mim. — E será sempre assim, — replicou o cardeal, beijando-lhe a mão. — Esperai pela retribuição, — voltou Joana... — Até à vista, Monsenhor, em Versalhes. E partiu, depois de haver dado ao cardeal a lista dos vencimentos

escolhidos pela rainha, o primeiro dos quais, um mês depois, era de quinhentas mil libras.

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L

Em que se torna a encontrar o Dr. Luís

É POSSÍVEL que os nossos leitores, lembrados da situação difícil em que deixamos o Sr. de Charny, não se desagradem de voltar à antecâmara dos aposentos de Versalhes, onde o bravo marinheiro, que nem os homens nem os elementos haviam jamais intimidado, fugira com receio de sentir-se mal diante de três mulheres: a rainha, Andréia e a Sra. de La Motte.

Alcançando a metade da antecâmara, compreendera efetiva-mente que lhe era impossível ir mais longe. Cambaleante, estendera os braços. Percebendo que as forças lhe faleciam, os circunstantes haviam acudido.

Nesse momento o jovem oficial desmaiara e, ao cabo de alguns instantes, tornara em si, sem suspeitar que fora visto pela rainha, que talvez o tivesse socorrido, num primeiro ímpeto de inquietude, se a não tivesse detido Andréia, muito mais por ciúme do que por um frio senso das conveniências.

De resto, bem fizera a rainha voltando ao quarto ante o aviso de Andréia, fosse qual fosse o sentimento que o ditara, pois tanto que a porta se fechou atrás dela, ouviu, através da sua espessura, o grito do proteiro:

— O rei! Era, com efeito, o rei, que dos seus aposentos se dirigia ao terraço, desejoso,

antes de assistir ao conselho, de visitar os trens de caça, que lhe pareciam um tanto descurados ultimamente.

Entretanto na antecâmara, seguido de alguns oficiais de sua casa, sobresteve o monarca: viu um homem deitado sobre o peitoril da janela, em posição que assustava os dois guardas que o sustinham, desabituados de ver desmaiarem à-toa os oficiais.

Por isso mesmo, enquanto seguravam o Sr. de Charny, gritavam: — Senhor! senhor! Que tendes?

Mas o doente, sem voz, não podia responder. Compreendendo, pelo silêncio, a gravidade do mal, o rei apertou o passo.

— Sim, — observou, — sim, foi alguém que perdeu os sentidos. À voz do rei, voltaram-se os guardas e, maquinalmente, largaram o Sr. de

Charny, que, ainda sustentado por uns restos de força, caiu, ou melhor, deixou-se cair sobre as lájeas com um gemido.

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O COLAR DA RAINHA 407

— Oh! senhores, — exclamou o rei, — que estais fazendo? Precipitaram-se todos. Ergueram suavemente o Sr. de Charny que desfalecera, e colocaram-no sobre uma poltrona. — Mas é o Sr. de Charny! — exclamou o soberano, de repente,reconhecendo o jovem oficial. — O Sr. de Charny? — repetiram os assistentes. — Sim, o sobrinho do Sr. de Suffren. Essas palavras produziram um efeito mágico. Charny, de um momento para

outro, viu-se literalmente inundado de águas de cheiro, como se se achasse entre dez mulheres. Chamou-se um médico e este examinou prestesmente o enfermo.

Curioso de toda ciência e compadecido de todos os males, o rei não queria afastar-se; assistia à consulta.

O primeiro cuidado do médico foi abrir o colete e a camisa do rapaz, a fim de que o ar lhe tocasse o peito; mas, ao fazê-lo, encontrou o que não estava procurando.

— Um ferimento! — bradou Sua Majestade com redobrado interesse e acercando-se de modo que visse com os próprios olhos. — Sim, sim, — murmurou o Sr. de Charny, tentando soerguer-se, e relanceando à sua volta os olhos amortecidos, — foi uma ferida antiga que se reabriu. Não é nada... nada... E apertava com a mão, imperceptivelmente, os dedos do médico. Um médico compreende e deve compreender tudo. Aquele não era um

médico da corte, mas um cirurgião qualquer de Versalhes. Quis dar-se ares. — Oh! antiga... Isso dizeis vós, senhor; os lábios ainda estão frescos, o

sangue é vermelho demais: essa ferida não tem vinte e quatro horas. Charny, a quem a contradita devolvera as forças, ergueu-se em pé e disse: — Parece-me que não sereis vós quem me dirá quando recebi o

ferimento, senhor! Digo e repito: é um ferimento antigo. Nesse momento, avistou e reconheceu o rei. Abotoou a vestia, como que

corrido ante tão ilustre espectador da sua fraqueza. — O rei! murmurou. — Sim, Sr. de Charny, sou eu mesmo; e dou graças ao céu por estar aqui para trazer-vos algum alívio. — Um arranhão, Sire, — balbuciou Charny; — uma velha ferida, Sire, nada mais. — Velha ou nova, — volveu Luís XVI, — a ferida mostrou-me o vosso sangue, sangue precioso de um bravo gentil-homem. — Ao qual duas horas na cama lhe devolverão a saúde, — ajuntou Charny, querendo levantar-se outra vez. Mas não calculara as forças. Com a cabeça andando a roda, as pernas vacilantes, só se ergueu para recair na poltrona.

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408 ALEXANDRE DUMAS

— Êle está bem mal, — observou o rei. — Está, sim, — acudiu o médico com ar fino e diplomático, que recendia a um pedido de promoção; — mas pode salvar-se. Homem de bem, o rei adivinhara que Charny estava escondendo qualquer

coisa. Esse segredo era-lhe sagrado. Qualquer outra pessoa teria procurado colhê-lo dos lábios do médico, que tão obsequiosamente lho oferecia; mas Luís XVI preferiu deixá-lo ao proprietário.

— Não quero, — disse êle, — que o Sr. de Charny se exponha a risco nenhum voltando para casa. Será tratado em Versalhes;chamem-lhe depressa o tio, o Sr. de Suffren, e depois que se tiver agradecido a este senhor os cuidados que teve, — e designava o obsequioso médico, — chamem o cirurgião de minha casa, o Dr.Luís. Se não me engano, é êle quem está de serviço.

Correu um oficial a executar as ordens reais. Dois outros se encarregaram de Charny e o transportaram para o extremo da galeria, acomodando-o no quarto do oficial dos guardas.

Passou-se esta cena mais rapidamente que a da rainha e do Sr. de Crosne.

Mandaram-se chamar o Sr. de Suffren e o Dr. Luís. Conhecemos este homem honrado, modesto e sábio, de uma inteligência

menos brilhante do que útil, corajoso lavrador do campo imenso da ciência, onde mais se honra quem faz a colheita, mas onde não tem menos merecimento quem arroteia a terra.

Atrás do cirurgião, inclinado sobre o paciente, afligia-se já o bailão de Suffren, que um estafeta acabara de avisar.

O ilustre marujo não compreendia aquela síncope, aquele súbito mal-estar. Quando pegou na mão de Charny e lhe considerou os olhos baços: — É esquisito! — disse êle, — esquisito! Sabeis, doutor, que meu sobrinho nunca esteve doente? — Isso não prova coisa alguma, Sr. Bailio, — replicou o médico. — Nesse caso, o ar de Versalhes deve ser bem pesado, pois re pito que vi Oliveiros dez anos em alto mar, sempre vigoroso, direito como um mastro. — É a ferida, — alvitrou um dos oficiais presentes. — Ferida, como! — bradou o almirante. — Oliveiros nunca foi ferido! — Oh! perdão, — replicou o oficial, mostrando a cambraia manchada; — mas eu cria. .. O Sr. de Suffren viu sangue. — Está bem, está bem, — atalhou com familiar rudeza o doutor,que acabava

de tomar o pulso ao doente, — mas não vamos discutir a origem do mal. Temos o mal, contentemo-nos com êle e curemo-lo, se possível.

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O COLAR DA RAINHA 409

O bailio gostava das frases sem resposta; não habituara os cirurgiões dos seus navios a suavizar as palavras.

— É muito perigoso, doutor? — perguntou, mais comovido do que desejava mostrar-se. — Mais ou menos como um corte de navalha no queixo. — Bem. Agradecei ao rei, senhores. Oliveiras, voltarei para ver-te. Oliveiros moveu os olhos e os dedos, como que para agradecer ao mesmo

tempo ao tio que se afastava e ao médico, que o fizera largar a presa. Em seguida, feliz por se achar numa cama, feliz por se ver entregue a um

homem inteligente e compassivo, fingiu adormecer. O facultativo mandou embora toda a gente. O fato é que Oliveiros adormeceu, não sem haver agradecido ao céu

quanto lhe sucedera, ou melhor, o não lhe haver sucedido nenhum mal em circunstâncias tão graves.

Apoderara-se dele a febre, essa febre maravilhosa e regeneradora da humanidade, seiva eterna que floresce no sangue do homem e, servindo aos desígnios de Deus, isto é, do gênero humano, faz germinar a saúde no doente ou carrega o vivente no meio da saúde.

Depois que Oliveiros ruminou, com o ardor dos febris, a cena com Filipe, a cena com a rainha, a cena com o rei, caiu no círculo terrível que o sangue furioso atira, como uma rede, sobre a inteligência. .. Delirou.

Três horas depois, era possível ouvi-lo da galeria em que passeavam alguns guardas; e, tendo-o observado, o cirurgião chamou o seu lacaio e ordenou-lhe que carregasse Oliveiros nos braços. Oliveiros gemeu.

— Cobre-lhe a cabeça com as cobertas. — E que farei com êle? — perguntou o lacaio. — É muito pesado e se debate demais. Vou pedir auxílio a um dos senhores guardas. — És um fracalhão se tens medo de um doente, — observou c velho médico. — Senhor... — E se te parece pesado demais, não és tão forte quanto eu cuidava. Terei de recambiar-te para a Auvergne. Surtiu efeito a ameaça. Gritando, urrando, delirando e gesticulando, Charny

foi carregado como uma pluma pelo criado do Dr. Luís, à vista dos guardas. Estes cercaram o médico e crivaram-no de perguntas. — Senhores, — disse o doutor, berrando mais do que Charny para

encobrir-lhe os gritos, — haveis de compreender que não posso andar uma légua de hora em hora para visitar este doente que me confiou o rei. A vossa galeria fica no fim do mundo.

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410 ALEXANDRE DUMAS

— Para onde o levareis, doutor? — Para o meu apartamento, como bom preguiçoso que sou. Como o sabeis, tenho dois quartos; colocá-lo-ei num deles e, depois de amanhã, se ninguém se intrometer, darei notícias suas. — Mas, doutor, — acudiu o oficial, — garanto-vos que o doente aqui ficará muito bem; todos gostamos do Sr. de Suffren, e . . . — Sei, sei, conheço esses cuidados entre camaradas. O ferido está com sede, são todos muito bonzinhos, dão-lhe de beber, e ele morre. Deus me livre dos cuidados dos senhores guardas! Já me mataram assim dez doentes. O cirurgião ainda estava falando quando Oliveiros já não podia ser ouvido. — Sim! — prosseguiu, com os seus botões, o digno esculápio —tudo isso

está muito bem, é muito lógico. Mas tem um inconveniente, é que o rei há de querer ver o doente... E se êle o vir...ouvirá também... Diabo! Não se pode hesitar. Vou prevenir a rainha, que me dará conselho.

Tendo tomado essa resolução com a presteza do homem cujos segundos são contados pela natureza, o bom doutor inundou de água fresca o rosto do ferido e colocou-o numa cama de modo que êle se não viesse a matar se se mexesse ou caísse. Pôs cadeado nos postigos, fechou a porta com duas voltas de chave e, guardando a chave no bolso, foi procurar a rainha, depois de certificar-se, ouvindo de fora, de que nenhum dos gritos de Oliveiros poderia ser percebido ou compreendido.

Será desnecessário dizer que, para maior precaução, o criado foi encerrado em companhia do doente.

Encontrou à porta a Sra. de Misery, que a rainha mandara para saber notícias do ferido.

Ela insistia em entrar. — Vinde, vinde, senhora, que estou de saída! — Mas, doutor, a rainha está esperando! — Vou procurá-la. — A rainha deseja... — Garanto que a rainha saberá tudo o que deseja saber.Vamos! E afastou-se tão depressa que obrigou a dama de Maria Antonieta a correr

para chegar ao mesmo tempo que êle.

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LI

Aegri Somnia

A RAINHA esperava a resposta da Sra. de Misery, não esperava o médico.

Este entrou com a costumeira familiaridade. — Senhora, — anunciou em voz alta, — o doente pelo qual

Vossa Majestade e o rei se interessam, vai tão bem quanto pode ir uma pessoa que está com febre.

A rainha conhecia o cirurgião; conhecia-lhe o horror às pessoas que, no seu dizer, dão gritos inteiros quando sentem apenas meias dores.

Imaginou que o Sr. de Charny exagerara um pouco a sua situação. As mulheres fortes estão sempre dispostas a achar fracos os homens fortes.

— O ferido, — disse ela, — é um ferido de mentira. — Não sei . . . — tornou o doutor. — Um arranhão... — Não, não, senhora; mas, arranhão ou ferida, está com febre. — Pobre rapaz! Uma febre muito forte? — Terrível. — Sim? — atalhou a rainha assustada; — eu não supunha que assim... de repente... a febre... O cirurgião considerou-a por um momento. — Há febres e febres, — replicou êle. — Meu caro Luís, estais-me assustando. Sois, de hábito, tão tranqüilizador! Francamente, não sei o que tendes esta noite. — Nada de extraordinário. — Homessa! Não parais quieto, olhais para a direita e para a esquerda, com o ar de um homem que desejaria confiar-me um grande segredo. — E quem diz que não? — Eu não disse? Um segredo sobre febre! — Exatamente. — Sobre a febre do Sr. de Charny! — Exatamente. — E procurais-me por causa dele? — Exatamente.

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412 ALEXANDRE DUMAS

— Vamos depressa aos fatos. Sabeis que sou curiosa. Mas comecemos pelo começo. — Como o Joãozinho, não é? — Sim, meu caro doutor. — Pois bem! senhora... — Estou esperando, doutor. — Não, quem está esperando sou eu. — O quê? — Que Vossa Majestade me interrogue. Não sei contar direito,mas quando me perguntam, respondo como um livro. — Perguntei-vos como vai a febre do Sr. de Charny. — Mal começado. Pergunte-me primeiro Vossa Majestade por que cargas d'água o Sr. de Charny está no meu apartamento, num quartinho, em vez de estar na galeria ou nos aposentos do oficial dos guardas. — Seja, pergunto. De fato, é surpreendente. — Pois bem! senhora, eu não quis deixar o Sr. de Charny nessa galeria, nem no quarto do oficial, porque a febre do Sr. de Charny não é uma febre comum. A rainha esboçou um gesto de surpresa. — Que quereis dizer? — Quando está com febre, o Sr. de Charny delira imediata mente. — Oh! — exclamou a rainha, juntando as mãos. — E, — prosseguiu Luís, aproximando-se, — quando delira, o pobre rapaz diz uma série de coisas extremamente delicadas para os ouvidos dos senhores guardas do rei ou de qualquer outra pessoa. — Doutor! — Vossa Majestade não devia interrogar-me, se não quisesse ouvir as respostas. — Dizei sempre, meu caro doutor. E a rainha pegou na mão do bom sábio. — O rapaz talvez seja ateu e, no seu delírio, blasfema. — Não, não. £ pelo contrário, profundamente religioso. — Talvez haja, nesse caso, exaltação em suas idéias? — Exaltação, é isso mesmo. A rainha compôs o semblante e, revestindo-se do admirável sangue frio que

sempre acompanha os atos dos príncipes habituados ao respeito dos outros e à estima de si mesmos, faculdade indispensável aos grandes da terra para dominarem e não se traírem:

— O Sr. de Charny, — disse ela, — foi-me recomendado. É sobrinho do Sr. de Suffren, nosso herói. Já me prestou serviços;

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O COLAR DA RAINHA 413

quero ser, para êle, o que seria uma parenta, uma amiga. Dizei--me, pois, a verdade; devo e quero ouvi-la.

— Pois não posso dizer-lha, — replicou Luís. — E já que Vossa Majestade faz tanto empenho em sabê-la, só conheço um meio: ouça-o pessoalmente. Dessarte, se o rapaz disser alguma inconveniência, Vossa Majestade não se zangará com o indiscreto que houver deixado reslumbrar o segredo nem com o imprudente que o houver abafado. — Aprecio a vossa amizade, — bradou a rainha, — e creio desde já que o Sr. de Charny diz coisas estranhas em seu delírio... — Coisas que Vossa Majestade precisa ouvir urgentemente para poder apreciá-las, — tornou o bom doutor. E pegou delicadamente na mão comovida da rainha. — Mas, primeiro que tudo, cuidado! — advertiu Maria Antonieta. — Nunca dou um passo aqui sem que me acompanhe algum caridoso espião. — Esta noite, o único espião serei eu. É só atravessar o meu corredor, que tem uma porta em cada extremidade. Fecharei a porta pela qual entrarmos, e ninguém poderá seguir-nos. — Entrego-me a vós, meu caro doutor, — disse a rainha. E, travando do braço de Luís, saiu do quarto, palpipante de curiosidade. O esculápio cumpriu a promessa. Rei nenhum, marchando para o

combate ou fazendo um reconhecimento numa praça de guerra; nenhuma rainha, escoltada para uma aventura, foram mais vulgarmente alumiados por um capitão dos guardas ou por um grande oficial do paço.

O cirurgião fechou a primeira porta e, aproximando-se da segunda, aplicou nela o ouvido.

— É aí que está o vosso doente? — Não, senhora, — está no quarto pegado. Se estivesse aqui, Vossa Majestade já o teria ouvido desde o fundo do corredor. Escute só desta porta. Ouvia-se, com efeito, o murmúrio não articulado de algumas queixas. — Êle está gemendo, está sofrendo, doutor. — Não, não, não está gemendo coisa alguma. Está é falando mesmo. Preste atenção, vou abrir a porta.

— Mas não quero entrar no quarto dele! protestou a rainha, recuando. — Nem é isso o que lhe proponho, — conveio o doutor. —Sugiro apenas que Vossa Majestade entre no primeiro quarto e, de

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lá, sem receio de ser vista ou de ver, ouvirá quanto se disser no quarto do ferido.

— Todos esses mistérios, todos esses preparativos, estão-me deixando com medo, — murmurou Maria Antonieta. — Como será então quando Vossa Majestade tiver ouvido! —replicou o médico. E entrou sozinho no quarto de Charny. Vestindo as calças do uniforme, cujas fivelas o bom doutor havia

desatado, com as pernas nervosas e finas presas em meias de seda de espirais opalinas e nacaradas, os braços estendidos como os de um cadáver, rijos entre as mangas de cambraia amarrotada, Charny tentava erguer sobre o travesseiro a cabeça, que lhe pesava mais do que se fosse de chumbo.

Ardente suor lhe escorria, em pérolas, da fronte, colando-lhe às têmporas os anéis soltos do cabelo.

Abatido, inerte, esmagado, não era mais que um pensamento, um sentimento, um reflexo; o corpo só lhe vivia em função dessa chama, sempre animada, e que por si mesma se lhe irritava no cérebro, como o pavio na lamparina de alabastro.

Não foi apenas uma vã comparação que escolhemos, pois essa chama, única existência de Charny, alumiava fantasticamente, suavizando-as, certas minúcias que a memória apenas seria incapaz de traduzir em longos poemas.

Charny estava recontando a si mesmo a entrevista no fiacre com a dama alemã encontrada no trajeto entre Paris e Versalhes.

— Alemã! alemã! — repetia sem cessar. — Sim. Alemã, já sabemos, — acudiu o cirurgião. — No caminho de Versalhes. — Rainha de França! — bradou de repente. — Hein? — disse Luís, olhando para o quarto em que se achava a rainha. — Que diz a isso Vossa Majestade? — O que é horrível, — murmurou Charny, — é amar um anjo,uma mulher, amá-la loucamente, dar por ela a vida, e não ver diante de si, quando a gente se aproxima, senão uma rainha de veludo e ouro, metal ou tecido, mas nenhum coração! — Oh! — exclamou o doutor, despedindo uma gargalhada forçada. Não se advertiu o rapaz da interrupção. — Eu amaria — disse êle, — uma mulher casada. Amá-la-ia com esse

amor selvagem que faz que a gente se esqueça de tudo. Pois bem!. . . eu diria a essa mulher: restam-nos alguns dias bonitos sobre a terra; os que nos esperam fora do nosso amor valerão,acaso, esses dias? Vem, minha adorada, enquanto me amares e eu

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O COLAR DA RAINHA 415

te amar, viveremos a vida dos eleitos. Depois, não faz mal! depois, será a morte, isto é, a vida que vivemos neste momento. Fruamos, portanto, os benefícios do amor.

— Não está mal o raciocínio para um homem com febre, —murmurou o facultativo, — embora essa moral não seja das mais austeras. — Mas os filhos!. . . — bradou Charny a súbitas, colérico, —ela não deixará os dois filhos. — Eis aí o obstáculo, hic nodus, — observou Luís, enxugando o suor da testa de Charny, com uma sublime mistura de zombaria e caridade. — Oh! — voltou o rapaz, insensível a tudo, — os filhos cabem perfeitamente num capote de viagem!... — Ora, Charny, já que carregas a mãe, leve como pena de toutinegra; já que a susténs sem sentir mais que um frêmito de amor em lugar de um fardo, não levarias também os filhos de Maria... Ah!... Êle desferiu um grito terrível. — Os filhos de um rei são tão pesados que a sua falta seria sentida por

metade do mundo! Luís deixou o enfermo e voltou para beira da rainha. Encontrou-a em pé, fria e trêmula. Tomou-lhe a mão. Ela também estava arrepiada.

— Tínheis razão, — assentiu Maria Antonieta. — É mais que um delírio, é um perigo real que correria esse moço se o ouvissem. — Escute! escute! — prosseguiu o doutor. — Não, nem mais uma palavra. — Êle está-se acalmando. Veja, ei-lo que reza. Com efeito, Charny acabava de soerguer-se e juntava as mãos, olhos

arregalados e espantados fitos no vago e quimérico infinito. — Maria, — clamou com voz doce e vibrante, — Maria, bem vi que me amáveis. Oh! não o revelarei a ninguém. O vosso pé, Maria, acercou-se do meu no fiacre e senti-me desfalecer. Vossa mão desceu sobre a minha... não... não direi nada, é o segredo de minha vida. Por mais que me corra o sangue da ferida, Maria,o segredo não sairá com êle. Meu inimigo embebeu a espada no meu sangue; mas se êle conhece um pouco do meu segredo, não conhece o vosso. Não temais, Maria; não me digais sequer que me amais: é inútil; visto que corais, já não tendes o que me revelar. — Oh! oh! — atalhou o doutor. — Agora já não se trata apenas de febre; veja como êle está calmo. . . é... — É?. .. — repetiu a rainha, conturbada. — É um êxtase, senhora: o êxtase parece à memória. É, com efeito, a

memória de uma alma que se lembra do cé

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416 ALEXANDRE DUMAS

— Já ouvi bastante, — murmurou a rainha, tão perturbada que tentou fugir.

Reteve-a o doutor violentamente pela mão. — Senhora, senhora, — disse êle, — que quer Vossa Majestade? — Nada, doutor; nada. — E se o rei quiser ver o seu protegido? — Seria uma desgraça! — Que hei de dizer? — Não tenho idéia, doutor; não tenho sequer uma palavra; este espetáculo horrível cortou-me o coração. — E o extático pegou-lhe a febre, — observou, em voz baixa,o facultativo: — o seu pulso bate pelo menos com cem pulsações. A rainha não respondeu. Desvencilhou a mão e desapareceu.

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LII

Em que se demonstra que a autópsia do coração é mais difícil do que a do corpo

O DOUTOR ficou pensativo, vendo afastar-se a soberana. Logo, falando consigo só e meneando a cabeça:

— Há neste castelo, — murmurou, — mistérios que fogem ao domínio da ciência. Contra uns, armo-me do bisturi e rasgo--lhes a veia para curá-los; contra os outros, armo-me da censura e rasgo-lhes o coração: conseguirei alguma coisa?

Em seguida, como houvesse passado o acesso, fechou os olhos de Charny, que tinham ficado abertos e esgazeados, refrescou-lhe as têmporas com água e vinagre, e dispensou-lhe os cuidados que transformam a atmosfera abrasadora do doente num paraíso de delícias.

Vendo, então, regressar a calma aos traços do paciente, observando que os seus soluços se mudavam lentamente em suspiros e que umas sílabas vagas se lhe escapavam da boca em lugar das palavras furiosas:

— Sim, sim, não havia apenas simpatia, havia influência também, — disse êle; — ocorreu o delírio como que para ir ao encontro da visita que o doente recebeu; os átomos humanos se deslocam como, no reino vegetal, as poeiras fecundantes; o pensamento tem comunicações invisíveis, os corações têm relações secretas.

Súbito, estremeceu e voltou-se a meio, olhos e ouvidos fitos. — Quem estará ainda aí? — perguntou, num sussurro. De feito, acabava de ouvir uma espécie de murmúrio e um roçar de

vestido no fundo do corredor. — É impossível que seja a rainha, — continuou, no mesmo tom; — ela

não voltaria atrás de uma resolução provavelmente invariável. Vamos a ver. E foi mansamente abrir outra porta, que dava também para o corredor.

Espichando a cabeça sem fazer barulho, viu, a dez passos de si, uma mulher envolta em longos vestidos de pregas imóveis, semelhante à estátua fria e inerte do desespero.

Era noite fechada, e a fraca luz colocada no corredor não podia iluminá-lo de um extremo a outro; mas por uma janela

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418 ALEXANDRE DUMAS

aberta passava um raio de lua que incidia sobre a mulher, tornando-a visível até que uma nuvem passasse entre ela e o raio.

O médico tornou a entrar devagarinho, transpôs o espaço que separava uma porta da outra e, silenciosa mas rapidamente, abriu a porta atrás da qual se escondera a mulher.

Ela soltou um grito, estendeu as mãos e encontrou as do Dr. Luís. — Quem está aí? — perguntou êle com uma voz em que havia mais

piedade que ameaça; pois adivinhava, pela própria imobilidade daquela sombra, que ela estava escutando muito mais com o coração do que com os ouvidos.

— Eu, doutor, eu, — respondeu uma voz doce e triste. Embora o timbre não fosse desconhecido para o médico, não despertou nele mais que uma vaga e distante lembrança. — Eu, Andréia de Taverney, doutor. — Ah! meu Deus! que aconteceu? — bradou o cirurgião. — Ela sentiu-se mal? — Ela! — bradou Andréia, — ela! Ela, quem? Percebeu o médico que acabava de cometer uma imprudência. — Perdão, mas vi há pouco afastar-se uma mulher. Éreis vós,talvez? — Ah! sim, — disse Andréia, — esteve aqui uma mulher antes de mim, não esteve? E proferiu essas palavras com ardente curiosidade, que não deixou dúvida

nenhuma no espírito do médico sobre o sentimento que as ditara. — Minha querida filha, — tornou o doutor, — parece-me que estamos jogando o jogo dos disparates. De quem me estais falando? Que me quereis? Explicai-vos. — Doutor, — redargüiu Andréia com voz tão triste, que traspassou o coração do interlocutor, — meu bom doutor, não tenteis enganar-me, vós que tendes o hábito de dizer-me a verdade; confessai que uma mulher esteve aqui há pouco, confessai-mo, que também a vi. — E quem vos disse que não veio ninguém? — Sim; mas uma mulher, uma mulher, doutor. — Uma mulher, é claro; a menos que desejeis sustentar a tese de que uma mulher só é mulher até aos quarenta anos. — A que veio tinha quarenta anos? — bradou Andréia, respirando pela primeira vez. — Ah! — Quando digo quarenta, ainda lhe perdoo uns cinco, ou seis,bem contados. Mas precisamos ser galantes com as amigas, e a Sra. de Misery é minha amiga, e até uma boa amiga. — A Sra. de Misery? — Sem dúvida. — Foi ela quem veio?

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O COLAR DA RAINHA 419

— E por que diabo não vos diria eu se fosse outra? — Oh! é que... — Em verdade, as mulheres são todas iguais, inexplicáveis; no entanto, eu cria conhecer-vos. Pois agora vejo que não vos conheço melhor do que as outras. É uma coisa tremenda. — Meu bom e querido doutor! — Basta.Vamo aos fatos. Considerou-o Andréia com inquietude. — Ela sentiu-se mal? — insistiu Luís. — Quem? — Ora, essa! A rainha. — A rainha! — Sim, a rainha, para a qual a Sra. de Misery veio buscar-me há pouco; a

rainha, que está com sufocações, palpitações. Triste doença, minha querida senhorita, incurável. Dai-me, portanto, notícias dela se vindes da sua parte, e voltemos para junto de Sua Majestade.

E o Galeno fêz um movimento indicativo de que desejava afastar-se do lugar em que estava.

Deteve-o, porém, Andréia docemente e respirando mais à vontade. — Não, meu caro doutor, — disse ela, — não venho da parte da rainha. Eu até ignorava que ela não estava bem. Pobre rainha! Se eu tivesse sabido... Perdoai-me, doutor, já nem sei o que digo. — É o que estou vendo. — Não só não sei o que digo, como também não sei o que faço. — Oh! o que estais fazendo sei-o eu: estais-vos sentido mal. Andréia, com efeito, largara o braço do médico; a mão, fria, recaíra-lhe ao longo do corpo e ela se inclinava, lívida, gelada. O facultativo a reergueu, reanimou, realentou. Andréia fêz sobre si mesma violento esforço. Aquela alma vigorosa, que

nunca se deixara abater, nem pela dor física, nem pela dor moral, entesou as molas de aço.

— Doutor, — voltou ela, — sabeis que sou nervosa e que a escuridão me causa terrores horríveis? Perdi-me na escuridão, daí o estado estranho em que me encontro. — E por que diabo, nesse caso, vos espondes à escuridão? Quem vos obriga a isso? Ninguém vos mandou aqui, nada aqui vos chamava. — Eu não disse nada, doutor; disse ninguém. — Ah! ah! sutilezas, minha querida paciente. Mas estamos aqui mal acomodados. Vamos para outro lugar, sobretudo se a parlenga promete prolongar-se. — Dez minutos, doutor, não vos peço mais do que isso.

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420 ALEXANDRE DUMAS

— Dez minutos, seja. Mas não em pé; as minhas pernas recusam-se terminantemente a esse gênero de diálogos; vamos sentar-nos. — Onde? — No banco do corredor, se quiserdes. — E acreditais que lá ninguém poderá ouvir-nos, doutor? —perguntou Andréia, receosa. — Ninguém. — Nem sequer o ferido que aí está? — continuou ela, no mesmo tom, indicando ao médico o quarto iluminado por um suave reflexo azul, em que mergulhava o seu olhar. — Não, — afirmou o doutor, — nem sequer esse pobre rapaz; e posso até acrescentar que, se alguém nos ouvir, decerto não será êle. Andréia juntou as mãos. — Oh! meu Deus! Quer dizer, então, que está muito mal? — Não está bem. Mas falemos do que vos traz; depressa,minha filha, depressa; sabeis que a rainha está à minha espera! — Pois é o que estamos fazendo, doutor, — replicou Andréia com um suspiro. — Como! O Sr. de Charny? — É dele que se trata. Vim saber notícias suas. O silêncio com que o Dr. Luís acolheu as palavras, que êle, no entanto,

devia estar esperando, foi glacial. De fato, o cirurgião censurava naquele momento a atitude de Andréia e a atitude da rainha; via as duas mulheres movidas pelo mesmo sentimento e, diante dos sintomas, supunha reconhecer nesse sentimento um violento amor.

Andréia, que ignorava a visita da rainha, e não podia ler no espírito do médico tudo o que nele havia de triste benevolência e misericordiosa piedade, tomou o silêncio do facultativo por um reproche, talvez um tanto duramente formulado, e reergueu-se como soía debaixo dessa pressão, embora continuasse muda.

— Parece-me, doutor, que podeis desculpar-me à atitude, —tornou ela, — pois o Sr. de Charny foi ferido num duelo, e o ferimento quem lho produziu foi meu irmão. — Vosso irmão! — exclamou o Dr. Luís. — Foi o Sr. Filipe de Taverney quem feriu o Sr. de Charny? — Sim, senhor. — Eu ignorava essa circunstância. — Mas agora que a sabeis, não vos parece que eu deva indagar do estado em que êle se encontra? — De fato, minha filha, — volveu o bom doutor, encantado por encontrar um pretexto para a indulgência. — Eu não podia adivinhar acausa verdadeir

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O COLAR DA RAINHA 421

E acentuou as últimas palavras de modo que provasse a Andréia que lhe adotava com reservas as conclusões.

— Vamos, doutor, — instou Andréia, apoiando as mãos no braço do interlocutor e encarando com êle, — dizei o que estais pensando. — Eu já disse. Por que haveria de fazer restrições mentais? — Um duelo entre fidalgos é coisa corriqueira, é um acontecimento de todos os dias. — Só poderia ter importância esse duelo se se houvessem os nossos dois rapazes batido por uma mulher. — Por uma mulher, doutor? — Sim. Por vós, por exemplo. — Por mim! — e Andréia despediu um suspiro profundo. —Não, não foi por mim que o Sr. de Charny se bateu, doutor. O médico pareceu contentar-se da resposta. Mas, de um modo ou de

outro, quis ter a explicação do suspiro. — Então, — arriscou, — já compreendi: foi vosso irmão quem vos

pediu um boletim exato da saúde do ferido. — Sim! foi meu irmão! Sim, doutor, — exclamou Andréia. O cirurgião encarou nela por sua vez. — O que tens no coração, alma inflexível, hei de sabê-lo, —

murmurou. Logo, em voz alta: — Nesse caso, — prosseguiu, — vou dizer-vos toda a verdade,como deve ser dita às pessoas interessadas em conhecê-la. Transmiti-a a vosso irmão, para que êle tome as providências cabíveis...Compreendeis. — Não, doutor! Estou procurando saber o que quereis dizer com estas palavras: Para que êle tome as providências cabíveis. — É simples... Um duelo, mesmo agora, não é coisa que agrade ao rei. Sua Majestade não tem feito observar os éditos,é verdade; mas quando um duelo provoca escândalo, o rei exila ou prende. — É verdade. — E quando, por desgraça, sobrevêm a morte de um dos contendores, o rei é implacável. Por conseguinte, aconselhai a vosso irmão que se ponha em lugar seguro por algum tempo. — Doutor, — bradou Andréia, — doutor, está muito mal, então, o Sr. de Charny? — Escutai, minha querida senhorita, prometi-vos a verdade, e a verdade é esta: estais vendo o pobre rapaz dormindo, ou melhor, estertorando naquele quarto? — Sim, doutor, — replicou Andréia com voz entrecortada; — e então?... — Então, se êle não estiver salvo amanhã há estas horas, se a febre que acaba de declarar-se e que o devora não tiver cedido, amanhã há estas horas o Sr. de Charny será um homem morto.

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422 ALEXANDRE DUMAS

Sentiu Andréia que ia desferir um grito, comprimiu a garganta, enfiou as unhas na carne, para extinguir na dor física um pouco da angústia que lhe lacerava o coração.

Luís não lhe pôde ver nos traços os medonhos estragos produzidos por essa luta.

Dominava-se Andréia espartânicamente. — Meu irmão, — disse ela, — não fugirá; bateu-se com o Sr. de Charny como um homem de bem; se teve à desdita de feri-lo,fê-lo em legítima defesa; se o matou, Deus o julgará. — Ela não veio por conta própria, — cuidou o médico entre si; — veio, portanto, de parte da rainha. Vejamos se Sua Majestade levou a leviandade até a esse ponto. — Que foi o que a rainha achou desse duelo? — perguntou. — A rainha? Não sei, — retrucou Andréia. — Que importa a rainha? — Suponho que ela goste do Sr. de Taverney? — O Sr. de Taverney está são e salvo; esperemos que Sua Majestade defenda pessoalmente meu irmão, se o acusarem. Vencido nos dois lados da sua dupla hipótese, Luís desistiu. — Não sou fisiologista, — refletiu, — sou apenas cirurgião. Por que diabo, quando conheço tão bem o jogo dos músculos e dos nervos, hei de meter-me no jogo das paixões e dos caprichos femininos? — Senhorita, soubestes o que desejáveis saber. Fazei ou não fugir o Sr. de Taverney, isso é convosco. Quanto a mim, tenho por obrigação tentar salvar o ferido... esta noite, pois do contrário a morte, que continua tranqüilamente a sua obra, mo levaria nas próximas vinte e quatro horas. Adeus. E fechou, delicada mas definitivamente, a porta atrás dela. Andréia passou a mão convulsa pela testa, viu-se sozinha, sozinha com a

aterradora realidade. Teve a impressão de que a morte, da qual acabava de falar tão friamente o médico, descia sobre aquele quarto e passava, amortalhada, pelo corredor escuro.

O vento da fúnebre aparição gelou-lhe os membros. Voltou correndo para os seus aposentos, fechou a porta do quarto com três voltas de chave e, caindo de joelhos sobre o tapete da cama:

— Meu Deus! — bradou com selvagem energia, entre torrentes de lágrimas, — meu Deus! não sois injusto, não sois insensato; não sois cruel, meu Deus! Podeis tudo, não deixareis morrer esse rapaz, que não fêz mal algum e é querido neste mundo. Meu Deus! nós, pobres humanos, só acreditamos realmente no poder da vossa beneficência, embora em todas as ocasiões tremamos ante o poder de vossa cólera. Mas eu!. . . eu. . . que vos suplico, já fui bastante atribulada, já sofri muito sem haver cometido crime algum. No entanto, nunca me queixei, nem sequer a vós; nunca duvidei de

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O COLAR DA RAINHA 423

vós. Se hoje que vos rogo; se hoje que vos conjuro; se hoje que vos peço, que quero a vida de um rapaz... se hoje ma recusásseis, ó meu Deus! direi que empregastes contra mim todas as vossas forças, e que sois um Deus de sombrias cóleras, de vinganças desconhecidas; direi... Oh! estou blasfemando, perdão! estou blasfemando! ... e não me feris! Perdão, perdão! agora conheço que sois realmente o Deus da clemência e da misericórdia.

Sentiu Andréia que a vista se lhe extinguia, que se lhe dobravam os músculos; deixou-se cair, inanimada, cabelos soltos, e quedou como um cadáver sobre o pavimento.

Quando despertou desse sono frio, e tudo lhe voltou ao espírito, fantasmas e dores:

— Meu Deus! — murmurou, com sinistro acento, — fostes misericordioso; castigastes-me, eu o amo!... Sim, amo-ol É o bastante, não é? Matar-mo-eis agora?

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LIII

Delírio DEUS ouvira, sem dúvida, a prece de Andréia. O Sr. de Charny não

sucumbiu ao acesso de febre. No dia seguinte, ao passo que ela absorvia com avidez todas as notícias que lhe chegavam do ferido, este, graças aos cuidados do bom Dr. Luís, passava da morte à vida. A inflamação cedera ante a energia e o remédio. Principiava a cura.

Tendo salvo Charny, o Dr. Luís entrou a ocupar-se dele muito menos; o paciente deixava de interessar-lhe. Para o médico é bem pouca coisa o vivo, mormente quando está convalescendo ou passando bem.

Não obstante, ao cabo de oito dias, durante os quais Andréia se tranqüilizou completamente, Luís, lembrado ainda de todas as manifestações do doente durante a crise, julgou de bom alvitre fazê-lo transportar para um sítio afastado. Queria expatriar o delírio.

Entretanto, logo às primeiras tentativas, Charny se revoltou; cravou no médico os olhos fuzilantes de cólera, disse que estava em casa do rei e que ninguém tinha o direito de escorraçar um homem a quem Sua Majestade dava asilo.

O doutor, que não tinha paciência com os convalescentes rebeldes, fêz entrar pura e simplesmente quatro criados no quarto, ordenando-lhes que transportassem o ferido.

Mas Charny se agarrou à grade da cama e golpeou violentamente um dos homens, ameaçando os outros como Carlos XII ameaçava Bender.

O Dr. Luís tentou persuadi-lo com argumentos. O rapaz a princípio, mostrou-se assaz lógico, mas como os criados insistissem, fêz tamanho esforço que a ferida se reabriu e, com o sangue, fugiu--lhe a razão. Teve um acesso de delírio mais violento que o primeiro.

Começou a gritar que queriam afastá-lo para o privar das visões que tivera durante o sono, mas que isso era debalde, que as visões continuariam a sorrir-lhe, que o amavam e que viriam vê-lo a despeito do médico: a mulher que o amava ocupava uma posição que a colocava acima de qualquer recusa.

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O COLAR DA RAINHA 425

A essas palavras, o trêmulo facultativo se apressou de dispensar os criados, recomeçou a tratar da ferida desde o princípio e, decidido a cuidar da razão depois de haver cuidado do corpo, repôs a matéria em estado satisfatório, mas não atalhou o delírio. Isso o assustou, visto que do desvario podia o doente passar à loucura.

Tudo piorou, um dia, de tal sorte que o Dr. Luís pensou nos remédios heróicos. O doente não só se perdia, mas perdia também a rainha; à força de falar gritava, à força de lembrar-se inventava; e o pior é que, nos momentos de lucidez, que eram muitos, mostrava-se mais louco do que nos momentos de loucura.

Tremendamente atrapalhado, não podendo firmar-se na autoridade do rei, porque nela se firmava também o doente, decidiu contar tudo à rainha e aproveitou, para fazê-lo, um momento em que Charny estava dormindo, cansado de contar os seus sonhos e evocar a sua visão.

Encontrou Maria Antonieta pensativa e radiante há um tempo, na suposição de que o médico ia levar-lhe boas novas do paciente.

Surpreendeu-se, porém; desde a primeira pergunta, Luís respondeu sem rebuços que o doente estava muito doente.

— Como! — exclamou a rainha, — ontem êle estava muito bem! — Não, senhora, estava muito mal. — Mandei Misery e vós lhe entregastes um bom boletim. — Eu me iludia e queria iludir Vossa Majestade. — Que significa isso? — voltou a rainha, muito pálida, — se êle está mal, por que mo ocultar? Que hei de temer, doutor, senão uma desgraça, infelizmente, muito comum? — Senhora. .. — E se está bem, por que me deixar numa inquietude muito natural, visto que se trata de um bom servidor do rei?... Vamos, respondei francamente: sim ou não! Que há sóbria doença? Que há sobre o doente? Algum perigo? — Para êle menos que para outros, senhora. — Já começam os enigmas, doutor, — acudiu a rainha, impaciente. — Explicai-vos. — É difícil, senhora, — retrucou o cirurgião. — Basta-lhe saber que o mal do Conde de Charny é inteiramente moral. A ferida não passa de um simples acessório dos sofrimentos, um pretexto para o delírio. — Um mal moral! O Sr. de Charny! — Sim, senhora; e chamo moral ao que não se analisa com o escalpelo. Poupe-me Vossa Majestade ao enleio de dizer-lhe o resto. — Quereis dizer que o conde. . . — insistiu a rainha. — Vossa Majestade insiste? — inquiriu o doutor. — É claro que sim.

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426 ALEXANDRE DUMAS

— Pois quero dizer que o conde está apaixonado. Vossa Majestade pede uma explicação: explico-me.

A rainha fêz um leve movimento de ombros, como quem diz: grande coisa!

— E crê Vossa Majestade que alguém sare assim de um ferimento? — volveu o facultativo; — não, o mal se agrava e, do delírio passageiro, o Sr. de Charny cairá numa monomania mortal. E nesse caso... — Nesse caso, doutor? — Vossa Majestade terá perdido o rapaz. — Francamente, doutor, são surpreendentes os vossos modos. Eu terei perdido o rapaz! Serei, porventura, a causa da loucura dele, se é que êle está louco? — Sem dúvida. — Isso é revoltante! — Se Vossa Majestade não é a causa neste momento, — prosseguiu o inflexível doutor, dando de ombros, — sê-lo-á mais tarde. — Dai-me conselhos, então, já que é esse o vosso ofício, — pedia a rainha, o seu tanto mais abrandada. — Devo receitar? — Se o quiserdes. — Pronto: seja o rapaz curado pelo bálsamo ou pelo ferro; e a mulher cujo nome invoca a todo instante o mate ou cure. — Ou oito ou oitenta, — interrompeu Maria Antonieta, voltando a agastar-se. — Matar... curar... grandes palavras! Acaso se mata um homem com rigor? Acaso se cura um pobre louco com um sorriso? — Se Vossa Majestade também é incrédula, — acudiu o cirurgião, — não posso fazer outra coisa senão apresentar-lhe os meus humílimos respeitos. — Mas, vamos a ver: em primeiro lugar, trata-se de mim? — Não sei, e não quero saber; repito-lhe tão-sòmente que o Sr. de Charny é um louco razoável, que a razão pode, ao mesmo tempo, conduzir à loucura e à morte, e que a loucura pode conduzir à razão e à cura. Assim, quando Vossa Majestade quiser livrar este palácio de gritos, sonhos e escândalos, tomará uma decisão. — Qual? — Aí é que são elas! Só dou receitas, não dou conselhos. Terei, porventura, a certeza de haver ouvido o que ouvi, de haver visto o que viram meus olhos? — Muito bem, suponde que eu vos compreenda. Que resultará disso? — Duas felicidades: uma, a melhor para Vossa Majestade e para todos nós, é que o doente, ferido em pleno coração pelo infalível estilete que se chama razão, verá terminar a sua agonia que

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O COLAR DA RAINHA 427

está começando; a outra... bem! a outra... perdoe-me Vossa Majestade se caí na asneira de ver duas saídas para o labirinto. Há uma só para Maria Antonieta, para a rainha de França.

— Compreendo; falastes com franqueza, doutor. Cumpre que a mulher pela qual o Sr. de Charny perdeu a razão lha devolva, por bem ou por mal. — É isso mesmo! — Cumpre que ela tenha a coragem de ir arrancar-lhe os sonhos, isto é, a serpente roedora que vive escondida nas profundezas de sua alma. — Sim, Majestade. — Mandai avisar alguém; a Srta. de Taverney, por exemplo. — A Srta. de Taverney! — repetiu o doutor. — Sim, disporeis tudo de modo que o ferido nos receba convenientemente. — Muito bem, senhora. — Sem nenhuma contemplação. — Assim é preciso. — Mas, — murmurou a rainha, — é mais triste do que imaginais arriscar assim a vida ou a morte de um homem. — É o que faço todos os dias quando me acerco de uma moléstia desconhecida. Devo atacá-la pelo remédio que mata o mal, ou pelo remédio que mata o doente? — Estais certo de matar o doente, não é verdade? — observou Maria Antonieta, estremecendo. — Ora! — tornou o doutor com ar sombrio, — ainda que morresse um homem pela honra de uma rainha, quantos não morrem todos os dias pelo capricho de um rei? Vamos, senhora, vamos! Suspirou a rainha e seguiu o velho médico, sem ter podido encontrar

Andréia. Eram onze horas da manhã; completamente vestido, Charny estava

dormindo numa poltrona após a agitação de uma noite terrível. Os postigos do quarto, cuidadosamente fechados, deixavam passar apenas um pálido reflexo do dia. Tudo se dispusera para c doente de modo que não lhe ferisse a sensibilidade nervosa, causa primeira de seus padecimentos.

Nenhum ruído, nenhum contacto, vista nenhuma. O Dr. Luís prevenia habilmente todos os pretextos de uma recrudescência e, no entanto, decidido a desfechar um grande golpe, não recuava diante de uma crise que poderia matar-lhe o doente. £ verdade que também poderia salvá-lo.

Vestindo trajos matutinos, penteada com displicente elegância, entrou bruscamente a rainha no corredor que levava ao quarto de Charny. Recomendara-lhe o médico que não hesitasse, que não experimentasse, mas que se apresentasse de chofre, resoluta, para produzir um efeito violento.

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428 ALEXANDRE DUMAS

Ela virou, portanto, tão depressa o trinco cinzelado da primeira porta da antecâmara, que uma pessoa apoiada à porta do quarto de Charny, uma mulher envolta em sua capa, mal teve tempo para endireitar-se e assumir uma atitude, cuja tranqüilidade lhe desmentiam a fisionomia transtornada e as mãos trêmulas.

— Andréia! — exclamou, espantada, a rainha. — Tu aqui? — Eu! — replicou Andréia conturbada e pálida, — eu! sim, Majestade. Mas Vossa Majestade também não está aqui? — Oh! oh! temos complicações, — murmurou o doutor. — Procurei-te por toda à parte; onde estavas? Havia nas palavras da rainha um tom que não era o de sua costumeira

bondade. Dir-se-ia o prelúdio de um interrogatório, o germe de uma suspeita. Andréia teve medo; receava principalmente que o inconsiderado de sua

atitude lhe traísse os sentimentos, tão assustadores para ela mesma. Daí que, a despeito da sua soberba, decidisse mentir pela segunda vez.

— Aqui, como Vossa Majestade está vendo. — Sem dúvida; mas como? — Senhora, — replicou ela, — disseram-me que Vossa Majestade me havia mandado chamar; por isso, vim. A rainha, cuja desconfiança ainda não se dissipara de todo, insistiu. — Que fizeste para adivinhar aonde eu ia? — Foi fácil, senhora; Vossa Majestade estava com o Sr. Dr. Luís, e foi vista atravessando os aposentos particulares; não podia ter, evidentemente, outro destino que não este pavilhão. — Bem adivinhado, — voltou a rainha, indecisa ainda mas já sem dureza, — bem adivinhado. Andréia fêz um derradeiro esforço. — Senhora, — disse, sorrindo, — se Vossa Majestade trazia a intenção de esconder-se, não devia ter-se mostrado nas galerias, co mo há pouco se mostrou, para vir aqui. Quando a rainha atravessa o terraço, a Srta. de Taverney a vê do seu apartamento, e não é difícil seguir ou preceder alguém visto de longe. — Ela tem razão, — observou a rainha, — cem vezes razão. Tenho o desgraçado hábito de nunca adivinhar; e como reflito pouco, não creio nas reflexões dos outros. Sentia talvez a rainha que teria necessidade de indulgência, visto que

tinha precisão de uma confidente. De resto, não sendo a sua alma um composto de coqueteria e desconfiança,

como a alma das mulheres vulgares, tinha fé nas suas amizades, sabendo que podia amar. As mulheres que desconfiam de si mesmas, desconfiam muito mais ainda das outras. A grande infelicidade que pune as sécias é que nunca se crêem amadas de seus amantes.

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O COLAR DA BAINHA 429

Maria Antonieta esqueceu, portanto, a impressão que lhe causara a Srta. de Taverney diante da porta de Charny. Pegou na mão de Andréia, fê-la virar a chave da porta e, passando na frente com extrema rapidez, entrou no quarto do doente ao passo que o médico ficava do lado de fora em companhia de Andréia.

Assim que esta última viu desaparecer a rainha, ergueu para o céu um olhar cheio de cólera e de dor, cuja expressão semelhava uma imprecação furiosa.

Travou-lhe do braço o bom doutor e pôs-se a percorrer com ela o corredor, dizendo-lhe:

— Acreditais que seja bem sucedida? — Bem sucedida em que, Santo Deus? — acudiu Andréia. — Em fazer transportar para outro lugar esse pobre louco, que morrerá aqui se a febre durar um pouco mais.

— E poderá sarar longe daqui? — bradou Andréia. Surpreso, inquieto, o cirurgião encarou com ela. — Creio que sim, — disse. — Oh! tomara, então, que seja bem sucedida! — exclamou a pobre

moça.

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LIV

Convalescença ENTREMENTES, a rainha se endereçara diretamente à poltrona de

Charny. Este ergueu a cabeça ao ruído que faziam os chapins sobre o assoalho. — A rainha! — murmurou, tentando erguer-se. — A rainha, sim, senhor, — deu-se pressa em dizer Maria Antonieta, — a rainha que sabe o quanto forcejais por perder a razão e a vida, a rainha que ofendeis em vossos sonhos, a rainha que ofendeis desperto, a rainha que zela pela sua honra e pela vossa segurança! Eis por que vos procura, senhor, e não é assim que devíeis recebê-la. Levantara-se Charny tremulo, desvairado; às últimas palavras, porém,

deixara-se escorregar sobre os joelhos, tão esmagado pela dor física e pela dor moral que, inclinado como um criminoso, não queria nem podia levantar-se.

— Será possível, — continuou a rainha, comovida por aquele respeito e aquele silêncio, — será possível que um fidalgo, renomado outrora entre os mais leais, persiga como inimigo a reputação de uma mulher? Pois notai uma coisa, Sr. de Charny, desde o nosso primeiro encontro, não foi a rainha que vistes e que vos mostrei, foi uma mulher, e nunca deveríeis tê-lo esquecido.

Arrastado por essas palavras saídas do coração, Charny quis tentar articular qualquer coisa em sua defesa; Maria Antonieta, no entanto, não lhe deu tempo.

— Que farão os meus inimigos, — prosseguiu, — se parte de vós o exemplo da traição? — Traição. . . — balbuciou o moço. — Escolhei, senhor: ou sois um insensato, e vou privar-vos dos meios de fazer o mal; ou sois um traidor, e vou punir-vos. — Não diga, senhora, que sou um traidor. Na boca dos reis essa acusação precede a sentença de morte; na boca de uma mulher, desonra. Rainha, mate-me; mulher, poupe-me. — Estais na posse de vossas faculdades, Sr. de Charny? — sobre veio à rainha com voz alterada. — Estou, senhora.

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O COLAR DA RAINHA 431

— Tendes consciência de vossas culpas para comigo, de vosso crime para com. . . o rei? — Meu Deus! — murmurou o infortunado. — Pois, esquecei-lo com demasiada facilidade, senhores fidalgos! O rei é o marido da mulher que todos insultais erguendo os olhos para ela; é o pai de vosso futuro amo, o meu delfim. É um homem maior e melhor do que todos vós, um homem que venero e amo. — Oh! — murmurou Charny, arrancando do peito um surdo gemido e sendo obrigado, para não cair, a apoiar uma das mãos no chão. O seu grito traspassou o coração da rainha. Ela leu no apagado olhar do

rapaz que êle acabava de ser mortalmente ferido e só se salvaria se ela mesma arrancasse da ferida o dardo que nela fincara.

Foi porque, misericordiosa e doce, teve medo da palidez e da fraqueza do culpado e por um triz não chamou por socorro.

Refletiu, porém, que o médico e Andréia interpretariam mal o desmaio do doente. Ergueu-o com as próprias mãos.

— Falemos, — disse, — eu como rainha e vós como homem. O Dr. Luís tentou curar-vos; esse ferimento, que não era nada, está-se agravando com as extravagâncias de vosso cérebro. Quando se curará a ferida? Quando deixareis de dar ao bom doutor o espetáculo escandaloso de uma loucura que o inquieta? Quando partireis do castelo? — Senhora, — balbuciou Charny, — Vossa Majestade está-me mandando embora. Eu vou, eu vou. E fêz um movimento tão violento para partir que, perdendo o equilíbrio,

foi cair, cambaleante, nos braços da rainha que lhe barrava a passagem. Mal sentiu êle o contacto daquele peito ardente que o retinha, mal vergou

sob a involuntária pressão do braço que o segurava, a razão desamparou-o de todo, a boca se lhe abriu para deixar passar um sopro devorador que não era uma palavra e não ousava ser um beijo.

A própria rainha, queimada por esse contacto, vencida por aquela fraqueza, não teve tempo de acomodar o corpo inanimado na poltrona, e quis fugir; mas a cabeça de Charny caíra para trás, batendo na madeira do espaldar. Um leve tom róseo lhe coloria a escuma dos lábios, uma gota rósea e quente lhe caíra da fronte sobre a mão de Maria Antonieta.

— Oh! tanto melhor, — murmurou êle, — tanto melhor! Morro às mãos de Vossa Majestade.

A rainha esqueceu tudo. Voltou, ergueu Charny nos braços, aconchegou do seio a sua cabeça morta e apoiou a mão gelada sobre o coração do rapaz.

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432 ALEXANDRE DUMAS

O amor provocou um milagre: Charny ressuscitou. Abriu os olhos, a visão sumiu. Apavorava-se a mulher de haver deixado uma lembrança onde supunha deixar apenas um derradeiro adeus.

Deu três passos na direção da porta com tamanha precipitação, que Charny mal teve tempo de agarrar-lhe a fímbria do vestido, bradando:

— Senhora, em nome do respeito que consagro a Deus, menor que o respeito que dedico a Vossa Majestade... — Adeus! adeus! — disse a rainha. — Senhora! perdoe-me! — Eu vos perdoo, Sr. de Charny. — Um último olhar, senhora! — Sr. de Charny, — volveu a rainha, tremendo de comoção e de cólera, — se não fordes o último dos homens, esta noite, amanhã, estareis morto ou longe do castelo. Uma rainha pede quanto ordena nesses termos. Juntando as mãos,

inebriado, Charny arrastou-se, de joelhos, até aos pés de Maria Antonieta. Esta já abrira a porta para fugir mais depressa ao perigo. Andréia, cujos olhos devoravam a porta desde o princípio da entrevista, viu o

rapaz prostrado, a rainha emocionadíssima; viu os olhos dele resplendentes de esperança e de orgulho, os olhos dela amortecidos, cravados no chão.

Ferida em pleno coração, alucinada, cheia de ódio e desdém, não curvou a cabeça. Quando viu voltar a rainha, pareceu-lhe que Deus dera demais àquela mulher, dando-lhe como supérfluo um trono e a beleza, pois acabava de dar-lhe meia hora com o Sr. de Charny.

O doutor, por sua vez, via tantas coisas que não podia observar nenhuma. Preocupado com o êxito de negociação entabulada pela rainha, contentou-se

em dizer: — E então, senhora? A rainha levou um minuto para se recompor e reencontrar a voz, abafada

pelas batidas do coração. — Que fará êle? — perguntou o médico. — Partirá, — murmurou a soberana. E sem atentar para Andréia, que franzia o cenho, e para Luís, que esfregava

as mãos, atravessou com passo rápido o corredor da galeria, cobriu-se maquinalmente com a capa com fofos de renda e voltou aos seus aposentos.

Andréia apertou a mão do doutor, que corria para junto do doente; em seguida, com passo solene como o de uma sombra, recolheu ao seu quarto, cabeça baixa, olhar parado e espírito ausente.

Não pensara sequer em pedir as ordens da rainha. Para uma natureza como a sua, a rainha não era nada: a rival era tudo.

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O COLAR DA RAINHA 433

Entregue de novo aos cuidados de Luís, Charny já não parecia o homem da véspera.

Forte até ao exagero, temerário até à fanfarronice, crivou o bom do cirurgião com perguntas tão insistentes e enérgicas sobre a sua próxima convalescença, o regime que deveria seguir, os meios de transporte, que Luís acreditou numa recaída mais perigosa ainda, motivada por uma mania de outra ordem.

Mas Charny não tardou em desenganá-lo; lembrava esses ferros avermelhados ao contacto do fogo, cuja coloração empalidece à proporção que diminui a intensidade do calor. O ferro, negro, já não fala à vista, mas ainda é bastante ardente para devorar o que quer que se lhe apresente.

Luís viu o rapaz retomar a calma e a lógica dos bons dias. Mostrou-se realmente Charny tão razoável que se julgou na obrigação de explicar ao médico a repentina mudança de resolução.

— A rainha, — disse êle, — curou-me melhor envergonhando-me, do que a vossa ciência, meu caro doutor, o teria feito com os mais excelentes remédios; levar-me pelo amor-próprio é dòmar-me como se doma um cavalo com o freio. — Tanto melhor, tanto melhor, — murmurava o doutor. — Sim, lembro-me de um espanhol, e os espanhóis são muito fanfarrões, que me dizia um dia, para provar-me a sua força de vontade, que lhe bastara, num duelo em que fora ferido, querer reter o sangue para que o sangue não corresse e não alegrasse os olhos do adversário. Ri-me do espanhol, mas o caso é que sou meio parecido com êle; se a febre e o delírio que me reprochais devessem reaparecer, aposto que eu os repeliria, dizendo: "Delírio e febre, não tornareis a aparecer". — Temos exemplos desse fenômeno, — disse gravemente o médico. — Entretanto, permiti que eu vos felicite. Estais moralmente curado? — Estou! — Pois bem, não demorareis em ver as relações que existem entre o moral e o físico do homem. É uma teoria tão bonita que eu seria capaz de escrever um livro sobre ela, se tivesse tempo. São de espírito, estareis são de corpo dentro em oito dias. — Obrigado, meu querido doutor! — E, para começar, partireis? — Quando quiserdes. Imediatamente. — Esperemos a noite. Moderemo-nos. Os extremos são sempre perigosos. — Esperemos a noite, doutor. — Ireis para longe? — Para o fim do mundo, se fôr preciso.

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434 ALEXANDRE DUMAS

— É muito longe para a primeira saída, — observou o cirurgião com a mesma fleuma. — Contentemo-nos, por ora, com Versalhes. — Pois seja Versalhes, já que assim o quereis. — Parece-me, — volveu o médico, — que o fato de haverdes curado um ferimento não é razão para que vos expatrieis. Esse estudado sangue frio acabou de pôr Charny de prevenção. — É verdade; tenho uma casa em Versalhes. — Muito bem! isso resolve o nosso caso: para lá ireis esta noite. — Não me compreendestes bem, doutor; eu desejava dar uma volta pelas minhas terras! — Ah! e por que não o dissestes logo? Mas as vossas terras, que diacho! não ficam no fim do mundo. — Ficam na fronteira da Picardia, a quinze ou dezoito léguas daqui. — Estais vendo? Charny apertou a mão do facultativo, como para agradecer-lhe todas as

delicadezas. Â noite, os quatro lacaios que êle tanto maltratara por ocasião da primeira

tentativa, transportaram-no à carruagem que o esperava diante do portãozinho de serviço.

Tendo caçado o dia inteiro, o rei acabara de cear e já estava dormindo. Um tanto preocupado de sair sem se despedir, Charny foi plenamente tranqüilizado pelo médico, que lhe prometeu justificar a partida atribuindo-a a uma necessidade de mudança de ares.

Antes de entrar no carro, deu-se Charny a dolorosa satisfação de olhar, até o derradeiro momento, para as janelas do apartamento da rainha. Ninguém podia vê-lo. Um dos lacaios, com um archote na mão, alumiava o caminho sem alumiar a sua fisionomia.

Charny só encontrou à saída alguns oficiais, seus amigos, avisados a tempo, para que a partida não tivesse o aspecto de uma fuga.

Escoltado até ao carro pelos alegres companheiros, pôde deixar que os olhos lhe errassem pelas janelas: as da rainha resplandeciam de luzes. Um pouco indisposta, Sua Majestade recebera as damas no quarto de dormir.

As de Andréia, tristes e escuras, escondiam atrás das pregas das cortinas de damasco uma mulher ansiosa, palpitante, que seguia, sem ser pressentida, os menores movimentos do enfermo e de sua escolta.

Arrancou-se dali, finalmente, o veículo, mas tão devagar que se ouvia percutir nas pedras do chão cada ferradura dos cavalos.

— Se êle não é meu, — murmurou Andréia, — pelo menos também não é de mais ninguém. — Se lhe voltarem desejos de morrer, — disse entre si o doutor ao recolher-se, — pelo menos não morrerá em minha casa nem

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O COLAR DA RAINHA 435

minhas mãos. O diabo carregue as doenças da alma! Não sou o médico de Antíoco e de Estratonice para curar essas doenças.

Charny chego são e salvo à sua casa. O médico foi visitá-lo à noite, e encontrou-o tão bem, que se deu pressa em anunciar-lhe que seria aquela a sua última visita.

O doente comeu, à ceia, um peito de frango e uma colher de geléia de Orléans.

No dia seguinte, recebeu a visita do tio, o Sr. de Suffren, a visita do Sr. de Lafayette, e a de um enviado do rei. Praticamente o mesmo aconteceu no dia imediato, e depois ninguém mais se preocupou com êle.

Charny se levantava e passeava no jardim. Ao termo de oito dias, já podia montar um cavalo de passo macio;

tinham-lhe voltado às forças. Pediu ao médico do tio e mandou pedir ao Dr. Luís autorização para viajar para as suas terras.

Luís respondeu, sem hesitação, que a locomoção era a última fase do tratamento das feridas; que o Sr. de Charny tinha um bom carro, e que a estrada da Picardia era lisa como um espelho; nessas condições, ficar em Versalhes quando se podia viajar tão bem e tão felizmente, seria loucura.

Charny mandou carregar de bagagens uma carroça; apresentou suas despedidas ao rei, que o cumulou de gentilezas, rogou ao Sr. de Suffren que transmitisse os seus respeitos à rainha, que nessa noite se achava enferma e não recebia ninguém. Logo, tomando o carro diante do próprio portão do castelo real, guiou para a cidadezinha de Villers-Cotterets, de onde devia seguir para o castelo de Bourssonnes, a uma légua do lugarejo que já ilustravam as primeiras poesias de Dumoustier.

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LV

Dois corações que sangram

NO DIA seguinte àquele em que a rainha fora surpreendida por Andréia fugindo de Charny, ajoelhado diante dela, a Srta. de Taverney entrou, como de costume, no quarto real à hora em que Sua Majestade se vestia para ir à missa.

A rainha ainda não recebera visitas. Acabava apenas de ler um bilhete da Sra. de La Motte, e estava de bom humor.

Ainda mais pálida que na véspera, apresentava Andréia em toda a sua pessoa o ar sério e a fria reserva que chamam a atenção e obrigam os mais fortes a contar com os mais fracos.

Simples, austera por assim dizer no trajar, Andréia parecia uma mensageira de desgraça, fosse essa desgraça para si ou para outros.

A rainha estava num de seus dias de distração; por isso mesmo não deu tento do andar lento e grave da moça, dos seus olhos avermelhados, da pálida alvura de suas têmporas e de suas mãos.

Virou a cabeça apenas o suficiente para fazer ouvir a sua amistosa saudação. — Bom dia, menina. Esperou Andréia que a rainha lhe desse ocasião de falar. Esperou, certa de

que o seu silêncio, a sua imobilidade, acabariam chamando a atenção de Maria Antonieta.

Foi o que aconteceu. Não recebendo como resposta senão uma profunda reverência, a rainha voltou-se e, de soslaio, observou o rosto doloroso e rígido.

— Santo Deus! Que aconteceu, Andréia? — perguntou, voltando-se completamente. — Sucedeu-te alguma desgraça? — Uma grande desgraça, sim, senhora, — replicou a moça. — Qual? — Vou deixá-la, Majestade. — Deixar-me! Vais partir? — Sim, senhora. — Aonde vais? Qual será a causa dessa partida precipitada? — Senhora, não sou feliz em minhas afeições... A rainha ergueu a cabeça. — De família, — ajuntou Andréia, purpureando-se.

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O COLAR DA RAINHA 437

A rainha corou também, e o relâmpago dos olhares de ambas se cruzou brilhando como um choque de espadas. Foi a rainha a primeira que se recobrou.

— Não te compreendo bem, — disse ela; — parece-me que ontem estavas feliz. — Não, senhora, — retrucou Andréia com firmeza; — ontem foi um dos dias mais infelizes de minha vida. — Ah! — exclamou a rainha, tornando-se pensativa. E acrescentou: — Explica-te. — Fora preciso que eu me resignasse a fatigar Vossa Majestade com

pormenores indignos de si. Não encontro satisfação alguma em minha família; não tenho nada que esperar dos bens terrenos, e venho pedir permissão a Vossa Majestade para me ocupar da minha salvação.

Ergueu-se a rainha, e posto que o gesto parecesse custar-lhe ao orgulho, pegou na mão de Andréia.

— Que significa essa decisão de cabeçuda? — perguntou. — Não tinhas ontem um irmão, um pai, como hoje? Seriam, acaso, menos incômodos ontem e menos perniciosos do que hoje? Acreditas-me capaz de deixar-te em situação difícil, e já não sou a mãe de família que dá uma família aos que a não têm?

Andréia pôs-se a tremer como uma culpada e, inclinando-se diante da rainha, disse:

— Senhora, a bondade de Vossa Majestade me penetra mas não me dissuadirá. Resolvi deixar a corte, tenho necessidade de voltar à solidão, não me exponha Vossa Majestade a trair os meus deveres para consigo pela falta de vocação que sinto em mim. — Desde ontem, então? — Haja Vossa Majestade por bem não me ordenar que fale sobre esse assunto. — Sê livre, — voltou à rainha com azedume, — mas eu tinha contigo suficiente confiança para que a tivesses comigo também. Mas a quem não quer falar louco é o que pede uma palavra. Guarda os teus segredos, senhorita; sê mais feliz longe daqui do que aqui o foste. Lembra-te apenas de uma coisa, é que a minha amizade não desampara as pessoas a despeito dos seus caprichos, e que não deixarás de ser para mim uma amiga. Agora, Andréia, vai, que estás livre. Andréia fêz uma reverência formal e saiu. À porta, a rainha voltou a

chamá-la. — Aonde vais, Andréia? — À abadia de São Dinis, senhora. — Para o convento! Muito bem, senhorita, talvez não tenhais nada que vos censurar; mas ainda que fôsseis apenas ingrata e des-

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438 ALEXANDRE DUMAS

lembrada, seríeis assaz culpada para comigo; ide, Srta. de Taverney, ide. Disso resultou que, sem dar quaisquer outras explicações com que contava

o bom coração da rainha, sem se humilhar, Andréia tomou ao pé da letra a autorização e desapareceu.

Maria Antonieta pôde perceber, e percebeu, que a Srta. de Taverney deixava imediatamente o castelo.

Com efeito, dirigia-se para a casa do pai, onde, como esperava, encontrou Filipe no jardim. O irmão devaneava; a irmã agia.

À vista de Andréia, cujo serviço deveria retê-la no castelo àquela hora, Filipe adiantou-se surpreso, quase assustado.

Assustado sobretudo pelo semblante sombrio, pois a irmã nunca o procurava senão com um sorriso de terna amizade, começou como o fizera Sua Majestade: interrogou. Anunciou-lhe Andréia que acabava de deixar o serviço da rainha; que o pedido de dispensa fora aceito e que ela ia entrar para o convento. Filipe bateu as mãos com força, como quem recebe um golpe inesperado.

— Como! — bradou, — tu também, mana? — Eu também, como? Que queres dizer? — Será, porventura, um contacto maldito para a nossa família o dos Bourbons? — exclamou; — julgas-te obrigada a professar, tu! religiosa por gosto, por alma; tu, a menos mundana das mulheres e a menos capaz de eterna obediência às leis do ascetismo! Vamos a ver, que reprochas à rainha? — Não se lhe pode reprochar coisa alguma, Filipe, — respondeu friamente a moça; — tu, que tanto contaste com o favor das cortes; tu, que mais do que ninguém, devias contar com eles, por que não pudeste ficar? Por que lá não ficaste nem três dias? Eu fiquei três anos! — A rainha, às vezes, é caprichosa, Andréia. — Se assim é, poderias sofrê-lo, Filipe, tu que és homem; eu, mulher, não quero nem devo sofrê-lo; se ela tem caprichos, as cria das lá estão para servi-la. — Mas nada disso, mana, — atalhou o rapaz constrangido, —me esclarece o que houve entre ti e a rainha. — Não houve nada; houve, acaso, alguma coisa entre ti e ela quando a deixaste? Essa mulher é ingrata. — Deves perdoá-la, Andréia. A lisonja estragou-a um pouco,mas, no íntimo, é boa. — Prova disso é o que fêz por ti, Filipe. — Que foi o que fêz? — Já te esqueceu? Pois tenho melhor memória. Por isso mesmo, num dia só, e com uma só resolução, pago a tua dívida e a minha, Filipe. — Mas caro demais, a meu ver, Andréia; não é na tua idade,com a tua beleza, que a gente renuncia ao mundo. Cuidado, minha

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O COLAR DA RAINHA 439

querida amiga, se o deixas moça, terás saudades dele quando fores velha, e, quando já não fôr ocasião, a êle voltarás, desagradando os teus amigos, dos quais uma loucura te haverá separado.

— Não raciocinavas assim, tu, bravo oficial honrado e sensível, mas pouco zeloso do renome ou da fortuna, pois, onde cem outros grangearam títulos e ouro não soubeste senão fazer dívidas e apequenar-te; não raciocinavas assim quando me dizias: ela é caprichosa, Andréia, ela é casquilha, ela é pérfida; prefiro não a servir. Como prática dessa teoria, renunciaste ao mundo, embora não tenhas professado, e de nós dois o que está mais perto dos votos irrevogáveis, não sou eu que os vou fazer, mas tu que já os fizeste. — Tens razão, mana, e não fora nosso pai. . . — Nosso pai! ah! Filipe, não fales assim, — voltou Andréia com amargura, — um pai não deve ser o sustentáculo dos filhos ou conseguir-lhes um apoio? Só nessas condições é pai. Que faz o nosso, pergunto eu? Já tiveste alguma vez a idéia de confiar um segredo ao Sr. de Taverney? E julga-lo capaz de chamar-te para te confiar um segredo seu? Não, — continuou Andréia com expressão de tristeza, — não, o Sr. de Taverney foi feito para viver só neste mundo. — De acordo, Andréia, mas não foi feito para morrer só.

Ditas com doce severidade, essas palavras lembravam à moça que ela deixava às suas cóleras, aos seu azedumes, aos seus rancores contra o mundo, um lugar demasiado grande no coração.

— Eu não quisera, — respondeu, — que me tomasses por uma criatura sem entranhas; sabes que sou terna irmã; mas cada qual, neste mundo, procurou sempre matar em mim o instinto simpático que lhe correspondia. Deus me havia dado ao nascer, como a todas as criaturas, uma alma e um corpo; dessa alma e desse corpo toda a criatura humana pode dispor, para sua felicidade, neste mundo e no outro. Um homem que eu não conhecia tomou-me a alma: Bálsamo. Um homem que mal conhecia, e que não era um homem para mim, tomou-me o corpo: Gilberto. Repito-o, Filipe, para ser uma rapariga boa e piedosa, só me falta um pai. Passemos ao teu caso, examinemos o que te rendeu o serviço dos grandes da terra, a ti que os amavas.

Filipe abaixou a cabeça. — Poupa-me, — disse êle; — os grandes da terra não eram para mim senão criaturas minhas semelhantes: eu os amava: Deus ordenou que nos amássemos uns aos outros. — Oh! Filipe, — contraditou a moça, — nunca sucede nesta terra que o coração amante corresponda diretamente a quem o ama; os que nós escolhemos escolhem outros. Ergueu Filipe a cabeça pálida e considerou longamente a irmã, com uma

expressão de espanto gravada no rosto.

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440 ALEXANDRE DUMAS

— Por que me dizes isso? Aonde queres chegar? — perguntou. — A nada, a nada, — replicou generosamente Andréia, que recuou diante da idéia de descer a relatórios ou a confidências. —Estou ferida, mano. Creio que a minha razão está sofrendo; não dês às minhas palavras atenção alguma. — Entretanto... Andréia abeirou-se de Filipe e tomou-lhe a mão. — Mudemos de assunto, mano querido. Vim pedir-te que me conduzas a

um convento: escolhi o de São Dinis; não quero professar, tranqúiliza-te. Isso virá mais tarde, se fôr preciso. Ao invés de buscar num asilo o que nele deseja encontrar a maioria das mulheres, o esquecimento, pedir-lhe-ei a memória. Parece-me que esqueci por demais o Senhor. Êle é o único rei, o único amo, a única consolação, como também o único verdadeiro aflitor.Reaproximando-me dele, hoje que o compreendo, farei mais pela minha felicidade do que se tudo o que há de rico, de forte, de poderoso e de amável neste mundo conspirasse para proporcionar-me uma vida feliz. À solidão, mano, à solidão, vestíbulo da eterna beatitude!... Na solidão, Deus fala ao coração do homem; na solidão, o homem fala ao coração de Deus.

Filipe deteve Andréia com o gesto. — Lembra-te, — disse êle, — que me oponho moralmente a esse projeto desesperado: não me fizeste juiz das causas do teu desespero. — Desespero! — sobreveio ela com soberano desdém. — Desespero! Graças a Deus não parto desesperada! Sentir falta com desespero! Não! não! mil vezes não! E com um movimento de selvagem altivez, atirou sobre os ombros a capa

de seda que repousava junto dela sobre uma poltrona. — Esse mesmo excesso de desdém revela em ti um estado que não pode durar, — volveu Filipe; — se não queres a palavra desespero, Andréia, aceita a palavra despeito. — Despeito! — retrucou a moça, convertendo o sorriso sardônico num sorriso cheio de soberba. — Não acreditas, meu irmão, que a Srta. de Taverney seja tão fraca que ceda o seu lugar neste mundo por um movimento de despeito. O despeito é a fraqueza das sécias ou das néscias. O olhar iluminado pelo despeito logo se inunda de lágrimas, e o incêndio se apaga. Não tenho despeito, Filipe. Eu quisera que me acreditasses, e para isso bastaria que tu mesmo te interrogasses, quando alguma coisa te aflige. Responde: se amanhã te recolhesses à Trapa, se te fizesses cartuxo, como chamarias à causa que te houvesse levado a essa resolução? — Eu lhe chamaria tristeza incurável, mana, — respondeu Filipe com a suave majestade do infortúnio.

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O COLAR DA RAINHA 441

— Ainda bem, Filipe, eis aí uma expressão que me convém e que adoto. Seja; é, portanto, uma tristeza incurável que me arrasta para a solidão. — Bem! — respondeu Filipe, — e assim o irmão e a irmã não terão tido dessemelhanças em suas vidas. Felizes de uma forma igual, terão sido sempre infelizes no mesmo grau. É isso que faz a boa família, Andréia. Cuidou Andréia que Filipe, presa da emoção, lhe estivesse fazendo outra

pergunta, e talvez o seu coração inflexível houvesse cedido à pressão da amizade fraternal.

Mas Filipe sabia por experiência que as grandes almas se bastam a si mesmas: Não perturbou a de Andréia na trincheira que ela escolhera para si.

— A que horas e em que dia esperas partir? — perguntou. — Amanhã; hoje mesmo, se houvesse tempo. — Não darás comigo uma última volta pelo parque? — Não. O rapaz compreendeu pelo aperto de mão que acompanhou a recusa, que ela

procurava apenas evitar uma ocasião de se deixar enternecer. — Estarei pronto quando me mandares avisar. E beijou-lhe a mão sem acrescentar qualquer outra palavra, que teria

feito transbordar a amargura de seus corações. Depois de haver concluído os primeiros preparativos, Andréia recebeu o

seguinte bilhete de Filipe: "Poderás ver nosso pai às cinco horas da tarde. O adeus é indispensável. O

Sr. de Taverney se queixaria, depois, de abandono e ingratidão."

Ela respondeu: "Às cinco horas estarei em casa do Sr. de Taverney em trajos de

viagem. As sete poderemos estar em São Dinis. Não queres dedicar--me à noite de hoje?"

Por única resposta, Filipe gritou da janela, tão próxima do apartamento de Andréia que a irmã pôde ouvi-lo:

— Às cinco horas, o carro estará pronto.

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LVI

Um ministro das finanças

VIMOS que, antes de receber Andréia, a rainha lera um bilhete da Sra. de La Motte e sorrira.

O bilhete continha apenas estas palavras, acompanhadas de todas as fórmulas possíveis de respeito:

".. .E Vossa Majestade pode ficar certa de que se lhe dará crédito, e de que a mercadoria será entregue em confiança."

A rainha sorrira e queimara o recadinho de Joana. Depois que se entristeceu um pouco na companhia da Srta. de Taverney, a

Sra. de Misery foi anunciar-lhe que o Sr. de Calonne estava esperando a honra de ser recebido por ela.

Não será despropositado explicar ao leitor quem é o novo personagem. A história já o tornou assaz conhecido, mas o romance, que debuxa com menos exatidão as perspectivas e traços principais, proporciona talvez pormenores mais satisfatórios à imaginação.

O Sr. de Calonne era um homem inteligente, inteligentíssimo até, que, saindo da geração da última metade do século, pouco habituada às lágrimas, embora arrazoadora, se conformara com a desgraça suspensa sobre a França, misturava o seu interesse ao interesse comum, dizia como Luís XV: "Depois de nós o fim do mundo" e, em toda à parte, buscava as flores para enfeitar o seu último dia.

Estava a par de tudo, era um cortesão. Cultivara todas as mulheres ilustres pelo espírito, pela riqueza e pela beleza, com homenagens semelhantes às que a abelha presta às plantas carregadas de aromas e de sucos.

