160
ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMO A razão cínica na esfera pública observada na cobertura do Primeiro de Maio em jornais Dissertação de mestrado apresentada à Coorde- nação do Programa de Pós-Graduação em Co- municação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro Orientador: Márcio Tavares D’Amaral Doutor Rio de Janeiro 2004

ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

ALEXANDRE WERNECK

COMUNICAÇÃO E CINISMO A razão cínica na esfera pública observada

na cobertura do Primeiro de Maio em jornais Dissertação de mestrado apresentada à Coorde-nação do Programa de Pós-Graduação em Co-municação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador: Márcio Tavares D’Amaral Doutor

Rio de Janeiro 2004

Page 2: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

ii

ALEXANDRE WERNECK

COMUNICAÇÃO E CINISMO A razão cínica na esfera pública observada

na cobertura do Primeiro de Maio em jornais

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre.

Aprovada por:

Prof: Orientador Márcio Tavares D’Amaral, doutor

Prof. Paulo Roberto Gibaldi Vaz, doutor

Prof. Luiz Antônio Machado da Silva, doutor

Rio de Janeiro 2004

Page 4: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

iii

Werneck, Alexandre Vieira Comunicação e cinismo: A razão cínica na esfera pública observada na cobertura do Primeiro de Maio em jornais /Alexandre Vieira Werneck. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 2004 ix, 148p. 29,7cm Dissertação de Mestrado − Universidade Federal do Rio de Janeiro/Escola de Comunicação. 1. Comunicação. 2. Crise da política. 3. Cinis-mo. 4. Desculpa. 5. Primeiro de Maio. 6. Disser-tação de mestrado (ECO-UFRJ).

Page 5: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

iv

Para Catharina, meu anjo. E para o Pai, a Mãe e a Lêka, como sempre. Por segundos, segundos e mais segundos, tudo o que temos. E pelo riso de todas as horas.

Page 6: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

v

É preciso agradecer. Mas o quão preciso é? A imprecisão do ser grato faz sempre lem-

brar a metáfora do cobertor curto, acompanhada de outra, a do frio que dela é inevitavelmente

parceira. Agradecer não é preciso, é uma atividade trôpega, que clama por uma memória

primorosa − algo que aqueles que me conhecem sabem não ser um atributo meu − e por um

forte senso de justiça, justiça que, como se verá, é besta fera distante dos objetivos deste

trabalho. Agradecer é questão de correção, não tem nada a ver com ser justo.

Agradeço, então, ao professor Márcio Tavares D’Amaral, esse guerreiro da Verdade,

cuja prosa falada em sala de aula é capaz de acender as esperanças dos mais céticos nietzschi-

anos e que ajudou para que este trabalho tivesse o profundo grau de inutilidade − e de ineficá-

cia − que ele se orgulha de ter. Obrigado, professor!

Agradeço, claro, ao Paulo Vaz, primeiro orientador desde os tempos da iniciação cientí-

fica e da monografia de graduação e, hoje, depois de tanto tempo distante, natural avaliador

deste trabalho. Obrigado, companheiro. Por tudo.

Ao professor Luiz Antônio Machado, também natural avaliador deste texto, pela acolhi-

da em suas aulas no IFCS e pelos ótimos debates sobre Boltanski e a justificação.

A colegas de redação e amigos de mesa, que ouviram tanto tempo tantas vezes as excen-

tricidades de meus comentários sobre o cinismo, eu que me tornei um caçador de cínicos e que,

quase paranoicamente, comecei a vê-los em todos os lugares: nos jornais, nas ruas, nos filmes.

Ao amigo Paulo Pires por, entre outras coisas, ser o único cínico “do bem” que já co-

nheci. Um brinde, camarada!

Repito-me, mas tenho que agradecer a Catharina. Leitora contumaz do texto que se se-

gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

disposição e minha força para, em momentos difíceis continuar. Obrigado, meu anjo, este

texto, como todos os outros, só existe porque há você!

Page 7: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

vi

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: − Ai! que preguiça!... e não dizia mais nada. Mário de Andrade, Macunaíma. Se se pudesse medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente − fora isso que ele pensara, ten-tando, por uma brincadeira, calcular o impossível − uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mun-do é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha reali-za hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma. Robert Musil, O homem sem qualidades.

Page 8: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

vii

RESUMO WERNECK, Alexandre. Comunicação e cinismo: A razão cínica na esfera pública observada na cobertura do Primeiro de Maio em jornais. Orientador: Márcio Tavares D’Amaral. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação em Comunicação e Cultura).

Estudo sobre o uso do jornal como espaço de investigação sobre a relação entre conhe-cimento, moral e política, a partir da constatação da existência de um comportamento cínico contemporâneo − postura de crítica sarcástica ao modelo moderno de crença no conhecimento como emancipador do homem − como uma forma de justificativa para a omissão da proble-mática da igualdade diante da crise da política. Procura-se, na observação de como o feriado de Primeiro de Maio é percebido na esfera pública (análise feita pela leitura de jornais de co-bertura nacional ao longo das duas últimas décadas e do começo deste século), demonstrar os elementos morais/culturais que dão sustentação a uma razão cínica em um ambiente tradicio-nalmente comprometido com a questão social como o mundo do trabalho.

Page 9: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

viii

ABSTRACT WERNECK, Alexandre. Comunicação e cinismo: A razão cínica na esfera pública observa-da na cobertura do Primeiro de Maio em jornais. Orientador: Márcio Tavares D’Amaral. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO. Dissertação de Mestrado (Pós-Graduação em Comunicação e Cultura).

This study elaborates the relationships between knowledge, moral and politics as presented in newspapers, through the case study of the coverage of Labor Day over the past two decades of the last century and the first years of the present one. It posits the ex-istence of a cynical behavior in contemporary times – understood as a sarcastic criticism to the modern model of belief in knowledge as liberator of man – as a means to justify the omission of the problematic of equality given the crisis of politics. Through the analysis of the perception of the May First (Labor Day1) in the public sphere, this study attempts to explain the moral/cultural elements that sustain critical reason in the world of labor, tradi-tionally committed to social questions.

1 In the US, Labor Day is celebrated on a different date: the first Monday of September; May First is called “May Day”, and is not a Holiday. For the origins of Labor Day and the different histories of the Brazilian and American cases, see Chapter 3.

Page 10: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1DA DESCULPA......................................................................................................................2DA NECESSIDADE DE UM RACIOCÍNIO ‘ESPIRITUALISTA’.......................................17DO JORNALISMO COMO ESPAÇO DE INVESTIGAÇÃO.............................23

1 - A CRISE DA POLÍTICA.............................................................................................341.1 - IGUALDADE E LIBERDADE...........................................................................351.2 - PIEDADE E JUSTIÇA........................................................................................411.3 - O OCASO DA UTOPIA BRASILEIRA..............................................................50

2 - DO VIRA-LATA AO CANIS FAMILIARIS.................................................................652.1 - UMA ELIPSE NEM TÃO OUSADA ASSIM.....................................................662.2 - A TECNOLOGIA DA MORAL..........................................................................752.3 - O CREPÚSCULO DA UTOPIA DO CONHECIMENTO..................................86

3 - PRIMEIRO DE MAIO..................................................................................................953.1 - A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO.....................................................963.2 - O CINISMO CONTEMPORÂNEO MANDA NOTÍCIAS.................................111

CONCLUSÃO: APONTAMENTOS PARA UMA TEORIA DA DESCULPA...............135MÁSCARAS E IMAGINÁRIAS..................................................................................136

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................141LIVROS E ARTIGOS...................................................................................................142ARTIGOS DE JORNAIS E REVISTAS......................................................................145

SUMÁRIO

ix

Page 11: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

INTRODUÇÃO

Page 12: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

2

DA DESCULPA

Há uma grande diferença entre perdão e desculpa. O primeiro corresponde ao reconhe-

cimento da culpa e a segunda a sua negação. Não se des-culpa um culpado; no máximo se o

perdoa. Há algo em comum entre ambos, entretanto: são atos de linguagem, atitudes radicais

que se fazem na fala. Nenhum dos dois corresponde − salvo no caso dos poderes moderadores

− a um sistema formal; não há procedimentos para além do discurso em nenhum dos dois, ou,

se há, eles são subjacentes à apresentação oral. Ambos dependem apenas de decisões e da

informação delas. No caso do primeiro, para desconsiderar a validade do problema produzido

pela falta praticada; no caso da segunda, para afirmar que o praticante não é o responsável −

ou não deve ser punido − pelas conseqüências ou pelo próprio ato. Mas há na desculpa uma

dimensão outra: a de licença. A desculpa é uma justificativa, uma busca pela aprovação de um

ato. A desculpa se dirige ao outro para perguntar a ele se aquilo que alguém faz (ou fez) está

de acordo com as regras morais em jogo em determinada prática ou se o desafio a essas regras

morais pode ser aprovado diante de alguma circunstância atenuante.

Este pretende ser um trabalho inútil. Não digo isso para pedir desculpas. Pelo con-

trário. É uma tomada de posição. Ele não quer estar no campo da utilidade, do pensamento

eficaz − mas não destituam seu lugar de pensamento! −, de produção com um fim. É um

texto anacrônico, dirão. E dirão não sem certa dose de acerto. Mas não é um texto sem

tempo, sem chão, sem referência. Ele procura estar na contramão de um pensamento da

utilidade, da funcionalidade, da eficácia. Não quer ser útil. Pelo contrário, quer dar traba-

lho, quer causar dor nas costas e suor nas mãos. O sentimento que é dele pai é o de comi-

chão diante da paralisia, de curiosidade diante do não se fazer nada. E da impressionante −

pelo menos para mim − capacidade de se desculpar isso.