Todos os conhecimentos da época se resumiam na conversação de sete ou oito homens e dez ou doze mulheres. O Sr. de Calonne pudera calcular com d'Alembert, arrazoar com Diderot, rir com Voltaire, sonhar com Rousseau; mostrara-se, enfim, suficientemente forte para caçoar da popularidade do Sr. Necker.

O Sr. Necker, o sábio, o profundo, cujo relatório parecera iluminar a França inteira! Tendo-o examinado muito bem por todos os prismas, Calonne acabara ridiculizando-o até aos olhos daqueles que mais o temiam, e a rainha e o rei, que esse nome fazia estre-

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O COLAR DA RAINHA 443

mecer, ainda não se tinham acostumado a ouvir, sem tremer, escarnecê-lo um estadista elegante, bem-humorado, que, para responder a tantos lindos algarismos, se contentava em dizer: "De que adianta provar que não se pode provar coisa alguma?"

De feito, Necker só conseguira provar que lhe era impossível continuar gerindo as finanças, ao mesmo passo que o Sr. de Calonne as aceitara como um fardo leve demais para os seus ombros. No entanto, desde os primeiros momentos, pode dizer-se que vergara sob o seu peso.

Que queria o Sr. Necker? Reformas. Essas reformas parciais apavoravam todos os espíritos. Pouca gente ganhava com elas, e os que ganhavam, ganhavam muito pouco; muita gente, pelo contrário, perdia e perdia muito. Quando Necker pretendia proceder a uma justa repartição de impostos, quando entendia de taxar as terras da nobreza e as rendas do clero, indicava brutalmente uma revolução impossível. Fracionava a nação e prematuramente a enfraquecia quando teria sido necessário concentrar-lhe todas as forças para conduzi-la a um resultado geral de renovação.

Necker mostrava esse desiderato e tornava-o impossível de atingir-se pelo simples fato de havê-lo mostrado. Falar em reforma de abusos àqueles que não querem que os abusos sejam reformados, não é expor-se à oposição dos interessados? Deve-se, acaso, avisar o inimigo da hora em que será desfechado o ataque à sua fortaleza?

Compreendera-o Calonne, mais verdadeiramente amigo da nação, nesse ponto, do que o genebrês Necker, mais amigo, dizemos nós, no tocante aos fatos consumados, pois, em lugar de prevenir um mal inevitável, acelerava o advento do flagelo.

O seu plano era arrojado, gigantesco, seguro; tratava-se de arrastar para a bancarrota o rei e a nobreza, que a teriam retardado por mais dez anos; depois, diante da bancarrota, dizer: "Agora, ricos, pagai pelos pobres, porque eles têm fome e devorarão os que os não alimentarem".

Como foi que o rei não viu, desde logo, as conseqüências desse plano ou o próprio plano? Como foi que êle, que fremira de cólera ao ler o relatório, não estremeceu adivinhando o seu ministro? Como foi que não optou por um dos dois sistemas, e preferiu deixar--se ir ao sabor da aventura? São estas, realmente, as únicas contas que Luís XVI, como político, tem de acertar com a posteridade. Era o famoso princípio ao qual sempre se opõe quem quer que não tenha forças suficientes para cortar o mal quando o mal é inveterado.

Mas para que a venda se tenha espessado de tal arte nos olhos do rei; para que a rainha, tão clarividente e exata em seus exames, se tenha mostrado tão cega quanto o marido em relação ao procedimento do ministro, a historia, ou melhor o romance, e é aqui

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que êle se torna bem-vindo, vai dar-nos alguns pormenores indispensáveis. O Sr. de Calonne entrou nos aposentos da rainha. Era um belo homem, alto, de modos fidalgos; sabia fazer rir as rainhas e

chorar as amantes. Certo de que Maria Antonieta o mandara chamar por alguma necessidade urgente, chegava com o sorriso nos lábios. Muitos outros teriam vindo com sobrecenho, para duplicar mais tarde o mérito do seu consentimento.

A rainha também se mostrou graciosa; fêz sentar-se o ministro e começou falando sobre mil e uma coisas sem importância.

— Temos dinheiro, — perguntou em seguida, — meu caro Sr. de Calonne? — Dinheiro? — bradou o Sr. de Calonne. — Está visto que o temos, senhora; temo-lo e sempre o teremos. — Que maravilha! — volveu a rainha, — sois a primeira pessoa que conheço a responder assim a pedidos de dinheiro; como financista sois incomparável. — De quanto precisa Vossa Majestade? — acudiu Calonne. — Explicai-me primeiro, por favor, o que fizestes para achar dinheiro onde o Sr. Necker jurava não o haver? — O Sr. Necker tinha razão; não havia dinheiro nos cofres, e isso é tão verdadeiro que, no dia em que assumi a direção do ministério, a 5 de novembro de 1783, essas coisas não se esquecem,vasculhando o tesouro público, apenas encontrei em caixa dois sacos de mil e duzentas libras. Nem um ceitil a menos. A rainha abriu a rir. — E então? — exclamou. — Então, senhora, se o Sr. Necker, em vez de dizer: "Já não há dinheiro", se pusesse a pedir emprestado, como eu fiz, cem milhões no primeiro ano e cento e vinte no segundo; se tivesse certeza,como tenho, de um novo empréstimo de oitenta milhões para o terceiro, o Sr. de Necker teria sido um verdadeiro financista: qual quer um pode dizer: "Já não há dinheiro em caixa"; mas nem todos sabem responder: "Há". — Era o que eu vos dizia; e por isso vos felicitava, senhor. Mas como se pagará? Aí é que está a dificuldade. — Oh! senhora, — respondeu Calonne com um sorriso cuja profundeza e cuja aterradora significação nenhum olhar humano poderia medir, — garanto-lhe que se há de pagar. — Fio-me de vós, — disse a rainha; — mas continuemos a conversar sobre finanças; convosco, é uma ciência interessantíssima; sarça exposta pelos outros, exposta por vós é uma árvore frutífera. Calonne inclinou-se. — Tendes algumas idéias novas? — perguntou a rainha; — contai-mas

com primazia, por favor.

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O COLAR DA RAINHA 445

— Tenho uma idéia, senhora, que porá vinte milhões no bolso dos franceses, e sete ou oito no seu; perdão, na caixa de Sua Majestade. — Esses milhões serão bem-vindos aqui e ali. Por onde chegarão? — Vossa Majestade não ignora que a moeda de ouro não tem o mesmo valor em todos os Estados da Europa. — Eu sei. Na Espanha, o ouro é mais caro do que em França. — Vossa Majestade tem toda a razão, e é um prazer conversar consigo sobre finanças. O ouro vale na Espanha, de uns cinco a seis anos a esta parte, dezoito onças a mais por marco do que em França. Daí resulta que os exportadores ganham sobre um marco de ouro que exportam da França para a Espanha catorze onças de prata, mais ou menos. — É considerável! — observou a rainha. — De tal sorte que, daqui a um ano, — continuou o ministro, — se os capitalistas soubessem o que sei, não restaria entre nós um luís de ouro sequerl — E impedireis que isso aconteça? — Imediatamente: aumentarei o valor do ouro de quinze marcos por quatro onças, dando um lucro de quinze por cento. Compreenderá Vossa Majestade que não ficará um luís nos cofres quando se souber que a Casa da Moeda paga esse lucro aos portadores de ouro. Far-se-á, portanto, a refundição da moeda e, no marco de ouro, que contém hoje trinta luíses, acharemos trinta e dois. — Lucro presente, lucro futuro! — exclamou a rainha. — É uma idéia encantadora, que fará furor. — Assim o creio, senhora, e folgo muito em que ela tenha obtido tão completa aprovação de Vossa Majestade. — Tende-as sempre assim e acabaremos pagando as nossas dívidas. — Permita-me, senhora, — tornou o ministro, — voltar ao que Vossa Majestade deseja de mim. Seria possível, senhor, obter neste momento... — Quanto? — Oh! uma soma talvez exagerada... Calonne sorriu de modo que animou a rainha. — Quinhentas mil libras, — disse ela. — Ah! senhora, — bradou o ministro, — Vossa Majestade me pregou um

susto! Imaginei que se tratasse de uma soma de verdade. — Podei-lo? — Seguramente. — Sem que o rei. .. — Isso é que é difícil; todas as minhas contas são mensalmente apresentadas a Sua Majestade; até agora, porém, não se soube de uma vez sequer em que o rei as tivesse lido, o que muito me honra.

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— Quando poderia eu contar com a importância? — Em que dia terá Vossa Majestade precisão dela? — No dia cinco do mês que vem. — As contas serão apresentadas no dia dois; Vossa Majestade terá o dinheiro no dia três. — Obrigada, Sr. de Calonne. — A minha maior felicidade consiste em agradar a Vossa Majestade. Suplico-lhe que nunca se constranja com a minha caixa.Isto será um verdadeiro bálsamo para o amor-próprio do seu ministro das finanças. Êle se havia levantado e cortejado graciosamente; a rainha deu--lhe a mão

para beijar. — Mais uma palavrinha, — disse ela. — Sou todo ouvidos, senhora. — Esse dinheiro custa-me um remorso. — Um remorso... — repetiu o ministro. — Sim. É para satisfazer um capricho. — Tanto melhor, tanto melhor... Nesse caso, pelo menos metade da soma reverterá em lucros para a nossa indústria, para o nosso comércio ou para os nossos prazeres. — De fato, é verdade, — murmurou a rainha, — e tendes um modo encantador de consolar-me. — Louvado seja Deus! Se os nossos remorsos forem todos como os de Vossa Majestade, iremos direitinho para o céu. — É que, Sr. de Calonne, seria demasiado cruel para mim fazer que o pobre povo pagasse os meus caprichos. — Pois bem! — disse o ministro, acentuando com o seu sorriso sinistro cada palavra, — ponhamos de parte todo e qualquer escrúpulo, senhora, pois juro-lhe que o pobre povo nunca pagará. — Por quê? — inquiriu, surpresa, a rainha. — Porque o pobre povo já não tem nada, — respondeu imperturbavelmente o ministro, — e onde não há nada perde o rei seus direitos. Cumprimentou e saiu.

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LVII

Ilusões reencontradas — segredo perdido

SR. DE CALONNE ainda estava atravessando a galeria de volta à sua casa, quando a unha de uma mão apressada arranhou a porta do toucador da rainha. Apareceu Joana.

— Senhora, — disse ela, — êle está aqui. — O cardeal? — perguntou a rainha, espantada com a palavra êle, que tantas coisas significa quando pronunciada por uma mulher. Não terminou. Joana já havia introduzido o Sr. de Rohan e despediu-se,

apertando, às escondidas, a mão do protetor protegido. Viu-se o príncipe a três passos apenas da soberana, a quem dirigiu

respeitosamente os cumprimentos de praxe. Diante dessa reserva cheia de tacto, sentiu-se a rainha tocada; estendeu a mão

ao cardeal, que ainda não levantara os olhos para ela. — Senhor, — disse ela, — contaram-me de vós um gesto que redime muitas culpas. — Seja-me permitido, — respondeu o príncipe, tremendo de não afetada comoção, — seja-me permitido, senhora, afirmar-lhe que as culpas a que Vossa Majestade se refere seriam bem atenuadas se fosse possível uma palavra de explicação entre nós. — Não vos defendo que vos justifiqueis, — replicou a rainha com dignidade, — mas o que me diríeis projetaria uma sombra sobre o amor e o respeito que dedico ao meu país e à minha família. Não podeis desculpar-vos senão ferindo-me, Sr. Cardeal. Mas façamos uma coisa: não toquemos nesse fogo mal extinto, que talvez ainda queimasse os vossos dedos ou os meus; ver-vos à nova luz que a mim vos revelou, obsequioso, respeitoso, devotado... — Devotado até à morte, — atalhou o cardeal. — Ainda bem. Mas, — prosseguiu Maria Antonieta, sorrindo, — por enquanto só se trata da ruína. Ser-me-íeis devotado até à ruína, Sr. Cardeal? É bonito, muito bonito. Felizmente, estou pondo nisso um pouco de ordem. Vivereis e não ficareis arruinado, a menos que, como se diz, vos arruineis sozinho. — Senhora...

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— Mas esse é problema vosso. Entretanto, como amiga, visto que agora somos bons amigos, dar-vos-ei um conselho: Sede econômico, é uma virtude pastoral; o rei vos apreciará mais econômico do que pródigo. — Far-me-ei avaro para agradar a Vossa Majestade. — O rei, — voltou à rainha com sutil intenção, — também não gosta de avaros. — Far-me-ei o que quiser Vossa Majestade, — interrompeu o cardeal com mal disfarçada paixão. — Dizia-vos eu, portanto, — atalhou bruscamente a rainha, — que não ficaríeis arruinado por minha causa. Respondestes por mini, sou-vos imensamente grata, mas tenho com que honrar os meus compromissos; por conseguinte, não volteis a preocupar-vos com estes negócios, que, a partir do primeiro pagamento, só a mim dirão respeito. — Para que se conclua o negócio, senhora, — disse o cardeal, inclinando-se, — resta-me oferecer o colar a Vossa Majestade. E tirou, ao mesmo tempo, o escrínio do bolso e apresentou-o à rainha. Maria Antonieta nem sequer o passou pelos olhos, o que nela denotava um

desejo imenso de vê-lo, e, tremula de alegria, depô-lo sobre um aparador. O cardeal, em seguida, arriscou-se a dizer algumas delicadezas, que foram

muito bem recebidas, e logo voltou às palavras da soberana sobre a reconciliação entre ambos.

Mas, como ela prometera a si mesma não olhar para os brilhantes em presença dele, e morresse por vê-los, ouviu-o distraída.

Distraída também, abandonou-lhe a mão, que êle beijou com transportes; depois, julgando importuná-la, despediu-se, o que a cumulou de alegria. Um simples amigo não incomoda nunca, e um indiferente ainda menos.

Assim se passou essa entrevista, que fechou todas as feridas do coração do cardeal. Êle saiu dos aposentos da rainha, entusiasmado, bêbedo de esperança, e pronto a demonstrar a Sra. de La Motte um reconhecimento sem limites pela negociação tão felizmente levada a cabo.

Joana esperava-o no carro, a cem passos adiante da barreira; recebeu os ardentes protestos de sua amizade.

— E então? — perguntou, após a primeira explosão de gratidão, — sereis Richelieu ou Mazarino? O lábio austríaco vos animou à ambição ou à ternura? Estais metido na política ou na intriga? — Não caçoeis, querida condessa, — disse o príncipe; — estou louco de alegria.

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O COLAR DA RAINHA 449

— Ajudai-me que, dentro de três semanas, poderei ter um ministério. — Diabo! Três semanas! É muito tempo; o vencimento dos primeiros compromissos está marcado para daqui a quinze dias. — Todas as felicidades vêm junto: a rainha tem dinheiro, pagará; terei tido apenas o mérito da intenção. É pouco, condessa,palavra de honra! é muito pouco. Deus é testemunha de que eu teria pago de bom grado por essa reconciliação quinhentas mil libras. — Tranquilizai-vos, — atalhou, sorrindo, a condessa. — Tereis também esse mérito, além dos outros. Fazeis muito empenho nisso? — Confesso que sim; a rainha tornando-se minha obrigada... — Monsenhor, alguma coisa me palpita que tereis essa satisfação. Estais preparado para ela? — Vendi os meus últimos bens e empenhei as minhas rendas e benefícios do próximo ano. — Tendes, então, as quinhentas mil libras? — Tenho-as; só que, feito o pagamento, já não saberei o que fazer. — Esse pagamento, — exclamou Joana, — nos dá um trimestre de sossego. È em três meses, quanta coisa vai acontecer, meu Deus! — É verdade. Mas o rei mandou-me dizer que não faça mais dívidas. — Com dois meses no ministério poreis em dia todas as vossas contas. — Oh! condessa... — Não vos revolteis. Se o não fizésseis, fá-lo-iam os vossos primos. — Tendes sempre razão. Aonde ides? — Procurar de novo a rainha, saber o efeito que produziu a vossa presença. — Muito bem. Mas eu volto a Paris. — Por quê? Voltaríeis esta noite para o jogo. É uma boa tática: não abandonar o terreno. — Infelizmente é preciso que eu vá a um encontro marcado hoje cedo. — Um encontro? — Muito sério, a julgar pelo conteúdo do bilhete que me mandaram. Vede.. . — Letra de homem! — exclamou a condessa. E leu:

"Monsenhor, alguém quer falar convosco sobre a recuperação de uma soma importante. Essa pessoa apresentar-se-á esta noite em vossa casa, cm Paris, para obter a honra de uma audiência."

— Anônimo... Um mendigo.

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— Não condessa, ninguém se expõe voluntariamente a ser espancado pelos meus criados por haver zombado de mim. — Acreditai-lo? — Não sei por que, mas tenho a impressão de que conheço a letra. — Nesse caso, ide, Monsenhor; aliás, nunca se arrisca grande coisa com as pessoas que prometem dinheiro. Pior seria se não pagassem. Adeus, Monsenhor. — Até à vista, condessa. — A propósito, Monsenhor, duas coisas: — Quais? — Se, por acaso, recebêsseis inopinadamente uma boa soma? — Que é que tem? — Qualquer coisa perdida: um achado! um tesouro! — Já vos percebo, ladina! Divisão pela metade, é o que quereis dizer, não é? — Palavra! Monsenhor... — Dais-me sorte, condessa; por que não haveríamos de dividir? Será dividido. E qual é a outra coisa? — Esta: não comprometais as quinhentas mil libras. — Não tenhais receio. E separaram-se. Depois, o cardeal voltou a Paris numa atmosfera de

celestes felicidades. Com efeito, fazia duas horas que a vida mudava de aspecto para êle. Se

estivesse apenas apaixonado, a rainha acabava de dar--lhe muito mais do que êle teria ousado esperar; se fosse ambicioso, ela o fazia esperar mais ainda.

Habilmente conduzido pela esposa, tornava-se o rei instrumento de uma fortuna que, doravante, nada poderia deter. Sentia-se o Príncipe Luís cheio de idéias; tinha mais gênio político do que os rivais, conhecia a questão dos melhoramentos, uniria o clero ao povo e formaria uma dessas sólidas maiorias que governam muito tempo pela força e pelo direito.

Colocar à testa do movimento de reforma a rainha, que êle adorava, e cuja impopularidade sempre crescente converteria em popularidade sem igual: tal era o sonho do prelado, e bastava uma palavra terna de Maria Antonieta para mudá-lo em realidade.

O estouvado renunciava aos seus fáceis triunfos, o mundano fazia-se filósofo, o ocioso transformava-se em trabalhador infatigável. É fácil para os grandes caracteres a tarefa de trocar a palidez dos depravados pela fadiga do estudo. O Sr. de Rohan teria ido longe, arrastado pela ardente parelha do amor e da ambição.

Entendeu que devia pôr mãos à obra assim que voltasse a Paris. Queimou de uma vez só uma caixa de bilhetinhos de amor, chamou o intendente para ordenar algumas reformas, mandou que um secretário lhe aparasse as penas para escrever as suas memórias

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O COLAR DA RAINHA 451

sobre a política da Inglaterra, que compreendia às mil maravilhas e, depois de um hora de trabalho, recomeçava a entrar na posse de si mesmo, quando um toque de campainha o avisou, no gabinete, de que lhe chegara uma visita importante.

— Surgiu um porteiro. — Quem está aí? — perguntou o prelado. — A pessoa que escreveu hoje cedo a Vossa Alteza. — Sem assinar? — Sim, Monsenhor. — Mas essa pessoa há de ter um nome. Pergunta-lho. O porteiro voltou logo em seguida. — É o Sr. Conde de Cagliostro, — disse. Estremeceu o príncipe. — Faze-o entrar. Entrou o conde e as portas se fecharam sobre êle. — Santo Deus! — bradou o cardeal, — que estou vendo? — Não é verdade, Monsenhor, — acudiu Cagliostro com um sorriso, — que pouco mudei? — Será possível!. . . — murmurou o Sr. de Rohan. — José Bálsamo vivo, quando todos o diziam morto naquele incêndio! José Bálsamo... — Conde de Fênix, vivo, sim, Monsenhor, e mais vivo do que nunca. — Mas, senhor, sob que nome vos apresentais agora... e por que não conservastes o antigo? — Precisamente, Monsenhor, porque é antigo e porque lembra, primeiro a mim, depois aos outros, muita coisa triste ou incômoda. No vosso caso, por exemplo,Monsenhor: não teríeis recusado a entrada a José Bálsamo? — Eu! nunca, senhor, nunca. Estupefato ainda, o cardeal não oferecera sequer uma cadeira a Cagliostro. — Nesse caso, — voltou este último, — é que Vossa Eminência tem mais memória e probidade do que todos os outros homens reunidos. — Senhor, prestaste-me outrora tamanho serviço... — Não é verdade, Monsenhor, — atalhou Bálsamo, — que conservo a mesma idade e sou uma bela amostra da eficácia das minhas gotas de vida? — É verdade, senhor; mas estais acima do gênero humano, pois a todos dispensais liberalmente ouro e saúde. — A saúde, não digo que não, Monsenhor; mas o ouro...não! não. .. — Já não o fabricais? — Não, Monsenhor.

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— Por quê? — Porque perdi a última parcela de um ingrediente indispensável que meu amo, o sábio Althotas, me havia dado ao sair do Egito. Foi a única receita que nunca possuí. — Êle a guardou? — Não... isto é, sim: guardou ou levou para o túmulo, como quiserdes. — Morreu? — Eu o perdi. — Como não prolongastes a vida desse homem, indispensável receptador da indispensável receita, vós que vos conservastes vivo e jovem através dos séculos, pelo que dizeis? — Porque tudo posso contra a doença, contra a ferida, mas nada contra o acidente que mata sem que me chamem. — E foi um acidente que pôs termo aos dias de Althotas? — Vossa Eminência deve tê-lo sabido, pois sabia da minha morte. — O incêndio da Rua de São Cláudio em que desaparecestes... — Matou apenas Althotas; ou melhor, o sábio, cansado da vida,quis morrer. — É estranho! — É natural. Também já pensei mais de cem vezes em dar cabo da minha. — Sim, mas, não obstante, persististes. — Porque escolhi um estado de juventude no qual a saúde, as paixões, os prazeres do corpo me proporcionam ainda alguma distração; Althotas, ao contrário, escolhera o estado de velhice. -- Althotas devia ter feito como vós. — Era um homem profundo e superior; de todas as coisas deste

mundo, só queria a ciência. E a mocidade de sangue imperioso, as paixões, os prazeres, o teriam desviado da eterna contemplação; cumpre, Monsenhor, que estejamos sempre isentos de febre;para pensar bem, devemos poder absorver-nos numa sonolência imperturbável.

"O velho medita melhor do que o rapaz e, por isso, quando a tristeza o domina, já não há remédio. Althotas morreu vítima de sua dedicação à ciência. Eu vivo como um mundano, perco o meu tempo e não faço absolutamente nada. Sou uma planta... não ouso dizer uma flor; não vivo, respiro."

— Oh! — murmurou o cardeal, — com o homem ressuscitado, renascem todos os meus espantos. Devolveis-me, senhor, a quadra em que a magia de vossas palavras, o fascínio de vossas ações, duplicavam todas as minhas faculdades e a meus olhos realçavam o valor de uma criatura. Recordais-me os dois sonhos de minha juventude. Sabeis que faz dez anos que me aparecestes?

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—Sei. Ambos envelhecemos bastante. Hoje, Monsenhor, já não sou um sábio, sou um erudito. Já não sois um belo rapaz,mas um formoso príncipe. Lembrais-vos, Monsenhor, do dia em que, no meu gabinete, hoje remoçado com tapeçarias, eu vos- prometia o amor de uma mulher cujos loiros cabelos consultara a minha vidente?

Empalideceu o cardeal e depois, súbito, corou. O terror e a alegria acabavam de suspender-lhe sucessivamente as batidas do coração. — Lembro-me, — disse êle, — mas confusamente...

— Vamos a ver, — acudiu Cagliostro sorrindo, — vamos a ver se ainda poderei passar por feiticeiro. Esperai que me concentre nessa idéia. Refletiu. —A loira criança dos vossos sonhos de amor, — disse, após um

momento de silêncio, — onde está? Ah! estou-a vendo; s im.. .e vós mesmo a vistes hoje. Digo mais, estais saindo de ao pé dela.

O cardeal apoiou a mão gelada sobre o palpitante coração. — Senhor, — disse êle tão baixo que Cagliostro mal o ouviu,— por favor. . . — Quereis que falemos de outra coisa? — sobreveio o adivinho,cortês. — Estou inteiramente às vossas ordens, Monsenhor. Fazei-me o obséquio de dispor de mim. E estendeu-se, com inteira liberdade, sobre um sofá que o cardeal se

esquecera de indicar-lhe desde o começo da interessante conversação.

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LVIII

O devedor e o credor

O CARDEAL considerou o hóspede, embasbacado. — Muito bem! — exclamou este último, — agora que nos tornamos a

conhecer, Monsenhor, conversemos, por favor. — Sim, — volveu o prelado, que aos poucos se recompunha, — conversemos sobre essa restituição que... que . . .

— Que lhe indiquei na minha carta, não é? Vossa Eminência tem pressa de saber... — Era um pretexto, não era? Pelo menos, é o que presumo. — Não, Monsenhor, era uma realidade e das mais sérias. Essa restituição vale a pena, visto que se trata de quinhentas mil libras, e quinhentas mil libras são uma soma respeitável. — Que me emprestastes, aliás, muito graciosamente, — exclamou o cardeal, empalidecendo.

— Sim, Monsenhor, que vos emprestei, — confirmou Bálsamo;— gosto de encontrar num grande príncipe como vós tão boa memória.

Recebendo o golpe, sentia o cardeal um suor frio descer-lhe da testa às faces.

— Julguei por um momento, — disse, tentando sorrir, — que José Bálsamo, o homem sobrenatural, levara o seu crédito para o túmulo, assim como atirara ao fogo o meu recibo. — Monsenhor, — respondeu gravemente o conde, — a vida de José Bálsamo é indestrutível como o é esta folha de papel que julgáveis aniquilada. A morte nada pode contra o elixir da vida e o fogo não pode nada contra o amianto. — Não compreendo, — tornou o cardeal sentindo-se repentinamente ofuscado. — Tenho certeza de que Vossa Eminência vai compreender, — acudiu Cagliostro. — Como assim? — Reconhecendo a sua assinatura. E apresentou um papel dobrado ao príncipe, que, antes até de abri-lo

bradou: — O meu recibo!

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O COLAR DA RAINHA 455

— Sim, Monsenhor, o seu recibo, — replicou Cagliostro com leve sorriso, mitigado ainda por uma fria reverência. — Entretanto, senhor, haviei-lo queimado, pois vi as chamas. — É verdade que atirei o papel ao fogo, — assentiu o conde, — mas, como já vos disse, Monsenhor, quis o acaso que tivésseis escrito num pedaço de amianto, em vez de escrever num papel comum, de sorte que tornei a encontrá-lo intacto entre as cinzas. — Senhor, — volveu o cardeal com certa altivez, pois cria ver na apresentação do recibo um sinal de desconfiança, — acreditai que eu não teria negado a minha dívida sem esse papel, como não a nego com êle; dessarte, fizestes mal pretendendo enganar-me. — Juro, Monsenhor, que não me passou sequer pela cabeça a idéia de enganar-vos. O cardeal fêz um sinal com a cabeça. — Fizestes-me acreditar, — murmurou — que a dívida havia sido cancelada.

— Para deixar-vos o gozo calmo e feliz das quinhentas mil libras, — respondeu Bálsamo, por sua vez, com leve movimento de ombros.

— Mas afinal, senhor, — continuou o cardeal, — como é que, durante dez anos, deixastes de cobrar soma tão vultosa? — Eu sabia, Monsenhor, que ela estava em boas mãos. Os acontecimentos, o jogo, os ladrões, despojaram-me sucessivamente de todos os meus bens. Mas, sabendo que tinha esse dinheiro seguro,pacientei e esperei até o último momento. — E o último momento chegou? — Infelizmente, Monsenhor! — De sorte que já não podeis pacientar nem esperar. — De fato, já não posso, — retrucou Cagliostro. — Viestes, então, cobrar o dinheiro? — Vim, Monsenhor. — Hoje? — Seria um favor. Manteve o cardeal um silêncio palpitante de desespero. Logo, com voz

alterada: — Sr. Conde, — exclamou, — os desgraçados príncipes da terra não improvisam fortunas tão rapidamente quanto vós, os feiticeiros,que comandais os espíritos das trevas e das luzes. — Oh! Monsenhor, — atalhou Cagliostro, — eu não vos teria pedido essa soma se não soubesse de antemão que a tínheis convosco. — Eu tenho quinhentas mil libras? — bradou o cardeal. — 30.000 libras em ouro, 10.000 em prata, e o resto em notas. Empalideceu o prelado. — Que estão lá, naquele armário de Boule, — continuou Cagliostro. — Também o sabeis, senhor?

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456 ALEXANDRE DUMAS

— Sei, Monsenhor, e sei também quantos sacrifícios precisastes fazer para conseguir o dinheiro. Ouvi dizer até que pagastes por êle duas vezes o seu valor. — É verdade. — Mas... — Mas?. . . — repetiu o amofinado príncipe. — Mas eu, Monsenhor, — prosseguiu Cagliostro, — no espaço de dez anos, quase morri à míngua ao lado desse papel, que para mini representava meio milhão; e, todavia, não querendo incomodar-vos, esperei. Creio, portanto, que estamos mais ou menos quites. — Quites, senhor! — exclamou o príncipe; — não digais que estamos quites, pois ainda levais a vantagem de me haverdes generosamente emprestado tamanha soma! Quites! não! não! Sou e serei eternamente vosso obrigado. Entretanto, Sr. Conde, eu gostaria de saber por que, tendo podido cobrá-la nos últimos dez anos,ficastes em silêncio? Durante esse tempo eu teria tido vinte ocasiões de devolver-vos o dinheiro sem me atrapalhar. — Ao passo que hoje?... — arriscou Cagliostro. — Hoje confesso que a restituição que exigis de mim, porque a estais exigindo, não é verdade?... — Infelizmente, Monsenhor. — . . .me atrapalha horrivelmente. Cagliostro fêz com a cabeça e com os ombros um movimentozinho que

significava: — Que quereis, Monsenhor! o negócio é assim e não pode ser de outro jeito!

— Mas vós, que tudo adivinhais, — bradou o príncipe: — vós,que sabeis ler no fundo dos corações e até no fundo dos armários,o que às vezes é bem pior, haveis de conhecer por que preciso tanto do dinheiro e qual o misterioso e sagrado emprego que lhe destino. — Estais enganado, Monsenhor, — volveu Cagliostro em tom glacial, — não sei; os meus próprios segredos me têm proporcionado tantas tristezas, decepções e misérias, que não me preocupam os segredos alheios, a menos que me interessem. Interessava-me saber se tínheis o dinheiro, ou se o não tínheis, visto que mo devíeis.Mas, ciente de que êle se achava em vossas mãos, pouco me importava conhecer o destino que lhe pensáveis dar. De resto, Monsenhor, se soubesse neste momento a causa do vosso enleio, ela me pareceria talvez tão grave e respeitável que eu teria a fraqueza de contemporizar ainda; e repito que, nas atuais circunstâncias, isso me ocasionaria o maior dos prejuízos. Portanto, prefiro ignorar. — Oh! — exclamou o cardeal, cujo orgulho e cuja suscetibilidade acabavam de ser aguilhoados pelas últimas palavras, — não cuideis, pelo menos, que eu queira inspirar-vos compaixão com as minhas dificuldades pessoais; tendes os vossos interesses represen-

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O COLAR DA RAINHA 457

tados e garantidos por esse bilhete; o bilhete está assinado por mim; é o suficiente. Recebereis as quinhentas mil libras.

Inclinou-se Cagliostro. — Eu sei, — continuou o cardeal, devorado pela mágoa de perder num minuto tanto dinheiro penosamente juntado, — eu sei que esse papel não passa de uma confissão de dívida e não fixa o dia do vencimento. — Queira perdoar-me Vossa Eminência, — refutou o Conde; — reporto-me, porém, ao texto do recibo e nele vejo escrito:

"Reconheço haver recebido do Sr. José Bálsamo a importância de 500.000 libras, que lhe pagarei assim que êle mas pedir.

"Assinado, LUÍS DE ROHAN."

Um frêmito sacudiu todos os membros do prelado; não somente lhe esquecera a dívida mas também os termos do seu reconhecimento.

— Vede, Monsenhor, — continuou Bálsamo, — que não estou pedindo o impossível. Não podeis pagar, seja. Lamento apenas que Vossa Eminência pareça esquecer-se de que a soma lhe foi dada por José Bálsamo espontaneamente, numa hora suprema; e a quem? ao Sr. de Rohan, que êle não conhecia. Eis aí, segundo me parece,um desses gestos fidalgos que o Sr. de Rohan, fidalgo como quem o mais o seja, teria podido imitar na restituição. Entendestes, porém, que não devíeis fazê-lo; não se fala mais nisso. Fico com o recibo. Adeus, Monsenhor.

E dobrou friamente o papel, fazendo menção de enfiá-lo novamente no bolso.

O cardeal deteve-o. — Sr. Conde, — disse êle, — um Rohan não admite que ninguém no

mundo lhe dê lições de generosidade. Isto, aliás, seria,quando muito, uma lição de probidade. Entregai-me o recibo,por favor, para que eu possa pagá-lo.

Foi então Cagliostro, por seu turno, quem pareceu hesitar. Dir-se-ia, com efeito, que o rosto pálido, os olhos inchados e a mão

trêmula do cardeal despertassem nele vivíssima compaixão. Por altivo que fosse, percebeu o cardeal o generoso impulso de

Cagliostro. Por um instante esperou que se lhe seguisse um bom resultado. Súbito, porém, o olhar do conde se endureceu, uma nuvem lhe passou

por entre as sobrancelhas franzidas, e êle estendeu a mão e o recibo ao prelado.

Embora atingido em pleno coração, o Sr. de Rohan não perdeu um instante; dirigiu-se para o armário assinalado por Cagliostro e dele tirou um maço de notas; em seguida, indicou com o dedo vários saquinhos de prata e abriu uma gaveta cheia de ouro.

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458 ALEXANDRE DUMAS

— Sr. Conde, — disse, — aqui estão as vossas quinhentas mil libras; entretanto, ainda vos fico devendo duzentas e cinqüenta mil de juros, na hipótese de recusardes os juros compostos, que dariam uma soma muito mais considerável. Mandarei o meu intendente fazer as contas e vos darei as garantias necessárias, rogando-vos apenas que me concedais um prazo. — Monsenhor, — retorquiu Cagliostro, — emprestei quinhentas mil libras ao Sr. de Rohan. O Sr. de Rohan me deve apenas quinhentas mil libras. Se eu tivesse querido receber os juros, tê-los-ia incluído no recibo. Procurador ou herdeiro de José Bálsamo, como quiserdes, porque a verdade é que José Bálsamo está morto, só devo aceitar as somas estipuladas no recibo; vós pagais, eu recebo e agradeço, rogando-vos aceiteis as minhas respeitosas homenagens. Levo, pois, as notas, Monsenhor, e, como tenho urgente necessidade da soma toda para o dia de hoje, mandarei buscar o ouro e a prata, que vos peço tenhais preparados. Ditas essas palavras, a que o cardeal não achou o que responder, Cagliostro

pôs o maço de notas no bolso, cortejou respeitosamente o príncipe, em cujas mãos deixou o recibo, e saiu.

— O infortúnio é só meu, — suspirou o Sr. de Rohan, após a partida de Cagliostro, — visto que a rainha está em condições de pagar, e dela, pelo menos, um José Bálsamo inesperado não virá reclamar uma dívida atrasada de quinhentas mil libras.

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LIX

Contas domésticas ERA A ANTEVÉSPERA do primeiro pagamento marcado pela rainha.

O Sr. de Calonne ainda não cumprira o prometido. As suas contas não tinham sido assinadas pelo rei.

O ministro tivera muito o que fazer e esquecera-se um pouco da rainha. Ela, de seu lado, achava que a sua dignidade não lhe permitia refrescar a memória do diretor das finanças. Tendo recebido uma promessa, aguardava-lhe o cumprimento.

Entretanto, principiava a inquietar-se e a informar-se, buscando os meios de falar com o Sr. de Calonne sem se comprometer, quando lhe chegou às mãos um bilhete do ministro.

"Esta noite", rezava o bilhete, "o negócio de que Vossa Majestade me fêz a honra de encarregar-me, será assinado na reunião do conselho, e amanhã cedo os fundos estarão em seu poder."

A alegria voltou aos lábios de Maria Antonieta, que não pensou em mais nada, nem sequer no amanhã, tão pesado.

Viram-na até procurar, nos passeios, os atalhos mais secretos, como que para isolar os seus pensamentos de todo e qualquer contacto material e mundano.

Ainda estava passeando com a Sra. de Lamballe e com o Conde do Artois, que fora ter com ela, quando o rei entrou na sala do conselho, após o jantar.

O monarca estava de mau humor. As notícias da Rússia eram más. Perdera-se um navio no Golfo de Lião. Algumas províncias recusavam-se a pagar o imposto. Um belo mapa-múndi, polido e envernizado pelo próprio rei, estourara por efeito do calor, cortando a Europa em duas partes, no ponto de junção entre o 30° grau de latitude e o 55° de longitude. Sua Majestade amarrara a cara para todo o mundo — até para o Sr. Calonne.

Debalde lhe apresentou o ministro a bela pasta perfumada e um semblante risonho. Mudo e taciturno, pôs-se o rei a rabiscar num pedaço de papel uns traços, que significavam tempestade, assim como os seus bonecos e cavalos traduziam bom tempo.

Pois a mania de Sua Majestade era desenhar durante as reuniões do conselho. Luís XVI não gostava de encarar com os outros;

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tímido, sentia-se mais seguro com uma pena na mão. Enquanto assim se entretinha, o orador podia desenvolver os seus argumentos; erguendo um olhar furtivo, tomava-lhe o rei um pouco do fogo dos seus olhos, o suficiente para que não lhe esquecesse o homem enquanto pesava a idéia.

Quando êle mesmo falava, o que aliás fazia muito bem, o desenho lhe tirava todo e qualquer ar de pretensão ao discurso, pois não lhe permitia fazer outros gestos; podia interromper-se ou exaltar-se à vontade: o traço no papel substituía, quando necessário, os ornatos da palavra.

O soberano, portanto, tomou da pena, como de costume, e os ministros encetaram a leitura dos projetos ou das notas diplomáticas.

O rei não disse uma palavra; deixou passar a correspondência estrangeira como se não entendesse patavina daquilo tudo.

Chegou, porém, o momento de pormenorizar as contas do mês; Luís XVI ergueu a cabeça.

O Sr. de Calonne acabava de abrir um memorial' relativo ao empréstimo projetado para o ano seguinte.

Sua Majestade começou a fazer uns traços furiosos. — Sempre pedindo emprestado, — disse, êle, — sem saber como se pagará! Mas isso é um problema, Sr. de Calonne! — Um empréstimo, Sire, é a sangria feita numa fonte: a água desaparece aqui para surgir acolá. Mais, é duplicada pelas aspirações subterrâneas. De resto, em lugar de perguntar como pagaremos, devíamos perguntar como e a quem pediremos emprestado? Pois o problema a que se refere Vossa Majestade não é: Com que se pagará? senão: Encontrar-se-ão credores? Os rabiscos do rei estavam ficando cada vez mais grossos; mas êle não

disse uma palavra: os traços falavam por si. Tendo o Sr. de Calonne exposto o seu plano com a aprovação dos colegas,

o monarca pegou no projeto e assinou-o, embora suspirasse. — Agora que temos dinheiro, — tornou, rindo, o Sr. de Calonne,

— gastemo-lo. O rei olhou para o ministro com uma careta, e o risco no papel

converteu-se num enorme borrão de tinta. O Sr. de Calonne passou-lhe às mãos um rol de pensões, gratificações,

ajudas de custo, doações e soldos. O trabalho era curto, bem discriminado. O rei virou as páginas e

examinou o total. — Um milhão e cem mil libras por tão pouco! Como assim? E descansou a pena. —Leia, Sire, leia, e digne-se observar que, do milhão e cem mil libras,

só um item é de quinhentas mil.

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— Qual deles, Sr. Ministro? — O adiantamento feito a Sua Majestade, a rainha, Sire. — Â rainha! — bradou Luís XVI... — Quinhentas mil libras para a rainha! Não é possível! — Perdão, Sire; mas os algarismos são exatos. — Quinhentas mil libras para a rainha! — repetiu o rei. — Há de haver algum erro. Na semana passada... não, há quinze dias, mandei pagar o trimestre de Sua Majestade. — Sire, se a rainha teve precisão de dinheiro, e toda a gente sabe como o emprega, não é extraordinário... — Não, não! — exclamou o rei, sentindo a necessidade de falar da própria economia e de conciliar alguns aplausos a Maria Antonieta quando ela fosse à ópera; — a rainha não há de querer ta manha soma, Sr. de Calonne. Ela já me disse que um navio vale mais do que jóias. E entende que, se a França pede dinheiro emprestado para alimentar os seus pobres, nós, os ricos, devemos emprestar dinheiro à França. Por conseguinte, se necessita dessa importância, o seu mérito será tanto maior quanto mais tempo esperar; e eu vos garanto que esperará. Os ministros aplaudiram muito o ímpeto patriótico do rei, que o divino

Horácio não teria chamado Uxorius naquele momento. Só o Sr. de Calonne, que conhecia as dificuldades da rainha, afoitou-se a

insistir. — Francamente, — atalhou o rei, — estais mais interessado por nós do que nós mesmos; calma, Sr. de Calonne! — A rainha, Sire, me acusará de haver zelado pouco pelos seus interesses. — Defenderei a vossa causa junto dela. — A rainha, Sire, só pede quando obrigada pela necessidade. — Se a rainha tem necessidades, estas hão de ser menos imperiosas, creio eu, do que as dos pobres, e ela será a primeira a convir com isso. — Sire... — Assunto resolvido, — decidiu o rei. E empunhou a pena dos rabiscos. — Vossa Majestade cancela o crédito? — perguntou o Sr. De Calonne, consternado. — Cancelo, — respondeu majestosamente Luís XVI. — E parece-me ouvir a voz generosa da rainha agradecendo-me por lhe haver tão bem compreendido o coração. O Sr. de Calonne mordeu os lábios; satisfeito com esse heróico

sacrifício pessoal, Luís assinou o resto com cega boa-fé.

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462 ALEXANDRE DUMAS

E desenhou uma linda zebra, cercada de zeros, repetindo: — Ganhei esta noite quinhentas mil libras: um belo dia para um rei, Calonne! Vós mesmo dareis a boa notícia à rainha; e vereis, vereis. — Ah! meu Deus! Sire, — murmurou o ministro, — eu ficaria desesperado se lhe furtasse a alegria dessa confissão. A cada um segundo os seus méritos. — Seja, — replicou o rei. — Levantemos a sessão. Quando é bom, o trabalho não precisa ser longo. Ah! eis a rainha que volta; vamos ter com ela, Calonne? — Peço perdão a Vossa Majestade, mas ainda tenho o que fazer. E esquivou-se, ligeiro, pelo corredor. Corajosa e alegremente, encaminhou-se o rei ao encontro da esposa, que

estava cantando no vestíbulo, de braço dado com o Conde do Artois. — Senhora, — disse êle, — destes um bom passeio, não é verdade? — Excelente, Sire. E Vossa Majestade fêz um bom trabalho, não fêz? — Julgai-o pelos resultados: ganhei para vós quinhentas mil libras. — Calonne cumpriu a palavra, — pensou a rainha. — Imaginai, — acrescentou Luís XVI, — que Calonne vos abrira um crédito de meio milhão. — Oh! — fêz Maria Antonieta, sorrindo. — E eu. . . cancelei-o. São quinhentas mil libras ganhas com uma penada. — Cancelou-o? — volveu a rainha, empalidecendo. — Totalmente; isso vai fazer-vos um bem enorme. Boa noite, senhora, boa noite. — Sire! Sire! — Estou com muita fome. Vou entrar. Não mereço uma boa ceia? — Sire! ouça! Luís XVI saltitou e fugiu, contentíssimo com a brincadeira, deixando a

rainha muda e consternada. — Meu irmão, mandai-me buscar o Sr. de Calonne, — disse ela, por fim, ao

Conde do Artois, — há nisso alguma brincadeira de mau gosto. Precisamente naquele instante lhe traziam o seguinte bilhete do ministro:

"Vossa Majestade já deve ter sabido que o rei recusou o crédito. É incompreensível, senhora! Deixei o conselho doente e compungido."

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— Lede, — disse ela, passando o bilhete ao Conde do Artois. — E ainda há quem nos acuse de dilapidar as finanças, minha irmã! — bradou o príncipe. — Isso é procedimento... — De marido, — completou a rainha. — Adeus, meu irmão. — Meus pêsames, querida irmã; eis-me avisado, eu que pretendia pedir amanhã. — Mandai-me buscar a Sra. de La Motte, — disse a rainha a Sra. de Misery, após longa meditação; — onde quer que ela esteja e imediatamente.

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LX

Maria Antonieta, rainha, Joana de La Motte, mulher

O CORREIO enviado a Paris, à procura da Sra. de La Motte, encontrou a condessa, ou melhor, não a encontrou, em casa do Cardeal de Rohan.

Joana fora visitar Sua Eminência; lá jantara e lá estava ceando, deplorando a malfadada restituição, quando o correio apareceu, perguntando se a condessa estava.

O suíço, habilmente, respondeu que Sua Eminência saíra e que a Sra. de La Motte não se encontrava no palácio, mas que nada seria mais fácil do que dar-lhe o recado da rainha, visto que ela ainda viria provavelmente àquela noite.

— É para ela ir a Versalhes assim que puder, — declarou o mensageiro, que partiu, não sem deixar o mesmo aviso em todas as presumíveis residências da nômade condessa.

Mas tanto que partiu o correio, o suíço, desempenhando a sua incumbência sem ir muito longe, mandou a esposa levar a mensagem a Sra. de La Motte em casa do Sr. de Rohan, onde os dois associados filosofavam, a gosto, sobre a instabilidade das grandes fortunas.

Pelos termos da ordem, compreendeu a condessa que havia urgência em partir. Pediu dois bons cavalos ao cardeal, que a instalou pessoalmente numa berlinda sem brasões e, ao passo que êle remoia a possível significação da embaixada, a condessa corria tanto que, uma hora depois, chegava ao castelo.

Alguém, que a estava esperando, introduziu-a sem demora à presença de Maria Antonieta.

A rainha recolhera aos seus aposentos. O serviço da noite fora feito: já não havia mulher alguma no apartamento, exceto a Sra. de Misery, entretida em ler no toucadorzinho.

Maria Antonieta estava bordando ou fingindo bordar, com o ouvido inquieto atento aos rumores de fora, quando Joana se precipitou ao encontro dela.

— Ah! — bradou a soberana. — Estais aqui, tanto melhor! Uma notícia... condessa. — Boa, senhora?

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— Julgai-a vós mesma. Sua Majestade recusou as quinhentas mil libras. — Ao Sr. de Calonne? ' — A toda a gente. O rei já não quer dar-me dinheiro. Essas coisas só me acontecem a mim. — Meu Deus! — murmurou a condessa. — É inacreditável, não é? Recusar, cancelar um crédito já aberto! Enfim, não adianta falar do que não tem remédio. Voltareis imediatamente a Paris. — Sim, senhora. — E direis ao cardeal, que tão zeloso se mostrou de agradar-me, que aceito as suas quinhentas mil libras até ao próximo trimestre. Estou sendo egoísta, condessa! mas é preciso... Sei que é um abuso. .. — Estamos perdidas, senhora, — murmurou Joana; — o Sr. Cardeal não tem mais dinheiro. A rainha deu um pulo, como se a tivessem ferido ou insultado. — Não tem mais... dinheiro. . . — balbuciou. — Uma dívida de que o Sr. de Rohan já se esquecera, foi-lhe cobrada. Era uma dívida de honra, êle teve de pagar. — Quinhentas mil libras? — Sim, senhora. — Mas... — Seu último dinheiro... Acabaram-se os recursos. Deteve-se a rainha como que aturdida por aquele desar. — Estou acordada, não estou? — perguntou. — É a mim mesma que sucedem esses reveses? Como sabeis, condessa, que o Sr. De Rohan já não tem dinheiro? — Faz uma hora e meia que êle me estava contando o desastre, tanto menos reparável quanto as quinhentas mil libras constituíam o que se costuma chamar um fundo de gaveta. Maria Antonieta apoiou o rosto nas mãos. — É preciso tomar uma decisão, — disse ela. — Que vai fazer a rainha? — pensou Joana. — Vede, condessa, é uma lição terrível, que me servirá de castigo por haver praticado, às escondidas do rei, uma ação de medíocre importância, de medíocre ambição ou de mesquinha casquilhice. Confessai que eu não tinha precisão alguma do colar. — É verdade, senhora, mas se uma rainha consultasse apenas as suas necessidades e os seus gostos... — Quero consultar primeiro que tudo a minha tranqüilidade, a felicidade de minha casa. Só me faltava essa primeira lástima para mostrar-me a quantos aborrecimentos eu ia expor-me, o quanto era fecundo em desgraças o caminho escolhido. Renuncio. Procedamos francamente, procedamos livremente, procedamos simplesmente.

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— Senhora! — E, para começar, sacrifiquemos a nossa vaidade no altar do dever, como diria o Sr. Dorat. — Logo, com um suspiro: — Mas era bem bonito o colar! — Ainda o é, senhora, e representa dinheiro em caixa. — A partir deste momento, não passa, para mim, de um monte de pedras. E faz-se com as pedras, depois de brincar com elas, o que fazem crianças após uma partida de malha: jogam-se fora, esquecem-se. — Que quer dizer a rainha? — A rainha quer dizer, minha querida condessa, que pegareis de novo no escrínio trazido... pelo Sr. de Rohan. . . e o devolvereis aos joalheiros Boehmer e Bossange. — Devolver? — Precisamente. — Mas Vossa Majestade deu duzentas e cinqüenta mil libras de sinal! — São duzentas e cinqüenta mil libras que ainda ganho, condessa; eis-me agora conforme com as contas do rei. — Senhora! senhora! — bradou a condessa, — perder assim um quarto de milhão! Pois pode acontecer perfeitamente que os joalheiros se recusem a restituir o sinal, de que talvez já tenham disposto. — Já pensei nisso e deixo-lhes o sinal, com a condição de anularmos o negócio. Desde que entrevejo essa solução, condessa, já me sinto mais leve. Com o colar, vieram instalar-se aqui preocupações, pesares, receios, suspeitas. Esses brilhantes nunca teriam calor suficiente para secar todas as lágrimas que sinto pesar em nuvens sobre mim. Condessa, levai-me daqui imediatamente o colar. Os joalheiros farão um bom negócio. Duzentas e cinqüenta mil libras de sobrepaga são um lucro respeitável; é o lucro que eles pretendiam, e ainda por cima ficam com o colar. Imagino que não se queixarão e que ninguém ficará sabendo de nada. O cardeal fez o que fêz apenas para me dar prazer. Dir-lhe-eis que o meu prazer agora é não ter o colar e, se êle fôr homem de espírito,saberá compreender-me; se fôr bom padre, saberá aprovar-me e fortalecer-me no sacrifício. Dizendo essas palavras, a rainha estendia a Joana o escrínio fechado.

Esta repeliu-o brandamente. — Senhora, — sugeriu, — por que não tenta obter um adiamento? — Pedir... não! — Eu disse obter, Majestade. — Pedir é humilhar-se, condessa; obter é ser humilhada. Eu compreenderia talvez que alguém se humilhasse por uma pessoa

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amada, para salvar uma criatura viva, ainda que fosse um cachorro; mas para obter o direito de conservar estas pedras, que queimam como carvão aceso e não são mais luminosas nem tão duráveis, condessa, eis o que nenhum conselho acabará comigo que aceite. Nunca! Levai-me o escrínio, minha cara!

— Mas pense, senhora, no barulho que farão os ourives, ao me nos por polidez e para lastimá-la. A sua recusa será tão comprometedora quanto o teria sido a sua aquiescência. Toda a gente saberá que Vossa Majestade teve os brilhantes em seu poder. — Ninguém saberá coisa alguma. Já não devo mais nada a esses joalheiros; não tornarei a recebê-los; o mínimo que podem fazer em troca das minhas duzentas e cinqüenta mil libras é calar a boca; e os meus inimigos, em lugar de dizer que ando comprando brilhantes de um milhão e meio, dirão apenas que tenho perdido dinheiro no comércio. É menos desagradável. Levai, condessa, levai, e agradecei ao Sr. de Rohan a gentileza e a boa vontade. E, com gesto imperioso, colocou o escrínio nas mãos de Joana, que não lhe

sentiu o peso sem alguma comoção. — Não podeis perder tempo, — prosseguiu Maria Antonieta; — quanto menos inquietação sentirem os ourives, tanto mais seguras do sigilo estaremos nós; voltai depressa, e ninguém veja o escrínio. Passai primeiro pela vossa casa, a fim de evitar que uma visita a Boehmer, há esta hora, desperte as suspeitas da polícia, que outra coisa não faz senão ocupar-se do que se faz em minha casa; depois, quando o vosso regresso houver despistado os espias, ide à casa dos lapidários e trazei-me o recibo deles. — Sim, senhora: assim se fará, visto que assim o quer Vossa Majestade. Joana colocou o escrínio debaixo do mantelete, de modo que nenhum

volume traísse a presença da caixa, e tomou o carro com o zelo reclamado pela augusta cúmplice.

Em primeiro lugar, para obedecer, fêz-se conduzir à sua casa, e mandou de volta o carro para o palácio do Sr. de Rohan, a fim de não despertar as desconfianças do cocheiro que a conduzira. Em seguida, despiu-se, para envergar um trajo menos elegante, mais adequado à noturna incumbência.

A camareira vestiu-a rapidamente e surpreendeu-se ao vê-la distraída e pensativa durante a operação, honrada de ordinário por toda a atenção das damas da corte.

Joana, com efeito, não estava pensando na toucagem e deixava-se vestir com o espírito fixo numa estranha idéia que lhe inspirara a ocasião.

Perguntava a si mesma se o cardeal não cometeria um grande erro deixando a rainha devolver a jóia, e se o erro cometido não ocasionaria algum prejuízo à fortuna com que sonhava e talvez

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pudesse obter o Sr. de Rohan, como participante dos segredinhos de Sua Majestade.

Cumprir as ordens de Maria Antonieta sem consultar o Sr. de Rohan não seria faltar às primeiras obrigações da associação? Ainda que estivesse à míngua de todos os recursos, não preferiria o cardeal vender-se a deixar privada a rainha de um objeto que ela cobiçara?

— Não posso fazer outra coisa, — disse com os seus botões, — senão consultá-lo. — Um milhão e quatrocentas mil libras! — ajuntou; — ele nunca terá um milhão e quatrocentas mil libras! Logo, a súbitas, voltando-se para a camareira: — Vai-te, Rosa, — ordenou. Obedeceu a camareira e a Sra. de La Motte continuou o seu monólogo

interior. — Que soma! Que fortuna! Que vida radiosa! E como toda a felicidade

e todo o brilho que tanto dinheiro proporciona estão bem representados pela serpentezinha de pedras que flameja neste escrínio!

Abriu o porta-jóias e queimou os olhos ao contacto daquelas chamas catadupejantes. Tirou o colar do cetim, enrolou-o nos dedos, fechou-o na palma das mãos e murmurou:

— Um milhão e quatrocentas mil libras encerradas aqui dentro! O colar vale realmente esse dinheiro e os ourives ainda hoje o comprariam pela mesma quantia.

"Estranho destino, que permite à pequena Joana de Valois, mendiga e obscura, tocar com a mão a mão da primeira rainha do mundo e ter entre as palmas, é verdade que por uma hora apenas, um milhão e quatrocentas mil libras, soma que nunca anda sozinha neste mundo e sempre se faz escoltar de guardas armados ou garantias que não podem ser menores em França que as de um cardeal e de uma rainha!

"Tudo isto entre os meus dedos!... Como pesa e como é leve! "Para carregar em ouro, metal precioso, o equivalente deste escrínio, eu

precisaria de dois cavalos; para carregá-lo em notas de banco... e acaso são sempre resgatadas as notas de banco? não é preciso assinar, verificar? De mais a mais, nota é papel: podem destruí-la o fogo, o ar, a água. Acrescente-se que a nota de banco não tem curso em todo o país; trai a própria origem, revela o nome do autor, o nome do portador. Volvido algum tempo, perde parte do valor ou o valor todo. Os brilhantes ao contrário, são matéria dura, que a tudo resiste, e que todo homem conhece, aprecia, admira e compra, em Londres, Berlim, Madri, e até no Brasil. Todos compreendem um brilhante, sobretudo um brilhante do tamanho e com a água que têm estes aqui! Como são lindos! Como são

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admiráveis! Que belo conjunto e que extraordinárias minúcias! Cada um, separadamente, valerá talvez mais, guardadas as devidas proporções, do que valem todos juntos.

"Mas em que estou pensando? — exclamou, de repente; — decidamo-nos logo a procurar o cardeal ou a devolver o colar a Boehmer, como determinou a rainha".

Levantou-se, conservando na mão os brilhantes, que se aqueciam e resplandeciam.

— Eles voltarão, portanto, para a casa do ourives, que os pesará e polirá com a sua escova, quando poderiam brilhar no colo de Maria Antonieta. .. Boehmer, a princípio, reclamará, mas ficará quieto ao compreender que terá um lucro e conservará a mercadoria. Ah! esquecia-me! de que forma farei redigir o recibo do joalheiro? Isso é grave; sim, há na redação necessidade de muita diplomacia. Cumpre que o recibo não nos comprometa, nem a Boehmer, nem à rainha, nem ao cardeal, nem a mim.

"Nunca redigirei sozinha um documento desses. Preciso de um conselho. "O cardeal... Não! Se êle me amasse um pouco mais ou, sendo mais

rico, me desse brilhantes..." Sentou-se no sofá, com os brilhantes enrolados na mão, a cabeça ardente,

cheia de pensamentos confusos, que, por vezes, a espavoriam e que ela repelia com febril energia.

Súbito, o olhar tornou-se-lhe mais calmo, mais fixo, mais concentrado num pensamento uniforme; não se advertiu de que os minutos se escoavam, que tudo assumia nela um aprumo dali por diante inquebrantável, e que, à semelhança dos nadadores que enterram o pé na vaza dos rios, cada movimento que fazia para libertar-se a enterrava um pouco mais. Uma hora se passou nessa muda e profunda contemplação de um alvo misterioso.

Depois, ergueu-se devagar, pálida como a sacerdotiza inspirada, e tocou a campainha chamando a camareira.

Eram duas horas da manhã. — Vai-me buscar um fiacre, — ordenou, — ou uma cadeirinha, se não

houver mais carros. A criada encontrou um fiacre, que estava dormindo na velha Rua do

Templo. A Sra. de La Motte embarcou só e mandou de volta a camareira. Dez minutos depois, detinha-se à porta do panfletário Retal de Valete.

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LXI

O recibo de Boehmer e o reconhecimento da rainha

O RESULTADO dessa visita noturna feita ao panfletário Reteau de Villette só apareceu no dia seguinte e da seguinte maneira:

Às sete horas da manhã, a Sra. de La Motte fêz chegar às mãos da rainha uma carta que continha o recibo dos joalheiros. Essa peça importante dizia deste teor:

"Nós, abaixo-assinados, reconhecemos haver voltado à posse do colar de brilhantes primitivamente vendido à rainha pela soma de um milhão e seiscentas mil libras, por não terem eles agradado a Sua Majestade, que nos indenizou do trabalho e das despesas com a soma de duzentos e cinqüenta mil libras, entregue em nossas mãos.

"Assinado: BOEHMER e BOSSANGE."

Tranqüilizada respeito ao negócio que durante tanto tempo a atormentara, a rainha enfiou o recibo na cômoda e não pensou mais nele.

Mas, por estranha contradição com esse bilhete, os joalheiros Boehmer e Bossange receberam, dois dias depois, a visita do Cardeal de Rohan, ainda preocupado com o pagamento da primeira prestação convencionada entre os vendedores e Sua Majestade.

O Sr. de Rohan encontrou Boehmer na casa do cais da Escola. Desde cedo, por tratar-se do dia em que se vencia o primeiro título, se tivesse havido demora ou recusa, a casa dos lapidários deveria estar em polvorosa.

Muito ao contrário, porém, em casa de Boehmer se respirava a calma, e o Sr. de Rohan folgou de encontrar de boa sombra os criados e de rabinho agitado o cão dos joalheiros. Boehmer recebeu o ilustre cliente com rasgada expressão de contentamento.

— E então? — começou o prelado, — hoje se vence o primeiro título. A rainha pagou? — Não, Monsenhor, — respondeu Boehmer. — Sua Majestade não pôde dar o dinheiro. Vossa Eminência sabe que o crédito proposto pelo Sr. de Calonne foi recusado pelo rei. Não se fala em outra coisa.

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O COLAR DA RAINHA 471

— Realmente, Boehmer, não se fala em outra coisa, e foi precisamente por isso que vim aqui. — Mas, — continuou o joalheiro, — Sua Majestade é excelente e tem muito boa vontade. Não tendo podido pagar, garantiu a dívida e isso para nós é mais do que suficiente. — Ah! tanto melhor! — bradou o cardeal. — Garantiu a dívida? Muito bem... Mas como? — Da maneira mais simples e mais delicada, — tornou o joalheiro, .— da maneira mais real possível. — Por intermédio daquela espirituosa condessa, talvez? — Não, Monsenhor. A Sra. de Motte nem sequer apareceu e foi isso o que mais nos lisonjeou, ao Sr. Bossange e a mim. — Não apareceu! A condessa não apareceu?. .. Entretanto, ela representa um papel importantíssimo em tudo isto, Sr. Boehmer! Toda boa inspiração deve emanar da condessa. Compreendei, aliás, que não quero com isso diminuir a iniciativa de Sua Majestade. — Avalie Vossa Eminência a delicadeza e a bondade de Sua Majestade para conosco. Espalharam-se rumores sobre a recusa do rei de ordenar o adiantamento das quinhentas mil libras; escrevemos uma carta a Sra. de La Motte. — Quando? — Ontem, Monsenhor. — Que respondeu ela? — Vossa Eminência não sabe? — volveu Boehmer com uma nuança imperceptível de respeitosa familiaridade. — Não, faz três dias que não tenho a honra de ver a Sra.Condessa, — replicou o príncipe, principescamente. — Pois bem, Monsenhor, a Sra. de La Motte respondeu apenas esta palavra: Esperai! — Por escrito? — Não, de viva voz. Na carta pedíamos a Sra. de La Motte que vos solicitasse uma audiência e avisasse a rainha de que o dia do vencimento estava próximo. — A palavra esperai era perfeitamente natural, — observou o cardeal. — Esperamos, portanto, Monsenhor, e, ontem à noite, por um correio muito misterioso, recebemos um escrito da rainha. — Um escrito? Para vós, Boehmer? — Ou melhor, um reconhecimento de dívida com todos os ff e rr, Monsenhor. — Vejamo-lo! — pediu o cardeal. — Eu o mostraria de bom grado a Vossa Eminência se não tivéssemos jurado, meu sócio e eu, de o não mostrar a ninguém. — Por quê? — Porque a reserva nos foi imposta pela própria rainha, Monsenhor. Sua Majestade pede-nos segredo.

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— Ah! isso é outra coisa! Tendes a felicidade, senhores joalheiros, de receber cartas da rainha. — Por um milhão, trezentos e cinqüenta mil libras, Monsenhor, — observou, escarninho, o joalheiro, — podem-se receber... — Nem dez milhões, nem cem milhões pagam certas coisas, senhor, — revidou, severo, o prelado. — Enfim, estais bem garantidos? — O quanto possível, Monsenhor. — A rainha reconhece a dívida? — Legal e devidamente. — E compromete-se a pagar... — Dentro em três meses quinhentas mil libras; o resto, no semestre seguinte. — E... os juros? — Oh! Monsenhor, uma palavra de Sua Majestade os garante. "Façamos", acrescenta, bondosa, "façamos o negócio entre nós"; entre nós, Vossa Excelência há de compreender a recomendação; "não tereis ocasião de arrepender-vos". E assina! Como vê, Monsenhor, isso se tornou para meu sócio e para mim um caso de honra. — Estamos quites, então, Sr. Boehmer, — acudiu o cardeal, encantado; — logo faremos outro negócio. — Quando Vossa Eminência houver por bem honrar-nos com a sua confiança. — Mas observai ainda nisto a mão da amável condessa... — Ficamos imensamente reconhecidos a Sra. de La Motte, Monsenhor, e já decidimos, o Sr. Bossange e eu, premiar-lhe o interesse quando o colar, integralmente pago, nos deixar algum dinheiro em caixa. — Pssiu! pssiu! — fêz o cardeal, — não compreendestes. E voltou ao carro, escoltado pelo respeito de toda a casa. Podemos agora erguer a máscara. O véu não ficou sobre a estátua para

ninguém. O que Joana de La Motte fêz contra a benfeitora, já o compreenderam todos ao vê-la pedir emprestada a pena do panfletário Reteau de Villette. Os joalheiros não tinham mais inquietações, a rainha não tinha mais escrúpulos, o cardeal não tinha mais dúvidas. Calcularam-se três meses para a perpetração do roubo e do crime; nesses três meses, os frutos sinistros terão madurado suficientemente para que os colha a mão celerada.

Joana voltou à casa do Sr. de Rohan, que lhe perguntou como se houvera a rainha para abrandar as exigências dos lapidários.

Respondeu a Sra. de La Motte que a rainha lhes fizera uma confidência; recomendara-lhes segredo; uma rainha que paga já tem muita precisão de esconder-se, mas essa precisão é bem maior quando se vê na contingência de solicitar crédito.

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O COLAR DA RAINHA 473

Conveio o cardeal em que ela tinha razão e, ao mesmo tempo, lhe perguntou se ainda não haviam sido esquecidas as suas boas intenções dele.

Joana bosquejou um quadro tão vivo do reconhecimento da soberana, que o Sr. de Rohan ficou muito mais eufórico como apaixonado do que como súdito; e muito mais lisonjeado em seu orgulho do que em seu devotamento.

Levando por esse caminho a conversação, decidira Joana voltar tranqüilamente para casa, entender-se com o negociante de jóias, vender cem mil escudos de brilhantes e partir para a Inglaterra ou para a Rússia, países livres, onde viveria faustosamente com o dinheiro durante uns cinco ou seis anos, ao cabo dos quais, sem ser incomodada, começaria a vender, com lucro, aos poucos, o resto das pedras.

Mas nem tudo correu de acordo com os seus desejos. Diante dos primeiros brilhantes que mostrou a dois peritos, a surpresa destes últimos e dos auxiliares foi tamanha que assustou a vendedora. Um oferecia somas ridículas, extasiava-se o outro diante das pedras, jurando que nunca as vira iguais senão no colar de Boehmer.

Deteve-se Joana. Se desse mais um passo, acabar-se-ia traindo. Compreendeu que uma imprudência era a ruína, e que a ruína era o pelourinho e a prisão perpétua. Guardando os brilhantes no mais secreto de seus esconderijos, decidiu munir-se de armas defensivas tão sólidas e ofensivas tão afiladas que, em caso de guerra, fosse vencido de antemão quem quer que se apresentasse ao com-bate.

Bordejar entre os desejos do cardeal, que buscaria sempre saber, e as indiscrições da rainha, que sempre se gabaria de haver recusado, era um perigo terrível. Bastaria uma palavra trocada entre a soberana e o prelado para que tudo se descobrisse. Reconfortou-se ao pensar que o cardeal, enamorado da rainha, como todos os apaixonados tinha uma venda nos olhos e, por conseguinte, cairia em quaisquer ciladas que lhe armasse a astúcia com aparências de amor.

Cumpria, porém, que a cilada fosse urdida por mão hábil, a fim de que nela caíssem os dois interessados. Era mister que a rainha, descobrindo o roubo, não ousasse queixar-se, e o cardeal, descobrindo o logro, se sentisse perdido. Era preciso tramar um golpe de mestre para lançá-lo contra dois adversários que, de antemão, tinham por si toda a plateia.

Joana não recuou. Possuía uma dessas naturezas intrépidas, que levam o mal até ao heroísmo, e o bem até ao mal. A partir desse momento, um único pensamento a preocupou: impedir uma entrevista entre Luís e Maria Antonieta.

Enquanto ela, Joana, ficasse entre ambos, nada estaria perdido; mas se, à sua revelia, eles viessem a trocar uma palavra, bastaria

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essa palavra para arruinar-lhe à futura fortuna, edificada sobre a inocuidade do passado.

— Não se verão mais, — decidiu. — Nunca. "No entanto, objetava, o cardeal há de querer rever a rainha e tentará fazê-

lo. "Não esperemos que o tente; inspiremos-lhe a idéia. Que êle queira vê-la;

que o peça; que se comprometa ao pedi-lo. "Sim, mas e se êle fôr o único a comprometer-se?" Essa idéia produziu-lhe uma dolorosa perplexidade. "Se apenas êle se comprometesse, a rainha continuaria de posse de todos os

seus recursos; e ela fala tão alto! arranca tão bem a máscara aos velhacos! "Que fazer? Para que Maria Antonieta não pudesse acusar, era preciso

fechar-lhe a boca; e para fechar-lhe a boca nobre e corajosa, urgia embargá-la com a iniciativa de uma acusação.

"Diante de um tribunal, não se atreve a acusar o criado de furto quem pode ser acusado pelo criado de um crime tão infamante quanto o roubo. Se o Sr. de Rohan ficar comprometido em relação à rainha, é quase inevitável que a rainha fique comprometida em relação ao Sr. de Rohan.

"Todavia, era indispensável que o acaso não aproximasse as duas criaturas interessadas em desvelar o segredo."

A princípio, Joana recuou ante a enormidade do rochedo que estava suspendendo sobre a cabeça. Viver assim, ofegante, apavorada, sob a ameaça de uma queda daquelas!

Sim, mas como fugir à angústia? Fugindo, exilando-se, transferindo para um país estranho os brilhantes do colar da rainha!

Fugir não seria difícil. Um bom carro o faria em dez horas, ou seja, o espaço de um daqueles bons sonos de Maria Antonieta, o intervalo que põe o cardeal entre uma ceia de amigos e o despertar do dia seguinte. Surja diante de Joana a estrada real; ofereça ela o seu leito interminável às patas árdegas dos cavalos; é o suficiente. Joana estará livre, sã e salva em dez horas.

Mas que escândalo! Que vergonha! Desaparecida, embora livre; segura, ainda que proscrita; já não é uma dama de qualidade, senão uma ladra, uma criminosa revel, que a justiça não alcança, mas aponta, que o ferro do carrasco não queima, pois está muito longe, mas que a opinião pública devora e tritura.

Não. Não fugirá. O cúmulo da audácia e o cúmulo da habilidade são como os dois cimos do Atlas, que semelham os gêmeos da terra. Um leva ao outro; um vale o outro. Quem vê um vê o outro.

Joana decidiu-se pela audácia e ficou. Decidiu-o principalmente depois de entrever a possibilidade de criar, entre o cardeal e a rainha, uma solidariedade de terror no dia em que descobrissem que se cometera um roubo na sua intimidade.

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Calculara a condessa quanto lhe renderiam, era dois anos, o favor da rainha e o amor do cardeal; avaliara o rendimento dessas duas venturas numas quinhentas ou seiscentas mil libras, depois das quais o tédio, o desfavor, o desamparo a fariam expiar o favor, a voga, a predileção.

— Ganho, com o meu plano, seiscentas ou setecentas mil libras, — estimou ela.

Ver-se-á de que maneira essa alma profunda abriu a estrada tortuosa que deveria levá-la à vergonha, arrastando os outros ao desespero.

— Fico em Paris, — resumiu, — e faço pé firme, assistindo ao jogo dos dois atores; deixo-lhes apenas o papel que convém aos meus interesses; escolho, entre os bons momentos, um momento favorável para a fuga: uma comissão dada pela rainha ou o próprio desvalimento, que aproveitarei tanto que se esboce.

"Impeço o cardeal de comunicar-se, de qualquer modo, com Sua Majestade."

Nisso residia a maior dificuldade, visto que o Sr. de Rohan estava apaixonado, era príncipe, tinha o direito de entrar à presença de Maria Antonieta várias vezes por ano, e visto que ela, casquilha, ávida de homenagens e, além do mais, grata ao cardeal, não fugiria de falar-lhe se fosse procurada.

Mas o meio de separar os dois augustos personagens seria propiciado pelos próprios acontecimentos. E Joana se incumbiria de ajudá-los.

Nada seria tão bom, nem tão hábil, do que excitar na rainha o orgulho que coroa a castidade. Não havia dúvida alguma de que um passo mais atrevido do prelado feriria a mulher delicada e susceptível. As naturezas assim apreciam as homenagens, mas temem e repelem os ataques.

Sim, é o meio infalível. Aconselhando o Sr. de Rohan a declarar-se livremente, provocarei no espírito da soberana uma reação de repugnância, de antipatia, que afastará para todo o sempre, não o príncipe da princesa, senão o homem da mulher, o macho da fêmea. Por esse motivo, as armas se voltarão contra o cardeal, cujos movimentos ficarão dessarte, paralisados no dia das hostilidades.

Seja. Mas ainda assim, tornando o cardeal antipático à rainha, somente êle será prejudicado: resplandecerá a virtude dela, isto é, ficará ela completamente livre e com a faculdade de linguagem que facilita quaisquer acusações e lhes dá o peso da autoridade.

Era de mister uma prova contra o Sr. de Rohan e contra a rainha; uma espada de dois gumes, que ferisse à direita e à esquerda, que ferisse ao sair da bainha, que ferisse cortando a própria bainha.

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Era de mister uma acusação que fizesse empalidecer a rainha, que fizesse corar o cardeal, e, acreditada, isentasse de qualquer suspeita estranha à condessa, confidente dos dois principais culpados. Era de mister uma combinação que escudasse Joana e lhe permitisse dizer: "Não me acuseis que vos acuso, não me percais que vos perco. Deixai-me a fortuna, que vos deixarei a honra".

— Isso vale a pena de ser procurado, — pensou a pérfida condessa, — e hei de procurá-lo. O meu tempo vale ouro a partir de hoje.

Com efeito, a Sra. de La Motte acomodou-se entre boas almofadas, aproximou-se da janela, acariciada pelo meigo sol, e, em presença de Deus, empunhando o facho de Deus, começou a procurar.

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LX1I

A prisioneira

DURANTE essas agitações da condessa, durante o seu devanear, uma cena de outra ordem se passava na Rua de São Cláudio, defronte da casa habitada por Joana.

Como os leitores devem estar lembrados, o Sr. de Cagliostro alojara no antigo palácio de Bálsamo a fugitiva Oliva, perseguida pela polícia do Sr. de Crosne.

Muito inquieta, a Srta. Oliva aceitara com alegria a ocasião de fugir, ao mesmo tempo, da polícia e de Beausire; vivia, portanto, retirada, escondida, a tremer, na casa misteriosa, que abrigara tantos dramas terríveis, muito mais terríveis do que a tragicômica aventura da Srta. Nicole Legay.

Cumulara-a Cagliostro de cuidados e atenções: e ela se comprazia de ser protegida pelo grande fidalgo, que nada pedia, mas parecia esperar muita coisa.

Entretanto, que esperava êle? Eis o que debalde perguntava a si mesma a reclusa.

Para a Srta. Oliva, o Sr. de Cagliostro, o homem que domara Beausire e triunfara dos agentes de polícia, era um deus salvador. Era também um amante muito apaixonado, porque muito respeitoso.

Pois o seu amor-próprio não lhe permitia acreditar que Cagliostro não pretendesse torná-la, um dia, sua1 amante.

É uma virtude, nas mulheres que a não têm, acreditar que possam ser amadas respeitosamente. Há de estar bem murcho, bem árido, bem morto, o coração que já não espera o amor, nem o respeito que ao amor se segue.

Oliva, portanto, pôs-se a construir castelos em Espanha, no fundo da sua mansão da Rua de São Cláudio, quiméricos castelos em que o pobre Beausire, força é confessá-lo, raro encontrava lugar.

Quando, de manhã, cercada de todas as comodidades com que Cagliostro lhe trastejara os toucadores, fazia às vezes de grande dama e recapitulava as nuanças do papel de Celimena, só vivia para o momento em que o fidalgo aparecia, dois dias por semana, a perguntar-lhe se estava suportando facilmente a vida.

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478 ALEXANDRE DUMAS

E, no formoso salão, cercada de um luxo real e inteligente, a criaturinha inebriada confessava a si mesma que tudo em sua vida pregressa fora decepção, engano, e, ao contrário do que assevera o moralista: — A virtude faz a felicidade, — é a felicidade que faz, infalivelmente, a virtude.

Desgraçadamente, porém, faltava à composição daquela felicidade um elemento indispensável à sua duração.

Oliva era feliz, mas entendiava-se. Livros, quadros, instrumentos de música, não conseguiam distraí-la de todo.

Os livros não eram bastante licenciosos, e os que o eram já tinham sido lidos de um fôlego. Os quadros são sempre iguais depois de vistos pela primeira vez, — o juízo é de Oliva, não é nosso, — e os instrumentos de música desferem apenas um grito, nunca uma voz, para a mão ignorante que os solicita.

Cumpre dizer que Oliva não tardou em aborrecer-se cruelmente da sua felicidade, e mais de uma vez pensou, com uma saudade molhada de lágrimas, nas boas manhãs passadas à janela da Rua Dauphine, quando, magnetizando a rua com os olhos, obrigava os transeuntes a levantarem a cabeça.

E os belos passeios no bairro de São Germano, quando o casquilho chapim, erguendo sobre os saltos de duas polegadas um pé voluptuosamente torneado, convertia num triunfo cada um de seus passos e arrancava aos admiradores um gritinho, de medo, quando ela escorregava, ou de desejo, quando, após o pé, surgia a perna!

Nisso pensava Nicole aferrolhada. É verdade que os agentes do Sr. Chefe de Polícia eram gente temível, é verdade que o hospital, em que se extinguiam as mulheres num sórdido cativeiro, não se podia comparar com a efêmera e esplêndida clausura da Rua de São Cláudio. Mas de que serviria ser mulher e ter o direito do capricho, se não lhe fosse dado insurgir-se, às vezes, contra o bem, para trocá-lo em mal, ao menos em sonho?

Demais disso, tudo parece negro a quem se aborrece. Nicole sentiu saudades de Beausire depois de as haver sentido da liberdade. Confessemos que nada mudou no mundo feminino, desde o tempo em que as filhas de Judá, na véspera de um casamento de amor, iam chorar a sua virgindade sobre"*a montanha.

Chegamos a um dia de luto e exasperação em que Oliva, privada, havia duas semanas, de toda e qualquer sociedade, de toda e qualquer paisagem, entrava no mais triste período do mal do enfaro.

Havendo esgotado tudo, não se atrevendo a mostrar-se à janela nem a sair, começou a perder o apetite do estômago, embora não perdesse o da imaginação, que aumentava, pelo contrário, à proporção que diminuía o outro.

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O COLAR DA RAINHA 479

Foi nesse momento de agitação moral, que recebeu uma visita inesperada de Cagliostro.

Êle entrou, como de costume, pela porta dos fundos, e foi, pelo jardinzinho recém-traçado nos pátios, bater aos postigos do apartamento dela.

Quatro pancadas, desferidas nos intervalos por ambos convencionados, eram o sinal previamente combinado para que a jovem abrisse a ferrolho que entendera dever exigir como medida de segurança contra um visitante munido de chaves.

Não julgava Oliva inúteis as precauções para conservar uma virtude que, em certas ocasiões, lhe pesava.

Ao sinal dado por Cagliostro, abriu o ferrolho com uma rapidez indicativa da sua necessidade de conversar com alguém.