Page 13: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

3

Falo de uma sensação muito fácil de se ter na atualidade: a de que não somos mais ingê-

nuos. Parece que, mais de dois séculos depois do advento do iluminismo, o pensamento se deu

conta de que a filosofia encerrou sua tarefa e que não há mais nada que choque a respeito das

engrenagens do mundo. Houve um tempo em que a descoberta a respeito delas era o centro de

uma moral pretensamente universal. Esse conhecimento nos traria igualdade e liberdade para

sempre, desde que nos comprometêssemos com seu fim. Em seu próprio procedimento como

sistema, a modernidade teria, no entanto, chegado a um estado em que não há mais o que des-

cobrir. Resta, parece, uma sensação de mal-estar pós-bebedeira, uma indisposição para iluminar

qualquer coisa que seja. Não há mais luzes a se fazer. E da falta de luzes, como se estivéssemos

seguindo apenas uma lei termodinâmica, uma estabilidade medonha nos assombra. Diante de

um mundo que experimenta cada vez mais a pujança do capitalismo, a hegemonia das socieda-

des de democracia liberal e a leitura ocidental do cosmo, não fazer nada parece ser a ordem do

dia, de todos os dias. Parece que estamos em uma era para a desculpa. Não para pedir desculpas

(embora elas talvez fossem justas), mas para fazer largo uso de sua dimensão de licença. Para

todos nós é muito fácil (e por vezes útil) erguer-se e se eximir da tarefa de mudar o mundo (se é

que ela é de fato necessária). Não é culpa de ninguém. É o mundo, como ele é. O mundo é este.

A modernidade inaugurou uma forma de política baseada no conhecimento. O ideá-

rio moderno, desde sua primeira hora, nas raízes do iluminismo, pressupôs, antes de outra

coisa, a transformação do mundo através da noção de que o sofrimento do homem não é

produto de destinação divina, sina ou maldição, e que ele só pode ser combatido pela Ra-

zão, uma visão crítica, que daria origem aos grandes projetos de transformação modernos,

entre eles o maior e mais poderoso, o marxismo, como mostra Habermas (1987, p. 5):

Enquanto no Ocidente Cristão o “novo mundo” significara a era ainda-por-vir do mun-do do futuro, que seria conquistada apenas no último dia (...), o conceito secular de modernidade expressa a convicção de que o futuro já começou: ela é a época que vive para o futuro, que se abre para as novidades do futuro.

Page 14: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

4

É uma questão de produção de futuro, então, como propõe Bauman (2001, p. 151):

As utopias modernas nunca foram meras profecias, e menos ainda sonhos inúteis: abertamente ou de modo encoberto, eram tanto declarações de intenções quanto ex-pressões de fé em que o que se desejava podia e devia ser realizado. O futuro era vis-to como os demais produtos nessa sociedade de produtores: alguma coisa a ser pen-sada, projetada e acompanhada em seu processo de produção.

Domar o futuro, visão utópica, baseada na transformação de um mundo que não queria

cessar de se transformar para que pudesse um dia chegar o fim da história, fim este conquista-

do por intermédio da Razão. O espírito do iluminismo é essencialmente formado pela eman-

cipação do homem pela Razão, pelo exercício da liberdade, descreve Sloterdijk (1987, p. 35):

[O iluminismo] é aquela “doutrina” que não quer dever seu triunfo a uma pressão ex-terior pela Razão. A Razão é um de seus pólos. O outro é o diálogo livre entre aque-les que consagram seus esforços à Razão. O núcleo de seu método e, ao mesmo tem-po, seu ideal moral, é o consenso voluntário1, ou seja: se a consciência antagônica abandona sua posição passada, é graças a seus argumentos convincentes.

A verdade iluminista é, então, a busca por duas emancipações: a dos sofrimentos do

mundo e a dos grilhões da determinação. Ambos seriam dissolvidos pelo conhecimento a res-

peito tanto dos motivos do sofrimento quanto da inverdade do poder determinador, pela ilu-

minação. Novamente Sloterdijk (1987, p. 35):

Assim, o iluminismo carrega em si, podemos dizer, uma cena primitiva utópica − um idílio de paz epistemológica, uma bela visão acadêmica: aquela do diálogo li-vre entre homens que se interessam sem constrangimento pelo conhecimento. Em torno dele reúnem-se os indivíduos sem preconceito, não subjugados por suas pró-prias consciências, não oprimidos por seus laços sociais, tudo por um diálogo em vista da verdade pelas leis da Razão. A verdade propagada pelo iluminista nasce de uma adesão, aceita sem pressões, às razões mais fortes.

O iluminista, para o autor (p. 36), então, é capaz de conviver com a ambivalência contida

em abrir mão de posições pessoais por uma posição mais racional, em nome de um ideal de paz:

1 Grifo dele.

Page 15: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

5

No fundo, o diálogo do iluminismo não é outro senão o de uma luta social de o-piniões e de uma busca por diálogo entre pessoas que se dobram a priori a uma regra de paz, porque eles sairão vencedores de uma confrontação, do ponto de vista do conhecimento e da solidariedade.

Trata-se de uma visão politizada do mundo. D’Amaral (2004, p. 84) lembra que “a demo-

cracia [modelo básico da busca por liberdade e igualdade] é um estado em que é preciso sem-

pre tomar posição”. A modernidade busca uma paz final, mas dificilmente uma paz durante. O

percurso de conquista dos dois grandes tesouros modernos é de disputa entre diferentes projetos

para realização de seu grande intento. E talvez o dado mais forte seja esse, o fato de que há um

campo de disputas entre visões de mundo concorrentes, uma política. Mesmo a coerção pela

força, a igualdade produzida pelo aço e pelo fogo, uma das mecânicas mais habituais dos sécu-

los XIX e XX, movimentou-se em um espaço de luta entre projetos políticos.

Pois eis, então, que a modernidade se fez história e o mundo lhe deu alguns séculos para

tentar fazer chão de seu u-topos. Mas depois de algumas guerras mundiais, alguns imperialis-

mos, alguns genocídios, algumas greves mal-sucedidas, algumas ditaduras, algumas quedas

de muro, os analistas chegam agora à conclusão de que estamos em crise, que a modernidade

está em crise. E o dado mais impressionante é que boa parte dessa crise é oriunda do fato que

talvez aquilo que desejávamos não era uma utopia tão inalcançável assim:

Com efeito, achamos que a questão da liberdade, por exemplo, pelo menos da “nossa parte” do mundo, está concluída e (descontando correções menores aqui e acolá) re-solvida da melhor maneira possível; de qualquer forma, não sentimos necessidade (de novo, salvo irritações menores e fortuitas) de ir para as ruas protestar e exigir maior liberdade que já temos ou achamos ter. (BAUMAN, 2000, p. 9)

A percepção de Bauman é a de que um dos objetivos modernos para o homem foi con-

quistado. Saudações à modernidade, então, que nos concedeu a liberdade? Ele mesmo (2000,

p. 9), logo depois, constata que a outra face, insatisfeita, ainda nos assombra:

Page 16: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

6

Se a liberdade foi conquistada, como explicar que entre os louros da vitória não este-ja a capacidade humana de imaginar um mundo melhor e de fazer algo para concre-tizá-lo? E que liberdade é essa que desestimula a imaginação e tolera a impotência das pessoas livres em questões que dizem respeito a todos?

O pano de fundo deste trabalho, então, é esse desinteresse pela política transformadora.

Aparece cada vez mais como um dado forte de nosso dia-a-dia uma sensação de “fim da luta”,

de que, em nosso mundo, resolveu-se aceitar o mundo como ele está. “A política ficou chata”,

diz-nos Russel Jacoby (2001, p. 11). “O aspecto mais notável da política contemporânea é a

sua insignificância”, disse-nos Cornelius Castoriadis (apud BAUMAN, 2000, p. 12). “Não há

no mundo um país que represente uma alternativa digna de crédito ao sistema capitalista”,

admite Eric J. Hobsbawm (1993, p. 242). Impressões de observadores que se somam a muitas

outras e que, de certa forma, corroboram, pelo menos em termos sintomáticos, a sensação

pós-queda do Muro de Berlim de Francis Fukuyama (1992, p. 14):

Embora não tenham [os Estados nacionais ditatoriais do século XX] em todos os casos cedido lugar a democracias liberais estáveis, a democracia liberal continua como a única aspiração política coerente que constitui o ponto de união entre re-giões e culturas diversas pelo mundo todo.

Fukuyama chamou a atenção do mundo em 1989 com um retumbante artigo, publicado

na edição no 16 da revista americana de direita The national interest, cujo título era The end

of history? (O fim da história?). Através de uma fusão entre a leitura dos escritos de Daniel

Bell e uma interpretação bastante livre do pensamento hegeliano, Fukuyama (1989) procla-

mava que “o triunfo final da democracia liberal ocidental não leva a um ‘fim das ideologias’2

ou a uma convergência entre capitalismo e socialismo (...), mas a uma vitória arrasadora do

liberalismo econômico e político”. Em um contexto como aquele, ainda anterior ao fim da

União Soviética, e, em um país como o Brasil, ainda preenchido de uma certa euforia pós-

redemocratização, era difícil sentir-se feliz com a proclamação de Fukuyama. Em 1992, ele

2 O título do texto de Daniel Bell. Grifo de Fukuyama.

Page 17: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

7

lançaria uma versão mais extensa de seu artigo. Na verdade, uma verdadeira teoria do “fim da

história”, na forma de livro. Ainda assim, era difícil sorrir diante do texto, que dizia que “po-

demos afirmar sem sombra de dúvida que o século XX fez de todos nós pessimistas históri-

cos” (1992, p. 3) para logo depois pregar a necessidade de otimismo. Mas, um tanto sem que-

rer, Fukuyama acabou por conseguir dar forma a uma impressão psicológica até então bastan-

te sub-reptícia a respeito de nosso tempo: não há outro mundo possível, pelo menos em ter-

mos que possam ser levados a sério. De lá para cá, essa idéia se difundiu enormemente, inclu-

sive entre os intelectuais de esquerda e entre os cidadãos comuns. De fato, acreditar em uma

alternativa aos modelos atuais de civilização e de sistema econômico é cada vez menos consi-

derado uma posição lúcida. Diante disso, Jacoby (p. 12) constata:

Poucos são os que encaram o futuro como algo mais que uma réplica do presente − às vezes melhor, mas em geral pior. As conclusões mais acadêmicas sobre o fim do comunismo soviético ratificam as crenças mais viscerais sobre o fracasso do radicalismo. Surge um novo consenso: não há alternativas. É esta a sabedoria do nosso tempo, uma era de exaustão e recuo políticos.

Todas essas impressões dão conta de um mundo em que operações coletivas em bus-

ca de modificações radicais estão interditadas por toda parte e com grande força. Uma das

possibilidades de explicação para isso é que o fracasso da proposta mais radical da mo-

dernidade tenha deixado os homens − e não apenas os que pensam alternativas, mas todos

nós − incapazes de, diante da decepção com esse insucesso, imaginar que “um outro mun-

do é possível”3. Isso desenha um contexto de homens abatidos, dificilmente animáveis

para sair às ruas e buscar mudanças quaisquer. Claro, isso não precisaria ser um problema

a priori, não precisa nos ameaçar em nosso conforto. O mundo ideal pode mesmo ser o

proposto por Fukuyama e nós podemos ter mesmo chegado a um estado em que, além de

não haver outro melhor, este seja o melhor mundo a ser construído.

3 Faço aqui uma alusão a um dos adágios mais conhecidos dos movimentos antiglobalização.

Page 18: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

8

Mas é preciso perguntar: no que essa impressão deveria interditar a política? No que

uma sensação de que este contexto segue o melhor modelo possível faz dele um espaço

sem problemas de muitos a serem resolvidos? Não há neste mundo problemas por demais,

vários deles que nos ficaram da modernidade?

Por isso, este trabalho faz questão de si mesmo. Ele está preocupado com a manutenção

de um desejo de igualdade, o objetivo moderno que ainda parece nos ser um problema, prin-

cipalmente em países como o Brasil. Está preocupado também com o desejo de igualdade e

com o desejo de diferença, no sentido em que se pergunta porque a política − a arte do debate

sobre as diferenças − tem que ser um dinossauro a ser fossilizado, um objeto que merece de

nós não mais do que uma nostalgia do exótico. Problema político, problema da política. Mas

me parece que há uma dimensão dessa problemática que merece mais atenção, uma dimensão

essencialmente moral: diante dessa desesperança, como é possível pôr a cabeça no travesseiro

e ter um sono tranqüilo? Ou, em termos mais científicos, que tipo de alternativas morais os

indivíduos utilizam para justificar suas posturas diante do mundo?

Em face dele, algumas possibilidades de ação vem à mente.

Uma, para os mais afeitos ao drama, é o desespero (e, talvez, o tiro na cabeça).

Outra é a anuência pura e simples − e sem preocupações morais − ao capitalismo e ao

consumo. Tentarei mostrar que uma ação na ordem social não consegue ser totalmente isenta

de uma relação com a moral. Por isso, pensar que a anuência possa se dar (mesmo para o neo-

liberal4 mais empedernido) de maneira absolutamente desengajada me parece tolo. Este ponto,

aliás, é um dos centros de meu argumento. Pretendo mostrar que há sempre uma relação entre

a inserção (e participação) na ordem social e a negociação com o sistema moral que lhe dá

sustentação. Por ora, entretanto, prossigo na apresentação do objeto-chave da dissertação.

4 Para usar, propositalmente, um termo mais politizado do que científico.

Page 19: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

9

Outra postura possível diante da atualidade é uma atitude eremítica de isenção do pró-

prio problema − como, por exemplo, a auto-exclusão confortável e sem privações a que se

impõem milhares de militantes neo-hippies, que depositam suas histórias em comunidades

isoladas do mundo e ficam refratários a guerras, quedas de bolsas e grandes fomes.

Uma alternativa, entretanto, parece assumir uma dimensão especial, por lidar com um

elemento central para a política moderna (e, em conseqüência disso, para sua crise e para uma

pós-modernidade), o conhecimento. Essa alternativa, cuja observação em olhares cotidianos

trouxe-me a este texto é o que chamo (não sozinho) de cinismo.

Trata-se de algo bastante fácil de definir e consideravelmente fácil de observar de

maneira informal. Mas que é, ao mesmo tempo, um objeto que perde a solidez com igual

facilidade e que, constantemente, escorre por entre os dedos. Sobretudo porque apesar de,

intuitivamente, todos sabermos o que é um cínico e fatalmente conhecermos um, o cínico

− salvo raras exceções, muitas delas na imprensa −, não se assume cínico. Não há uma

proclamação de ismo no cinismo contemporâneo.

O cinismo é uma forma de se posicionar de maneira pacífica, não combativa, não trans-

formadora, em relação ao mundo. Mas não apenas isso. Não se pode ceder à tentação de cha-

mar de cínico todo aquele que é omisso politicamente. O que marca mais fortemente o cínico

contemporâneo é que ele justifica sua opção por uma forma particular de relação com o co-

nhecimento: o cínico adquiriu a “consciência” de que, diferentemente do que já se creu no

passado, o conhecimento não é capaz de libertar, ou seja, categorias como “alienação”, “falsa

consciência” ou “emancipação” não fazem mais sentido. Como já disse, para muitos analistas

− e, no fundo, para muitos dos cidadãos comuns −, paira sobre nosso tempo a impressão de

que todos os segredos sobre as engrenagens do mundo já foram revelados e que não restam

mais sustos a se tomar a respeito da verdade. O cínico − que tem acesso à informação e ao

Page 20: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

10

conhecimento e que, cidadão da ordem pós-moderna, manifesta uma relação com o futuro

diferente da tida na modernidade, movida agora mais a estatísticas do que a utopias − “sabe”

que o mundo não vai mudar, logo, que não há sentido em lutar para isso. Não há sentido, en-

tão, na política, a idéia de que há alternativas negociáveis para o mundo.

E se não há, para o cínico, sentido em lutar, resta a ele a anuência. Mas não uma a-

nuência qualquer, e sim uma que provenha esse personagem do melhor proveito que o

mundo possa oferecer-lhe. Essa atitude, entretanto, não é um concordar puro e simples. O

cínico não é apenas um conformista. Ele se ri daquilo de que discorda. E ridiculariza seu

oponente diante dos outros, para, assim, torná-lo uma bobagem. E tem ainda uma dimen-

são moral aparentemente paradoxal: libertado da utopia do conhecimento pelo próprio

conhecimento, o cínico afirma a necessidade de um radical engajamento ao racionalismo,

a um racionalismo não utópico, mas pragmático5. O cinismo se diz urgente. O que não

significa que ele seja um modelo instituído e generalizado. Ele é mais uma alternativa,

como já disse, uma tendência que começa a surgir, diante de um quadro de fim do discur-

so das grandes utopias, das grandes metanarrativas modernas. Mas suas forças, sobretudo

de persuasão e contaminação, parecem grandes, apesar de sua ainda novidade. Sobretudo

porque, como observa Sloterdijk (1987, p. 27), ele ocupa lugares muito importantes para

as decisões da sociedade contemporânea: eles estão “nos comitês diretores, nos parlamen-

tos, nos conselhos de administração, nas direções de empresas, nos comitês de leitura, nos

consultórios de medicina, nas faculdades, na academia, nas redações”.

Parece, entretanto, que o cinismo tem sido erroneamente considerado apenas como

um fenômeno individual, psicológico. Aqui ele será pensado como um processo social,

como um conjunto de discursos, como uma retórica, uma desculpa. Não é para si mesmo

5 A noção de pragmatismo usada nesta dissertação não é a da doutrina filosófica pragmatista. Uso o termo em seu sentido mais lato, como uma representação do compromisso com fatores realistas e utilitaristas do mundo.

Page 21: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

11

que o cínico discursa, mas para a esfera pública. Daí este ser um trabalho de Comunicação:

ele versa sobre a maneira como o discurso se dobra sobre a sociedade e sobre como as or-

dens sociais se relacionam com o discurso e como sua circulação é um elemento constituti-

vo das próprias ordens. Eis o problema: estudar o cinismo, essa “alternativa” para o desen-

canto com o mundo, não como um processo de desengajamento, e sim como um processo

de engajamento em uma ordem. Aqui, através de um modelo baseado na idéia de classifi-

cação e hierarquização social baseada em atos de licença e na idéia de incorporação de dis-

curso crítico, será feito um mapeamento deste problema dentro de uma ordem como a bra-

sileira − baseada, como se verá, em um modelo misto, centrado ao mesmo tempo em uma

política de piedade e em um sistema de justificação − para a qual o desencanto com a polí-

tica é um problema, diferente de em sociedades baseadas na pura meritocracia.

É claro, o termo cínico adquiriu um significado pejorativo em qualquer linguagem (aqui

não será diferente) desde pouco depois de suas origens na Grécia do século IV a.C. até sua

acepção pós-moderna e, como disse, poucos têm a coragem de colocar para si tal posição. O

que não significa que não haja uma ação cínica, até uma “razão cínica”, nos termos de Peter

Sloterdijk (1987), e, sobretudo, que ela não seja visível. Sloterdijk, um dos primeiros, mas

sem dúvida o mais definido formalmente a fazer um retrato deste cinismo de nosso tempo,

enxerga cínicos por todos os lados. Para ele (1987, p. 25), “o mal-estar da civilização adquiriu

uma nova qualidade: ele se mostra como um cinismo difuso e universal”.

Essa afirmação, pejada de um culto irônico à psicanálise a seu potencial inaugura-

dor, pode assustar a princípio. O próprio Sloterdijk (1987, p. 26) procura fazer uma res-

salva, lembrando que ela vai contra o que se pode pensar habitualmente: “Segundo a idéia

geral, o cinismo não é difuso, mas marcante, e não é universal, mas pouco comum e alta-

mente individual”. Esta dissertação, entretanto, tem por objetivo buscar justamente uma

Page 22: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

12

dimensão difusa desse cinismo, mostrando como ele começa a se tornar uma forma de

desculpa bastante habitual para a interdição da esfera política não apenas de indivíduos,

mas de grupos, configurando o que será aqui chamado − não sem certa dose de ironia, é

verdade − de individualismo coletivo.

Trata-se, então, de um problema moral e, para este trabalho, de moral coletiva. O que

parece mais impressionante no cinismo é a forma como ele produz e legitima essa versão co-

letiva do individualismo. Se há uma crise da política no mundo contemporâneo, ela é o inter-

dito da conexão coletiva. Bauman (2000, p. 11) constata:

À falta de pontes firmes e permanentes e com as habilidades de tradução não prati-cadas ou completamente esquecidas, os problemas e agruras pessoais não se trans-formam e dificilmente se condensam em causas comuns.

Comum, ironicamente, começa a ser o desencanto com a política. E não apenas em um sen-

tido individual. Mas também em uma dimensão da própria ação de grupos. Por isso, este trabalho

lança seus olhos para a maneira como a coletividade pode incorporar − ou pelo menos acatar −

essa marca aparentemente tão individual que é o cinismo. Isso só é possível, claro, porque, como

disse acima e como mostrarei mais a fundo adiante, o cinismo não é um fenômeno apenas psico-

lógico. A esfera pública está envolvida no próprio processo de ação e (re)produção do cinismo.