Viva como uma costureirinha parisiense, precipitou-se ao encontro do nobre carcereiro e, com voz irritada, rouca, embargada:

— Senhor, — bradou, — ficai sabendo que me enfastio. Considerou-a Cagliostro com leve movimento de cabeça. — Sim? — disse êle, tornando a fechar a porta, — que pena! É um triste mal, minha filha. — Não gosto daqui. Sinto-me morrer. — Deveras! — Tenho maus pensamentos. — Ora, essa! — tornou o conde, acalmando-a, como teria acalmado um cão, — se não estais bem em minha casa, não vos zangueis comigo. Guardai a vossa cólera para o Sr. Chefe de Polícia, que é vosso inimigo. — O vosso sangue frio me exaspera, — volveu Oliva. — Prefiro uma boa cólera a essas doçuras; sempre encontrais um jeito de acalmar-me e isso me deixa louca da vida. — Confessai que sois injusta, — respondeu Cagliostro, sentando-se longe dela, com a afetação de respeito ou indiferença, que lhe dava tão bons resultados em suas relações com Oliva. — Para vós é fácil falar, — disse ela; — chegais, partis, respirais; a vossa vida se compõe de uma série de prazeres que vós mesmo escolheis; mas eu vegeto no espaço que me limitastes; não respiro, tremo. Previno-vos, senhor, de que a vossa proteção me é inútil senão me impede de morrer. — Morrer! vós! — tornou o conde, a sorrir, — ora! — Declaro que estais procedendo muito mal comigo, pois esqueceis que amo profunda e apaixonadamente alguém. — O Sr. Beausire? — Beausire, sim. Repito que o amo. Creio que nunca o escondi de vós. Não haveríeis de esperar, com certeza, que eu esquecesse o meu querido Beausire? — Tão pouco o esperei, senhorita, que movi céus e terras para ter notícias dele, e aqui as trago.

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480 ALEXANDRE DUMAS

— Ah! - fêz Oliva. — O Sr. Beausire, — continuou Caglióstro, — é um rapaz encantador. — Pudera! — voltou Oliva, sem atinar com as intenções do interlocutor. — Moço e bem apessoado. — Não é mesmo? — Cheio de imaginação. — De fogo... Um pouco bruto comigo. Mas... quem ama, castiga. — Dizeis muito bem. Tendes tanto coração quanto espírito e tanto espírito quanta beleza: e eu, que o sei, porque me interesso por todos os amores deste mundo (é uma mania!), pensei em reaproximar-vos do Sr. de Beausire. — Não era essa a vossa idéia há coisa de um mês, — sobreveio Oliva, sorrindo com ar constrangido. — Escutai, minha querida filha, todo homem galante que vê uma moça bonita procura agradar-lhe, quando é livre como eu. Entretanto, acordareis comigo que, se vos cortejei um pouquinho, a minha corte não durou muito. — É verdade, — conveio Oliva no mesmo tom; — um quarto de hora, se tanto. — Era muito natural que eu desistisse, vendo o quanto amais o Sr. de Beausire. — Oh! não caçoeis de mim. — Não estou caçoando! Resististes muito bem à minha corte. — Resisti, não resisti? — exclamou Oliva, encantada por ter sido surpreendida em flagrante delito de resistência. — Sim, confessai que resisti. — Era uma conseqüência do vosso amor, — tornou, fleumático, Caglióstro. — Mas o vosso, — revidou Oliva, — nesse caso, não foi muito tenaz. — Não sou tão velho, nem tão feio, nem tão tolo, nem tão pobre, que me arrisque a sofrer uma recusa ou as possibilidades de uma derrota; percebi que a mim teríeis preferido sempre o Sr. de Beausire e por isso me decidi. — Oh! não, — acudiu a sécia; — não! A famosa associação que me propusestes, não estais lembrado? o direito de dar-me o braço, de visitar-me, de cortejar-me sempre com boas intenções, não era acaso um germe de esperança? E, dizendo essas palavras, a pérfida queimava com os olhos por muito

tempo vadios o visitante, que viera cair-lhe no laço. — Confesso que sois de uma penetração a que nada resiste, — respondeu

Caglióstro.

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O COLAR DA RAINHA 481

E fingiu abaixar os olhos para não ser devorado pelo duplo jorro de chamas que despediam as pupilas de Oliva.

— Voltemos a Beausire, — disse ela, despeitada pela imobilidade do conde; — onde está êle, que está fazendo o querido amigo?

E Cagliostro, contemplando-a com uns restos de timidez: — Eu dizia que gostaria de reunir-vos, — continuou. — Não, não dizíeis isso, — murmurou a moça com desdém; — mas já que o dizeis, tomo-o por dito. Continuai. Por que não o trouxestes? Fora uma obra de caridade. Êle está livre... — Porque, — retrucou Cagliostro, sem se admirar da ironia, — o Sr. de Beausire, que é como vós, que tem muito espírito, também anda as voltas com a polícia. — Também! — rebradou Oliva, empalidecendo, pois dessa vez sentia o som da verdade. — Também! — repetiu, polido, Cagliostro. — Que é que êle fêz?. . . — balbuciou a jovem. — Uma encantadora falcatrua, um passe de mágica infinitamente engenhoso, uma brincadeira, na minha opinião; mas essa gente taciturna, como o Sr. de Crosne, por exemplo, e sabeis o quanto é pesado o Sr. de Crosne, chama-lhe roubo. — Um roubo! — exclamou Oliva, espavorida; — santo Deus! — Aliás, um lindo roubo; o que prova o muito amor do pobre Beausire às boas coisas. — Senhor. .. senhor. .. êle foi preso? — Não, mas foi denunciado. — Jurais-me que não foi preso, que não está correndo perigo? — Posso jurar-vos que não foi preso; mas, no que concerne ao segundo ponto, não tereis a minha palavra. Sabeis perfeitamente, minha querida filha, que uma pessoa denunciada é seguida, ou pelo menos procurada; ora, com a sua cara, o seu jeito, com todas as suas bem conhecidas qualidades, o Sr. de Beausire, se se mostrar, será imediatamente preado pelos sabujos. Pensai um pouco na repercussão desse golpe do Sr. de Crosne: prender-vos por intermédio do Sr. de Beausire e prender o Sr. de Beausire por vosso intermédio. — Oh! sim, sim, êle precisa esconder-se! Pobre rapaz! Vou esconder-me também. Fazei-me sair de França, senhor! Procurai ajudar-me; porque aqui, vede, encerrada, abafada, eu não resistiria ao desejo de cometer, mais dia menos dia, uma imprudência. — A que chamais imprudência, minha querida menina? — Ué... mostrar-me, tomar um pouco de ar. — Não exagereis, minha boa amiga; já estais muito pálida e acabaríeis perdendo a vossa bela saúde. O Sr. de Beausire deixaria de amar-vos. Não; tomai todo o ar que quiserdes, regalai-vos vendo passar alguns rostos humanos.

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— Muito bem! — bradou Oliva, — agora ficastes despeitado e quereis desamparar-me. Estou-vos incomodando, talvez?

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482 ALEXANDRE DUMAS

— Eu? Estais louca? Por que me incomodaríeis? — tornou êle com glacial seriedade. — Porque. .. um homem que gosta de uma mulher, um homem importante como vós, um belo fidalgo como vós, tem o direito de

irritar-se, tem até o direito de enfastiar-se, quando repelido por uma louca como eu! Oh! não me deixeis, não me percais, não fiqueis com raiva de mim, senhor!

E tão aterrada quanto se mostrara garrida, a jovem passou o braço em torno do pescoço de Cagliostro.

— Pobrezinha! — disse o conde, depondo-lhe um casto beijo na testa; — como ela está com medo! Não façais de mim tão má opinião, minha filha. Estáveis correndo perigo, eu vos ajudei; eu tinha umas idéias a vosso respeito: perdi-as, acabou-se. Não vos tenho ódio nem me deveis gratidão. Procedi de acordo com os meus interesses, procedestes de acordo com os vossos, estamos quites. — Oh! senhor, quanta bondade! Como sois generoso! E Oliva atirou os dois braços, em vez de um, ao pescoço do fidalgo. Mas este, olhando para ela com a habitual tranqüilidade: — Estais vendo, Oliva? — disse êle; — agora me oferecereis o vosso amor, e eu. . . — Sim! — tornou ela, muito vermelha. — Agora me ofereceríeis a vossa adorável pessoa e eu a recusaria, pois só gosto de inspirar sentimentos verdadeiros, puros e despidos de cálculo. Julgastes-me interesseiro, caístes na minha dependência. Neste momento vos cuidais comprometida; eu vos creria mais grata que sensível, mais assustada que amorosa: fique mos como estamos. Cumpro, assim, o vosso desejo e antecipo-me a todas as vossas delicadezas. Oliva deixou pender os formosos braços e afastou-se corrida, humilhada,

iludida pela generosidade de Cagliostro, com a qual não contara. — Dessa maneira, — voltou o conde, — está combinado: considerar-me-eis como amigo, tereis a máxima confiança em mim; usareis minha casa, minha bolsa, meu crédito, e . . . — E direi a mim mesma, — atalhou Oliva, — que há neste mundo homens bem superiores a quantos já conheci. Pronunciou essas palavras com uma graça e uma dignidade que

impressionaram a alma de bronze, cujo corpo outrora se chamara Bálsamo. — Toda mulher é boa, — pensou êle, — quando a gente consegue tocar-

lhe a corda que corresponde ao coração. Logo, abeirando-se de Nicole: — A partir desta noite, habitareis o último andar do palácio. É um

apartamento composto de três cómodos colocados a modo de

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O COLAR DA KAINHA 483

observatório sobre o bulevar e a Rua de São Cláudio. As janelas dão para Ménilmontant e Belleville. Algumas pessoas poderão ver--vos. São vizinhos pacíficos, não os temais. Boa gente sem relações, que nem sequer desconfia da vossa possível identidade. Deixai-vos ver por eles, sem todavia vos expordes e sobretudo sem nunca vos mostrardes aos transeuntes, pois a Rua de São Cláudio é às vezes explorada pelos agentes do Sr. de Crosne; lá, pelo menos, tereis um pouco de sol.

Oliva bateu alegremente as mãos. — Quereis que eu vos conduza? — propôs Cagliostro. — Esta noite? — Claro! esta noite. Isso vos contraria? Oliva encarou profundamente nele. Uma vaga esperança tornou a

penetrar-lhe o coração, ou melhor, a vã e pervertida cabecinha. — Vamos, — disse ela. O conde pegou uma lanterna na antecâmara, abriu diversas portas e,

subindo uma escada, chegou, seguido da rapariga, ao terceiro andar, onde entrou no apartamento descrito.

Ela encontrou as dependências mobiliadas, floridas, habitáveis. — Até parece que eu estava sendo esperada, — observou. — Vós, não, — tornou o conde; — eu, que gosto da vista desse pavilhão e muitas vezes aqui me deito. O olhar de Oliva assumiu as tintas fulvas e fulgurantes que eriçam por

vezes as pupilas dos gatos. Uma palavra já lhe nascia nos lábios; deteve-a Cagliostro dizendo: — Nada vos faltará; a camareira virá dentro de um quarto de

hora. Boa noite, senhorita. E desapareceu, depois de haver feito uma grande reverência, mitigada por

um gracioso sorriso. A pobre prisioneira deixou-se cair sentada, consternada, aniquilada sobre a

cama, já pronta numa elegante alcova contígua. — Não compreendo absolutamente nada do que me está acontecendo, —

murmurou, seguindo com os olhos aquele homem real mente incompreensível para ela.

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LXIII

O observatório

LIVA deitou-se depois que saiu a camareira mandada por Cagliostro. Dormiu pouco, pois os desvairados pensamentos nascidos da sua entrevista

com o conde só lhe proporcionaram um sonhar acordada, um sonolento inquietar-se; não dura muito a nossa felicidade quando nos vemos muito ricos ou muito sossegados depois de nos termos visto muito pobres ou muito agitados.

Oliva lastimou Beausire, admirou o conde, que não compreendia, pois não o julgava tímido nem o supunha insensível. Teve medo de que algum silfo lhe perturbasse o sono e os mínimos ruídos do assoalho lhe provocaram a agitação conhecida de toda heroína de romance, que se deita na Torre do Norte.

Com a aurora fugiram os terrores, que não deixavam de ter o seu encanto... Nós, que não nos tememos de inspirar suspeitas ao Sr. Beausire, podemos afirmar que Nicole não entreviu a hora da perfeita segurança sem um restinho de vaidoso despeito. Intraduzível matiz para qualquer pincel que não assinasse: Watteau, — e para qualquer pena que não assinasse: Marivaux ou Crébillon Filho.

Durante o dia, dormiu, saboreando a volúpia de absorver no quarto florido os raios purpurinos do sol nascente, de ver correrem os passarinhos sobre a jardineira da janela, onde as suas asas roçavam com rumores deliciosos as folhas das roseiras e as flores dos jasmineiros de Espanha.

E foi tarde, bem tarde, que se levantou, depois que duas ou três horas de um sono suave lhe descansaram as pálpebras, depois que, embalada pelos ruídos da rua e pelos aveludados torpores do repouso, se sentiu suficientemente forte para buscar o movimento, forte demais para continuar deitada e ociosa.

Percorreu, então, todos os cantos do novo apartamento, em que o silfo incompreensível e ignorante não pudera descobrir sequer um alçapão, para vir rodear-lhe a cama batendo as asas; e, no entanto, os silfos daquele tempo, graças ao Conde de Gabalis, nada haviam perdido de sua inocente reputação.

Surpreendeu as riquezas da nova morada na simplicidade do imprevisto. Aquele retiro feminino fora, a princípio, um aposento

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O COLAR DA RAINHA 485

de homem. Lá se encontrava tudo o que nos pode fazer amar a vida, lá se encontravam sobretudo tanta luz e tanto ar que bastariam a converter masmorras em jardins se, alguma vez, pudessem o ar e a luz penetrar num aljube.

Descrever a alegria infantil, isto é, perfeita, com que ela se atirou ao terraço, deitou-se nas lájeas, entre flores e musgos, à semelhança de uma serpente que deixa o ninho, sem dúvida o faríamos se não precisássemos pintar-lhe os espantos sempre que um movimento lhe descobria um espetáculo inédito.

A princípio deitada, como dissemos, a fim de não ser vista pelos que passassem, contemplou, entre as grades do balcão, o cimo das árvores dos bulevares, as casas do bairro de Popincourt e as chaminés, brumoso oceano cujas vagas desiguais se encapelavam, à sua direita.

Inundada de sol, o ouvido atento ao estrépito dos carros que rodavam, um pouco raros é verdade, mas que sempre rodavam pelo bulevar, assim permaneceu, felicíssima, duas horas. Chegou à tomar o chocolate que lhe serviu a camareira ao almoço e leu uma gazeta sem pensar uma vez sequer em olhar para a rua.

Era um prazer perigoso. Os sabujos do Sr. de Crosne, cães humanos que viviam com o nariz no ar,

podiam vê-la. Que medonho despertar depois de um dormir tão suave! Mas a posição horizontal não podia eternizar-se, por melhor que fosse.

Soergueu-se Nicole sobre um cotovelo. Viu então as nogueiras de Ménilmontant, as grandes árvores do cemitério,

as miríades de casas de todas as cores que subiam a encosta do morro desde Charonne até os outeiros de Chaumont, entre toucas de verdura ou sobre as manchas argilosas das penedias, revestidas de sarças e cardos.

Aqui e ali, nos caminhos, tênues fitas que ondulavam ao pé dos morrinhos, entre carreiras de vinhedos, nas estradas brancas, desenhavam-se pequeninos seres vivos, camponeses choutando, crianças inclinadas sobre o campo ceifado, vinhateiras descobrindo as uvas ao sol. Essa rusticidade encantou Nicole, que sempre sentira saudades dos formosos campos de Taverney, depois que os deixara em troca daquela Paris tão desejada.

Acabou-se fartando do campo e, como houvesse tomado uma posição cômoda e segura entre as flores, como pudesse ver sem se arriscar a ser vista, abateu os olhos da montanha para o vale, do longínquo horizonte para as casas fronteiras.

Em toda à parte, isto é, no espaço que podem compreender três casas, só encontrou janelas fechadas ou pouco convidativas. Aqui, três andares habitados por velhos proprietários, que penduravam as gaiolas na parede ou davam de comer aos gatos dentro

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486 ALEXANDRE DUMAS

de casa; ali, quatro andares nos quais só se via o filho da Auvergne, superior habitante, pois os outros locatários pareciam estar ausentes, tendo viajado para algum lugar. Enfim, um pouco mais à esquerda, na terceira casa, cortinas de seda amarela, flores, e, como para acentuar o bem-estar, uma poltrona macia, à beira da janela, parecia estar à espera do seu sonhador ou da sua sonhadora.

Oliva cuidou distinguir na sala, cuja obscuridade realçava o sol, uma espécie de sombra ambulante de movimentos regulares.

Conteve a impaciência, escondeu-se melhor e, chamando a camareira, entabulou conversação com ela, trocando os prazeres da solidão pelos da sociedade de uma criatura pensante e sobretudo falante.

A camareira, porém, contra todas as tradições, mostrou-se reservada. Disposta a explicar a paisagem à ama, Belleville, Charonne e o Père-Lachaise, disse o nome das igrejas de Santo Ambrósio e São Lourenço, e indicou a curva do bulevar e a sua inclinação no sentido da margem direita do Sena; mas quando o assunto descambou para os vizinhos, fechou-se em copas: ela só conhecia a patroa.

Por conseguinte, o apartamento claro-escuro, com cortinas de seda amarela, não foi explicado à Oliva. Nem a sombra ambulante, nem a poltrona.

Mas se Oliva não teve a satisfação de conseguir informes sobre a vizinha, pôde pelo menos prometer a si mesma tratar relações com ela por iniciativa própria. Mandou embora a discretíssima criada para entregar-se, sem testemunhas, à sua exploração.

Ensejou-se-lhe pouco depois a ocasião. Os vizinhos começaram a abrir as portas, para a sesta após o jantar e para o passeio a Place-Royale e ao Caminho Verde.

Oliva contou-os. Eram seis, bem diversos uns dos outros, como convém a habitantes da Rua de São Cláudio.

Passou parte do dia estudando os seus gestos e os seus hábitos. Passou revista a todos, exceto à sombra agitada que, sem mostrar o rosto, fora enterrar-se na poltrona ao pé da janela, absorta num imóvel cismar.

Era uma mulher. Entregara a cabeça à cabeleireira, que, durante hora e meia, lhe construíra sobre o crânio e as têmporas um desses edifícios babilônicos nos quais entravam minerais, vegetais, e onde teriam entrado animais, se nisso se houvesse metido Leonardo e se uma mulher daquela época consentisse em fazer da cabeça uma arca de Noé.

Penteada, empoada, vestida e enfeitada, a mulher voltara a instalar-se na poltrona, com o pescoço apoiado em duríssimos travesseiros, a fim de que aquela parte bastasse a sustentar o equilíbrio do corpo inteiro e permitisse ao monumento da cabeleira continuar intacto, sem se preocupar com os terremotos que pudessem agitar--lhe a base.

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O COLAR DA RAINHA 487

A mulher imóvel lembrava os deuses indianos pregados nos seus andores, e cujos olhos fixos, graças à concentração do pensamento, são os únicos órgãos capazes de movimento. Conforme as necessidades do corpo ou o capricho do espírito, sentinelas e bons servidores ativos, faziam sozinhos todo o serviço do ídolo.

Oliva observou como era formosa a dama assim penteada, como era delicado e espiritual o seu pèzinho, pousado sobre o bordo da janela e equilibrado por uma chinelinha de cetim cor-de-rosa. Admirou-lhe os contornos do braço e do colo, que repelia o corpinho e o roupão.

O que mais a impressionou, porém, foi a profundeza do pensamento, sempre dirigido para um alvo invisível e vago, e tão imperioso que condenava o corpo à imobilidade, aniquilando-o por obra da vontade.

Essa mulher, que nós reconhecemos, mas que Oliva não podia reconhecer, não desconfiava de que pudesse ser vista. Diante das suas janelas, nunca se abrira janela alguma. O palácio do Sr. de Cagliostro, a despeito das flores que Nicole encontrara, das aves que vira voar, nunca revelara seus segredos a ninguém, e, salvante os pintores que o tinham restaurado, nenhum ser vivo se mostrara à janela.

Para explicar o fenômeno, contrariado pela presença esporádica de Cagliostro no pavilhão, bastará uma palavra. Durante à tarde, o conde mandara preparar o apartamento para Oliva, como teria mandado prepará-lo para si. Êle, por assim dizer, mentira a si mesmo, tão bem haviam sido executadas as suas ordens.

A dama da bela cabeleira permanecia, portanto, mergulhada nos seus pensamentos e Oliva imaginou que a venosa criatura, sonhando assim, sonhava com amores contrariados.

Simpatia na beleza, simpatia na solidão, na idade, no tédio, quantos laços para ligar duas almas que porventura se buscavam, graças às combinações misteriosas, irresistíveis e intraduzíveis do Destino!

Desde que viu a solitária pensativa, Oliva não pôde despregar os olhos dela.

Havia uma espécie de pureza moral naquela atração da mulher para a mulher. Essas delicadezas são mais comuns do que geralmente se crê entre as infelizes criaturas cujo corpo é o agente principal das funções da vida.

Pobres exiladas do paraíso espiritual, lamentam os jardins perdidos e os anjos risonhos escondidos debaixo das místicas folhagens.

Oliva imaginou encontrar uma irmã de sua alma na bela reclusa. Construiu um romance semelhante ao seu romance, na suposição ingênua de que uma mulher não podia ser bonita, elegante, e viver perdida na Rua de São Cláudio sem que alguma grave inquietude lhe roesse o coração.

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488 ALEXANDRE DUMAS

Depois de forjar com bronze e brilhantes a sua fábula romanesca, como todas as naturezas excepcionais, deixou-se Oliva arrebatar pela própria criação; tomou asas para correr, espaço a fora, à frente da companheira, à qual, na sua impaciência, teria desejado emprestar asas iguais às suas.

Mas a dama do monumento não se mexia: parecia toscanejar na poltrona. Duas horas se passaram sem que se lhe tivesse podido notar a menor oscilação.

Desesperava-se Oliva. Não teria feito para Adónis nem para Beausire a quarta parte do que fêz para chamar a atenção da desconhecida.

Cansando-se e passando da ternura ao ódio, abriu e fechou dez vezes a janela; dez vezes espantou os passarinhos entre as folhagens, fazendo gestos telegráficos de tal modo comprometedores, que o mais obtuso dos instrumentos do Sr. de Crosne, passando naquele instante pelo bulevar ou pela esquina da Rua de São Cláudio, não teria deixado de observá-los e de preocupar-se com eles.

Por fim, chegou a persuadir-se de que a dama das belas tranças vira perfeitamente todos os seus gestos, compreendera todos os seus sinais, mas desdenhara-os; devia de ser, portanto, uma vaidosa ou uma idiota. Idiota! com olhos tão finos, tão espirituais, com o pé tão móvel, a mão tão inquieta! Impossível.

Vaidosa, sim; vaidosa como podia ser naquela época uma mulher da alta nobreza em relação a uma burguesa.

Descobrindo na fisionomia da mulher todos os caracteres da aristocracia, concluiu que era orgulhosa e impossível de comover-se.

Desistiu. Virando as costas com um amuo encantador, voltou a entregar-se ao sol,

que principiava a declinar, volvendo à sociedade das flores, agradáveis companheiras que, nobres também, elegantes também, também empoadas e castilhas como as grandes damas, não obstante se deixam tocar, respirar, e retribuem, com perfume, frescor e frementes contactos, o beijo da amizade ou o beijo do amor.

Não sabia que a pretensa orgulhosa era Joana de Valois, Condessa de La Motte, que, desde a véspera, procurava uma idéia;

Que essa idéia tinha por escopo impedir que se vissem Maria Antonieta e o Cardeal de Rohan;

Que um interesse ainda maior exigia que o cardeal, embora deixasse de ver a rainha em particular, acreditasse firmemente que a via sempre e, por conseguinte, satisfeito com essa visão, cessasse de reclamar a vista real.

Idéias graves, desculpas muito legítimas para aquela preocupação de uma mulher em não mexer a cabeça durante duas horas mortais.

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O COLAR DA RAINHA 489

Se Nicole soubesse de tudo isso, não se teria, colérica, refugiado entre as flores.

Não teria, ao fazê-lo, derrubado do balcão um pote de fraxi-nelas, que foi cair na rua deserta com medonho estardalhaço.

Assustada, procurou verificar a extensão dos estragos que causara. A dama preocupada despertou com o barulho, viu o pote na calçada e,

passando do efeito à causa, ergueu os olhos da calçada para o terraço da casa fronteira.

E viu Oliva. Ao vê-la, soltou um grito selvagem, de terror, um grito que terminou num

movimento rápido de todo o corpo tão teso e tão frio pouco antes. Os olhos de ambas afinal se encontraram, interrogaram, interpenetraram. Joana gritou primeiro: — A rainha! Logo, de repente, juntando as mãos e franzindo o cenho sem ousar mexer-

se, receosa de que lhe fugisse a estranha visão: — Oh! — murmurou, — eu estava buscando um meio; encontrei-o! Nesse momento, Oliva percebeu um rumor atrás de si e voltou-se, rápida. O conde, no quarto, observara a troca de reconhecimentos. — Viram-se! — murmurou êle. A rapariga afastou-se bruscamente do balcão.

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LXIV

Vizinhas

APARTIR do momento em que as duas mulheres se avistaram, Oliva, já fascinada pela graça da outra, não mais fingiu desdenhá-la; e, voltando-se com precaução no meio das flores, respondeu com sorrisos aos sorrisos que recebia.

Ao visitá-la, Cagliostro não deixara de recomendar-lhe a maior das circunspecções.

— Sobretudo, — dissera, — não vos entendais com os vizinhos. Caíra a recomendação como sinistro granizo na cabeça da rapariga, para a

qual já representavam doce ocupação os gestos e saudações da condessa. Não se entender com os vizinhos era voltar as costas à encantadora mulher,

de olhos tão brilhantes e tão doces, de tão sedutores movimentos, era descontinuar um comércio telegráfico sobre a chuva e o bom tempo, era brigar com uma amiga. Pois, na sua imaginação, Joana já se constituíra num objeto curioso e querido.

A astuta respondeu ao protetor que não lhe desobedeceria, que não manteria comércio nenhum com a vizinhança. Mas tanto que o viu pelas costas, acomodou-se no balcão de modo que absorvesse toda a atenção da vizinha.

Esta, como se há de imaginar, não queria outra coisa, pois já aos primeiros sinais desmanchou-se em saudações e beijos atirados com a ponta dos dedos.

Oliva correspondeu da melhor maneira possível a essas amabilidades; observou que a desconhecida não saía mais da janela; e que, sempre atenciosa no mandar um adeus ao sair, ou um bom dia ao chegar, parecia haver concentrado todas as suas faculdades amativas no balcão fronteiro.

A esse estado de coisas deveria seguir-se prestesmente uma tentativa de aproximação.

Eis o que aconteceu: Vindo ver Oliva dois dias depois, queixou-se Cagliostro de uma visita

que teria sido feita ao palácio por uma desconhecida. — Como assim? — perguntou a moça, corando um pouco. — Sim, — esclareceu o conde, — uma dama muito bonita, jo vem, elegante, apresentou-se e falou com um lacaio, atraído pela

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O COLAR DA RAINHA 491

sua insistência em tocar a campainha, perguntando-lhe por uma jovem que mora no pavilhão do terceiro andar: o vosso apartamento, minha cara! Essa mulher, seguramente, estava-se referindo a vós. Queria ver-vos. Portanto, vos conhece; portanto, deseja de vós alguma coisa; portanto, fostes descoberta. Cuidado! que a polícia tem espias femininos como tem agentes masculinos, e desde já declaro que não poderei recusar-me a entregar-vos se assim me pedir o Sr. de Crosne.

Em vez de assustar-se, Oliva reconheceu a vizinha pela descrição, ficou-lhe imensamente grata, e, decidida a manifestar o seu agradecimento por todos os meios possíveis, dissimulou.

— Não estais com medo? — insistiu Cagliostro. — Ninguém me viu, — replicou Nicole. — Nesse caso, não éreis vós a pessoa procurada? — Acho que não. — Mas, para adivinhar que há uma mulher nesse pavilhão... Cuidado! cuidado!. .. — Ora, Sr. Conde, — argumentou Oliva, — como poderei ter medo? Se me viram, o que não creio, não tornarão a ver-me; e ainda que me tornassem a ver, seria de longe: a casa é impene trável, não é? — Impenetrável, — assentiu o conde, — pois a menos de escalar o muro, o que não é fácil, ou de abrir o portãozinho com uma chave igual à minha, o que é difícil, visto que a não largo nunca... E mostrava a chave que lhe servia para entrar pela porta dos fundos. — Ora, — continuou, — como não tenho interesse em perder-vos, não a

emprestarei a ninguém; e como para vós não haveria vantagem alguma em cair nas mãos do Sr. de Crosne, não permitireis que escalem o vosso muro. Dessarte, minha querida filha, estais avisada, arranjai-vos como quiserdes.

Desfez-se Oliva em protestos de todo o género, e deu-se pressa a despachar o conde, que não teimou em ficar.

No dia seguinte, desde as seis da manhã, estava no balcão, aspirando o ar puro dos pomares vizinhos e espichando um olhar curioso para as janelas fechadas da sua cortês amiga.

Esta, que nunca se levantava antes das onze, mostrou-se incon-tinenti. Dir-se-ia que estivesse espreitando, atrás das cortinas, a ocasião para mostrar-se.

Cortejaram-se e Joana esticou a cabeça para fora da janela e olhou em torno, verificando se alguém poderia ouvi-la.

Ninguém apareceu. Não somente a rua, mas até as janelas das casas estavam desertas.

Levou as mãos à boca a modo de alto-falante e, com a entonação vibrante e firme que, sem ser um grito, repercute mais que o estrondo da voz, disse:

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492 ALEXANDRE DUMAS

— Eu quis visitar-vos, senhora. — Pssiu! — fêz Oliva, recuando assustada. E pôs um dedo nos lábios. Joana mergulhou também atrás das cortinas acreditando na presença de

algum indiscreto; mas reapareceu pouco depois, tranquilizada pelo sorriso de Nicole.

— Não posso ver-vos? — voltou. — Infelizmente não! — respondeu a outra, com um gesto. — Posso escrever-vos? — Oh! — bradou Oliva, espavorida. Joana refletiu por alguns momentos. Para agradecer-lhe a terna solicitude, Oliva mandou-lhe um beijo

encantador. Joana devolveu-o em dobro; depois, fechando as janelas, saiu. Oliva cuidou consigo só que a amiga encontrara algum novo recurso, pois

julgara ver-lhe a imaginação transluzir no seu último gesto. A condessa voltou, de fato, duas horas depois; o sol estava a pino; a

calçada da rua ardia como a areia de Espanha durante o fuego. Oliva viu assomar à janela a vizinha com uma balestra. Joana, rindo-se, fêz-

lhe sinal que se afastasse. Oliva obedeceu, rindo também, e refugiou-se atrás do postigo. Visando com

cuidado, Joana atirou uma balinha de chumbo, que, infelizmente, em vez de transpor o balcão, foi bater-lhe numa das barras de ferro e caiu na rua.

Oliva soltou um grito de desapontamento. A condessa deu de ombros com raiva, relanceou a vista pela rua, à procura do projétil e desapareceu durante alguns minutos.

Oliva, debruçada, olhava para baixo do balcão; uma espécie de trapeiro passou, esgarafunhando à direita e à esquerda: viu ou não viu a balinha na enxurrada? Oliva não ficou sabendo; escondeu-se para não ser vista também.

A segunda tentativa de Joana foi mais feliz. A balestra atirou fielmente, adiante do balcão, no interior do quarto de

Nicole, uma segunda bala, à volta da qual estava enrolado um bilhete redigido nestes termos:

"Interessais-me, bela dama. Acho-vos encantadora e gosto de vós só de ver-vos. Estais, acaso, prisioneira? Sabeis que debalde tentei visitar-vos? O feiticeiro que vos mantém guardada à vista deixar--me-á alguma vez, aproximar-me de vós para dizer-vos quanta simpatia me inspira uma pobre vítima da tirania dos homens?

"Como vedes, tenho imaginação suficiente para pôr a serviço de minhas amizades. Quereis ser minha amiga? Parece que não podeis sair; mas podeis escrever, sem dúvida, e, como saio quando quero, esperai a minha passagem debaixo do vosso balcão e atirai-me a res-posta.

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O COLAR DA RAINHA 493

"Se acontecer que o processo da balestra se revele perigoso e seja descoberto, adotaremos um meio mais fácil de correspondência. Deixai pender do alto do balcão, à boca da noite, um novelo de linha; amarrai nele o vosso bilhete. Substitui-lo-ei pelo meu e podereis erguê-lo sem que ninguém vos veja.

"Lembrai-vos de que, se os vossos olhos não mentem, conto com um pouco da amizade que me inspirastes; juntas, venceremos o universo.

"Vossa amiga. "P. S. Vistes alguém apanhar o meu primeiro bilhete?".

Joana não assinara; chegara até a disfarçar a letra. Oliva estremeceu de alegria ao receber aquela cartinha. Respondeu-lhe com

esta: "Gosto de vós como gostais de mim. Sou, com efeito, vitima da

maldade dos homens. Mas aquele que aqui me retém é um protetor, não é um tirano. Vem visitar-me em secreto uma vez por dia. Explicar-vos-ei tudo isso mais tarde. Â balestra prefiro o bilhete na ponta da linha.

"Infelizmente não posso sair: estou fechada à chave; mas é para o meu bem. Oh! quanta coisa eu teria para dizer-vos se tivesse um dia a felicidade de conversar convoscol Há tantos pormenores que não se podem escreverl

"O vosso primeiro bilhete não foi apanhado por ninguém, senão por um miserável trapeiro que estava passando; mas essa gente não sabe ler e, para ela, chumbo é chumbo.

"Vossa amiga, "OLIVA LEGAY"

Oliva assinou com todas as forças. Fêz à condessa o gesto de desenrolar um novelo; depois, esperando que

chegasse a noite, deixou cair a linha até ao meio da rua. Debaixo do balcão, a condessa agarrou a linha e arrancou-lhe o bilhete,

com movimentos que a correspondente percebeu através do fio condutor; depois, voltou para casa a fim de lê-lo.

Volvida meia hora, amarrava ao bem-aventurado fio outro escrito, em que se continham estas palavras:

"A gente faz o que quer. Não sois guardada à vista, porque vos vejo sempre só. Portanto, deveis ter a máxima liberdade para receber as pessoas e até para sair. Como se fecha a vossa casa? A chave? Quem fica com ela? O homem que vai visitar-vos? E êle guarda essa chave com tanto zelo que não podeis furtar-lha nem tomar-lhe a impressão? Não estareis procedendo mal; estareis apenas procurando obter algumas horas de liberdade, de bons passeios pelo braço de uma amiga que vos consolará de todos os infortúnios e vos dará muito mais do que perdestes. Estareis até, se quiserdes, conquistando a vossa completa liberdade. Trataremos desse assunto minuciosamente na primeira entrevista que tivermos."

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494 ALEXANDRE DUMAS

Oliva devorou o bilhete. Sentia subir-lhe às faces a febre da independência, ao coração a volúpia do fruto proibido.

Observara que o conde, cada vez que entrava no apartamento, trazendo-lhe um livro ou uma jóia, colocava a lanterna surda sobre a cómoda, e a chave sobre a lanterna.

Preparou de antemão um pedaço de cera, na qual tomou a impressão da chave na primeira visita de Cagliostro.

Este não voltou a cabeça uma vez sequer; enquanto ela realizava a operação, contemplava, no balcão, as flores recém-desabro-chadas. Oliva, por conseguinte, pôde levar a cabo o seu projeto sem maiores dificuldades.

Depois que o conde partiu, fêz descer numa caixa a impressão da chave, que Joana recebeu com um bilhetinho.

E já no dia seguinte, cerca do meio-dia, a balestra, meio extraordinário e expedito, que representava para a correspondência pelo fio o que representa o telégrafo para o correio a cavalo, atirou-lhe um bilhete que dizia deste teor:

"Minha querida, esta noite às onze horas, depois que o vosso ciumento tiver partido, descereis, abrireis os ferrolhos e estareis nos braços daquela que se diz vossa terna amiga."

A rapariga estremeceu muito mais de alegria do que já lhe sucedera ao receber os mais ternos bilhetes de Gilberto, na primavera dos primeiros amores e dos primeiros encontros.

Desceu às onze horas sem haver observado suspeita alguma da parte do conde. Em baixo encontrou Joana, que a conchegou terna-mente de si e fê-la subir num carro que estava esperando no bulevar e, aturdida, palpitante, inebriada, deu com a amiga um passeio de duas horas, durante as quais segredos, beijos e projetos de futuro se trocaram, sem interrupção, entre as duas companheiras.

Foi Joana quem a persuadiu a entrar, para não despertar suspeita alguma no espírito do protetor. Acabava de saber que esse protetor era Cagliostro. Temia o génio daquele homem e só via segurança para os seus planos no mais profundo mistério.

Oliva entregara-se sem reservas; Beausire, a polícia, tudo confessara. Joana fizera-se passar por uma moça de qualidade, que vivia com um

amante à revelia da família. Uma sabia tudo, a outra tudo ignorava; tal era a amizade jurada entre as

duas mulheres. A partir desse dia não tiveram elas precisão da balestra nem do novelo

de linha, pois Joana ficara com a chave e fazia descer a rapariga a seu talante.

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O COLAR DA RAINHA 495

Uma boa ceia, um passeio furtivo, eram os engodos com que sempre lograva apanhá-la.

— O Sr. de Cagliostro ainda não descobriu nada? — perguntava, às vezes, inquieta. — Ainda que eu lho contasse êle não acreditaria, — respondia Oliva. Oito dias de escapadas noturnas acabaram formando um hábito, uma

necessidade e, mais do que isso, um prazer. Ao fim desse tempo, o nome de Joana se achava nos lábios de Oliva com muito maior frequência do que já se tinham achado os de Gilberto e Beausire.

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LXV

O encontro

ASSIM que o Sr. de Charny chegou às suas terras e se trancou em casa, após as primeiras visitas, o médico lhe ordenou que não recebesse mais ninguém e não saísse dos seus aposentos. A ordem foi executada com tamanho rigor, que nenhum habitante do cantão pôs os olhos no herói do combate naval que tanto barulho fizera em França, e que todas as moças, sabendo-o bravo e belo ansiavam por ver.

Charny, entretanto, não estava tão doente quanto se propalava. Só lhe doíam o coração e a cabeça. Mas como doíam, santo Deus! Uma dor aguda, ininterrupta, implacável, a dor de uma lembrança adurente, a dor de uma saudade lacerante.

O amor não passa de uma nostalgia: o ausente chora um paraíso ideal, em vez de chorar uma pátria material; de resto, não se pode admitir, por mais que se goste de poesia, que a mulher amada não seja um paraíso um pouco menos ideal que o dos anjos.

O Sr. de Charny não aguentou três dias. Furioso ao ver os seus sonhos derrotados pela impossibilidade, apagados pelo espaço, mandou divulgar em todo o cantão a ordem já citada do médico; em seguida, confiando a guarda de suas portas a um criado experimentado, partiu à noite de casa, num cavalo macio e rápido, e chegou, oito horas depois, a Versalhes, onde alugou uma casinha atrás do parque por intermédio do seu camareiro.

Abandonada após a morte trágica de um dos fidalgos montei-ros que nela se degolara, a casa convinha admiravelmente ao rapaz, desejoso de esconder-se melhor do que em suas terras.

Bem mobiliada, tinha duas portas, uma que dava para uma rua deserta, e a outra para o caminho que circundava o parque; e das janelas do sul, poderia saltar Charny para as alamedas das Carpas, pois, abrindo os postigos cercados de vides e de heras, eram as janelas realmente portas à altura de um rés-do-chão pouco elevado para quem quisesse, num pulo chegar ao parque real.

Essa vizinhança, já então bem rara, era o privilégio de um inspetor de caça, que assim podia, sem sair dos seus cómodos, vigiar os cervos e faisões de Sua Majestade.

Quem visse as janelas alegremente enquadradas pela basta folhagem, imaginaria ver o melancólico monteiro, numa tarde de

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O COLAR DA RAINHA 497

outono, debruçado na do meio, enquanto as corças, fazendo estalar as pernas finas sobre as folhas secas, brincavam no fundo das moitas, sob um raio fulvo de sol poente.

A solidão agradou-lhe acima de todas as outras coisas. Seria, acaso, amor à paisagem? É o que logo veremos.

Depois que se instalou, que tudo ficou bem fechado, que o criado despistou as curiosidades respeitosas da vizinhança, Charny, esquecido e esquecendo, passou a levar uma vida cuja simples ideia fará estremecer quem quer que, em sua passagem pela terra, tenha amado ou ouvido falar de amor.

Em menos de quinze dias conheceu todos os hábitos do castelo e dos 'guardas, as horas em que o pássaro vem beber nos charcos, em que passa o veado espichando a cabeça assustada. Conheceu os bons momentos de silêncio, as ocasiões dos passeios da rainha ou de suas damas, o horário das rondas; numa palavra, viveu de longe com os que viviam em Trianon, templo de suas insensatas adorações.

Como a quadra fosse bela, como as noites suaves e perfumadas dessem maior liberdade aos seus olhos e lhe inculcassem v^gos devaneios à alma, passava boa parte do tempo sob os jasmins da janela, espiando os longínquos rumores que vinham do palácio, e seguindo pelas abertas da folhagem o jogo das luzes postas em movimento até à hora do recolher.

Mas em pouco tempo se fartou da janela. Sentia-se afastado demais do rumor e das luzes. Saltou de sua casa para o gramado, certo de não encontrar, àquela hora, cachorros nem guardas, e buscou a deliciosa, a perigosa volúpia de ir até à beira da mata, no limite que separa a sombra espessa do esplêndido luar, para interrogar de lá as silhuetas que se agitavam, pálidas e negras, atrás das cortinas brancas da rainha.

Desse modo via-a todos os dias sem que ela o suspeitasse. Sabia reconhecê-la a uma distância de um quarto de légua, quando,

acompanhada de suas damas ou de algum fidalgo, Maria Antonieta brincava com a sombrinha chinesa que lhe abrigava o largo chapéu enfeitado de flores.

Nenhum passo, nenhum gesto podia confundir-se com os dela. Conhecia-lhe de cor todos os vestidos e adivinhava, no meio das folhas, a grande capa verde de faixas negras que lhe ondulava ao ritmo castamente sedutor do corpo.

E quando a visão desaparecia, quando o crepúsculo, espantando os passeadores, lhe permitia espiar, ao pé das estátuas do peristilo, as últimas oscilações da sombra amada, Charny voltava à janela e ficava olhando de longe, por uma fresta que êle mesmo abrira no bosque, a luz cintilante nas vidraças da rainha, depois o apagar-se dessa luz, e passava a viver da recordação e da esperança, como acabava de viver da vigilância e da admiração.

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498 ALEXANDRE DUMAS

Uma noite em'que já se havia recolhido, duas horas após o último adeus à sombra ausente, no instante em que o orvalho caído das estrelas começava a destilar as suas pérolas brancas sobre as folhas de hera, Charny já se dispunha a deitar-se, quando o ruído de uma fechadura lhe chegou timidamente aos ouvidos; voltou ao posto de observação e continuou escutando.

A hora ia adiantada, meia-noite acabava de soar nas paróquias mais afastadas de Versalhes. Espantou-se de ouvir um ruído ao qual não estava acostumado.

A fechadura rebelde era a de um portãozinho do parque, situado a uns vinte e cinco passos da casa de Oliveiros, que nunca se abria, a não ser nos dias de caçadas importantes para a passagem das cestas em que vinha a caça.

Observou que os recém-chegados não falavam; tornaram a fechar o portão e entraram na alameda que passava debaixo das janelas de sua casa.

Os caniçados e pâmpanos pendentes dissimulavam suficientemente os postigos e as paredes para que o não vissem.

Os' noctâmbulos, aliás, caminhavam depressa e cabisbaixos. Distinguiu-os Charny confusamente no escuro. Entretanto, ao rumor das saias, reconheceu duas mulheres cujos manteletes de seda estremeciam ao contacto das folhas.

Dobrando a grande alameda diante da janela, as mulheres foram envolvidas por um raio mais livre da lua e Oliveiros quase soltou um grito de alegre surpresa reconhecendo o porte e o penteado de Maria Antonieta, como também a parte inferior de seu rosto, apesar da sombra que nele projetava a aba do chapéu. Ela trazia uma bela rosa na mão.

Com o coração palpitante, deixou-se escorregar do alto da janela até ao chão. Correu sobre a relva para não fazer barulho, escondendo-se atrás das árvores mais grossas, e seguindo com a vista as duas damas, cujo passo afrouxara cada vez mais.

Que devia fazer? A rainha tinha uma companheira; não estava correndo perigo algum. Se estivesse sozinha, êle arrostaria todas as torturas do mundo para aproximar-se e dizer-lhe, de joelhos: "Eu vos amo!" Por que não a ameaçaria algum perigo imenso, para que êle pudesse, com a vida, salvar aquela vida preciosa?

Enquanto pensava em tudo isso, sonhando mil desvairadas ter-nuras, as duas mulheres estacaram de chofre; uma, a menor, disse qualquer coisa à companheira e deixou-a.

A rainha ficou só; a outra dama estugou o passo na direção de um ponto que Charny ainda não adivinhava. Batendo na areia com o pèzinho, a rainha encostara-se a uma árvore e envolvera-se na capa, cobrindo a cabeça com o capuz que, momentos antes, lhe ondulava em largas pregas sedosas sobre os ombros.

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O COLAR DA RAINHA 499

Quando Charny assim a viu, pensativa e só, deu um salto como se quisesse ir cair-lhe aos pés.

Mas refletiu que trinta passos pelo menos o separavam dela; que antes de os haver transposto, ela o veria, e, não o reconhecendo, ficaria com medo; gritaria ou fugiria; os seus gritos atrairiam primeiro a companheira, depois os guardas; o parque seria revistado; descobrir-se-ia ao menos o indiscreto, talvez o seu refúgio e, nesse caso, seria o fim do segredo, da felicidade e do amor.

Soube conter-se e fêz bem, pois assim que logrou reprimir aquele ímpeto irresistível, voltou a companheira da rainha e não voltou só.

Viu Charny atrás dela, a dois passos, um homem alto, enterrado debaixo de imenso chapéu e perdido entre as dobras de uma capa muito larga.

O homem, cujo aspecto o fêz estremecer de ódio e de ciúme, não se adiantava como um triunfador. Cambaleante, arrastando o pé com hesitação, parecia tatear no escuro, como se não tivesse por guia senão a companheira da rainha, e por alvo a própria rai-' nha, branca e direita debaixo da árvore.

Assim que avistou Maria Antonieta, o seu tremor aumentou, Descobriu-se e, por assim dizer, varreu a terra com o chapéu. Continuava a aproximar-se. Charny viu-o penetrar na espessura da sombra, cortejando profundamente e várias vezes.

Entretanto, a surpresa do rapaz se mudara em estupor. E do estupor não tardaria em passar a outra emoção bem mais dolorosa. Que vinha fazer a rainha no parque a uma hora tão adiantada da noite? Que vinha lá fazer aquele homem? Por que ficara esperando, escondido? Por que o mandara buscar a rainha em vez de ir pessoalmente ao seu encontro?

Charny quase perdeu a cabeça. Lembrou-se, contudo, de que Maria Antonieta se ocupava de política misteriosa, que a miúdo entabulava intrigas com as cortes alemãs, relações que provocavam os ciúmes do rei, que as proibia terminantemente.

Talvez o misterioso cavaleiro fosse um emissário de Schoen-brunn ou de Berlim, algum fidalgo portador de secreta mensagem, uma dessas figuras alemãs como as que Luís XVI já não queria encontrar em Versalhes, desde que o Imperador José II tomara a liberdade de enviar à França um curso de filosofia e de política crítica para uso do cunhado, o rei cristianíssimo.

Essa ideia, semelhante à faixa de gelo aplicada pelo médico a uma testa que arde em febre, refrescou o pobre Oliveiros, devolveu-lhe a inteligência e acalmou-lhe o delírio da primeira cólera. A rainha, de resto, mantinha-se em atitude decente e até digna.

É verdade que a companheira, colocada a três passos, inquieta, atenta e vigilante como as amigas ou as aias das brincadeiras de Watteau, perturbava com a sua complacente ansiedade as castas

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interpretações do Sr. de Charny. Mas é também tão perigoso ser surpreendida numa entrevista política quanto é vergonhoso ser surpreendida num encontro de amor. E nada se parece mais com um apaixonado do que um conspirador. Ambos trazem a mesma capa, a mesma suscetibilidade auditiva, a mesma incerteza nas pernas.

Charny não teve muito tempo para aprofundar-se nessas reflexões; volvidos alguns instantes, a criada interrompeu o diálogo. O cavaleiro fêz menção de prosternar-se; fora, sem dúvida, dispensado após a audiência.

Ocultou-se o rapaz atrás de uma árvore. Seguramente, ao separar-se, o grupo passaria já disperso diante dele. Reter a respiração, pedir aos gnomos e aos silfos que apagassem todos os ecos, quer da terra, quer do céu, era a única coisa que lhe restava fazer.

Nesse momento julgou ver um objeto claro deslizar ao longo da capa real; o fidalgo inclinou-se rapidamente para o chão, tornou a erguer-se com um movimento respeitoso e fugiu, pois seria impossível qualificar-lhe de outra maneira a rapidez da partida. • Deteve-o, porém, na corrida a companheira da rainha, que o chamou com um gritinho; e, quando êle estacou, disse-lhe à meia voz:

— Esperai. Era um cavaleiro muito obediente, pois sobresteve incontinenti e ficou

esperando. Charny viu então passarem as duas mulheres, de braço dado, a dois

passos do seu esconderijo; o ar deslocado pelo vestido da rainha fêz ondular as hastes da relva quase debaixo das suas mãos.

Sentiu os perfumes que se avezara a adorar: a verbena misturada com resedá; dupla embriaguez para os sentidos e para a memória.

Passaram as mulheres e desapareceram. Alguns minutos depois, passou o desconhecido, do qual se esquecera o rapaz

enquanto acompanhara a rainha, com os olhos, até ao portão; beijava com frenesi, com loucura, uma rosa fresca, perfumada, que certamente era aquela cuja beleza o impressionara ao ver Maria Antonieta entrando no parque, e que, ainda há pouco, vira cair das mãos da soberana.

Uma rosa, um beijo naquela rosa! Seriam isso embaixadas e segredos de Estado?

Charny por pouco não enlouqueceu. Ia precipitar-se sobre o homem, arrancar-lhe a flor, quando voltou a companheira da rainha, gritando:

— Vinde, Monsenhor! Charny acreditou na presença de algum príncipe de sangue e encostou-se à

árvore, para não cair semimorto no chão. O desconhecido dirigiu-se para o lado da voz e desapareceu com a dama.

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LXVI

A mão da rainha

QUANDO Charny entrou em casa, arrasado por aquele golpe tremendo, não encontrou forças para lutar contra a nova desgraça que o afligia.

A Providência reconduzira-o a Versalhes, dera-lhe o precioso esconderijo, unicamente para enciumá-lo e pô-lo na pista de um crime perpetrado pela rainha com desprezo de toda e qualquer probidade conjugal, de toda e qualquer dignidade real, de toda e qualquer fidelidade de amor.

Não havia dúvida possível de que o homem assim recebido no •parque era um novo amante. Na febre da noite, no delírio do desespero, Charny tentou em vão persuadir-se de que o homem que recebera a rosa era um embaixador e de que a rosa não passava de um secreto penhor convencionado, destinado a substituir uma carta demasiado comprometedora.

Mas nada prevaleceu contra a suspeita. Só restava ao inditoso Oliveiros examinar o próprio procedimento e perguntar a si mesmo por que, em presença de tamanha desgraça, se mantivera tão passivo.

Depois de alguma reflexão, não havia nada mais fácil do que compreender a causa daquela passividade.

Nas crises mais violentas da vida, a ação jorra momentaneamente do fundo da natureza humana, e o instinto propulsor outra coisa não é, nos homens bem organizados, que uma combinação do hábito e da reflexão elevada ao seu mais alto grau de rapidez e oportunidade. Charny não fizera um gesto porque não tinha nada com os negócios da soberana; mostrando a sua curiosidade, mostraria o seu amor; comprometendo a rainha, êle mesmo se trairia, e ao pé dos traidores que queremos desmascarar a traição recíproca não é o melhor dos argumentos.

Não se mexera porque, interpelando um homem honrado com a confiança real, arriscava-se a provocar uma rixa odiosa, de mau gosto, uma espécie de cilada que a rainha jamais lhe perdoaria.

Enfim, a palavra Monsenhor, pronunciada pela complacente companheira, representava a salutar advertência, posto que tardia, que o teria salvo abrindo-lhe os olhos no auge do furor. Que

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teria sido dele, se, com a espada na mão, diante daquele homem, ouvisse alguém chamar-lhe Monsenhor? E que tremendo peso não tomaria o seu erro caindo de tão grande altura?

Tais foram os pensamentos que o absorveram durante toda a noite e a primeira metade do dia seguinte. Depois que ouviu soar o meio-dia, a véspera deixou de existir. Restou-lhe apenas a espera febril, devoradora, da noite em que talvez surgissem novas revelações.

Com quanta ansiedade o pobre Charny se postou à janela, transformada na única morada, no quadrado intransponível de sua vida! Quem o visse debaixo dos pâmpanos, atrás dos buracos abertos no postigo, pois não queria que suspeitassem a casa de estar sendo habitada; quem o visse, dizíamos, no quadrilátero de madeira e verdura, lembrar-se-ia forçosamente de um daqueles velhos retratos escondidos debaixo das cortinas, em que a piedosa solicitude das famílias conserva os antepassados nos velhos solares.

CaiU a noite, trazendo ao nosso espia ardente sombrios desejos e doidos pensamentos.

Os rumores ordinários lhe pareceram cheios de novas significações. Avistou ao longe a rainha atravessando o jardim com alguns archotes à sua frente. Pareceu-lhe pensativa, incerta, agitada pela agitação da noite.

A pouco e pouco se apagaram as luzes do palácio; o parque, silencioso, encheu-se de silêncio e de frescor. Dir-se-ia que as árvores e as flores, que se cansam durante o dia desabrochando para agradar aos olhos e acariciar os que passam, forcejam por recuperar à noite, quando ninguém as vê nem toca, o perfume e o viço. É que, de fato, as plantas e os bosques dormem como nós.

Charny guardara bem a hora da entrevista. Meia-noite soou. O coração do rapaz quase lhe estalou dentro do peito. Apoiou a carne na

balaustrada da janela para sufocar as pulsações, altas e ruidosas. Dentro em pouco, dizia consigo mesmo, o portão se abrirá e gemerão os ferrolhos.

Nada perturbou a paz do bosque. Espantou-se, então, ao refletir, pela primeira vez, que os mesmos

acontecimentos não ocorrem dois dias seguidos. Que nada era obrigatório naquele amor, senão o próprio amor, e que seriam muito imprudentes aqueles que, adquirindo hábitos tão fortes, não pudessem passar dois dias sem se avistar.

— Segredo aventurado, — pensou, — quando nele se mete a loucura. Sim, era uma verdade inconteste: a rainha não repetiria no dia imediato

a imprudência da véspera. Súbito, gritaram os ferrolhos e o portãozinho se abriu. Mortal palidez invadiu-lhe as faces ao lobrigar as duas mulheres nos

mesmos trajes da noite precedente.

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O COLAR DA RAINHA 503

— Como ela deve estar apaixonada! — murmurou. Repetiram as damas a manobra da véspera e passaram debaixo da janela

apertando o passo. Como na véspera, êle saltou para o chão assim que elas chegaram a uma

distância em que não podiam ouvi-lo; e, enquanto procurava caminhar oculto pelas árvores mais grossas, jurava ser prudente, forte, impassível, lembrando-se de que êle era o súdito e ela, a rainha; de que êle era um homem, isto é, obrigado ao respeito; e ela, uma mulher, isto é, com o direito de exigir consideração.

E como não se fiasse do seu temperamento fogoso e explosivo, jogou a espada atrás de um tufo de malvas que cercava um castanheiro.

Entretanto, as damas haviam chegado ao mesmo sítio da noite anterior. Como na véspera também, Charny reconheceu a rainha, que envolveu a fronte com o mantelete, ao passo que a oficiosa amiga ia buscar no esconderijo o desconhecido a quem chamavam Monsenhor.

Que esconderijo seria aquele? perguntou aos seus botões. Erguia-se, realmente, na direção tomada pela complacente, a sala dos banhos de Apoio, defendida pelas altas carpas e pela sombra de seus pilares de mármore; mas como poderia esconder-se ali o estranho? Por onde entraria?

Recordou-se Charny de que naquele lado do parque existia um portãozinho semelhante ao que as damas abriam para ir à entrevista. O desconhecido teria, com certeza, uma chave desse portão. E, entrado por êle, chegava até aos banhos de Apoio, onde esperava que o fossem buscar.

Tudo se fixara dessa maneira; depois, pelo mesmo portãozinho, Monsenhor se retiraria, concluído o colóquio com a soberana.

Ao termo de alguns minutos, Charny divisou a capa e o chapéu que distinguira na véspera.

Desta feita, o desconhecido já não se adiantava com a mesma reserva respeitosa: caminhava a passos largos, não ousando correr; mas, se andasse um pouco mais depressa, teria corrido.

Apoiada à árvore, sentou-se a rainha sobre a capa que o novo Raleigh lhe estendeu, e, ao passo que a amiga vigilante vigiava, como na véspera, o amoroso fidalgo, ajoelhado sobre o musgo, começou a falar com apaixonada eloquência.

A rainha abaixava a cabeça, presa de terna melancolia. Charny não entendia o que dizia o cavaleiro, mas as suas palavras pareciam rescender a poesia e a amor. Cada uma das entonações podia traduzir-se por um ardente protesto.

A rainha não replicava. Entretanto, o desconhecido redobrava a carícia dos discursos, e às vezes parecia a Charny, ao desgraçado

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Charny, que a palavra, envolta naquele frémito harmonioso, espou-Caria inteligível, e êle morreria de raiva e de ciúme. Mas nada, nada. No momento em que a voz se aclarava, um gesto significativo da companheira, que continuava à escuta, obrigava o apaixonado orador a abaixar o diapasão de suas elegias.

Obstinava-se a rainha num mutismo absoluto. Acumulando rogos sobre rogos, o que se adivinhava pela vibrante melodia

das inflexões, obtinha apenas o fidalgo o doce consentimento do silêncio, favor insuficiente para os lábios ardentes que já começaram a beber o amor.

De improviso, porém, Maria Antonieta deixou escapar algumas palavras. Pelo menos é o que se deve acreditar. Palavras sufocadas, apagadas, porque só o desconhecido pôde ouvi-las; mas, assim que as ouviu, num transbordamento de paixão, bradou de modo que também pudessem escutá-lo:

— Obrigado, obrigado! minha doce Majestade! Portanto, até amanhã. A rainha escondeu inteiramente o rosto, já tão bem escondido. Charny sentiu um suor gelado, — o suor da morte! — descer--lhe

vagarosamente das têmporas em pesadas gotas. O desconhecido acabava de ver as mãos da soberana estenderem-se para

êle. Tomou-as nas suas e nelas depôs um beijo tão longo e tão terno, que Charny conheceu, enquanto êle durou, o sofrimento de todos os suplícios que a feroz humanidade furtou às barbáries infernais.

Dado o beijo, ergueu-se, rápida, a rainha e pegou no braço da companheira. Fugiram as duas passando, como na véspera, à beira de Charny. E tendo o desconhecido fugido de seu lado, Charny, que se não pudera

arrancar do chão a que o prendia a prostração de uma dor indizível, percebeu vagamente o ruído simultâneo de dois portões que se fechavam.

Não tentaremos descrever a situação em que se encontrou o rapaz depois do horrível descobrimento.

'Passou a noite em furiosas corridas pelo parque, pelas alamedas, cuja criminosa cumplicidade reprochava com desespero.

Completamente louco durante algumas horas, só tornou a encontrar a razão ao dar, na sua corrida cega, com a espada que lançara de si a fim de não ser tentado a utilizar-se dela.

A lâmina, que lhe embaraçou os pés, provocando-lhe a queda, chamou-o de repente ao sentimento de sua força e de sua dignidade. Um homem que sente uma espada na mão, se ainda estiver louco, só pode matar-se com ela ou matar o ofensor; mas já não tem o direito de ser fraco nem pusilânime.

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O COLAR DA CAINHA 505

Voltou a ser Charny o que sempre fora, um espírito sólido, um corpo vigoroso. Interrompeu as carreiras insensatas, durante as quais encontrara as árvores, e pôs-se a caminhar direito e mudo pela avenida em que ainda se distinguiam vestígios dos passos das duas mulheres e do desconhecido.

Foi visitar o lugar onde a rainha se assentara. Os musgos, amarrotados ainda, revelavam-lhe a própria desdita e a ventura de outro! Em lugar de gemer, em lugar de permitir que as ondas de cólera tornassem a subir-lhe à fronte, entrou a refletir sobre a natureza daquele amor oculto e sobre a qualidade da pessoa que o inspirava.

Foi explorar os passos do fidalgo com a fria atenção que teria empregado no exame dos rastros de um animal selvagem. Reconheceu o portão atrás dos banhos de Apoio. Escalou o espigão de um muro e viu sinais de patas de cavalo e parte da grama arrancada.

— É por aqui que êle vem! E não vem de Versalhes, vem de Paris, — refletiu. — Vem só e voltará amanhã, visto que lhe disse ram: "Até amanhã".

"Até amanhã devoremos em silêncio, já não as lágrimas que me correm dos olhos, senão o sangue que me transborda do coração.

"Amanhã será o último dia de minha vida, se eu não fôr um covarde e nunca tiver amado.

"Vamos, vamos, — continuou, batendo docemente no coração, como bate o cavaleiro no pescoço do cavalo que se precipita — calma, força, que a provação ainda não terminou."

Dito isso, lançou à sua volta um derradeiro olhar, despregou a vista do castelo, onde temia ver iluminada a janela da pérfida rainha; pois essa luz teria sido mais uma mentira, uma nódoa a mais.

Com efeito, janela acesa não significa quarto habitado? E por que há de mentir assim quem tem o direito da impudicícia e da desonra, quando é tão pequena a distância entre a vergonha oculta e o público escândalo?

A janela da rainha estava iluminada. — Fazer acreditar que está em seus aposentos, quando anda

pelo parque em companhia de um amante! Francamente, isso é o que se chama castidade inútil, — murmurou Charny, acentuando as palavras com amarga ironia.

"É muita bondade dela dissimular assim conosco. É verdade que talvez receie contrariar o marido. . . "

E, enterrando as unhas na carne, retomou, a passos medidos, o caminho de casa.

— Eles disseram: "Até amanhã", — acrescentou, depois de haver transposto o balcão. — Sim, até amanhã!... Para todos, que ama nhã seremos quatro nesse encontro, minha senhora!

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LXVII

Mulher e rainha

O DIÀ seguinte trouxe as mesmas peripécias. Abriu-se a porta ao derradeiro soar da meia-noite. Surgiram as duas mulheres.

Era, como no conto árabe, a assiduidade dos génios que obedecem pontualmente aos talismãs.

Charny estava decidido; naquela noite reconheceria o feliz personagem favorecido pela rainha.

Fiel aos seus hábitos, embora não inveterados, caminhou escondendo-se atrás das moitas; mas, chegado ao lugar onde, havia dois dias, se realizava o encontro dos amantes, não achou ninguém.

A companheira da rainha arrastava-a para os banhos de Apoio. Uma ansiedade horrível, um novo sofrimento prostrou-o. Em sua inocente

probidade, não imaginara que o crime pudesse chegar até esse ponto. Sorrindo e cochichando, encarreirava-se a rainha para o sítio em cujo

limiar a esperava, de braços abertos, o fidalgo desconhecido. Entrou, estendendo também os braços. O portão de ferro fechou-se. A cúmplice ficou do lado de fora, encostada num cipo desmantelado, rodeado

de folhas. Charny não calculara bem as próprias forças, que não poderiam resistir a

tamanho choque. No momento em que, louco de raiva, ia atirar-se à confidente da rainha para desmascará-la, reconhecê-la, injuriá-la, esganá-la talvez, o sangue lhe afluiu torrencialmente às têmporas, ao pescoço, e afogou-o.

Caiu sobre o muro, despedindo um ténue suspiro, que foi perturbar, por um segundo, a tranquilidade da sentinela postada à porta dos banhos de Apoio.

Uma hemorragia interna, causada pelo ferimento que se reabrira, sufocava-o.

Recobrou os sentidos despertado pelo frio do orvalho, pela umidade da terra, pela viva impressão da própria dor.

Ergueu-se cambaleante, reconheceu o local em que estava, deu tento da própria situação, recordou-se e procurou.

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O COLAR DA RAINHA 507

Desaparecera a sentinela, não se ouvia rumor algum. Um relógio, dando duas horas em Versalhes, fê-lo compreender que o seu desmaio fora longo.

A medonha visão, sem dúvida alguma, desaparecera. A rainha, o amante e a companheira tinham tido tempo de fugir. Convenceu-se disso observando, por cima do muro, os recentes vestígios da partida de um cavaleiro.

Esses vestígios e alguns galhos quebrados nas vizinhanças do portão dos banhos de Apoio compunham toda a convicção do pobre Charny.

A noite foi um longo delírio. De manhã, ainda não se acalmara. Pálido como um morto, dez anos mais velho, chamou o camareiro e

ordenou-lhe que o vestisse de veludo negro, como um burguês rico* Sombrio, mudo, recalcando todos os sofrimentos, guiou para o castelo de

Trianon no momento em que se acabava de render a guarda, isto é, cerca das dez horas.

A rainha estava saindo da capela, onde ouvira missa. À sua passagem, curvavam-se, respeitosas, cabeças e espadas. Charny viu algumas mulheres coradas de despeito ante a beleza de Sua

Majestade. Bela, realmente, com os formosos cabelos erguidos sobre as têmporas, o

rosto de traços finos, a boca risonha, os olhos fatigados, mas nos quais brilhava uma suave claridade.

A súbitas, deu com Charny na extremidade da sebe. Purpu-reou-se e soltou um grito de surpresa.

O conde não abaixou a cabeça. Continuou olhando para a rainha, que lhe adivinhou no olhar uma nova desgraça. Ela aproximou-se.

— Eu vos cria em vossas terras, Sr. de Charny, — disse, severa. —Voltei, senhora, — respondeu êle em tom breve e quase impolido. Maria Antonieta se deteve, estupefata, pois nunca lhe escapavam tais

nuanças. Depois dessa troca de olhares e palavras quase hostis, voltou-se para o lado

das mulheres. — Bom dia, condessa, — disse amistosamente à Sra. de La Motte. E piscou os olhos com familiaridade. Charny estremeceu. Observou com mais atenção. Preocupada com aquela afetação, Joana virou a cabeça. Seguiu-a Charny como se estivesse louco, até que ela voltou a mostrar-lhe o

rosto. Em seguida, pôs-se a rodeá-la, estudando-lhe o modo de andar. Embora cumprimentasse à direita e à esquerda, a rainha acompanhava as

manobras dos dois observadores.

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508 ALEXANDRE DUMAS

— Terá êle perdido a cabeça? — pensou. — Pobre rapaz. E tornou a aproximar-se. — Como estais passando, Sr. de Charny? — perguntou com voz suave. — Muito bem, senhora, mas, graças a Deus, menos bem do que Vossa Majestade. E cumprimentou de modo que a estarreceu muito mais do que já a

surpreendera. — Há qualquer coisa, — pensou Joana, sempre atenta. — Onde estais morando agora? — volveu a rainha. — Em Versalhes, senhora, — retrucou Oliveiros. — Há quanto tempo? — Há três noites, — acudiu êle, acentuando as palavras com o olhar, o gesto e a voz. A rainha não manifestou emoção alguma; Joana estremeceu. — Não tendes nada para dizer-me? — perguntou a soberana a Charny com

angélica doçura. — Oh! senhora, — replicou o interpelado, — eu teria muitas coisas que dizer a Vossa Majestade. — Vinde! — exclamou ela bruscamente. — Vigiemos, — pensou Joana. Com passos largos, encaminhou-se a rainha para os seus aposentos.

Seguiram-na todos, não menos agitados. O que pareceu providencial à Sra. de La Motte foi que Maria Antonieta, para não dar a impressão de estar buscando uma entrevista a sós, ordenou a algumas pessoas que a seguissem.

No meio delas meteu-se a condessa. Chegada ao seu apartamento, a rainha dispensou a Sra. de Misery e as

damas de serviço. Estava o tempo suave e velado, o sol não atravessava as nuvens, mas o calor

e a luz filtravam-se-lhe através das espessuras brancas e azuis. A rainha abriu a janela que dava para um terracinho; colocou--se diante da

cómoda cheia de cartas e esperou. A pouco e pouco, as pessoas que a tinham seguido compreenderam o seu

desejo de ficar só e afastaram-se. Impaciente, devorado pela cólera, Charny amarfanhava o cha-. péu entre

as mãos. — Falai! falai! — ordenou a rainha; — pareceis muito perturbado, senhor. — Como hei de começar? — principiou Charny, pensando em voz alta; — como ousarei acusar a honra, acusar a fé, acusar a Majestade? — Como? — bradou Maria Antonieta, voltando-se, rápida e flamejante.

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O COLAR DA RAINHA 509

— E, no entanto, não direi o que vi! — continuou êle. Ergueu-se a rainha. — Senhor, — tornou, friamente, — é muito cedo para que eu vos julgue

bêbedo; e, no entanto, assumistes uma atitude que fica mal a fidalgos em jejum.

Ela esperava esmagá-lo com a apóstrofe desdenhosa; mas êle, imóvel: — Na verdade, — disse, — que é uma rainha? Mulher. E eu, que sou eu? Tanto homem quanto súdito. — Senhor I — Senhora, não compliquemos o que tenho para dizer-lhe com uma cólera que acabaria em loucura. Creio haver-lhe provado que eu respeitava a majestade real; receio haver provado também que dedicava um amor insensato à pessoa da rainha. Assim sendo, esco lha: a qual das duas, à rainha ou à mulher, prefere Vossa Majestade que este adorador atire uma acusação de opróbrio e deslealdade? — Sr. de Charny, — bradou a rainha, empalidecendo e caminhando para o rapaz, — se não sairdes daqui, mandarei expulsar-mos pelos meus guardas. — Direi, então, antes de ser expulso, por que Vossa Majestade é uma rainha indigna e uma mulher sem honra! — gritou Charny, bêbedo de furor. — Há três noites que a sigo em seu parque! Mas em lugar de vê-la saltar, como esperava, sob o golpe terrível, viu-a

erguer a cabeça e acercar-se. — Sr. de Charny, — disse ela, tomando-lhe a mão, — estais num estado que me dá pena; cuidado! os vossos olhos relampejam, tremem as vossas mãos, tendes o rosto mortalmente pálido, todo o sangue vos aflui ao coração. Estais passando mal, quereis que eu chame alguém? — Eu a vi! eu a vi! — repetiu êle, friamente, — vi-a com aquele homem, quando a senhora lhe deu a rosa; vi quando êle lhe beijou as mãos; vi quando a senhora, em companhia dele, entrou nos banhos de Apoio. Maria Antonieta passou a mão pela testa como se quisesse certificar-se de que

não estava dormindo. — Vamos a ver, — começou, — sentai-vos, pois acabareis caindo

se eu não vos amparar; sentai-vos, estou dizendo. Charny, com efeito, deixou-se cair numa poltrona; sentou-se a rainha ao pé

dele, num tamborete; em seguida, segurando-lhe as mãos e considerando-o até ao fundo da alma:

— Acalmai-vos, — continuou, — serenai o coração e a cabeça, e repeti-me o que acabastes de dizer. — Vossa Majestade quer matar-me! — murmurou o desgraçado. — Deixai-me interrogar-vos. Desde quando voltastes de vossas terras?

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510 ALEXANDRE DUMAS

— Há quinze dias. — Onde estais morando? — Na casa do monteiro, que aluguei acinte. — A casa do suicida, nas raias do parque? Charny assentiu com o gesto. — Estais falando de alguém que teríeis visto comigo? — Estou falando primeiro de Vossa Majestade, que eu vi. — Onde? — No parque. — A que horas? Quando? — À meia-noite, têrça-feira, pela primeira vez. — Vistes-me?

— Como a estou vendo; e vi também a mulher que a acompanhava. — Alguém me acompanhava? Seríeis capaz de reconhecer a pessoa? — Ainda há pouco pareceu-me vê-la aqui; mas não me atreveria a afirmá-lo. É só o modo de andar que é parecido; quanto ao rosto, sempre o escondem os que vão cometer algum crime. — Bem! — volveu a rainha, calma; — não reconhecestes a minha companheira, mas eu . . . — Oh! Vossa Majestade eu v i . . . Olhe... acaso não a estou vendo? Ela bateu o pé, impaciente. — E... esse companheiro, — prosseguiu, — a quem dei uma rosa... pois me vistes dar-lhe uma rosa... — Sim: nunca pude alcançá-lo. — Conhecei-lo, ao menos? — Chamam-lhe Monsenhor; é tudo o que sei. A rainha golpeou a testa com um furor concentrado. — Continuai, — ordenou; — têrça-feira, dei-lhe uma rosa... e quarta? — Quarta, Vossa Majestade deu-lhe as mãos a beijar. — Oh! — murmurou ela, mordendo as mãos... — E, afinal, quinta-feira, ontem?... — Ontem, Vossa Majestade passou hora e meia na gruta de Apoio com êle, onde a sua companheira os deixou a sós. Ergueu-se a rainha impetuosamente. — E... vós... me vistes? — perguntou, escandindo as sílabas. Charny ergueu a mão para jurar. — Oh!. . . — bradou a rainha, arrebatada por seu turno pela fúria... — e

êle é capaz de jurá-lo! Charny repetiu, solene, o gesto acusador. — Eu? eu? — tornou a rainha, — vistes-me? — Têrça-feira, Vossa Majestade levava o seu vestido verde com listas ondeadas de ouro; quarta-feira, o vestido de grandes rama-

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O COLAR DA RAINHA 511

gens azuis e pardas. Ontem, o de seda côr de folha seca, que trajava no dia em que lhe beijei a mão pela primeira vez! Era Vossa Majestade, era Vossa Majestade! Morro de dor e de vergonha ao dizê-lo: mas juro pela minha vida, juro pela minha honra, juro por meu Deus! Era Vossa Majestade!

Maria Antonieta pôs-se a caminhar com passos largos pelo terraço, não se incomodando de revelar a sua estranha agitação aos espectadores que, em baixo, a devoravam com os olhos.

— Se eu fizesse um juramento, — disse ela... — se eu jurasse também por meu filho, por meu Deus!... Tenho um Deus como vós!... Não! Êle não acredita em mim!... Êle não me acreditaria!

Charny abaixou a cabeça. — Insensato! — acrescentou a soberana, sacudindo-lhe a mão com energia e arrastando-o do terraço para o quarto. — Há de ser uma volúpia bem rara acusar uma mulher inocente, irreprochável; há de ser uma honra insigne desonrar a rainha... Acreditar-me-ás, se eu te disser que não me viste? Acreditar-me-ás, se eu jurar pelo Cristo que, há três dias, não tenho saído depois das quatro horas da tarde? Queres que te faça provar pelas minhas criadas, pelo rei, que me viu aqui, que eu não podia estar em outro lugar? Não...não . . . êle não acredita! êle não acredita! — Eu vi! — replicou friamente Charny. — Oh! — bradou, a súbitas, a rainha, — eu sei, eu sei! Essa calúnia atroz já não me foi atirada em rosto? Acaso não me viram no baile da Ópera, escandalizando a corte? Acaso não me viram em casa de Mesmer, em êxtase, escandalizando os curiosos e as pros titutas?. .. Bem o sabeis, vós que vos batestes por mim. — Naquele tempo, senhora, eu me bati porque não acreditava. Hoje, me bateria porque acredito. A rainha ergueu para o céu os braços retesados pelo desespero, e duas

lágrimas ardentes lhe caíram das faces no seio. — Meu Deus! — rogou, — enviai-me um pensamento que me salve.

Não quero que este homem me despreze, Senhor! Sentiu-se o rapaz profundamente comovido por aquela prece simples e

vigorosa. Escondeu os olhos entre as mãos. A rainha permaneceu em silêncio por um instante; logo, depois de haver

refletido: — Senhor, — disse ela, — deveis-me uma reparação. Eis o que exijo de

vós: Vistes-me três noites seguidas no parque, em companhia de um homem. No entanto, sabíeis que já abusaram da semelhança de alguém comigo; que uma mulher, não sei quem,tem no rosto e no andar qualquer coisa de comum com esta desgraçada rainha; mas visto que preferis acreditar que era eu quem assim andava durante a noite; visto que direis que sou eu, voltai

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512 ALEXANDE DUMAS ao parque à mesma hora; voltai comigo. Se me vistes ontem, hoje forçosamente não me vereis, porque estarei ao vosso lado. Se vistes outra, por que não a veremos juntos? E se a virmos. .. Ah! senhor, lamentareis tudo o que me fizestes sofrer?

Charny, apertando o coração com as mãos: — Vossa Majestade faz demais por mim, — murmurou; — mereço a morte: não me esmague com a sua bondade. — Esmagar-vos-ei com provas, — retrucou a rainha. — Nem uma palavra a quem quer que seja. Esta noite, às dez, esperai sozinho à porta da casa do monteiro o que eu tiver decidido fazer para convencer-vos. Ide, senhor, e não deixai que nada transpareça. Ajoelhou-se Charny sem dizer uma palavra e saiu. Na extremidade do segundo salão, passou involuntariamente sob o olhar

de Joana, que o devorava com a vista, e que, ao primeiro chamado da rainha, entrou nos aposentos de Sua Majestade com as demais pessoas presentes.

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LXVIII

Mulher e demónio

JOANA notara a perturbação de Charny, a solicitude da rainha, a pressa de ambos de encetar conversação.

Para uma mulher como ela, isso era mais do que suficiente para fazê-la adivinhar muitas coisas; não temos necessidade de acrescentar o que toda a gente já compreendeu.

Após o encontro preparado por Cagliostro entre a Sra. de La Motte e Oliva, a comédia das três últimas noites pode passar-se sem comentários.

Voltando para junto da soberana, Joana escutou e observou, querendo descobrir no rosto de Maria Antonieta a confirmação de suas suspeitas.

Mas a rainha estava habituada, fazia já algum tempo, a desconfiar de todos. Não deixou reslumbrar coisa alguma. A condessa ficou reduzida às suas conjeturas.

Já ordenara a um lacaio que seguisse o Sr. de Charny. O lacaio voltou, anunciando que o Sr. Conde desaparecera numa casa na extremidade do parque, ao pé das carpas.

Não há dúvida, pensou: o homem está apaixonado e viu tudo. Ouviu Maria Antonieta dizer à Sra. de Misery: — Sinto-me bem fraca, minha querida Misery, e esta noite me deitarei às

oito. E como a dama de honor insistisse: — Não receberei ninguém, — acrescentou. — É muito claro, — disse Joana entre si: — louca seria quem não o compreendesse. Presa das comoções que lhe produzira a cena com Charny, não tardou a

rainha em dispensar o seu séquito. Joana aplaudiu-lhe a decisão pela primeira vez desde o seu ingresso na corte.

— As cartas estão embrulhadas, — refletiu; — vamos a Paris; já é tempo de desfazer o que fiz.

E partiu. Chegando a casa, lá encontrou uma soberba baixela de prata, que o

cardeal lhe mandara de presente naquela manhã. Depois de examinar o presente com indiferença, a despeito do seu valor,

olhou, por trás da cortina, para a casa de Oliva, cujas

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514 ALEXANDRE DUMAS

janelas permaneciam fechadas. Oliva estaria dormindo, cansada sem dúvida; o dia estava muito quente.

Fêz-se conduzir à casa do cardeal, que encontrou radiante, inchado, insolente de alegria e de orgulho; sentado à sua rica escrivaninha, obra prima de Boule, rasgava e reescrevia, sem se cansar, uma carta que começava sempre do mesmo jeito e nunca tinha fim.

Ao anúncio que fêz o camareiro, Monsenhor bradou: — Querida condessa! E precipitou-se-lhe ao encontro. Joana recebeu os beijos de que o prelado lhe cobriu os braços e as mãos.