Pois poucas áreas da sociedade são mais centrais no que diz respeito à política na esfera

pública do que o campo do trabalho. De fato, para a modernidade, ele assume papel central no

projeto de mundo. Na era moderna, “o futuro era a criação do trabalho, e o trabalho era a fon-

te de toda a criação”, lembra Bauman (2001, p. 151), revisando hoje o que o projeto marxista

tornou um axioma. A idéia de progresso contida no credo moderno era associada à produção,

à criação de uma sociedade que produzisse mais e mais. Ao mesmo tempo, todo o programa

antialienação do marxismo baseou-se no trabalhador. A principal verdade a ser desvelada era

a da exploração e a principal mentalidade a ser libertada era a do operário alienado.

Page 23: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

13

A história do mundo do trabalho, sobretudo de seu comprometimento com a política,

entretanto, vem vivendo uma profunda revisão. Esta dissertação mostrará como uma operação

retórica é em grande parte responsável por uma forte mudança de atitude da parte da própria

classe trabalhadora. Essa classe era libertada apenas pelo desmascaramento dos bastidores do

processo capitalista, a exploração. No mundo contemporâneo, uma modificação semântica

mudou radicalmente o uso político da condição do trabalhador: a passagem de um modelo de

descrição baseado na exploração para um centrado na exclusão. Ainda que Castel (1998, p.

41) não use o termo “excluído” − ele prefere chamá-lo de “desfiliado” − esta análise se encon-

tra com sua leitura de que a problemática da dissociação dos laços coletivos da classe traba-

lhadora é um problema da “questão social”, que “pode ser caracterizada por uma inquietação

quanto à capacidade de manter a coesão de uma sociedade”. Trata-se de um problema da pró-

pria constituição da sociedade. Por isso, este trabalho recolhe uma pequena parcela dessa crise

e a observa sob a ótica da desculpa. Boltanski e Chiapello (1999, p. 426) observam que:

Contrariamente ao modelo de classes sociais, no qual a explicação da miséria do prole-tariado “repousa” sobre a designação de uma classe (a burguesia, os detentores dos meios de produção) responsável por sua “exploração”, o modelo da exclusão permite designar uma negatividade que não passa pela acusação. Os excluídos não são vítimas de ninguém, ainda que seu pertencimento a uma comunidade humana (ou a uma “co-munidade cidadã”) exija que seus sofrimentos sejam levados em conta e que eles sejam socorridos, mais gritantemente pelo Estado, segundo a tradição política francesa.

A passagem de um modelo de exploração para um de exclusão será estudada mais a

fundo adiante. Mas cabe já notar que sua principal operação é a de desfazer oposições dentro

da ordem social. Quando estava vigente uma política baseada na revelação da condição de

exploração e a classe trabalhadora se organizava em torno de uma reivindicação a respeito da

correção das desigualdades entre aqueles que exploram e aqueles que são explorados, a luta se

fazia clara, porque o oponente era nítido. Uma vez colocado em vigor um sistema que cria

não um positivo e um negativo, mas um dentro e um fora, capitalista e trabalhador passam a

Page 24: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

14

integrar um mesmo grupo − o dos incluídos −, que fica colocado diametralmente oposto ao do

excluído, cuja existência, como Boltanski e Chiapello observam, não tem culpados ou respon-

sáveis. O excluído é um problema sistêmico, uma contingência do funcionamento da ordem.

Não é difícil enxergar que tipo de mensagem uma ordem como essa envia à organização

coletiva: não há nenhuma perspectiva de segurança na oposição à ordem. Fora da ordem, está

a exclusão. Fora dela, não há segurança. “Na falta de segurança de longo prazo, a ‘satisfação

instantânea’ parece uma estratégia razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et

nunc − no ato”, diz Bauman (2001, p. 151). E pergunta logo depois (2001, p. 152):

Quem sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão tão de-sejáveis quando finalmente forem conquistados.

A incerteza diante do futuro, um dos dados mais fortes da condição pós-moderna − como

se verá no Capítulo 2 − leva para o mundo do trabalho e dos movimentos coletivos a impressão

de que é melhor se agarrar às poucas vantagens individuais que se pode encontrar. Em um con-

texto como esse, sai de cena facilmente o desejo de uma mudança radical nas relações de traba-

lho. O que passa a fazer parte das pautas de negociação são − como se verá no Capítulo 3 − a-

cordos locais e pontuais, ligados mais à garantia de sobrevivência do que à luta pela igualdade.

O resultado é a transformação de um grupo facilmente associado à idéia de massa, de coletivo

que se move como sujeito, em um exército de individualidades singulares e, em boa parte dos

casos, individualistas, como se pode ver na observação de Boltanski e Chiapello (p. 291):

A devolução do controle às empresas foi favorecida pela cooperação de assalari-ados tratados como um tanto de indivíduos separados, capazes de desempenhos diferentes e inegáveis, e que, graças a uma mistura de vantagens diferenciais e de medo do desemprego foram conduzidos a se engajarem livremente e plena-mente nas tarefas que lhes são prescritas.

Page 25: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

15

É também a sensação que tem Perry Anderson (1996, p. 20) ao tentar entender o esta-

do atual da esquerda européia ocidental: “Cinco eixos de diferenciação tornam mais difícil

qualquer movimento unido por mudança radical”, diz, referindo-se a diferenciações de ren-

da, seguridade, idade, gênero e origem que, para ele funcionam como uma estratégia do

capital para dissociar os eleitorados progressistas. Mas quer se tenha uma leitura via mar-

xismo clássico como a de Anderson, quer se enxergue pelos olhos weberia-

nos/durkheimianos de Boltanski e Chiapello, o fenômeno é inegável: a classe trabalhadora é

cada vez menos um grupo e cada vez é menos nela que se pode apostar como o lugar da

transformação da sociedade. E isso principalmente porque a própria idéia de transformação

se tornou um problema. A idéia de que a sociedade deva ser justa e deva promover o máxi-

mo de igualdade e liberdade entre seus integrantes já não parece tão óbvia. Bauman acha

que isso se dá não só porque falte lógica. Para ele (2000, p. 11), falta ágora:

Espaço onde os problemas particulares se encontram de modo significativo − isto é, não apenas para extrair prazeres narcisísticos ou buscar alguma terapia através da e-xibição pública, mas para procurar coletivamente alavancas controladas e poderosas o bastante para tirar indivíduos da miséria sofrida em particular.

Não se trata, aqui, de fazer um mapeamento da questão operária mundial ou uma

história do sindicalismo brasileiro. Trata-se, entretanto, de uma busca por desculpas que

circulem na ordem social e que sirvam de pano de fundo, de sustentáculo para a paralisia

diante da “questão social”, no sentido de Castel. Por isso mesmo, este trabalho busca es-

cavar em um campo de força moral e discursivo. Disse no princípio que a desculpa, assim

como perdão, é um ato de fala, um discurso. É onde este trabalho é mais fortemente um

trabalho comunicacional. O papel do discurso na ação cínica é central e o sistema de cir-

culação para que ele se torne parte de uma razão cínica é primordial. Trata-se, então, de

um corte que olha para os discursos para apreender deles sua ação social.

Page 26: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

16

No limite, então, o trabalho desta dissertação passa pela construção de uma pequena te-

oria da desculpa. É sobre ela (e sob seus auspícios) que se pode discutir a movimentação (não

poderia nunca chamar de movimento) cínica contemporânea. A razão e a ação cínica depen-

dem essencialmente, para mim, do componente moral que torna sua imoralidade aceitável.

Este texto coloca-se como um primeiro esboço dessa teoria. Ela depende da articulação de

alguns modelos teóricos que se propõem a dar conta das motivações em torno das quais as

ordens sociais se mantêm e da relação entre ação política e moral. Ao mesmo tempo, a des-

culpa será vista como um procedimento social, uma ordem de discurso muito além da cordia-

lidade. Uma teoria da desculpa é uma teoria de como depende, em grande parte, não apenas

de atores individuais a operação de mostrar que seus atos são justificáveis, mas também, e

sobretudo, de uma forma de condescendência da parte dos atores observadores.

É nesse sentido que a desculpa aparece nesta dissertação: é ao apresentar desculpas para a

opinião pública que um ator dá partida no processo de pedido de permissão para tratar determi-

nada perspectiva moral sob um ponto de vista relativo. Os critérios de avaliação são variáveis − e

não, como mostrarei adiante, centrados totalmente no bem comum, como pressupõem Boltanski

e Thévenot. Essa perspectiva, entretanto, não elimina o conteúdo de engajamento moral que as

ordens sociais pressupõem. Acredito que os indivíduos tomam decisões baseadas em pressupos-

tos morais. O que não me parece obrigatório é que isso seja um procedimento consciente, racio-

nal, no sentido do domínio sobre os elementos em torno dos quais se toma uma decisão. Na con-

clusão, retomarei os elementos para a construção de uma teoria comunicacional/social da descul-

pa. Por enquanto, há ainda elementos a discutir para se entender o cinismo como parte da ordem

e não como − apesar de isso parecer ser muito mais confortável − um cancro, que delas destoa.

Neste texto mostrarei que o cínico não está isolado de nós, ele é parte de nós, nós permitimos sua

existência e, no fundo, sentimo-nos confortáveis com o fato de ele transitar entre nós.

Page 27: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

17

DA NECESSIDADE DE UM RACIOCÍNIO ‘ESPIRITUALISTA’

Com seu trabalho sobre o espírito do capitalismo, Max Weber introduziu uma forma de

raciocínio com o qual é possível relacionar o que faz um ator se engajar em um sistema social

com sua dimensão moral, para ele central nessa operação. “Um dos elementos fundamentais

do espírito do capitalismo moderno, e não só dele, mas de toda a cultura moderna, é a conduta

racional baseada na idéia de vocação”, diz Weber (2002, p. 28). Boltanski e Chiapello (p. 43)

reforçam essa impressão a respeito da dimensão ética sobre a ação racional: “Em Max Weber,

o ‘espírito do capitalismo’ remete à série de motivos éticos que, embora estranhos em sua

finalidade à lógica capitalista, inspiram os empreendedores em suas ações favoráveis à acu-

mulação do capital”. O que fica claro na observação de Boltanski e Chiapello (p. 46) é que,

para Weber, para além da adesão ao capitalismo, a modernidade pode ser lida como um sis-

tema de sistemas de adesão e sua lógica é sempre perpassada por um “espírito”.

Justamente este conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar essa ordem e a sustentar, ao legitimá-la, os modos de ação e as dis-posições que são coerentes com ele. Essas justificações, sejam elas gerais ou práti-cas, locais ou globais, exprimidas em termos de virtude ou em termos de justiça, sustenta a execução de tarefas mais ou menos penosas e, mais geralmente, a ade-são a um estilo de vida, favoráveis à ordem capitalista.

O raciocínio “espiritualista” de Weber permite perguntar qual pode ser o conjunto de

elementos morais que circulam em torno de uma ordem e que dão condições para que ela

se sustente. Boltanski e Chiapello traçam o mesmo caminho para, a sua maneira, tentar

encontrar o “novo espírito do capitalismo” ou, como preferem, “dar conta das alterações

sofridas no espírito do capitalismo”. Em uma obra monumental, publicada no final do sé-

culo passado, investigam as alterações sofridas pelo espírito do capitalismo entre os anos

60 e os 90 para tentar explicar as alterações sofridas pelo sistema capitalista no mesmo

período. Para tanto, eles mergulham na literatura gerencial (management) produzida na

Page 28: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

18

França ao longo daquelas décadas, em busca do ethos capaz de sustentar a mudança para

um modelo de capitalismo que eles chamam de conexionista, cujo paradigma é a rede e

cuja lógica é individualista e liberacionista.

Essa análise é pautada pelo raciocínio do próprio Boltanski e de Thévenot, que pro-

põem uma descrição das ordens sociais − chamadas por eles de cidades − como sistemas

constituídos por disputas em torno das grandezas relativas dos diferentes atores envolvi-

dos em seus processos de constituição/manutenção. Para eles (p. 16), toda classificação é

sempre uma hierarquização ou, em seus termos, “confirma-se a relação entre classificação

e julgamento”. Esses julgamentos têm que ser baseados em um sistema de provas, ou seja,

cada desenho de cidade tem que ser justificado, aprovado a partir de um critério. Para Bol-

tanski e Thévenot (p. 19), esse critério tem que ser estabelecido por um conjunto de práti-

cas: “A aproximação não se dá por meio de uma regra transcendental, como tradicional-

mente se pensa, mas segundo as pressões de ordem pragmática que têm como objeto a

pertinência de um dispositivo, ou, se for o caso, seu ajustamento”. Uma cidade é um sis-

tema produzido através de processos localizados de justificação/ajustamento. Depois de

estudar alguns tipos de generalidades possíveis, os autores chegam à conclusão de que,

nos sistemas baseados na justiça, um critério principal está em jogo nos processos de pro-

va: a idéia de bem comum. Para eles, uma ordem social baseada em processos de justifi-

cação se mantém porque seus membros estão convencidos de que ela confere uma maior

comum-humanidade geral ao sistema. E cada prática da cidade é constantemente posta à

prova, por críticas, que discutem sua ampliação (ou simplesmente manutenção) do bem

comum. O resultado de uma crítica pode ser ou uma alteração do uso da prática em ques-

tão na ordem, ou uma justificação da prática, ou um ajustamento da crítica que, por nego-

ciação, molda-se à própria ordem e passa a admitir a operação.

Page 29: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

19

Diante de um modelo como esse, o cinismo ganha uma outra dimensão. É onde ele

pode ser pensado como operação social. Aqui, ele será tratado, dentro do modelo proposto

por Boltanski e Chiapello, como uma forma de incorporação da crítica ao capitalismo, ao

mesmo tempo que dentro de uma teoria da desculpa. O cinismo me parece ser, mais do que

uma postura, uma forma de argumentação, baseada na idéia de que não se pode mesmo ter

ilusões em relação ao mundo. Nasce da incorporação, pelo discurso da ordem, de dois dis-

cursos críticos. O primeiro é o da própria “desumanidade” do capitalismo. O cínico facil-

mente aceitará e não raro proclamará essa problemática. Mas ao mesmo tempo, ele mostra-

rá a urgência de uma visão ultra-realista do mundo − a crítica maior feita aos idealistas a

respeito do próprio capitalismo. O cínico não é otimista como Fukuyama6. Tampouco é um

pessimista. A crença do cínico no que está diante de seus olhos é tão grande que a ele não

há mesmo sentido em pensar o futuro a partir de um projeto.

Boltanski e Chiapello (p. 46) mostram preocupação com a dimensão mais pragmáti-

ca do capitalismo, com os procedimentos de justificação mais cotidianos, aqueles que de-

monstram o ethos de sua constituição:

A noção de espírito [de Weber] tem lugar em um tipo de análise dos “tipos de condu-tas racionais práticas”, das “incitações práticas à ação”, que, constituintes de um no-vo ethos, tornaram possíveis as rupturas com as práticas tradicionais, a generalização da disposição ao cálculo, o enfraquecimento da condenação moral ao lucro e os im-pedimentos ao processo de acumulação ilimitada.

Em Weber, sabe-se, esses elementos são encontrados na universalização e na conversão

em dimensão laica do ascetismo protestante. É na ética de calvinistas e luteranos que o pensa-

dor alemão escava para encontrar os elementos que moldam as ações cotidianas dos integran-

6 Em fevereiro de 1994, Fukuyama publicou um artigo na revista liberal americana Commentary − publicação ligada à comunidade judaica − intitulado Against the new pessimism. No artigo, ele, retomando o raciocínio do primeiro capítulo de seu livro de 1992, critica severamente aqueles que consideram que há motivos para ter uma visão sombria a respeito do mundo pós-fim da Guerra Fria. Para ele, essa é uma cantilena improdutiva, que não colabora com o crescimento e, pior, está em desacordo com as conquistas feitas pelo mundo liberal.

Page 30: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

20

tes do mundo capitalista nascente para explicar como ele pode ter se tornado um modelo acei-

tável de civilização ou, nos modelos de Boltanski-Thévenot e Boltanski-Chiapello, como fo-

ram produzidos os processos de justificação do mundo capitalista. Esse detalhe é primordial

em relação ao capitalismo, pois para Boltanski e Chiapello (p. 41), o capitalismo possui uma

peculiaridade em relação a outras ordens sociais, ele é “absurdo”:

Os assalariados perderam a propriedade sobre o resultado de seu trabalho e a possibilidade de manter uma vida ativa independente da subordinação. Já os ca-pitalistas se encontram acorrentados a um processo sem fim e insaciável, total-mente abstrato e dissociado da satisfação das necessidades de consumo, quanto mais de luxo. Para esses dois protagonistas, a inserção dentro do processo capi-talista tem uma singular exigência de justificações.

O capitalismo, então, para eles (p. 58), não tem em si mesmo nenhuma forma de se fa-

zer confiável e nem de pressupor maior grau de bem comum:

O capitalismo não consegue encontrar em si mesmo nada em que fundamentar motiva-ções de engajamento e, menos ainda, em que formular argumentos orientados segundo uma exigência de justiça. O capitalismo é, sem dúvida, a única, ou ao menos a principal, forma histórica de ordenação de práticas coletivas a ser perfeitamente destacada da esfe-ra moral, no sentido em que encontra sua finalidade em si mesmo (a acumulação do ca-pital como objetivo em si) e não como referência a elementos como o bem comum e nem mesmo aos interesses de um ente coletivo como povo, Estado, classe social. A jus-tificação do capitalismo supõe, então, referência a construções de outra ordem da qual derivam exigências diferentes daquelas impostas pela busca do lucro.

O espírito do capitalismo exige uma referência externa. Essas “construções de outra or-

dem” são da ordem da cultura. Trata-se da produção, externa ao próprio processo capitalista,

de uma ética que lhe dê lógica (p. 59):

O espírito que sustenta o processo de acumulação, em um dado momento da história, é (...) impregnado de produções culturais que lhe são contemporâneas e que foram desenvolvidas, na maior parte das vezes, para fins absolutamente diversos dos de justificação do capitalismo.

Isso corresponde a dizer que o espírito do capitalismo incorpora discursos que lhe são

externos, traz para dentro de si produções culturais das mais variadas fontes e feitas com as

Page 31: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

21

mais variadas motivações, mas que possam servir de esteio para a ordem social capitalista.

A operação de encontrar o espírito do capitalismo, então, corresponde a uma investigação

em termos culturais, nos discursos circulantes, naquilo que é culturalmente partilhado entre

os atores. Weber foi buscar esse espírito nas palavras de ordem das lideranças ideológicas

do capitalismo e usa como paradigma um artigo do patriarca Benjamin Franklin. Boltanski e

Chiapello − que, segundo suas próprias palavras estão interessados não em uma descrição

exaustiva do espírito do capitalismo, mas em um mapeamento das alterações sofridas por

ele ao longo da história − buscam, como já se disse aqui, o espírito do capitalismo na litera-

tura gerencial francesa. Procedimento semelhante este trabalho adotará. Estou considerando

que o cinismo se tornou uma forma de discurso de justificação do capitalismo − embora não

ligado ao bem comum −, uma forma de auxiliar em sua manutenção como sistema de justi-

ça, e que se está considerando que ele não possui, assim como o capitalismo, uma dimensão

de justificação em si mesmo, mas uma necessidade de aprovação externa − uma desculpa,

como disse acima. É atrás de um espírito também que este trabalho está.

Trata-se, assim, de uma busca dupla. A primeira é uma história de transformação do espí-

rito do capitalismo − para a qual será aproveitada a história feita por Boltanski e Chiapello −,

que serve de pano de fundo para a segunda história, a da produção de um espírito do cinismo,

que começa a se instalar e a ser incorporado por várias instâncias da ordem capitalista em sua

versão contemporânea. O acordo entre esses dois fenômenos tem muito a dizer sobre nosso

tempo. Trata-se de um pacto que parece ter ainda mais vantagens do lado do cínico − o capita-

lismo ainda não parece dependente do cinismo −, mas que desenha um modelo de moralidade

que põe sobre a mesa uma problemática central em um país como o Brasil: o problema da i-

gualdade. Pois se há um argumento a ser contraposto ao do cinismo em favor de sua lógica de

“cada um por si e a morte de Deus por todos” é que o problema da igualdade se faz ainda pre-

Page 32: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

22

sente e que ainda tem força como mola de indignação neste país. Tentarei mostrar mais à frente

como a questão do sofrimento do outro − e, numa dimensão de um sistema guiado pela justiça,

a desigualdade − é central na problemática atual e como ela dialoga com o cinismo.