Instalou-se comodamente para melhor sustentar a conversação. Monsenhor principiou com protestos de reconhecimento, aos quais não

faltava certa eloquente sinceridade. Interrompeu-o Joana. — Sabeis, — exclamou, — que sois um amante delicado e que vos agradeço? — Por quê? — Não por causa do encantador presente que me mandastes hoje cedo; mas pela precaução que tivestes de não mandá-lo à casa onde costumamos encontrar-nos. É realmente delicado. O vosso coração não se prostitui, entrega-se. — A quem se poderá falar de delicadeza, senão a vós? — replicou o cardeal. — Não sois um homem feliz, — continuou Joana; — sois um deus triunfante. — Confesso que sim, e a felicidade me assusta; atrapalha-me; torna-me insuportável a vista dos outros homens. Lembro-me daquela fábula pagã de Júpiter cansado dos próprios raios. Sorriu-se a condessa. — Vindes de Versalhes? — perguntou êle, avidamente. — Venho. — Viste-la...? — Acabo de deixá-la. — E l a . . . não... não disse nada? — E que quereis que tenha dito? — Perdão; isso já não é curiosidade, é desvario. — Não me façais perguntas. — Oh! condessa. — Não, repito-o. — Como dizeis uma coisa dessas! Afirmaria, quem vos visse, que sois portadora de más notícias. — Monsenhor, não me obrigueis a falar. — Condessa! condessa!... E o cardeal empalideceu.

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— Uma felicidade muito grande, — disse êle, — é como o ponto culminante de uma roda da Fortuna; ao lado do apogeu, está o começo da queda. Não me poupeis, se aconteceu alguma desgraça; mas não aconteceu. .. não é verdade? — Eu lhe chamaria, pelo contrário, Monsenhor, uma grande ventura. — Ao quê?... ao quê? . . . que quereis dizer?... que é uma grande ventura? — O fato de não terdes sido descoberto, — replicou Joana, secamente. — Oh!. .. — E êle abriu a sorrir. — Com precauções, com a inteligência de dois corações e de um espírito... — Um espírito e dois corações, Monsenhor, não impedem que outros olhos vejam por entre as folhagens. — Alguém viu? — bradou o Sr. de Rohan, aterrado. — Tudo indica que sim. — Então. . . se viu, reconheceu? — Quanto a isso, Monsenhor, não creio; se nos tivessem reconhecido, se o nosso segredo se achasse em poder de alguém, Joana de Valois já estaria no fim do mundo, e vós estaríeis morto. — É verdade. Todas essas reticências, condessa, me queimam a fogo lento. Alguém viu, seja. Mas esse alguém deve ter visto pessoas passeando num parque. Isso não é permitido? — Perguntai ao rei. — O rei sabe! — Se soubesse, estaríeis na Bastilha e eu no hospital. Mas como uma desgraça evitada vale por duas felicidades prometidas, venho rogar-vos que não tenteis a Deus outra vez. — Como? — exclamou o cardeal; — que significam as vossas palavras, querida condessa? — Não as compreendeis? — Tenho medo de compreendê-las. — Medo terei eu se não me tranquilizardes. — E que terei de fazer para isso?

— Não voltar a Versalhes. O cardeal deu um pulo. — De dia? — perguntou, sorrindo. — Nem de dia, nem de noite! O Sr. de Rohan fremiu e largou a mão da condessa. — Impossível, — exclamou. — Chegou a minha vez de encarar convosco, — respondeu ela; — dissestes-me, se não me engano, que é imposível. Impossível porquê? — Porque tenho no coração um amor que só findará com a vida.

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— É o que estou vendo, — acudiu Joana, irónica, — e é para chegar mais depressa a esse resultado que persistis em voltar ao parque. Sim, se lá voltardes, o vosso amor findará com a vossa vida, e ambos ao mesmo tempo. — Quantos terrores, condessa! Estáveis ontem tão corajosa! — Tenho a coragem dos animais. Não receio nada, enquanto não há perigo. — Pois eu tenho a bravura da minha raça. Só me sinto feliz em presença do próprio perigo. — Muito bem; permiti, todavia, que eu vos diga... — Nada, condessa, nada, — bradou o apaixonado prelado; — o sacrifício está feito, os dados foram lançados; a morte, se o quiserem, mas o amor também! Voltarei a Versalhes. — Sozinho? — Seríeis capaz de abandonar-me? — perguntou o Sr. de Rohan em tom de reproche. — Primeiro a minha segurança. — Mas ela virá ao meu encontro. — Estais enganado, não irá. — Viestes anunciá-lo da sua parte? — tornou, trémulo, o cardeal. — Era o golpe que eu estava buscando atenuar desde o princípio. — Ela não quer mais ver-me? — Nunca mais; e fui eu quem lhe deu esse conselho. — Senhora, — volveu o prelado, em tom sentido, — não devíeis enterrar a faca num coração que sabeis tão terno. — Seria muito pior ainda, Monsenhor, se eu deixasse perder-rem-se duas loucas criaturas por falta de um bom conselho. O conselho é este; aproveite-o quem quiser. — Prefiro morrer, condessa! — Isso é convosco, e não é difícil. — Morrer por morrer, — tornou o cardeal, com voz sombria, — antes o fim do réprobo. Bendito seja o inferno, onde tornarei a encontrar a minha cúmplice. — Santo prelado, estais blasfemando! — sobreveio Joana; — súdito, destronais a vossa rainha! homem, perdeis uma mulher! O cardeal empolgou-lhe a mão e, desvairado: — Confessai que ela não vos disse isso! — rebradou, — e não me renegará assim! — Estou falando em seu nome. — É apenas um adiamento que ela me pede. — Interpretai-o como quiserdes; mas acatai-lhe a ordem. — O parque não é o único sítio em que podemos ver-nos. Há mil lugares mais seguros. A rainha já esteve em vossa casa!

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O COLAR DA RAINHA 517

— Monsenhor, nem mais uma palavra; carrego comigo um peso mortal, o do vosso segredo. Não me sinto com forças para carregá-lo por muito tempo. O que as vossas indiscrições, o que o acaso, o que a malevolência de um inimigo não farão, hão de fazê-lo os remorsos dela. Sei-a capaz de tudo confessar ao rei num momento de desespero. — Santo Deus! será possível! — exclamou o Sr. de Rohan, — ela faria uma coisa dessas? — Se a vísseis, lastimá-la-íeis. Ergueu-se o cardeal precipitadamente. — Que fazer? — perguntou. — Dai-lhe a consolação do silêncio. — Ela acreditará que a esqueci. Joana encolheu os ombros. — Tachar-me-á de covarde. — Covarde por salvá-la? Nunca! — Perdoará uma mulher a alguém que se prive da sua presença? — Não podeis julgá-la como me julgaríeis a mim. — Julgo-a grande e forte. Amo-a pela valentia e pela nobreza do coração. Ela pode, portanto, contar comigo como eu conto com ela. Hei de vê-la uma última vez, dizer-lhe tudo o que penso, e o que ela tiver decidido depois de me ouvir, cumprirei como cumpriria um voto sagrado. Joana levantou-se. — Como quiserdes, — disse ela. — Ide! Mas ireis sozinho. Atirei a chave do parque no Sena, ao voltar de lá hoje cedo. Ide, pois, à vontade, a Versalhes, e eu partirei para a Suíça ou para a Holanda. Quanto mais longe estiver da bomba, menos lhe temerei a explosão. — Condessa! Seríeis capaz de deixar-me, de desamparar-me? Ó meu Deus! Com quem falarei sobre ela? Nessa altura, Joana lembrou-se das cenas de Molière; nunca um Valério

mais insensato dera à mais astuta Dorina respostas mais cómodas. — Tendes o parque e os ecos, — respondeu; — ensinar-lhes-eis o nome de Amarílide. — Condessa, piedade! Estou desesperado, — volveu o prelado, em tom que lhe vinha diretamente do coração. — Pois bem! — replicou Joana com a energia brutal do cirurgião que se determina de amputar um membro; — se estais desesperado, Sr. de Rohan, não façais criancices mais perigosas do que a pólvora, a peste, a morte! Se tanto quereis a essa mulher, conservai-a, em lugar de perdê-la, e se não vos faltam de todo o coração e a memória, não vos aventureis a arrastar em vossa ruína os

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que por amizade vos serviram. Eu não brinco com o fogo. Jurai--me que não dareis um passo para ver a rainha. Nem mesmo para vê-la, estais entendendo? já não digo falar-lhe, nos próximos quinze dias. Jurai-lo? Fico e poderei servir-vos ainda. Mas se estiverdes decidido a tudo desafiar para infringir a nossa proibição, hei de sabê-lo e dez minutos depois terei partido! Nesse caso, arranjar--vos-eis como puderdes.

— E medonho! — murmurou o cardeal; — a queda é esmagadora; cair do alto de tanta felicidade! Isso me matará! — Ora, essa! — sussurrou-lhe Joana ao ouvido; — na realidade amais apenas o vosso amor-próprio. — Hoje amo deveras, — replicou o cardeal. — Pois então sofrei hoje, — voltou Joana; — é uma condição do estado. Vamos a ver, Monsenhor, decidi-vos: ficarei aqui ou tomarei o caminho de Lausanne? — Ficai, condessa, mas achai-me um calmante. Esta ferida dói muito. — Jurais obedecer-me? — À fé de Rohan! — Bom, o vosso calmante já foi encontrado. Proíbo as entre vistas, mas não proíbo as cartas. — Sim? — exclamou o insensato, reanimado por essa esperança. — Poderei escrever? — Tentai-o. — E. .. ela me responderia? — Tentarei persuadi-la. O cardeal cobriu de beijos a mão de Joana. E chamou-lhe seu anjo

tutelar. Há de ter rido muito o demónio que habitava no coração da condessa.

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LXIX

A noite

NESSE mesmo dia, às quatro horas da tarde, um homem a cavalo estacou

na orla do parque, atrás dos banhos de Apoio. A passo, pois estava passeando, pensativo como Hipólito, belo como êle, o

cavaleiro deixava cair as rédeas sobre o pescoço do animal. Deteve-se, como dissemos, no sítio em que o Sr. de Rohan, nos últimos três dias, fizera parar a sua montaria. Naquele lugar, estava o solo escarvado pelas ferraduras, e comidos todos os arbustos à volta do carvalho em cujo tronco ficara preso o ginete. Apeou o cavaleiro.

— Eis aqui um lugar bem devastado, — observou. E abeirou-se do muro. — E aqui há vestígios de escalada; esta porta foi aberta recentemente. Era

o que eu havia pensado. Não se guerreiam os índios das savanas sem aprender a interpretar as

marcas deixadas pelos homens ou pelos cavalos. Ora, fazia quinze dias que voltara o Sr. de Charny; fazia quinze dias que ninguém lhe punha os olhos em cima. Lá estava a porta que o Sr. de Charny escolhera para entrar em Versalhes.

Fazendo essas considerações, suspirou ruidosamente, como se arrancasse com o suspiro a própria alma.

— Deixemos ao próximo a sua felicidade, — murmurou, examinando, um por um, os traços eloquentes da relva e dos muros. — O que Deus dá a uns, recusa a outros. Não é à-toa que êle faz homens felizes e homens infelizes; bendita seja a sua vontade!

Entretanto, era-lhe necessária uma prova. Por que preço, por que meios a conseguiria?

Nada mais simples. Entre as moitas, de noite, um homem não seria descoberto e, do seu esconderijo, veria tudo o que se passasse. Esta noite, decidiu, ficarei entre as moitas.

Apanhou as rédeas do cavalo, tornou a montar lentamente e, sem apertar o passo do animal, desapareceu na extremidade do muro.

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520 ALEXANDRE DUMAS

Quanto a Charny, obediente às ordens da rainha, trancara-se em casa, esperando um recado de sua parte.

Veio a noite, nada lhe apareceu. Em vez de ficar espiando à janela do pavilhão que dava para o parque, pôs-se à espreita, no mesmo quarto, à janela que dava para a ruazinha. Dissera a rainha: à porta da casa do monteiro; mas a janela e a porta naquele pavilhão se equivaliam, ao rés-do-chão. O principal era poder ver quem chegasse.

Interrogava a noite profunda, esperando ouvir, a cada minuto, o galope de um cavalo ou o passo precipite de um correio.

Dez horas e meia soaram. Nada. A rainha enganara-o. No primeiro movimento de surpresa, fizera uma concessão. Envergonhada, prometera o que não poderia cumprir; e, o que era horrível de pensar-se, prometera sabendo que o não cumpriria.

Com a rápida facilidade de suspeita que caracteriza as pessoas violentamente apaixonadas, Charny já censurava a própria credulidade.

— Como pude, — bradava, — eu, que vi, acreditar em mentiras e sacrificar a minha convicção, a minha certeza, a uma estúpida esperança?

Remoía com raiva essa ideia funesta, quando o rumor de um punhado de areia atirado à vidraça da outra janela lhe chamou a atenção e fê-lo correr para o lado do parque.

Viu então, envolto em ampla capa preta, sob a folhagem do parque, um vulto de mulher, erguendo para êle o rosto pálido e inquieto.

Não pôde conter um grito de alegria e de arrependimento. A mulher que o esperava, que o chamava, era a rainha!

Num salto, atirou-se pela janela e foi cair aos pés de Maria Antonieta. — Ah! estais aqui, senhor? Ainda bem! — disse ela, comovida, em voz baixa; — que estáveis fazendo? — Majestade! Majestade!... será possível? — replicou Charny, prosternando-se. — Era assim que me esperáveis? — Eu estava esperando do lado da rua, senhora. — E eu vira, acaso, pela rua, quando é muito mais simples vir pelo parque? — Eu não me atrevia a acalentar essa esperança! — volveu Charny com um acento de apaixonada gratidão. Ela interrompeu-o: — Não fiquemos aqui, está muito claro; trouxestes a espada? — Trouxe. — Bem!... Por onde dizeis que entraram as pessoas que vistes? — Por aquela porta.

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— A que horas? — À meia-noite. — Não há motivo para que não venham hoje também. Não falastes com ninguém? — Ninguém. — Entremos naquele mato e esperemos. — Oh! Majestade... A rainha passou-lhe à frente e, com passo rápido, caminhou um pouco em

sentido contrário. — Deveis ter compreendido, — disse, de repente, como se quisesse

antecipar-se ao pensamento dele, — que não fui contar este caso ao Chefe de Polícia. Depois que me queixei da primeira vez, o Sr. de Crosne já me deveria ter feito justiça.

"Se a criatura que me usurpa o nome, depois de me haver usurpado a semelhança, ainda não foi presa, se todo este mistério ainda não se esclareceu, só pode haver dois motivos: a incapacidade do Sr. de Crosne, o que é nada, ou a sua conivência com os meus inimigos. Ora, afigura-se-me difícil que em minha casa, no meu parque, se permita a representação da ignóbil comédia que me referistes, sem que os seus atores estejam certos de um apoio direto ou de uma tácita cumplicidade. Eis por que me parecem tão perigosos os culpados que só me fio de mim mesma para desmascará-los. Não pensais assim também?"

— Peço licença a Vossa Majestade para não abrir mais a boca. Estou desesperado; ainda tenho receios, mas já não tenho suspeitas. — Pelo menos, sois um homem de honra, — disse vivamente a rainha; — sabeis dizer as coisas rosto a rosto; é um mérito que pode às vezes magoar os inocentes quando nos enganamos a respeito deles: mas uma ferida cura-se. — Oh! senhora, já são onze horas; estou tremendo. — Certificai-vos primeiro de que aqui não há ninguém, — disse a rainha para afastar o companheiro. Charny obedeceu. Examinou a mata até os muros. — Ninguém, — anunciou, ao voltar. , — Onde se passou a cena que me contastes? — Neste instante, senhora, ao voltar da minha exploração, recebi um golpe terrível no coração. Vi-a no mesmo sítio em que, nas últimas noites, vi. . . a falsa rainha de França. — Aqui! — bradou a soberana, afastando-se com repugnância do lugar em que se achava. — Debaixo deste castanheiro. — Então, senhor, — tornou Maria Antonieta, — afastemo-nos, pois se aqui estiveram aqui voltarão. Charny seguiu-a por outra alameda. Batia-lhe cora tanta força o coração

que teve medo de não ouvir o ruído do portão quando se abrisse.

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Silenciosa e altiva, esperava ela que se produzisse a prova viva da sua inocência.

Meia-noite soou. A porta não se abriu. Passou-se meia hora, durante a qual Maria Antonieta perguntou mais de dez

vezes se os impostores tinham sido pontuais nas entrevistas. Os sinos de São Luís de Versalhes deram meia noite e três quartos. A rainha bateu o pé com impaciência. — Hoje não virão, — disse ela; — essas desgraças só a mim me

acontecem. E considerava Charny pronta para brigar se lhe surpreendesse nos olhos o

menor brilho de triunfo ou de ironia. Mas êle, empalidecendo à proporção que lhe voltavam as suspeitas,

conservava uma postura tão grave e melancólica, que o seu rosto devia de refletir naquele momento a serena paciência dos mártires e dos anjos.

A rainha tomou-lhe do braço e reconduziu-o ao castanheiro onde haviam parado pela primeira vez.

— Dizeis, — murmurou, — que aqui os vistes. — Precisamente, senhora. — Aqui, a mulher deu uma rosa ao homem. — Sim, Majestade. Ela sentia-se tão fraca, tão cansada por haver estado tanto tempo naquele

parque úmido, que se encostou ao tronco da árvore e inclinou a cabeça sobre o seio.

Insensivelmente, vergaram-lhe as pernas; e como Charny não lhe desse o braço, deixou-se antes cair que sentar sobre a relva e os musgos.

Êle permanecia imóvel e sombrio. Ela levou as mãos ao rosto, e o rapaz não viu uma lágrima deslisar-lhe por

entre os brancos dedos afilados. Súbito, erguendo a cabeça: — Senhor, — disse Maria Antonieta, — tendes razão; estou condenada. Eu prometera provar hoje que me havíeis caluniado: Deus não o quer, submeto-me. — Senhora. . . — murmurou Charny. — Fiz, — continuou ela, — o que não teria feito mulher alguma em meu lugar. Já não falo das rainhas. Oh! senhor, que é uma rainha, quando não pode sequer reinar sobre um coração? Que é uma rainha quando não obtém sequer a estima de um homem de bem? Vamos, ajudai-me pelo menos a levantar-me, para que eu parta; não me desprezeis a ponto de recusar-me a vossa mão. Como um insensato, Charny precipitou-se-lhe aos pés.

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O COLAR DA RAINHA 523

— Senhora, — exclamou, batendo com o rosto no chão, — se eu não fosse um desgraçado que a ama, Vossa Majestade me perdoaria, não é verdade? — Vós! — bradou a rainha com um riso amargo; — vós amais-me e, no entanto, me julgais infame!... — Oh!... senhora. — Vós!... vós, que devíeis ter memória, acusais-me de haver dado aqui uma flor, lá um beijo, acolá o meu amor a outro homem... Não mintais, senhor: vós não me amais! — Senhora, o fantasma estava lá, o fantasma da rainha enamorada. Lá estava também o fantasma do amante. Arranque-me o coração, visto que essas duas imagens infernais vivem nele e o devoram. Ela tomou-lhe a mão e atraiu-o para si com um gesto arrebatado. — Vistes!... ouvistes!... Era eu mesma, não era? — volveu com voz

abafada. . . — Era eu, sim, não busqueis outra explicação. Pois bem! se neste mesmo lugar, debaixo deste mesmo castanheiro,sentada como eu estava, estando vós a meus pés como o outro, se vos aperto as mãos, se vos aconchego de mim, abraço e digo: Fiz tudo isso com o outro, disse ao outro a mesma coisa, e agora vos confesso: Sr. de Charny, nunca amei, não amo e nunca amarei senão uma pessoa no mundo. . . e essa pessoa sois vós!... Meu Deus! meu Deus! bastaria isso para convencer-vos de que não é infame quem tem no coração, com o sangue das imperatrizes, o divino fogo de um amor como este?

Charny desferiu um gemido semelhante ao do homem que expira. Ao falar, a rainha inebriara-o com o seu hálito; sentira-lhe as palavras, a mão dela queimara-lhe o ombro, o seu colo calcinara--lhe o coração, o seu hálito lhe crestara os lábios.

— Deixe-me agradecer a Deus, — murmurou. — Se eu não pensasse em Deus, pensaria demasiado em si.

Ergueu-se ela devagar e parou nele dois olhos cujo brilho mal transluzia através das lágrimas.

— Quer a minha vida? — perguntou o conde, transfigurado. Ela calou por um momento sem interromper a contemplação. — Dai-me o vosso braço, — disse, afinal, — levai-me a todos os lugares

onde estiveram os outros. Primeiro aqui... aqui, onde foi dada a rosa... Arrancou do vestido uma rosa ainda quente do fogo que lhe abrasara o seio. — Tomai! — ofereceu, num sussurro. Êle aspirou o perfume da flor e apertou-a de encontro ao peito. — Aqui, — volveu ela, — a outra deu a mão a beijar?

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— As mãos! — emendou Charny, cambaleante e bêbedo, no momento em que o seu rosto se viu preso entre as palmas enfogadas da rainha. — Eis um lugar purificado, — tornou Maria Antonieta com um sorriso adorável. — Depois, foram, aos banhos de Apoio? Como se o céu lhe houvesse caído sobre a cabeça, Charny se deteve,

semimorto, estupefato. — É um sítio, — continuou alegremente a princesa, — onde só entro de

dia. Vamos ver juntos a porta por onde fugia o tal amante da rainha. Jubilosa, leve, suspensa ao braço do homem mais feliz que Deus já

abençoou, transpôs quase a correr os gramados que separavam as matas do muro. Chegaram assim à porta atrás da qual se viam marcas de ferraduras.

— É aqui, — anunciou Charny. — Eu trouxe as chaves, — respondeu a rainha. — Abri, Sr. De Charny; instruamo-nos. Saíram e inclinaram-se para ver: a lua desgarrou-se de uma nuvem como

que para ajudá-los a investigar. O raio branco, terno, acarinhou o formoso rosto da rainha, que se apoiava

ao braço de Charny, ouvindo e examinando as moitas vizinhas. Quando se julgou suficientemente convencida, fêz entrar novamente o

fidalgo, atraindo-o para si com suave pressão. Fechou-se a porta atrás deles. Duas horas soaram. — Adeus, — disse ela. — Voltai para casa. Até amanhã. Apertou-lhe a mão e, sem mais uma palavra, alongou-se, rápida, por entre as carpas, na direção do castelo. Adiante da porta que acabavam de fechar, ergueu-se um homem do seio das

moitas e desapareceu nas matas que bordejavam a estrada. Esse homem levava, ao partir, o segredo da rainha.

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LXX

A despedida

A RAINHA saiu no dia seguinte sorridente e bela para ir à missa. Os guardas receberam ordem de deixar que dela se aproximasse toda a

gente. Era domingo e Sua Majestade dissera, ao despertar: — O dia está lindo! Como é bom viver num dia assim! Parecia respirar com maior prazer o perfume das flores predi-letas;

mostrou-se mais esplêndida nos favores que concedeu; e deu--se mais pressa em ir depor a alma aos pés do Criador.

Ouviu a missa com unção. Jamais curvara tanto a cabeça majestosa. Ao passo que ela orava com fervor, apinhava-se a multidão, como todos os

domingos, na passagem que liga os apartamentos à capela, e até os degraus das escadas regurgitavam de fidalgos e damas.

Entre estas últimas brilhava, modesta mas elegantemente vestida, a Sra. de La Motte.

E na dupla ala, formada pelos gentis-homens, via-se à direita o Sr. de Charny, muito cumprimentado pelo seu restabelecimento, pelo seu regresso e, sobretudo, pela sua radiante fisionomia.

O favor é um perfume sutil; subdivide-se com tamanha facilidade no ar que, muito antes de abrir-se o frasco, o aroma é definido, reconhecido e apreciado pelos entendidos. Fazia apenas seis horas que Oliveiros era amigo da rainha, mas toda a gente já se tida, a Sra. de La Motte.

Ao mesmo passo que recebia as felicitações com o semblante de um homem verdadeiramente feliz, e que, para prestar-lhe maiores homenagens e demonstrar-lhe maior amizade, toda a esquerda da ala passava para a direita, Oliveiros, obrigado a deixar que os seus olhares se alongassem pelo grupo espalhado à sua volta, viu só, diante de si, um rosto cuja sombria palidez e cuja imobilidade o impressionaram.

Reconheceu Filipe de Taverney apertado no seu uniforme e com a mão no punho da espada.

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Após as visitas de cortesia feitas por este último à antecâmara do adversário depois do duelo, após o sequestro de Charny realizado pelo Dr. Luís, nenhum outro contacto se estabelecera entre os dois rivais.

Vendo Filipe considerá-lo tranquilamente, sem benevolência mas sem ameaça, Charny dirigiu-lhe um cumprimento, que o outro retribuiu, de longe.

Logo, abrindo com a mão o grupo que o cercava: — Perdão, senhores, — rogou Oliveiros; — deixai-me cumprir

um dever de polidez. E, atravessando o espaço compreendido entre a sebe da direita e a da

esquerda, guiou diretamente para Filipe, que não se mexia. — Sr. de Taverney, — disse, cortejando-o com mais civilidade que da

primeira vez, — eu já vos devia ter agradecido o interesse que demonstrastes pela minha saúde, mas acontece que só ontem cheguei.

Filipe corou, olhou para êle e abaixou os olhos. — Terei a honra, senhor, — continuou Charny, — de ir visitar mos amanhã, e espero que não me tenhais guardado rancor. — Nenhum, senhor, — replicou Filipe. Charny ia estender-lhe a mão, quando o tambor anunciou a chegada da

rainha. — Eis a rainha, senhor, — anunciou, pausado, o Sr. de Taverney, sem

responder ao gesto amistoso do conde. E acentuou a frase com uma reverência menos fria que melancólica. Um tanto surpreso, Charny apressou-se em voltar para junto dos amigos

da ala da direita. Filipe continuou onde estava, como se fosse uma sentinela. Aproximava-se a rainha, sorrindo para diversas pessoas, e recebendo ou

mandando receber as petições, pois de longe avistara Charny e, não despitando dele os olhos, com a temerária bravura que punha em suas amizades, e que os inimigos taxavam de im-pudor, pronunciou em voz alta estas palavras:

— Pedi, senhores, pedi, que hoje eu não saberia recusar o que quer que fosse.

Charny sentiu-se penetrado até ao fundo do coração pelo tom e pelo sentido daquelas mágicas palavras. Fremiu de prazer, e foi esse o seu agradecimento à rainha.

Inesperadamente, o rumor de um passo e o metal de uma voz estranha arrancaram Maria Antonieta a sua doce mas perigosa contemplação.

O passo gritava-lhe à esquerda, sobre as lájeas, e a voz comovida, mas grave, dizia:

— Senhora!...

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O COLAR DA RAINHA 527

Era Filipe; ela não pôde reprimir um primeiro movimento de surpresa ao ver-se colocada entre os dois homens, que se arguia de amar, um com demasias, o outro demasiado pouco.

— Vós! Sr. de Taverney, — bradou, recobrando-se; — quereis pedir-me alguma coisa? Falai. — Dez minutos de audiência ao talante de Vossa Majestade, — disse Filipe, inclinando-se, mas sem desarmar a severa palidez da fronte. — Neste instante, senhor, — acedeu a rainha, dirigindo um olhar furtivo a Charny, que involuntariamente temia ver tão próximo do antigo adversário; — segui-me. E pôs-se a caminhar mais depressa ouvindo o passo de Filipe atrás do seu;

Charny continuou onde estava. Sem embargo, prosseguiu ela na colheita de cartas, petições e requerimentos,

deu algumas ordens e voltou aos seus aposentos. Um quarto de hora depois, Filipe era introduzido na biblioteca em que Sua

Majestade recebia aos domingos. — Ah! Sr. de Taverney, — disse ela, assumindo o seu ar satisfeito, — entrai e

mostrai-me desde logo boa cara. Pois confesso que me sinto inquieta todas as vezes que um Taverney pede para falar comigo. Os de vossa família sois agoureiros. Tranquilizai-me depressa, Sr. de Taverney, dizendo-me que não vindes anunciar-me uma desgraça.

Mais pálido ainda depois desse preâmbulo do que durante a cena com Charny, contentou-se Filipe de replicar, ao ver quão pouca afeição emprestava a rainha à sua linguagem:

— Senhora, tenho a honra de anunciar a Vossa Majestade que, desta feita, lhe trago uma boa notícia. — É uma notícia! — Infelizmente, Majestade. — Ah! meu Deus! — replicou ela, reassumindo a expressão alegre que o deixava tão infeliz, — acabastes de dizer infelizmente! Pobre de mim! diria um espanhol. O Sr. de Taverney disse infelizmente! — Senhora, — tornou, grave, Filipe, — duas palavras bastarão a tranquilizar tão completamente Vossa Majestade, que não só a sua nobre fronte não se velará hoje à aproximação de um Taverney, mas nunca mais se velará por culpa de um Taverney-Maison-Rouge. A partir de hoje, senhora, o último da família a que Vossa Majestade se dignou de conceder algum favor, desaparecerá para sempre da corte de França. A rainha, largando de repente a expressão alegre que assumira como recurso

contra as presumíveis comoções da entrevista: — Partis! — exclamou. — Sim, Majestade.

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— Vós... também! Inclinou-se Filipe. — Minha irmã, senhora, já teve o desgosto de deixá-la; e eu, como lhe

sou muito mais inútil, vou-me embora também. Sentou-se a rainha, perturbadíssima ao lembrar-se de que Andreia pedira a

mesma licença eterna logo após uma entrevista em casa de Luís, onde o Sr. de Charny recebera as primeiras mostras da simpatia que ela lhe dedicava.

— É estranho! — murmurou, pensativa. E não disse mais nada. Filipe continuava em pé, como uma estátua de mármore à espera do gesto que dispensa. A rainha, saindo de golpe da sua letargia: — Aonde ides? — perguntou. — Pretendo reunir-me ao Sr. de Lapeyrouse. — O Sr. de Lapeyrouse está, neste momento, em Terra Nova. — Já tenho tudo pronto para ir ao seu encontro. — Sabeis que lhe predisseram uma morte horrível? — Horrível, não sei, — replicou Filipe; — mas rápida, sim. — E partis? Abriu-se num sorriso o rosto formoso do rapaz, tão nobre e tão doce. — É por isso mesmo que quero juntar-me a Lapeyrouse. Recaiu a rainha no seu inquieto silêncio. Filipe, ainda uma vez, ficou esperando, respeitosamente. A natureza tão nobre e tão corajosa de Maria Antonieta despertou, mais

temerária do que nunca. Ergueu-se, aproximou-se do rapaz e disse-lhe, cruzando sobre o peito os

braços alvos: — Por que partis? — Porque tenho muita vontade de viajar, — respondeu êle doce mente. — Mas já destes a volta ao mundo, — volveu a rainha, momentaneamente iludida por aquela calma heróica. — Ao Novo Mundo, sim, senhora, — continuou Filipe, — mas ao antigo e ao novo ao mesmo tempo, não. A rainha fêz um gesto de despeito e repetiu o que dissera a Andreia. — Raça de ferro, corações de aço são esses Taverneys. Vossa irmã e vós,

gente terrível, são amigos que a gente acaba odiando. Partis, não para viajar, que estais farto de viagens, mas para deixar-me. Vossa irmã dizia-se chamada pela religião, mas esconde um coração de fogo debaixo das cinzas. Enfim, quis partir, partiu. Deus a faça feliz! E vós, que poderíeis ser feliz, quereis partir também. Eu não disse há pouco que os Taverneys me são infaustos?

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O COLAR DA RAINHA 529

— Poupe-nos, senhora; se Vossa Majestade se dignasse de examinar melhor os nossos corações, neles encontraria apenas um devota-mento sem limites. — Ouvi! — bradou, colérica, a rainha, — vós, o quacre, e ela, a filósofa, sois duas criaturas impossíveis. Para ela, o mundo é um paraíso em que a gente só entra com a condição de ser santo; para vós, o mundo é um inferno, onde só vivem os diabos; e ambos fugistes o mundo: um, por encontrar nele o que êle não procura; o outro, pelo não encontrar. Tenho ou não tenho razão? Ora, meu caro Sr. de Taverney, deixai que os humanos sejam imperfeitos, e não peçais às famílias reais senão que sejam as menos imperfeitas das famílias humanas; sede tolerante, ou melhor, não sejais egoísta. Ela acentuou essas palavras com apaixonada veemência. Filipe percebeu a

superioridade da sua posição. — Senhora, — disse êle, — o egoísmo é uma virtude quando dele nos

servimos para realçar as nossas adorações. Ela corou. E disse: — Só sei de uma coisa: eu gostava de Andreia e ela me deixou. Eu vos queria bem e vós me deixais. É humilhante para mim ver duas pessoas tão perfeitas, digo-o sinceramente, abandonarem minha casa. — Nada pode humilhar uma pessoa augusta como Vossa Majestade, — replicou priamente Taverney; — a vergonha não atinge as frontes elevadas. — Estou procurando com atenção, — prosseguiu a rainha, — o que vos possa ter magoado. — Nada me magoou, senhora, — tornou vivamente Filipe. — A vossa patente foi confirmada; a vossa fortuna está em bom andamento; eu vos distinguia... — Repito a Vossa Majestade que nada me agrada na corte. — E se eu vos dissesse que ficásseis?... Se vo-lo ordenasse?... — Eu teria a mágoa de recnsar-me a obedecer-lhe. A rainha, pela terceira vez, mergulhou na silenciosa reserva que representava

para a sua lógica o que representa para o esgrimista cansado a ação de romper. E como saía sempre desse repouso com um repente: — Talvez haja aqui alguém que vos desagrade? Sois muito desconfiado, — alvitrou, fitando nele o claro olhar. — Ninguém me desagrada. — Eu vos supunha de mal... com um fidalgo. . . o Sr. de Charny... que feristes em duelo. . . — volveu ela, animando-se gradativamente. — E como é natural que a gente evite as pessoas de que não gosta, assim que vistes voltar o Sr. de Charny, quisestes deixar a corte. Filipe não respondeu.

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Enganando-se com aquele homem tão leal e tão bravo, julgou a rainha que era apenas um ciumento comum. Perseguiu-o sem misericórdia.

— Só hoje soubestes, — continuou, — que o Sr. de Charny está de volta. Hoje! E hoje me apresentais as vossas despedidas?

Tornou-se Filipe mais lívido que pálido. Assim atacado, assim espezinhado, reergueu-se cruelmente.

— Senhora, — disse êle, — apenas hoje eu soube do regresso do Sr. de Charny, é verdade; entretanto, faz um pouco mais de tempo do que supõe Vossa Majestade, pois encontrei-o cerca das duas horas da madrugada à porta do parque que corresponde aos banhos de Apoio.

A rainha empalideceu por sua vez; e, depois de haver considerado com admiração e terror a perfeita cortesia que em sua cólera conservava o fidalgo:

— Bem! — murmurou, com voz apagada; — ide, senhor, não vos retenho mais.

Filipe cortejou pela última vez e partiu a passos lentos. A rainha caiu fulminada na poltrona, murmurando: — França! país de nobres corações!

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LXXI

O ciúme do Cardeal

ENTRETANTO, vira o cardeal sucederem-se três noites bem diferentes daquelas que a sua imaginação revivia sem cessar. Nenhuma notícia, nenhuma esperança! O silêncio mortal após o frenesi da paixão era a treva de um calabouço depois da claridade álacre do sol.

Acalentara primeiro a esperança de que a amante, mulher antes de ser rainha, quisesse conhecer a natureza do amor que despertara, e saber se continuava a agradar, depois da prova, como antes. Sentimento totalmente masculino, cuja materialidade, convertida em arma de dois gumes, feriu dolorosamente o próprio apaixonado quando se voltou contra êle.

Com efeito, não vendo vir ninguém e ouvindo apenas o silêncio, como diz o Sr. Delille, receou o infeliz que a prova lhe houvesse sido desfavorável. Daí, uma angústia, um terror, uma inquietação de que não pode fazer ideia quem não sofreu essas nevralgias gerais que transformam cada fibra ligada ao cérebro numa serpente de fogo, que se contrai ou estende a seu sabor.

O mal-estar tornou-se-lhe insuportável; mandou dez correios à casa da Sra. de La Motte e outros dez a Versalhes no espaço de uma manhã.

O último trouxe-lhe finalmente Joana, que, entretida em vigiar Charny e a rainha, se aplaudia intimamente da impaciência do cardeal, à qual não tardaria em dever o bom êxito do seu cometimento.

Vendo-a, o prelado estourou. — Como é possível que vivais nessa tranquilidade! — bradou êle. — Sabeis-me supliciado e vós, que vos dizeis minha amiga, deixais que o meu suplício se prolongue até à morte! — Ora, Monsenhor, — replicou Joana, — paciência, por favor! O que eu estava fazendo em Versalhes, longe de vós, é muito mais útil do que o que estáveis fazendo aqui, à minha espera. — Não sejais cruel a esse ponto, — tornou Sua Eminência, radiante com a esperança de obter notícias. — Vamos a ver, que é o que estão dizendo, que é o que estão fazendo lá? — A ausência é sempre um mal doloroso, quer sofrido em Paris, quer sofrido em Versalhes.

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— Isso me encanta e eu vo-lo agradeço. Mas... — Mas? — Provas! — Ah! meu Deus! — exclamou Joana, — que estais dizendo, Monsenhor! Provas! Que significa essa palavra? Provas!... Estais no vosso juízo perfeito? Acaso se pedem a uma mulher provas de seus erros? — Não estou pedindo peças para incluir num processo, condessa; estou pedindo uma prova de amor. — Parece-me, — disse ela depois de haver considerado de certo modo Sua Eminência, — que vos estais tornando muito exigente, para não dizer muito esquecido. — Sei o que me direis, sei que eu devia considerar-me satisfeito e honrado; mas julgai-me o coração pelo vosso. Aceitaríeis que vos pusessem de parte depois de vos haverem feito saborear as aparências do favor? — Dissestes aparências, se não me engano? — replicou Joana, no mesmo tom escarninho. — Podeis bater-me impunemente, condessa; é verdade que nada me autoriza a queixar-me; mas eu me queixo... — Nesse caso, Monsenhor, se o vosso descontentamento só tem causas frívolas, ou não tem nenhuma, não posso responsabilizar-me por êle. — Condessa, estais-me tratando mal. — Repito as vossas palavras, Monsenhor. Acompanho a vossa argumentação. — Inspirai-vos em vós, ao invés de censurar as minhas loucuras; ajudai-me em vez de atormentar-me. — Não posso ajudar-vos onde não vejo nada que fazer. — Não vedes nada que fazer? — repetiu o cardeal, acentuando cada palavra. — Nada. — Pois bem! senhora, — acudiu, veemente, o Sr. de Rohan, — nem toda a gente diz talvez a mesma coisa. — Infelizmente, Monsenhor, estamos chegando à cólera, e já não nos compreendemos. Perdoai-me observar-vo-lo. — À cólera! Sim. . . A vossa má vontade a ela me empurra, condessa. — E não vedes que estais sendo injusto? — Não! se não continuais a servir-me é porque não podeis fazer outra coisa, bem o vejo. — Nesse caso, por que me acusais? — Porque deveríeis dizer-me toda a verdade. — A verdade! Eu vos disse a que sabia. — Mas não me dizeis que a rainha é uma pérfida, uma sécia, que leva a gente a adorá-la e depois desespera os adoradores.

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O COLAR DA RAINHA 533

Joana considerou-o com ar surpreso. — Explicai-vos, — disse, a tremer, não de medo, senão de alegria. Efetivamente, acabava de entrever no ciúme do cardeal uma iaída que as circunstâncias talvez não lhe tivessem inspirado para safar-se de tão difícil situação. — Confessai-me, — continuou o cardeal, que só enxergava a sua paixão, — confessai-me, por misericórdia, que a rainha se recusa a ver-me. — Não digo isso, Monsenhor. — Confessai que se ela não me repele de sua livre e espontânea vontade, o que ainda espero, evita-me não alarmar outro amante que as minhas assiduidades terão espertado. — Ah! Monsenhor, — exclamou Joana num tom maravilhosa mente meloso, que deixava suspeitar muito mais do que simulava disfarçar. — Escutai-me, — voltou o Sr. de Rohan, — na última vez que vi Sua Majestade, creio ter ouvido alguém andando no meio do mato. — Loucura. — E direi quanto suspeito. — Nem mais uma palavra, Monsenhor, que estais ofendendo a rainha! De resto, se é verdade que ela tem a desventura de recear a vigilância de um amante, o que não acredito, levaríeis a injustiça a ponto de converter em crime o passado que ela vos sacrifica? — O passado! o passado! Palavra sonora, mas que não tem significação, condessa, quando esse passado é ainda o presente e deve ser o futuro. — Ora, Monsenhor! Estais-me falando como a um corretor acusado de haver sugerido um mau negócio. As vossas suspeitas são tão ofensivas para a rainha, que o acabam sendo para mim também. — Então, condessa, provai-me... — Se repetirdes essa palavra, tomarei a injúria para mim. — Mas, afinal. .. ter-me-á ela um pouco de amor? — Há um meio facílimo, Monsenhor, — replicou Joana, indicando ao cardeal a mesa e tudo o que era preciso para escrever.— Sentai-vos aí e perguntai-lho. Sua Eminência arrebatou, exaltado, a mão da condessa. — Entregar-lhe-eis o bilhete? — perguntou. — Se eu não lho entregasse, quem o faria? — E... prometeis-me uma resposta? — Se não tivésseis resposta como saberíeis o que ela sente por vós? — Ainda bem, assim é que vos quero, condessa. — Não é mesmo? — observou ela com o seu fino sorriso.

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Êle sentou-se, tomou da pena e começou a escrever. O Sr. de Rohan tinha a pena eloquente e a letra fácil; no entanto, rasgou dez folhas antes de se confessar satisfeito.

— Se continuardes desse jeito, — observou Joana, — nunca chegareis ao fim. — É que não me fio da minha ternura, condessa; ela transborda a meu pesar e talvez fatigue a rainha. — Ah! — exclamou Joana, irónica, — se lhe escreverdes como político, ela vos responderá como diplomata. Isso é convosco. — Tendes razão, e sois uma mulher de verdade, tanto pelo coração quanto pelo espírito. Afinal, condessa, por que teria eu um segredo para vós, que conheceis os meus? Ela sorriu. — O fato é que tendes pouca coisa para esconder-me, — observou. — Lede por cima do meu ombro, lede tão depressa quanto eu escrever, se fôr possível; pois o meu coração está ardendo e a pena vai devorar o papel. Luís, de fato, escreveu; escreveu uma carta tão ardente, tão doida, tão cheia

de reproches amorosos e protestos comprometedores, que, terminada a leitura, Joana, que lhe seguia o pensamento até ao fim, disse entre si:

— Êle acaba de escrever o que eu não teria ousado ditar-lhe. O cardeal releu e perguntou: — Está bem? — Se ela vos ama, — replicou a traidora, — vê-la-eis amanhã; agora, descansai. — Até amanhã, sim. — Não peço mais do que isso, Monsenhor. Pegou no bilhete lacrado, deixou que Sua Eminência lhe beijasse os olhos e

voltou, à tarde, para casa. E, tendo-se despido e refrescado, entrou a cismar. A situação era exatamente a que, desde o princípio, desejara. Bastar-lhe-ia dar mais dois passos para alcançar a meta. Qual dos dois escolheria por escudo: a rainha ou o cardeal? A carta do cardeal colocava-o na impossibilidade de acusá-la no dia em

que ela o obrigasse a reembolsar as somas devidas pelo colar. E ainda que se vissem e entendessem o cardeal e a rainha, como ousariam

perder a Sra. de La Motte, depositária de tão escandaloso segredo? A rainha não faria escândalo e acreditaria no ódio do cardeal; o cardeal

acreditaria na garridice da rainha; mas os debates, se os houvesse, se travariam a portas fechadas, e a Sra. de La Motte, da qual se teriam, quando muito, suspeitas, aproveitaria o pretexto para expatriar-se, levando consigo a bela soma de um milhão e meio.

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O COLAR DA RAINHA 535

Saberia o cardeal que Joana ficara com os brilhantes, e a rainha o adivinharia; mas de que lhe serviria fazer barulho em torno de um fato tão estreitamente ligado à história do parque e dos banhos de Apoio?

Entretanto, não bastaria uma carta para edificar todo aquele sistema de defesa. O cardeal tinha boas penas, ainda escreveria umas sete ou oito vezes.

Quanto à rainha, quem sabe se naquele mesmo instante não estaria forjando, com o Sr. de Charny, armas para Joana de La Motte?

Todas essas trapalhadas e complicações redundariam, na pior das hipóteses, numa fuga, e Joana já lhe prefigurava as diversas fases.

Primeiro o vencimento do prazo, a denúncia dos joalheiros. A rainha dirigir-se-ia ao Sr. de Rohan.

Como? Por intermédio de Joana, inevitavelmente. Joana avisaria o cardeal e o

convidaria a pagar. Se êle se recusasse, ameaçá-lo-ia de publicar as cartas; êle pagaria.

Feito o pagamento, já não haveria perigo. Quanto ao escândalo público, esse ficaria dependendo da questão da intriga. Nesse ponto, satisfação absoluta. A honra de uma rainha e de um Príncipe da Igreja por um milhão e meio era até barato; Joana já se via na posse de três milhões quando bem o entendesse.

E por que se sentia tão segura no tocante à intriga? Porque o cardeal estava convencido de ter visto, em três noites seguidas, a

rainha nos bosques de Versalhes, e nenhum poder no mundo lograria despersuadi-lo disso. Porque só existia uma prova da fraude, prova viva, irrecusável, que Joana faria desaparecer.

Chegada a esse ponto da meditação, abeirou-se da janela e viu Oliva, inquieta e curiosa, no balcão.

— Agora nós, — pensou, cumprimentando ternamente a ctim-plice. E fêz-lhe o sinal convencionado para que descesse à noite- Muito satisfeita por haver recebido essa comunicação oficial, Oliva tornou

ao seu quarto e Joana às suas meditações. Quebrar o instrumento quando já não pode servir é o hábito de todos os

intrigantes; entretanto, a maioria é mal sucedida, ou porque, ao quebrá-lo o faz de modo que êle solte um gemid-o e revele o segredo, ou porque, não conseguindo inutilizá-lo de todo, permite-lhe que venha a servir a outros.

Joana refletiu que a pequena Oliva, toda entregue ao gosto» de viver, não se deixaria quebrar como convinha sem soltar um gemido.

Era necessário imaginar para ela uma fábula que a decid_isse a fugir; e outra que a fizesse fugir de muito bom grado.

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As dificuldades surgiam a cada passo; mas certos espíritos encontram no resolvê-las tanto prazer quanto a outros proporciona o andar sobre rosas.

Por mais encantada que estivesse com a sociedade da nova amiga, Oliva estava apenas relativamente encantada, isto é, entrevendo essa ligação através das vidraças da sua cadeia, achava-a deliciosa. Mas a sincera Nicole não dissimulava que teria preferido o ar aberto, os passeios ao sol, todas as realidades enfim da vida, àqueles passeios noturnos e àquela fictícia realeza.

As fantasias da vida eram Joana, seus carinhos e sua intimidade; a realidade da vida eram o dinheiro e Beausire.

Joana, que havia estudado a fundo essa teoria, prometeu a si mesma aplicá-la na primeira ocasião.

Numa palavra, decidiu que o tema de sua entrevista com Nicole seria a necessidade de fazer desaparecer completamente a prova das criminosas fraudes cometidas no parque de Versalhes.

Veio a noite, Oliva desceu. Joana estava à sua espera. Subindo a Rua de São Cláudio até o bulevar deserto, chegaram as duas ao

carro, que, para melhor deixá-las conversar, entrou a deslizar a passo pelo caminho circular de Vincennes.

Nicole, bem disfarçada com um vestido simples e uma ampla caleça, e Joana, arrumada como uma costureirinha, não podiam ser reconhecidas. Para isso, aliás, seria preciso enfiar o nariz na carruagem, e só a polícia tinha esse direito. Mas nada ainda lhe chamara a atenção.

De mais a mais, a carruagem, em vez de ser um veículo simples, ostentava nas almofadas das portinholas as armas dos Valois, respeitáveis sentinelas que nenhum agente ousaria violentar.

Oliva começou cobrindo Joana de beijos; esta retribuiu-os com usura. — Oh! Como me aborreci, — exclamou a primeira; — eu vos procurava, invocava...! — Era impossível, minha amiga, ver-vos naquela ocasião. Eu teria corrido e vos faria correr um grandíssimo perigo. — Como assim? — indagou Nicole, espantada. — Um perigo terrível, minha querida, cuja simples ideia me arrepia. — Contai-me isso depressa! — Aqui vos aborreceis a valer. — Infelizmente é verdade! — Para distrair-vos, desejastes sair. — No que, aliás, muito me ajudastes. — Falei-vos daquele oficial de artilharia, meio louco, mas muito amável, que está apaixonado pela rainha, com a qual vos pareceis um pouco.

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O COLAR DA RAINHA 537

— Eu sei. — Tive a fraqueza de propor-vos uma brincadeira inocente, que consistia em divertir-nos com o pobre rapaz e mistificá-lo, fazendo-o acreditar num capricho de Sua Majestade por êle. — É verdade! — suspirou Oliva. — Não recordarei os dois primeiros passeios que demos à noite, no jardim de Versalhes, em companhia do pobre rapaz. Oliva tornou a suspirar. — As duas noites em que representastes tão bem o vosso papelzinho, que o nosso apaixonado levou a coisa a sério. — Acho que fizemos mal, — comentou Oliva, baixinho; — pois, de fato, o enganamos e êle não o merece; é um cavaleiro encantador. — Não é mesmo? — É, sim. — Mas esperai, que o mal ainda não reside nisso. Ter-lhe dado uma rosa, ter-vos deixado chamar Majestade, ter-lhe permitido beijar-vos as mãos tudo isso são traquinadas. . . Mas. . . minha pequena Oliva, parece que isso não é tudo. Oliva corou de tal maneira que, não fosse a escuridão da noite, Joana o teria

percebido. É verdade que ela, inteligentemente, estava olhando para o caminho e não para a companheira.

— Como... ? — balbuciou Nicole. — Não é tudo... como? — Houve uma terceira entrevista. — Houve, — conveio Oliva, hesitando; — e sabei-lo muito bem porque também lá estáveis. — Perdão, minha querida amiga, eu estava, como sempre, à distância, vigiando ou fingindo vigiar, para dar maior autenticidade ao vosso papel. Por conseguinte, não vi nem ouvi o que se passou na gruta. Sei apenas o que me contastes. , Ora, contastes-me, ao voltar, que havíeis passeado, que havíeis conversado, que continuara a troca de rosas e de beijos. Eu acredito em tudo o que me dizem, minha querida! — Pois sim!... mas. . . — tornou Oliva, a tremer. — Pois sim! minha linda, mas parece que o nosso doido anda dizendo que obteve mais do que lhe concedeu a pretença rainha. — O quê? — Parece que, aturdido, desvairado, gabou-se de haver alcançado da rainha uma prova irrecusável de amor. O pobre diabo está decididamente louco. — Meu Deus! meu Deus! — murmurou Oliva. — Está louco porque está mentindo, não é verdade? — insistiu Joana. — De certo. . . — balbuciou Oliva.

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— Não vos teríeis, minha querida pequena, exposto a tamanho perigo sem me avisar.

Oliva estremeceu da cabeça aos pés. — Não é provável, — continuou a terrível amiga, — que vós, que amais o Sr. Beausire e me tendes por companheira; que sois cortejada pelo Sr. Conde de Cagliostro e lhe repelis as atenções, tenhais dado, por capricho, a esse louco, o direito... de. . . dizer?... Não, êle perdeu a cabeça, não posso acreditar numa coisa dessas. — Mas afinal, — bradou Nicole, — onde está o perigo? Vamos a ver! — Ei-lo. Estamos tratando com um louco, isto é, um homem que não teme nada e nada poupa. Enquanto tudo se resumia na dádiva de uma rosa, num beijo na mão, não havia o que dizer; uma rainha tem rosas em seu parque, tem mãos à disposição de seus súditos; mas se é verdade que na terceira entrevista... Ah! Minha querida filha, perdi a vontade de rir depois que essa ideia me ocorreu... Sentiu Oliva que se lhe apertavam os dentes de medo. — Que acontecerá, então, minha boa amiga? — perguntou. — Acontecerá primeiro que não sois a rainha, pelo menos que eu saiba. — Não. — E que, tendo usurpado a qualidade de Sua Majestade para cometer uma... leviandade desse género. . . — Sim...? — Isso se chama lesa-majestade... Levam-se as pessoas muito longe com essa palavra. Oliva escondeu o rosto entre as mãos. — Afinal de contas, — continuou Joana, — como não fizestes o de que êle se gaba, ficareis quite provando-o. As duas leviandades precedentes serão punidas com dois ou quatro anos de prisão e com o exílio. — Prisão! exílio! — gritou Oliva, espavorida. — O caso não é irreparável; mas, de qualquer maneira, vou tomar as minhas precauções e pôr-me a salvo. — Sereis inquietada também? — Pudera! Acaso não me denunciará imediatamente o insensato? Ah! minha pobre Oliva! caro nos custará a mistificação! A rapariga desatou a chorar. — E eu, eu, — disse ela, — que não consigo ficar sossegada por um

momento! Oh! espírito do diabo! oh! demónio! Estou possessa. Tenho a certeza de que, depois desta desgraça, acabarei provocando outra.

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O COLAR DA RAINHA 539

— Não vos desespereis, buscai apenas evitar o escândalo. — Vou trancar-me em casa do meu protetor. E se eu lhe contasse tudo? — Bonita ideia! Um homem que vos trata a vela de libra, dissimulando o seu amor; um homem que só espera de vós uma palavra para adorar-vos! E ainda quereis confessar-lhe que cometestes essa imprudência com outro! Observai que digo apenas imprudência; sem contar o que êle poderá suspeitar. — Meu Deus! tendes razão. — Há mais: o escândalo vai espalhar-se, a busca dos magistrados despertará os escrúpulos do vosso protetor. Quem sabe se êle para ficar bem na corte, não quererá entregar-vos? — Oh! — Admitamos que vos enxote pura e simplesmente: que será de vós? — Estou perdida... — E o Sr. de Beausire, quando souber disso! — articulou Joana lentamente, estudando o efeito do último golpe. Oliva deu um pulo. Num gesto violento destruiu todo o edifício do seu

penteado. — Êle me matará. Não, — murmurou, — eu mesma me matarei. Logo, voltando-se para Joana: — Não podeis salvar-me, — disse, com desespero, — porque estais perdida também. — Tenho, — replicou Joana, — no fundo da Picardia, um pedacinho de terra, um sítio. Se pudéssemos, sem que nos vissem, chegar a esse refúgio antes do escândalo, talvez nos restasse uma oportunidade... — Mas esse louco vos conhece e saberá encontrar-vos. — Depois que houverdes partido, quando estiverdes escondida e não fordes encontrável, já não terei medo do louco. Dir-Ihe-ei bem alto: Sois um insensato afirmando essas coisas; provai-as. E como não lhe será possível prová-las, acrescentarei baixinho: Sois um covarde! — Partirei quando e como vos aprouver, — prometeu Oliva. — Creio que é prudente, — replicou Joana. — Devo partir já? — Não, esperai que eu prepare todas as coisas para a viagem. Escondei-vos, não vos mostreis, nem mesmo a mim. Disfarçai-vos até ao mirar-vos no espelho. — Sim, sim, contai comigo, querida amiga. — E, para começar, voltemos; já não temos o que dizer-nos. — Voltemos. De quanto tempo precisais para os preparativos?

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— Não sei; mas prestai atenção: de hoje até ao dia da partida,nem eu sairei à janela. Se alguma vez me virdes assomar a ela, entendei que a fuga será para esse dia, e aprontai-vos. — Sim, obrigada, minha boa amiga. Voltaram ambas devagarinho para a Rua de São Cláudio. Oliva já não se

atrevia a falar, e Joana refletia tão profundamente que não se lembrava de fazê-lo.

Ao chegarem, beijaram-se; Oliva pediu humildemente perdão à amiga por todas as desgraças que lhe acarretara a sua irreflexão.

— Sou mulher, — retrucou a Sra. de La Motte, parodiando o poeta latino, — e todas as fraquezas femininas me são familiares.

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LXXII

A fuga O QUE Oliva prometeu, cumpriu. O que Joana prometeu, fêz. A partir do dia seguinte, Nicole dissimulou de tal maneira a sua existência

a todo o mundo, que ninguém poderia desconfiar de que ela morasse na casa e na Rua de São Cláudio.

Escondida sempre atrás de uma cortina ou de um paravento, estava sempre calafetando a janela, a despeito dos raios de sol que vinham, alegres, mordê-la.

Joana, de seu lado, aprestava tudo; sabendo que no dia imediato se venceria a primeira prestação de quinhentas mil libras, arranjava-se de modo que não deixasse atrás de si nenhum ponto vulnerável para o momento em que estourasse a bomba.

Esse momento terrível era a meta última de suas observações. Calculara, prudente, a alternativa de uma fuga; mas, embora fácil, essa fuga

seria a mais positiva das acusações. Ficar, ficar imóvel como o duelista sob o golpe do adversário; ficar com a

possibilidade de cair, mas também com a possibilidade de matar o inimigo, tal foi a determinação que tomou.

Eis porque, já no dia seguinte à entrevista com Oliva, se mostrou, cerca das duas horas, à janela, indicando à falsa rainha que chegara o momento de aprontar-se para abalar à noite.

Fora impossível descrever a alegria e o terror da rapariga. A necessidade de fugir significava perigo; mas a possibilidade de fugir significava salvação.

Mandou um beijo eloquente a Joana e, logo depois, iniciou os preparativos, enfiando na maletinha alguns dos preciosos objetos do protetor.

Dado o sinal, Joana saiu de casa à procura do carro a que seria entregue o importante destino da Srta. Nicole.

Depois, mais nada: o mais curioso observador não teria podido observar outra coisa entre os índices ordinariamente significativos da inteligência das duas amigas.

Cortinas cerradas, janela fechada, luz tardiamente errante. Depois, um ruge-ruge, uns rumores misteriosos, uma agitação; depois, a sombra e o silêncio.

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542 ALEXANDRE DUMAS

Onze horas da noite soavam na Igreja de São Paulo, e o vento do rio lhe trazia os sons lugubremente espaçados até à Rua de São Cláudio, quando Joana chegou à Rua de São Luís com um carro de posta puxado por três vigorosos cavalos.

Na boleia, um homem encapotado indicava o endereço ao postilão. Joana puxou-lhe da ponta da capa e fê-lo parar na esquina da Rua do Rei

Dourado. O homem desceu para falar-lhe. — O carro ficará aqui, meu caro Sr. Reteau, — disse Joana, — cerca de meia hora. Voltarei com alguém que fareis conduzir, pagando mudas dobradas, até à minha casinha de Amiens. — Sim, Sra. Condessa. — Lá, entregareis a pessoa ao meu rendeiro Fontaines, que sabe o que tem de fazer. — Sim, senhora. — Ah! ia-me esquecendo... estais armado, meu caro Reteau? — Estou, sim, senhora. — Essa dama tem sido ameaçada por um louco... pode ser que queiram detê-la no meio do caminho... — Nesse caso, que farei? — Atirareis a quem quer que se atreva a interromper-vos a marcha. — Sim, senhora. — Pedistes-me vinte luíses de gratificação pelo que sabeis; darei cem e pagarei a vossa viagem a Londres, onde estarei em menos de três meses. — Sim, senhora. — Aqui estão os cem luíses. Provavelmente não vos tonarei a ver, pois seria prudente que fôsseis a Saint-Valery e vos embarcásseis imediatamente para a Inglaterra. — Contai comigo. — É do vosso interesse. — Do nosso, — emendou o Sr. Reteau, beijando-lhe a mão. Ficarei à espera. — E eu vou mandar-vos a dama. Reteau ocupou no carro o lugar de Joana, que, ligeira, chegou à Rua de

São Cláudio e entrou em casa. Tudo estava dormindo no bairro inocente. A condessa acendeu a vela que,

erguida acima do balcão, era o sinal para Oliva descer. — A moça é precavida, — observou, vendo a janela escura. Ergueu e abaixou três vezes a vela. Nada. Mas pareceu-lhe ouvir como que um gemido ou um sim, atirado

imperceptivelmente ao ar, debaixo da folhagem. — Ela descerá no escuro, — pensou; — e fará bem. E desceu também à rua.

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O COLAR DA RAINHA 543

A porta não se abria. Oliva devia estar atrapalhada com alguns pacotes pesados ou incómodos.

— Tola! — praguejou a condessa; — quanto tempo perdido por causa de uns trapos!

Não vinha ninguém. Joana atravessou a rua. Nada. Pôs-se à escuta, encostando o ouvido aos pregos de ferro da porta

fronteira. Quinze minutos se passaram; deu meia hora depois das onze. Joana afastou-se até ao bulevar para ver de longe se havia luz nas janelas. Teve a impressão de que uma suave claridade passeava pelo vazio das

folhas sob as cortinas duplas. — Que é que ela está fazendo? Misericórdia! Que estará fazendo a

desgraçadinha? Pode ser que não tenha visto o sinal. Vamos! Coragem, tornemos a subir.

E, de feito, voltou para casa, onde fêz funcionar de novo o telégrafo das velas.

Nenhum sinal respondeu aos seus. — Com certeza, — pensou, amarfanhando com raiva os punhos de rendas,

— a idiota está doente e não pode levantar-se. Mas não importa! Viva ou morta, partirá esta noite.

Tornou a descer a escada com a precipitação de uma leoa perseguida. Tinha na mão a chave que tantas vezes propiciara a Oliva a liberdade noturna.

No momento de enfiá-la na fechadura, deteve-se. — E se estiver alguém com ela lá em cima? — refletiu. — Impossível! Eu

ouviria vozes, e sempre teria tempo de descer. E se encontrasse alguém na escada. .. Oh!

A perigosa suposição quase a fêz recuar. Mas o estrépito das ferraduras dos seus cavalos sobre as pedras sonoras da

rua decidiu-a. — Sem perigo, — murmurou, — não há nada de grande! Com audácia,

nunca há perigo! Fêz girar a chave na fechadura e a porta se abriu. Conhecia a casa; a sua inteligência lhe teria revelado todas as

particularidades dela se não houvesse reparado nelas quando ia, à noite, esperar Oliva. E como a escada ficava à esquerda, entrou a galgá-la.

Nenhum ruído, nenhuma luz, ninguém. Chegou assim ao patamar do apartamento de Nicole. Debaixo da porta, lobrigou uma réstea de luz; atrás da porta, ouviu o

rumor de um passo agitado. Ofegante, mas abafando a respiração, escutou. Não distinguiu vozes. Oliva,

portanto, devia estar sozinha, andando, arrumando as suas coisas. Não estava doente; apenas se atrasara.

Joana arranhou devagarinho a madeira da porta.

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544 ALEXANDRE DUMAS

— Oliva! Oliva! — sussurrou; — minha amiga, minha amiguinha!. . . Ôs passos aproximaram-se. — Abri! abri! — ordenou precipitadamente. A porta se abriu e um dilúvio de luz inundou a condessa, que se viu diante

de um homem com um archote de três braços. Ela soltou um grito terrível escondendo o rosto.

— Oliva! — disse o homem, — sois vós? E ergueu delicadamente a capa da condessa. — Sra. Condessa de La Motte, — bradou, por seu turno, num tom de surpresa admiravelmente natural. — Sr. Cagliostro! — murmurou Joana, cambaleando, e prestes a desfalecer. Entre todos os perigos que pudera imaginar, aquele jamais lhe ocorrera. Não

se apresentava muito aterrador à primeira vista, mas depois de refletir um pouco, observando o ar sombrio e a profunda dissimulação daquele homem estranho, pareceu-lhe formidável.

Sentiu que ia perder a cabeça, recuou, teve ímpetos de se atirar pela escada abaixo.

Cagliostro estendeu-lhe polidamente a mão, convidando-a a sentar-se. — A que devo a honra da vossa visita, senhora? — perguntou com voz firme. — Senhor.. . — balbuciou a intrigante, que não conseguia des fitar os olhos dos olhos do conde, — eu vinha... eu estava procurando ... — Permiti que eu toque a campainha para mandar castigar os meus criados que tiveram o desazo, a grosseria de deixar que se apresentasse sozinha uma mulher da vossa qualidade. Joana estremeceu. Deteve a mão do conde. — Deve ter sido, — continuou êle, imperturbável, — aquele patife do alemão que é meu suíço, e que costuma embriagar-se. Não vos terá reconhecido. Com certeza abriu a porta sem dizer nada, sem fazer nada; e ferrou no sono depois de abri-la. — Não o castigueis, por favor, — articulou mais livremente Joana, sem suspeitar da armadilha. — Foi êle mesmo quem abriu, não foi? — Creio que sim... Mas prometestes não lhe fazer nada. — E cumprirei minha palavra, — volveu o conde, sorrindo. — Entretanto, minha senhora, tende a bondade de explicar-vos. Vendo que não suspeitavam de que houvesse aberto a porta sozinha,

entendeu Joana que podia mentir sobre o motivo da sua visita. Não deixou de fazê-lo.

— Eu vinha, — disse depressa, — consultar-vos, Sr. Conde, sobre certos rumores que estão correndo. — Que rumores, minha senhora?

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O COLAR DA RAINHA 545

— Não aperteis comigo, por favor, — continuou ela, com afetação; — a minha visita é delicada... — Procura! procura! — pensava Cagliostro; — procura tu que eu já encontrei. — Sois amigo de Sua Eminência, Monsenhor Cardeal de Rohan,— disse Joana. — Ah! ah! não está mal, — pensou Cagliostro. — Vai até ao fim do fio que estou segurando; mas não vás mais adiante. — Mantenho, realmente, muito boas relações com Sua Emi nência, — conveio êle. — E eu vinha, — prosseguiu Joana, — pedir-vos uma informação sobre... — Sobre. . . — repetiu Cagliostro, com uma nuança de ironia. — Já vos declarei que a minha posição é delicada, não abuseis dela. Não deveis ignorar que o Sr. de Rohan me demonstra certa afeição, e eu quisera saber até que ponto posso contar. .. Enfim, senhor, dizem que ledes nas mais espessas trevas dos espíritos e dos corações. — Um pouco mais de luz, minha senhora, — atalhou o conde,— para que eu possa ler melhor nas trevas do vosso coração e do vosso espírito. — Dizem que Sua Eminência gosta de outra; dizem que Sua Eminência

coloca muito alto o coração... Dizem até... A essa altura Cagliostro fitou em Joana, que quase caiu para trás, um

olhar carregado de raios. — Senhora, — disse êle, — leio com efeito nas trevas; mas, para ler bem,

preciso de que me ajudem. Tende a bondade de responder a estas perguntas: Como viestes procurar-me aqui? Não é aqui que eu moro.

Joana estremeceu. — Como entrastes aqui? Não há suíço bêbedo, nem criados nesta parte do

palácio. E se não era eu o objeto da vossa visita, quem procuráveis? Não respondeis? — prosseguiu, encarando com a tremula condessa; — pois vou ajudar-vos a inteligência. Entrastes com uma chave que estou percebendo aí,, na vossa algibeira. Viestes procurar uma moça que, por mera bondade, eu estava escondendo em minha casa.

Joana cambaleou como uma árvore arrancada do chão. — E... ainda que tudo isso fosse verdade? — respondeu com voz muito baixa, — que crime terei cometido? Não é permitido a uma mulher visitar outra mulher? Chamai-a, que ela vos dirá se a nossa amizade tem alguma coisa de inconfessável... — Senhora, — interrompeu Cagliostro, — dizeis-me tudo isso por que sabeis perfeitamente que ela já não está aqui. — Já não está aqui!. . . — bradou Joana, espavorida. — Oliva não está mais

aqui?

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546 ALEXANDRE DUMAS

— Oh! — volveu Cagliostro, — ignorais talvez que ela partiu, vós, que lhe facilitastes o rapto? — O rapto! eu! eu! — bradou Joana, sentindo renascer-lhe a esperança. — Raptaram-na e vós me acusais? — Faço mais: convenço-vos. — Provai-o! — exclamou, impudente, a condessa. Cagliostro pegou num papel que estava sobre uma mesa e mostrou-o:

"Meu senhor e generoso protetor, — dizia o bilhete dirigido a êle, — perdoai-me se vos deixo; mas amo acima de tudo o Sr. de Beausire; êle virá buscar-me e eu o seguirei. Aceitai a expressão do meu reconhecimento."

— Beausire!... — murmurou Joana, petrificada, — Beausire...Êle não sabia o endereço de Oliva! — Sabia, sim, senhora, — retorquiu Cagliostro, mostrando-lhe outro papel, que tirou do bolso; — vede, encontrei este papel na escada ao chegar para a minha visita cotidiana. Deve ter caído do bolso do Sr. Beausire. Leu a condessa, estremecendo:

"O Sr. de Beausire encontrará a Srta. Oliva na Rua de São Cláudio, na esquina do bulevar; encontrá-la-á e a levará incontinenti. É o conselho de uma amiga bem sincera. O tempo urge."

— Oh! — fêz a condessa, amarrotando o papel. — E êle levou-a, — observou friamente Cagliostro. — Quem escreveu este bilhete? — Aparentemente, vós, a amiga sincera de Oliva. — Mas como foi que êle entrou aqui? — rebradou Joana, considerando, irada, o impassível interlocutor. — Acaso não se entra com a vossa chave? — Se ela está comigo, não podia estar com o Sr. Beausire. — Quem tem uma chave pode ter duas, — replicou Cagliostro, encarando nela. — Tendes aí peças bem convincentes, — respondeu lentamente a condessa, — ao passo que eu só tenho suspeitas. — Também as tenho, — revidou Cagliostro, — e as minhas não valem menos do que as vossas, minha senhora. E, dizendo essas palavras, despediu-a com um gesto imperceptível. Joana começou a descer; mas ao longo da escada deserta e sombria que

subira, encontrou vinte candelabros e vinte lacaios, diante dos quais o dono da casa a chamou em voz alta e por dez vezes: Sra. Condessa de La Motte.

Saiu, soprando furor e vingança, como o basilisco sopra fogo e veneno.

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LXXIII

A carta e o recibo DIA seguinte correspondia ao último prazo fixado pela própria rainha

aos ourives Boehmer e Bossange. A missiva de Sua Majestade recomendava-lhes circunspecção; esperaram,

portanto, que as quinhentas mil libras lhes chegassem às mãos. E, como sucede a todos os comerciantes, por mais ricos que sejam, que o

recebimento de quinhentas mil libras é sempre um assunto grave, prepararam um recibo com a mais imponente das letras.

Mas o recibo quedou inútil; ninguém veio trocá-lo pelas quinhentas mil libras.

Passou-se a noite muito cruelmente para os lapidários, à espera de um mensageiro quase inverossímil. Entretanto, refletiram, a rainha tinha ideias extraordinárias; precisava esconder-se; o seu correio talvez só chegasse depois da meia-noite.

A aurora do dia seguinte deu em terra com as suas quimeras. Tomando finalmente uma resolução, Bossange largou para Versalhes num carro em cujo interior já o esperava o sócio.

Pediu para ser levado à presença da rainha. Responderam-lhe que, se não tivesse carta de audiência, não entraria.

Surpreso, inquieto, insistiu. Conhecendo a sociedade, tivera o talento de espalhar, pelas antecâmaras, umas pedrinhas de refugo, que nessa ocasião lhe valeram, colocando-o no caminho de Sua Majestade quando ela regressasse do passeio a Trianon.

De feito, fremente ainda da entrevista com Charny, voltava Maria Antoníeta, coração alegre e espírito radiante, quando deu com o rosto um tanto contrito e profundamente respeitoso de Boehmer.

Dirigiu-lhe um sorriso, que êle interpretou da maneira mais favorável, arriscando-se a pedir uma audiência; prometeu-lha a rainha para as duas horas, isto é, para depois do seu jantar. E Boehmer foi levar a excelente notícia a Bossange, que ficara esperando no carro, e, muito resfriado, não quisera mostrar à soberana um semblante desgracioso.

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548 ALEXANDRE DOMAS

— Não há dúvida, — concluíram ambos, depois de analisar os menores gestos, as mínimas palavras de Maria Antonieta, — não há dúvida de que Sua Majestade tem na gaveta a soma que ontem talvez não tivesse; e marcou a entrevista para as duas porque, a essa hora, estará sozinha.

Chegaram a perguntar a si mesmos, como os companheiros da fábula, se levariam a soma em notas, em ouro ou em prata.

Quando soaram duas horas, o joalheiro estava em seu posto; levaram-no ao toucador de Sua Majestade.

— Mais alguma novidade, Boehmer? — perguntou a rainha, assim que o avistou, ao longe; — quereis falar-me de jóias outra vez? Estais sem sorte.

Cuidou Boehmer que alguém estivesse escondido, que a rainha receasse ser ouvida. Assumiu, pois, um ar de inteligência para responder enquanto relanceava os olhos em torno:

— Sim, senhora. — Procurais alguma coisa? — perguntou ela, espantada. — Tendes algum segredo? Êle não respondeu, meio abafado por aquela dissimulação. — O mesmo segredo de antes: uma jóia para vender, — continuou a rainha, — alguma peça incomparável? Não vos assusteis assim: não há aqui ninguém que possa ouvir-nos. — Nesse caso. . . — murmurou Boehmer. — Nesse caso, o quê?... — Posso dizer a Vossa Majestade... — Mas dizei-o depressa, meu caro Boehmer. Aproximou-se o joalheiro com um sorriso gracioso. — Posso dizer-lhe que Vossa Majestade ontem nos esqueceu, — concluiu, mostrando os dentes um tanto amarelados, mas sempre benevolentes. — Eu vos esqueci! Como? — atalhou, surpresa, Maria Antonieta. — É que ontem... era o vencimento... — O vencimento!... Que vencimento? — Perdão, Majestade, se me atrevo... Sei perfeitamente que estou sendo indiscreto. Vossa Majestade talvez não esteja preparada. Seria uma grande desgraça: mas, enfim... — Ora, essa! Boehmer, — exclamou a rainha, — não estou entendendo patavina do que me dizeis. Explicai-vos melhor, meu caro. — Vossa Majestade deve ter perdido a memória. É muito natural, no meio de tantas preocupações. — A memória do quê? Há de ser outro golpe. — Ontem se venceu a primeira prestação do colar, — arriscou Boehmer, timidamente.

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O COLAR DA RAINHA 549

— Vendestes o colar? — Mas... — balbuciou êle, considerando-a estupefato, — parece-me que sim. — Es os compradores não vos pagaram, meu pobre Boehmer? Tanto pior. Essa gente deveria ter feito o que fiz; não podendo comprar o colar, devia devolvê-lo, deixando-vos o dinheiro do sinal. — Como?. .. — balbuciou o ourives, cambaleando como o viajor imprudente que se expõe à insolação em terras de Espanha. — Que foi o que Vossa Majestade me fêz a honra de dizer? — Digo, meu pobre Boehmer, que, se dez compradores vos de volvessem o colar, como eu, deixando-vos cada qual duzentas e cinquenta mil libras de sinal, ganharíeis dois milhões e ainda ficaríeis com a jóia. — Vossa Majestade... — exclamou o joalheiro, empapado de suor, — diz que me devolveu o colar? — Está claro que o digo, — replicou tranquilamente a rainha.— Que tendes? — Como! — continuou o lapidário, — Vossa Majestade nega que me comprou o colar? — Homessa! Que comédia estamos representando? — tornou, severa, a rainha. — Porventura estará sempre destinado esse maldito colar a fazer girar a cabeça de alguém? — Mas, — voltou Boehmer, cujos membros todos tremiam, — pareceu-me ter ouvido da própria boca de Vossa Majestade... que Vossa Majestade me havia devolvido, devolvido o colar de brilhantes. A rainha considerou-o cruzando os braços. — Felizmente, — disse ela, — tenho aqui o com que vos refrescar a

memória, pois sois um homem bem desmemoriado, Sr. Boehmer, para não dizer coisa mais desagradável.

Encaminhou-se diretamente para a cómoda, de onde tirou um papel, que abriu, percorreu com a vista e estendeu lentamente ao desgraçado ourives.

— Parece-me que o estilo é suficientemente claro, — disse ela. E sentou-se para melhor observá-lo durante a leitura.

O rosto do joalheiro exprimiu a mais completa incredulidade, depois, gradativamente, o mais terrível pavor.

— E então? — acudiu a rainha. — Reconheceis ou não este recibo, que atesta de tão boa forma a devolução do colar? E, a menos que vos tenhais esquecido também de que o vosso nome é Boehmer. — Senhora, — exclamou Boehmer, sufocado de ira e de terror ao mesmo tempo, — não fui eu quem assinou este recibo. A rainha deu um passo para trás, fulminando o hpmem com os olhos

coruscantes. — Negai-lo!

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550 ALEXANDRE DUMAS

— Absolutamente... Ainda que eu devesse deixar aqui a liberdade, a vida, repito que não recebi o colar; repito que não assinei o recibo. Estivesse aqui o cepo, estivesse lá o carrasco, eu tornaria a dizer: não, Majestade, esse recibo não é meu. — Nesse caso, senhor, — articulou a rainha, empalidecendo levemente, — roubei-vos; estou com o colar? Boehmer vasculhou a sua pasta e dela tirou uma carta que estendeu, por

seu turno, a Maria Antonieta... — Não creio, senhora, — respondeu com voz respeitosa, mas alterada pela emoção, — não creio que, se Vossa Majestade tivesse querido devolver o colar, escrevesse esta confissão. — Mas que papel é este? — bradou a rainha, — nunca escrevi o que está aí! Acaso é essa a minha letra? — Está assinado, — tornou Boehmer, pulverizado. — Maria Antonieta de França... Estais louco! Porventura sou de França? Acaso não sou arquiduquesa d'Áustria? Então não é absurdo que eu tenha escrito uma coisa dessas! Ora, Sr. Boehmer, a cilada é grosseira demais; ide dizê-lo aos vossos falsários. — Aos meus falsários... — balbuciou o joalheiro, que quase desmaiou ouvindo essas palavras. — Vossa Majestade desconfia de mim, Boehmer? — E vós não desconfiais de mim, Maria Antonieta? — volveu a rainha com altivez. — Mas esta carta, — objetou êle ainda, mostrando o papel que estava nas mãos dela. — E este recibo, — replicou ela, mostrando o papel que êle continuava segurando. Boehmer foi obrigado a apoiar-se numa poltrona; a seus pés, o soalho

girava. Aspirava o ar em grandes haustos, e a côr purpurina da apoplexia lhe substituía no rosto a lívida palidez do desmaio.

— Devolvei-me o recibo, — disse a rainha, — que o tenho por bom, e ficai com a vossa carta assinada por Antonieta de França; o primeiro procurador vos dirá o que vale a assinatura.

E, tendo-lhe atirado o bilhete, depois de lhe haver arrancado o recibo das mãos, voltou-lhe as costas e passou a uma peça vizinha, deixando entregue a si mesmo o desgraçado, que já não tinha ideia alguma, e, contra todas as regras da etiqueta, se deixou cair numa poltrona.

Entretanto, volvidos alguns minutos, que lhe serviram para recompor-se, precipitou-se, aturdido, para fora do apartamento e foi ter com Bossange, ao qual referiu a aventura de modo que se fizesse fortemente suspeitado pelo sócio.

Mas repetiu tão bem e tantas vezes a história, que Bossange começou a arrancar a peruca, ao passo que Boehmer arrancava os

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cabelos, o que constituiu, para as pessoas que passavam e cujos olhos se enfiavam pelo interior do carro, o mais doloroso e mais cómico dos espetáculos ao mesmo tempo.

Todavia, como ninguém pode passar um dia inteiro dentro de um carro; como, depois de haver arrancado a peruca ou os cabelos a gente encontra o crânio, e, debaixo desse crânio se encontram ou devem encontrar-se ideias, os dois ourives encontraram a de se reunirem para forçar, se possível, a porta da rainha e obter o que quer que semelhasse uma explicação.

Endereçaram-se, pois, ao castelo, num lamentável estado, quando foram encontrados por um dos oficiais de Sua Majestade, encarregado de procurá-los. Figure-se a alegria e o zelo com que se apressaram a obedecer ao chamado.

Foram introduzidos sem demora.

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LXXIV

Roi Ne Puis, Prince Ne Daigne, Rohan Je Suis.'

A RAINHA parecia esperar com impaciência; por isso mesmo tanto que avistou os joalheiros:

— Ah! Aqui está o Sr. Bossange, — disse, vivamente; — fostes buscar reforço, Boehmer, tanto melhor!

Boehmer não tinha o que dizer; estava pensando muito. O melhor que se pode fazer em casos semelhantes, é gesticular; o ourives atirou-se aos pés de Maria Antonieta.

O gesto era expressivo. Bossange imitou-o. — Senhores, — disse a rainha, — agora estou calma e não tornarei a irritar-me. Ocorreu-me, aliás, uma ideia que modifica os meus sentimentos em relação a vós. Não há dúvida nenhuma de que em todo este negócio estamos sendo, vós e eu, vítimas de um misteriozinho. . . que já não é mistério para mim. — Ah! Senhora! — exclamou Boehmer, entusiasmado por essas palavras, — isso quer dizer que Vossa Majestade já não desconfia de que eu. . . f i z . . . Oh! Como é horrível de pronunciar-se a palavra falsário! — Se para vós é duro pronunciá-la, para mim não o é menos ouvi-la, — disse a rainha. — Não, já não desconfio de vós. — Nesse caso, Vossa Majestade desconfia de alguém? — Respondei às minhas perguntas. Afirmais que já não tendes os brilhantes? — Já não os temos, — responderam ao mesmo tempo os dois joalheiros. — Pouco vos importa saber a quem eu os havia confiado para que vo-los entregasse. Isso é comigo. Acaso não vistes... a Sra. Condessa de La Motte? — Perdão, senhora, vimo-la... — E ela não vos deu nada... de minha parte? — Não, senhora. A Sra. Condessa nos disse apenas: Esperai.

1. Divisa dos Rohans: "Não posso ser rei, não quero ser príncipe, basta-me o ser Rohan". Eis aí uma tentativa de versão de uma frase difícil de traduzir-se. (N. do T.).

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— Mas quem vos entregou a carta? — Esta carta? — repetiu Boehmer; — a que Vossa Majestade teve em mãos, esta aqui, um mensageiro desconhecido levou-a à nossa casa durante a noite. E mostrava a carta falsa. —Ah! Ah! — fêz a rainha; — como vedes, ela não partiu

diretamente de mim. Tocou a sineta e um lacaio apareceu. — Mandai chamar a Sra. Condessa de La Motte, — ordenou, tranquilamente. — E, — continuou, com a mesma calma, — não vistes ninguém, não vistes o Sr. de Rohan? — O Sr. de Rohan veio visitar-nos e informar-se... — Muito bem! — replicou a rainha; — não vamos mais longe; desde que o Sr.Cardeal de Rohan está metido no negócio, não deveis desesperar-vos. Já adivinhei: Ao dizer-vos a palavra Esperai, a Sra. de La Motte terá querido... Não, não adivinho nada, nem quero adivinhar... Ide apenas procurar o Sr. Cardeal, e contai-lhe o que acabais de dizer-me; não percais tempo e acrescentai que estou a par de tudo. Reanimados por essa chamazinha de esperança, entreolharam--se os

joalheiros com semblante menos aterrado. Mas Bossange, que também queria dizer alguma coisa, arriscou, baixinho: —No entanto, Vossa Majestade tem em mãos o recibo falso,

e toda falsificação é crime. Maria Antonieta franziu o cenho. — É verdade, — conveio, — que, se não recebestes o colar, este recibo constitui uma falsificação. Mas para verificá-la, é indispensável que eu vos acareie com a pessoa que encarreguei de entregar-vos os brilhantes. — Quando quiser Vossa Majestade, — bradou Bossange; — os comerciantes honestos não têm medo da luz. —Pois ide buscar luz junto do Sr. Cardeal, o único que pode esclarecer-

nos em tudo isto. —E Vossa Majestade nos permitirá trazer-lhe a resposta? — perguntou

Boehmer. —Ficá-la-ei conhecendo antes de vós; sou eu quem resolverá as vossas

dificuldades. Ide. Dispensou-os e, depois que partiram, entregando-se à sua inquietação,

mandou um correio atrás do outro à procura da Sra. de La Motte. Não a seguiremos nas buscas e suspeitas; deixá-la-emos, pelo contrário, para

melhor correr com os joalheiros ao encontro da tão desejada verdade.

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554 ALEXANDRE DUMAS

O cardeal estava em casa, lendo, com raiva indescritível, uma cartinha que a Sra. de La Motte acabava de mandar-lhe de Versalhes, segundo ela mesma dizia. A carta era dura, tirava ao cardeal toda e qualquer esperança, aconselhando-o a não pensar mais no assunto, proibindo-o de reaparecer familiarmente em Versalhes e apelando para a sua lealdade no sentido de que não tentasse reatar relações que se haviam tornado impossíveis.

Relendo estas palavras, o príncipe fremia; examinava letra por letra; parecia pedir contas ao papel das durezas que lhe escrevia a mão cruel.

— Sécia, caprichosa, pérfida, — bradava, no seu desespero; — oh! hei de vingar-me.

E acumulava todas as trivialidades que aliviam os corações fracos em seus padecimentos de amor, mas que os não curam do próprio amor.

— Eis aqui, — dizia, — quatro cartas que ela me escreve, cada qual mais injusta e mais tirânica do que a outra. Quis-me por capricho! É uma humilhação que eu dificilmente lhe perdoaria, se ela não me sacrificasse a um capricho novo.

E o desditoso iludido relia com o furor da esperança todas as cartas, cujo rigor obedecia a uma arte implacável de proporção.

A última era uma obra-prima de barbárie, que havia literalmente traspassado o coração do pobre cardeal; e êle, contudo, amava a tal ponto, que, por espírito de contradição, se comprazia em ler, reler e tresler as frias durezas mandadas de Versalhes, no dizer da Sra. de La Motte.

Foi nesse momento que se apresentaram os joalheiros em sua casa. Surpreendeu-o a insistência deles em querer ser recebidos. Escorraçou três

vezes o lacaio, que voltou à carga pela quarta vez, para repetir a declaração de Boehmer e Bossange de que só se retirariam obrigados pela força.

— Que significa isso? — pensou o prelado. — Faze-os entrar. Entraram. Os seus rostos transtornados eram indício do rude combate que

tinham precisado manter moral e fisicamente. Se haviam conseguido sair vencedores de um desses combates, tinham sido derrotados em outro. Nunca dois cérebros mais desarranjados se viram na contingência de funcionar diante de um príncipe da Igreja.

— Em primeiro lugar, — bradou ao vê-los o cardeal, — que brutalidade é essa, senhores joalheiros? Acaso vos devem aqui alguma coisa?

O tom do intróito gelou de terror os dois associados. — Dar-se-á que as cenas de lá vão repetir-se aqui? — perguntou Boehmer

com o canto dos olhos ao sócio.

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— Não! não! — respondeu este último, arrumando a peruca com um movimento belicoso, — em quanto a mim, estou decidido a resistir a todos os assaltos.

E deu um passo quase ameaçador, enquanto Boehmer, mais prudente, ficava para trás.

O cardeal achou que os dois estavam loucos e disse-lhos claramente. — Monsenhor, — bradou o desesperado Boehmer, intercalando cada sílaba com um suspiro, — justiça! misericórdia! poupai-nos a raiva e não nos obrigueis a faltar com o respeito ao maior, ao mais ilustre dos príncipes. — Senhores, ou não estais loucos, e sereis atirados pela janela, — atalhou o cardeal, — ou estais loucos, e sereis postos simplesmente no olho da rua. Escolhei. — Monsenhor, não estamos loucos: estamos roubados. — E que tenho eu com isso? — volveu o Sr. de Rohan; — não sou Chefe de Polícia. — Mas tivestes o colar entre as mãos, Monsenhor, — soluçou Boehmer; — ireis depor em juízo, Monsenhor, i re is . . . — Tive o colar? — repetiu o príncipe... — Foi então o ..colar que roubaram? — Sim, Monsenhor. — Pois bem! e que disse a rainha? — bradou o cardeal, fazendo um gesto interessado. — Mandou que vos procurássemos, Monsenhor. — Sua Majestade é muito amável. Mas que posso fazer? — Tudo, Monsenhor: podeis dizer o que foi feito do colar. — Eu? — Sem dúvida. — Meu caro Sr. Boehmer, poderíeis falar-me nesses termos se eu pertencesse ao bando de ladrões que roubaram o colar da rainha. — Não foi dela que o roubaram. — De quem foi, então, meu Deus? — A rainha nega que tenha ficado com êle. — Nega? Como! — exclamou o cardeal, depois de hesitar; —não tendes um recibo assinado por ela? — Sua Majestade afirma que o recibo é falso. — Homessa! — rebradou o cardeal, — estais perdendo a cabeça, senhores! — É verdade, — disse Boehmer a Bossange, que respondeu com um triplo assentimento. — A rainha terá negado, — tornou o cardeal, — porque havia alguém junto dela quando lhe falastes. — Não havia ninguém, Monsenhor. Mas isso ainda não é ludo. — Há mais?

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556 ALEXANDRE DUMAS

— A rainha não somente negou, não somente afirmou que a confissão era falsa, como também nos mostrou um recibo provando que havia devolvido o colar. — Um recibo vosso? — voltou o cardeal. — E esse recibo? — É falso, como o outro, Sr. Cardeal. Sabei-lo muito bem. — Falso... Duas falsificações... E dizeis que sei muito bem? — Naturalmente, visto que fôstes à nossa casa para confirmar o que nos dissera a Sra. de La Motte; pois sabíeis perfeitamente que tínhamos vendido o colar e que êle estava em poder da rainha. — Vamos a ver, — disse o cardeal, passando a mão pela testa.

— Tudo isso me parece muito grave. Entendamo-nos. Recapitulemos primeiro as minhas transações convosco.

— Sim, Monsenhor. — Em primeiro lugar, a compra que fiz, para Sua Majestade, de um colar, por conta do qual vos entreguei duzentas e cinqüenta mil libras. — É verdade, Monsenhor. — Em seguida, a venda subscrita diretamente pela rainha, segundo me dissestes, com prazos fixados por ela e sob a responsabilidade da sua assinatura. — Da sua assinatura... É esta a assinatura da rainha, Monsenhor? — Mostrai-ma. — Ei-la. Os joalheiros tiraram a carta da pasta. O cardeal passou-a pelos olhos. — Sois umas perfeitas crianças!... — bradou. — Maria Antonieta de França... Por ventura a rainha não é filha da casa de Áustria? Fôstes roubados: a letra e a assinatura são falsas! — Mas então, — gritaram os ourives no auge da exasperação, — a Sra. de La Motte deve conhecer o falsário e o ladrão! A procedência da afirmativa impressionou o cardeal. — Chamemos a Sra. de La Motte, — exclamou perturbadíssimo. E tocou a sinêta, como a rainha. Os seus criados precipitaram-se ao encalço de Joana, cujo carro ainda não

podia estar muito longe. Entrementes, Boehmer e Bossange, alapardando-se, como lebres no covil, nas

promessas da rainha, repetiam: — Onde está o colar? Onde está o colar? — Assim me acabareis deixando surdo, — observou o cardeal mal-humorado. — Como vou saber onde está o colar? «A única coisa que sei é que eu mesmo o entreguei à rainha. — Se não recebermos o dinheiro queremos o colar! — repetiam os

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negociantes.

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— Isso não é comigo, senhores, — repetia o cardeal, fora de si, pronto para jogar na rua os dois credores. — A Sra. de La Motte! A Sra. Condêssa! — clamaram Boehmer e Bossange, roucos de desespero, — foi ela quem nos perdeu! — Não permito que suspeiteis da probidade da Sra. de La Motte, sob pena de serdes justiçados em minha própria casa. — Mas, afinal, há de haver um culpado, — acudiu Boehmer em tom lamentável. — Essas duas falsificações foram feitas por alguém! — Por mim, talvez? — tornou, sobranceiro, o Sr. de Rohan. — Longe de nós essa idéia, Monsenhor. — E então? — Então, Monsenhor, pedimos uma explicação, pelo amor de Deus! — Esperai que eu mesmo receba alguma. — Mas que responderemos à rainha, Monsenhor? Sua Majestade também está gritando contra nós. — E que diz ela? — Que o colar está convosco ou com a Sra. de La Motte; com ela é que não está. — Pois bem! — bradou o cardeal, pálido de vergonha e de cólera, — dizei à rainha que. .. Não, não lhe digais coisa alguma. Chega de escândalos. Mas amanhã... amanhã, estais ouvindo? oficiarei na capela de Versalhes; ide também e me vereis procurar Sua Majestade, falar-lhe, perguntar-lhe se não tem o colar, e ouvir--lhe-eis a resposta; se, diante de mim ela negar. . . então, senhores, sou Rohan: pagarei! E, pronunciadas essas palavras com uma altaneira de que a simples prosa

não pode dar idéia, dispensou os dois associados, que partiram as arrecuas, tocando-se com o cotovelo.

— Até amanhã, então, — balbuciou Boehmer. — Não é, Monsenhor? Até amanhã, as onze, na capela de Versalhes, — respondeu o cardeal.

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LXXV

Esgrima e diplomacia NO DIA seguinte entrava em Versalhes, cerca das dez horas, um carro

com as armas do Sr. de Breteuil. Os leitores deste livro, que se lembram da história de Bálsamo e de Gilberto,

não devem ter esquecido que o Sr. de Breteuil, rival e inimigo pessoal do Sr. de Rohan, aguardava, havia muito, a primeira ocasião para desferir um golpe mortal no inimigo.

A diplomacia leva a palma à esgrima nisto: na última ciência, uma resposta, boa ou má, precisa ser dada num segundo, ao passo que os diplomatas têm quinze anos, ou mais se fôr necessário, para pensar no golpe que desferem e aperfeiçoá-lo quanto possível.

Uma hora antes, o Sr. de Breteuil pedira audiência ao rei e encontrara Sua Majestade vestindo-se para ir à missa.

— Lindo tempo! — disse Luís XVI muito alegre, assim que o diplomata lhe entrou no gabinete; — um verdadeiro dia de Assunção; vede, não há uma nuvem no céu. — Pois lamento muito, Sire, trazer uma nuvem para a sua tranquilidade, — respondeu o ministro. — Pronto! — exclamou o rei, careteando, — começa mal o dia; que aconteceu? — Sinto-me profundamente embaraçado, Sire, para contar-lhe, tanto mais que, à primeira vista, o assunto não é da alçada do meu ministério. É uma espécie de roubo, e devia dizer respeito ao Chefe de Polícia. — Um roubo! — tornou o rei. — Sois o Ministro da Justiça, e os ladrões acabam sempre encontrando a justiça. Isso diz respeito ao Sr. Ministro da Justiça; falai. — Pois bem, Sire, eis o de que se trata. Vossa Majestade não ouviu falar num colar de brilhantes? — O colar do Sr. Boehmer? — Exatamente. — O que a rainha recusou? — Precisamente. — Recusa que me valeu um belo navio: o Suffren, — observou o rei, esfregando as mãos.

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O COLAR DA RAINHA 559

— Pois bem, Sire! — continuou o Barão de Breteuil, insensível ao mal que ia causar, — o colar foi roubado.

— Ah! tanto pior, tanto pior, — voltou o rei. — Era caro; mas os brilhantes são reconhecíveis. Cortá-los seria perder o fruto do roubo. Ficarão inteiros e a polícia tornará a encontrá-los.

— Síre, — atalhou o Barão de Breteuil, — não se trata de um roubo comum. Há uns rumores no meio da história. — Rumores! que quereis dizer? — Dizem, Sire, que a rainha ficou com o colar. — Ficou, como? Em minha presença o recusou, sem querer sequer olhar para êle! Loucuras, absurdezas, barão; a rainha não ficou com o colar. — Sire, não me servi da palavra adequada; as calúnias são sempre tão cegas em relação aos soberanos que a expressão é demasiado contundente para ouvidos reais. A palavra ficou... — Ora, essa! Sr. de Breteuil, — sobreveio o rei, com um sorriso, — não dirão, com certeza, que a rainha furtou o colar de brilhantes. — Sire, — acudiu vivamente o Sr. de Breteuil, — estão dizendo que a rainha reencetou em secreto o negócio desfeito por ela diante de Vossa Majestade; estão dizendo, e creio não me ser preciso repetir a Vossa Majestade que o meu respeito e o meu devotamento desprezam totalmente essas infames suposições; estão dizendo que os joalheiros possuem, do próprio punho de Sua Majestade, um recibo atestando que ela está com o colar. Empalideceu o rei. — Estão dizendo isso! — repetiu. — Mas que é o que não dizem? Em todo o

caso, a história me surpreende, pois ainda que a rainha houvesse comprado particularmente o colar, eu não lho recriminaria. É mulher e o colar é uma jóia rara e maravilhosa. Graças a Deus, ela pode gastar, se quiser, um milhão e meio para enfeitar-se, que não a censurarei. Neste caso, terá cometido apenas um erro, o de ocultar-me o seu desejo. Mas não cabe ao rei meter-se nesse negócio; cabe ao marido. O marido ralhará a mulher se quiser, ou puder: não reconheço a ninguém o direito de intervir, nem mesmo com uma maledicência.

Inclinou-se o barão diante destas palavras tão nobres e vigorosas. Luís XVI, todavia, tinha apenas a aparência da firmeza. Um momento depois de havê-la manifestado, voltava mostrar-se indeciso, inquieto.

— Além disso, — prosseguiu, — por que falastes em roubo?...Parece-me que usastes a palavra. . . Se tivesse havido roubo, o colar não estaria nas mãos da rainha. Sejamos lógicos. — Vossa Majestade gelou-me com a sua cólera, — disse o barão, — e não pude concluir.

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560 ALEXANDRE DUMAS

— Oh! a minha cólera!... Eu, encolerizado!... Quanto a isso, barão... barão...

E o bom do rei abriu a rir estrepitosamente. — Continuai, e dizei-me tudo; dizei-me até que a rainha vendeu o colar a judeus. Pobre mulher, precisa muitas vezes de dinheiro e nem sempre lho dou. — Eis precisamente o que eu ia ter a honra de dizer a Vossa Majestade. A rainha havia mandado pedir, há dois meses, quinhentas mil libras por intermédio do Sr. de Calonne, e Vossa Majestade recusou-se a assinar. — É verdade. — Pois bem! Sire, esse dinheiro, dizem, serviria de pagar a primeira prestação do colar. Não recebendo o dinheiro, a rainha não quis pagar. — E então? — perguntou o rei, que a pouco e pouco se ia interessando, como acontece quando à dúvida sucede um princípio de verossimilhança. — Então, Sire, aí principia a história que o zelo me obriga a relatar a Vossa Majestade. — Como! a história principia aí! Mas que terá acontecido, Santo Deus! — exclamou o monarca, revelando dessarte a sua perplexidade aos olhos do barão, que, a partir desse momento, conservou a vantagem obtida. — Sire, estão dizendo que a rainha procurou alguém para obter o dinheiro. — Quem? Algum judeu? — Não, Sire, um judeu, não. — Oh! meu Deus! estais-me dizendo isso com um ar estranho, Breteuil. Mas já adivinhei; uma intriga estrangeira: a rainha pediu o dinheiro ao irmão, à família. Há nisso o dedo austríaco. Por aí se vê o quanto era susceptível o rei tocante à corte de Viena. — Melhor fora que o tivesse feito, — replicou o Sr. de Breteuil. — Como! Melhor fora! Mas a quem terá podido a rainha pedir dinheiro emprestado? — Sire, não me atrevo... — Estais-me surpreendendo, senhor, — atalhou o rei reerguendo a cabeça e reassumindo o tom real: — Falai imediatamente, por favor, e nomeai-me esse emprestador de dinheiro. — O Sr. de Rohan, Sire. — Homessa! e não vos correis de citar-me o Sr. de Rohan, o homem mais arruinado deste reino! — Sire. . . — tornou o Sr. de Breteuil, abaixando os olhos.

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O COLAR DA RAINHA 561

— Eis aí um ar que me desagrada, — ajuntou Sua Majestade; — e vós vos explicareis daqui a pouco, Sr. Ministro da Justiça. — Não, Sire; por nada deste mundo, pois nada no mundo me forçaria a deixar cair dos lábios uma palavra capaz de comprometer a honra do meu rei e a da minha soberana. Luís XVI franziu o cenho. — Estamos descendo muito baixo, Sr. de Breteuil, — volveu êle; — esse relatório policial acha-se todo impregnado dos vapores da sentina de que saiu. — Toda calúnia exala miasmas mortais, Sire, e é por isso que os reis precisam purificar-se, e por grandes meios, se não quiserem que a sua honra seja sufocada por esses venenos, até sobre o trono. — O Sr. de Rohan! — murmurou o rei; — mas que verossimilhança?... O cardeal permite que se diga?... — Vossa Majestade se convencerá de que o Sr. de Rohan andou em tratativas com os joalheiros Boehmer e Bossange; que o negócio da venda foi acertado por êle; que foi êle quem estipulou e aceitou as condições de pagamento. — Francamente! — bradou o rei, perturbado pelo ciúme e pela cólera. — É um fato que poderá ser provado pelo mais simples interrogatório. Comprometo-me com Vossa Majestade a fazê-lo. — Comprometeis-vos a prová-lo? — Cabalmente e sob a minha responsabilidade, Sire. O soberano entrou a caminhar rapidamente no seu gabinete. — Coisas terríveis, — repetia; — não obstante, ainda não vejo o roubo de que falastes. — Sire, os joalheiros têm um recibo assinado, segundo dizem, pela rainha, e entendem que a rainha deve ter o colar. — Ah! — bradou o rei, com uma explosão de esperança; — mas ela nega! Vós mesmos dissestes que ela nega, Breteuil. — Ora, Sire! acaso deixei alguma vez supor Vossa Majestade que não estou persuadido da inocência da rainha? Serei, acaso, tão lamentável criatura para que Vossa Majestade não tenha visto o respeito, o amor que trago no coração pela mais pura das mulheres? — Nesse caso, estais acusando apenas o Sr. de Rohan... — Sire, as aparências... — Grave acusação, barão. — Que redundará talvez numa investigação; mas a investigação é indispensável. Imagine, Sire, que a rainha afirma não ter o colar; que os joalheiros afirmam tê-lo vendido à rainha; que o colar não se encontra, e que a palavra roubo já foi pronunciada pelo povo, entre o nome do Sr. de Rohan e o nome sagrado da rainha.

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562 ALEXANDRE DUMAS

— É verdade, é verdade, — conveio o rei, completamente trans tornado; — tendes razão, Breteuil; cumpre que o negócio seja escla recido. — Completamente, Sire. — Meu Deus! quem está passando lá em baixo, na galeria? Não é o Sr. de Rohan que se dirige para a capela? — Ainda não, Sire; o Sr. de Rohan não pode ir agora para a capela. Não são onze horas e, de mais a mais, o Sr. de Rohan, que hoje vai oficiar, estaria revestido de suas vestes pontifícias. Não é êle quem está passando. Vossa Majestade dispõe ainda de meia hora. — Que fazer então? falar-lhe? mandá-lo chamar? — Não, Sire; permita Vossa Majestade que eu lhe dê um con selho; não deixe que o caso transpire antes de haver conversado com Sua Majestade a rainha. — Sim, — assentiu o rei, — ela me dirá a verdade. — Não tenhamos dúvida, Sire. — Vamos a ver, barão, colocai-vos aí e, sem reservas, sem ate nuações, contai-me todos os fatos, todos os comentários. — Tenho tudo pormenorizado nesta pasta, com as respectivas provas. — Então, mãos à obra! Esperai apenas que eu mande fechar a porta do gabinete; eu tinha duas audiências hoje cedo: serão adiadas. O monarca deu as suas ordens e, tornando a sentar-se, dirigiu um último

olhar pela janela. — Desta vez, — disse êle, — é o cardeal mesmo; olhai. Breteuil levantou-se, aproximou-se da janela e, por trás da cortina, avistou o

Sr. de Rohan, que, com as vestes de cardeal e arcebispo, se encaminhava para os aposentos que lhe reservavam sempre que vinha oficiar solenemente em Versalhes.

— Ei-lo enfim chegado, — exclamou o rei, levantando-se. — Tanto melhor, — acudiu o Sr. de Breteuil, — a explicação não sofrerá delongas. E entrou a fornecer ao rei todas as informações que pode reunir o zelo de

ura homem empenhado na ruína de outro. Uma arte infernal juntara-lhe na pasta quanto pudesse arrazar o cardeal.

Via o rei acumularem-se, umas sobre as outras, todas as provas da culpabilidade do Sr. de Rohan, mas desesperava-se de não ver chegarem com suficiente rapidez as provas da inocência da rainha.

Fazia um quarto de hora que estava sofrendo, impaciente, esse suplício, quando, de repente, se ouviram gritos na galeria vizinha.

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O COLAR DA RAINHA 563

O rei fitou os ouvidos, Breteuil interrompeu a leitura. Um oficial veio bater à porta do gabinete.

— Que foi? — perguntou o soberano, que tinha os nervos à flor da pele, desde que o Sr. de Breteuil iniciara as suas revelações.

Apresentou-se o oficial. — Sire, Sua Majestade a rainha pede-lhe que faça o obséquio de passar pelos aposentos dela. — Temos novidade, — observou o monarca, empalidecendo. — Talvez, — murmurou Breteuil. — Vou ao apartamento da rainha, — anunciou o rei. — Esperai-nos aqui, Sr. de Breteuil. — Estamos chegando ao desenlace, — disse entre si o Ministro da Justiça.

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LXXVI

Fidalgo, Cardeal e Rainha NO MOMENTO em que o Sr. de Breteuil entrava à presença de el-

rei, o Sr. de Charny, pálido, agitado, pedira audiência à rainha. Maria Antonieta estava-se vestindo; viu, pela janela do toucador que dava

para o terraço, Charny, que insistia em ser introduzido. Ordenou que o fizessem entrar, antes até que êle houvesse concluído o

pedido. Cedia à necessidade do coração; dizia consigo mesma, com nobre altivez,

que um amor puro e imaterial, como o seu, tem o direito de entrar a qualquer hora até no palácio das rainhas.

Charny entrou, tocou, trémulo, a mão que lhe estendia Maria Antonieta e, com voz sufocada:

— Ah! senhora, — disse êle, — que desgraça! — Que tendes? — exclamou ela, empalidecendo ao ver tão pálido o seu amigo. — Senhora, sabe o que acabo de saber? Sabe o que estão dizendo? Sabe o que o rei talvez já saiba, ou saberá amanhã? Ela estremeceu, pensando na noite de castas delícias, em que talvez um

olhar enciumado, inimigo, a tivesse surpreendido no parque de Versalhes em companhia de Charny.

— Dizei tudo, sou forte, — respondeu, levando a mão ao coração. — Dizem, senhora, que Vossa Majestade comprou um colar de Boehmer e Bossange. — Já o devolvi, — replicou ela, vivamente; — Ouça: dizem que Vossa Majestade simulou devolvê-lo, esperando poder pagá-lo, mas que o rei a impediu de fazê-lo recusando-se a assinar uma ordem de pagamento apresentada pelo Sr. De Calonne; e que, então, Vossa Majestade se dirigiu a alguém para conseguir o dinheiro, e essa pessoa é... seu amante. — Vós! — exclamou a rainha com um gesto de sublime confiança. — Vós! senhor! deixai falar os que dizem isso. O título de amante não é para eles injúria tão grata a lançar quanto é grata verdade, doravante consagrada entre nós, o título de amigo.

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O COLAR DA RAINHA 565

Deteve-se Charny, confundido por aquela máscula e fecunda eloquência, que exala o verdadeiro amor, como o perfume essencial do coração de toda mulher generosa.

Mas o tempo que levou para responder duplicou a inquietude da rainha. Bradou ela:

— De que pretendeis falar, Sr. de Charny? A calúnia usa uma linguagem que jamais consigo compreender. Porventura a compreendestes? — Senhora, digne-se ouvir com atenção, que a circunstância é grave. Ontem, fui em companhia de meu tio, o Sr. de Suffren, à casa dos joalheiros da coroa, Boehmer e Bossange. Meu tio trouxe brilhantes da Índia. Queria mandá-los avaliar. Falou-se de tudo e de todos. Os ourives referiram ao Sr. Bailio uma história horrível comentada pelos inimigos de Vossa Majestade. Estou desesperado; se Vossa Majestade comprou o colar, diga-mo; se o não pagou, diga-mo também. Mas não me deixe acreditar que o Sr. de Rohan o pagou pela rainha. — O Sr. de Rohan! — bradou Maria Antonieta. — Sim, o Sr. de Rohan, tido por amante da rainha; o homem a quem a rainha pede dinheiro emprestado; o homem que um desgraçado que se chama Charny viu no parque de Versalhes, sorrindo para a rainha, ajoelhando-se diante dela, beijando-lhe as mãos; o homem... — Senhor, — exclamou Maria Antonieta, — se acreditais nessas coisas na minha ausência, é porque não me amais quando estou presente. — Oh! — replicou o rapaz, — há um perigo iminente; não venho pedir-lhe franqueza nem coragem, venho suplicar-lhe que me faça um favor. — Em primeiro lugar, fazei-me o obséquio de dizer que perigo é esse. — Que perigo? Só um insensato, senhora, não o adivinha. Responsabilizando-se pela rainha, pagando pela rainha, o cardeal perde a rainha. Não lhe falo aqui do mortal desagrado que pode causar ao Sr. de Charny a confiança que lhe inspira o Sr. de Rohan. Não. Dessas dores morremos, mas não nos queixamos. — Estais louco! — volveu Maria Antonieta encolerizada. — Não estou louco, senhora, mas Vossa Majestade está desgraçada,

está perdida. Vi-a no parque. . . E digo-lhe que não me enganara. Hoje explodiu a horrível, a mortal verdade... O Sr. de Rohan gaba-se talvez...

A rainha agarrou o braço de Charny. — Louco! louco! — repetiu, com inexprimível angústia, — acreditai

no ódio, acreditai em sombras, acreditai no impossível; mas, pelo amor de Deus! depois do que eu vos disse, não me acrediteis

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566 ALEXANDRE DUMAS

culpada... Culpada! essa palavra me faria jogar-me num braseiro ardente... Culpada... com... Eu que nunca pensei em vós sem pedir a Deus que me perdoasse esse pensamento, que me parecia um crime! Oh! Sr. de Charny, se não me quiserdes ver hoje perdida, morta amanhã, não torneis a dizer que suspeitais de mim ou então fugi para tão longe que não possais ouvir sequer o ruído da minha queda no momento da minha morte. Oliveiros retorcia as mãos com angústia.

— Ouça-me, Majestade, — rogou, — se quer que eu lhe preste um serviço eficaz. — Um serviço de vós! — bradou a rainha, — de vós, mais cruel do que os meus inimigos... pois eles apenas me acusam, ao passo que vós suspeitais de mim! Um serviço do homem que me despreza? Nunca... senhor, nunca! Aproximou-se Oliveiros e tomou-lhe as mãos. — Vossa Majestade verá, — disse êle, — que não sou homem que geme ou chora; os momentos são preciosos: hoje à noite já seria tarde demais para fazermos o que temos de fazer. Quer sal var-me do desespero e salvar-se, ao mesmo tempo, do opróbrio?... — Senhor!... — Não medirei palavras em face da morte. Se Vossa Majestade não me ouvir, garanto-lhe que esta noite estaremos ambos mortos, a senhora de vergonha e eu de tê-la visto morrer. Vamos direto ao inimigo, como nas nossas batalhas! Direto ao perigo! Direto à morte! Vamos juntos, eu, como o soldado obscuro, no meu lugar, mas corajoso, como o verá; Vossa Majestade, com a majestade, com a força, para o mais aceso da luta. Se sucumbir, não sucumbirá só. Veja, senhora, veja em mim um irmão... Precisa... de dinheiro para... pagar o colar?... — Eu? — Não o negue. — Digo... — Não diga que não tem o colar. — Juro. . . — Não jure se quer que eu a ame ainda. — Oliveiros! — Resta-lhe um meio de salvar, ao mesmo tempo, a sua honra e o meu amor. O colar vale um milhão e seiscentas mil libras; a senhora já pagou duzentas e cinquenta mil. Aqui está um milhão e meio, aceite-o. — Que é isso? — Não olhe; aceite e pague. — Vossos bens vendidos! Vossas terras vendidas! Oliveiros! Sacrificastes-vos por mim! Sois um bom e nobre coração e não regatearei confissões diante de tamanho amor. Eu vos amo, Oliveiros!

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O COtAR DA RAINHA 567

Aceite. — Não; mas eu vos amo! — É, então, o Sr. de Rohan quem vai pagar? Pense nisso, senhora, já não seria de sua parte uma generosidade, senão uma crueldade que me mata... Vossa Majestade aceita do cardeal?... — Ora, essa, Sr. de Charny! Sou a rainha, e se dou aos meus súditos amor ou fortuna, não costumo aceitar. — Que vai fazer então? — Dir-me-eis o que devo fazer. Que estará pensando o Sr. De Rohan? — Está pensando que a senhora é sua amante. — Sois duro, Oliveiros... — Falo como se fala diante da morte. — Que estarão pensando os joalheiros? — Que a rainha não podendo pagar, pagará por ela o Sr. de Rohan. — Que pensará o povo sobre o colar? — Que Vossa Majestade o tem consigo, guardou-o, e só o confessará quando êle estiver pago, seja pelo cardeal, por amor a senhora, seja pelo rei, por medo do escândalo. — E vós, Charny? Estou-vos olhando nos olhos e pergunto: Que pensais das cenas que vistes no parque de Versalhes? — Creio, senhora, que Vossa Majestade precisa provar-me a sua inocência, — replicou energicamente o digno fidalgo. A rainha enxugou o suor que lhe escorria da fronte. — O Príncipe Luís, Cardeal de Rohan, Esmoler-mor de França! — gritou no corredor uma voz de porteiro. — Êle! — murmurou Charny. — Eis-vos servido, — disse a rainha. — Vossa Majestade vai recebê-lo? — Eu ia mandar chamá-lo. — Mas, eu. . . — Entrai no meu toucador e deixai a porta aberta para ou virdes. — Senhora! — Depressa, que aí vem o cardeal. Ela empurrou-o para o quarto que lhe indicara, deixou a porta

entreaberta e mandou entrar o cardeal. O Sr. de Rohan assomou ao limiar da sala, resplandecente nas suas

vestimentas de oficiante. Atrás dele mantinha-se, à distância, um séquito numeroso, cujos hábitos brilhavam como o do amo.

Entre as pessoas inclinadas, podiam avistar-se Boehmer e Bos-sange, mais ou menos atrapalhados nos trajos de cerimónia.

A rainha dirigiu-se ao encontro do cardeal, tentando esboçar um sorriso, que pronto lhe morreu nos lábios.

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568 ALEXANDRE DUMAS

Luís de Rohan estava sério, triste mesmo. Tinha a calma do homem corajoso que vai para o combate, a imperceptível ameaça do sacerdote que talvez tenha de perdoar.

A soberana indicou um tamborete; o prelado permaneceu em pé. — Senhora, — disse êle, depois de se haver inclinado, visivelmente trémulo, — eu tinha várias coisas importantes para comunicar a Vossa Majestade, que faz timbre de evitar a minha presença. — Eu, — atalhou a rainha, — tão pouco vos evito, Sr. Cardeal, que ia mandar chamar-vos. O príncipe relanceou os olhos pelo toucador. — Estou só com Vossa Majestade? — tornou, em voz baixa; — tenho o direito de falar com toda a liberdade? — Com toda a liberdade, Sr. Cardeal; não vos constranjais, que estamos sós. E a sua voz firme parecia arremessar as palavras ao fidalgo escondido no

quarto vizinho. Ela saboreava com orgulho a própria coragem e a confiança que sentiria, desde o. princípio, o Sr. de Charny, sem dúvida atento.

Decidiu-se o cardeal. Aproximou o tamborete da poltrona da rainha, de modo que ficasse o mais longe possível da porta.

— Quantos preâmbulos! — disse ela, simulando jovialidade. — É que. . . — principiou o cardeal. — É que?... — repetiu a rainha. — O rei não virá? — perguntou o Sr. de Rohan. — Não tenhais medo do rei nem de ninguém, — replicou vivamente Maria Antonieta. — É de Vossa Majestade que tenho medo, — acudiu, com voz comovida, o prelado. — Mais uma razão, pois não sou muito temível; dizei o que quereis dizer em poucas palavras, dizei-o em voz alta e inteligível; gosto de franqueza e, se não fordes franco, cuidarei que não sois homem de honra. Oh! nada de gestos por enquanto; disseram-me que tínheis motivos de queixa contra mini. Falai: amo a guerra, sou de um sangue que não se assusta! Vós também, sei-o muito bem. Que é o que me censurais? O cardeal despediu um suspiro e levantou-se como se quisesse aspirar mais

livremente o ar da sala. Afinal, senhor de si mesmo, começou nestes termos:

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LXXVII

Explicações

COMO dissemos, encontravam-se finalmente, face a face, a rainha e o cardeal. No gabinete, Charny ouvia tudo, até a menor palavra dos interlocutores, e as explicações, esperadas com tanta impaciência pelas duas partes, iam dar-se afinal.

— Senhora, — começou o cardeal, inclinando-se, — sabe o que se passa a respeito do nosso colar? — Não, senhor, não sei, e gostaria de sabê-lo de vós. — Por que me obriga Vossa Majestade, há tanto tempo, a só me comunicar consigo através de um intermediário? Por que, se tem algum motivo para odiar-me, não mo declara pessoalmente? — Não sei o que quereis dizer, Sr. Cardeal, e não tenho motivo algum para odiar-vos; creio, porém, que não é esse o objeto da nossa entrevista. Fazei-me, pois, o obséquio de dar sobre o desgraçado colar uma informação positiva. Em primeiro lugar, onde está a Sra. de La Motte? — Era o que eu ia perguntar a Vossa Majestade. — Perdão, mas se alguém pode saber onde está a Sra. de La Motte, sois vós, penso eu. — Eu, senhora? A título de quê? — Não estou aqui para ouvir as vossas confissões, Sr. Cardeal; tive necessidade de falar com a Sra. de La Motte, mandei-a chamar, procuraram-na dez vezes em casa dela e ela não apareceu. Convireis em que esse desaparecimento é estranho. —. A mim também, senhora, me espanta, pois mandei pedir à Sra. de La

Motte que fosse ver-me, e ela não me respondeu como não respondeu a Vossa Majestade.

— Nesse caso, deixemos a condessa e falemos de nós. — Oh! não, falemos dela primeiro, pois certas palavras de Vossa Majestade me despertaram uma dolorosa suspeita; pareceu-me que Vossa Majestade reprochava as minhas assiduidades junto da condessa. — Não vos reprochei coisa alguma, senhor; mas, paciência... — Oh! senhora, é que uma suspeita semelhante me aclararia todas as susceptibilidades da sua alma e me faria compreender,

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embora me desesperasse, o rigor até agora inexplicável com que Vossa Majestade me tem tratado.

— É neste ponto que deixamos de compreender-nos, — acudiu a rainha; — sois de uma obscuridade impenetrável, e não é para nos confundirmos ainda mais que vos pedi explicações. Vamos aos fatos! aos fatos! — Senhora, — bradou o cardeal juntando as mãos e acercando-se da rainha,. — fazei-me a mercê de não mudar de assunto: mais duas palavras sobre o tema que tratávamos há pouco e nos teríamos compreendido perfeitamente. — Francamente, senhor, estais falando uma língua que não entendo; voltemos ao francês, por favor. Onde está o colar que devolvi aos joalheiros? — O colar que Vossa Majestade devolveu! — exclamou o Sr. de Rohan. — Sim, que fizestes dele? — Eu! eu não sei, senhora! — Vamos a ver, a coisa é muito simples: a Sra. de La Motte levou o colar e devolveu-o em meu nome; os joalheiros afirmam que o não receberam de volta. Tenho em mãos um recibo que prova o contrário; dizem os joalheiros que o recibo é falso. Com uma palavra, a Sra. de La Motte poderia elucidar tudo isso...Mas, como ninguém a encontra, explicarei com suposições os fatos obscuros. A Sra. de La Motte quis devolver o colar. Vós, cuja mania, generosa sem dúvida, foi sempre a de me fazer comprá-lo, vós, que mo trouxestes oferecendo-vos para pagá-lo por mim, ofere cimento esse... — Que Vossa Majestade recusou bem duramente, — atalhou o cardeal com um suspiro. — Pois sim! mas perseverastes na ideia fixa de querer que eu continuasse de posse do colar, e não o devolvestes aos ourives para obrigar-me a aceitá-lo numa ocasião qualquer. A Sra. de La Motte que conhecia as minhas repugnâncias, a impossibilidade em que eu me achava de pagar, a minha imutável resolução de não ficar com o colar sem ter dinheiro, fraquejou, conspirou convosco, e hoje, receando a minha cólera, não quer aparecer. É isso mesmo? Dizei-me se consegui reconstituir os fatos no meio das trevas. Deixai-me censurar-vos a leviandade, a desobediência às minhas ordens for mais; levareis uma repreensão e estará tudo acabado. Digo mais, prometo-vos o perdão da Sra. de La Motte, que poderá deixar a sua penitência. Mas, por misericórdia! clareza, clareza, senhor, não quero que paire neste momento uma única sombra sobre a minha vida; não quero, ouvistes? A rainha pronunciara essas palavras com tamanha vivacidade, acentuara-as

com tanto vigor, que o cardeal não ousara nem pudera interrompê-la. Mas, assim que ela terminou:

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— Senhora, — exclamou, sufocando um suspiro, — vou responder a todas as suas suposições. Não, não perseverei na ideia de querer que Vossa Majestade ficasse com o colar, pois estava persuadido de que êle continuava em suas mãos. Não, não conspirei com a- Sra. de La Motte a respeito do colar. Não, não está comigo como não está com os joalheiros, como não está consigo, rio dizer de Vossa Majestade. — Não é possível! — bradou a rainha, estuporada; — não tendes o colar? — Não, senhora. — Não aconselhastes à Sra. de La Motte que se alheasse de tudo isso? — Não, senhora. — Não sois vós que a estais escondendo? — Não, senhora. — Não sabeis o que foi feito dela? — Sei-o tanto quanto Vossa Majestade. — Mas, então, como explicais o que está acontecendo? — Senhora, vejo-me obrigado a confessar que não o explico. De mais a mais, não é esta a primeira vez que me queixo à rainha de não ser compreendido por ela. — Quando foi isso, senhor? Não me lembro. — Seja boa, senhora, — tornou o cardeal, — e releia mental mente as minhas cartas. — As vossas cartas! — sobreveio Maria Antonieta, surpresa. — Vós me escrevestes? — Muito pouco, aliás, em face de tudo o que eu tinha no coração. Levantou-se a rainha. — Parece-me, — disse ela, — que nos estamos enganando um ao outro;

acabemos logo com esta brincadeira. A que cartas estais aludindo? E que tendes sobre o coração ou no coração, pois já nem sei direito como acabastes de falar?

— Meu Deus! senhora, eu talvez tenha dito alto demais o segredo de minha alma. — Que segredo? Estais em vosso juízo perfeito, Sr. Cardeal? — Senhora! — Não tergiversemos; falais como um homem que quisesse armar-me uma cilada, ou pretendesse enlear-me diante de testemunhas. — Juro-lhe, senhora, que não disse nada. .. Há, realmente, alguém escutando? — Não, senhor, mil vezes não, não há ninguém. Explicai-vos, pois, mas completamente e se ainda estais de posse da vossa razão, provai-o.

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— Oh! senhora, por que não estará aqui 'a Sra. de La Motte? Ela, a nossa amiga, me ajudaria a despertar, senão o afeto, pelo menos a memória de Vossa Majestade. — Nossa amiga? o meu afeto? a minha memória? Estou caindo das nuvens. — Peço-lhe, — acudiu o cardeal, revoltado pelo tom acre da rainha, — que me poupe. Se já não me ama, pelo menos não me ofenda. — Ah! meu Deus! — exclamou a rainha, empalidecendo, — ah! meu Deus!... que está dizendo esse homem? — Muito bem! — continuou o Sr. de Rohan, animando-se à proporção que se encolerizava e lhe refervia o sangue, — muito bem! Creio haver sido suficientemente discreto e reservado para não ser maltratado; de resto, só tenho motivos frívolos de queixa contra si. Incorro no erro de repetir-me. Eu já devia saber que quando uma rainha diz: Não quero mais, exprime uma lei tão imperiosa como quando diz uma mulher: Eu quero! A rainha soltou um grito selvagem e agarrou o cardeal pelas rendas do

punho. — Dizei depressa, senhor, — gritou, com voz trémula. — Eu disse: Não quero mais, e disse: Eu quero! A quem foi que eu disse uma e outra coisa? — A mim, ambas. — A vós? — Esqueça que me disse uma, que não me esqueço de que lhe ouvi a outra. — Sois um miserável, Sr. de Rohan! Um mentiroso! — Eu! — Um covarde! Estais caluniando uma mulher! — Eu! — Um traidor! Estais insultando a rainha! — E Vossa Majestade é uma mulher sem coração, uma rainha sem fé. — Desgraçado! — Levou-me, gradativamente, a sentir por isso um amor desesperado. Deixou que eu me alimentasse de esperanças. — Esperanças! Misericórdia! Estarei louca? Esse homem é um celerado! — Acaso fui eu quem ousou pedir-lhe as audiências noturnas que me concedeu? A rainha despediu um urro de raiva, ao qual respondeu um longo

suspiro no toucador. — Acaso teria eu, — prosseguiu o Sr. de Rohan, — ousado vir só ao

parque de Versalhes se a senhora não me tivesse mandado a Sra. de La Motte?

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O COLAR DA RAINHA 573

— Meu Deus! — Acaso me teria atrevido a roubar a chave que abre a porta da casa do monteiro? — Meu Deus! —-Acaso me teria aventurado a pedir-lhe que levasse esta rosa? Rosa

adorada! rosa maldita! secada, queimada sob os meus beijos!... — Meu Deus! — Acaso a obriguei a descer no dia seguinte e a dar-me as suas mãos, cujo perfume me devora o cérebro e me ensandece? Tem razão de reprochar-me a falta de juízo. — Oh! basta! basta! — Acaso, enfim, teria eu, no meu orgulho mais furioso, ousado sonhar alguma vez com a terceira noite de alvo céu, de doces silêncios, de pérfidos amores? — Senhor! senhor! — clamou a rainha, recuando diante do cardeal, — estais blasfemando! — Meu Deus! — replicou o cardeal, erguendo os olhos para o céu, — sabes que, para continuar a ser amado por essa mulher enganadora, eu teria dado meus bens, minha liberdade, minha vida! — Sr. de Rohan, se quereis conservar tudo isso, declararei agora mesmo que estais querendo perder-me; que inventastes todos esses horrores; que não viestes a Versalhes à noite... — Vim, — atalhou nobremente o cardeal. — Morrereis se sustentardes essa linguagem. — Um Rohan não mente. Eu vim. — Sr.*de Rohan, Sr. de Rohan, em nome do céu, dizei que não me vistes no parque... — Morrerei se fôr preciso, como Vossa Majestade me ameaçou ainda há pouco, mas só vi a senhora no parque de Versalhes, aonde me conduziu a Sra. de La Motte. — Ainda uma vez! — bramiu a rainha, lívida e trémula, — não vos re tratais? — Não! — Pela segunda vez, não confessais que tramastes contra mim essa infâmia? — Não! — Pela última vez, Sr. de Rohan, não confessais que pudestes ter-vos enganado, que tudo isso foi uma calúnia, um sonho, o impossível, nem sei o quê? Não confessais que estou inocente, que posso estar inocente? — Não! Levantou-se a rainha, terrível e solene. —Sereis então levado, — disse ela, — à justiça do rei, visto que recusais

a justiça de Deus. Inclinou-se o cardeal sem dizer uma palavra.

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Maria Antonieta tocou tão violentamente a campainha que várias criadas entraram ao mesmo tempo.

— Mandai dizer a Sua Majestade, — ordenou, enxugando os lábios, — que me faça a honra e o favor de passar por aqui.

Partiu um oficial para executar a ordem. Decidido a tudo, o cardeal permaneceu, intrépido, num canto da sala.

Maria Antonieta foi umas dez vezes até à porta do toucador mas não entrou, como se, dez vezes, tendo perdido a razão, tornasse a encontrá-la naquele sítio.

Dez minutos não se haviam escoado, quando o rei interrompeu a cena terrível surgindo à entrada da sala, com a mão nos folhos de rendas.

— Viam-se sempre, no mais recuado do grupo, as fisionomias assustadas de Boehmer e Bossange, que farejavam a tempestade.

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LXXVIII

A prisão

ASSIM que o rei assomou à porta, interpelou-o a rainha com extraordinária volubilidade.

— Sire, — disse ela, — aqui está o Sr. Cardeal de Rohan, que acaba de dizer coisas inacreditáveis; tenha, pois, a bondade de pedir-lhe que as repita.

A essas palavras inesperadas, à súbita apóstrofe, o cardeal empalideceu. Com efeito, tão estranha era a situação, que o prelado já não compreendia mais nada. Poderia, porventura, o pretenso amante repetir ao rei, poderia o súdito respeitoso enumerar ao marido todos os direitos que julgava ter sobre a rainha e sobre a mulher?

Mas o rei, voltando-se para o cardeal, absorto nas suas reflexões: — A propósito de certo colar, não é verdade, senhor, — disse ele, —

tendes coisas incríveis para dizer-me e tenho coisas incríveis para ouvir? Falai, que estou escutando.

O Sr. de Rohan tomou imediatamente a sua decisão: das duas dificuldades, escolheria a menor; dos dois ataques, sofreria o mais honroso para o rei e para a rainha; e se, imprudentemente, o atiravam no segundo perigo, dele sairia como um homem corajoso e como um cavalheiro.

— A propósito do colar, Sire, — murmurou. — Mas, senhor, — tornou o rei, — comprastes o colar? — Sire... — Sim ou não? O cardeal olhou para a rainha e não respondeu. — Sim ou não? — repetiu ela. — A verdade, senhor, a verdade; não se

pede outra coisa. O Sr. de Rohan virou a cabeça e não replicou. — Visto que o Sr. de Rohan não quer responder, responda a senhora, —

disse o rei; — deve saber alguma coisa sobre isso. Comprou ou não comprou o colar?

— Não! — negou a rainha, com força. Estremeceu o Sr. de Rohan.

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— Eis aí uma palavra de rainha! — bradou o rei com solenidade; — tomai cuidado, Sr. Cardeal.

O Sr. de Rohan deixou que lhe aflorasse aos lábios um desdenhoso sorriso. — Não dizeis nada? — tornou o monarca. — De que me acusam, Sire? — Afirmam os joalheiros ter vendido um colar, a vós ou à rainha. E exibem um recibo de Sua Majestade. — O recibo é falso! — sobreveio Maria Antonieta. — Os joalheiros — continuou o rei, — dizem que, à falta da rainha, estão garantidos por compromissos que assumistes, Sr. Cardeal. — Não me recuso a pagar, Sire, — disse o Sr. de Rohan. — Deve ser a verdade, visto que a rainha permite que o digam. E segundo olhar, mais desdenhoso do que o primeiro, lhe concluiu á frase e

o pensamento. A rainha estremeceu. O desprezo do cardeal não era um insulto para ela,

visto que o não merecia, mas devia de ser a vingança de um homem honrado: assustou-se.

— Sr. Cardeal, — tornou o rei, — não obstante, existe nesse negócio uma falsificação que comprometeu a assinatura da rainha de França. — E outra falsificação, — bradou a rainha, — que talvez possa ser imputada a um fidalgo, pretende que os joalheiros receberam de volta o colar. — A rainha tem plena liberdade, — articulou o Sr. de Rohan no mesmo tom, — de me atribuir ambas as falsificações; quem faz uma pode fazer duas, é a mesma coisa. A rainha quase explodiu de indignação; conteve-a o rei com um gesto. — Tomai tento, — disse êle ainda ao cardeal, — estais agravando a vossa

situação. Eu vos digo: justificai-vos, e pareceis querer acusar! O Cardeal refletiu um momento; depois, como sucumbisse sob o peso

daquela misteriosa calúnia que lhe oprimia a honra: — Não posso justificar-me! — respondeu. — Senhor, há pessoas que se queixam de que lhes foi roubado um colar; consentindo em pagá-lo, confessais a vossa culpa. — Quem o crerá? — retrucou o cardeal com soberbo desdém. — Nesse caso, senhor, se não imaginais que o creiam, crerão que.. . E um frémito de cólera transtornou o semblante de ordinário tão plácido

do rei... — Sire, não sei o que estão dizendo, — voltou o cardeal, — nem sei o

que estão fazendo; só posso afirmar que não estou com o colar; só posso afirmar que os brilhantes estão em poder de

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alguém que deveria nomear-se, mas que o não faz, e assim me obriga a repetir a frase da Escritura: O mal recai sobre a cabeça daquele que o praticou.

A essas palavras, a rainha fêz menção de pegar no braço do rei, que lhe disse:

— O debate é entre a senhora e êle. Pela última vez: o colar está consigo? — Não! pela honra de minha mãe, pela vida de meu filho! — respondeu Maria Antonieta. Cheio de alegria, voltou-se o rei para o cardeal:

— Então, é um caso entre a justiça e vós, senhor, — disse êle;— a menos que prefirais recorrer à minha clemência.

— A clemência dos reis é feita para os culpados, Sire, — retorquiu o cardeal; — prefiro-lhe a justiça dos homens. — Não quereis confessar? — Não tenho nada que dizer. — Mas, afinal, senhor, — bradou a rainha, — o vosso silêncio põe em dúvida a minha honra! Calou-se o cardeal. — Pois eu não me calarei, — continuou a rainha; — esse silêncio me

queima, traduz uma generosidade que repudio. Saiba, Sire, que o crime do Sr. Cardeal não se refere à venda nem ao roubo do colar.

O Sr. de Rohan ergueu a cabeça e empalideceu. — Que significa isso? — perguntou o rei, inquieto. — Senhora!. . . — murmurou o cardeal, estarrecido. — Nenhum argumento, nenhum receio, nenhuma fraqueza me fechará a boca; tenho aqui, no coração, motivos que me levariam a gritar minha inocência em praça pública. — A sua inocência! — acudiu o rei. — Quem seria tão temerário ou tão covarde que obrigasse Vossa Majestade a pronunciar essa palavra? — Suplico-lhe, senhora, — rogou o cardeal. — Ah! começais a tremer! Eu havia, então, adivinhado: as vossas conjuras só medram na sombra! Pois eu gosto do dia claro! Sire, ordene ao Sr. Cardeal que lhe repita o que acabou de dizer-me há pouco, aqui, neste mesmíssimo lugar. — Senhora! senhora! — advertiu o Sr. de Rohan, — tome cuidado; Vossa Majestade está-se excedendo. — Como? — acudiu o rei, altaneiro. — Quem está falando à rainha nestes termos? Parece-me que não sou eu! — Justamente, Sire, — tornou Maria Antonieta. — O Sr. Cardeal fala nestes termos à rainha porque afirma ter o direito de fazê-lo. — Vós, senhor! — murmurou o rei, lívido. — Êle! — bradou a rainha com desdém, — êlel

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— O Sr. Cardeal tem provas? — volveu o monarca dando um passo na direção do príncipe. — O Sr. de Rohan diz que tem cartas! — atalhou a rainha. — Vamos a ver, senhor! — insistiu o rei. — As cartas! — rebradou a rainha, arrebatada, — as cartas! O cardeal pa.ssou a mão pela testa gelada de suor, e pareceu perguntar a Deus como pudera dar à mesma criatura tanta audácia e tanta perfídia. Mas não disse uma palavra. — E não é tudo, — prosseguiu a rainha, que se animava a pouco e pouco, sob a influência da própria generosidade, — o Sr. Cardeal obteve entrevistas. — Senhora! por piedade! — rogou o rei. — Por pudor! — sobreveio o cardeal. — Enfim, senhor! — voltou a rainha, — se não sois o último dos homens, se alguma coisa vos é sagrada neste mundo, exibi as vossas provas! O Sr. de Rohan ergueu lentamente a cabeça e replicou: — Não as tenho, senhora. — Não acrescentareis este crime aos outros, — continuou a rainha, — não acumulareis sobre mim opróbrio sobre opróbrio. Tendes uma auxiliar, uma cúmplice, uma testemunha em tudo isto: nomeai-o, ou nomeai-a. — Quem? — perguntou o rei. — A Sra. de La Motte, Sire, — declarou a rainha. — Ah! — exclamou o rei, triunfante ao ver finalmente justificadas as suas prevenções contra Joana; — muito bem! tragam aqui essa mulher, interroguem-na. — Pois sim! — bradou a rainha. — Ela desapareceu. Pergunte Vossa Majestade a este senhor o que fêz dela. Era muito do seu interesse evitar que ela surgisse em cena. — Outros a terão feito desaparecer, — replicou o cardeal, — outros, cujo interesse sobrelevava ao meu. Por isso não será encontrada. — Se estais inocente, — gritou a rainha, furiosa, — ajudai-nos a encontrar os culpados. Mas o Cardeal de Rohan, depois de lhe haver dirigido um derradeiro

olhar, voltou as costas e cruzou os braços. — Senhor! — disse o rei ofendido, — ireis daqui para a Bastilha. Inclinou-se o cardeal; em seguida, em tom seguro: — Assim vestido? — perguntou. — Com as minhas vestes pontifícias? Diante de toda a corte? Reflita, Sire, o escândalo será imenso e mais pesado ainda para a cabeça sobre a qual recairá. — Assim o quero, — declarou o rei, agitadíssimo. — É um sofrimento injusto que Vossa Majestade inflige prematuramente a um sacerdote, Sire, e a tortura antes da acusação não é legal.

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— Cumpre que assim seja, — respondeu o rei, abrindo a porta da sala e procurando com os olhos alguém a quem pudesse transmitir a ordem.

Estava lá o Sr. de Breteuil, cujos olhos devoradores tinham adivinhado, pela exaltação da rainha, pela agitação do rei e pela atitude do cardeal, a ruína do inimigo.

O rei não acabara ainda de falar-lhe em voz baixa, quando o Ministro da Justiça, usurpando as funções do Capitão dos Guardas, gritou com voz retumbante, que ressoou até no fundo das galerias:

— Prendei o Sr. Cardeal! O Sr. de Rohan estremeceu. Os murmúrios que ouviu sob as abóbadas, a

agitação dos cortesãos, a súbita chegada dos guardas, emprestavam à cena um caráter de sinistro augúrio.

Passou o cardeal diante da rainha sem cortejá-la, o que fêz ferver o sangue da soberba princesa. Inclinou-se muito humildemente ao passar pelo rei, e assumiu, diante do Sr. de Breteuil, uma expressão de piedade tão habilmente matizada, que deve ter levado o barão a acreditar que ainda não se vingara bastante.

Um tenente dos guardas abeirou-se timidamente e pareceu pedir ao próprio cardeal a confirmação da ordem que acabava de ouvir.

— Sim, senhor, — disse-lhe o Sr. de Rohan; — sim, sou eu mesmo quem está preso. — Conduzireis este senhor aos seus aposentos, enquanto se aguardará o que eu tiver decidido durante a missa, — articulou o rei, no meio de um silêncio de morte. O soberano ficou só no apartamento da rainha, com as portas abertas, ao

passo que o cardeal se alongava lentamente pela galeria, precedido do tenente dos guardas, com o chapéu na mão.

— Senhora, — disse Luís XVI ofegante, porque a muito custo se contivera, — sabeis que tudo isto redundará num julgamento público, isto é, num escândalo, sob o qual cairá a honra dos cul pados? — Obrigada! — exclamou a rainha, apertando efusivamente as mãos do marido, — Vossa Majestade escolheu o único meio possível para justificar-me. — A senhora me agradece? — Com toda a minha alma. Vossa Majestade procedeu como um rei! Eu, como uma rainha! Não é verdade? — Está bem, — respondeu o rei, jubiloso, — acabaremos vencendo, afinal, todas essas baixezas. Quando a serpente houver sido, definitivamente, esmagada pela senhora e por mim, espero que possamos viver tranquilos. Beijou-a na testa e recolheu aos seus aposentos.

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Entretanto, na extremidade da galeria, o Sr. de Rohan encontrava Boehmer e Bossange meio desmaiados, um nos braços do outro.

Depois, alguns passos adiante, avistou o seu estribeiro, que, aterrado pelo desastre, suplicava um olhar do amo.

— Senhor, — disse o príncipe Luís ao oficial que o conduzia, — passando aqui o dia todo, deixarei muita gente preocupada; não posso mandar anunciar em minha casa que fui preso? — Oh! Monsenhor, contanto que ninguém vos veja, — respondeu o jovem tenente. Agradeceu o cardeal; logo, falando em alemão ao estribeiro, rabiscou

algumas palavras numa página do seu missal, que rasgou. E, por trás do oficial, que ficara vigiando para não ser surpreendido,

enrolou a folha de papel e deixou-a cair. — Estou às vossas ordens, senhor, — disse ao tenente dos guardas. Desapareceram ambos. O estribeiro atirou-se ao papel, como um abutre à presa, arremessou-se para

fora do castelo, saltou sobre o seu cavalo e arrancou na direção de Paris. O cardeal pôde vê-lo à desfilada na campina, por uma das janelas da escada

que descia com o seu condutor. — Ela me perde, — murmurou; — e eu salvo-a! É por vós, meu rei, que

ajo; é por vós, meu Deus! que ordenais o perdão das injúrias; por vós, perdoo aos outros... Perdoai-me!

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LXXIX

Os relatórios

ENQUANTO o rei, voltando feliz ao seu apartamento, assinava a ordem para conduzir o Sr. de Rohan à Bastilha, entrou no gabinete o Sr. Conde da Provença, e fêz ao Sr. de Breteuil uns sinais que este, apesar de todo o seu respeito e boa vontade, não pôde compreender.

Mas não era ao Ministro da Justiça que se dirigiam os sinais; o príncipe multiplicava-os assim com o intuito de chamar a atenção do soberano, que estava olhando num espelho enquanto redigia a ordem.

Aquela gesticulação surtiu efeito: o rei viu os sinais e, depois de haver dispensado o Sr. de Breteuil:

— Por que estáveis fazendo sinal a Breteuil? — perguntou ao irmão. — Oh! Sire. . . — Essa vivacidade de gestos, esse ar preocupado, significam alguma coisa? — Sem dúvida, mas... — Se não quiserdes*- não precisais falar, meu irmão, — disse Luís XVI com ar de enfado. — Sire, acabo de saber da prisão do Sr. Cardeal de Rohan. — Pois sim, mas por que essa notícia, meu irmão, pode causarmos tamanho alvoroço? Não vos parece culpado o Sr. de Rohan? Acaso faço mal abatendo também os poderosos? — Mal? não, meu irmão. Vossa Majestade não faz mal. Não é isso o que eu quero dizer. — Eu ficaria muito surpreso, Sr. Conde da Provença, se désseis ganho de causa, contra a rainha, ao homem que busca desonrá-la. Acabo de ver a rainha, meu irmão, e uma palavra dela bastou... — Oh! Sire, Deus me livre de acusar a rainha! Sua Majesta de. .. minha irmã, não tem amigo mais dedicado do que eu. Quantas vezes não me foi dado defendê-la, pelo contrário, e digo-o sem intenção de censura, até contra Vossa Majestade? — Em realidade, meu irmão, ela é acusada muitas vezes?

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— Não tenho sorte, Sire; Vossa Majestade ataca-me a cada palavra que pronuncio. . . eu queria dizer que a própria rainha não me levaria a sério se eu parecesse duvidar da sua inocência. — Nesse caso, vós vos congratulais comigo pela humilhação que impus ao cardeal, pelo processo que daí resultará, pelo escândalo que porá termo a todas as calúnias que ninguém se atreveria a lançar contra uma simples dama da corte, mas de que todos se fazem eco, pretextando que a rainha está acima dessas misérias? — Sim, Sire, aprovo de todo em todo o procedimento de Vossa Majestade, e digo mais: não poderia haver melhor solução para o caso do colar. — Por Deus! meu irmão, — disse êle, — nada mais claro. Não se vê aqui o Sr. de Rohan gloriando-se da familiar amizade da rainha, concluindo, em nome dela, a compra de uns brilhantes qu ela recusou, e deixando que se diga que esses brilhantes foram fur tados por ela ou nos aposentos dela? É monstruoso, e, como dizia Sua Majestade: Que julgariam os outros se eu tivesse por compadre o Sr. de Rohan nesse escuso negócio? — Sire... — De resto, não ignorais, meu irmão, que uma calúnia nunca se detém a meio do caminho; ora, a leviandade do Sr. de Rohan compromete a rainha, mas o relato dessa leviandade a desonra. — Repito que Vossa Majestade agiu muito bem no tocante ao caso do colar. — Ué! — atalhou o rei, surpreso, — haverá outro caso? — Mas, Sire. . . a rainha deve ter-lhe dito... — Dito. . . o quê? — Sire, Vossa Majestade quer embaraçar-me. É impossível que a rainha não lhe tenha dito... — O que, senhor? O quê? — Sire... — Ah! as fanfarronadas do Sr. de Rohan, as suas reticências, as suas pretensas correspondências? — Não, Sire, não. — Então, o quê? As entrevistas que a rainha teria concedido ao Sr. de Rohan para tratarem do negócio do colar. .. — Não, Sire, não é isso. — A única coisa que sei, — volveu o rei, — é que tenho na rainha uma confiança absoluta, que ela merece pela nobreza do seu caráter. Seria muito fácil para Sua Majestade calar o que está acontecendo. Ser-lhe-ia facílimo pagar ou deixar que outros pagassem, pagar ou deixar que falassem; pondo um paradeiro a esses mistérios que ameaçam converter-se em escândalos, provou-me que apela para mim antes de apelar para o público. Foi a mim que ela mandou chamar, a mim me cometeu a incumbência de vingar-

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-lhe a honra. Tomou-me por confessor, por juiz, e contou-me tudo. — Pois bem! — replicou o Conde da Provença, menos enleado do que devia estar, porque sentia a convicção do rei menos sólida do que este queria aparentá-la, — Vossa Majestade volta a duvidar da minha amizade, do meu respeito à rainha, minha irmã. Se comigo se há com tanta susceptibilidade, não lhe direi nada, receando sempre, eu que a defendo, passar por inimigo ou acusador. E, todavia, veja como isso não tem lógica. As confissões da rainha já o levaram a encontrar uma verdade que a justifica. Por que não há de querer Vossa Majestade que se produzam aos seus olhos outras clarezas, mais indicadas ainda para revelar toda a inocência da nossa soberana? — É que. . . — disse o rei constrangido, — sempre começais, meu irmão, por circunlóquios em que me perco. — Precauções oratórias, Sire, ausência de calor. Peço perdão a Vossa Majestade, mas esse é o meu vício de educação. Cícero me estragou. — Meu irmão, Cícero só se mostra obscuro quando defende uma causa má; tendes uma boa nas mãos: sede claro, pelo amor de Deus! — Criticar o meu modo de falar é impor-me silêncio. — Pronto! agora é o irritabile genus rhetorum que se alvorota, — exclamou o rei, deixando-se embair pela astúcia do Conde,da Provença. — Aos fatos, advogado, aos fatos! Que sabeis além do que me disse a rainha? — Meu Deus! Sire, nada e tudo. Precisemos primeiro o que lhe disse a rainha. — A rainha me disse que não está com o colar. — Bom. — Disse-me que não assinou o recibo dos joalheiros. — Bem! — Disse-me que tudo o que se referia a um cambalacho com o Sr. de Rohan era uma falsidade inventada pelos seus inimigos. — Muito bem! Sire. — Disse-me, enfim, que nunca deu ao Sr. de Rohan o direito de acreditar que êle fosse, para ela, mais do que um súdito, um indiferente, um desconhecido. — Ah!. . . ela disse isso... — E num tom que não admitia réplica, pois o cardeal não replicou. — Então, Sire, se não replicou, o cardeal confessa-se mentiroso e, com essa retratação, dá razão aos outros rumores que correm sobre certas preferências demonstradas pela rainha a certas pessoas. — Oh! meu Deus! mais novidades? — acudiu o rei, desalentado.

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— Nada, senão coisas muito absurdas, como verá. Desde o momento em que se demonstrou que o Sr. de Rohan não passeou com a rainha... — Como! — bradou o rei, — dizia-se que o Sr. de Rohan havia passeado com a rainha? — Foi exatamente o quf ficou desmentido pelas declarações da rainha e pela retratação do Sr. de Rohan; mas, afinal, desde que isso se comprovou, Vossa Majestade há de compreender que devem ter procurado indagar, pois a maldade humana não se absteria de fazê-lo, por que a rainha passeava à noite no parque de Versalhes. — À noite, no parque de Versalhes! A rainha!... — E com quem passeava, — continuou friamente o Conde da Provença. — Com quem?. . . — murmurou o rei. — Sem dúvida!... porventura se despregam os olhos do que faz uma rainha? E esses olhos, que nem o brilho da luz nem o brilho da majestade logram ofuscar, não se tornam mais clarividentes ainda quando se trata de enxergar à noite? — Meu irmão, estais dizendo coisas infames! Cuidado! — Estou repetindo, Sire, e repetindo com tamanha indignação, que levarei Vossa Majestade a descobrir a verdade. — Como! Dizem que a rainha andou passeando, à noite, acompanhada... no parque de Versalhes! — Acompanhada, não, Sire, mas em companhia de uma pessoa só. . . Se dissesem acompanhada, a coisa não valeria a pena de que lhe déssemos atenção. O rei, explodindo de repente: — Provar-me-eis que estais repetindo, — bradou; — provai, por tanto, que se falou nisso. — Muito facilmente, — respondeu o Sr. da Provença. — Há quatro testemunhas: a primeira é o meu capitão de caça, que viu a rainha dois dias seguidos, ou melhor, duas noites seguidas, deixando o parque de Versalhes pela porta da montaria. Aqui está o documento, assinado por êle. Leia. O rei pegou a tremer na folha de papel, leu-a e devolveu-a ao irmão. — Mas há outro depoimento, Sire, ainda mais curioso: o do guarda

noturno de Trianon. Declara êle que a noite estava bonita, que um tiro foi dado, sem dúvida por caçadores clandestinos, no bosque de Satory; que, no tocante aos parques, estes não apresentaram novidade alguma, salvo no dia em que Sua Majestade a rainha foi neles passear pelo braço de um fidalgo. Veja, o depoimento é explícito.

O rei tornou a ler, estremeceu e deixou cair os braços ao longo do corpo.

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— A terceira testemunha, — continuou, imperturbável, o Sr. Conde da Provença, — é o suíço da porta de Leste. Esse homem viu e reconheceu a rainha no momento em que ela saía pela porta da montaria. Descreve-lhe o vestuário; veja, Sire; diz também,que, de longe, não pôde reconhecer o fidalgo que Sua Majestade deixava; está escrito; mas que, pelo jeito, lhe pareceu um oficial. O relatório está assinado. E acrescenta uma coisa curiosa, a saber, que a presença da rainha não pode ser posta em dúvida, porque Sua Majestade estava acompanhada da Sra. de La Motte, sua amiga. — Amiga da rainha! — gritou o rei, furioso. — Sim, está escrito: Amiga da rainha! — Não queira mal a esse honrado servidor, Sire, que só pode ser culpado de um excesso de zelo. Incumbido de guardar, guarda; de vigiar, vigia. O último, — continuou o Conde da Provença, — me parece o mais claro de todos. É o mestre serralheiro, encarregado de verificar se todas as portas estão fechadas depois do toque de recolher. Esse homem, que Vossa Majestade conhece, atesta que viu entrar a rainha com um fidalgo nos banhos de Apoio. Pálido, sufocando o ressentimento, el-rei arrancou o papel das mãos do

conde e leu-o. Não obstante, durante a leitura, o Sr. da Provença continuou falando: — É verdade que a Sra. de La Motte estava fora, a uns vinte passos de distância, e que a rainha não ficou mais de uma hora naquela sala. — Mas o nome do fidalgo? — bradou o rei. — Sire, não é no depoimento que se lhe encontra o nome; para isso cumpre que Vossa Majestade se dê ao trabalho de percorrer este último relatório, de um guarda florestal que se achava escondido atrás do muro, cerca dos banhos. — Datado do dia seguinte, — observou o rei. — Exatamente, Sire, e que viu a rainha sair do parque pelo portãozinho e espiar para fora: ela estava de braço com o Sr. De Charny! — O Sr. de Charny!. . . — rebradou o rei, meio louco de cólera e de

vergonha; — bem... bem... Esperai-me aqui, conde, que vamos afinal saber a verdade.

E atirou-se para fora do gabinete.

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LXXX

A última acysacão

NO MOMENTO em que o rei saíra do apartamento da rainha esta correra para o toucador, de onde o Sr. de Charny pudera ouvir tudo. Abriu a porta e voltou para fechar, pessoalmente, a do apartamento; depois, deixando-se cair sobre uma poltrona, como se estivesse demasiado fraca para resistir a tantos choques, esperou em silêncio o que sobre ela decidiria o Sr. de Charny, seu juiz mais temível.

Mas não esperou por muito tempo; o conde saiu do toucador mais triste e mais pálido que nunca.

— E então? — perguntou ela. — Senhora, — replicou o moço, — como vê, tudo se opõe a que sejamos amigos. Se não é a minha convicção que a fere, serão, doravante, os rumores públicos; depois do escândalo que hoje estourou, já não há repouso para mim, nem tréguas para si. Os inimigos, mais encarniçados ainda após a primeira ferida que lhe causaram, caíram sobre a senhora para beber-lhe o sangue, como fazem as moscas sobre a gazela ferida... — Procurais há muito tempo, — atalhou, melancólica, a rainha, — uma palavra natural para dizer, e não a encontrais. — Creio que nunca dei motivo a Vossa Majestade para suspeitar da minha franqueza, — retrucou Charny; — se ela, por vezes, explodiu, fê-lo, ao contrário, com excessiva dureza; peço-lhe perdão. — Então, — voltou a rainha, muito comovida, — este barulho, esta perigosa agressão contra um dos maiores fidalgos do reino, a minha declarada hostilidade contra a Igreja, a minha reputação exposta às paixões dos parlamentos, nada disso vos basta? Já não falo da confiança, abalada para sempre, do rei; isso nem sequer vos preocupa, não é mesmo?. . . O rei! que é o rei. . . um marido! E sorriu com tão doloroso azedume que de seus olhos jorraram lágrimas. — Oh! — bradou Charny, — a senhora é a mais nobre, a mais generosa

das mulheres. Se não lhe respondo de pronto, como me

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pede o coração, é porque me sinto inferior a tudo, e não me atrevo a profanar-lhe o sublime coração pedindo nele um lugar.

— Sr. de Charny, julgais-me culpada. — Senhora!... — Sr. de Charny, destes crédito às palavras do cardeal. — Senhora!... — Sr. de Charny, dizei-me: que impressão vos causou a atitude do Sr. de Rohan? — Devo confessar-lhe, senhora, que o Sr. de Rohan não foi nem um insensato, como a senhora lho reprochou, nem um fraco, como se poderia acreditar; é um homem convicto do que diz, um homem que a amava, que a ama e que, neste momento, está sendo vítima de um erro que o conduzirá, a êle, à ruína, e à senhora... — A mim? — À senhora, a uma desonra inevitável. — Santo Deus! — Ergue-se diante de mim um espectro ameaçador, essa mulher odiosa, a Sra. de La Motte, desaparecida quando o seu testemunho podia restituir-nos a todos o repouso, a honra e a segurança para o futuro. Essa mulher é o génio mau de Vossa Majestade, o flagelo da realeza; essa mulher, que a senhora imprudentemente admitiu à participação dos seus segredos e, talvez, infelizmente, da sua intimidade. .. — Dos meus segredos, da minha intimidade! Ah! senhor, por favor! — revidou a rainha. — Senhora, disse-lhe claramente o cardeal, e claramente o provou, que Vossa Majestade havia concertado com êle a compra do colar. — Ah!... voltais ao assunto, Sr. de Charny! — acudiu a rainha, corando. — Perdão, perdão, bem vê que tenho o coração menos generoso do que o seu, bem vê que sou indigno de ser chamado a conhecer-Ihe os pensamentos. Procuro suavizar e irrito. — Vede, senhor, — tornou a rainha, voltando a uma sobranceria impregnada de cólera, — o que o rei acredita toda a gente pode acreditar; não serei mais fácil para os meus amigos do que para meu marido. Parece-me que um homem não pode gostar de ver uma mulher quando não a estima. Não me refiro a vós, — prosseguiu, vivamente; — não sou uma mulher, sou uma rainha; não sois um homem, sois um juiz para mim. Charny fêz uma reverência tão profunda, que a rainha deve ter achado

suficientes a reparação e a humildade daquele súdito fiel. — Eu vos havia aconselhado, — disse ela, de repente, — a ficar em vossas

terras; era uma atitude prudente. Longe da corte, que

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repugna aos vossos costumes, à vossa retidão, e, seja-me permitido dizê-lo à vossa inexperiência; longe, repito, da corte, teríeis apreciado melhor os personagens que desempenham o seu papel neste teatro. É preciso manter a ilusão de ótica, Sr. de Charny, é preciso conservar o carmim e os saltos altos diante da multidão. Rainha demasiado propensa à condescendência, deixei de entreter, entre os que me amavam, o prestígio fulgurante da realeza. Ah! Sr. de Charny, a auréola que desenha uma coroa na fronte das rainhas dispensa-as da castidade, da doçura, do espírito, dispensa-as sobretudo do coração. A rainha, senhor, domina: de que lhe serve fazer-se amar?

— Eu não saberia dizer, senhora, — respondeu Charny, muito comovido, — o quanto me faz mal a severidade de Vossa Majestade. Pode ser que me tepha esquecido de que é minha rainha; mas, faça-me essa justiça: nunca me esqueci de que é a primeira das mulheres dignas do meu respeito e d a . . . — Não termineis, que não estou mendigando. Sim, eu já disse que a ausência vos é necessária. Alguma coisa me palpita que o vosso nome acabará sendo pronunciado em tudo isto. — Impossível, senhora! — Impossível? Pensai um pouco na força que têm aqueles que, há seis meses, brincam com a minha reputação e a minha vida; não dizíeis que o Sr. Cardeal está convencido de que só agiu em razão de um erro a que foi levado? Aqueles que operam convicções semelhantes, Sr. Conde, aqueles que causam erros semelhantes, terão força suficiente para provar que sois um súdito desleal para o rei e, para mim, um vergonhoso amigo. Os que inventam com tamanha felicidade o falso, descobrem muito facilmente o verdadeiro! Não percais tempo, é grave o perigo; recolhei-vos às vossas terras, fugi ao escândalo que resultará de todo este processo: não quero que o meu destino vos arraste, não quero que se perca a vossa carreira. Eu que, graças a Deus! possuo a inocência e a força, que não tenho uma única mancha em minha vida, que estou resolvida a abrir, se preciso fôr, o peito para mostrar aos meus inimigos a pureza de meu coração, eu resistirei. Para vós, no entanto, só haveria ruína, difamação, prisão talvez; levai de volta esse dinheiro tão nobremente oferecido, levai a certeza de que nenhum dos generosos movimentos de vossa alma me escapou, nenhuma de vossas dúvidas me feriu, nenhum de vossos sofrimentos me deixou indiferente; parti, sou eu quem vo-lo diz, parti e buscai alhures o que já não vos pode dar a rainha de França: a fé, a esperança, a felicidade. De hoje a que Paris saiba da prisão do cardeal, a que se convoque o parlamento, a que se produzam teste munhas, calculo uns quinze dias. Parti! vosso tio tem dois navios aprestados em Cherburgo e em Nantes: escolhei um deles, mas afastai-vos de mim. Eu trago má sorte; afastai-vos de mim. Só

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me interessava uma coisa neste mundo, e já que ela me falta, sinto-me perdida.

Pronunciando estas palavras, ergueu-se bruscamente a rainha e pareceu dar por concluída a audiência.

Charny aproximou-se dela com o mesmo respeito, porém mais rápido. — Vossa Majestade, — disse, com voz alterada, — acaba de ditar-me o

meu dever. Não é em minhas terras, não é fora de França que está o perigo, é em Versalhes, onde suspeitam da senhora, é em Paris, onde a senhora será julgada. Impende que se desfaçam todas as suspeitas, que todas as prisões se justifiquem, e, como Vossa Majestade não poderia ter testemunha mais real nem apoio mais decidido, fico. Os que sabem tantas coisas, senhora, não as calarão. Mas, pelo menos, teremos a ventura, inestimável para as pessoas de bem, de encontrar, cara a cara, os nossos inimigos. Tremam eles diante da majestade de uma rainha inocente e diante da coragem de um homem melhor. Fico, senhora, e, pode crê-lo, Vossa Majestade não precisa esconder-me por mais tempo o seu pensamento; sabem todos que não fujo; a senhora sabe que nada temo; e sabe também que, para não tornar a ver-me, não precisa exilar-me. Oh! de longe os corações se entendem, as aspirações de longe são mais ardentes! Quer que eu parta, por sua causa e não pela minha; nada receie; embora me conserve à distância de poder socorrer-lhe, de poder defendê-la, já não estarei à distância cie poder ofendê-la ou prejudicá-la; Vossa Majestade não me viu, não é verdade? nos oito dias em que morei a cem toesas do seu apartamento, espiando cada um de seus gestos, contando-lhe os passos, vivendo a sua vida?. .. Pois bem! o mesmo sucederá desta feita, pois não posso executar-lhe a vontade, não posso partir! De resto, que lhe importa!. .. Acaso pensará em mim?