Por agora, fica o objetivo primário desta dissertação: a busca por um mapeamento do e

em torno do espírito do cinismo. Essa busca, como tentei demonstrar, deve ser feita com es-

cavações em um solo cultural. Mas não em um solo cultural qualquer. Na próxima seção,

mostrarei como a problemática do cinismo é uma questão discursiva. Mas desde já fica claro

que a busca “espiritualista” é empreendida em torno da palavra pública, em uma palavra cir-

culante. Para empreender esta busca, então, foi escolhido um campo em que a problemática da

igualdade se manifeste de forma radical, o campo do trabalho e do sindicalismo. E em busca

de um tema que pudesse servir de norteador para essa busca, resolveu-se usar uma data que

tem sido marcante do que diz respeito ao mundo do trabalho, o Primeiro de Maio.

O Primeiro de Maio, Dia Internacional do Trabalho, tem servido como uma data mítica

para a classe trabalhadora. Paira sobre ele, como mostrarei no Capítulo 3, o lugar de uma es-

pécie de mito de origem da luta trabalhista. Além disso, é o único dia do ano em que, por for-

ça do noticiário de cobertura nacional, toda a sociedade entra em contato com a fala da classe

trabalhadora como um problema. Para além da cobertura diária, de tudo o que se mostra em

jornais e revistas ao longo do ano, o noticiário do Primeiro de Maio é sempre lugar para ba-

lanços, para revisão e ajuste de discursos a respeito da relação sociedade trabalho. Para todos

os efeitos, para o mundo do trabalho, o Primeiro de Maio é um primeiro de janeiro.

Page 33: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

23

DO JORNALISMO COMO ESPAÇO DE INVESTIGAÇÃO

Mas como encontrar esse espírito? O problema é encontrar um campo7 que sirva ao

mesmo tempo como catalisador é como índice. Ele deve, de um lado, permitir acesso às con-

dições necessárias para se produzir a sensação de desencanto que é mãe do cinismo; de outro,

deve ser um espaço que demonstre o cinismo como uma prática. Como objetivo principal,

entretanto, a busca é por um campo que, em diálogo com as duas operações, mostre os resul-

tados que o cinismo produz na cultura em sua dimensão cotidiana. Pois o jornal, por vários

motivos, parece-me um lugar privilegiado para esta investigação.

De maneira geral, dois são os usos que têm sido feitos do jornalismo em pesquisas de

Comunicação. O primeiro é o jornal como fonte de informações e/ou impressões sobre o pró-

prio jornalismo. Esse tipo de abordagem empírica procura, através de métodos como análise de

discurso ou mesmo de testes quantitativos, usar a produção da imprensa como fonte de estudo a

respeito da própria imprensa e de seus efeitos. Dessas pesquisas, tem-se extraído uma série de

observações sobre a relação entre mídia e sociedade, seja por se chamar a atenção para a força

política, para o poder conspiratório ou para a potência cognitiva do meio. Também têm nascido

daí estudos metodológicos sobre a própria operação jornalística e se buscado, a partir da obser-

vação do que se tem feito, maneiras melhores de se tentar fazer jornal em suas várias formas.

O outro grande braço da utilização do jornal como objeto é o da fonte historiográfica.

Nesse sentido, o horizonte das pesquisas migra do jornal como objeto para o jornal como fon-

te. Como o jornal (em todos os meios) publica virtualmente matérias sobre qualquer assunto

que se torne público, ele pode ser usado como fonte para trabalhos de historiografia tradicio-

nal, história da literatura ou qualquer outra história que se queira fazer a partir da apresenta-

7 A idéia de campo é usada aqui livremente, sem conexão necessária com o conceito de campo de Bourdieu.

Page 34: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

24

ção da realidade. Uma vez que se levem em conta mecanismos para eliminar dúvidas sobre a

veracidade ou a manipulação ideológica dos fatos apresentados − por exemplo, por meio do

uso de mais de uma publicação como fonte e a leitura comparada de suas narrações − notícias

e reportagens têm servido como fonte efetiva para estudos de caráter sincrônico.

Parece-me, entretanto, que o jornal pode ainda ser usado de uma outra maneira, que a

meu ver tem sido negligenciada nas pesquisas de Comunicação. É o uso da produção jornalís-

tica como objeto para analisar determinados traços da sociedade que é levada para as suas

páginas. Esse modelo parte de um pressuposto principal: a sociedade documentada também é

a responsável pela documentação, ou seja, um conjunto de formas de cobertura representa um

conjunto de questões que a sociedade se coloca, em que ela está interessada e, no limite, re-

presenta traços da própria sociedade. Ao falar da educação, Bourdieu (1974, p. 207), diz que:

O que os indivíduos devem à escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas comuns. Embora os homens cultivados de uma determinada época possam discordar a respei-to das questões que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas ques-tões. É sobretudo através das problemáticas obrigatórias nas quais e pelas quais um pensador reflete que ele passa a pertencer a sua época, podendo-se situá-lo e datá-lo.

O mesmo, creio, pode ser dito do jornal: a priorização de assuntos e a abordagem u-

tilizada para exibi-los informam sobre o que a sociedade em torno do jornal considera seu

corpo de questões em debate. E assim, informa, claro, sobre a sociedade que manifesta

esse interesse. Obviamente, não estou dizendo com isso que o jornal é “um espelho da

sociedade” ou outra tolice semelhante. O que se pode encontrar de especular da sociedade

no jornal é mesmo o conjunto de temáticas consideradas por ela relevantes. Jornal e socie-

dade se irmanam indiretamente. Essa relevância opera em mão dupla, uma vez que o jor-

nal, claro, possui regras próprias − de mercado, de espetáculo, de ideologia etc − para a

escolha do que é relevante. É, então, uma dupla hermenêutica, no sentido de Giddens

Page 35: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

25

(1993): a sociedade alimenta o jornal com elementos que tornem generalizantes as pautas

por eles publicadas e o jornal dá o feedback à sociedade com sua agenda diária de temas

que ela deve considerar como centro de suas conversas e decisões.

O elemento mais importante desse sistema e que é levado mais fortemente em conta no

modelo de análise que considera o jornal como boa fonte para se fazer um raciocínio espiritu-

alista é justamente aquilo que a sociedade oferece ao jornal, ou seja, o conjunto de impressões

que, captadas pelo jornal, tornam as questões em debate uma unidade possível entre os dife-

rentes atores de uma mesma ordem. Este trabalho parte do pressuposto de que é cabível bus-

car no jornal, através do interesse manifestado publicamente em um tema, os diferentes ethos

produzidos em torno daquele tema na esfera pública. É o que se fará aqui.

Até agora, trabalhei para esclarecer que a atuação de uma razão cínica é uma problemá-

tica de discurso. Mais à frente, explicarei porque podemos considerar o cinismo como um

mecanismo de desculpa − e, mostrarei, de justificação, no sentido de Boltanski e Thévenot. A

questão, aqui, é que o discurso que produz o cinismo não é um discurso qualquer, e, sobretu-

do, não é um discurso destinado aos próprios ouvidos de seu produtor. Ele é, antes, um dis-

curso que possa ser tomado generalizadamente, como produtor de unidade entre atores em

uma ordem social. O cinismo como é aqui caracterizado é composto por três operações, duas

discursivas e uma psico/sociológica.

A primeira é a que faz circular um discurso na ordem social a respeito da inexorabilida-

de da ordem tal como ela é apresentada. A segunda é o próprio ciclo desencan-

to−conformação−anuência. O terceiro (e mais essencial para este trabalho) é a operação de

justificação − que, mostrarei abaixo, deve ser reconsiderada sob a ótica da desculpa −, que é

de fala e informa ao(s) outro(s) sobre o maior grau de correção em se ser pragmático − e se

calcular lucros individuais em uma realidade tomada pragmaticamente.

Page 36: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

26

A necessidade, então, é a de uma palavra que seja uma composição entre discurso e or-

dem social ou, mais forte que isso, um uso da palavra que faça dela mesma mecanismo de

composição da ordem social. Trata-se, então, de uma observação da relação entre discurso e

coletividades ou, mais profundamente, do poder do discurso para compor coletividades, agre-

gações. Gabriel Tarde (1992, p. 29) propõe uma oposição forte entre duas formas de

coletividade, a multidão e o público. Seu trabalho sobre o problema da esfera pública − escrito

em 1901 na forma de vários ensaios − coloca a primeira como um agregado físico de pessoas

movidas pelo mesmo interesse e o segundo como o centro mesmo da formação de mundo na

modernidade, através de uma agregação indireta e não material:

A idade moderna, desde a invenção da imprensa, fez surgir uma espécie de público bem diferente [da idéia de multidão], que não cessa de crescer e cuja expansão indefinida é um dos traços mais marcantes de nossa época. Fez-se a psicologia das multidões; resta fazer a psicologia do público, entendido (...) como uma coletivi-dade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente se-parados e cuja coesão é inteiramente mental.

De imediato, ele associa a formação do público à formação e à consolidação da im-

prensa. É na produção da mentalidade coletiva no jornal que ele enxerga a formação de

uma outra forma de coletividade inaugurada pelo mundo moderno. A imprensa se torna

um espaço de conexão “espiritual”, nos termos de Tarde (p. 30), ou seja, de ligação con-

ceitual entre atores dispersos em uma mesma ordem social:

Não é em reuniões nas ruas ou na praça pública que têm origem e se desenvolvem es-ses rios sociais (...) Coisa estranha, os homens que assim se empolgam, que se sugesti-onam mutuamente, ou melhor, que transmitem uns aos outros a sugestão vinda de ci-ma, esses homens não se tocam, não se vêem nem se ouvem: estão sentados, cada um em sua casa, lendo o mesmo jornal e dispersos num vasto território.

Essa ligação é produzida conceitualmente, sem a necessidade de integração física entre os

atores. Para Tarde (1992, p. 30), ela nasce da “consciência que cada um deles possui de que essa

idéia ou essa vontade é partilhada no mesmo momento por um grande número de outros homens.