Ela fêz um gesto que a afastava. — Como quiserdes, — replicou, — mas. . . já me compreendestes: é mister que nunca vos enganeis sobre as minhas palavras; não sou uma sécia, Sr. de Charny; o privilégio de uma verdadeira rainha é dizer o que pensa e pensar o que diz: assim sou eu. Um dia, senhor, vos escolhi entre todos. Não sei o que me arrastava o coração para o vosso lado. Eu ansiava uma amizade forte e pura; tivestes muitas ocasiões de vê-lo, não é verdade? O mesmo não acontece hoje, e já não penso o que pensava. A vossa alma deixou de ser irmã da minha. E por isso vos digo com a mesma franqueza: poupemo-nos um ao outro. — Está bem, senhora, — atalhou Charny, — nunca acreditei que me tivesse escolhido... Mas não resisto à ideia de perdê-la. Sinto-me bêbedo de ciúme e de terror. Não sofrerei que a senhor me retome o seu coração; deu-mo, pertence-me, ninguém mo tirará

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senão tirando-me a vida. Seja mulher, seja boa, não abuse de minha fraqueza, pois ainda há pouco me censurava as dúvidas, e agora me esmaga com as suas!

— Coração de criança, coração de mulher, — disse ela. . . — E ainda quereis que eu conte convosco!... Belos defensores so mos um do outro! Fraco! sim, fraco, e eu também, infelizmente, não sou mais forte do que vós! — Eu não a amaria, — murmurava êle — se fosse diferente do que é. — Como! — bradou Maria Antonieta em tom apaixonado, — esta rainha maldita, perdida, esta mulher que um parlamento vai julgar, a opinião, condenar, o marido, seu rei, expulsar talvez, esta mulher encontra um coração que a ama! — Um servidor que a venera e lhe oferece todo o sangue de seu coração em troca de uma lágrima que a viu chorar. — Esta mulher, — rebradou a rainha, — é bendita, é orgulhosa, é a primeira das mulheres, a mais feliz de todas! Esta mulher é feliz demais, Sr. de Charny! Não sei como pôde queixar-se; perdoai-lho! O rapaz caiu aos pés de Maria Antonieta e beijou-os, num transporte de

amor religioso. Nesse momento se abriu a porta do corredor secreto, e o rei se deteve,

trémulo e como que fulminado no limiar. Acabava de surpreender aos pés da rainha o homem acusado pelo Sr. da

Provença.

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LXXXI

O pedido de casamento A RAINHA e Charny trocaram um olhar tão cheio de terror que o

seu mais cruel inimigo os teria compadecido naquele momento. Ergueu-se lentamente o rapaz e saudou o rei com profundo respeito. Via-se o coração de Luís XVI pulsar com violência debaixo dos bofes de

rendas. — Ah! — disse êle com voz surda... — o Sr. de Charny! O conde respondeu apenas por nova saudação. Sentiu a rainha que não podia falar e que estava perdida. Mas o rei continuou, com incrível compostura: — Sr. de Charny, é pouco honroso para um fidalgo ser surpreendido em flagrante delito de roubo. — De roubo! — murmurou o moço. — De roubo! — repetiu a rainha, que cuidava ainda ouvir sibilarem as horríveis acusações tocantes ao colar, e supunha vê-las salpicando também o conde. — Sim, — prosseguiu o rei, — ajoelhar-se diante da mulher de outro homem é um roubo; e quando essa mulher é uma rainha, senhor, chama-se ao crime lesa-majestade. Farei que vos diga isso, Sr. de Charny, o meu Ministro da Justiça. O conde ia falar; ia protestar inocência, quando a rainha, impaciente na sua

generosidade, não quis permitir que taxassem de indigno o homem que ela amava; acudiu-lhe.

— Sire, — obtemperou, vivamente, — Vossa Majestade, segundo me parece, está no caminho das más suspeitas e das suposições desfavoráveis; essas suspeitas e essas prevenções não têm lugar aqui. Vejo que o respeito tolhe a língua do conde; mas eu, que lhe conheço o fundo do coração, não deixarei que o acusem sem defendê-lo.

A essa altura se deteve, esgotada pela emoção, aterrada pela mentira que seria obrigada a encontrar e desesperada porque a não encontrava.

Mas essa hesitação, que parecia odiosa ao seu altivo espírito de rainha, era, pura e simplesmente, a salvação da mulher. Nos

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horríveis embates, em que não raro se jogam a honra e a vida da mulher surpreendida, um minuto ganho basta a salvar, como um segundo perdido bastara a perder.

Instintivamente, a rainha aproveitara a ocasião da demora e atalhara as suspeitas do rei; confundir-lhe o espírito, ao mesmo tempo que reafirmara o do conde. Esses minutos decisivos têm asas rápidas, que levam tão longe a convicção de um ciumento, que quase nunca torna a encontrar-se, a não ser que o demónio protetor dos invejosos de amor a traga de volta nas suas.

— Dir-me-á, porventura, — respondeu Luís XVI, passando do papel de rei ao de marido inquieto, — que não vi o Sr. de Charny ajoelhado a seus pés? Ora, para que se ajoelhe alguém sem que o tornem a levantar, é preciso. .. — É preciso, Sire, — reconveio, severa, a rainha, — que um súdito da rainha de França tenha uma graça que lhe pedir... Se não me engano, trata-se de um caso muito frequente na corte. — Uma graça que lhe pedir! — bradou Luís XVI. — E uma graça que eu não podia conceder, — prosseguiu ela. — Não fora isso, e o Sr. de Charny não teria insistido, juro-lho, e eu teria tido a alegria de satisfazer o pedido de um fidalgo que me merece particular estima. Respirou Charny. O olhar do rei tornara-se indeciso, a sua fronte

desarmava-se gradativamente da insólita ameaça que nela pusera a surpresa. Entrementes, Maria Antonieta procurava, desesperada por ser obrigada a

mentir, aflita por nada encontrar que lhe parecesse verossímil. Confessando-se incapaz de conceder ao conde a graça solicitada, acreditara

ter cativado a curiosidade do rei e esperava que nisso se cifrasse o interrogatório. Enganava-se, porém: qualquer outra mulher teria sido mais hábil mostrando-se menos dura; mas, para ela, era um suplício atroz mentir diante do homem amado. Desvelar-se à luz falsa e miserável da hipocrisia das comédias equivalia a rematar todas as falsidades, todas as astúcias, todos os ma-nejos da intriga do parque com um desfecho conforme à sua infâmia; era quase revelar-se culpada: era pior do que a morte.

Hesitou ainda. Teria dado a vida para que Charny encontrasse a mentira; mas êle, fidalgo leal, não podia fazê-lo, nem sequer pensava nisso. Receava até, na sua delicadeza, parecer pressuroso em defender a honra da rainha.

O que aqui escrevemos em muitas linhas, em demasiadas linhas talvez, embora a situação fosse fecunda, meio minuto bastou para que o sentissem e exprimissem os três atores.

Maria Antonieta esperava, suspensa dos lábios do rei, a pergunta que afinal estourou.

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Ó COLAR DA RAINHA 593

— Vamos a ver, senhora, diga-me qual é a graça que, solicitada em vão pelo Sr. de Charny, o levou a ajoelhar-se a seus pés?

E, como se quisesse atenuar a dureza da pergunta suspeitosa, ajuntou: — Serei talvez mais feliz do que a senhora, e o Sr. de Charny não precisará ajoelhar-se aos meus. — Sire, eu já lhe disse que o Sr. de Charny me pedia uma coisa impossível. — Mas que coisa? — Que é o que se pode pedir de joelhos?. .. — dizia a rainha entre si; — que é o que se pode implorar de mim e que me seja impossível conceder?... Vejamos! vejamos! — Estou esperando, — insistiu o rei. — Sire, é que... o pedido do Sr. de Charny é um segredo de família. — Não há segredos para o rei, que é senhor em seu reino e pai de família interessado na honra, na segurança de todos os seus súditos, seus filhos; até, — acrescentou Luís XVI com temível dignidade, — até quando esses filhos desnaturados atacam a honra e a segurança do pai. A rainha deu um pulo ouvindo essa última ameaça do perigo. — O Sr. de Charny, — exclamou, com espírito conturbado e mão trémula, — o Sr. de Charny pretendia obter de mim... — O que, senhora? — Permissão para casar. — Deveras! — bradou o monarca, a princípio tranquilizado. Logo, remergulhando no seu inquieto ciúme: — Muito bem! — continuou, sem notar o quanto sofria a pobre mulher por haver pronunciado aquelas palavras, nem a impressionante palidez de Charny vendo o sofrimento da rainha; — mas por que não é possível casar o Sr. de Charny? Acaso não pertence êle à boa nobreza? Não fêz uma bela fortuna? Não é corajoso e bem apessoado? Em verdade, para recusar-lhe o acesso a uma família, ou para que o repila uma mulher, ela terá de ser princesa de sangue ou casada; a meu ver, somente essas duas razões poderiam representar uma impossibilidade. Portanto, senhora, diga-me o nome da mulher que o Sr. de Charny pretende desposar, e, se não estiver incluída em nenhum desses dois casos, garanto-lhe que eliminarei as dificuldades. .. para agradar-lhe. Arrastada pelo perigo sempre crescente, levada pelas próprias

consequências da primeira mentira, tornou a rainha com energia: — Não, senhor, não; há dificuldades que Vossa Majestade não pode vencer. A que nos preocupa é uma delas. — Mais uma razão para que eu saiba o que é impossível ao rei, — atalhou Luís XVI com surda cólera.

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Charny considerou a rainha, que parecia prestes a cair. Deu um passo na sua direção; deteve-o, porém, a própria imobilidade do rei. Com que direito êle, que não era nada para ela, teria oferecido a mão ou o braço à mulher que o rei e o marido desamparava?

— Qual será, — perguntava Maria Antonieta a si mesma, — o poder contra o qual o rei não tem ação? Mais uma ideia, mais uma ajuda, meu Deus!

A súbitas, um clarão atravessou-lhe o espírito. — Ah! é o próprio Deus quem me manda este auxílio! — murmurou. — As

que pertencem a Deus não lhe podem ser tomadas, nem mesmo pelo rei. Logo, erguendo a cabeça: — Senhor, — disse, finalmente, — a mulher que o Sr. de Charny deseja esposar está num convento. — Ah! — bradou o rei, — eis uma razão; com efeito, é muito difícil arrancar a Deus o que lhe pertence para dá-lo aos homens. Mas é estranho que o Sr. de Charny se haja apaixonado tão subitamente: nunca ninguém me falou nisso, nem sequer o tio dele, que pode alcançar tudo de mim. Quem é a mulher que amais, Sr. de Charny? Dizei-mo, por favor. Sentiu a rainha uma dor pungente. Ia ouvir um nome pronunciado pela

boca de Oliveiros; ia sofrer a tortura daquela mentira. E talvez Charny revelasse, ou um nome outrora amado, uma lembrança ainda sangrenta do passado, ou um nome, germe de amor, vaga esperança de futuro. Para não receber o golpe terrível, adiantou-se; e exclamou de repente:

— Vossa Majestade conhece a pessoa que o Sr. de Charny está pedindo em casamento; é... a Srta. Andreia de Taverney. Charny despediu um grito e escondeu o rosto entre as mãos. A rainha levou a mão ao coração e foi cair, quase desfalecida, na poltrona.

— A Srta. de Taverney! — repetiu o rei, — a Srta. de Taverney, que foi para o convento de São Dinis? — Sim, Sire, — articulou fracamente a rainha. — Mas ela não professou, que eu saiba. — Mas deve professar. — Impor-lhe-emos uma condição, — prometeu o rei, que ajuntou, entretanto, com um derradeiro toque de desconfiança, — e por que haveria de professar? — Porque é pobre, — respondeu Maria Antonieta; — Vossa Majestade não lhe enriqueceu o pai, — acrescentou, duramente. — Está aí um erro que hei de reparar, senhora; o Sr. de Charny ama-a. . . A rainha estremeceu e lançou ao rapaz um olhar ávido, como a suplicar-

lhe que o negasse.

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O COLAR DA RAINHA 595

Charny considerou-a fixamente e não disse nada. — Bem! — voltou o rei, que lhe interpretou o silêncio como um

respeitoso assentimento; — e, sem dúvida, a Srta. de Taverney ama o Sr. de Charny? Dar-lhe-ei por dote as quinhentas mil libras que precisei recusar no outro dia, para a senhora, ao Sr. de Calonne. Agradecei à rainha, Sr. de Charny, o haver ela decidido contar-me esse caso, assegurando assim a vossa felicidade.

Charny deu um passo para a frente e inclinou-se como uma pálida estátua a quem Deus, por um milagre, houvesse momentaneamente dado vida.

— Isso não vale a pena de vos ajoelhardes outra vez, — tornou o rei, com a leve nuança de zombaria vulgar que não raro tem perava nele a tradicional nobreza dos antepassados.

A rainha estremeceu e estendeu, num movimento espontâneo, as mãos ao rapaz. Êle se pôs genuflexo diante dela e nas formosas mãos geladas depôs-lhe um beijo em que rogava a Deus que lhe permitisse exalar a alma.

— Vamos, — disse o rei, — deixemos agora a Sua Majestade o cuidado de vossos negócios; vinde, senhor, vinde.

E tão depressa se afastou que Charny, no limiar da porta, pôde voltar-se e ver o inefável sofrimento daquele eterno adeus que lhe enviava os olhos da rainha.

Fechou-se entre eles a porta, como uma barreira a partir de então intransponível para os seus inocentes amores.

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LXXXII

São Dinis

A RAINHA ficou só e desesperada. Tantos golpes a afligiam ao mesmo tempo, que já não sabia de que lado lhe vinha a dor mais viva.

Depois de ficar mais de uma hora naquele estado de dúvida e abatimento, cuidou consigo só que já era tempo de buscar uma saída. O perigo aumentava. Ufano de uma vitória obtida sobre as aparências, o rei se daria pressa de propagá-la. E podia acontecer que a notícia fosse recebida de tal maneira lá fora, que se perdesse todo o proveito da fraude cometida.

Aquela fraude, como a reprochava a si mesma a rainha, como teria querido reter ainda a palavra que já voara, como teria querido arrancar, até de Andreia, a quimérica felicidade que ela talvez recusasse!

Nesse ponto, com efeito, surgia outra dificuldade. O nome de Andreia salvara tudo diante do rei. Mas qual seria a reação daquele espírito caprichoso, independente, voluntarioso, que se chamava Srta. de Taverney? Quem poderia fiar-se de que a soberba criatura consentisse em alienar a liberdade e o futuro em benefício de uma rainha que, poucos dias antes, deixara como inimiga?

Que sucederia então? Se Andreia recusasse, o que era muito possível, abaixo viria todo o edifício da mentira. A rainha passaria por uma intrigante medíocre, Charny por um medíocre chi-(hisbéu, um mentiroso, e a calúnia, transformada em acusação, assumiria as proporções de um adultério incontestável.

Sentiu Maria Antonieta fugir-lhe a razão diante dessas reflexões; por pouco não cedeu à possibilidade delas; mergulhou entre as mãos a cabeça ardente, e esperou.

De quem se fiar? Quem era, afinal, amiga da rainha? A Sra. de Lamballe? Oh! a razão pura, a fria e inflexível razão! Por que tentar aquela imaginação virginal, que, de resto, não quereriam compreender as damas de honor, servis aduladoras da prosperidade, trémulas ao sopro do desfavor, dispostas talvez a dar-lhe uma lição quando ela mais necessitasse de socorro?

Restava apenas a própria Srta. de Taverney, coração de diamante, cujas arestas podiam cortar o vidro, mas cuja invencível

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O COLAR DA RAINHA 597

solidez, cuja pureza profunda, eram as únicas capazes de simpatizar com as grandes dores de uma rainha.

Maria Antonieta iria, portanto, procurá-la. Expor-lhe-ia a sua desgraça, suplicar-lhe-ia que se imolasse. Andreia, sem dúvida, recusaria, porque não era das que aceitam imposições de uma vontade alheia; mas, pouco a pouco, abrandada pelos seus rogos, acabaria consentindo. Aliás, quem sabe se, a essa altura, não seria possível obter um adiamento? Se, passado o primeiro fogo, o rei, satisfeito com o consentimento aparente dos dois noivos, não acabaria esquecendo?... Uma viagem, então, resolveria tudo. Ausentando-se por algum tempo, Andreia e Charny, até que a hidra da calúnia saciasse a fome, poderiam deixar dizer que haviam desfeito, amigavelmente, o compromisso, e ninguém suspeitaria sequer de que o projeto de casamento não passara de um logro.

Dessarte, a liberdade da Srta. de Taverney não se teria comprometido; a de Charny também não se alienaria. Desapareceria para a rainha o remorso horrível de haver sacrificado duas existências ao egoísmo da sua honra; essa mesma honra, que compreendia também a do marido e a dos filhos, não seria manchada, e ela poderia transmiti-la, sem mácula, à futura rainha de França.

Tais eram as suas reflexões. Assim cria haver tudo conciliado de antemão, conveniências e interesses

privados. Mas era mister raciocinar com firmeza lógica em face de tão medonho perigo. Era mister armar-se de todas as armas diante de um adversário difícil como a Srta. de Taverney, quando escutava o orgulho e o coração.

Tendo-se preparado, decidiu-se a partir. Bem quisera avisar Charny de que não desse nenhum passo em falso, mas nisso foi impedida pela ideia de que estava sendo, sem dúvida, vigiada por espias; que de sua parte tudo seria mal interpretado num momento como aquele; e que farte conhecia a retidão, o devotamento e a determinação de Oliveiros para convencer-se de que êle ratificaria quanto ela entendesse conveniente fazer.

Três horas soaram; o jantar de grande cerimónia, as apresentações, as visitas. A rainha recebeu toda a gente com o rosto sereno e uma afabilidade que nada lhe quitava ao reconhecido orgulho. Chegou mesmo a afetar em presença dos que supunha inimigos uma firmeza que, de ordinário, não se adequa aos culpados.

Nunca fora tão grande a afluência ao paço; a curiosidade nunca vasculhara tão profundamente os mais mínimos traços de uma rainha em perigo. Maria Antonieta tudo afrontou, consternou os inimigos e inebriou os amigos; fêz dos indiferentes, zelosos, dos zelosos, entusiastas; e a todos pareceu tão bela e tão grande que o rei lhe dirigiu publicamente as suas felicitações.

E seguida, terminada a recepção, depois que ela desafivelou do rosto os sorrisos de encomenda, depois que voltou a encontrar-

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598 ALEXANDRE DUMAS

-se com as suas recordações, isto é, com as suas dores, e se viu só, inteiramente só, trocou de roupa, pôs um chapéu cinzento de fitas e flores azuis, um vestido de seda côr de cinza, tomou o carro e, sem guardas, acompanhada apenas de uma dama, fêz-se conduzir a São Dinis.

Era a hora em que as religiosas, recolhidas às celas, passavam do modesto rumor do refeitório para o silêncio das meditações que precedem a última oração do dia.

A rainha mandou chamar ao locutório a Srta. Andreia de Ta-verney. Esta, ajoelhada, envolta no roupão de alva lã, contemplava pela janela a

lua que se erguia atrás das grandes tílias, e, na poesia da noite que começa, encontrava o tema de todas as preces ardentes, apaixonadas, que mandava a Deus para alívio de sua alma.

Bebia em longos sorvos a dor irremediável da ausência voluntária. Esse suplício só o conhecem as almas fortes; é, a um tempo, tortura e prazer. Assemelha-se, pelas angústias, às dores vulgares. Mas traz após si uma volúpia que só podem sentir os que sabem imolar a felicidade ao orgulho.

Andreia deixkva voluntariamente a corte, volutàriamente rompera com tudo aquilo que lhe pudesse alimentar o amor. Orgulhosa como Cleópatra, não pudera suportar sequer a ideia de que o Sr. de Charny pensasse em outra mulher, ainda que essa mulher fosse a rainha.

Não tinha prova nenhuma desse amor ardente a outra, pois teria, em caso contrário, extraído dessa prova toda a convicção que pode fazer sangrar um coração. Mas não vira Charny passar indiferente ao seu lado? Não suspeitara de que a rainha guardava, inocentemente sem dúvida, mas guardava as homenagens e a preferência de Charny?

De que lhe servia, assim, continuar em Versalhes? Para mendigar cumprimentos? Para solicitar sorrisos? Para obter, de tempos a tempos, o consolo de um braço oferecido, de um aperto de mão, quando, nos seus passeios, a rainha lhe emprestasse as cortesias de Charny por não poder recolhê-las no momento?

Não, nada de covardes fraquezas, nada de transações para aquela alma estóica. A vida com o amor e a preferência, o claustro com o amor e o orgulho ferido.

— Nunca! nunca! — repetia entre si a altiva; — aquele que amo na sombra, aquele que é para mim apenas uma nuvem, um retrato, uma lembrança, esse nunca me ofende, sempre me sorri, e sorri apenas para mim!

Eis por que passara tantas noites dolorosas, mas livres; eis por que, feliz por chorar quando se sentia fraca, por amaldiçoar quando se exaltava, preferia a ausência voluntária, que lhe permitia a inte-

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O COLAR DA RAINHA 599

gridade do seu amor e da sua dignidade, à faculdade de rever um homem que detestava por ser obrigada a amá-lo.

E, de resto, essas mudas contemplações do amor puro, esses divinos êxtases do sonho solitário, representavam muito mais a vida para a selvagem Andreia do que as festas luminosas em Versalhes, e a necessidade de curvar-se diante das rivais, e o terror de deixar que lhe escapasse um dia, diante de todos, o segredo encerrado no coração.

Dissemos que na noite do dia de São Luís a rainha foi procurar Andreia em São Dinis e a encontrou meditativa em sua cela.

Foram avisá-la, com efeito, de que a rainha acabava de chegar, que estava sendo recebida no locutório grande, e que Sua Majestade, logo após os primeiros cumprimentos, perguntara se podia falar com a Srta. de Taverney.

Coisa estranha! tanto bastou para que Andreia, coração amolecido pelo amor, saltasse ao encontro daquele perfume que lhe chegava de Versalhes, perfume maldito ainda na véspera, e tanto mais precioso quanto mais se afastava, precioso como tudo o que se evapora, como tudo o que se esquece, precioso como o amor!

— A rainha! — murmurou. — A rainha em São Dinis! A rainha está-me chamando! — Depressa, depressa! — responderam-lhe. Apressou-se, com efeito: atirou sobre os ombros o longo manto das

religiosas, apertou o cinto de lã em torno do vestido flutuante e, sem dirigir sequer um olhar ao seu espelhinho, seguiu a rodeira, que fora chamá-la.

Mal dera, porém, cem passos e sentiu-se humilhada por haver ficado tão alegre.

— Por que, — cuidou consigo só, — estremeceu meu coração? Por que haverá de interessar a Andreia de Taverney que a rainha de França visite o mosteiro de São Dinis? Será orgulho o que estou sentindo? A rainha não veio por minha causa. Será felicidade? Já não gosto da rainha. Vamos! calma, tíbia religiosa, que não pertences a Deus nem ao mundo; procura, ao menos, pertencer-te a ti mesma.

Assim se repreendia ao descer a escada e, senhora de sua vontade, apagou das faces o fugitivo rubor da precipitação e temperou a rapidez dos movimentos. Mas, para consegui-lo, levou mais tempo descendo os seis últimos degraus do que levara para transpor os trinta primeiros.

Quando chegou atrás do coro, no parlatório de cerimónia, onde o fulgor dos lustres e dos círios aumentava sob as mãos urgentes de algumas irmãs conversas, estava pálida e fria.

Quando ouviu o próprio nome pronunciado pela rodeira que a conduzia, quando avistou Maria Antonieta sentada na poltrona

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abacial, ao passo que à sua roda se inclinavam, zelosas, as cabeças mais nobres do capítulo, sentiu-se tomada de palpitações, que lhe suspenderam a marcha por vários segundos.

— Aproximai-vos, parai que eu possa falar convosco, senhorita, — disse a rainha sorrindo a medo.

Abeirou-se Andreia e curvou a cabeça. — Com licença, senhora? — pediu Maria Antonieta, voltando-se para a

superiora. Esta respondeu com uma reverência e deixou o locutório, seguida de todas

as religiosas. A rainha ficou só, em companhia de Andreia, cujo coração batia com

tanta força que teria sido possível ouvi-lo não fosse o rumor mais lento do pêndulo do velho relógio.

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LXXXIII

Um coração morto

COMO era de praxe, foi a rainha quem iniciou a entrevista. — Com que, então, aqui estais, senhorita! — começou, com um fino sorriso; — sabeis que me produzis singular impressão vestida de religiosa?

Andreia não respondeu. — Ver uma antiga companheira, — prosseguiu a soberana, — já perdida para o mundo em que continuamos a viver, é como um severo conselho que nos dá o túmulo. Não sois do meu parecer? — Senhora, — replicou Andreia, — quem se afoitaria a dar conselhos a Vossa Majestade? A própria morte não a avisará no dia em que vier buscá-la. E nem poderá fazer de outra maneira. — Por quê? — Porque, senhora, pela natureza de sua elevação, uma rainha só está destinada a sofrer neste mundo as necessidades inevitáveis. Possui quanto pode melhorar-lhe a existência; e toma dos outros quanto pode, neles, ajudá-la a enfeitar a sua carreira. A rainha fêz um movimento de surpresa. — E é um direito que lhe assiste, — apressou-se em dizer Andreia. — Os outros, para uma rainha, são uma coleção de súditos cujos bens, cuja honra e cuja vida pertencem aos soberanos. A vida, a honra e os bens, morais ou materiais, são, portanto, propriedade sua. — Essas doutrinas me espantam, — acudiu lentamente Maria Antonieta. — Fazeis de uma soberana, neste país, não sei que bruxa de conto de fadas, que engole a fortuna e a felicidade dos simples cidadãos. Acaso serei eu uma mulher assim? Teríeis, porventura, tido motivos sérios de queixa contra mim quando estáveis na corte? — Vossa Majestade teve a bondade de fazer-me idêntica pergunta quando a deixei, — replicou Andreia; — e respondi como respondo agora: Não, senhora. — Frequentemente, todavia, — tornou a rainha, — nos sentimos ofendidas por um motivo não pessoal. Acaso prejudiquei alguns dos vossos e, por conseguinte, mereci as palavras duras que

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acabastes de dirigir-me? O retiro que escolhestes, Andreia é asilo contra as más paixões do inundo. Nele nos ensina Deus a doçura, a moderação, o esquecimento das injurias, virtudes cujo modelo mais puro é êle mesmo. Devo encontrar, vindo aqui para ver uma irmã em Jesus Cristo, sobrecenno e fel? Devo encontrar, vindo como amiga, as censuras ou a animosidade velada de uma inimiga irreconciliável?

Andreia ergueu os olhos, pasmada daquela placidez a que Maria Antonieta não habituara os seus servidores, pois era altiva e rude em face das resistências.

O ter ouvido sem irritação as palavras que a jovem pronunciara representava um esforço de paciência e de amizade que tocou sensivelmente a selvagem solitária.

— Vossa Majestade sabe perfeitamente, — respondeu, com voz mais baixa, — que os Taverneys não podem ser seus inimigos. — Compreendo, redarguiu a rainha; — não me perdoais o haver-me eu mostrado fria para com vosso irmão, e êle mesmo talvez me acoime de leviana e até de caprichosa? — Meu irmão, como súdito, é respeitoso demais para acusar a rainha, — tornou Andreia, forcejando por conservar a rigidez. Compreendeu Sua Majestade que se tornaria suspeita aumentando a dose de

mel destinada a adoçar os lábios do cérbero. De-teve-se. — O fato, — disse ela, — é que, vindo a São Dinis para falar com

Madame, eu quis ver-vos e repetir-vos que, de perto como de longe, continuo vossa amiga.

Andreia percebeu a nuança; receava, por seu lado, haver ofendido uma criatura que a acariciava; e receava muito mais ter descoberto a sua chaga dolorosa aos olhos sempre clarividentes de uma mulher.

— Vossa Majestade cumula-me de honra e de alegria, — disse, tristemente. — Não fales assim, Andreia, — replicou a rainha, apertando-lhe a mão; — despedaças-me o coração. Não se dirá que uma desgraçada rainha não possa ter uma amiga, não possa dispor de uma alma, não possa repousar confiante os olhos em olhos encantadores como os teus, sem receio de encontrar-lhes no fundo interesse ou ressentimento! Sim, sim, Andreia, podes invejar essas rainhas, essas senhoras dos bens, da honra e da vida de todos. São rainhas, sim, possuem o ouro e o sangue de seus povos; mas o coração, nunca! nunca! Não podem tomá-lo, é preciso que lhos dêem. — Asseguro a Vossa Majestade, — voltou Andreia, abalada pela calorosa alocução, — que lhe quis como nunca hei de querer a ninguém neste mundo. E, dizendo essas palavras, acarminou-se e abaixou a cabeça.

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O COLAR DA RAINHA 603

— Tu . . . t u . . . me quisestes! — bradou Maria Antonieta, pegando no ar as palavras; — portanto, já não me queres? — Oh! senhora! — Não te pergunto nada, Andreia... Maldito seja o claustro que assim apaga tão depressa a memória em certos corações. — Não acuse meu coração, — atalhou vivamente a jovem, — êle está morto. — Teu coração está morto! Tu, Andreia, jovem, bela, dizes que está morto o tèu coração! Ah! não brinques com palavras fúnebres. Não pode estar morto o coração de quem conserva este sorriso, esta beleza! Não digas isso, Andreia. — Repito-lhe, senhora, que nada na corte e nada no mundo existe ainda para mini. Vivo aqui como a relva e a planta; tenho alegrias que só eu entendo; eis por que, ao revê-la há pouco, esplêndida e soberana, eu, a tímida e obscura religiosa, não compreendi de pronto; fecharam-se-me os olhos, deslumbrados pelo brilho de Vossa Majestade; suplico-lhe que me perdoe: não é assim tão grande crime este olvido das gloriosas vaidades do mundo; por êle me felicita todos os dias o meu confessor; suplico-lhe, senhora, não se mostre mais severa do que êle! — Como! porventura te coprazes no convento? — perguntou Maria Antonieta. — Abraço venturosa a vida solitária. — Nada mais te recomenda as alegrias do mundo? — Nada. — Meu Deus! — pensou, inquieta, a rainha; — dar-se-á que se fruste o meu intento? E um frémito mortal lhe percorreu as veias. — Experimentemos tentá-la, — disse a sós consigo; — se me falhar esse

meio, recorrerei às súplicas. Oh! suplicar-lhe uma coisa dessas, suplicar-lhe que aceite o Sr. de Charny! Misericórdia! como sou infeliz!

— Andreia, — volveu, dominando a emoção, — acabas de exprimir a tua satisfação em termos que me tiram a esperança que eu havia acalentado. — Que esperança, senhora? — Nem falemos nisso, se estás decidida como pareces... Ai de mim! era-me uma sombra de prazer, que me fugiu! Tudo se me resume em sombras! Não pensemos mais nisso. — Mas afinal, senhora, já que Vossa Majestade deve tirar daí uma satisfação, explique-me. .. — Para quê? Retiraste-te do mundo, não é verdade? — Sim, senhora. — De bom grado? — De minha livre e espontânea vontade.

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— E tu te aplaudes pelo que fizeste?

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— Mais do que nunca. — Como vês, é inútil falar. Deus é testemunha, contudo, de que, por um momento, julgei poder fazer-te feliz. — A mim? — Sim, a ti, ingrata que me acusavas. Hoje, porém, conheceste outras alegrias, sabes melhor do que eu quais são os teus gostos e a tua vocação. Renuncio... — Mas, afinal, senhora, faça-me a honra de esclarecer-me. — É muito simples: eu pretendia levar-te de volta para a corte. — Oh! — exclamou Andreia com um sorriso cheio de azedume, — eu, voltar à corte?... meu Deus!... Não! não! senhora, nunca!. . . posto que muito me custe desobedecer a Vossa Majestade. A rainha estremeceu. Encheu-se-lhe o coração de uma dor inexprimível.

Naufragava, possante navio, num átomo de granito. — Recusas? — murmurou. E para esconder a perturbação, encerrou o rosto entre as mãos. Julgando-a acabrunhada, aproximou-se Andreia e ajoelhou-se, como se

quisesse adoçar pelo respeito a ferida que acabava de causar à amizade ou ao orgulho.

— Vejamos, — disse, — que teria feito de mim Vossa Majestade na corte, de mim que sou triste, nula, pobre, de mim que sou maldita, que afugento toda a gente porque nem sequer soube inspirar, miserável, às mulheres a vulgar inquietação das rivalidades, aos homens a vulgar simpatia da diferença dos sexos?... Ah! senhora e querida ama, deixe em paz esta religiosa: nem foi aceita de Deus, que a considera ainda muito cheia de defeitos, êle que acolhe os enfermos do corpo e os do coração. Deixe-me na minha miséria, no meu isolamento; deixe-me! — Ah! — exclamou a rainha, erguendo os olhos, — o estado que eu vinha propor-te é um desmentido a todas as humilhações de que te queixas! Trata-se de um casamento que faria de ti uma das maiores damas de França. — Um... casamento? — balbuciou Andreia, estupefata. — Recusas? — insistiu a rainha, cada vez mais descoroçoada. — Recuso! — Andreia. . . — tornou ela. — Recuso, senhora, recuso! Nesse momento, preparou-se Maria Antonieta, com medonho aperto no

coração, para recorrer às súplicas. Andreia atalhou-lhe o movimento quando a viu levantar-se, indecisa, trémula, desvairada, sem encontrar sequer a primeira palavra do discurso.

— Pelo menos, senhora, — rogou a moça, retendo-a pelo vestido, pois cria vê-la partir, — faça-me a graça insigne de dizer o nome do homem que me aceitaria por companheira; já sofri tantas humilhações, que o nome desse

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homem generoso...

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E sorriu com pungente ironia. — Será, — completou, — o bálsamo que aplicarei, doravante, a todas as

feridas do orgulho. A rainha hesitou; mas tinha necessidade de ir até ao fim. — O Sr. de Charny, — respondeu em tom triste, indiferente. — O Sr. de Charny! — repetiu Andreia, numa explosão assustadora; — o Sr. Oliveiras de Charny! — O Sr. Oliveiras, sim, — confirmou a rainha, considerando-a com espanto. — O sobrinho do Sr. de Suffren? — continuou a moça cujas faces se purpurearam, cujos olhos resplandeceram como estrelas. — O sobrinho do Sr. de Suffren, — replicou Maria Antonieta, cada vez mais impressionada com a transformação operada nos traços da reclusa. — É com o Sr. Oliveiras que quer casar-me? — Com êle mesmo. — E . . . êle consente?... — Êle te pede em casamento. — Oh! aceito, aceito, — bradou Andreia, louca e transportada. — É a mim, então, que éle ama!. . . a mim que êle ama como eu o amava! Maria Antonieta recuou, lívida e trémula, despedindo um gemido surdo; foi

cair aniquilada numa poltrona, ao passo que a insensata lhe beijava os joelhos, o vestido, molhando-lhe de lágrimas as mãos e mordendo-as de beijos ardentes.

— Quando partimos? — perguntou, por fim, quando a palavra pôde suceder aos gritos abafados e aos suspiros. — Vem, — murmurou a rainha, que sentia fugir-lhe a vida e queria salvar a própria honra antes de morrer. Levantou-se, apoiou-se em Andreia, cujos lábios ardentes lhe buscavam as

faces geladas; e, enquanto a jovem se preparava: — E então, meu Deus!. .. não bastam tantos sofrimentos para um só coração? — murmurou, com um soluço, a infortunada soberana, que possuía a vida e a honra de trinta milhões de súditos. — E, no entanto, cumpre ainda que eu vos agradeça! — acrescentou; — pois salvais meus filhos do opróbrio e dais-me o direito de morrer debaixo do manto real!

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LXXXIV

Em que se explica por que engordava o barão

AO PASSO que a rainha decidia, em São Dinis, a sorte da Srta. de Taverney, Filipe, com o coração ulcerado por tudo o que soubera, por tudo o que acabara de descobrir, apressava os aprestos da sua partida.

Um soldado avezado a correr mundo não leva muito tempo para fazer as malas e envergar a capa de viagem. Mas Filipe tinha motivos mais fortes ainda para alongar-se rapidamente de Versalhes: 'não queria ser testemunha da desonra provável e iminente da rainha, sua única paixão.

Por isso mesmo viram-no, com mais ardor do que nunca, mandar arrear os cavalos, carregar as armas, enfiar na mala o que possuía de mais familiar para a vida de todos os dias; e quando terminou tudo isso, mandou avisar o Sr. de Taverney de que precisava falar-lhe.

O velhinho estava regressando de Versalhes, sacudindo da melhor maneira possível as pernas finas, que suportavam uma barriga o seu tanto avantajada. Fazia uns três ou quatro meses que o barão começara a engordar, o que lhe proporcionava um orgulho fácil de compreender-se, se se atentar para o fato de que o cúmulo da obesidade devia ser nele o sinal de um perfeito contentamento.

Ora, o perfeito contentamento do Sr. de Taverney é uma expressão que encerra muitos sentidos.

Voltara, pois, o barão muito prazenteiro do passeio ao castelo. Soubera também, com pormenores, do escândalo do dia. Sorrira ao Sr. de Breteuil contra o Sr. de Rohan; aos Srs. de Soubise e de Guémenée contra o Sr. de Breteuil; ao Sr. da Provença contra a rainha; ao Sr. do Artois contra o Sr. da Provença; a cem pessoas contra cem outras pessoas; a ninguém a favor de alguém. Tinha êle as suas provisões de maldades, de infâmiazinhas. Em suma, voltava feliz para casa.

Quando soube pelo criado que o filho desejava falar-lhe, em vez de esperar, foi êle quem atravessou um corredor inteiro para ir ter com o viajante.

Entrou sem se fazer anunciar, no quarto cheio da desordem que precede uma partida.

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Filipe não contava com grandes explosões de sensibilidade, quando o pai viesse a saber da sua resolução, mas também não esperava muita indiferença. De feito, Andreia já deixara a casa paterna, era uma existência a menos para atormentar; o velho barão devia estar começando a sentir uma espécie de vácuo e, quando esse vácuo fosse completado pela ausência do derradeiro mártir, como as crianças de que se tomam o cão e o passarinho êle bem poderia choramingar um pouco, nem que fosse por egoísmo.

Mas Filipe ficou espantadíssimo quando o ouviu exclamar, entre frouxos de riso jubiloso:

— Ah! meu Deus! êle vai-se embora, êle vai-se embora... Deteve-se e olhou, estuporado, para o pai. — Eu tinha certeza, — continuou o barão; — eu seria até capaz de apostar. Bem representado, Filipe, bem representado. — Como, senhor? — tornou o rapaz; — dizei-me, por favor, o que é que foi bem representado? O velho começou a cantarolar saltitando sobre uma perna só e segurando

com as mãos o ventre incipiente. E, ao mesmo tempo, não parava de piscar os olhos para o filho, intimando-o

assim a dispensar o camareiro. Filipe compreendeu-o e obedeceu. O barão empurrou Cham-pagne para

fora do quarto e fechou a porta. Em seguida: — Admirável, — disse em voz baixa, — admirável! — Estais-me fazendo muitos elogios, senhor, — respondeu Filipe friamente, — sem que eu saiba o que fiz por merecê-los... — Ah! ah! ah! — continuou o velho, bambaleando. — A menos que essa hilaridade toda seja causada pela minha partida, que vos livra de mim. — Oh! oh! oh!. . . — tornou, rindo em outro tom, o barão. — Não te constranjas em minha presença, que não vale a pena; sabes perfeitamente que não me enganas... Ah! ah! ah! Filipe cruzou os braços, perguntando a si mesmo se aquele velho não

estaria começando a ensandecer. — Enganar-vos com o quê? — perguntou. — Com a tua partida, homessa! Ou imaginas, porventura, que acredito nela? — Não acreditais? — Champagne não está mais aqui; repito-o: não te constranjas. Aliás, reconheço que não podias tomar outra resolução; fizestes muito bem. — Senhor, estais-me surpreendendo infinitamente!... — Sim, é de fato surpreendente que eu o tenha adivinhado; mas que queres, Filipe, não há homem mais curioso do que eu e, quando estou curioso, procuro; não há homem mais feliz do que eu para descobrir o que procuro; ora, descobri que finges partir e por isso te felicito.

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— Finjo partir? — bradou Filipe, intrigado. O velho aproximou-se, tocou no peito do rapaz com os longos dedos

ossudos de esqueleto e, cada vez mais confidencial: — Palavra de honra, — sussurrou, — sem esse expediente, tenho certeza de que tudo seria descoberto. Tomas a tempo a tua resolução. Amanhã, já seria muito tarde. Vai depressa, meu filho, vai depressa. — Senhor, — volveu Filipe em tom de gelo, — asseguro-vos que não estou compreendendo uma palavra, uma única palavra, de tudo o que me fazeis a honra de dizer. — Onde esconderás os teus cavalos? — continuou o velho, sem responder diretamente; — tens uma égua facilmente reconhecível; toma cuidado para que a não vejam por aqui quando te julgarem em. . . A propósito, aonde finges que vais? — Vou para Taverney-Maison-Rouge, senhor. — Bem... muito bem... finges ir para Maison-Rouge... Ninguém tentará verificá-lo... Está bem, muito bem... Entretanto, sê prudente; há muitos olhos que não se desfitam dos dois. — Dos dois!... Que dois? — Ela é impetuosa, — continuou o velho, — ela tem repentes capazes de pôr tudo a perder. Toma tento! sê mais sensato do que ela. . . — Francamente! — bradou Filipe com uma cólera surda, — a mim me parece, senhor, que vos estais divertindo à minha custa, e isso não é caritativo, nem prudente, pois assim me expondes, aborrecido e irritado como estou, a faltar com o respeito que vos devo. — Ah! pois sim, o respeito! Dispenso-te dele; já tens idade suficiente para levar a cabo os nossos negócios, e tão bem os levas que és tu que me inspiras respeito. És o Geronte, eu sou o Estouvado. Vamos a ver, deixa-me o endereço em que eu possa fazer chegar-te um aviso no caso de ocorrer alguma coisa urgente. — Em Taverney, senhor, — respondeu Filipe, acreditando que o velho voltava por fim a raciocinar com sensatez. — Estás querendo brincar comigo?. .. Em Taverney, a oitenta léguas daqui! Imaginas que, se eu tiver um conselho importante, urgente, para dar-te vou divertir-me matando correios na estrada de Taverney só para fazer de conta? É boa! Não te digo que medês o endereço da tua casa do parque, porque os meus emissários poderiam ser seguidos, as minhas librés reconhecidas; mas escolhe um terceiro endereço, que não diste daqui mais de um quarto de hora; tens imaginação, que diabo! Só faz pelos seus amores o que acabas de fazer um homem de recursos, com seiscentos diabos! — A casa do parque, amores, imaginação! Estamos brincando de palavras cruzadas, senhor, mas guardais todos os dados.

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O COLAR DA RAINHA 609

— Não conheço animal mais puro nem mais discreto do que tu! — bradou o pai, despeitado. — Não conheço outro cuja reserva seja mais ofensiva. Até parece que tens medo de que eu venha a trair-te! Seria engraçado! — Senhor! — bradou Filipe, exasperado. — Está bem! está bem! guarda para ti os teus segredos; guarda o segredo da tua casa alugada na antiga montaria. — Eu aluguei a montaria? — Guarda o segredo dos passeios noturnqs que deste entre duas adoráveis amigas. — Eu!. . . eu andei passeando, — murmurou Filipe, empalide cendo. — Guarda o segredo dos beijos trocados debaixo das flores e do orvalho. — Senhor! — rugiu o oficial, bêbedo de ciúme furioso; — senhor! calai-vos! — Está bem, repito que sei tudo o que fizeste. Duvidavas de que eu o soubesse? Com mil demónios! isso devia inspirar-te confiança. A tua intimidade com a rainha, os teus empreendimentos favorecidos, as tuas excursões aos banhos de Apoio, meu Deus! Tudo isso é a nossa vida, é a fortuna de todos nós. Não te arreceies de mim, Filipe... confia em mim. — Causais-me horror, senhor! — bradou ò moço, escondendo o rosto entre as mãos. E, com efeito, era realmente horror que sentia o inditoso Filipe pelo

homem que lhe desnudava as chagas e, não contente de desnudá-las, acrescentava-as, rasgando-as com uma espécie de raiva. Era realmente horror que lhe inspirava o homem que lhe atribuía toda a felicidade de outro e, cuidando lisonjeá-lo, flagelava-o com a ventura de um rival.

Tudo o que o pai soubera, tudo o que adivinhara, tudo o que os maldizentes atribuíam ao Sr. de Rohan e os mais bem informados ao Sr. de Charny, o barão atribuía ao filho. Para êle, era Filipe que a rainha amava e erguia, a pouco e pouco, na sombra, aos mais altos degraus do favoritismo. Eis a causa do perfeito contentamento que, havia algumas semanas, aumentava a barriga do Sr. de Taverney.

Quando Filipe descobriu esse novo atascadeiro de infâmia, estremeceu ao ver-se mergulhado nele pela única criatura que deveria ser eu aliado na causa da honra; mas o golpe fora tão violento, que ficou aturdido, mudo, ao passo que o barão tagarelava com mais chiste do que nunca.

— Vê, — dizia-lhe, — fizeste uma obra-prima, despistaste toda a gente; esta noite cinquenta pares de olhos me disseram: É Rohan. Cem me disseram: É Charny. Duzentos me disseram: É Rohan e Charny! Mas nenhum me disse: É Taverney. Repito que com-

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puseste uma obra-prima e o menos que posso fazer é comprimen-tar-te... De resto, a ti como a ela, isso só pode honrar, meu caro. A ela, porque te quis; a ti, porque a tens segura.

No momento em que Filipe, enfurecido pelo último dardo, fulminava com olhar terrível o velho implacável, um olhar que preludiava tempestades, o estrépito de um carro ressoou no pátio e certos rumores, certas idas e vindas de um caráter estranho, desviaram a atenção do rapaz.

Ouviu-se Champagne gritar: — A senhorita! É a senhorita! E várias vozes repetiram: — A senhorita!... — A senhorita, como? — disse Taverney. — Que senhorita?

— É minha irmã! — murmurou Filipe, espantadíssimo ao reconhecer Andreia, que descia do carro, iluminada pelo archote do suíço. — Tua irmã! — repetiu o velho... — Andreia?... Será possível? E Champagne surgiu, para confirmar: — Senhor, — disse ao rapaz, — a senhorita vossa irmã está no toucador, ao lado do salão, à vossa espera. — Vamos ao encontra dela, — exclamou o barão. — É comigo que ela quer falar, — atalhou Filipe, cumprimentando o velho; — irei primeiro. Com licença... No mesmo instante, outro carro entrou ruidosamente no pátio. — Quem diabo será? — murmurou o barão. . . — Esta é a noite das aventuras. — O Sr. Conde Oliveiras de Charny! — gritou a voz do suíço aos lacaios. — Conduze o Sr. Conde ao salão, — ordenou Filipe a Champagne, — que o Sr. Barão o receberá. Vou ao toucador falar com minha irmã. Os d6is homens desceram lentamente a escada. — Que vem aqui fazer o conde? — perguntava a si mesmo Filipe. — Que veio Andreia fazer aqui? — pensava o barão.

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LXXXV

O pai e a noiva

O SALÃO da casa estava situado no primeiro andar. À sua esquerda ficava o toucador, com uma saída para a escada, que conduzia ao apartamento de Andreia. À direita, havia outra saleta, que dava acesso ao salão. Filipe chegou primeiro ao toucador em que o esperava a irmã. Ao passar pelo vestíbulo, apertava o passo a fim de se ver mais cedo entre os braços da querida companheira.

Assim que abriu a porta dupla do toucador, Andreia precipitou-se-lhe ao pescoço e beijou-o com um semblante radioso a que já não estava habituado, havia muito, o apaixonado infeliz, o inditoso irmão.

— Santo Deus! que aconteceu? — perguntou o rapaz. — Uma coisa feliz, muito feliz, meu irmão! — E voltas para anunciar-ma? — Volto para ficar! — bradou Andreia, num transporte de felicidade, qvie lhe converteu a exclamação num grito retumbante. — Mais baixo, maninha, mais baixo, — aconselhou Filipe; — as paredes desta casa já não estão acostumadas à alegria; de mais a mais, há, no salão ao lado, alguém que poderia ouvir-te. — Alguém? — repetiu Andreia; — quem? — Escuta, — volveu Filipe. - O Sr. Conde de Charny! — anunciou o lacaio, introduzindo Oliveiros no

salão, através da saleta. — Êle! êle! — bradou Andreia, multiplicando as carícias ao irmão. — Oh! sei perfeitamente o que vem fazer aqui. — Sabes? — Sei tão bem que percebo o desalinho de meus trajos e, como prevejo o momento em que deverei, por meu turno, entrar no salão para ouvir também o que veio dizer o Sr. de Charny... — Estás falando sério, minha querida Andreia? — Escuta, escuta, Filipe, e deixa-me subir. A rainha trouxe-me um pouco depressa, vou trocar estas roupas de convento por um vestido. . . de noiva.

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E, dita essa palavra, que ela articulou baixinho ao ouvido do irmão acompanhando-a de um beijo álacre, Andreia, ligeira e arrebatada, desapareceu pela escada que conduzia ao seu apartamento.

Ficando só, Filipe aplicou o rosto à porta que ligava o toucador ao salão e pôs-se à escuta.

Entrara o Conde de Charny e percorria lentamente o amplo recinto, parecendo antes meditar que esperar.

Entrou por sua vez o Sr. de Taverney e foi cumprimentar o conde com uma polidez rebuscada, posto que constrangida.

— A que devo, afinal, — disse êle, — a honra desta visita imprevista, Sr. Conde? Como quer que seja, crede que ela me enche de alegria. — Vim, senhor, cerimoniosamente, como estais vendo, e peço que me escuseis por não haver trazido meu tio, o Sr. Bailio de Suffren, como o devera ter feito. — Está claro que vos escuso, meu caro Sr. de Charny, — balbuciou o barão. — Seria mais conveniente para o pedido que desejo apresentar-vos. — Um pedido? — Tenho a honra, — prosseguiu Charny com voz embargada de comoção, — de pedir-vos a mão da Srta. Andreia de Taverney, vossa filha. O barão deu um pulo na poltrona. Arregalou os olhos cintilantes, que

pareciam devorar cada uma das palavras pronunciadas pelo conde. — Minha filha!. . . — murmurou, — estais-me pedindo Andreia em casamento! — Sim, Sr. Barão; a menos que a Srta. de Taverney sinta alguma repugnância por tal união. — Ora, essa! — pensou o velho, — já será, porventura, tão brilhante o favor de Filipe que um de seus rivais queira aproveitar-se dele desposando-lhe a irmã? Francamente! Isso também não está mal representado, Sr. de Charny. E, em voz alta, com um sorriso: — O pedido é tão honroso para nossa casa, Sr. Conde, — declarou, — que gostosamente lhe dou o meu consentimento; e como faço empenho em que leveis daqui um assentimento completo, mandarei prevenir minha filha. — Senhor, — atalhou o conde com frieza, — essa precaução, no meu entender, é inútil. A rainha já houve por bem consultar a Srta. de Taverney e a resposta da senhorita vossa filha me foi favorável. — Ah! — sobreveio o barão, cada vez mais maravilhado, — foi a rainha...

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O COLAR DA RAINHA 613

— Quem se deu ao trabalho de transportar-se a São Dinis. Foi, sim, senhor.

Ergueu-se o barão. — Nesse caso, só me resta inteirar-vos, Sr. Conde, — disse êle, — da situação da Srta. de Taverney. Tenho lá em cima os títulos de fortuna de sua mãe. Não casareis com moça rica, Sr. Conde, e, antes de concluir o que quer que seja . . . — É inútil, Sr. Barão, — interrompeu, secamente, Charny. — Sou rico por dois, e a Srta. de Taverney não é mulher que se regateie. Mas a questão que pretendíeis tocar por vossa.conta, preciso tocar pela minha. Mal acabara de articular essas palavras, quando a porta do toucador se

abriu e, pálido, desfeito, com uma das mãos na jaqueta e a outra convulsivamente cerrada, surgiu Filipe.

Charny cumprimentou-o, cerimonioso, e recebeu um cumprimento no mesmo tom.

— Senhor, — disse Filipe, — meu pai tinha razão de propor-vos uma conversa sobre as contas da família; temos ambos esclareci mentos para dar-vos. Enquanto o Sr. Barão vai ao quarto procurar os papéis de que há pouco vos falou, terei a honra de tratar a questão convosco mais circunstanciadamente.

E, com um olhar carregado de irrecusável autoridade, Filipe dispensou o barão, que saiu constrangido, prevendo algum desazo.

O filho acompanhou o pai até à porta da saleta, para certificar-se de que a peça estava vazia. Examinou, da mesma forma, o toucador e, seguro de que não seria ouvido por ninguém, senão pela pessoa a que se dirigia:

— Sr. de Charny, — perguntou, cruzando os braços em face do conde, — como se dá que ouseis vir aqui pedir minha irmã em casamento?

Oliveiros recuou e corou. — Será, — continuou Filipe, — para melhor esconder os vossos amores com a mulher que perseguis, com a mulher que vos ama? Será para que, ao ver-vos casado, não se possa dizer que tendes amante? — Francamente, senhor... — balbuciou Charny, cambaleando, aterrado. — Será, — ajuntou Filipe, — para que, esposando uma mulher que estará com vossa amante a todo momento, vos seja mais fácil vê-la e.falar-lhe? — Senhor, estais ultrapassando os limites! — É talvez, e prefiro acreditar nisso, — continuou o oficial, aproximando-se de Charny, — é sem dúvida para que, tornando-me eu vosso cunhado, não revele o que sei de vossos passados amores.

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— O que sabeis! — bradou Charny, espavorido. — Tomais cuidado, tomai cuidado! — Sim, — volveu Filipe animando-se, — a casa do monteiro, alugada por vós; os passeios misteriosos no parque de Versalhes... à no i te . . . os apertos de mão, os suspiros e, sobretudo, a terna troca de olhares no portãozinho do parque. .. — Senhor, em nome do céu! Não sabeis nada! Dizei que não sabeis nada!... — Não sei nada! — bradou Filipe com pungente ironia. — Como não haveria de saber, se estava escondido entre a folhagem, atrás do portão dos banhos de Apoio, quando de lá saíste dando o braço à rainha. Charny deu dois passos, como um homem fulminado que busca um apoio à

sua volta. Filipe considerou-o no meio de um silêncio selvagem. Deixava-o sofrer,

deixava-o expiar, por aquele tormento passageiro, as horas de inefáveis delícias que acabava de verberar-lhe.

Charny recobrou-se. — Pois bem! senhor, — respondeu, — mesmo depois do que acabais de dizer, peço-vos, a vós, a mão da Srta. de Taverney. Se eu fosse apenas um calculista covarde, como há pouco supúnheis, se tão-sòmente me casasse visando ao meu interesse, seria um miserável e teria medo do homem que conhece o meu segredo e o segredo da rainha. Mas é preciso salvar a rainha, senhor, é preciso! — E acaso estará perdida a rainha, — tornou Filipe, — porque o Sr. de Taverney a viu apertar o braço do Sr. de Charny e levantar para o céu os olhos úmidos de felicidade? Acaso estará perdida porque sei que vos ama? Isso não é razão para sacrificar minha irmã, senhor, e não permitirei que ela se sacrifique. — Senhor, — retrucou Oliveiros, — sabeis por que estará perdida a rainha se se não realizar esse casamento? Porque, na manhã de hoje, enquanto prendiam o Sr. de Rohan, o rei me surpreendeu a seus pés. — Santo Deus! — E a rainha, interrogada pelo marido enciumado, respondeu que eu lá estava para pedir-lhe a mão de vossa irmã. Eis porque, senhor, se eu não desposar a Srta. de Taverney, a rainha estará perdida. Compreendestes, agora? Duplo ruído cortou a frase de Oliveiros: um grito e um suspiro. Um

partia do toucador, o outro da saleta. Oliveiros correu na direção do suspiro e encontrou no toucador Andreia de

Taverney, vestida de branco como uma noiva; acabava de desmaiar. Correu Filipe na direção do grito e entrou na saleta. Avistou o corpo do

Barão de Taverney, que, à revelação do amor da rainha

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O COLAR DA RAINHA 615

a Charny, caíra fulminado ao pé da ruína de todas as suas esperanças. Numa crise de apoplexia, o barão exalara o último suspiro. Cumpria-se a predição de Cagliostro. Filipe, que tudo compreendia, até a vergonha daquela morte, abandonou

silenciosamente o cadáver e voltou ao salão, para junto de Charny, que contemplava, ti"êmulo, sem ousar tocá-la a formosa jovem, inanimada e fria.

As duas portas abertas mostravam os dois corpos paralela, sime-tricamente colocados, por assim dizer, no lugar em que os atingira o golpe da revelação.

Com os olhos inchados, o coração a ferver, Filipe ainda teve a coragem de tomar a palavra para dizer:

— O Sr. Barão de Taverney acaba de morrer. Com a sua morte, passo a ser o chefe de minha família. Se a Srta. de Taver ney sobreviver, permitirei que se receba convosco.

Charny considerou o cadáver do barão com horror, o corpo de Andreia com desespero. Arrancando os cabelos com as mãos, Filipe atirou para o céu uma exclamação que deve ter comovido o coração de Deus em seu trono eterno.

— Conde de Charny, — disse êle, depois de acalmada a tem pestade íntima, — assumo este compromisso em nome de minha irmã, que não pode ouvir-me: ela dará a sua felicidade a uma rai nha, e eu, um dia, talvez tenha a ventura de dar-lhe a vida. Adeus, Sr. de Charny; adeus, meu cunhado.

E, cumprimentando Oliveiros que não sabia como sair sem passar à beira de uma de suas vítimas, Filipe ergueu Andreia, aqueceu-a nos braços e, assim, deu passagem ao conde, que desapareceu pelo toucador.

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LXXXVI

Depois do dragão, a víbora

JÁ É TEMPO de voltarmos aos personagens da nossa his- tória, que tanto a necessidade e a intriga quanto a verdade histórica relegaram ao segundo plano.

Oliva preparava-se para fugir, sob a inspiração de Joana, quando Beausire, que não cessara de procurá-la, prevenido por um aviso anónimo, se viu conduzido aos braços dela e tirou-a da casa de Cagliostro, ao mesmo passo que o Sr. Reteau de Villette esperava debalde na esquina da Rua do Rei Dourado.

Para descobrir os felizes amantes, que o Sr. de Crosne tanto se empenhava em achar, a Sra. de La Motte, percebendo-se lograda, pôs a campo todas as pessoas de confiança de que podia dispor.

Concebe-se que preferisse tomar conta pessoalmente do seu segredo a deixar que outros se imiscuíssem nele, e, para a boa gestão do negócio que estava preparando, era indispensável que Nicole não fosse encontrada.

Fora impossível pintar as angústias que sofreu quando cada um dos emissários lhe representou, regressando, a inutilidade de todas as buscas.

Simultaneamente, recebia, escondida, ordens sobre ordens para apresentar-se à rainha, a fim de explicar o seu procedimento no caso do colar.

Pela calada da noite, velada, partiu para Bas-sur-Aube, onde possuía uma propriedadezinha e, lá chegando por caminhos travessos, sem ter sido reconhecida, pôde examinar a própria situação à sua verdadeira luz.

Ganhara assim dois ou três dias de solidão consigo mesma e, ganhando tempo, ganhava, com o tempo, força para sustentar, por uma sólida fortificação interior, o edifício de suas calúnias.

Dois dias de solidão para aquela alma profunda representavam a luta ao cabo da qual seriam domindos o corpo e o espírito, depois da qual a consciência obediente não se revoltaria, instrumento perigoso, contra a culpada, após a qual o sangue se teria avezado a circular livremente em torno do coração sem subir ao rosto, onde revelasse a vergonha ou a surpresa.

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A rainha, o rei, que a tinham mandado procurar, só souberam de sua instalação em Bas-sur-Aube no momento em que ela já estava preparada para enfrentar a guerra. Mandaram um emissário buscá-la. Foi então que ela soube da prisão do cardeal.

Qualquer outra pessoa se teria sentido arrazada por tão vigorosa ofensiva, mas Joana já não tinha o que perder. Que era uma simples questão de liberdade na balança, em face .das questões de vida ou morte que todos os dias se acumulavam à sua frente?

Ao saber da prisão do cardeal e do escândalo que fizera Maria Antonieta: — A rainha já não pode recuar, — calculou, friamente; — ser-lhe-á

doravante impossível tornar ao passado. Recusando-se a transigir com o cardeal e a pagar os joalheiros, arrisca tudo. Isso prova que não está contando comigo e nem sequer suspeita das forças que tenho à minha disposição.

Eis aí as peças de que era feita a armadura de Joana, quando um homem, espécie de aguazil e mensageiro, apresentou-se de repente e anunciou-lhe que estava encarregado de levá-la de volta à corte.

O mensageiro queria conduzi-la diretamente à presença do rei; mas Joana, com a habilidade que lhe conhecemos:

— Amais a rainha, senhor, não é verdade? — perguntou. — Porventura duvidais, Sra. Condessa? — redarguiu o mensageiro. — Pois bem! em nome desse amor leal e do respeito que votais à rainha, suplico-vos que me leveis primeiro à presença dela. O aguazil quis opor objeções. — Conheceis, de certo, melhor do que eu o assunto de que se trata, —

voltou a condessa. — Eis porque compreendereis que é indispensável uma entrevista secreta entre nós duas.

Sob a influência das ideias caluniosas que, de vários meses àquela parte, empestavam o ar de Versalhes, o mensageiro acreditou realmente prestar um serviço à sua soberana levando-lhe a Sra. de La Motte antes de conduzi-la à presença do rei.

Imagine-se a sobranceria, o orgulho, a altiva consciência da rainha posta em face do demónio que ela ainda não conhecia, mas de cuja pérfida influência sobre os seus negócios já suspeitava.

Figure-se Maria Antonieta, viúva ainda inconsolada de um amor que sucumbira ao escândalo, esmagada pela injúria de uma acusação que não podia refutar, imagine-se a rainha, depois de tantos sofrimentos, dispondo-se a calcar aos pés a cabeça da serpe que a mordera!

O supremo desdém, a cólera mal contida, o ódio, o sentimento de uma superioridade incomparável de posição, eram as armas de uma das adversárias. A rainha começou fazendo entrar, como testemunhas, duas criadas, de olhos baixos, lábios cerrados, com revê-

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rências lentas e solenes; um coração cheio de mistérios, um espírito cheio de ideias, o desespero como último motor, representavam o segundo campeão. A Sra. de La Motte, assim que as avistou:

— Bom! — murmurou, — aí estão duas testemunhas que dentro em pouco serão dispensadas. — Ah! estais aí finalmente! — exclamou a rainha; — afinal fostes encontrada! Inclinou-se Joana pela segunda vez. — Estáveis escondida? — tornou Maria Antonieta, impaciente. — Escondida! não, senhora, — replicou Joana com voz doce e quase sem timbre, como se a comoção produzida pela majestade real lhe bastasse a alterar a sonoridade ordinária; — eu não estava escondida, pois se quisesse esconder-me ninguém me encontraria. — Entretanto, fugistes? Chamemos-lhe como quiserdes. — De fato, saí de Paris. — Sem minha permissão? — Eu receava que Vossa Majestade não me concedesse a licençazinha de que eu necessitava para arranjar meus negócios em Bas-sur-Aube, onde já me encontarva havia seis dias, quando recebi a intimação de Vossa Majestade. De resto, devo confessar que não me julgava tão necessária a Vossa Majestade que me impusesse a obrigação de preveni-la quando precisasse ausentar-me por oito dias. — E tendes razão; por que receastes que eu recusasse a licença? Que licença deveis pedir-me? Que licença devo conceder-vos? Ocupais aqui algum cargo? Havia demasiado desdém nas últimas palavras. Ferida, mas contendo o

sangue, como os tigres picados pela flecha, Joana respondeu, humilde: — Senhora, é verdade que não ocupo cargo na corte; mas Vossa Majestade

me honrava com uma confiança tão preciosa que eu me considerava muito mais obrigada para consigo pela gratidão do que outros se julgam pelo dever.

Joana procurara longamente, mas encontrara a palavra confiança e a acentuava-a.

— Sobre essa confiança, — volveu a rainha, com um desprezo ainda mais esmagador do que na primeira apóstrofe, — falaremos daqui a pouco. Vistes o rei?

— Não, senhora. — Vê-lo-eis. Joana inclinou-se. — Será uma grande honra para mim, — exclamou. A rainha procurou reunir um pouco de calma para iniciar com

vantagem o interrogatório. Aproveitou-se a condessa da pausa para dizer:

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— Santo Deus! Vossa Majestade mostra-se tão severa para comigo! Estou toda trémula. — Ainda não chegamos ao fim, — atalhou, brusca, a rainha; — sabeis que o Sr. de Rohan está na Bastilha? — Já mo disseram, Majestade. — E não adivinhais por quê? Joana considerou fixamente a rainha e, voltando-se para as mulheres

cuja presença parecia constrangê-la, respondeu: — Não, senhora. — Sabeis, entretanto, que me falaste num colar. — Num colar de brilhantes; sim, senhora. — E que me propusestes, da parte do cardeal, um arranjo para pagá-lo. — É verdade, senhora. — Aceitei ou recusei o arranjo? — Vossa Majestade recusou-o. — Ah! — fêz a rainha, entre surpresa e satisfeita. — Vossa Majestade chegou a dar um sinal de duzentas mil libras, — acrescentou Joana. — Bom... e depois? — Depois, não podendo pagar, porque o Sr. de Calonne lhe havia 'recusado o dinheiro, Vossa Majestade devolveu o escrínio aos joalheiros Boehmer e Bossange. — Por intermédio de quem? — Por meu intermédio. — E vós, que fizestes? — Eu, — disse lentamente Joana, sentindo todo o peso das palavras que ia pronunciar; — dei os brilhantes ao Sr. Cardeal. — Ao Sr. Cardeal! — bradou a rainha; — por quê? Por que os entregastes ao cardeal em vez de devolvê-los aos ourives? — Porque, havendo o Sr. de Rohan demonstrado muito interesse no negócio, que era do agrado de Vossa Majestade, eu o teria magoado se não lhe fornecesse ocasião de concluí-lo pessoalmente. — Mas como se dá que tenhais conseguido um recibo dos joalheiros? — Foi o Sr. de Rohan quem mo entregou. — E a carta que, segundo dizem, destes aos joalheiros como de minha parte? — Foi o Sr. de Rohan quem me pediu que lhe levasse. — Então, em tudo e sempre, foi o Sr. de Rohan quem se meteu no negócio! — bradou a rainha.

— Não sei o que Vossa Majestade quer dizer, — replicou Joana com ar distraído, — nem em que se meteu o Sr. de Rohan. — Digo que o recibo dos joalheiros é falso! — Falso! — repetiu Joana, candidamente; — oh! senhoral

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— Digo que a pretensa carta de aceitação do colar, assinada, segundo afirmam, por mim, é falsa! — Oh! — bradou Joana, ainda mais espantada. — Digo, enfim, — prosseguiu a rainha, — que precisais ser acareada com o Sr. de Rohan para esclarecer-nos todo esse negócio. — Acareada! — repetiu Joana. — Mas, senhora, onde está a necessidade da minha acareação com o Sr. Cardeal? — Êle mesmo a requereu. — Êle? — Procurou-vos por toda a parte. — É impossível, senhora. — Queria provar que o enganastes. — Oh! se é assim, quem exige a acareação sou eu. — Será feita, senhora, tranquilizai-vos. Por conseguinte, negais saber onde está o colar? — Como haveria eu de sabê-lo? — Negais haver ajudado o Sr. Cardeal em certas intrigas?... — Vossa Majestade tem o direito de desgraçar-me; não tem, porém, o de ofender-me. Sou uma Valois, senhora! — O Sr. Cardeal sustentou em presença do rei calúnias que espera escorar em bases sólidas. — Não compreendo. — O Cardeal afirma que me escreveu. Joana encarou na rainha e não disse nada. — Estais-me ouvindo? — insistiu Maria Antonieta. — Estou ouvindo, Majestade. — E que respondeis?

— Responderei quando me tiverem confrontando com o Sr. Cardeal. — E até lá, se souberdes a verdade, ajudar-nos-eis? — A verdade, senhora, é que Vossa Majestade me ataca sem motivo e me maltrata sem razão. — Isso não é resposta. — Aqui não darei outra, senhora. E Joana olhou ainda uma vez para as duas mulheres. A rainha compreendeu, mas não cedeu. A curiosidade, nela, não

conseguiu vencer o respeito humano. Nas reticências de Joana, na sua postura a um tempo humilde e insolente percebia-se a segurança que resulta da posse de um segredo. E esse segredo talvez o tivesse comprado a rainha com a doçura.

Mas repeliu o meio por indigno de si. — O Sr. de Rohan foi mandado para a Bastilha por haver querido falar

demais, — advertiu Maria Antonieta; — tomai cuidado, para que não vos aconteça o mesmo por quererdes falar de menos.

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O COLAR DA RAINHA 621

Joana enterrou as unhas nas mãos, mas conseguiu sorrir. — A uma consciência pura, — redarguiu, — não importa a perseguição;

poderá a Bastilha convencer-me de um crime que não cometi? A rainha olhou-a com sobrecenho. — Falareis? — perguntou. — Não tenho nada que dizer, senão à senhora. — A mim? Pois não é comigo que estais falando? — Não é apenas consigo. — Ah! então é isso? — bradou a rainha; — quereis falar a portas fechadas! Receais o escândalo da confissão pública depois de me haverdes infligido o escândalo da suspeita pública? Joana empertigou-se. — Não falemos mais nisso, — propôs; — o que eu estava fazendo, fazia-o por Vossa Majestade. — Que insolência! — Sofro respeitosamente as injúrias de minha rainha, — disse Joana sem mudar de côr. — Dormireis esta noite na Bastilha, Sra. de La Motte. — Seja, senhora. Mas antes de dormir, como de hábito, pedirei a Deus que conserve a honra e a alegria de Vossa Majestade, — replicou a acusada. Ergueu-se, furiosa, a rainha e passou ao quarto contíguo, abrindo as

portas com violência. — Depois de haver vencido o dragão, — bradou, — saberei esmagar a víbora! — Sei de cor o jogo dela, — pensou Joana, — e creio que, desta vez, ganhei.

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LXXXVII

Como foi que o Sr. de Beausire, cuidando caçar uma lebre, foi caçado pelos agentes do Sr. de Crosne.

A SRA. DE LA MOTTE foi encarcerada consoante o desejo da rainha. Nenhuma compensação pareceu mais agradável ao rei, que odiava

instintivamente aquela mulher. Instruiu-se o processo sobre o caso do colar com a fúria que podem imprimir-lhe comerciantes arruinados que esperam salvar-se da ruína, acusados que desejam livrar-se da acusação, e juizes populares que têm nas mãos a honra e a vida de uma rainha, sem contar o amor-próprio ou o espírito partidário. Um grito só ressoou por toda a França. Pelos matizes desse grito pôde a rainha reconhecer e contar os adeptos e os inimigos. Desde que fora preso, o Sr. de Rohan insistia em pedir uma acareação com a Sra. de La Motte. Essa satisfação foi-lhe concedida. Vivia o príncipe na Bastilha como um grande fidalgo, numa casa que alugara. Tirante a liberdade, tudo lhe era proporcionado. O processo assumira, desde o princípio, proporções mesquinhas, em atenção à qualidade das pessoas incriminadas. Era motivo de espanto para todos que um Rohan fosse acusado de roubo. Por isso mesmo, os oficiais e o governador da Bastilha testemunhavam ao cardeal todo o respeito e toda a deferência que inspira a desgraça. Para eles, não se tratava de uma acusação, senão de um homem que perdera o valimento.

A coisa mudou muito ainda de figura quando se disse, à boca pequena, que o Sr. de Rohan caíra vítima das intrigas da corte. A simpatia que rodeava o príncipe converteu-se em entusiasmo.

E o Sr. de Rohan, um dos primeiros nobres do reino, não compreendia que o amor do povo ]he vinha unicamente de estar sendo perseguido por alguém mais nobre do que êle. Última vítima do despotismo, era o Sr. de Rohan, na verdade, um dos primeiros revolucionários de França.

A sua entrevista com a Sra. de La Motte foi assinalada por notável incidente. A condessa, a quem se permitia falar baixo todas as vezes que se tratava da rainha, conseguiu dizer ao cardeal:

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Ó COLAR DA RAINHA 623

— Afastai toda a gente, e fornecer-vos-ei os esclarecimentos que pedirdes. O Sr. de Rohan manifestou o desejo de estar só e interrogá-la em voz

baixa. O pedido foi-lhe recusado; permitiram, porém, que o seu advogado

conversasse com a condessa. No tocante ao colar, Joana respondeu ignorar o que fora feito dele,

ajuntando que bem poderiam dar-lho de presente. E como o advogado protestasse, embasbacado diante de tamanha audácia,

ela perguntou-lhe se o serviço que prestara à rainha e ao cardeal não valia um milhão?

O advogado repetiu estas palavras ao cardeal, que, ouvindo-as, empalideceu, abaixou a cabeça e adivinhou que caíra na armadilha da infernal embusteira.

Mas se já estava pensando em abafar o rumor do caso, que acarretaria a perdição da rainha, os inimigos dela e os amigos dele instigavam-no a não descontinuar as hostilidades.

Objetavam-lhe que estava em jogo a sua honra; que se tratava de um roubo; que, sem uma decisão do parlamento, a sua inocência não ficaria provada.

Ora, para provar essa inocência era indispensável provar as relações entre o cardeal e a rainha e, por consequência, provar o crime de Sua Majestade.

A essa reflexão, Joana replicou que jamais acusaria a rainha nem o cardeal; mas que, se perseverassem em responsabilizá-la pelo colar, acabaria fazendo o que não queria fazer, isto é, provaria que a rainha e o cardeal tinham interesse em tachá-la de mentirosa.

Quando tais conclusões foram comunicadas ao prelado, o príncipe mostrou todo o seu desprezo pela criatura que assim falava em sacrificá-lo. Ajuntou que compreendia até certo ponto o procedimento de Joana, mas que não compreendia absolutamente o da rainha.

Repetidas a Maria Antonieta, comentadas, essas palavras a irritavam e exacerbavam. Ela ordenou que se fizesse um interrogatório particular sobre os pontos misteriosos do processo. Surgiu então o grande gravame das entrevistas noturnas, desenvolvido à sua luz mais ampla pelos caluniadores e mexeriqueiros.

Foi quando se viu ameaçada a malfadada rainha. Joana afirmava não saber o que estavam falando, sempre que se encontrava perante os adeptos da soberana; mas, em presença dos partidários do cardeal, já se mostrava menos discreta e não se cansava de repetir:

— Deixem-me sossegada que, do contrário, falarei. Essas reticências, essas modéstias, lhe emprestavam um ar de heroína, e tão

bem embaralhavam o processo que os mais estrénuos esquadrinhadores de feitos fremiam ao consultar-lhe as peças e ne-

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nhum juiz de instrução se abalançava a prosseguir nos interrogatórios da condessa.

Terá sido o cardeal mais fraco, mais franco? Terá confessado a algum amigo o que chamava o seu segredo de amor? Não se sabe; nem é crível, pois o coração do príncipe era um nobre e dedicado coração. Mas por mais leal que tivesse sido o seu silêncio, espalhou-se o rumor dos colóquios com a rainha. Tudo o que dissera o Conde da Provença, tudo o que Charny e Filipe tinham visto ou sabido, todos aqueles arcanos ininteligíveis para quem quer que não fosse um pretendente, como o irmão do rei, ou rivais de amor, como Charny e Filipe, todo o mistério daqueles amores tão caluniados e tão castos se evaporou como um perfume e, fundindo-se na atmosfera vulgar, perdeu o aroma ilustre de sua origem.

Está visto que a rainha encontrou calorosos defensores, e o Sr. de Rohan zelosos paladinos.

A questão já não era saber se a rainha roubara ou não um colar de brilhantes, questão, de resto, assaz desonrosa; mas isso já não bastava. Urgia saber se a rainha deixara que roubasse o colar alguém que lhe penetrara o segredo dos amores adúlteros.

Eis como a Sra. de La Motte alcançara contornar a dificuldade. Eis como se via Maria Antonieta metida num caminho cuja única saída era a desonra.

Não se deixando abater, resolveu lutar; o rei apoiou-a. Apoiou-a também o ministério, com todas as forças. A rainha se lembrou

de que o Sr. de Rohan era um homem honrado, incapaz de visar à perdição de uma mulher. Lembrou-se da sua firmeza ao jurar que havia sido admitido às entrevistas de Versalhes.

Disso concluiu que o cardeal não era seu inimigo direto e que, como ela, só tinha um interesse de honra na questão.

A partir de então, todos os esforços do processo foram dirigidos no sentido da condessa e ativamente se buscaram vestígios do colar perdido.

Aceitando o debate sobre a acusação de fraqueza adúltera, a rainha atirava sobre Joana a fulminante acusação do roubo fraudulento.

Tudo depunha contra ela: os seus antecedentes, a sua primitiva miséria, a sua estranha elevação; a nobreza não aceitava aquela princesa do acaso e o povo não podia reivindicá-la, pois odeia, por instinto, os aventureiros e não lhes perdoa sequer os triunfos.

Joana percebeu que tomara o caminho errado e que a rainha, sofrendo a acusação e não cedendo ao medo do escândalo, incitava o cardeal a imitá-la; que as duas lealdades acabariam por entender-se e encontrar a luz, e, ainda que sucumbissem, a queda seria tão horrível que esmagaria também a pobre Valoizinha, princesa de um milhão roubado, que já nem tinha com que subornar os juizes.

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O COLAR DA RAINHA 625

Estavam as coisas nesse pé quando novo episódio se produziu, modificando-lhes o aspecto.

O Sr. de Beausire e a Srta. Oliva viviam felizes e ricos no fundo de uma casa de campo, quando, um belo dia, o cavalheiro, que deixara a senhora em casa e saíra à caça, se viu em companhia de dois dos agentes que o Sr. de Crosne espalhara pela França inteira na esperança de encontrar o desfecho da intriga.

Ignoravam os dois amantes quanto se passava em Paris; pensavam apenas em si mesmos.

A Srta. Oliva engordava como doninha em celeiro e o Sr. Beausire, com a felicidade, perdera a inquieta curiosidade que caracteriza assim as aves de rapina como os homens de presa, característico que a própria natureza deu a uns e outros para a sua conservação.

Beausire, dizíamos, saíra aquele dia à caça das lebres. Levantou uma perdiz que o fêz atravessar uma estrada. E, dessarte, procurando outra, o que não devia procurar, acabou achando o que não procurava.

Os agentes também procuravam a Srta. Oliva e acharam Beausire. Tais são os caprichos comuns da caça.

Um dos sabujos era inteligente. Depois de reconhecer Beausire, em vez de prendê-lo brutalmente, o que não lhe teria dado resultado algum, combinou com o companheiro o seguinte projeto:

— Beausire está caçando; por conseguinte, deve estar livre e rico; terá, talvez, cinco ou seis luíses no bolso, mas é possível que tenha duzentos ou trezentos em casa. Deixemo-lo voltar ao seu domicílio: entremos com êle e ponhamo-lo em leilão. Conduzido a Paris, não nos renderá mais do que cem luíses, como qualquer prisão comum; e ainda por cima seremos repreendidos por atulhar a cadeia com um personagem tão pouco import?nte. Façamos dele uma especulação pessoal.

Puseram-se a caçar perdizes como o Sr. Beausire, lebres como o Sr. Beausire, e, acompanhando os cães quando surgia uma lebre ou batendo o mato quando adivinhavam uma perdiz, não perderam vista da presa.