Page 37: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

27

Basta que ele saiba disso, mesmo sem ver esses homens, para que seja influenciado por estes to-

mados em massa, e não apenas pelo jornalista, inspirador comum”. É através dessa construção

que ele propõe um conceito de contemporaneidade ligado não à datação factual, mas à co-

temporalidade de formação de generalidade. Para ele, o interesse não está necessariamente em

apenas se ler uma notícia do dia e sim em se ler a notícia do dia porque ela é lida ao mesmo tempo

pelos outros. É em um jogo de pertencimento que se localiza, para ele, o papel da formação do

público na construção da esfera pública. Lemos o jornal e nos sentimos parte de um mesmo cam-

po de pensamento e, nesse sentido, sentimo-nos parte de uma mesma ordem social.

Um elemento que chama a atenção na descrição de Tarde é sua atribuição de precedên-

cia do discurso público sobre o indivíduo e, mais, do discurso individual publicado sobre os

indivíduos do público. Como bom moderno ocidental que é, Tarde está preocupado com o

controle das mentes por mecanismos lobotômicos de controle coletivo. “O leitor, em geral,

não tem consciência de sofrer essa influência persuasiva quase irresistível do jornal que lê

habitualmente” (p. 31), diz em um momento. “Poder-se-á dizer que, se cada grande publicista

faz seu público, cada público um pouco numeroso faz seu publicista? Essa última proposição

é bem menos verdadeira” (p. 40), lança em uma nota de rodapé. Mas seu olhar anticonspirató-

rio não desmente a correção em observar a formação de uma esfera pública através da produ-

ção de um discurso público. É na produção desse geral pelo discurso unificado da opinião

gravado sobre o jornal que se constitui uma nova forma de ágora, uma praça mental, social.

Falarei à frente da descrição feita por Boltanski (1993) das formas da política moderna e da

relação delas com o sofrimento. Neste momento, entretanto, cabe chamar a atenção para a descri-

ção que ele faz da necessidade de uma palavra pública na construção de uma política em que se

envolvem os atores imersos em um jogo de exibição/reação. A construção de um público, no sen-

tido de Tarde é, na visão de Boltanski, a construção de um sistema olhar/falar. Esse sistema passa

Page 38: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

28

pelo estabelecimento de um narrador que é, ao mesmo tempo, um puro espectador, capaz de se

isentar de ligação emocional com os fatos. Para ele (p. 48), “o espectador é puro porque ele é per-

feitamente independente da cena que contempla”. E esse espectador puro, em um primeiro mo-

mento, é justamente o jornalista: “Operador sistemático do rumor, ele põe em rede e distribui a

todos os pontos uma informação que correria o risco de, sem isso, seguir as redes de convivência

preexistentes, de pegar emprestadas as passagens obrigatórias, de se concentrar nos bolsos, de

constituir agregados” (p. 50). Essa posição pressupõe um personagem desligado da ocorrência o

suficiente para conquistar credibilidade: “É porque o espectador é sem ligações, sem engajamento

prévio, que sua narração, seu testemunho, pode ser crível” (p. 51)8. É, pois, por conta desse siste-

ma que confere credibilidade à distância que é possível fazer com que os atores de uma mesma

ordem compartilhem impressões semelhantes, de um mesmo “espírito” na ordem da conversação.

Para Boltanski, é essa a geografia do espaço público, um campo de fluxo de discursos

através da constituição de narradores com credibilidade observados por atores que podem

reagir às situações por eles narradas. Mas ele chama a atenção para o fato de que esse narra-

dor e os espectadores por ele assistidos não estão envolvidos em um sistema de verificação,

ou seja, de entrega de verdades. Ainda que o olhar do puro espectador seja parente do olhar do

observador científico, ele possui como peculiaridade mais forte sua máquina de distribuição e

generalização do que uma de confirmação. O observador “faz circular opiniões divergentes,

como, por exemplo, medidas econômicas ou políticas”, como diz Boltanski (p. 53). Não se

trata, então, de um campo apenas racional de circulação do que é razoável e crível, mas de um

espaço de debate, de transposição para uma escala ampliada de uma discussão que poderia ser

apenas local e, nesse sentido, ser movida por interesses individuais. O espaço público, então,

para Boltanski, é constituído em torno de causas, de tomadas de partido.

8 Grifo dele.

Page 39: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

29

Isso confere à circulação dos discursos no espaço público, mesmo que dispersa pela

ordem social, um caráter político. Ele é aquela nova ágora, desta vez produzida não por um

local de encontros, mas por um encontro no tempo e dentro de uma mesma lógica, dentro de

um mesmo debate. Para Boltanski, entretanto, um outro detalhe se faz relevante: há duas

possibilidades de participar da esfera pública, uma engajada e outra desengajada, ou seja,

pode ser uma participação motivada pela ação diante do que é mostrado pelo puro narrador

ou uma participação sem reação. Para Boltanski (p. 53), entretanto, a reação engajada, “para

ter valor, tem que ser puramente moral, ou seja, desligada de toda e qualquer determinação

por interesses e, em conseqüência, de qualquer ligação comunitária prévia”. Trata-se, para

ele (p. 54), de uma reação genérica. Apesar de fazer diferença o conteúdo específico das

mensagens expostas publicamente (que, mostrarei mais à frente, são mensagens que infor-

mam a opinião pública sobre o sofrimento de atores), a reação deve ser independente de

qualquer interesse prévio, como, por exemplo, vizinhança ou laços familiares:

Nessa figura política, o engajamento não é autêntico senão na medida em que ele marca o momento no qual os indivíduos indeterminados tomam posições. Mas para que esse momento se dê, é preciso que todos os indivíduos em rede, entre os quais todas as passagens são em princípio possíveis, no estado inicial, possam dispor da mesma informação, conhecer as mesmas causas. De fato, é o caráter comum da informação o que compõe a rede.

A política moderna foi calcada, então, nesse sistema de olhares de engajamentos. Lócus

desse sistema, o espaço público é um espaço atravessado por narrações e falas. E é por isso

que é nele que espero encontrar a constituição do espírito do cinismo (porque é nele que está a

de qualquer discurso na esfera pública) e é por isso que o jornal pode ser um espaço privilegi-

ado de investigação. Na generalidade produzida pela notícia, justamente a produtora da sensa-

ção de proximidade que produz o público para além da multidão, pode-se ter uma fotografia,

um decalque até, da própria ordem. A ágora moderna é o jornalismo.

Page 40: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

30

Esse raciocínio poderia sugerir que a melhor maneira de se falar do espírito do cinismo

seja buscá-lo no jornalista. Claro, a leitura do jornal informa, antes de qualquer outro, sobre o

comportamento do próprio jornalismo. O discurso jornalístico serve como fonte primária para

entender o próprio jornalismo. Ao mesmo tempo, também, é claro que, como espectador privi-

legiado e operador da informação, o jornalista tem um papel central e é local primordial da ma-

nifestação do cinismo. Mas parece muito fácil este raciocínio. E não estou falando de um pro-

blema estético. É que é, na verdade, nas entrelinhas, mais “difíceis” de enxergar, que é possível

revelar como uma ordem é constituída por movimentos retóricos. Adiante, através da idéia de

tópicas do sofrimento de Boltanski, mostrarei mais claramente a relação entre as tomadas de

posição diante dos problemas da ordem e a maneira como se apresentam esses problemas. Por

enquanto, é fácil prosseguir com um sentimento praticamente intuitivo: uma cultura não é ope-

rada apenas por seus discursos de face. Há sutilezas, torções. A operação mais central deste

trabalho é considerar que boa parte dessas operações faz parte de estratégias de desculpa. A

justificação de Boltanski e Thévenot, intimamente ligada a uma idéia de comprometimento com

o bem comum − ou, em uma escala meta-analítica, com um princípio moral − pode ser (para

mim, tem que ser) colocada ao lado de sistema de permissões, de negociações entre indivíduo e

moral da ordem. Sustento que nas disparidades entre moral individual e moral da ordem que se

dão não só os processos de prova/justificação, mas também a própria manutenção da sociedade.

É por isso que a busca deste trabalho não quis estar no jornalista. Era preciso esca-

par do olhar privilegiado de observador. O problema não era um problema de olhar, mas

sim um problema de recepção de um olhar e − este é o elemento interessante − de opera-

ção de uma moral individual em negociação com a moral coletiva. Ao mesmo tempo, en-

tretanto, o jornal, como se torna a metáfora maior da própria ordem, carreia os elementos

de generalização que produzem a noção de público.

Page 41: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

31

Por isso também, essa dissertação não se esforça para fazer demonstrações de cinismo.

Faz isso em determinados momentos, mas a constatação produzida é jubjacente. O interesse

na investigação é o de desvelar não a ação cínica, um mecanismo, como disse antes, cotidi-

ano e, por vezes, sub-reptício, mas sua anatomia. Não é em busca de casos de cinismo na

classe trabalhadora que se está. Fosse isso, a operação mais simples seria a de fazer entre-

vistas dirigidas com jovens executivos vindos por promoção de posições mais baixas na

hierarquia empresarial e seria fácil regalar-se com o cinismo de seus argumentos9.

Em vez disso, esta dissertação faz sua busca no Primeiro de Maio e por ele nos jor-

nais. Através da maneira como a sociedade percebe a data em diferentes momentos da histó-

ria recente, pretendo mostrar como o espírito do cinismo começa a se tornar um elemento da

esfera política cotidiana. Para tanto, serão observadas as edições de Primeiro de Maio de

três grandes jornais brasileiro − Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo e O Estado de São

Paulo, um do Rio de Janeiro, dois de São Paulo, mas todos de expressão nacional. Com

esses veículos, serão cobertas as principais impressões a respeito da data que circularam na

esfera pública do país ao longo das duas últimas décadas e deste início de século. O marco

inicial adotado foi 1980. O final dos anos 70 marca uma mudança no comportamento da

ação sindical brasileira e os anos 80, com a redemocratização, e depois os 90, com a abertu-

ra industrial e o governo Fernando Henrique Cardoso, são a era da transformação da socie-

dade brasileira rumo ao modelo em que ela se encontra hoje.