Vendo que os estranhos se intrometiam na sua caçada, Beausire ficou, primeiro, muito espantado e, depois, muito zangado. Passara a ter ciúmes da sua caça, como todo bom gentil-homem; mas era também muito desconfiado no travar novas relações. Em vez de interrogar pessoalmente os acólitos que lhe proporcionava o acaso, guiou para um guarda que lobrigou na planície e encarregou-o de ir perguntar aos cavalheiros por que estavam caçando naquela propriedade.

O guarda replicou que não os conhecia: portanto, não deviam ser do lugar. E acrescentou que o seu desejo era interromper-lhes a caçada, o que fêz. Mas os dois estranhos retrucaram que estavam caçando com um amigo, aquele senhor lá adiante.

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E apontavam para Beausire. O guarda conduziu-os a êle, a despeito do enfado que causava a confrontação ao gentil-homem caçador.

— Sr. de Linville, — declarou, — estes senhores afirmam que estão caçando convosco. — Comigo! — exclamou Beausire, irritado. — Homessa! — Ué! — disse-lhe baixinho um dos agentes, — você também se chama Linville, meu caro Beausire? Beausire, que ocultava tão bem a sua identidade naquela região,

estremeceu. Olhou para o agente, depois para o companheiro, com ar assustado, julgou

reconhecê-los vagamente, e, a fim de não envenenar as coisas, dispensou o guarda, responsabilizando-se pela caça dos novos conhecidos.

— Conhecei-los, então? — inquiriu o guarda. — Acabamos de nos reconhecer, — explicou um dos agentes.

Viu-se, então, Beausire em presença dos dois caçadores, sem saber o que dizer para não se comprometer.

— Convide-nos para almoçar, Beausire, — sugeriu o mais hábil dos agentes, — em sua casa. — Em minha casa! mas . . . — bradou Beausire. — Você não nos fará essa grosseria, Beausire! Beausire perdera a cabeça; e deixou-se conduzir muito mais do que

conduzia. Assim que avistaram a casa de campo, os agentes gabaram-lhe a elegância,

a situação, as árvores e a perspectiva, como pessoas de bom gosto, pois, em realidade, Beausire escolhera um sítio encantador para nele depor o ninho de seus amores.

Era um vale cheio de árvores, cortado por um ribeirão. Erguia--se a casa numa vertente que olhava para oeste. Uma guarita, espécie de campanário sem campanas, servia de observatório ao inquilino para examinar os arredores, nos dias de tédio, quando se lhe desbotavam as ideias côr-de-rosa e êle via aguazis em cada lavrador inclinado sobre a charrua.

A casa só era visível e risonha de um lado; dos outros, sumia--se entre árvores e irregularidades do terreno.

— Como a gente fica bem escondido aí dentro! — observou um dos policiais, com admiração. Beausire estremeceu ouvindo a pilhéria e entrou na frente dos outros, provocando o ladrido dos cães do pátio. Os agentes seguiram-no, muito cerimoniosos.

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LXXXVIII

Engaiolam-se os pombinhos

AO ENTRAR pela porta do pátio, Beausire tinha uma ideia: fazer bastante barulho para prevenir Oliva e pô-la de sobreaviso. Sem saber coisa alguma sobre o caso do colar, sabia uma porção de coisas sobre o caso do baile da Ópera e da selha de Mesmer e tinha medo de apresentar a companheira a desconhecidos.

Procedeu com prudência; pois a jovem, que se entretinha lendo romances frívolos deitada no sofá da saleta, ouviu latir os cães, olhou para o pátio e viu Beausire acompanhado; e não se precipitou ao seu encontro, como de costume.

Infortunadamente, porém, nem assim se livraram os pombinhos das garras dos abutres. Foi preciso encomendar o almoço e um criado desastrado — os camponeses não são Frontins — perguntou por duas vezes se devia ir receber as ordens da patroa.

Essa palavra fêz que se erguessem as orelhas dos abutres. Zombaram agradavelmente de Beausire sobre a dama escondida, cuja companhia, para um ermitão, era o complemento de todas as felicidades que proporcionam o dinheiro e a solidão.

Beausire deixou-os zombar; mas não apresentou Oliva. Serviu-se farta refeição, a que os agentes fizeram honra. Os comensais

beberam muito e muitas vezes brindaram à saúde da dama ausente. À sobremesa, estando esquentadas as cabeças, os senhores da polícia

entenderam que seria desumano prolongar o suplício do anfitrião. Conduziram habilmente a conversa para o tema do prazer que sentem os bons corações ao topar com velhos conhecidos.

Desarrolhando um frasco de licor das ilhas, Beausire perguntou-lhes onde e quando pudera tê-los encontrado.

— Éramos, — disse um deles, — amigos de um dos seus associados. Você não se recorda de um negocinho que fêz de parceria com outros, na embaixada portuguesa?

Beausire empalideceu. Teve a impressão de estar sentindo uma ponta de corda entre as dobras da gravata.

— Ah! realmente, — balbuciou, trémulo de enleio, — e viestes pedir-me pelo vosso amigo...

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— De fato, é uma ideia, — disse o aguazil ao camarada, — a introdução fica melhor assim. Pedir uma restituição em nome de um amigo ausente é até moral. — De mais a mais, isso nos reserva todos os direitos sobre o resto, — replicou o amigo do moralista com um sorriso agridoce que fêz estremecer o dono da casa da cabeça aos pés. — Portanto?. . . — tornou êle. — Portanto, meu caro Sr. Beausire, ser-nos-ia agradável receber a parte do nosso amigo. Uma dezena de milhares de libras, creio eu. — Pelo menos, sem falar dos juros, — tornou o outro, positivo. — Senhores, — replicou Beausire sufocado pela firmeza do pedido, — ninguém tem dez mil libras em casa, no campo. — Compreende-se, meu caro, e só exigimos o possível. Quanto nos pode dar imediatamente? — Uns cinquenta ou sessenta luíses, no máximo. — Começaremos por aceitá-los e agradeceremos a cortesia. — Ah! — pensou Beausire, encantado com a facilidade dos hóspedes, — são de boa paz. Dar-se-á, acaso, que tenham tanto medo de mim quanto eu deles? Experimentemos. E entrou a refletir que aqueles senhores, se começassem a reclamar muito

alto, conseguiriam apenas demonstrar que eram seus cúmplices, o que, para as autoridades da província, não seria grande recomendação. Concluiu, portanto, que ficariam satisfeitos e guardariam um silêncio absoluto.

Na sua imprudente confiança, chegou a arrepender-se de não ter oferecido trinta em vez de sessenta; mas prometeu a si mesmo livrar-se prontamente deles assim que lhes entregasse a soma.

Não estava, porém, contando com os hóspedes; estes últimos se sentiam muito bem em sua casa; saboreavam a beata satisfação que proporciona uma digestão agradável; mostravam-se bons naquela ocasião porque os cansaria mostrarem-se maus.

— Beausire é um amigo encantador, — disse o Positivo ao companheiro. — Os sessenta luíses que nos dá serão recebidos com muito prazer. — Vou dá-los imediatamente, — prometeu o hospedeiro, assustando-se ao vê-los romperem em báquicas familiaridades. — Não há pressa, — disseram os dois amigos. — Eu sei, eu sei, mas só ficarei com a consciência tranquila depois de haver pago. Ou somos delicados ou não. E quis deixá-los para ir buscar o dinheiro. Mas eles tinham hábitos de beleguins, hábitos enraigados que dificilmente

se perdem depois de adquiridos. Não sabiam soltar a presa após havê-la agarrado. Da mesma forma, o bom cão de caça não larga a perdiz ferida senão para entregá-la ao caçador.

O bom beleguim é aquele que, efetuada a prisão, não deixa o preso, nem com a mão nem com a vista. Sabe perfeitamente

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O COLAR DA RAINHA 629

como é caprichoso o destino para os caçadores e o quanto se alonga o que se larga.

Por isso mesmo, com admirável harmonia, embora já estivessem razoavelmente altos, puseram-se a gritar:

— Sr. Beausire! meu caro Beausire! E a agarrá-lo pelas abas da casaca verde. — Que foi? — perguntou Beausire. — Não nos abandone, por favor, — disseram, obrigando-o galantemente a sentar-se. — Mas como quereis que eu vos dê o dinheiro, se não me deixais subir? — Acompanhá-lo-emos, — prontificou-se o Positivo com estarrecedora ternura. — Mas é. .. é o quarto de minha mulher, — replicou Beausire. Essa

palavra, que êle supunha eficaz para livrar-se dos dois, foi para os esbirros a centellha que incendiou a pólvora.

O seu latente descontentamento, pois um beleguim está sempre descontente com alguma coisa, assumiu forma, corpo, razão de ser.

— Realmente! — gritou o primeiro dos agentes, — por que nos esconde sua mulher? — É isso mesmo. Porventura não somos apresentáveis? — se cundou o outro. — Se soubesse o que fizemos por você, seria mais gentil, — tornou o primeiro. — E nos daria tudo o que pedimos, — ajuntou, temerário, o segundo. — Ora essa! Parece-me que estais falando um pouco alto de mais! — revidou Beausire. — Queremos ver sua mulher, — insistiu o esbirro Positivo. — E eu vos declaro que vou atirar no olho da rua, — gritou Beausire, aproveitando-se da bebedeira deles. A resposta foi uma gargalhada que devera infundir-lhe alguma prudência.

Mas, sem fazer caso disso, êle obstinou-se. — Agora, ameaçou, — não tereis o dinheiro que eu havia prometido e

saireis daqui. Eles se esgargalharam ainda mais formidavelmente. E Beausire, trémulo de raiva: — Compreendo, — disse, com voz sufocada, — fareis barulho e falareis;

mas, se falardes, estareis perdido como eu. Os dois policiais tomavam barrigadas de riso; a brincadeira parecia-lhes

excelente. Não deram outra resposta. Beausire julgou espantá-los com uma demonstração de força, não mais

como o homem que vai buscar alguns luíses, senão como o furioso que vai procurar uma arma. Ergueram-se da mesa os

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esbirros e, fiéis ao seu princípio, correram atrás dele, deitando--lhe as manoplas.

Beausire gritou, abriu-se uma porta, e, transtornada, assustada, no limiar de um dos quartos do primeiro andar, surgiu uma mulher.

Ao vê-la, os homens largaram Beausire e soltaram um grito também, mas de alegria, de triunfo, de selvagem exaltação.

Acabavam de reconhecer a criatura que tanto se parecia com a rainha de França.

Por um momento, Beausire julgou-os desarmados pelo aparecimento de uma mulher, mas logo se desiludiu cruelmente.

O Positivo aproximou-se da Srta. Oliva e, em tom muito pouco polido em face da semelhança, disse-lhe:

— Ah! ah! ah! Estais presa. — Presa! — gritou Beausire; — por quê?... — Porque o Sr. de Crosne nos deu ordem para prendê-la, — esclareceu o outro agente, — e nós estamos a serviço do Sr. De Crosne. Se um raio tivesse caído entre os dois amantes não os teria apavorado tanto

quanto aquela declaração. — Eis em que deu, — disse o Positivo a Beausire, — a sua falta de

delicadeza. O agente fugia à lógica e o companheiro observou-lho, dizendo: — Não tens razão, Legrigneux, pois se Beausire tivesse sido delicado, ter-

nos-ia apresentado à senhora e, de qualquer maneira, nós a teríamos prendido. Beausire apoiara nas mãos a cabeça escaldante. Nem sequer se advertia de

que os dois criados, o homem e a mulher, estavam escutando em baixo da escada a cena estranha que se passava entre os degraus. Teve uma ideia que lhe sorriu e de pronto o refrescou.

— Viestes para prender-me, não viestes? — perguntou. — Não. Foi tudo obra do acaso, — responderam eles ingenuamente. — Não importa. Podíeis prender-me e, por sessenta luíses, me deixaríeis em liberdade. — Também não; a nossa intenção era pedir mais sessenta. — E temos uma palavra só, — continuou o outro; — assim, por cento e vinte luíses, deixá-lo-emos em liberdade. — Mas... e a senhora? — volveu Beausire, trémulo. — Com ela o caso é diferente, — acudiu o Positivo. — A senhora vale duzentos luíses, não vale? — apressou-se a dizer Beausire. Os agentes recomeçaram as terríveis gargalhadas, que, desta feita, Beausire

compreendeu.

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— Trezentos, — ofereceu êle, — quatrocentos... mil luízes! Mas ela ficará em liberdade.

Cintilavam-lhe os olhos enquanto falava: — Não respondeis, — continuou; — sabeis que tenho dinheiro e quereis que eu pague. É muito justo. Dar-vos-ei dois mil luíses, quarenta e oito mil libras, uma fortuna, mas deixai-a em liberdade. — Você gosta tanto assim dessa mulher? — perguntou o Positivo. Foi a vez de Beausire gargalhar, um gargalhar irónico e assustador, retrato

tão fiel do amor desesperado que lhe devorava o coração, que os dois esbirros ficaram com medo e decidiram tomar precauções para evitar a explosão do desespero que se lia no seu olhar transtornado.

Cada qual tirou duas pistolas do bolso e, encostando-as ao peito de Beausire:

— Por cem mil escudos, — disse um deles, — nós lhe devolveríamos esta mulher. O Sr. de Rohan nos dará por ela quinhentas mil libras e a rainha, um milhão.

Beausire ergueu os olhos para o céu com uma expressão que teria enternecido qualquer outro animal feroz que não fosse um aguazil.

— Vamos embora, — atalhou o Positivo. — Você há de ter aqui um carro, qualquer coisa que rode; mande-o aparelhar para a senhora, é um obséquio que lhe deve. — E como somos boa gente, — tornou o outro, — não abusaremos. Irá conosco também, mas por mera formalidade; no caminho, viraremos os olhos, você saltará do carro e só daremos pela coisa quando o virmos a mil passos de distância. ,Não está bem assim? Beausire respondeu apenas: — Aonde ela fôr, irei. Nunca a deixarei nesta vida. — Nem na outral — acrescentou Oliva, gelada de terror. — Tanto melhor, — observou o Positivo, — quanto maior é o número de prisioneiros que levamos ao Sr. de Crosne, tanto mais êle se diverte. Um quarto de hora depois, saía da casa o carro de Beausire com os dois

amantes cativos e seus respectivos guardas.

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LXXXIX

A biblioteca da rainha

E FÁCIL imaginar o efeito que produziu aquela captura no Sr. de Crosne.

Os agentes provavelmente não receberam o milhão que estavam esperando, mas é muito de crer que tivessem ficado satisfeitos.

Em quanto ao Chefe de Polícia, depois de haver esfregado longamente as mãos em sinal de regosijo, dirigiu-se num carro a Versalhes, acompanhado de outro, hermeticamente fechado e aferrolhado.

Era o dia seguinte àquele em que o Positivo e seu amigo haviam entregue Nicole entre as mãos do Chefe de Polícia.

O Sr. de Crosne fêz entrar os dois veículos em Trianon, desceu do seu e deixou o outro guardado pelo primeiro secretário.

Em seguida, entrou à presença da rainha, à qual, na véspera, mandara solicitar uma audiência.

Maria Antonieta, que, de um mês àquela parte, recebia com suma atenção quanto lhe viesse da polícia, acedeu incontinenti ao requerimento do ministro; foi, logo cedo, para a sua casa favorita, e muito pouco acompanhada, para o caso de ser necessário o segredo.

Assim que o Sr. de Crosne foi trazido à sua presença, imaginou, pela expressão radiante no recém-chegado, que as notícias eram boas.

Pobre mulher! fazia já muito tempo que só via em torno de si rostos sombrios e reservados.

Um bater alegre, o primeiro depois de trinta dias mortais, agitou-lhe o coração, ferido por tantas e tão dolorosas comoções.

O magistrado, depois de lhe haver beijado a mão: — Senhora, — perguntou, — terá Vossa Majestade em Trianon uma sala em que, sem ser vista, possa ver o que se passa? — Tenho a biblioteca, — respondeu a rainha; — mandei que deixassem umas frestas ao nível das estantes que dão para o meu gabinete, e, às vezes, enquanto merendava, divertia-me com a Sra. de Lamballe ou com a Srta. de Taverney, quando a tinha, vendo as caretas engraçadas do Padre Vermond, sempre que lhe acontecia dar com um panfleto em que se falava dele.

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O COLAR DA RAINHA 633

— Muito bem, senhora, — respondeu o Sr. de Crosne. — Agora, está lá em baixo um carro que eu quisera fazer entrar no castelo sem que o seu conteúdo fosse visto de ninguém, senão de Vossa Majestade. — Nada mais fácil, — replicou a rainha; — onde está o carro? — No primeiro pátio, Majestade. A rainha tocou a sineta e logo surgiu alguém para receber-lhe as ordens. — Fazei entrar o carro que o Sr. de Crosne vos indicar, — ordenou, —

no vestíbulo grande, e fechai as duas portas de tal maneira que se escureça completamente o recinto, para que ninguém possa ver antes de mim as curiosidades que êle me traz.

A ordem executou-se. Eram muito mais respeitados os caprichos do que as determinações da rainha. O carro entrou no vestíbulo abobadado, ao pé da casa dos guardas, e despejou o seu conteúdo no escuro corredor.

— Agora, senhora, — propôs o Sr. de Crosne, — tenha a bondade de ir comigo para o seu gabinete e ordene que deixem entrar na biblioteca o meu secretário e o que êle trouxer.

Dez minutos de"pois, a rainha, espiava, palpitante, através das estantes. Viu entrar na biblioteca uma forma velada, que o secretário desvelou, e que,

reconhecida, lhe arrancou um grito de pavor. Era Oliva, pompeando um dos trajos prediletos de Maria Antonieta.

Trazia o vestido verde de listas ondeadas pretas, o toucado alto preferido por Sua Majestade, anéis semelhantes aos dela, sapatos de cetim verde e saltos enormes: era a própria Maria Antonieta, menos o sangue dos Césares, substituído pelo fluido plebeu, móvel de todas as volúpias do Sr. Beausire.

A rainha julgou ver-se num espelho; devorou com a vista a aparição. — Que diz Vossa Majestade da semelhança? — perguntou o Sr. de Crosne, triunfante com o efeito produzido. — Digo... digo... senhor, — balbuciou a rainha, desnorteada, enquanto pensava: — Ah!! Oliveiros, por que não estás aqui? — Que quer Vossa Majestade? — Nada, senhor, nada, senão que o rei saiba... — E que o Sr. da Provença veja, não é isso? — Obrigada, Sr. de Crosne, obrigada! Mas que se fará com essa mulher? — A ela porventura se atribui tudo o que aconteceu? — tornou o Sr. de Crosne. — Tendes os fios da trama? — Mais ou menos. — E o Sr. de Rohan? — Ainda não sabe de nada.

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634 ALEXANDRE DUMAS

— Oh! — volveu a rainha, escondendo a cabeça entre as mãos, — agora vejo, senhor, que essa mulher foi a causa do engano do cardeal! — Seja, senhora; mas o engano do Sr. de Rohan é o crime de outrem! — Procurai bem: tendes nas mãos a honra da casa de França. — E creia, senhora, que está em boas mãos, — respondeu o Sr. de Crosne. — O processo? — indagou a rainha. — Caminha. Todos negam tudo; mas espero apenas o momento azado para exibir o documento que aí está na biblioteca. — E a Sra. de La Motte? — Não sabe que encontrei a rapariga, e acusa o Sr. de Cagliostro de haver enchido tanto a cabeça do cardeal que este perdeu o juízo. — E o Sr. de Cagliostro? — O Sr. de Cagliostro, que mandei interrogar, prometeu virver-me ainda hoje. — É um homem perigoso. — Será um homem útil. Picado por uma víbora como a Sra. de La Motte, absorverá o veneno e nos fornecerá o contraveneno. — Esperais revelações? — Tenho a certeza de que serão feitas. — Como? Oh! dizei-me tudo o que possa tranqúilizar-me. — Eis aqui as minhas razões, senhora: a Sra. de La Motte morava na Rua de São Cláudio... — Eu sei, eu sei, — atalhou a rainha, acarminando-se. — Sim, Vossa Majestade fêz-lhe a honra de tratá-la caritativa mente. — E ela pagou-me muito bem, não é verdade? Mas voltemos ao caso: ela morava, portanto, na Rua de São Cláudio. — O Sr. de Cagliostro mora defronte. — E supondes?... — Que, se houve algum segredo entre os dois vizinhos, o segredo deve pertencer a ambos. Mas, perdão, senhora, está chegando a hora em que espero, em Paris, o Sr. de Cagliostro, e por nada deste mundo eu quisera retardar-lhe as explicações... — Ide, senhor, ide, e mais uma vez ficai certo do meu reconhecimento. — Eis aí, — bradou, em prantos, depois que partiu o Sr. De Crosne, — eis aí a justificação que começa. Lerei o meu triunfo em todos os rostos. Mas o rosto do único amigo a quem eu teria empenho de provar a minha inocência, esse não o verei! Entrementes, o Sr. de Crosne voava na direção de Paris e voltava para

casa, onde estava à sua espera o Sr. de Cagliostro.

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O COLAR DA RAINHA 635

Cagliostro sabia de tudo desde a véspera. Endereçava-se ao refúgio de Beausire, que conhecia, para acabar com êle que saísse de França, quando, na estrada,' entre os dois agent.es, o avistou no interior do carro. Oliva estava escondida no fundo, corrida e lacrimosa.

Beausire viu passar o conde em sua sege de posta; reconheceu-o. A lembrança de que aquele senhor misterioso e poderoso lhe poderia ser útil modificou-lhe todas as ideias sobre a inconveniência de deixar Oliva.

Recordou aos agentes a proposta que lhes ouvira respeito à sua evasão. Os beleguins aceitaram cem luíses que o preso trazia consigo e deixaram-no escapar-se, apesar das lágrimas de Nicole.

Entretanto, beijando-a, sussurrou-lhe Beausire ao ouvido: — Espera; vou trabalhar por salvar-te. E entrou a caminhar a passos largos na direção seguida por Cagliostro. Este se detivera; já não tinha necessidade de ir à casa de Beausire, visto que

Beausire estava de volta. Era-lhe mais conveniente esperá-lo do que correr no seu encalço.

Cagliostro esperava, portanto, havia seguramente meia hora numa curva da estrada, quando viu chegar, pálido, espavorido, semimorto, o desgraçado amante de Oliva.

. À vista do carro parado, Beausire desferiu o grito de alegria do náufrago que encontra uma tábua. '

— Que aconteceu, meu filho? — perguntou o conde, ajudando-o a subir. Beausire referiu toda a sua lamentável história, que Cagliostro ouviu em

silêncio. — Ela está perdida, — observou, em seguida. — Como assim?

O conde contou-lhe o que êle não sabia, a intriga da Rua de São Cláudio e a de Versalhes. Beausire quase desmaiou.

— Salvai-a, salvai-a, — implorou, caindo de joelhos no interior do carro, — e eu vo-la darei, se ainda a amais. — Meu amigo, — replicou Cagliostro, — estais enganado, nunca amei a Srta. Oliva; a minha única intenção era arrancá-la à vida de devassidões que ela levava convosco. — Mas. . . — balbuciou Beausire, surpreso. — Isso vos admira? Pois ficai sabendo que sou síndico de uma sociedade de reforma moral, cuja finalidade é furtar ao vício todo aquele que manifesta possibilidades de cura. Eu teria curado Oliva se conseguisse arrancá-la de vós, e aí está porque a arranquei. Perguntai-lhe se alguma vez ouviu de minha boca um galanteio; perguntai-lhe se os meus serviços não foram sempre desinteressados!

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— Mais uma razão, senhor; salvai-a! salvai-a. — Estou disposto a tentá-lo; mas isso dependerá de vós, Beausire. — Pedi-me a vida. — Não pedirei tanto. Voltai comigo a Paris e, se seguirdes à risca as minhas instruções, talvez logremos salvar a vossa amante. Imponho apenas uma condição. — Qual, senhor? — Di-la-ei quando chegarmos à minha casa. — Aceito-a antecipadamente; mas quero revê-la, revê-la! — Pois é justamente o que estou planejando; dentro em duas horas tornareis a vê-la. — E poderei beijá-la? — Espero que sim; fareis mais, repetir-lhe-eis o que vou dizer-vos. Cagliostro retomou, em companhia de Beausire, a estrada de Paris. Duas horas depois, ao cair da tarde, alcançara o carro dos guardas. E, volvida uma hora, Beausire comprava aos agentes por cinquenta luíses, o

direito de beijar Nicole e de transmitir-lhe as recomendações do conde. Os aguazis admiraram-se daquele amor apaixonado e contavam ganhar

assim cinquenta luíses em cada posta. Mas Beausire não tornou a aparecer e a sege de Cagliostro levou-o, célebre,

na direção de Paris, onde tantos sucessos se preparavam. Eis o que era necessário contar ao leitor antes de mostrar-lhe o Sr.

Cagliostro conversando com o Sr. de Crosne. Agora podemos introduzi-lo no gabinete do Chefe de Polícia.

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O gabinete do chefe de polícia

O SR. DE CROSNE sabia a respeito de Cagliostro tudo o que um hábil Chefe de Polícia pode saber sobre um habitante da França, o que não é pouco. Conhecia-lhe todos os nomes passados, todos os segredos de alquimista, de magneti-zador e de adivinho; conhecia as suas pretensões à ubiquidade, à regeneração perpétua: tinha-o na conta de um fidalgo charlatão.

Esse Sr. de Crosne era um espírito forte, senhor de todos os recursos do seu cargo; benquisto na corte, mostrava-se indiferente ao valimento e não transigia com o orgulho; era, enfim, um homem que se não deixava dominar por qualquer um.

A êle, como ao Sr. de Rohan, Cagliostro não podia oferecer luíses ainda quentes do forno hermético; a êle, Cagliostro não teria apresentado o cano de uma pistola, como Bálsamo apresentara ao Sr. de Sartines; a êle, Bálsamo já não tinha Lourença para reclamar, mas Cagliostro tinha contas que prestar.

Eis porque o conde, em vez de esperar os acontecimentos, achara melhor pedir audiência ao magistrado.

O Sr. de Crosne sentia a vantagem da sua posição e preparava--se para aproveitá-la. Cagliostro sentia a dificuldade da sua e preparava-se para vencê-la.

Essa partida de xadrez, jogada a descoberto, escondia uma parada que um dos jogadores não esperava, e esse, força é confessá-lo, não era o Sr. de Crosne.

O Chefe de Polícia só conhecia de Cagliostro, como dissemos, o charlatão; ignorava completamente o adepto. Muita gente tropeçou nas pedras semeadas pela filosofia no caminho da monarquia apenas por não as ter visto.

O Sr. de Crosne esperava de Cagliostro revelações sobre o colar, sobre os negócios escusos da Sra. de La Motte. Era a sua desvantagem. Assistia-lhe, porém, o direito de interrogar e encarcerar. Era a sua superioridade.

Recebeu o conde como um homem cônscio da própria importância, mas que não quer ser descortês com ninguém, nem sequer com um fenómeno.

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Precatou-se Cagliostro. Queria mostrar-se apenas grande fidalgo, a única fraqueza que julgava dever permitir que se desvelasse.

— Senhor, — disse-lhe o Chefe de Polícia, — pedistes-me uma audiência. Estou chegando de Versalhes exclusivamente para ou vir-vos. — Senhor, cuidei que teríeis algum interesse em interrogar-me sobre o que está acontecendo e, conhecendo o vosso mérito e a importância de vossas funções, apresentei-me. Aqui estou. — Interrogar-vos? — acudiu o magistrado, simulando surpresa; — mas a troco de quê? — Senhor, — replicou Cagliostro sem hesitar, — estais atualmente muito ocupado com a Sra. de La Motte e com o desaparecimento do colar. — Te-lo-íeis, acaso, encontrado? — perguntou o Sr. de Crosne, quase zombeteiro. — Não, — respondeu gravemente o conde. — Mas, se não encontrei o colar, sei pelo menos que a Sra. de La Motte morava na Rua de São Cláudio. — Defronte da vossa casa; eu também sabia, — conveio o magistrado. — Então, senhor, sabeis o que fazia a Sra. de La Motte... Não falemos mais nisso. — Pelo contrário, — volveu o Sr. de Crosne com ar indiferente, — falemos. — Isso só poderia ter algum interesse a propósito de Oliva, — tornou Cagliotro; — mas visto que sabeis tudo sobre a Sra. de La Motte, já não tenho nada que vos revelar. Ao nome de Oliva, o Sr. de Crosne estremeceu. — Que estais dizendo de Oliva? — perguntou. — Quem é Oliva? — Não sabeis? Ah! senhor, era uma curiosidade que me surpreenderia revelar-vos. Imaginai uma rapariga muito bonita, um corpo... olhos azuis, oval do rosto perfeito; a propósito, um género de beleza que lembra um pouco o de Sua Majestade a rainha. — Ah! ah! — exclamou o Sr. de Crosne, — e daí? — Daí, a rapariga vivia mal e deu-me pena; ela serviu, antigamente, a um velho amigo meu, o Sr. de Taverney... — O barão que morreu outro dia? — Precisamente. Além disso, pertenceu a um sábio que não conheceis, Sr. Chefe de Polícia, e que... Mas estou falando de mais e vejo que principio a entendiar-vos. — Tende a bondade de continuar. Dizíeis que essa Oliva?... — Vivia mal. Levava uma existência de quase miséria com um troca-tintas, seu amante, que a roubava e lhe batia: uma de vossas presas mais ordinárias, senhor, um espertalhão que não deveis conhecer. . .

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— Ura tal Beausire, talvez? — sobreveio o magistrado, satisfeito de parecer bem informado. — Ah! conhecei-lo? É surpreendente, — acudiu_ Cagliostro com admiração. — Muito bem! sois ainda melhor adivinho do que eu. Ora, um dia em que Beausire a espancara e roubara mais que de costume, ela veio refugiar-se ao pé de mim e pediu-me proteção. Sou bom, dei-lhe não sei que canto de pavilhão numa de minhas casas... — Em vossa casa!. . . Ela estava em vossa casa? — bradou, surpreso, o magistrado. — Sem dúvida, — retorquiu Cagliostro, simulando espantar-se por seu turno. — Por que não haveria eu de abrigá-la, sendo solteiro? - E abriu a rir com tanta bonomia que o Sr. de Crosne se deixou

embair completamente. — Em vossa casa! — repetiu; — então foi por isso que os meus agentes tiveram de procurá-la tanto! — Como! Procuraram-na? — volveu Cagliostro. — Essa moça estava sendo procurada? Terá feito alguma coisa, que eu não saiba?. .. — Não, senhor, não; continuai, por favor. — Oh! meu Deus! já terminei. Abriguei-a em minha casa; é tudo. — Não, não! Sr. Conde, não é tudo, visto que parecíeis, ainda há pouco, associar o nome de Oliva ao da Sra. de La Motte. — Por causa da vizinhança... — Há outra coisa, Sr. Conde. . . Não me dissestes à-toa que a Sra. de La Motte e a Srta. Oliva eram vizinhas. — Mas isso se refere a uma circunstância que fora ocioso contar-vos. Não é ao primeiro magistrado do reino que se devem relatar mexericos de província. — Estais-me interessando, senhor, e muito mais do que supondes; pois essa Oliva que dizeis ter hospedado em vossa casa, encontrei-a na província. — Vós a encontrastes!... — Com o Sr. de Beausire... — Eu já andava desconfiado, — acudiu Cagliostro. — Ela estava com Beausire? Ah! muito bem! muito bem! Reparação seja feita à Sra. de La Motte. — Como! Que quereis dizer? — voltou o Sr. de Crosne. — Quero dizer que, depois de haver momentaneamente suspeitado da Sra. de La Motte, aqui lhe faço plena e inteira reparação. — Suspeitado! De quê? — Misericórdia! Tendes, então, paciência para ouvir todos os mexericos? Pois bem! quando eu já alimentava esperanças de cor-

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rigir essa Oliva, de fazê-la voltar ao trabalho e à honestidade (pois ocupo-me de moral, senhor), alguém apareceu e ma arrebatou.

— Arrebatou-a! De vossa casa? — De minha casa. — É estranho! — Não é? E eu teria jurado que havia sido a Sra. de La Motte. Como são precários os juízos deste mundo! O Sr. de Crosne aproximou-se de Cagliostro. — Tende a bondade de precisar, — disse êle. — Oh! senhor, agora que encontrastes Oliva em companhia de Beausire, nada mais me fará pensar na Sra. de La Motte, nem nas suas assiduidades, nem nos seus sinais, nem nas suas correspondências. — Com Oliva? — Exatamente. — A Sra. de La Motte e Oliva se entendiam? — Perfeitamente. — Viam-se? — A Sra. de La Motte encontrara um meio de fazê-la sair todas as- noites. — Todas as noites! Tendes certeza? — Tanta quanta pode ter um homem do que viu e ouviu. — Estais-me dizendo coisas que eu pagaria à razão de mil libras por palavra. Ainda bem que sois fabricante de ouro. — Já o não fabrico; saía-me muito caro. — Não sois amigo do Sr. de Rohan? — Creio que sim. — Deveis saber, então, que papel essa intrigante, que se chama Sra. de La Motte, representa no seu escandaloso caso? — Não; quero ignorá-lo. — Mas calculais talvez as consequências dos passeios de Oliva e da Sra. de La Motte? — Senhor, há coisas que um homem prudente deve sempre procurar ignorar, — replicou, sentencioso, Cagliostro. — Terei a honra de perguntar-vos apenas mais um coisa, — disse vivamente o Sr. de Crosne, — tendes provas de que a Sra. De La Motte se haja correspondido com Oliva? — Cem. — Quais? — Bilhetes que a Sra. de La Motte arremessava no quarto de Oliva com a ajuda de uma balestra, que, sem dúvida, se encontrará em sua casa. Muitos desses bilhetes, enrolados num pedaço de chumbo, não atingiam o alvo. Caíam na rua e diversos foram apanhados por mim e pelos meus criados. — Estaríeis disposto a fornecê-los à justiça?

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— Oh! senhor, são tão inocentes que eu não escrupulizaria de fazê-lo, nem julgaria por isso merecer uma censura da Sra. de La Motte. — E. .. as provas das conivências, dos encontros? — Mil. — Uma só, por favor. — A melhor. Parece que a Sra. de La Motte entrava com facilidade em minha casa para ver Oliva, pois eu mesmo lá a encontrei no dia em que desapareceu a rapariga. — No mesmo dia? — Todos os meus criados a viram como eu. — Ah!. . . e que estava ela fazendo lá, se Oliva tinha sumido? ... — Foi o que perguntei a mim mesmo a princípio, sem poder explicá-lo. Eu vira a Sra. de La Motte descer de um carro de posta parado na Rua do^Rei Dourado. Os meus criados já tinham visto o carro estacionado durante muito tempo, e confesso que che guei a pensar que a Sra. de La Motte pretendia tomar a seu cargo a rapariga. — E consentíeis nisso? — Por que não? Essa Sra. de La Motte é uma senhora caridosa e favorecida pela fortuna. É recebida na corte. Por que haveria eu de obstar a que me livrasse de Oliva? E, como vedes, faria mal, porque outro ma arrebatou para tornar a perdê-la. — Ah! — murmurou o Sr. de Crosne, meditando profundamente, — a Srta. Oliva estava hospedada em vossa casa? — Estava, sim, senhor. — A Srta. Oliva e a Sra. de La Motte se conheciam, viam-se, saíam juntas? — Sim, senhor. — A Sra. de La Motte foi vista em vossa casa, no dia do sequestro de Oliva? — Foi, sim, senhor. — E pensáveis que a Sra. Condessa queria ficar com ela? — Que outra coisa se poderia pensar? — Mas que disse a Sra. de La Motte quando não encontrou Oliva em vossa casa?

— Pareceu-me perturbada. — Imaginais que tenha sido Beausire o seqiiestrador? — Suponho-o tão-sòmente porque me dizeis que êle realmente a sequestrou; do contrário, não suporia coisa alguma. Esse homem desconhecia o paradeiro de Oliva. Quem pode haver-lho revelado? — A própria Oliva. — Não creio, pois em vez de se fazer raptar por êle em minha casa,

ela teria fugido de minha Gasa para encontrá-lo, e podeis acre-

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ditar que êle não teria entrado se a Sra. de La Motte não lhe tivesse dado uma chave.

— Ela possuía uma chave de vossa casa? — Nem há dúvida. — Em que dia a sequestraram? — perguntou o Sr. de Crosne, subitamente iluminado pelo facho que tão habilmente lhe estendia Cagliostro. — Oh! senhor, não há engano possível: foi exatamente na véspera do dia de São Luís. — É isso mesmo! — bradou o Chefe de Polícia, — é isso mesmo! Acabastes de prestar assinalado serviço ao Estado. — Folgo muitíssimo, senhor. — E sereis convenientemente recompensado. — Primeiro pela minha consciência, — disse o conde. O Sr. de Crosne cumprimentou-o. — Posso contar com a consignação das provas de que falamos?— perguntou. — Estou pronto, senhor, a obedecer em tudo à justiça. — Aceitarei a vossa palavra; terei a honra de rever-vos. E dispensou Cagliostro, que disse, ao sair: — Ah! condessa, ah! víbora, quiseste acusar-me; mas creio que mordeste a

lima; cuidado com os dentes!

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Os interrogatórios

ENQUANTO o Sr. de Crosne assim conversava com Cagliostro, o Sr. de Breteuil se dirigia à Bastilha, da parte do rei, para interrogar o Sr. de Rohan.

Entre os dois inimigos a entrevista poderia ser tempestuosa. O Sr. de Breteuil conhecia a altivez do Sr. de Rohan: tomara dele uma vingança tão terrível que se poderia ater, daquele momento em diante, às normas de polidez. Foi mais do que polido. O Sr. de Rohan recusou-se a responder.

O ministro insistiu mas o cardeal declarou que se conformava com as medidas que tomassem o parlamento e seus juizes.

O Sr. de Breteuil teve de retirar-se em face da inquebrantável determinação do acusado.

Mandou chamar à sua presença a Sra. de La Motte, ocupada em redigir memórias; ela obedeceu, solícita. ,

O Sr. de Breteuil explicou-lhe claramente a situação, que ela conhecia melhor do que ninguém. Joana respondeu que possuía provas da sua inocência e as exibiria quando preciso fosse. Observou-lhe o Sr. de Breteuil que nada poderia ser mais urgente.

A condessa recitou toda a fábula que havia engendrado; eram sempre as mesmas insinuações contra toda a gente, a mesma afirmação de que as falsificações arguidas procediam de uma fonte que ela desconhecia.

Declarou também que, estando o parlamento encarregado do caso, só diria coisas absolutamente verdadeiras em presença do Sr. Cardeal e de conformidade com as acusações que êle lhe dirigisse.

Respondeu-lhe o Sr. de Breteuil que o cardeal a acusava de tudo. — De tudo? — recalcitrou Joana, — até do roubo? — Até do roubo. — Fazei-me a fineza de avisar ao Sr. Cardeal, — atalhou friamente Joana, — que não se obstine por mais tempo num mau sistema de defesa. E foi tudo. Mas o Sr. de Breteuil não estava satisfeito. Queria pormenores

íntimos. Era-lhe necessário, para a sua lógica, o conhe-

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cimento das causas que haviam levado o cardeal a mostrar-se tão temerário em relação à rainha, e a rainha tão irada contra o cardeal.

Era-lhe necessária a explicação de todos os relatórios recolhidos pelo Sr. Conde da Provença e convertidos em rumores públicos.

Homem inteligente, o Ministro da Justiça sabia agir sobre o espírito de uma mulher; prometeu tudo à Sra. de La Motte, se ela acusasse claramente alguém.

— Cuidado! — advertiu, — ficando quieta, acusais a rainha; e se persistirdes nisso, sereis condenada por crime de lesa-majestade: será a vergonha, será o baraço! — Não acuso a rainha, — respondeu Joana; — mas por que me acusam? — Nesse caso, acusai alguém, — tornou o inflexível Breteuil; — não tendes outro meio de defesa. Ela fechou-se num mutismo prudente, e a primeira entrevista entre a

acusada e o ministro não surtiu efeito algum. Entretanto, espalhava-se o rumor de que haviam surgido provas, de que os

brilhantes tinham sido vendidos na Inglaterra, onde o Sr. de Villette fora preso pelos agentes do Sr. de Vergennes.

O primeiro assalto que Joana precisou sustentar foi terrível. Acareada com o Reteau, que supunha seu aliado até à morte, ouviu-o, aterrada, confessar humildemente que era um falsário, que forjara o recibo dos brilhantes e a carta da rainha, falsificando, ao mesmo tempo, as assinaturas dos joalheiros e de Sua Majestade.

Perguntado por que motivo perpetrara esses crimes, respondeu que o fizera a pedido da Sra. de La Motte.

Desvairada, furiosa, ela negou, defendeu-se como uma leoa; e jurou que nunca vira, nem conhecera, aquele Sr. Reteau de Villette.

Mas até nesse particular recebeu dois golpes tremendos; dois testemunhos esmagaram-na.

O primeiro era o de um cocheiro de fiacre, encontrado pelo Sr. de Crosne, que declarou ter levado, no dia e na hora citados por Reteau, uma dama vestida de tal e tal modo, à Rua de Mont-martre.

Cercando-se de tantos mistérios, quem poderia ser essa dama, recolhida pelo cocheiro no bairro do Marais, senão a Sra. de La Motte, que morava na Rua de São Cláudio?

E no tocante à familiaridade que existia entre os dois cúmplices, como negá-la quando uma testemunha afirmava ter visto, na véspera do dia de São Luís, na almofada de uma sege, da qual apeara a Sra. de La Motte, o Sr. Reteau de Villette, reconhecível pelo semblante pálido e inquieto?

O depoente era um dos principais criados do Sr. de Cagliostro. Esse nome exasperou Joana e levou-a aos extremos. Fêz uma série de

acusações contra Cagliostro, que ela declarava ter fasci-

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nado, através de sortilégios e bruxarias, o espírito do Cardeal de Rohan, incutindo-lhe ideias culpadas contra a Majestade real.

Era o primeiro elo da acusação de adultério. O Sr. de Rohan defendeu-se defendendo Cagliostro. Negou tão

obstinadamente, que Joana, exacerbada, insinuou, pela primeira vez, a existência de um amor insensato do prelado à rainha.

O Sr. de Cagliostro pediu imediatamente, e obteve-o, que o encarcerassem a fim de poder provar a toda a gente a sua inocência. E inflamando-se acusadores e juizes, como sempre acontece ao primeiro sopro da verdade, a opinião pública decidiu-se, desde logo, em favor do cardeal e de Cagliostro contra Maria Antonieta.

Foi nessa altura que a inditosa princesa, para demonstrar a sua perseverança em acompanhar o processo, mandou publicar os relatórios apresentados ao rei sobre os passeios noturnos e, apelando para o Sr. de Crosne, intimou-o a declarar o que sabia.

Habilmente calculado, o golpe caiu sobre Joana e quase a aniquilou para sempre.

Em plena audiência de instrução, o interrogador ordenou ao Sr. de Rohan que dissesse o que sabia sobre esses passeios nos jardins de Versalhes.

Respondeu o cardeal que, incapaz de mentir, apelava para o testemunho da Sra. de La Motte.

Esta negou que se tivessem realizado passeios com a sua anuência ou conhecimento.

Inquinou de mentirosos os relatórios e depoimentos que a denunciavam como tendo sido vista nos jardins, quer em companhia da rainha, quer em companhia do cardeal.

A declaração inocentava Maria Antonieta, a ser possível acreditar nas palavras de uma mulher incriminada de falsidade e roubo. Mas, vindo de sua parte, a justificação asssumia o aspecto de um ato de complacência e a rainha não quis justificar-se dessa maneira.

Por isso mesmo, quando Joana jurava e tresjurava que nunca estivera à noite no jardim de Versalhes e nunca vira nem soubera dos negócios particulares da rainha e do cardeal, surgiu Oliva, testemunho vivo, que fêz mudar a opinião pública e deu em terra com o edifício de mentiras erguido pela condessa.

Como não ficou ela sçpultada debaixo de suas ruínas? Como pôde reerguer-se mais odienta e mais terrível? Não explicamos o fenómeno apenas pela vontade da condessa, senão também pela fatal influência que perseguia a rainha.

Oliva confrontada com o cardeal, que golpe terrível! o Sr. de Rohan compreendendo finalmente que fora intrujado de maneira infame! Esse homem cheio de delicadezas e nobres paixões, descobrindo que uma aventureira, associada a uma velhaca, levara-o a

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desprezar publicamente a rainha de França, uma mulher que êle amava e que não tinha culpa!

O efeito dessa aparição sobre o Sr. de Rohan seria, a nosso ver, a cena mais dramática e importante do caso, se não fôssemos, aproximando-nos da história, cair na lama, no sangue e no horror.

Quando o Sr. de Rohan viu Oliva, rainha de fancaria, e lembrou-se da rosa, dos apertos de mão e dos banhos de Apoio, empalideceu, e teria derramado todo o seu sangue aos pés de Maria Antonieta se a tivesse visto ao lado da outra naquele momento.

Quantos-perdões, quantos remorsos se lhe arrancaram da alma para ir, com lágrimas, purificar o último degrau do trono em que um dia extravasara êle o seu desprezo com o despeito de um amor desdenhado!

Mas esse mesmo consolo era-lhe defeso; não podia aceitar a identidade de Oliva sem confessar que amava a verdadeira rainha; e a confissão do seu erro era uma acusação, um enxovalho. Consentiu que Joana negasse tudo. Calou-se.

E quando o Sr. de Breteuil e o Sr. de Crosne quiseram obrigá-la a explicar-se mais circunstanciadamente:

— O melhor meio, — disse Joana, — de provar que a rainha não foi passear no parque durante a noite, é mostrar uma mulher parecida com ela, que confesse ter estado no parque. Mostraram--na; está bem.

A infame insinuação foi bem sucedida. A condessa, mais uma vez, infirmava a verdade.

Mas como Oliva, na sua ingénua inquietude, fornecesse todos os dados e todas as provas, como não omitisse coisa alguma, como se mostrasse muito mais veraz do que a Sra. de La Motte, esta apelou para um meio desesperado: confessou.

Confessou que levara o cardeal a Versalhes; que Sua Excelência queria a todo transe ver a rainha, para apresentar-lhe os protestos de sua respeitosa dedicação; confessou-o porque sentiu atrás de si um partido inteiro, que a desertaria se ela se obstinasse na negativa; confessou-o porque, acusando a rainha, conciliaria a seu favor todos os numerosos inimigos de Maria Antonieta.

Então, pela décima vez no processo infernal, os papéis se inverteram: passou o cardeal a representar o de um ludibriado, Oliva, o de uma prostituta sem poesia e sern, sentido, Joana, o de uma intrigante; não poderia escolher outro melhor para si.

Mas como, para assegurar o bom êxito do plano ignóbil, urgia que a rainha também representasse a sua parte, deram-lhe a mais odiosa, a mais abjeta, a mais comprometedora para a dignidade real, a de uma sécia estouvada, a de uma reles costureirinha que tramasse mistificações. Maria Antonieta foi Dorimène conspirando com Frosine contra o Sr. Jourdain, cardeal.

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Joana declarou que os passeios eram dados com a anuência de Maria Antonieta, que, escondida atrás de uma moita, escutava, morrendo de rir, os apaixonados discursos do apaixonado Sr. de Rohan.

Eis o que escolheu como última trincheira a ladra que já não sabia onde ocultar o furto: o manto real feito da honra de Maria Teresa e de Maria Leckzinska.

Sucumbiu a rainha sob a última acusação, pois não podia provar-lhe a falsidade. E não podia porque, acuada, Joana ameaçara publicar todas as cartas de amor escritas pelo Sr. de Rohan a Sua Majestade, que realmente possuía, e nas quais ardia uma paixão insensata.

Não podia porque a Srta. Oliva, que confessava ter sido levada ao parque de Versalhes pela Sra. de La Motte, seria incapaz de saber se alguém estava ou não escutando atrás da moita.

Enfim, não podia a rainha provar a sua inocência porque muita gente havia interessada em aceitar por verdadeiras essas infames mentiras.

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XCII

Última esperança perdida

EM RAZÃO da maneira por que Joana conduzira o caso, tornava-se impossível, como se vê, descobrir a verdade. Irrecusavelmente convencida, por vinte depoimentos de pessoas fidedignas, não se conformara a condessa em passar por ladra vulgar. Queria ver, ao lado da sua, a vergonha de mais alguém. Persuadia-se de que o rumor do escândalo de Versalhes tão bem lhe encobriria o crime que, se ela, Condessa de La Motte, fosse condenada, a sentença alcançaria a rainha antes de qualquer outra pessoa.

Falhara-lhe, portanto, o cálculo. Aceitando Maria Antonieta desassombradamente o debate sobre a dupla questão, sofrendo o cardeal o interrogatório, os juizes e o escândalo, tiravam ambos à inimiga a auréola de inocência que ela se comprouvera em dourar com suas hipócritas reservas.

Mas, coisa estranha! o público ia assistir a um processo de que ninguém sairia inocente, nem sequer os que a justiça absolvesse.

Depois de um sem número de acareações, nas quais se mostrou o cardeal sempre calmo e polido, até em presença de Joana, e Joana sempre violenta e infensa a todos, a opinião pública em geral e a dos juizes em particular viram-se irrevogàvelmente formadas.

Os incidentes haviam-se tornado quase impossíveis, tinham-se esgotado todas as revelações. Joana percebeu que não produzira efeito algum sobre os juizes.

Resumiu, portanto, no silêncio do cárcere, todas as forças, todas as esperanças.

De quantos cercavam ou serviam o Sr. de Breteuil, recebia o conselho de poupar a rainha e concentrar no cardeal as suas acusações.

Dos adeptos do cardeal, família poderosa, juizes parciais, clero fecundo em recursos, recebia o conselho de dizer toda a verdade, desmascarar as intrigas do paço e levar o escândalo a tal ponto que dele se seguisse um atordoamento mortal para as cabeças coroadas.

Esse partido procurava intimidá-la; mostrava-lhe o que ela já sabia, isto é, que a maioria dos juizes se inclinava pelo cardeal,

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que ela se despedaçaria inutilmente na luta, acrescentando que talvez, quase perdida como ela estava, melhor fora deixar-se condenar pelo caso dos brilhantes do que agitar crimes de lesa-majes-tade, limo sangrento adormecido no fundo dos códigos feudais, e que nunca subia à superfície de um processo sem arrastar consigo a morte.

Esse partido parecia certo da vitória. Estava. O entusiasmo do povo manifestava-se com êle em favor do cardeal. Os homens lhe admiravam a paciência e as mulheres a discrição. Indignavam-se os homens de que êle houvesse sido tão covardemente embaído; as mulheres não o queriam acreditar. Para muita gente, Oliva, com a sua parecença e as suas confissões, nunca existira, ou, se existia, era uma invenção da rainha apropositada às circunstâncias.

Joana refletia em tudo isso. Os próprios advogados a desamparavam, os juizes não dissimulavam a sua repulsa; os Rohans acusavam-na vigorosamente; a opinião pública desdenhava-a. Resolveu desferir um derradeiro golpe, que levasse a inquietação aos juizes e o medo aos amigos do cardeal, insuflando o ódio do povo contra Maria Antonieta.

O seu método devia ser esse, no tocante à corte. Fazer crer que havia continuamente poupado a rainha e que acabaria

revelando tudo se a tanto a obrigassem. No tocante ao cardeal, era mister insinuar que só se mantinha em

silêncio para imitar-lhe a delicadeza; mas que, a partir do momento em que êle abrisse a boca, libertada pelo exemplo, ela também falaria, e ambos descobririam, ao mesmo tempo, a sua inocência e a verdade.

Tratava-se, realmente, de um simples resumo do seu procedimento durante a instrução do processo. Mas, força é dizê-lo, todo prato conhecido pode ser renovado, graças a novos temperos. E eis o que imaginou a condessa para rejuvenecer os seus dois estratagemas.

Escreveu uma carta à rainha, cujos termos bastam a revelar--Ihe o caráter e o alcance:

"Senhora, "Apesar de tudo o que a minha posição tem de penoso e rigoroso,

não se me escapou nenhuma queixa. Todos os rodeios de que lançaram mão para extorquir-me confissões apenas contribuíram para fortificar-me na resolução de jamais comprometer a minha soberana.

"Entretanto, embora persuadida de que a minha constância e a minha discrição devem facilitar-me os meios de sair do embaraço em que me encontro, confesso que os esforços da família do escravo, (assim chamava a rainha ao cardeal nos dias de sua reconciliação) me fazem recear que eu me torne sua vítima.

"Um longo encarceramento, acareações que não acabam mais, a vergonha e o desespero por me ver acusada de um crime de que estou

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inocente, enfraqueceram-me a coragem e chego a temer que a minha constância sucumba a tantos golpes desferidos ao mesmo tempo.

"Com uma palavra só, a senhora pode pôr cobro a esse caso la-mentável por intermédio do Sr. de Breteuil, que pode dar-lhe, aos olhos do ministro (o rei) o jeito que lhe sugerir a sua inteligência, sem que a senhora seja de qualquer maneira comprometida. É o receio de ser obrigada a revelar tudo que me obriga a dar o passo que estou dando hoje, convencida de que a senhora saberá compreender os motivos que me forçam a tomar tal atitude e dará ordens para me tirar da penosa situação em que me vejo.

"Sou, com profundo respeito, da senhora, humílima e obedientíssima criada,

"Condessa de Valois de La Motte."

Como se vê, Joana calculara tudo. Ou a carta chegaria às mãos da rainha, que aterraria pela perseverança que

denotava, depois de tantas aflições; nesse caso, cansada da luta, Maria Antonieta se decidiria a acabar com ela libertando Joana, em face da inutilidade da prisão e do processo.

Ou, o que era muito mais provável, e está implícito na própria conclusão da carta, a missivista não esperava da missiva coisa alguma. Explica-se: arrastada pelo processo, a rainha não poderia interromper o que quer que fosse sem se condenar. Por conseguinte, é manifesto que Joana jamais alimentara a esperança de que as suas linhas chegassem à destinatária.

Sabia que todos os seus guardas eram dedicados ao Governador da Bastilha, isto é, ao Sr. de Breteuil. Sabia que toda a gente em França fazia do caso do colar uma especulação inteiramente política, o que não acontecia desde os parlamentos do Sr. de Maupeou. Sabia que o mensageiro a quem entregasse a carta, se a não desse ao Governador, guardá-la-ia para si ou para os juizes da sua facção. Dispusera tudo, enfim, para que a mensagem, caindo nas mãos de alguém, nelas deixasse um germe de ódio, desconfiança e irreverência contra a rainha.

Ao mesmo tempo que escrevia essa carta a Maria Antonieta, redigia outra para o cardeal.

"Não posso conceber, Monsenhor, que vos obstineis, em não falar claramente. Parece-me que não podeis fazer outra coisa senão depositar ilimitada confiança em nossos juizes; a nossa sorte seria muito mais feliz. Em quanto a mim, estou decidida a calar-me se me não quiserdes secundar. Por que não falais? Explicai todas as circunstâncias desse misterioso caso, e juro confirmar quanto disserdes; re-fleti bem, Sr. Cardeal: se eu tomar a iniciativa de falar primeiro e desmentirdes depois o que eu disser, estarei perdida, não escaparei à vingança daquela que quer sacrificar-nos.

•— "Mas não podeis temer coisa alguma de minha parte nesse sentido, pois conheceis o quanto vos sou dedicada. Se ela viesse a mostrar-se implacável, a vossa causa seria sempre a minha; eu tudo sacri-

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ficaria para subtrair-vos ao ódio dela, ou a nossa desgraça seria co-mum.

"P. S. Escrevi a ela uma carta, que, assim o espero, a decidirá, senão a dizer a verdade, pelo menos a não nos acabrunhar, nós que não temos outro crime de que nos verberar senão o nosso erro ou o nosso silêncio."

Essa carta artificiosa foi entregue por ela ao cardeal durante a última acareação realizada entre ambos no grande locutório da Bastilha, onde os circunstantes viram Sua Eminência corar, empalidecer e estremecer diante de tamanha audácia, acabando por sair para tomar fôlego.

Quanto à carta para a rainha, foi entregue na mesma ocasião pela condessa ao Padre Lekel, esmoler da Bastilha, que acompanhara o prelado ao locutório e era devotado aos interesses dos Rohans.

— Senhor, — disse-lhe ela, — encarregando-vos dessa mensagem, podereis fazer que se modifique a sorte do Sr. de Rohan e a minha. Inteirai-vos do que ela contém. Sois um homem obrigado ao segredo pelos vossos deveres. Convencer-vos-ei de que bati à única porta onde podíamos, o Sr. Cardeal e eu, pedir socorro.

O esmoler recusou-se. — O único eclesiástico que vedes sou eu, — replicou, — e Sua Majestade acreditará que lhe escrevestes induzida pelos meus conselhos e que tudo me confessastes; ora, não posso consentir na minha própria perdição. — Pois bem! — tornou Joana, desesperando do bom êxito de sua astúcia, mas querendo constranger o cardeal pela intimidação,— dizei ao Sr. de Rohan que ainda posso provar a minha inocência exibindo as cartas que êle escrevia à rainha. Repugnava-me fazê-lo; mas, no interesse de ambos, acabarei decidindo-me a isso. Vendo o esmoler apavorado com as suas ameaças, tentou, pela última vez,

pôr-lhe nas mãos a terrível carta à rainha. — Se êle pegar na carta, — dizia a sós consigo, — estou salva, porque,

então, em plena audiência, poderei perguntar-lhe que fim lhe deu; se a tiver entregue à rainha, ela terá de responder; se a não tiver entregue, a rainha estará perdida; a hesitação dos Rohans terá provado o seu crime e a minha inocência.

Mas tanto que teve a carta nas mãos, o Padre Lekel devolveu-a, como se o queimasse.

— Prestai atenção, — advertiu Joana, pálida de cólera, — não estareis arriscando coisa alguma, pois escondi a carta da rainha num sobrescrito dirigido à Sra. de Misery. — Mais uma razão! — bradou o padre. — Duas pessoas ficariam conhecendo o segredo. Duplo motivo para o ressentimento de Sua Majestade. Não, não, recuso-me.

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E repeliu os dedos da condessa. — Observai, — disse ela, — que assim me obrigais a fazer uso das cartas do Sr. de Rohan. — Seja, — replicou o padre, — fazei delas o uso que quiserdes. — Mas, — tornou Joana, trémula de furor, — a prova de uma correspondência secreta com Sua Majestade fará cair sobre um cadafalso a cabeça do cardeal. A responsabilidade, portanto, será vossa se disserdes: Seja! Já vos avisei. Nesse momento se abriu a porta e o cardeal reapareceu, soberbo e irado: — Fazei cair sobre um cadafalso a cabeça de um Rohan, senhora, —

exclamou. — Não será a primeira vez que a Bastilha assistirá a semelhante espetáculo. Mas, já que assim é, declaro-vos que nada reprocharei ao patíbulo em que rolar minha cabeça, se me fôr dado ver o pelourinho sobre o qual sereis marcada como ladra e falsaria! Vinde, reverendo, vinde!

Voltou-lhe as costas depois dessas palavras fulminantes e, saindo com o esmoler, deixou entregue à raiva e ao desespero a desgraçada criatura, que não podia fazer um movimento sem afundar cada vez mais na vasa mortal em que logo mergulharia de todo.

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XCIII

O batismo do pequeno Beausire

A SRA. DE LA MOTTE enganara-se em todos os seus cálculos. Cagliostro não errou em nenhum.

Assim que se viu na Bastilha, percebeu que lhe era fornecido finalmente o pretexto para trabalhar abertamente pela ruína daquela monarquia que, havia tantos anos, minava com o iluminismo e os trabalhos ocultos.

Certo de que não poderia ser condenado por crime nenhum, vítima chegada ao desfecho mais favorável aos seus pontos de vista, cumpriu religiosamente as promessas que fizera.

Preparou os materiais da famosa Carta de Londres, que, surgindo um mês depois, foi o primeiro golpe de aríete aplicado aos muros da velha Bastilha, a primeira hostilidade da revolução, o primeiro choque material que precedeu o de 14 de julho de 1789.

Nessa carta em que Cagliostro, depois de haver arruinado o rei, a rainha, o cardeal, os agiotas públicos, arruinava o Sr. de Breteuil, personificação da. tirania ministerial, assim se expressava o nosso demolidor:

"Sim, repito-o livre depois de o haver dito cativo, não há crime que nâo façam expiar seis meses de Bastilha. Perguntaram-me se voltarei, algum dia, à França. Seguramente, respondi, quando a Bastilha se houver transformado em passeio público. Deus o queira! Vós, os franceses, tendes quanto é preciso para a felicidade: solo fecundo, clima suave, bom coraçSo, encantadora alegria, génio e graças para tudo; sem iguais na arte de agradar, sem mestres nas outras, só vos falta, meus bons amigos, um pontozinho: a certeza de que deitareis em vossas camas quando sois irreprocháveis."

Cagliostro cumprira também a palavra dada a Oliva. Esta, de seu lado, fora religiosamente fiel. Não lhe escapara sequer uma palavra que comprometesse o protetor. A sua confissão havia sido funesta apenas à Sra. de La Motte, estabelecendo, de forma clara e irrecusável, a sua participação inocente numa mistificação preparada, segundo ela, para ilaquear um gentil-homem desconhecido que lhe haviam designado sob o nome de Luís.

Durante o tempo que se escoara para os cativos debaixo de chave e entre interrogatórios, não revira Oliva o seu querido Beau-

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sire; todavia, não fora de todo desamparada por êle e, como se verá, conservava do amante a lembrança desejada por Dido, quando dizia sonhando: Ah! se eu pudesse ver brincando sobre os joelhos um pequeno Ascânio!

No mês de maio do ano de 1786, um homem estava esperando, entre os mendigos, nos degraus da escada da igreja de São Paulo, à Rua de Santo António. Mostrava-se inquieto, ofegante, e não cessava de olhar na direção da Bastilha.

Ao pé dele foi colocar-se outro homem, de longas barbas, um dos criados alemães de Cagliostro, o mesmo que Bálsamo empregava como camarista nas misteriosas recepções da antiga casa da Rua de São Cláudio.

Esse homem procurou abrandar a impaciência de Beausire, dizendo-lhe baixinho:

— Esperai, esperai, que eles virão. — Ah! — exclamou o homem inquieto, — sois vós! E como o eles virão não satisfizesse, pelo visto, o homem inquieto, que

continuava a gesticular mais do que lhe permitiria o bom senso, o alemão sussurrou-lhe ao ouvido:

— Sr. Beausire, acabareis fazendo tamanho barulhão, que a polícia nos verá... Meu amo vos prometeu notícias; aqui estão. — Dai-mas! dai-mas, meu amigo! — Mais baixo. A mãe e a criança estão passando bem. — Oh! oh! — bradou Beausire num transporte de alegria impossível de descrever-se. — Ela deu à luz! Está salva! — Sim, senhor; mas vamos sair daqui, por favor. — Menina? — Menino. — Tanto melhor! Como sou feliz, meu amigo, como sou feliz! Agradecei ao vosso amo; dizei-lhe que a minha vida, tudo o que tenho, lhe pertence. . . — Sim, Sr. Beausire, dir-lho-ei quando o vir. — Meu amigo, por que me dizíeis há pouco... Mas aceitai este dois luíses. — Não aceito nada, senhor, que não venha de meu amo. — Ah! perdão, eu não queria ofender-vos. — Acredito que não. Mas dizíeis-me... — Eu vos perguntava por que, há pouco, gritastes: Eles virão. Quem virá? — O cirurgião da Bastilha e a Sra. Chopin, parteira, que assis tiram ao parto da Srta. Oliva. — Virão aqui? Para quê? — Para batizar a criança. — Vou ver meu filho! — bradou Beausire, saltando como um convulsionário. — Vou ver o filho de Oliva? Aqui? Daqui a pouco?...

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— Aqui, daqui a pouco; mas moderai-vos, pelo amor de Deus; do contrário, os dois ou três agentes do Sr. de Crosne, que adivinho ocultos sob os andrajos destes mendigos, vos descobrirão e adivinharão que tivestes comunicação com o prisioneiro da Bastilha. Vós vos perdereis e comprometereis meu amo. — Oh! — exclamou Beausire, com a religião do respeito e do reconhecimento, — antes morrer do que pronunciar uma sílaba que possa prejudicar o meu benfeitor. Sufocarei, se preciso fôr, mas não direi mais nada. Eles não vêm!. .. — Paciência. Beausire aproximou-se do alemão. — E ela não se sente lá muito infeliz? — perguntou, juntando as mãos. — Perfeitamente feliz, — respondeu o outro. — Oh! vem vindo um fiacre. — Sim, sim. — Está parando... — Vejo roupas brancas, rendas. .. — A toalha do batismo. — Meu Deus! E Beausire foi obrigado a apoiar-se numa coluna para não cambalear,

quando viu apear do fiacre a parteira, o cirurgião e um porta-chaves da Bastilha, que serviam de padrinhos.

À passagem das três pessoas, comoveram-se os pobres e entraram a roufenhar as suas lamentáveis reclamações.

Viu-se então, coisa estranha! o padrinho e a madrinha passarem acotovelando os miseráveis, ao passo que um estranho lhes distribuía o seu dinheiro, chorando de alegria.

Em seguida, tendo entrado na igreja o cortejozinho, Beausire entrou e, de cambulhada com os padres e os fiéis curiosos, foi procurar o melhor lugar da sacristia onde ia celebrar-se o sacramento do batismo.

Reconhecendo a parteira e o cirurgião, que por várias vezes já haviam recorrido ao seu ministério em circunstâncias semelhantes, fêz-lhes o padre um cumprimentozinho amistoso, acompanhado de um sorriso.

Beausire cumprimentou e sorriu com o padre. Fechou-se a porta da sacristia e o sacerdote, tomando da pena, começou a

escrever no livro as frases sacramentais que constituem o ato do registro. Quando chegou o momento de perguntar o nome e os preno-mes da

criança: — Só sei que é menino, — disse o cirurgião. E quatro gargalhadas completaram a frase, que não pareceu suficientemente

respeitosa a Beausire.

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— Mas há de ter um nome qualquer, nem que seja de santo, — ajuntou o padre. — Sim, quer a mãe que lhe chamem Toussaint. — Todos os santos ao mesmo tempo! — replicou, a rir do próprio calembur, o celebrante, sacudindo a sacristia com novo acesso de hilariedade. Beausire começava a perder a paciência, mas a prudente influência do

alemão ainda conseguia refreá-lo. Conteve-se. — Muito bem! — disse o padre, — com esse nome, tendo por patronos

todos os santos do céu, o garoto não precisa de pai. Escrevamos: "Hoje nos foi apresentada uma criança do sexo masculino, nascida ontem, na Bastilha, filha de Nicole-Oliva Legay e de. . . pai desconhecido."

Beausire precipitou-se furioso sobre o sacerdote e, segurando--lhe o punho com força:

— Toussaint tem pai, sim, senhor, — bradou, — como tem mãe! Tem um pai amoroso que não renegará o próprio sangue. Escrevei, por favor, que Toussaint, nascido ontem, é filho da Srta. Nicole-Oliva Legay e de João Batista Toussaint de Beausire, aqui presente!

Avalie-se a estupefação do padre, a do padrinho e a da madrinha! Caiu a pena das mãos do oficiante e quase caiu o menino dos braços da parteira.

Beausire recebeu-o nos seus e, cobrindo-o de beijos ávidos, deixou escorrer sobre a fronte do pobrezinho o primeiro batismo, o mais sagrado neste mundo depois do de Deus, o batismo das lágrimas paternas.

Apesar de habituados a cenas dramáticas e a despeito do ceti-cismo comum aos voltaireanos da época, os assistentes enterneceram-se. Só o padre conservou o sangue frio e pôs em dúvida aquela paternidade; talvez o contrariasse ter de recomeçar o registro.

Beausire, porém, adivinhou a dificuldade; colocou sobre as fontes batismais três luíses de ouro, que, muito melhor do que as suas lágrimas, estabeleceram-lhe os direitos de pai e ressaltaram-lhe a boa-fé.

O padre cumprimentou, juntou as setenta e duas libras e riscou as duas frases que acabara de escrever no registro.

— Entretanto, senhor, — esclareceu, — como a declaração do Sr. Cirurgião da Bastilha e da Sra. Chopin foi formal, far-me-eis o favor de escrever e certificar, pelo vosso próprio punho, que sois o pai da criança. — Eu! — bradou Beausire no auge da alegria; — escrevê-lo-ei com o meu próprio sangue! E empolgou a pena com entusiasmo. — Cuidado! — disse-lhe baixinho o porta-chaves Guyon, que não

esquecera o seu papel de homem escrupuloso. — Creio, meu

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caro senhor, que o vosso nome soa mal em certos lugares; oorreis perigo escrevendo-o em registros públicos, com uma data que prova, ao mesmo tempo, a vossa presença e o vosso comércio com uma acusada.

— Obrigado pelo conselho de amigo, — replicou Beausire com altivez; — é um conselho de homem de bem e vale os dois luíses de ouro que vos ofereço; mas renegar o filho de minha mulher... — Ela é vossa mulher? — perguntou o cirurgião. — Legítima? — inquiriu o padre. — Deus lhe devolva a liberdade, — prometeu Beausire, trémulo de prazer, — e, no dia seguinte, Nicole Legay se chamará de Beausire, como o filho e como eu! — Entrementes, estais-vos arriscando, — repetiu Guyon; — creio que andam à vossa procura. — Não serei eu quem vos trairá, — disse o cirurgião. — Nem eu, — disse a parteira. — Nem eu, — disse o padre. — E ainda que me traíssem, — continuou Beausire com a exaltação dos mártires, — eu seria capaz de sofrer até o suplício da roda para ter a consolação de reconhecer meu filho. — Se êle viesse a sofrer o suplício da roda, — disse baixinho à parteira o Sr. Guyon, que se picava de ter sempre uma resposta na ponta da língua, — não seria por se haver declarado pai do Toussaintzinho. E depois desse dito, que fêz sorrir a Sra. Chopin, procedeu-se, com todas as

formalidades de praxe, ao registro e reconhecimento do jovem Beausire. Beausire redigiu a declaração em termos magníficos, mas um tanto

derramados, como soem ser os relatos de todos os feitos de que se ufana o autor.

Releu-a, pontuou-a, assinou-a e fêz que a assinassem também as quatro pessoas presentes.

A seguir, tendo relido e conferido tudo, beijou o filho, devidamente batizado, enfiou-lhe uma dezena de luíses por baixo do ves-tidinho, suspendeu-lhe um anel ao pescoço, presente destinado à parturiente, e, orgulhoso como Xenofonte na sua famosa retirada, abriu a porta da sacristia, decidido a não se valer do mais mínimo estratagema para fugir aos esbirros, se viesse a encontrar algum tão desnaturado que desejasse prendê-lo naquele momento.

Os grupos de mendigos não tinham deixado a igreja. Se tivesse podido olhar com olhos mais firmes, teria reconhecido entre eles o famoso Positivo, autor da sua desgraça; mas ninguém se mexeu. A nova distribuição feita por Beausire foi recebida com uma série de: Deus lhe pague! sem medida, e o pai felicíssimo saiu de São Paulo com todas as aparências de um gentil-homem venerado, festejado, abençoado e acarinhado pelos pobres da paróquia.

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As testemunhas do batismo, por sua vez, retiraram-se também e tomaram novamente o fiacre, maravilhadas com a aventura.

Beausire, que as espreitava da esquina da Rua Cultura de Santa Catarina, viu-as tomar o carro e mandou dois ou três beijos palpitantes para o filho; e, depois que satisfez completamente o terno coração, depois que o fiacre desapareceu, entendeu que não devia tentar a Deus nem à polícia, e largou-se para um refúgio que só êle, Cagliostro e o Sr. de Crosne conheciam.

Isso quer dizer que o Sr. de Crosne também cumprira a palavra dada a Cagliostro e não inquietara Beausire.

Quando a criança regressou à Bastilha e a Sra. Chopin referiu a Oliva todas aquelas aventuras surpreendentes, a rapariga," enfiando no dedo mais gordinho o anel de Beausire, abriu a chorar também; e, tendo beijado o filho, para o qual já se procurava uma ama de leite:

— Não! — protestou; — o Sr. Gilberto, discípulo do Sr. Rous-seau, dizia que toda boa mãe deve alimentar o filho: alimentarei o meu; quero ser pelo menos uma boa mãe, pois assim terei feito alguma coisa.

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XCIV

O banco dos réus

CHEGARA, por fim, depois de longos debates, o dia em que a sentença do tribunal do parlamento seria provocada pelas conclusões do procurador geral.

Com exceção do Sr. de Rohan, todos os indiciados haviam sido transferidos para a Conciergerie, para ficarem mais próximos da sala de audiência, que se abria, diariamente, às sete da manhã.

Diante dos juizes presididos pelo primeiro presidente d'Aligre,, o semblante dos réus continuara a ser o que havia sido durante ai instrução.

Oliva, franca e tímida; Cagliostro, tranquilo, superior, irradiando às vezes o místico esplendor que se comprazia de afetar.

Villette, corrido, baixo, choramingas. Joana, insolente, olhar coruscante, sempre ameaçadora e venenosa. O cardeal, simples, sonhador, atônico. Joana assimilara depressa os hábitos da Conciergerie e cativara com suas

melosas denguices e seus segredinhos as boas graças da porteira do Palácio, do marido e do filho.

Dessarte, conseguira para si uma vida mais amena e maior liberdade de comunicação. O macaco precisa sempre de mais espaço do que o cão, e o intrigante do que o pachorrento.

Os debates nada de novo revelaram à França. Era sempre a mesma história do mesmo colar audazmente roubado por uma ou outra das duas pessoas acusadas, que reciprocamente se acusavam.

Cifrava-se o processo todo em decidir qual das duas era o ladrão. Mas o espírito que sempre levou os franceses aos extremos, sobretudo

naquele tempo, enxertara outro processo no verdadeiro. Tratava-se de saber se a rainha acertara ou não mandando prender o

cardeal e acusando-o de temerárias incivilidades. Para quantos se ocupavam de política em França, o anexo ao processo

representava a causa verdadeira. Teria tido o Sr. de Rohan razões para dizer à rainha o que dissera e agir em seu nome como agira? Fora êle, realmente, o agente secreto de Maria Antonieta, renegado assim que o negócio ameaçara provocar escândalo?

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660 ALEXANDRE DUMAS

Numa palavra, na causa incidente, houvera-se de boa-fé o inculpado cardeal, como íntimo confidente, em relação à rainha?

Se êle procedera de boa-fé, era a rainha culpada de todas as intimidades, mesmo inocentes, mas cuja ocorrência insinuara a Sra. de La Motte. E, de mais a mais, como síntese aos olhos da opinião, que nada poupa, não serão inocentes as intimidades que se não podem confessar ao marido, aos ministros, aos súditos.

Tal é o processo que as conclusões do procurador geral vão encaminhar para o seu desfecho, para a sua moral.

O procurador geral tomou a palavra. Era êle o órgão do tribunal, falava em nome da dignidade real

menoscabada, ultrajada, falava em prol do princípio imenso da inviolabilidade real.

Entrava no processo verdadeiro quando se referia a certos acusados; fazia incursões no processo incidente quando se tratava do cardeal. Não podia admitir que, no caso do colar, assumisse a rainha a responsabilidade de um erro sequer. E se ela não cometera nenhum, recaíam forçosamente todos os erros sobre a cabeça do cardeal.

Concluiu, portanto, inflexivelmente: Pela condenação de Villette às galés; Pela condenação de Joana de La Motte a ser ferreteada, açoitada e

perpetuamente encarcerada no hospital; Pela exclusão de Cagliostro do processo; Pela absolvição pura e simples de Oliva; Pela confissão a que seria obrigado o cardeal de uma temeridade ofensiva

contra a Majestade Real, depois da qual seria banido da presença do rei e da rainha e despojado de seus cargos e dignidades.

Esse requisitório deixou indecisos os parlamentares e aterrados os acusados. Nele se explicava com tanta força a vontade real que, um quarto de século antes, quando os parlamentos começavam a sacudir o jugo e a reivindicar as suas prerrogativas, essas conclusões do procurador do rei teriam sido ultrapassadas pelo zelo e pelo respeito dos juizes ao princípio, ainda venerado, da infabilidade do trono.

Mas somente catorze conselheiros adotaram na íntegra a opinião do procurador geral; a partir de então, dividiu-se a assembleia.

Procedeu-se ao derradeiro interrogatório, formalidade quase inútil em se tratando de tais acusados, pois tinha por fim provocar confissões antes da sentença, e não havia pedir paz nem trégua aos encarniçados adversários que lutavam havia tanto tempo. Era menos a própria absolvição do que a condenação dos antagonistas que eles pleiteavam.

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O COLAR DA RAINHA 661

Segundo o costume, devia o réu comparecer diante dos juizes sentado num banquinho de madeira, humilde, baixo, vergonhoso, desonrado pelo contacto de outros réus que, de lá, tinham passado ao cadafalso.

Foi nele que se assentou o falsário Villette, pedindo perdão com lágrimas e rogos.

Declarou tudo o que se sabe, isto é, que era culpado de falsidade e culpado de cumplicidade com Joana de La Motte. Afirmou que o seu arrependimento e os seus remorsos já eram, em si, suplício capaz de desarmar os juizes.

Este, porém, não interessava a ninguém; não era, nem parecia ser, senão um patife. Dispensado pelo tribunal, voltou choramingando para a sua cela na Conciergerie.

Depois dele assomou, à entrada da sala, a Sra. de La Motte, conduzida pelo escrivão Frémyn.

Trajava mantelete e camisa de cambraia e trazia, na cabeça, touca de gaze sem fitas; uma espécie de gaze branca cobria-lhe o rosto; tinha os cabelos desempoados. A sua presença produziu viva impressão na assembleia.

Ela vinha de sofrer o primeiro dos ultrajes que lhe estavam reservados: tinham-na obrigado a passar pela escadinha, como os criminosos comuns.

O calor da sala, o rumor das conversações, o movimento das cabeças que ondulavam de todos os lados, começaram por pertur-, bá-la; vacilaram-lhe por um momento os olhos como se tentassem habituar-se à reverberação de todo aquele conjunto.

O mesmo escrivão que a conduzia pela mão levou-a, rapidamente, para o banquinho colocado no centro do hemiciclo, semelhante ao bloco sinistro que se chama cepo quando se ergue sobre um patíbulo em lugar de erguer-se numa sala de audiências.

À vista do assento infamante que lhe destinavam, a ela, ufana de chamar-se Valois e de ter nas mãos o destino de uma rainha de França, Joana de La Motte empalideceu, relanceou à sua volta um olhar iracundo, como que para intimidar os juizes que tomavam a liberdade de ultrajá-la daquela forma; mas como encontrou em toda a parte vontades inabaláveis e apenas curiosidade em lugar de misericórdia, recalcou a furiosa indignação e sentou-se para não dar a impressão de haver caído sobre o mocho.

Observou-se, durante o interrogatório, que ela dava às suas respostas o mesmo tom vago de que os adversários da rainha teriam podido tirar maior proveito para a defesa de suas opiniões. Precisou tão-sòmente as afirmativas da própria inocência, e obrigou o presidente a dirigrí-lhe uma pergunta sobre a existência das cartas que ela dizia escritas pelo cardeal à rainha, assim como das que a rainha teria escrito ao cardeal.

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662 ALEXANDRE DUMAS

Todo o veneno da serpente ia difundir-se na resposta àquela pergunta. Joana começou reafirmando o seu desejo de não comprometer a soberana;

acrescentou que ninguém melhor do que o cardeal podia responder à pergunta.

— Convidai-o, — sugeriu, — a exibir as cartas, ou uma cópia delas, para que possam ser lidas e assim se satisfaça a vossa curiosidade. No que me concerne, eu não saberia afirmar se elas são do cardeal à rainha ou da rainha ao cardeal; estas me parecem demasiado livres e demasiado familiares para terem sido escritas por uma soberana a um súdito; e aquelas demasiado irreverentes para terem sido dirigidas por um súdito à sua rainha.

O silêncio profundo, terrível, que acolheu o ataque, deve ter provado a Joana que ela apenas inspirara horror aos inimigos, pavor aos partidários e desconfiança aos juizes imparciais. Ao deixar o banquinho, só levava a doce esperança de que o cardeal nele se assentaria também. Bastava-lhe, para assim dizer, essa vingança. Não se pode descrever o que sentiu quando, voltando-se para considerar pela última vez o mocho oprobrioso em que obrigava a sentar-se um Rohan depois dela, não tornou a vê-lo, pois, por ordem do tribunal, fora retirado e substituído por uma poltrona.

Um rugido de raiva exalou-se-lhe do peito; precipitou-se para fora da sala, mordendo freneticamente as mãos.

Principiava o seu suplício. O cardeal, por seu turno, adiantou-se lentamente. Acabava de descer de

um carro: para êle se abrira a porta principal. Dois soldados e dois escrivães o acompanhavam; ao seu lado caminhava o

Governador da Bastilha. À sua entrada, longo murmúrio de simpatia e respeito partiu dos bancos

do tribunal, respondido por vigorosa aclamação de fora. O povo saudava o acusado e recomendava-o aos seus juizes.

O Príncipe Luís estava pálido, comovidíssimo. Envergando longo traje de cerimónia, apresentava-se com o respeito e a condescendência devidas aos juizes por um indiciado que lhes aceita e invoca a jurisdição.

Indicou-se a poltrona ao cardeal, cujos olhos haviam receado percorrer o recinto e, tendo-lhe o presidente dirigido uma saudação e uma palavra de alento, toda a corte lhe rogou que se assentasse com uma benevolência que redobrou a palidez e a comoção do acusado.

Quando êle tomou a palavra, a sua voz trémula, entrecortada de suspiros, os seus olhos perturbados e a humildade da sua postura agitaram profundamente a compaixão do auditório. Explicou-se devagar, apresentou antes desculpas que provas, antes súplicas que argumentos, e, interrompendo-se de repente, êle, o homem eloquente e diserto, produziu, por essa paralisia do espírito e da

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O COLAR DA RAINHA 663

coragem, efeito mais poderoso que todos os arrozoados e todos os raciocínios. Em seguida, surgiu Oliva; a pobre rapariga encontrou de novo o banco

dos réus. Muita gente estremeceu vendo aquela imagem viva da rainha sentar-se no banco vergonhoso que ocupara Joana de La Motte; aquele fantasma de Maria Antonieta, rainha de França, no banco das ladras e falsarias, espavoriu os mais ardentes perseguidores da monarquia. Mas houve também quem se encantasse com o espetáculo, como os tigres com o sangue que se lhes dá.

Dizia-se, porém, em toda a parte, que a pobre Oliva acabava de deixar, à entrada, o filho, que amamentava; e, quando a porta se abriu, os vagidos do rebento do Sr. Beausire vieram advogar dolorosamente em favor de sua mãe.

Depois de Oliva surgiu Cagliostro, o menos culpado de todos. Não lhe foi ordenado que se assentasse, muito embora a 'poltrona houvesse sido conservada ao pé do banco.

Temia o tribunal o arrazoado de Cagliostro. Um simulacro de interrogatório, atalhado pelo — está bem! do presidente d'Aligre bastou às exigências da forma.

O tribunal anunciou então que os debates estavam encerrados e que a deliberação ia começar. Escoou-se lentamente a multidão, pelas ruas e pelos cais, certa de voltar à noite para ouvir a sentença, que, dizia-se, não tardaria em ser pronunciada.

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XCV

De uma grade e de um padre

CONCLUlDOS os debates, após a repercussão do interrogatório e as comoções do banco dos réus, todos os prisioneiros foram alojados aquela noite na Conciergerie. A multidão, como dissemos, foi postar-se, à noite, em grupos silenciosos, posto que animados, na Praça do Palácio, para receber, em primeira mão, a notícia da sentença tanto que fosse decretada. Em Paris, coisa estranha! os grandes segredos são precisamente os que o povo conhece antes que de todo se revelem.

O populacho esperava, portanto, saboreando confeitos de alcaçuz, cuja matéria-prima iam encontrar os fornecedores ambulantes debaixo do primeiro arco da Pont-au-Change.

O tempo estava quente. As nuvens de junho rodavam, pesadas, umas sobre as outras, como penachos de espessa fumaça. Iluminavam o céu, 'no horizonte, reiterados e pálidos clarões.

Ao passo que o cardeal, a quem fora concedido o privilégio de passear nos.terraços, entre uma torre e outra, se entretinha com Cagliostro sobre o provável bom êxito da defesa de ambos; ao passo que Oliva, na sua cela, acarinhava o filho e o embalava nos braços; ao passo que, na sua, Reteau, de olhos enxutos, as unhas entre os dentes, contava mentalmente os escudos prometidos pelo Sr. de Crosne e lhes confrontava o total com os meses de cativeiro que lhe prometia o tribunal; Joana, recolhida ao quarto da mulher do porteiro, a Sra. Hubert, procurava distrair o espírito incendido com um pouco de bulha, um pouco de movimento.

Esse quarto, de teto alto, amplo como uma sala, lajeado como uma galeria, era iluminado, do lado do cais, por uma grande janela ogival. Os pequenos vitrais da janela interceptavam boa parte da luz, e como se, daquele mesmo quarto em que moravam pessoas livres, devesse ser espantada a liberdade, enorme grade de ferro, aplicada do lado de fora, vinha acentuar a obscuridade produzida pelas vidraças com o entrecruzamento das suas barras e as redes de chumbo que enquadaravam os losangos de vidro.

De resto, a luz que passava pela dupla peneira se diria adoçada para os olhos dos prisioneiros. Já nada tinha da insolente irradiação do sol livre, não era feita para ofender os que não podiam

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O COLAR DA RAINHA 665

sair. Há em todas as coisas, até nas coisas más feitas pelo homem, depois que o tempo, intermediário destinado a manter o equilíbrio entre o homem e Deus, passa por cima delas, harmonias que mitigam e permitem uma transição entre a dor e o sorriso.

Era nessa sala que, desde a sua transferência para a Concier-gerie, a Sra. de La Motte passava os dias em companhia do porteiro, da mulher e do filho. Dissemos que ela possuía o espírito ágil, o temperamento sedutor. Conquistara a afeição daquela gente. Encontrara meios de provar-lhe que a rainha era uma grande culpada. Dia viria em que, na mesma sala, outra mulher de porteiro, apiedada também dos infortúnios de uma reclusa, a creria inocente . ao vê-la paciente e boa; e essa reclusa seria a rainha!

Ia, portanto, a Sra. de La Motte — ela mesma o diz — esquecer na sociedade daquela mulher e de seus amigos, as ideias melancólicas, pagando com bom humor as atenções que recebia. Nesse dia, dia do encerramento da audiência, quando Joana voltou para junto daquela boa gente, encontrou-a preocupada e constrangida.

Não havia nuança que passasse despercebida à astuta criatura: um nada enchia-a de esperança, qualquer coisa a alarmava. Debalde buscou arrancar a verdade à Sra. Hubert: esta e os seus responderam apenas com evasivas.

Nesse dia, Joana avistou, num canto do fogão, um padre, comensal intermitente da casa. Era o antigo secretário do preceptor do Sr. Conde da Provença; homem de modos simples, medidamente cáustico, conhecedor da corte, e que, afastado havia muito da casa da Sra. Hubert, tornara a frequentá-la com assiduidade após a chegada da Sra. de La Motte à Conciergerie.

Havia também dois ou três funcionários categorizados do Pa lácio da Justiça; todos olhavam muito para a Sra. de La Motte, mas falavam pouco.

Ela tomou alegremente a iniciativa. — Tenho certeza, — disse, — de que se conversa com mais calor lá em cima

do que aqui. Fraco murmúrio de assentimento, partido do porteiro e da mulher, foi a

única resposta dada a essa provocação. — Lá em cima? — repetiu o padre, simulando ignorância. — Onde, Sra. Condessa? — Na sala em que deliberam os meus juizes, — replicou Joana. — Oh! sim, sim, — conveio o padre. E recomeçou o silêncio. — Creio, — continuou ela, — que a minha atitude de hoje surtiu bom efeito. Já deveis sabê-lo, não é verdade? — Sim, senhora, — assentiu timidamente o porteiro. E levantou-se como se quisesse dar por terminada a entrevista

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666 ALEXANDRE DUMAS

— Ê a vossa opinião qual é, reverendo? — voltou Joana. — Não se está esboçando bem o meu caso? Observai que não se articulou prova alguma. — De fato, senhora, — respondeu o padre. — Por isso mesmo podeis acalentar muitas esperanças. — Não é verdade? — exclamou ela. — Entretanto, — atalhou Sua Reverendíssima, — suponde que o rei. . . — Pois sim! que fará o rei? — perguntou Joana, veemente. — O rei, senhora, pode não querer que o desmintam. — Nesse caso, faria condenar o Sr. de Rohan. É impossível! — É verdade que é difícil, — responderam, de todos os lados. — Ora, — apressou-se em ajuntar a ré, — nesta causa, quem diz o Sr. de Rohan diz a Sra. de La Motte. — Não, não, — retrucou o padre, — estais-vos iludindo, minha senhora. Haverá um acusado absolvido. .. Na minha opinião, sereis vós. Mas haverá um só. O rei precisa de um culpado, pois, do contrário, que seria da rainha? — Realmente, — conveio Joana com voz surda, ferida por se ver contrariada, mesmo numa esperança que apenas afetava, — o rei precisa de um culpado. Pois bem! nesse caso, o Sr. de Rohan serve tão bem quanto eu. Um silêncio apavorante para a condessa seguiu-se a essas palavras. Foi o padre o primeiro a rompê-lo. — Senhora, — disse êle, — o rei não guarda rancor, e, satisfeita a sua primeira cólera, não pensará mais no passado. — Mas a que chamais uma cólera satisfeita? — perguntou Joana com ironia. — Nero tinha as suas cóleras, como Tito, as suas. — Uma condenação... qualquer, — apressou-se a dizer o sacerdote, — é uma satisfação. — Qualquer!. .. senhor, — bradou Joana, — é uma palavra horrível... Muito vaga... Dizer qualquer é dizer demais! — Refiro-me apenas à reclusão num convento, — replicou friamente o padre; — é a ideia que, segundo os rumores correntes, mais agradaria ao rei no vosso caso. Joana considerou o homem com um terror que deu lugar quase

imediatamente à mais furiosa exaltação. — Reclusão num convento! — repetiu; — quer dizer, a morte lenta,

ignominiosa pelos pormenores, a morte feroz que parecerá um ato de clemência!. . . A reclusão no in pace, não é? As torturas da fome, do frio, das correições! Não, basta de suplícios, basta de vergonha, basta de desgraças para a inocência quando a culpa continua poderosa, livre, honrada! A morte imediata, mas a morte que eu tiver escolhido, o livre alvedrio para me castigar por haver nascido neste mundo infame!

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E sem ouvir as representações, os rogos, sem permitir que a detivessem, repelindo o porteiro, empurrando o padre, afastando a Sra. Hubert, correu para uma mesa à procura de uma faca.

As três pessoas conseguiram demovê-la; ela pôs-se a correr como uma pantera que os caçadores tivessem, não assustado, mas inquietado, e, soltando urros de uma cólera tão ruidosa que não poderia ser natural, precipitou-se num gabinete contíguo à sala, e lá, erguendo enorme vaso de porcelana em que vegetava uma roseira estiolada, bateu com êle na cabeça várias vezes.

Quebrou-se o vaso, ficando um pedaço na mão da fúria; viu-se--lhe o sangue correr da fronte pelas rachaduras da pele, que se fendera. A mulher do porteiro atirou-se, em prantos, nos braços dela. Fizeram-na sentar numa poltrona; inundaram-na de água de cheiro e de vinagre. Ela desfalecera depois de horríveis convulsões.

Quando tornou em si, o padre cuidou vê-la sufocar. — Vede! — exclamou, — essa grade intercepta a luz e o ar. Não seria

possível fazer respirar um pouco a pobre mulher? Esquecida de tudo, a Sra. Hubert correu para um armário colocado ao pé

do fogão, tirou dele uma chave que servia de abrir a grade e, imediatamente, o ar e a vida entraram aos jorros no aposento.

— Ah! — observou o padre, — eu não sabia que essa grade pudesse abrir-se com chave. Por que tantas precauções, meu Deus? — É a ordem! — replicou a mulher do porteiro. — Compreendo, — ajuntou o padre, com manifesta intenção, — a janela fica a uns sete pés do chão e dá para o cais. Se, porventura, um prisioneiro fugisse do interior da Conciergerie e passasse pela vossa sala, encontraria a liberdade sem haver encontrado carcereiro nenhum e nenhuma sentinela. — Precisamente, — assentiu a Sra. Hubert. Observou o padre com o canto dos olhos que a Sra. de La Motte ouvira,

compreendera e até estremecera, e, logo depois de haver recolhido as palavras do sacerdote, erguera os olhos para o armário, fechado apenas por um botão de cobre, onde o porteiro guardava a chave da grade.

Foi o suficiente para êle. A sua presença já não parecia necessária. Despediu-se.

Entretanto, voltando atrás, como os personagens de teatro que fingem sair de cena:

— Quanta gente na praça! — observou. — O povo todo se dirige com tamanho interesse para aquele lado do palácio, que não há viva alma no cais.

O porteiro debruçou-se à janela. — É verdade, — confirmou.

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668 ALEXANDRE DUMAS

— Acaso acreditarão, — prosseguiu o padre, como se a Sra. De La Motte não pudesse ouvi-lo, se bem o ouvisse perfeitamente, — acaso acreditarão que a sentença seja lavrada à noite? Não, não é? — Creio que não, — respondeu o porteiro; — a meu ver, só será proferida amanhã cedo. — Pois bem! — acrescentou o padre, — procurai deixar que descanse um pouco esta pobre Sra. de La Motte. Depois de tantos abalos, ela deve ter necessidade de repouso. — Iremos para o nosso quarto, — disse o bravo porteiro à mulher, — e deixá-la-emos aqui, nesta poltrona, a menos que ela queira recolher-se e deitar-se. Soerguendo-se, Joana encontrou o olhar do padre, que lhe esperava a

resposta. Fingiu adormecer de novo. O sacerdote sumiu e o porteiro e a mulher afastaram-se também, depois de

haverem fechado cuidadosamente a grade e recolocado a chave no lugar. Tanto que ficou só, Joana abriu os olhos. — O padre aconselha-me a fugir, — pensou; — não poderia indicar-me

com maior clareza a necessidade e o meio da evasão! Ameaçar-me com uma condenação antes da sentença dos juizes, é de um amigo que me quer livre, não pode ser de um bárbaro que apenas pretendesse insultar-me.

"Para fugir, basta-me dar um passo; abro o armário, abro depois a grade e vejo-me incontinenti no cais deserto.

"Deserto, sim!... Ninguém; a própria lua esconde-se no céu. "Fugir!. . . A liberdade! a felicidade de reencontrar as minhas riquezas. . . a

felicidade de retribuir aos meus inimigos todo o mal que me têm feito!" Precipitou-se para o armário e apanhou a chave. E já se aproximava da

fechadura da grade quando, de súbito, julgou ver, na linha negra do parapeito da ponte, uma forma humana, que lhe interrompia a uniforme regularidade.

— Está lá um homem, — disse ela; — talvez o padre, que vela pela minha evasão; espera-me para me socorrer. Sim, mas pode ser uma cilada... pode ser que, descendo ao cais, eu seja presa, surpreendida em flagrante delito de evasão. . . A evasão é a confissão do crime ou, pelo menos, a confissão do medo! Quem se evade foge diante da consciência... De onde vem esse homem?... Parece ligado ao Sr. da Provença. .. Mas quem me diz que não se trata de um emissário da rainha ou dos Rohans?... Como me fariam pagar caro, se assim fosse, um passo em falso de minha parte. .. Sim, lá está alguém à espreita!. ..

"Fazer-me fugir algumas horas antes da sentença! Não poderiam tê-lo feito mais cedo se quisessem realmente servir-me? Meu Deus! Quem sabe se já não chegou ao conhecimento dos meus

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O COLAR DA RAINHA 669

inimigos a notícia de que os juizes decidiram absolver-me? Quem sabe se não pretendem evitar à rainha esse golpe terrível com uma prova ou uma confissão da minha culpabilidade? A confissão, a prova, seria a fuga... Ficarei!"

A partir desse momento, Joana convenceu-se de que acabava de escapar à cilada. Sorriu, reergueu a cabeça astuta e atrevida e, com passo firme, recolocou a chave da grade no armário ao lado do fogão.

Logo, tornando a sentar-se na poltrona, entre a luz e a janela, observou de longe, fingindo dormir, a sombra do homem que espiava, e que, sem dúvida cansado de esperar, acabou se levantando e desaparecendo com os primeiros albores da aurora, às duas e meia da madrugada, quando a vista já começava a estremar a água de suas margens.

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XCVI

A sentença

DE MANHÃ, quando renascem todos os rumores, quando Paris volta à vida ou liga novo elo ao elo da véspera, a condessa esperou que a notícia de uma absolvição lhe penetrasse de repente a prisão com a alegria e as felicitações dos amigos.

Teria amigos? Infelizmente a fortuna e o crédito nunca se encontram sem cortejo, e Joana se tornara rica, poderosa; entretanto, recebera e dera sem conquistar sequer o amigo trivial que há de queimar no dia seguinte, em face da desgraça, o que na véspera incensou.

Mas depois do triunfo que esperava, Joana teria partidários, teria admiradores, teria invejosos.

Esperou debalde ver entrar na sala do porteiro Hubert a solícita multidão de rostos alegres.

Da imobilidade de uma pessoa convicta, à espera de abraços, passou Joana, que tal era o seu feitio, a uma excessiva inquietude.

E como não se pode fingir sempre, não se deu ao trabalho, diante dos guardas, de ocultar as suas impressões.

Não lhe era permitido sair para informar-se, mas passou a cabeça pelo postigo de uma janela e, lá, ansiosa, prestou atenção aos rumores da praça vizinha, que se resolviam num murmúrio confuso, depois de haverem atravessado a espessura dos muros do velho palácio de São Luís.

Ouviu então, não um ruído, senão uma verdadeira explosão, aclamações, gritos, pateadas, alguma coisa de retumbante que a apavorou, pois não estava persuadida de que fosse por ela que o povo manifestava tamanha simpatia.

As salvas estrondosas repetiram-se duas vezes e cederam lugar a estrépitos de outro género.

Teve a impressão de que eram também de aprovação, mas uma aprovação calma, extinta logo depois de nascida.

Não demorou muito e os transeuntes se tornaram mais numerosos no cais, como se se dissolvessem os grupos da praça, dispensando, aos magotes, as suas massas dispersas.

— Um belo dia para o cardeal! — observou uma espécie de escrevente de procurador, dando um salto à beira do parapeito.

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O COLAR DA RAINHA 671

E atirou uma pedra ao rio com a habilidade do jovem parisiense que consagrou muitas horas ao exercício dessa arte, exumada da antiga palestra.

— Para o cardeal! — repetiu Joana. — Haverá, então, notícia de que o cardeal foi absolvido? Uma gota de fel, uma gota de suor caiu-lhe da fronte. Entrou rapidamente na sala.

— Minha senhora, minha senhora, — bradou, dirigindo-se à Sra. Hubert; — ouvi dizer: Que hoje é um dia feliz para o cardeall Feliz por quê?

— Não sei, — respondeu a interpelada. Joana encarou com ela. — Perguntai a vosso marido, por favor, — ajuntou. A mulher, complacente, obedeceu. Hubert respondeu de fora: — Não sei! Impaciente, magoada, Joana se deteve no meio da sala. — Mas, então, que queriam dizer as pessoas que estavam passando? Não há engano possível nessa espécie de oráculos. Elas se referiam, sem dúvida, ao processo. — Talvez, — acudiu o caritativo Hubert, — quisessem dizer que será um belo dia para o Sr. de Rohan, se fôr absolvido, mais nada. — Acreditais que o seja? — indagou Joana, crispando os dedos. — Pode ser. — E eu, então?... — Vós, senhora... também; por que não? — Estranha hipótese! — murmurou a condessa. E voltou para a janela. — Fazeis mal, parece-me, senhora, — disse-lhe o porteiro, — procurando

assim comoções que vos chegam mal compreensíveis de fora. Ficai quietinha, esperando que o vosso advogado ou o Sr. Frémyn venham ler-vos...

— A sentença?... Não! não! E pôs-se a escuta. Uma mulher estava passando com as amigas. Toucas de festa, grossos

ramalhetes nas mãos. O perfume das rosas subiu como um bálsamo precioso até Joana, que tudo aspirava.

— Êle terá o meu ramalhete, — gritou a mulher, — e mais cem outros, o santo homem. Se eu pudesse, haveria de beijá-lo! — Eu também, — afirmou uma companheira. — Pois eu quero que êle me beije, — declarou uma terceira. — De quem estarão falando? — pensou Joana. — Não tens mau gosto, — disse uma última às amigas; — é um homem muito bonito. E passaram as mulheres.

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672 ALEXANDRE DUMAS

— Ainda o cardeal! sempre êlel — murmurou Joana; — foi absolvido, foi absolvido!

E pronunciou essas palavras com tamanho desalento e tanta convicção ao mesmo tempo, que o porteiro e a mulher, decididos a evitar que se repetisse a tempestade da véspera, lhe disseram, uníssonos:

— Oh! senhora, por que não haveríeis de querer que o pobre prisioneiro fosse absolvido e libertado?

Joana sentiu o golpe, sentiu principalmente a mudança operada no casal e, não querendo perder-lhes a simpatia:

— Não me compreendeis, — respondeu. — Julgais-me tão invejosa ou má que eu deseje a desgraça dos companheiros de infortúnio? Não! Por Deus! Tomara que o Sr. Cardeal seja absolvido! Mas eu, eu quero saber. .. Acreditai-me, meus amigos, é a impaciência que me deixa assim.

Hubert e a mulher entreolharam-se como se quisessem medir o alcance do que pretendiam fazer.

Um'brilho selvagem que jorrou dos olhos de Joana, a despeito dela, deteve-os no momento em que iam tomar uma decisão.

— Não me dizeis nada? — bradou a condessa dando tento do erro que cometera. — Não sabemos nada, — responderam, em voz mais baixa. Nesse instante, vieram chamar Hubert, que saiu da sala. Ficando só com

Joana, a mulher buscou distraí-la; mas em vão, porque todos os sentidos da cativa, toda a sua inteligência, eram solicitados para o exterior pelos rumores, pelos sopros que percebia com uma susceptibilidade que a febre decuplicava.

Não podendo impedi-la de olhar nem de ouvir, a mulher do porteiro resignou-se.

Súbito, um barulhão, um grande movimento, fêz-se na praça. Refluiu a multidão para a ponte, até ao cais, com gritos tão compactos, tão reiterados, que Joana estremeceu no seu observatório.

Os gritos não cessavam; dirigiam-se a um carro descoberto cujos cavalos, sofreados menos pela mão do cocheiro do que pelo populacho, andavam a passo.

A pouco e pouco, apertando-os, comprimindo-os, a turba carregava nos ombros, nos braços, cavalos, carro, e as duas pessoas que iam nele.

Aos raios brilhantes de sol, sob uma chuva de flores, sob uma abóbada de folhagens que mil mãos agitavam acima das cabeças, a condessa reconheceu os dois homens que o povoléu entusiasmado carregava em triunfo.

Um, pálido, assustado, permanecia grave, atordoado, trémulo. Mulheres trepavam no eixo das rodas, arrebatavam-lhe as mãos para devorá-las de beijos e disputavam entre si a renda de seus punhos, que pagavam com as flores mais frescas e mais raras.

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O COLAR DA RAINHA 673

Outras, mais felizes, tinham conseguido subir na traseira do carro, com os lacaios; depois, afastando insensivelmente os obstáculos que estorvavam o seu amor, agarravam a cabeça do personagem idolatrado, aplicavam-lhe um beijo respeitoso e sensual, e logo cediam lugar a outras mulheres, igualmente felizes. O homem adorado era o Cardeal de Rohan.

O companheiro, viçoso, alegre, brilhante, recebia uma acolhida menos viva, mas não menos lisonjeira, guardadas as devidas proporções. De resto, se as mulheres repartiam entre si o cardeal, os homens gritavam: Viva Cagliostro!

Essa embriagues levou meia hora para atravessar a Pont-au-Change e, até ao seu ponto culminante, Joana avistou os triunfadores. Não perdeu um único pormenor.

A manifestação do entusiasmo público pelas vítimas da rainha, pois assim lhes chamavam, proporcionou-lhe um momento de alegria.

Mas, quase em seguida: — Já estão livres! — murmurou; — para eles já se cumpriram todas as

formalidades, mas eu ainda ignoro tudo; por que não me dizem nada, a mim? Um estremeção sacudiu-lhe o corpo. A seu lado, sentiu a presença da Sra. Hubert, que, silenciosa, atenta a quanto

se passava, devia ter compreendido e, não obstante, não lhe fornecia explicação alguma.

Joana ia provocar o esclarecimento indispensável, quando nova bulha lhe chamou a atenção para os lados da Pont-au-Change.

Um fiacre, cercado de gente, subia, por seu turno, a ladeira da ponte. No fiacre, reconheceu, sorridente e mostrando o filho ao povo, Oliva, que

também partia livre e louca de alegria, sorrindo aos gracejos um tanto livres, aos beijos enviados à viçosa e apetitosa rapariga. O incenso era grosseiro, sem dúvida, mas suficiente para a Srta. Oliva, e a multidão mandava-a como um último resto do esplêndido festim oferecido ao cardeal.

No meio da ponte, uma sege de posta estava esperando. Nela se encontrava o Sr. de Beausire, escondido atrás de um amigo, o único que se atrevia a mostrar-se à admiração pública. Fêz sinal à Oliva, que desceu do fiacre no meio de gritos que quase degeneraram em assuadas. Mas para certos atores, que são assuadas quando correm o risco de ser agredidos e expulsos do teatro?

Tendo tomado a sege, Oliva caiu nos braços de Beausire, que, apertando-a quase a ponto de sufocá-la, a ela se conservou agarrado por mais de uma légua e, inundando-a de lágrimas e beijos, só respirou em São Dinis, onde se trocaram os cavalos sem que a polícia os tivesse inquietado.

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Entretanto, vendo livres, felizes, festejadas, todas aquelas pessoas, perguntava Joana a si mesma por que só ela não recebia notícias.

— Mas eu! eu! — bradava, — por que requinte de crueldade não me informam da sentença que me diz respeito? — Acalmai-vos, senhora, — rogou Hubert, entrando; — acalmai-vos. — É impossível que não estejais informado, — replicou Joana, — haveis de saber! haveis de saber! Dizei-mo. — Senhora... — Se não sois um bárbaro, dizei o que sabeis! Vede como estou sofrendo... — Os oficiais subalternos da prisão estão proibidos de revelar as sentenças, cuja leitura cabe aos escrivães do tribunal. — Mas, então, é uma coisa tão horrível que não tendes coragem de contar-me! — exclamou Joana, num transporte de raiva, que amedrontou o porteiro, fazendo-o temer a repetição das cenas da véspera. — Não, — disse êle, — acalmai-vos, acalmai-vos. — Então, falai. — Prometeis ser paciente e não me comprometer? — Prometo-o! Juro-o! Mas falai! — Pois bem! o Sr. Cardeal foi absolvido. — Eu sei. — O Sr. de Cagliostro foi excluído do processo. — Eu sei. — A Srta. Oliva obteve baixa na culpa. — E depois? E depois?... — O Sr. Reteau de Villette foi condenado. Joana estremeceu. — Ãs galés!... — E eu? e eu? — gritou ela, batendo os pés com fúria. — Paciência, senhora, paciência! Não foi o que prometestes? — Eu tenho paciência; mas fa l a i . . . E eu? — Ao exílio, — disse com voz fraca o carcereiro, desviando o olhar. Um clarão de alegria iluminou os olhos da condessa, extin-guindo-se logo

depois. Em seguida, ela fingiu perder os sentidos com um grito e deixou-se cair nos

braços dos hospedeiros. — Que teria acontecido, — perguntou Hubert, baixinho, ao ouvido da mulher, — se eu lhe tivesse dito a verdade? — O exílio, — pensava Joana, simulando um ataque de nervos, — é a liberdade, é a riqueza, é a vingança! É exatamente o que eu havia honhado... Venci!

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XCVII

A execução

JOANA continuava esperando que o escrivão prometido pelo carcereiro fosse ler-lhe a sentença.Com efeito, já livre das angústias da dúvida, conservando apenas as do confronto, isto é, as do orgulho, dizia entre si:

— Que me importa a mim, espírito sólido, como é o meu, que o Sr. de Rohan tenha sido considerado menos culpado do que eu?

"Acaso me inflingem a pena de um crime? Não. Se todos me reconhecessem devidamente como uma Valois, se eu pudesse ter, como teve o Sr. Cardeal, uma fieira de príncipes e duques postados à passagem dos juizes, em atitude súplice, com as espadas enfeitadas de crepes e os olhos rasos d'água, não creio que se houvesse recusado o que quer que fosse à pobre Condessa de La Motte, e certo, na previsão dessa ilustre súplica, ter-se-ia poupado à descendente dos Valois a afronta do banco dos réus.

"Mas por que me hei de ocupar de todo esse passado que já morreu? Eis, portanto, encerrado o grande caso de minha vida. Posta de um modo equívoco no mundo, de um modo equívoco no paço, exposta a ser derrubada pelo primeiro sopro vindo de cima, eu "vegetava, e acabaria voltando talvez à miséria primordial que foi o doloroso aprendizado de minha vida. Agora, nada disso. Exilada! Fui exilada! isto é, tenho o direito de levar o meu milhão na mala, de viver sob as laranjeiras de Sevilha ou de Agrigento no inverno, na Alemanha ou na Inglaterra no verão; isto é, jovem, bela, famosa, podendo explicar a meu modo o processo, nada me impedirá de levar a vida que eu bem entender, seja com meu marido, se fôr exilado como eu, e sei-o livre, seja com os amigos que sempre nos antolham a felicidade e a juventude!

"E," ajuntava, perdida nos seus ardentes devaneios, "venham depois dizer-me a mim, a condenada, a mim, a banida, a mim, a pobre humilhada, que não sou mais rica do que a rainha, mais respeitada do que a rainha, mais absolvida do que a rainha! Porque não se tratava para ela da minha condenação. O leão não faz caso do verme da terra. Tratava-se de fazer condenar o Sr. de Rohan, e o Sr. de Rohan foi excluído do processo!

"Agora, como farão para intimar-me da sentença, como farão para expulsar-me do reino? Vingar-se-ão numa mulher, sujeitan-

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do-a às práticas mais rigorosas da penalidade? Entregar-me-ão aos arqueiros para que me conduzam à fronteira? Dir-me-ão solenemente: Indigna! o rei vos desterra do reino. Não, meus amos são bonacheirões," continuou,' sorrindo; "já não têm raiva de mim. Têm raiva apenas desse bom povo parisiense que urra debaixo dos seus balcões: Viva o Sr. Cardeal! Viva Cagliostro! Viva o parla-mento! Eis aí o verdadeiro inimigo: o povo! Sim, o inimigo direto, pois eu havia confiado no apoio moral d.a opinião pública e o consegui!"

Joana chegara a esse ponto dos seus pensamentos e fazia planos acertando contas consigo mesma. Já pensava na colocação dos brilhantes, no seu estabelecimento em Londres (ia em meio o verão), quando a lembrança de Reteau de Villette lhe atravessou, não o coração, mas o espírito.

— Pobre rapaz! — murmurou, com um sorriso mau, — foi êle quem pagou por todos. As expiações, portanto, precisam sempre de uma alma vil no sentido filosófico, e cada vez que surgem as necessidades desse género, surge da terra o bode expiatório para o golpe que há de abatê-lo.

"Pobre Reteau! Insignificante, miserável, está pagando hoje os panfletos contra a rainha, as conspirações a bico de pena, e Deus, que dá a cada qual o seu quinhão neste mundo, terá querido proporcionar-lhe uma existência de bengaladas, luíses de ouro intermitentes, ciladas, esconderijos, e um desfecho de galés.. Eis aí no que dá a astúcia em lugar da inteligência, a malícia em vez da maldade, o espírito de agressão sem a perseverança e sem a força. Quantos seres malfazejos existem na criação, desde o oução venenoso até o escorpião, o primeiro dos pequenos que se fêz temer do -homem! Todos querem fazer o mal, mas não se lhes concede a honra da luta: esmagam-se."

E Joana enterrava com essa pompa cómoda o cúmplice Reteau, já decidida a informar-se exatamente da prisão em que seria encerrado o miserável a fim de não passar pelas suas proximidades, para não impor mais essa humilhação ao desgraçado, mostrando-lhe a ventura de uma antiga conhecida. Joana tinha bom coração.

Tomou alegremente a refeição em companhia do porteiro e da mulher, que, por sua vez, tinham perdido completamente a alegria e já não se davam ao trabalho de disfarçar o constrangimento. A condessa atribuiu a tristeza deles à condenação que acabava de receber e observou-lhos. Responderam que nada lhes era mais doloroso do que o aspecto das pessoas depois de pronunciada uma sentença.

Joana se sentia intimamente tão feliz, custava-lhe tanto dissimular o júbilo, que ansiava pelo ensejo de ficar só, em liberdade com os seus pensamentos. E decidiu pedir, logo após o jantar, licença para recolher ao seu quarto.

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O COLAR DA RAINHA 677

Qual não foi a sua surpresa quando o porteiro Hubert, tomando a palavra à sobremesa, com uma solenidade contrafeita, que não era habitual em suas atitudes:

— Minha senhora, -r- começou, — temos ordem de não conservar por mais tempo em nossas salas as pessoas cujo destino já foi decidido pelo parlamento. — Bem, — disse Joana entre si, — êle vem ao encontro dos meus desejos. Levantou-se. — Eu não quisera, — respondeu, — que, por minha causa, incorrêsseis

numa contravenção; seria retribuir muito mal a bondade com que me tratastes. .. Voltarei, portanto, para o meu quarto.

Relanceou os olhos em torno para surpreender o efeito das suas palavras. Hubert fazia rodar uma chave entre os dedos. A mulher virava a cabeça como que para ocultar nova comoção.

— Mas, — ajuntou a condessa, — onde e quando virão ler-me a sentença? — Estão esperando, talvez, que volteis aos vossos aposentos, minha senhora, — apressou-se em dizer Hubert. — Decididamente quer ver-me pelas costas, — pensou Joana. E um vago sentimento de inquietude fê-la estremecer. Mas não durou

muito. Subiu os três degraus que conduziam ao corredor das celas. Vendo-a partir, precipitou-se a ela a Sra. Hubert e tomou-lhe as mãos, não

com respeito, não com verdadeira amizade, não com a susceptibilidade que honra quem a demonstra e o seu objeto, mas com profunda compaixão, com um ímpeto de piedade que não escapou à inteligente condessa, que tudo observava.

Desta feita, foi tão nítida a impressão que Joana sentiu medo; mas o medo foi afastado, como a inquietude, daquela alma trans-bordante de alegria e de esperança.

Joana, contudo, quis pedir contas à Sra. Hubert da sua piedade; ia abrir a boca e descer novamente os degraus que subira para formular uma dessas perguntas precisas e vigorosas como o seu espírito, quando Hubert interveio: tomou-lhe a mão, menos polida que vivamente, e abriu a porta.

Viu-se a condessa no corredor. Oito arqueiros do prebostado lá estavam à espera. Que esperavam eles? Eis o que perguntou mentalmente ao avistá-los. Mas a porta do porteiro já se fechara. Na frente dos arqueiros achava-se um dos carcereiros comuns da prisão, o mesmo que, todas as noites, a reconduzia ao seu quarto.

O homem pôs-se a caminhar na frente de Joana, como para mostrar-lhe o caminho.

— Volto para o meu quarto? — perguntou a condessa no tom de uma mulher que quisera parecer segura do que estava dizendo, mas que duvidava.

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— Sim, senhora, — respondeu o porta-chaves. Joana agarrou o corrimão e subiu atrás do homem. Ouviu os arqueiros

cochichando a alguns passos de distância, mas nenhum se mexeu do lugar. Tranquilizada, deixou-se aferrolhar no quarto e chegou até a agradecer

afetuosamente ao carcereiro. Este se retirou. Tanto que se viu livre e só, a alegria de Joana explodiu extravagante, depois

de ter sido longamente sufocada pela máscara com que, hipócrita, escondera o rosto na sala do porteiro. Aquele quarto da Conciergerie era a toca do animal selvagem momentaneamente aprisionado pelos homens e que um capricho de Deus ia de novo atirar ao espaço livre do mundo.

E, no seu covil ou na sua toca, quando a noite é escura, quando nenhum ruído denuncia à cativa a vigilância dos guardas, quando o seu faro sutil não pressente vestígio algum nas imediações, começam os saltos daquela natureza selvagem. Estira os membros para reabituá-los aos rasgos da esperada independência; e grita, e pula, e cai em êxtases que nunca surpreende o olhar do homem.

Para Joana, foi assim. A súbitas, ouviu passos no corredor; ouviu tilintarem chaves no molho do porta-chaves; ouviu ranger a sólida fechadura.

— Que me querem? — pensou, endireitando-se, atenta e muda. Entrou o carcereiro. — Que há, João? — perguntou Joana, com voz suave e indiferente. — Quer fazer o favor de seguir-me? — pediu êle. — Aonde? — Lá, em baixo, senhora. — Em baixo, como?. .. — Ao cartório. — Para quê? — Senhora. . . Adiantou-se Joana para o homem que hesitava e lobrigou, no fundo do

corredor, os arqueiros do prebostado, que já encontrara à saída da sala. — Afinal, — gritou, comovida, — dizei-me o que querem de mim no cartório! — É o Sr. Doillot, seu defensor, que quer falar-lhe. — No cartório? E por que não aqui? Êle sempre teve licença para vir ao meu quarto! — É que o Sr. Doillot recebeu cartas de Versalhes e quer dar-Ihe conhecimento delas. Joana não notou o quanto era ilógica a resposta. Uma palavra apenas

impressionou-a: cartas de Versalhes, cartas da corte, sem dúvida trazidas pelo próprio advogado.

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O COLAR DA RAINHA 679

— Terá a rainha intercedido junto ao rei após a publicação da sentença? Terá...

Mas de que lhe servia conjeturar? Que necessidade haveria disso se, dois minutos depois, lhe seria apresentada a própria solução do problema?

De resto, o carcereiro insistia, agitando as chaves como um homem que, à míngua de boas razões, se refugia na ordem recebida.

— Esperai-me um pouco, — pediu Joana, — estais vendo que eu já me havia despido para descansar; estes últimos dias me fatigaram tanto! — Esperarei, senhora; mas não se esqueça, por favor, de que o Sr. Doillot está com pressa. Joana fechou a porta, enfiou um vestido um pouco melhor, pôs um

mantelete e arrumou rapidamente os cabelos. Não levou cinco minutos. Dizia-lhe o coração que o Sr. Doillot trazia a ordem para a sua partida imediata e, com ela, o meio de atravessar a França discreta e comodamente! Sim, a rainha devia desejar que a sua inimiga fosse levada embora o mais cedo possível. Promulgada a sentença, devia esforçar-se Sua Majestade por irritar o menos possível a inimiga, pois se a pantera é perigosa acorrentada, quanto não será de temer depois de solta? Embalada por esses felizes pensamentos, Joana mais voou do que correu atrás do porta--chaves, que a fêz descer a escadinha pela qual já a haviam conduzido à sala de audiências. Mas em vez de ir à sala, em vez de virar à esquerda para entrar no cartório, o carcereiro endere-çou-se a uma portinha situada à direita.

— Aonde ides? — perguntou Joana. — O cartório é aqui. — Venha, venha, senhora, — tornou com voz melosa o porta-chaves; — é aqui que a está esperando o Sr. Doillot. Passou primeiro e fêz passar logo depois a prisioneira, que ouviu

fecharem-se com estrépito os ferrolhos exteriores da porta pesada. Surpresa, mas não vendo ainda ninguém no escuro, Joana não se atreveu a

perguntar mais nada. Deu dois ou três passos e estacou. Uma luz azulada emprestava ao

recinto como que o aspecto de um interior de túmulo. A claridade vinha de cima, de uma grade velha, pela qual, através das teias

de aranha e de cem camadas seculares de poeira, alguns raios pálidos conseguiam coar-se para dar às paredes um pouco do seu reflexo.

De repente, Joana sentiu frio; sentiu a umidade do calabouço e adivinhou algo terrível nos olhos flamejantes do porta-chaves.

Entretanto, ainda não via senão aquele homem; só êle e a prisioneira ocupavam o interior das quatro paredes esverdeadas pela água que escapava das grades e emboloradas pela passagem de um ar que nunca fora aquecido do sol.

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— Senhor, — disse ela então, dominando a impressão de terror que a transia, — que estamos fazendo aqui? Onde está o Sr. Doillot, a quem me prometestes levar?

O porta-chaves não respondeu; voltou-se como para verificar se a porta ficara solidamente fechada.

Joana seguiu-lhe, espavorida, o movimento. Acudiu-lhe a ideia, como nos romances escuros do tempo, de que estava tratando com um daqueles carcereiros, selvagens apaixonados, que, no dia em que vai escapar-lhes a presa pela porta aberta da jaula, se fazem tiranos da bela cativa e propõem o seu amor em troca da liberdade.

Joana era forte, não temia surpresas, não tinha o pudor da alma. A sua imaginação lutava vantajosamente contra os sofísticos caprichos dos Srs. Crébillon Filho e Louvè"t. Chegou-se ao carcereiro com um sorriso nas pupilas:

— Meu amigo, — perguntou, — que me quereis? Tendes alguma coisa para dizer-me? O tempo de uma prisioneira, quando já toca a liberdade, é precioso. Pareceis haver escolhido um sítio bem sinistro para falar-mel

O homem não respondeu, porque não a compreendia. Sentou--se num dos cantos da lareira baixa e ficou esperando.

— Mas, — insistiu Joana, — repito: que estamos fazendo aqui? E receou, por um momento, estar em presença de um louco. — Estamos esperando o advogado Doillot, — replicou o porta-chaves. Joana sacudiu a cabeça: — Confessar-me-eis, — disse, — que o Sr. Doillot, se tem cartas de

Versalhes para comunicar-me, escolheu muito mal a hora e a sala de audiência... Não é possível que me faça esperar aqui. A coisa é outra.

Mal acabara de pronunciar essas palavras, quando à sua frente se abriu uma porta que ela não notara.

Era uma dessas portas arredondadas, a modo de alçapão, verdadeiros monumentos de madeira e ferro, que descobrem ao abrir-se, no fundo que escondem, uma espécie de círculo cabalístico, em cujo centro um personagem ou uma paisagem parecem surgir, vivos, por artes de magia.

Com efeito, atrás da porta havia degraus que mergulhavam em algum corredor mal iluminado, mas cheio de ar e de frescor, e, além do corredor, por um só momento, rápido como um raio, Joana avistou, erguendo-se na ponta dos pés, um espaço semelhante ao que constitui uma praça e, nesse espaço, uma multidão de homens e mulheres de olhos cintilantes.

Mas, repetimo-lo, isso foi para ela mais uma visão que propriamente uma vista; não teve tempo, sequer de advertir-se do que via.

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O COLAR DA RAINHA 681

Diante dela, em plano bem mais próximo que o da praça, surgiram três pessoas, subindo o último degrau.

Atrás delas, sem dúvida nos degraus inferiores, luziram quatro baionetas, brancas e afiadas, semelhando círios sinistros que tivessem querido alumiar a cena.

Mas a porta redonda se fechou. Só os três homens entraram no calabouço em que se achava Joana.

Esta caminhava de surpresa em surpresa, ou melhor, de apreensões em terrores.

Aproximou-se do porta-chaves, que pouco antes lhe inspirara medo, como a pedir-lhe proteção contra os desconhecidos.

O carcereiro encostou-se à parede da enxovia, mostrando assim que desejava, que devia permanecer como passivo espectador da cena que ia desenrolar-se.

E antes até que lhe ocorresse a ideia de tomar a palavra, Joana foi interpelada.

Foi um dos três homens, o mais moço, que começou. Estava vestido de preto. Trazia o chapéu na cabeça e, na mão, papéis fechados como a cítala.

Imitando a atitude do carcereiro, os outros dois furtavam-se aos olhares na parte mais escura do recinto.

— Sois, minha senhora, — começou o desconhecido, — Joana de Saint-Rémy de Valois, esposa de Marie-Antoine-Nicolas, Conde de La Motte? — Sim, senhor, — replicou Joana. — Nascestes em Fontette, no dia 22 de julho de 1756? — Sim, senhor. — Morais em Paris, à Rua Nova de São Gil? — Sim, senhor... Mas por que me fazeis todas essas perguntas? — Lamento muito, minha senhora, que não me tenhais reconhecido; tenho a honra de ser o escrivão do tribunal. — Estou-vos reconhecendo. — Nesse caso, posso desempenhar minhas funções na qualidade de escrivão, que acabais de reconhecer? — Um momento, senhor. Dizei-me, por obséquio, a que vos obrigam essas funções? — A ler-vos, senhora, a sentença pronunciada contra vós na sessão do dia 31 de maio de 1786. Fremiu Joana. Relanceou em torno de si um olhar cheio de angústias e

desconfiança. Não é sem propósito que escrevemos em segundo lugar a palavra desconfiança, que seria a menos forte das duas; Joana estremeceu, presa de irrefletida angústia; acendia, para prestar mais atenção, dois olhos terríveis nas trevas.

— Sois o escrivão Breton, — disse, então; — mas quem são esses dois senhores, vossos acólitos?

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682 ALEXANDRE DUMAS

O escrivão ia responder, quando o porta-chaves, prevenindo-lhe as palavras, lançou-se a êle e, ao ouvido, sussurrou-lhe estas palavras repassadas de medo ou compaixão eloquente:

— Não lho digais! Joana ouviu-o; considerou os dois hamens com maior atenção ainda.

Admirou-se de ver o trajo cinzento com botões de ferro de um, a vestia e o gorro de peles do outro; o estranho avental que cobria o peito deste último intrigou-a; dir-se-ia queimado em certos lugares e, noutros, manchado de sangue e de óleo.

Recuou. Parecia vergar para tomar um impulso mais vigoroso. Aproximando-se, disse-lhe o escrivão: — De joelhos, por favor, minha senhora. — De joelhos! — bradou Joana; — de joelhos! eu!... eu! Uma Valois, de joelhos! — É a ordem, minha senhora, — voltou o escrivão, inclinan do-se. — Mas, senhor, — objetou Joana com um sorriso fatal, — não pensais no que estais dizendo, precisarei ensinar-vos a lei. Ninguém se ajoelha senão para fazer uma confissão pública. — E daí, minha senhora? — E daí, senhor, só se faz confissão pública em consequência de sentença que condene a uma pena infamante. E o exílio, que eu saiba, não é pena infamante na lei francesa. — Eu não vos disse, minha senhora, que tivésseis sido condenada ao exílio, — respondeu o escrivão com grave tristeza. — Então, — exclamou Joana, explodindo, — a que fui condenada? — É o que sabereis ouvindo a sentença, minha senhora; e, para ouvi-la, ajoelhai-vos, por favor. — Nunca! nunca! — Senhora, é o item primeiro das minhas instruções. — Nunca! nunca! Repito! — Senhora, está escrito que, se a condenada não quiser ajoelhar-se ... — Sim?... — Ajoelhará à força. — Empregareis a força contra uma mulher! — Uma mulher não tem mais direito do que um homem de faltar com o respeito devido ao rei e à justiça. — E à rainha! não é? — gritou, furiosa, Joana; — pois reconheço nisso perfeitamente a mão de uma inimiga! — Não tendes razão de acusar a rainha, minha senhora; Sua Majestade não tem nada que ver com a redação das sentenças do tribunal. Vamos, conjuro-vos, poupai-nos a necessidade de violências: de joelhos! — Nunca! nunca! nuncal

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O COLAR DA RAINHA 683

O escrivão enrolou os papéis e sacou da algibeira um papel mais grosso, que trazia de reserva, na previsão do que estava acontecendo.

E leu a ordem formal dada pelo procurador-geral à força pública para obrigar a acusada rebelde a ajoelhar-se, a fim de satisfazer a justiça.

Joana acantou-se num ângulo da prisão, desafiando com o olhar a força pública, que imaginara fossem as baionetas lobrigadas na escada, atrás da porta.

Mas o escrivão não mandou abrir a porta; fêz sinal aos dois homens, e ambos se aproximaram, pachorrentos, como máquinas de guerra, robustas e inabaláveis, que se armam contra as muralhas nos assédios.

Um braço de cada um segurou-a por baixo dos ombros e, arrastou-a para o meio da sala, sem embargo dos seus gritos e dos seus berros.

Impassível, sentou-se o escrivão e ficou esperando. Joana não percebeu que, fazendo-se arrastar daquele jeito, se acabara

ajoelhando. Uma palavra do escrivão chamou-lhe a atenção. — Está bem assim, — disse êle. Soltou-se a mola imediatamente e Joana deu um pulo de dois pés de altura,

indo cair nos braços dos homens que a seguravam. — Não adianta gritardes assim, — tornou o escrivão, — pois ninguém vos ouvirá lá fora; além disso, não podereis ouvir a leitura da sentença que devo fazer-vos. — Deixai-me ouvi-la em pé, que a ouvirei em silêncio, — prometeu Joana, ofegante. — Toda vez que um réu é punido com açoites, — declarou o escrivão, — o castigo é infamante e exige a genuflexão. — Açoites! — urrou Joana. — Açoites! Ah! miserável! Dissestes açoites?... E tais foram as suas vociferações, que atordoaram o chaveiro, o escrivão,

os ajudantes, e todos, perdendo a cabeça, começaram a querer, como bêbedos, a dominar a matéria com a matéria.

Precipitaram-se sobre Joana e deram com ela em terra; mas a mulher resistiu vitoriosamente. Quiseram fazê-la dobrar as pernas; ela retesou os músculos como se fossem lâminas de aço.

Viu-se Joana suspensa no ar, entre as mãos daqueles homens, e esperneou e bracejou de modo que lhes infligiu cruéis ferimentos.

Os homens dividiram entre si o trabalho: um deles segurou-lhe os pés como num estojo; os outros dois ergueram-na pelos punhos e gritaram para o escrivão:

— Lede, lede sempre a sentença, Sr. Escrivão, pois, do contrário, nunca daremos conta dessa possessa! — Nunca permitirei que se leia uma sentença que me condena à infâmia, — gritou Joana, debatendo-se com força sôbre-humana.

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684 ALEXANDRE DUMAS

E, juntando a ação à ameaça, dominou a voz do escrivão com rugidos e gritos tão estridentes, que não ouviu uma palavra sequer da leitura.

Acabando de ler, o escrivão tornou a dobrar os papéis e guardou-os no bolso.

Cuidando que êle houvesse terminado, Joana calou-se e tentou reunir as forças para desafiar os três homens. Aos seus rugidos sucederam gargalhadas ainda mais ferozes.

— E, — continuou plàcidamente o escrivão, como um final de fórmula comum, — a sentença será executada na praça das execuções, no pátio do Palácio da Justiça! — Publicamente! — urrou a desgraçada. . . — Oh!... — Sr. de Paris, entrego-vos esta mulher, — acabou de dizer o escrivão, dirigindo-se ao homem do avental de couro. — Mas quem é esse homem? — perguntou Joana, num derra deiro paroxismo de pavor e de raiva. — O carrasco! — respondeu, inclinando-se, o escrivão, que recompunha as rendas dos punhos. Assim que o escrivão pronunciou essa palavra, os dois executores

apoderaram-se de Joana e ergueram-na para conduzi-la à parte da galeria que ela avistara antes. Mas teremos de renunciar a pintar a resistência oposta por ela. A mulher que, na vida de todos os dias, perdia os sentidos por causa de um arranhão, suportou, por cerca de uma hora, os maus tratos e as pancadas dos dois homens; foi arrastada até à porta exterior sem ter deixado, um momento sequer, de soltar os mais terríveis clamores.

Adiante da porta, onde os soldados reunidos continham a multidão, surgiu de repente o pàtiozinho, denominado Pátio de Justiça, com os dois ou três mil espectadores que a curiosidade ali arrastara desde que se haviam iniciado os preparativos e se erguera o cadafalso.

Sobre um estrado de uns oito pés de altura, elevava-se um poste negro, guarnecido de anéis de ferro e encimado de uma tabuleta que o escrivão, obedecendo sem dúvida a ordens superiores, procurara tornar ilegível.

O estrado não tinha parapeito e dava-lhe acesso uma escada também sem corrimão. A única balaustrada que lá se via era formada pelas baionetas dos arqueiros, que lhe vedavam a entrada como uma grade de pontas reluzentes.

Vendo que se abriam as portas do tribunal, que chegavam os comissários com as suas varas, que o escrivão caminhava com os papéis na mão, iniciou o populacho o seu movimento de ondulação que o faz semelhante ao mar.

Em toda a parte gritos de: Ei-la! ei-la! ressoavam acompanhados de epítetos pouco honrosos para a condenada, e aqui e ali se ouviam algumas observações pouco caritativas sobre os juizes.

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O COLAR DA RAINHA 685

Pois Joana tinha razão: ganhara um partido após a sua condenação e muitos que a desprezavam dois meses antes tê-la-iam reabilitado depois que ela se colocara como antagonista da rainha.

Mas o Sr. de Crosne previra tudo. As primeiras fileiras daquela sala de espetáculos tinham sido ocupadas por uma plateia dedicada aos que arcavam com as despesas do espetáculo. Viam-se lá, ao pé dos agentes vigorosos de polícia, as mulheres mais entusiastas do Cardeal de Rohan. Encontrara-se o meio de utilizar em favor da rainha as cóleras despertadas contra ela. Os mesmos que tanto haviam aplaudido o Sr. de Rohan levados pela antipatia que lhes inspirava Maria Antonieta, vinham apupar ou patear a Sra. de La Motte, que tivera a imprudência de separar a sua causa da causa do cardeal.

Disso resultou que, à sua chegada à pequena praça, os gritos furiosos de: Morra a La Motte! Abaixo a falsaria! compusessem a maioria e se exalassem dos peitos mais robustos.

Aconteceu também que os que tentaram manifestar a sua piedade por Joana ou a sua indignação contra a sentença que a feria, tomados por inimigos do cardeal pelas damas do Mercado e por inimigos da rainha pelos agentes, foram, nessa dupla qualidade, maltratados pelos dois sexos interessados no aviltamento da condenada. Joana estava no fim de suas forças, mas não de sua raiva; cessou de gritar, porque os gritos se lhe perdiam no conjunto dos ruídos e da luta. Mas com voz nítida, vibrante, metálica, lançou algumas palavras que fizeram calar, como que por encanto, todos os murmúrios.

— Sabeis quem sou? — disse ela. — Sabeis que me corre nas veias o sangue dos vossos reis? Sabeis que ferem em mim, não a culpada, mas a rival; e não apenas a rival, senão a cúmplice?

Nesse ponto interromperam-na os clamores oportunamente lançados pelos subordinados mais inteligentes do Sr. de Crosne.

Mas ela despertara, senão o interesse, pelo menos a curiosidade: a curiosidade do povo é uma sede que quer saciar-se. O silêncio que Joana observou indicou-lhe que queriam escutá-la.

— Sim, — repetiu, — uma cúmplice! Castigam em mim a depo sitária dos segredos de... — Cuidado! — disse-lhe o escrivão ao ouvido. Ela voltou-se. O carrasco tinha um açoite na mão. A essa vista, Joana esqueceu o discurso, o ódio, o desejo de cativar a

multidão; só viu a infâmia, só teve medo da dor. — Perdão! perdão! — gritou, com voz Iacerante. Uma vaia imensa cobriu-lhe a súplica. Joana agarrou-se, numa vertigem, aos

joelhos do executor e conseguiu empolgar-lhe a mão. Mas êle ergueu o outro braço e deixou cair brandamente o chicote nos

ombros da condessa.

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686 ALEXANDRE DUMAS

Coisa inaudita: aquela mulher, que a dor física teria aterrado, sujeitado, talvez domado, reergueu-se quando percebeu que a poupavam; precipitando-se sobre o ajudante, tentou derrubá-lo para atirá-lo fora do cadafalso. Mas, súbito, recuou.

O homem tinha na mão um ferro vermelho, retirado de um braseiro ardente. Erguia o ferro e o calor escaldante que êle exalava levou a ré a dar um pulo para trás com um urro selvagem.

— Marcada! — gritou, — marcada! O povo todo respondeu-lhe ao grito com um grito medonho. — Sim! sim! — rugiram três mil bocas. — Socorro! socorro! — berrou Joana, desvairada, tentando romper as cordas com que lhe acabavam de prender as mãos. Ao mesmo tempo o carrasco, não podendo abri-lo, rasgava o vestido da

condessa; e, ao passo que afastava com mão trémula os farrapos de tecido, tentava agarrar o ferro ardente que lhe estendia o ajudante.

Joana, porém, investia com o homem, fazendo-o sempre recuar, pois êle não se atrevia a tocá-la; de sorte que o carrasco, já desesperado de empolgar o sinistro instrumento, principiava a temer que, do meio do povo, se erguesse algum anátema contra êle. Preocupava-o o amor-próprio.

Palpitante, a multidão começava a admirar a vigorosa resistência daquela mulher e fremia de surda impaciência; o escrivão descera a escada; os soldados contemplavam o espetáculo; era uma desordem, uma confusão que assumia aspectos ameaçadores.

— Acaba com isso! — gritou uma voz que partia da primeira fila do povo. Voz imperiosa, que o carrasco sem dúvida reconheceu, pois, derrubando

Joana num impulso vigoroso, dobrou-lhe ao meio o corpo e curvou-lhe a cabeça com a mão esquerda.

Ela reergueu-se, mais ardente do que o ferro com que a ameaçavam e, com voz que dominou o tumulto da praça e as imprecações dos desastrados carrascos:

— Franceses covardes! — gritou, — não me defendeis! Permitis que me torturem! — Calai-vos! — gritou o escrivão. — Calai-vos! — gritou o comissário. — Calar-me!... Ah! sim! — voltou Joana, — que me farão?... Se sofro esta vergonha, a culpa é minha. — Ah! ah! ah! — gritou o povo, enganando-se com o sentido daquela confissão. — Calai-vos! — repetiu o escrivão. — Sim, a culpa é minha, — continuou Joana, resistindo sempre, — pois se eu tivesse querido falar... — Calai-vos! — rugiram escrivães, comissários e carrascos.

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O COLAR DA RAINHA 387

— Se eu tivesse querido revelar tudo o qjue séi sôbre a rainha. .. seria enforcada; nâo seria desonrada.

Não pôde dizer mais anda; pois ô comissário atirou-se ao cadafalso, seguido de agentes que a amordaçaram e entregaram, palpitante, ferida, com o rosto inchado, lívido, sangrento aos dois executores, um dos quais conseguira novamente curvai â vitima;: ao mesmo tempo, apanhou o ferro que o ajudante lhe estendia.

Mas Joana aproveitou, como uma cobra, a insuficiência da mão que lhe apertava a nuca; deu um último salto e, voltando-se com frenética alegria, ofereceu o seio ao carrasco, encarando nele com olhar provocador; de sorte que o instrumento fatal, que lhe descia sobre o ombro, foi atingi-la no peito direito e imprimiu o seu sulco fumegante e devorador na carne viva, arrancando à vítima, apesar da mordaça, um desses urros que não têm equivalente em nenhuma das entonações que possa reproduzir a voz humana.

Joana deixou-se cair ao peso da dor e da vergonha. Estava vencida. Dos lábios não se lhe escapou som nenhum, não lhe sacudiu os membros um frémito sequer; desta feita, desmaiara realmente.

O carrasco levou-a, dobrada ao meio, sobre o ombro, e desceu com ela, com passo incerto, a escada da ignomínia.

Em quanto ao povo, mudo também, ou porque aprovasse, ou porque estivesse consternado, só se escoou pelas quatro saídas da praça depois de ter visto fechadas sobre Joana as portas da Con-ciergerie; depois de ter visto desmanchar-se lentamente, peça por peça, todo o patíbulo; depois de certificar-se de que não teria outro epílogo o drama apavorante cuja representação o parlamento acabava de oferecer.

Os agentes observaram até as últimas impressões dos assistentes; as suas primeiras ordens haviam sido tão claramente articuladas, que fora loucura opor qualquer objeção à sua lógica especada em cacetes e algemas.

A objeção, se alguma se produziu, foi calma e íntima. Pouco a pouco, retomou a praça a costumeira tranquilidade; só na extremidade da ponte, depois que se dissipou o populacho, dois homens, moços e irrefletidos, que se retiravam como os outros, travaram o diálogo seguinte:

— Foi realmente a Sra. de La Motte que o carrasco marcou? Acreditai-lo, Maximiliano? — Dizem, mas não acredito... — replicou o mais alto dos dois interlocutores. — Sois mesmo de parecer que não foi ela? — tornou o outro, um homemzinho de rosto sombrio, olhos redondos e luminosos como os dos pássaros noturnos, cabeleira curta e oleosa; — não, não foi a Sra. de La Motte que marcaram, não é verdade? Os agentes

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688 ALEXANDRE DUMAS

dos tiranos pouparam a cúmplice. Encontraram para desonerar Maria Antonieta da acusação uma rapariga chamada Oliva, que se confessou prostituta; poderão ter encontrado uma falsa Sra. de La Motte, que se confessasse falsaria. Dir-me-eis que a marca existe. Ora, adeus! comédia paga ao carrasco e à vítima! Fica um pouco mais caro, mas é só.

O companheiro escutava bamboando a cabeça. Sorria sem falar. — Que me respondeis? — insistiu o feio homenzinho; — não concordais comigo? — Parece-me difícil conseguir de alguém que se deixe marcar no seio, — replicou; — a comédia a que aludis não se me afigura provada. Sois mais médico do que eu e deveis ter sentido a carne queimada. Lembrança desagradável, confesso-o. — Negócio de dinheiro, já vos disse: paga-se uma condenada, que seria marcada de qualquer jeito, por outro motivo, paga-se para dizer três ou quatro frases pomposas, amordaça-se quando já está a termos de desistir... — Não, não, não, — contestou, fleumático, o que fora chamado Maximiliano, — não vos seguirei nesse terreno, que é pouco sólido. — Nesse caso, — atalhou o outro, — fareis como todos os beócios: acabareis dizendo que vistes marcar a Sra. de La Motte; será mais um de vossos caprichos. Ainda há pouco não vos exprimistes assim, pois lembro-me perfeitamente de ter-vos ouvido dizer: Não creio que seja a Sra. de La Motte a mulher que marcaram. — Continuo a achar que não, — tornou o rapaz sorrindo, — mas também não foi uma condenada, como dizeis. — Então, quem foi? Vamos, dizei quem foi a pessoa marcada lá na praça, em lugar da Sra. de La Motte? — Foi a rainha! — declarou o rapaz com voz aguda ao sinistro companheiro, acentuando as palavras com o seu indefinível sorriso. O outro recuou, rindo a bandeiras despregadas e aplaudindo a pilhéria;

depois, circunvolvendo os olhos: — Adeus, Robespierre, — disse êle. — Adeus, Marat, — respondeu o outro. E separaram-se.

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XCVIII

O casamento

NO MESMO dia da execução, ao meio-dia, saiu o rei do seu gabinete, em Versalhes, e ouviram-no dispensar o Sr. da Provença com estas palavras, asperamente pronunciadas:

— Senhor, assisto hoje a uma missa de casamento. Não me faleis em negócios de família, sobretudo em negócios feios, por favor; seria um mau agouro para os noivos, que quero bem e tenciono proteger.

O Conde da Provença franziu o sobrolho sorrindo, cumprimentou profundamente o irmão e recolheu aos seus aposentos.

Continuando a caminhar por entre os cortesãos espalhados pelas galerias, sorriu el-rei para alguns e para outros olhou sobranceiramente, segundo a atitude favorável ou contrária que haviam assumido no caso recém-julgado pelo parlamento.

Chegou assim ao salão quadrado, onde encontrou a rainha já pronta, cercada de damas de honor e de fidalgos.

Pálida sob o carmim, Maria Antonieta ouvia con ^fetada atenção as suaves perguntas que a Sra. de Lamballe e o Si. ut Calonne lhe dirigiam sobre a sua saúde.

Mas, não raro, a furto, alongava os olhos na direção da p.nta como alguém que morre por ver e logo os desviava, como algucm que treme de ser visto.

— O rei! — gritou um porteiro. E, numa catadupa de rendas, bordados e luz, ela viu entrar Luís XVI, cujo primeiro olhar, à entrada do salão, foi para a esposa.

Ergueu-se Maria Antonieta e deu três passos ao encontro do marido, que lhe beijou graciosamente a mão.

— Está bela hoje, maravilhosamente bela, senhora! — disse êle. Ela sorriu tristemente e, ainda uma vez, procurou com a vist amortecida, no meio da chusma de gente, o ponto desconhecido que já a surpreendemos procurando. — Os nossos jovens noivos ainda não chegaram? — perguntou o rei. — Parece-me que vai dar meio-dia. — Sire, — respondeu a rainha com um esforço tão violento que o carmim se lhe gretou nas faces e de vários pontos se despren-

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690 ALEXANDRE DUMAS

deu, — só chegou até agora o Sr. de Charny; está esperando, na galeria, que Vossa Majestade lhe permita entrar.

— Charny!. . . — exclamou o rei, sem notar o silêncio expressivo que sucedera às palavras da rainha; — Charny está aqui? Pois venha! venha! Afastaram-se alguns fidalgos para ir buscar o Sr. de Charny. A rainha levou nervosamente os dedos ao coração e tornou a sentar-se, com as costas voltadas para a porta.

— Realmente já é meio-dia, — repetiu o rei, — e a noiva devia estar aqui. No momento em que o rei pronunciava estas palavras, assomou o Sr. de

Charny à entrada do salão; ouvindo-as, respondeu incontinenti: — Digne-se Vossa Majestade de relevar o atraso involuntário da Srta. de Taverney; desde a morte do pai, ela tem estado de cama. Levanta-se hoje pela primeira vez e já teria vindo receber as ordens de Vossa Majestade não fosse um desmaio que lhe sobreveio. — A pobre menina gostava tanto do pai! — observou o rei, em voz alta; — mas, como encontra um bom marido, esperemos que logo se console. A rainha escutou, ou melhor, ouviu sem fazer um movimento. Quem quer

que a tivesse observado enquanto falava Charny, ter--lhe-ia visto o sangue retirar-se, como um nível que baixa, do rosto para o coração.

Observando a afluência da nobreza e do clero, que atulhavam o salão, o rei ergueu de repente a cabeça.

— Sr. de Breteuil, — perguntou, — já expedistes a ordem de banimento de Cagliostro? — Expedi, Sire, — replicou humildemente o ministro. O sopro de um passarinho adormecido teria perturbado o silêncio da

assembleia. — E essa La Motte, que se diz de Valois, — continuou o rei com voz forte, — não vai ser ferreteada hoje? — Neste momento, Sire, — replicou o Ministro da Justiça. — Já o deve ter sido. O olhar da rainha cintilou. Um murmúrio que queria ser aprobativo,

circulou no salão. — O Sr. Cardeal ficará contrariado ao saber que lhe marcaram a cúmplice,

— prosseguiu Luís XVI com rigor obstinado, que pela primeira vez lhe observavam naquele caso.

E dizendo sua cúmplice com referência a um acusado que o parlamento acabava de absolver, pronunciando uma palavra que aviltava o ídolo dos parisienses, que condenava por ladrão e fal-sário um dos primeiros príncipes da Igreja, um dos primeiros príncipes franceses, el-rei, como se atirasse um desafio solene ao clero,

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O COLAR DA RAINHA 691

aos nobres, aos parlamentos, ao povo, para sustentar a honra da esposa, relanceou à sua volta um olhar em que flamejavam a cólera e a majestade que ninguém sentira jamais em França depois que se haviam cerrado para sempre os olhos de Luís XIV.

Nem um murmúrio, nem uma palavra de assentimento acolhe-íam essa vingança que tomava o rei dos que haviam conspirado para desonrar a monarquia. E êle abeirou-se da rainha, que lhe estendia as mãos com a efusão de um profundo agradecimento.

Nesse momento surgiram, no extremo da galeria, a Srta. de Ta-veraey com as vestes alvas de noiva e o rosto branco de um espectro, e Filipe de Taverney, que lhe dava a mão.

Andreia adiantava-se com passos rápidos, olhar perturbado, seio palpitante; não via nem ouvia coisa alguma; a mão fraterna dava--lhe força, coragem e direção.

A chusma de cortesãos sorriu à passagem da noiva. Todas as mulheres se colocaram atrás da rainha e todos os homens se enfileiraram atrás do rei.

O Bailio de Suffren, trazendo pela mão Oliveiros de Charny, aproximou-se de Andreia e do irmão, cortejou-os e confundiu-se no grupo dos amigos particulares e dos parentes.

Filipe continuou o seu caminho sem que os seus olhos encontrassem os de Oliveiros, sem que a pressão de seus dedos prevenissem Andreia de que devia erguer a cabeça.

Chegado diante do rei, apertou a mão da irmã e esta, como uma morta galvanizada, abriu os olhos e viu Luís XVI, que, bondoso, lhe sorria.

Cumprimentou entre os murmúrios dos assistentes, que assim lhe aplaudiam a beleza.

— Senhorita, — disse o rei tomando-lhe a mão, — precisastes esperar o fim do vosso luto para desposar o Sr. de Charny; pode ser que, se eu não tivesse pedido que apressásseis o casamento, o vosso futuro esposo, a despeito da sua impaciência, vos houvesse concedido mais um mês de espera; pois me disseram que estais doente, e isso me aflige; cumpre-me, porém, assegurar a felicidade dos bons fidalgos que me servem como o Sr. de Charny; se não vos recebêsseis hoje com êle, eu não poderia assistir ao vosso casamento, pois parto amanhã para uma viagem pela França em companhia da rainha. Dessarte, terei a satisfação de assinar o vosso contrato matrimonial e ver-vos casada em minha capela. Cumprimentai a rainha, senhorita, e agradecei-lhe; pois Sua Majestade foi boa para vós.

Ao mesmo tempo, conduziu pessoalmente Andreia para junto de Maria Antonieta.

Esta se erguera com os joelhos trémulos, as mãos geladas. Não ousou levantar os olhos e viu apenas uma forma branca inclinada diante de si.

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692 ALEXANDRE DUMAS

Era o vestido de noiva de Andreia. O rei devolveu imediatamente a mão da noiva a Filipe, deu a sua a

Maria Antonieta e disse, em voz alta: — À capela, senhores. A multidão, silenciosa, seguiu Suas Majestades para tomar os seus lugares. A missa começou logo. Ouviu-a a rainha curvada sobre o genuflexório, com

a cabeça enterrada nas mãos. Orou com toda a alma, com todas as forças; endereçou ao céu votos tão ardentes que o sopro dos lábios lhe devorou o vestígio das lágrimas.

Pálido e belo, sentindo sobre si o peso de todos os olhares, o Sr. de Charny mostrou-se calmo e bravo como se estivesse a bordo do seu navio, entre turbilhões de chamas e furacões da metralha inglesa; entretanto, sofria muito mais.

Com o olhar pregado na irmã, que via estremecer e cambalear, Filipe parecia pronto a acudir-lhe com uma palavra, com um gesto de consolação ou de amizade.

Andreia, porém, não se desmentiu; permaneceu de cabeça erguida, aspirando a cada minuto o frasco de sais, moribunda e vacilante como a chama de um círio, mas em pé e teimando em viver pela força da vontade.

Não dirigiu preces ao céu, não formulou votos para o futuro, pois não tinha nada que esperar e nada que temer; não era coisa alguma para os homens nem para Deus.

Enquanto o padre falava, enquanto tangia o sino sagrado, enquanto à sua volta se realizava o mistério divino:

— Serei, acaso, cristã? — ydizia consigo só. — Serei, acaso, um ser como os outros, uma criatura semelhante às outras? Fizeste-me para a piedade, ó tu, a quem chamam Deus soberano, árbitro de todas as coisas? Tu, que dizem justo por excelência e que sempre me castigaste, sem que eu jamais pecasse! Tu, que dizem o Deus da paz e do amor e a quem devo o viver entre tormentos, cóleras e vinganças sangrentas! Tu, a quem devo o ter, pelo mais mortal dos inimigos, o único homem que eu teria amado?

"Não," continuou, "as coisas deste mundo e as leis de Deus não me dizem respeito! Fui, com certeza, amaldiçoada antes de nascer e, ao nascer, excluída das leis da humanidade."

Logo, voltando ao passado doloroso: — É estranho! é estranho! — murmurava. — Está aqui, perto de mim, um

homem cujo nome, apenas pronunciado, me fazia morrer de felicidade. Se esse homem tivesse vindo pedir-me por mim mesma, eu me veria obrigada a rojar-me a seus pés, a pedir-lhe perdão pelo meu erro de outrora, pelo teu erro, meu Deus! E esse homem que eu adorava talvez me tivesse repelido. Hoje, todavia, é êle que me esposa, é êle quem me virá pedir perdão de joelhos! É estranho, sim, muito estranho!

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O COLAR DA RAINHA 693

Nesse momento, a voz do celebrante soou-lhe aos ouvidos. Dizia: — Tiago Oliveiros de Charny, recebeis por esposa Maria Andreia de Taverney? — Sim, — respondeu Oliveiros com voz firme. — E vós, Maria Andreia de Taverney, recebeis por esposo Tiago Oliveiros de Charny? — Sim!. . . — replicou Andreia num tom quase selvagem, que fêz estremecerem a rainha e mais de uma mulher no auditório. Charny enfiou o anel de ouro no dedo da esposa, e o anel passou sem

que Andreia tivesse sentido a mão que lho oferecia. Logo depois o rei se levantou. Acabara-se a missa. Todos os cortesãos foram

cumprimentar, na galeria, os recém-casados. O Sr. de Suffren pegou na mão da sobrinha e prometeu-lhe, em nome de

Oliveiros, a felicidade que ela merecia. Andreia agradeceu ao bailio sem que por um instante se lhe desanuviasse a

fronte e pediu apenas ao tio que a conduzisse pres-tesmente ao rei, a fim de que pudesse manifestar-lhe a sua gratidão, pois se sentia fraca.

Ao mesmo tempo, terrível palidez invadiu-lhe o rosto. Charny viu-a de longe, mas não ousou aproximar-se. O bailio atravessou o salão, levou Andreia à presença do rei, que lhe

beijou a testa, dizendo: — Senhora condessa, passai pelos aposentos da rainha; Sua Majestade quer

dar-vos o seu presente de casamento. E, ditas essas palavras, que julgava sumamente graciosas, retirou-se o

monarca seguido de toda a corte, deixando a noiva fora de si, desesperada, ao braço do irmão.

— Oh! — murmurou, — isso é demais! É demais, Filipe! No entanto parecia-me haver sofrido já o bastante!...

— Coragem, — disse-lhe baixinho o rapaz; — mais esta provação, mana. — Não, não, — recalcitrou Andreia, — não aguento! As forças de uma mulher são limitadas; eu talvez faça o que me pedem; mas pensa bem, Filipe, se ela falar comigo, se ela me cumprimentar, morrerei! — Morrerás se fôr preciso, mana querida, — tornou o oficial, — e serás mais feliz do que eu, que desejara estar morto! Êle pronunciou essas palavras num tom por tanta maneira sombrio e

doloroso, que Andreia, como se a tivesse acutilado um agui-lhão, afastou-se e entrou no apartamento da rainha.

Oliveiros viu-a passar. Coseu-se com os reposteiros para não lhe roçar sequer o vestido à sua passagem.

Ficou só no salão com Filipe, cabisbaixo como o cunhado, esperando o resultado da entrevista que a rainha teria com Andreia.

A jovem encontrou Maria Antonieta no gabinete principal.

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694 ALEXANDRE DUMAS

Apesar da estação (corria o mês de junho), a rainha mandara acender lume; estava sentada na poltrona, cabeça atirada para trás, olhos fechados, mãos postas, como morta.

Tiritava. A Sra. de Misery, que introduzira Andreia, correu os reposteiros, fechou

as portas e saiu. Em pé, trémula de emoção e de cólera, Andreia esperava, de olhos baixos,

que uma palavra lhe chegasse ao coração. Esperava escutar a voz da rainha como o condenado espera o machado que há de cortar-lhe a vida.

Seguramente, se Maria Antonieta houvesse falado naquele momento, Andreia, alquebrada como estava, teria sucumbido antes de compreender ou responder.

Um minuto, um século desse pavoroso suplício se escoou sem que a rainha esboçasse um movimento.

Afinal, levantou-se apoiando as mãos sobre os braços da poltrona e pegou, em cima da mesa, um papel que os seus dedos trémulos deixaram escapar diversas vezes.

Logo, caminhando como uma sombra, sem que se ouvisse outro ruído senão o roçagar do seu vestido sobre o tapete, aproximou-se de Andreia e, com o braço estendido, entregou-lhe silenciosamente o papel.

Entre aqueles dois corações, a palavra era supérflua: a rainha não tinha necessidade de provocar a inteligência de Andreia; Andreia não podia duvidar por um momento sequer da grandeza de alma da rainha.

Qualquer outra pessoa teria imaginado que Maria Antonieta lhe oferecia um rico dote, a assinatura de alguma escritura de doação ou o diploma que lhe concedesse um cargo na corte.

Andreia adivinhou que o papel continha outra coisa. Tomou-o e, sem se mexer do lugar, pôs-se a lê-lo.

O braço de Maria Antonieta recaiu-lhe ao longo do corpo. Ergueram-se-lhe os olhos lentamente para Andreia.

"Andreia," escrevera a rainha, "salvastes-me. A minha honra vem-me de vós, a minha vida vos pertence. Em nome dessa honra que tão caro vos custa, juro que podeis chamar-me vossa irmS. Tentai fazê-lo, que não me vereis corar.

"Ponho este escrito em vossas mãos; é o penhor do meu reco-nhecimento; é o dote que vos dou. "O vosso coração é o mais nobre de todos os corações; saberá agradecer-me o presente que vos ofereço. "Assinado

MARIA ANTONIETA DE LORENA D'AUSTRIA".

Andreia, por sua vez, olhou para a rainha. Viu-a com os olhos cheios de lágrimas, a cabeça pesada, esperando uma resposta.

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O COLAR DA RAINHA 695

Atravessou devagar a sala, foi queimar no lume quase extinto o bilhete régio e, cumprimentando profundamente, sem articular uma sílaba, saiu do gabinete.

Maria Antonieta deu um passo para retê-la, para segui-la; mas a inflexível condessa, deixando a porta aberta, foi ter com o irmão no salão contíguo.

Filipe chamou Charny, travou-lhe a mão e pô-la na da Andreia, ao passo que, no umbral do gabinete, atrás do reposteiro, afastado com o braço, a rainha assistia à cena dolorosa.

Charny saiu como o noivo da morte arrastado pela sua lívida noiva; saiu olhando para trás, para o pálido rosto de Maria Antonieta que, passo a passo, o via desaparecer para sempre.

Era, pelo menos, o que ela acreditava. À porta do castelo duas seges de viagem estavam esperando. Andreia entrou

na primeira. E como Charny se preparasse para segui-la... — Senhor, — disse a nova condessa, — partis, se não me engano, para a Picardia. — Sim, senhora, — respondeu Charny. — E eu parto para a terra em que morreu minha mãe, Sr. Conde. Adeus. Inclinou-se Charny sem responder. Os cavalos arrancaram, levando Andreia

sozinha. — Ficastes comigo para anunciar-me que sois meu inimigo? — perguntou Oliveiros a Filipe. — Não,'Sr. Conde, — respondeu o interpelado; — não sois meu inimigo porque sois meu cunhado.' Oliveiros estendeu-lhe a mão, tomou, por seu tu-rno, o segundo carro e

partiu. Ficando só, retorceu Filipe por um momento os braços com a angústia do

desespero e, com voz estrangulada: — Meu Deus, — disse êle, — àqueles que cumprem na terra o seu dever,

reservais um pouco de alegria no céu? De alegria, — repetiu, ensombrecido, olhando pela derradeira vez para o castelo; — falo de alegria!... De que me vale isso?... Só devem esperar outra vida os que tornarão a encontrar lá em cima os corações que os amavam. Ninguém me amou aqui em baixo; não tenho sequer como eles a doçura de desejar a morte!

Em seguida, lançou para o céu um olhar sem fel, um meigo reproche de cristão cuja fé titubeia, e desapareceu, como Andreia, como Charny, no último turbilhão daquela tempestade que acabava de desenraizar um trono, triturando tantas honras e tantos corações!

- F I M –

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