No Capítulo 1, estudo a crise da modernidade como crise da política. A partir da ob-

servação de Bauman (1998) a respeito de um “mal-estar da pós-modernidade”, estuda-se

ainda a passagem de um contexto coletivo de tomada de decisão para um em que, nos ter-

9 Além da intuição, tanto Sloterdijk (1987) quanto Anderson permitem essa desconfiança, ao apontarem para uma classe letrada e cooptada pelo capital ao falarem da impossibilidade de unidade na classe trabalhadora, divi-dida em sua luta, também, em grande parte, porque parte dela não compartilha da indignação por estar satisfeita com sua própria condição no capitalismo.

Page 42: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

32

mos dele, dá-se radicalmente a “privatização dos destinos”, em que pesam as relações de

consumo para a constituição do ator social mais do que o lugar de cidadania ou a centrali-

dade de decisões no Estado. Além disso, aprofunda-se o conceito de política de piedade e

se comparam os modelos de cultura baseados em justiça (justificação e ajustamento) com

os baseados em sistemas de combate ao sofrimento, para se concluir que o Brasil é uma

sociedade híbrida, em que os dois sistemas tentam conviver. O cinismo aparece aí, então,

como uma forma de justificar um contexto de consumismo.

No Capítulo 2, debruço-me sobre uma definição contemporânea de cinismo e a loca-

lizo como elemento do contexto pós-moderno. Problematizo a construção de uma razão

cínica pós-moderna, em oposição àquilo que já foi o sentido do termo cinismo na Grécia

Antiga. Depois, faço um pequeno diagnóstico da moral na pós-modernidade, na busca de

um espaço moral possível em uma sociedade definida por uma lógica da eficácia e da téc-

nica. Por fim, faço uma apresentação da crise da modernidade na forma de uma crise do

modelo moderno de política, baseado no conhecimento, e localizo o cinismo neste contex-

to, chamando a atenção para sua relação com o desencanto com conhecimento.

O Capítulo 3 faz uma breve história do problema da igualdade no mundo do trabalho

brasileiro, com ênfase nos anos 80, 90 e neste início de século. Nele, chama-se a atenção

para a dimensão moral em que habita o espírito do capitalismo e começa a penetrar o espí-

rito do cinismo. Nele, serão observados com especial atenção momentos como o ocaso do

sindicalismo “pelego” dos primeiros anos do trabalhismo brasileiro no final dos anos 70, o

sindicalismo mais combativo dos anos 70 e 80 e o surgimento do modelo de “sindicalismo

de resultados” nos anos 90. É neste capítulo que se pode enxergar, por meio da maneira

como a esfera pública vê o mito do Dia do Trabalho (nos discursos sobre este em jornais

de circulação nacional) as condições de fertilização e manutenção do cinismo.

Page 43: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

33

Na conclusão, tentarei mostrar como a questão da igualdade ainda é uma ferida aber-

ta no mundo atual, em especial em um contexto como o brasileiro, no qual a noção de bem

comum está associada à problemática do sofrimento, produzindo a sociedade híbrida apre-

sentada no Capítulo 2. Pretendo me debruçar também sobre que tipo de participação o

cinismo pode ter em um contexto como este, sobretudo levando-se em conta sua conta sua

posição em um sistema moral. Também chamarei a atenção para outras problemáticas em

que o cinismo pode estar envolvido na esfera política, como na participação da mídia na

esfera de tomada de decisões na sociedade contemporânea.

Page 44: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

1 − A CRISE DA POLÍTICA

Page 45: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

35

1.1 − IGUALDADE E LIBERDADE

A pergunta inevitável a esta altura é: por que ser cínico? O que faz compensar essa

escolha? Como aderir ao cinismo pode ser uma alternativa atraente? Parece-me que a res-

posta a esse questionamento está no estatuto mesmo do que diferencia o mundo contempo-

râneo do moderno: trata-se de uma questão de motivação, de uma questão de desejo.

Bauman (1999), lendo Freud, sustenta que a diferença mais marcante entre a modernidade

e o mundo contemporâneo (cuja ordem ele aprova chamar de pós-modernidade) é uma

inversão do “mal-estar” inerente à inserção do homem na cultura (kultur, que no texto de

Freud, para o português, ganhou a alcunha de “civilização” e para Bauman se confunde

com a noção de modernidade): enquanto no mundo moderno o homem é instituído pelo

ato de abrir mão “de um quinhão de liberdade” em benefício de “um quinhão de seguran-

ça”, no mundo atual, o homem, através da sociedade de consumo, abre mão facilmente de

seu quinhão de segurança − oferecido pelo lugar centralizado de tomada de decisão na

política e pela coletividade − em favor da liberdade... de consumir.

Ele apresenta então uma história do que chama de “privatização dos destinos” e depois, o

mesmo Bauman (2001) a associa ao fenômeno da “emancipação”: a cada vez maior passagem

da liberdade, do poder e da responsabilidade de decisão para a esfera individual. Com isso, ele

aponta para uma crise da indignação com a desigualdade e da ligação coletiva, para uma cone-

xão cada vez menor entre os homens: “Nossos sofrimentos nos dividem e isolam. Nossas misé-

rias nos separam, rasgando o delicado tecido das solidariedades humanas” (2000, p. 75).

Pierre Bourdieu (1992, p. 182), ao fazer uma crítica da academia e de sua falta de enga-

jamento político (curiosamente, ao responder a uma pergunta sobre sua entrada no Collège de

France), faz uma leitura bastante severa do uso do conhecimento no mundo contemporâneo:

Page 46: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

36

Infelizmente, pode-se atualmente fazer dois diferentes usos das análises socioló-gicas do mundo social, e, mais especialmente do mundo intelectual: os usos que poderíamos chamar de clínicos (...) que consistem em buscar nas conquistas da ciência os instrumentos para uma compreensão de si sem complacência; e o uso que nós poderíamos chamar de cínicos e que consistem em procurar na análise dos mecanismos sociais instrumentos para “ser bem sucedido” no mundo social (...) ou para orientar suas estratégias no mundo intelectual.

Diante do raciocínio de Bourdieu para o intelectual, Bauman (2000, p. 10) vê-se tentado

a promover uma generalização para toda a política moderna em geral, apostando na relação

íntima entre ela e o uso do conhecimento:

O saber não determina a qual dos dois usos [clínico ou cínico] recorrermos. Isso é, em última análise, uma questão de escolha. Mas sem esse conhecimento, para come-ço de conversa, não haveria sequer opção. Com o conhecimento, os homens e as mu-lheres livres têm pelo menos alguma chance de exercer sua liberdade.

Essa aparente ode ao conhecimento como condição necessária − embora não suficiente

− para “combater o que vemos de impróprio, perigoso ou ofensivo a nossa moralidade” reve-

la, na verdade, a necessidade de se chamar a atenção justamente para os efeitos do conheci-

mento no mundo moderno. O próprio Bauman (1998, p. 20) permite fazer uma relação entre

esse elemento e a concepção moderna de política:

De fato, pode-se definir a modernidade como a época, ou o estilo de vida em que a colocação da ordem depende do desmantelamento da ordem “tradicional”, herdada e recebida; em que “ser” significa um novo começo permanente.

Trata-se, como disse, de um problema de estatuto da ordem. Primeiro, de uma ordem movi-

da a sua própria destruição, mas que queria antes de tudo liberdade e igualdade, ainda que fosse

preciso inventar a fraternidade para que ambas pudessem coexistir. Ainda Bauman (1998, p. 2):

No mundo moderno, notoriamente instável e constante apenas em sua hostilida-de a qualquer coisa constante, a tentação de interromper o movimento, de con-duzir a perpétua mudança a uma pausa, de instalar uma ordem segura contra to-dos os desafios futuros, torna-se esmagadora e irresistível. Quase todas as fanta-sias modernas de “um mundo bom” foram em tudo profundamente antimodernas, visto que visualizaram o fim da história compreendida como um processo de

Page 47: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

37

mudança. (...) As utopias modernas diferiam em muitas de suas pormenorizadas prescrições, mas todas elas concordavam que o “mundo perfeito” seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo.

Bauman (1998) opta então por fazer uma história da passagem da modernidade para a

pós-modernidade como uma história da relação entre ordem e sua desordem nominal, entre

limpeza e pureza. A modernidade inaugura, para ele, uma forma de política baseada na perene

busca de pureza. A pureza é um ideal de construção do mundo, o ideal maior de um mundo

que quer ser capaz de se fazer como uma imagem de si mesma para sempre. Contraditoria-

mente, entretanto, essa mesma operação, na modernidade, foi a mãe dos totalitarismos e das

eliminações raciais. Os dois ideais nobres da modernidade tornam-se, com isso, oponentes

que se vêem sem nenhum filtro de nobreza: os procedimentos para criar um mundo de iguais

criam cruzada contra as liberdades individuais subversivas e, ao mesmo tempo, a luta pela

liberdade elege como seu principal inimigo as políticas de produção de igualdade forçada.

Mas se a eliminação do estranho à ordem foi um dos grandes espetáculos da modernidade, a

chegada a uma ordem considerada liberta − como se proclama nossa ordem contemporânea −

manteve, para Bauman (1998, p. 34) a lógica de purificação:

No mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser reduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a “sujeira” da pureza pós-moderna.

É, para o autor (1998, p. 74), uma questão de se estar dentro ou fora do mundo do consumo:

Uma vez que o critério de pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os dei-xados de fora como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos − pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado con-sumidor porque lhes faltam recursos requeridos , pessoas incapazes de ser indivíduos “livres” conforme o senso de “liberdade” definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros”, que não se ajustam ao novo esquema da pu-reza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redun-dantes − verdadeiramente “objetos fora do lugar”.

Page 48: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

38

Ser redundante é a sina do excluído. Fugir da redundância é a tábua de salvação do in-

cluído. Fazer da ridicularização da redundância um mecanismo necessário à sobrevivência é a

estratégia de autodefesa do cínico. Não se trata (apenas) de se fazer passar por algo que não se

é, fingir não ter um conhecimento que se tem − uma visão superficial da razão cínica. Trata-

se, antes, de se manter incólume diante de uma ordem moral que constantemente exige de

seus participantes um conjunto de posturas a respeito do mundo que os rodeia. E não se trata

de ridicularizar apenas a redundância de personagem, mas de ridicularizar também a redun-

dância estética que é a indignação diante do personagem. No Capítulo 2, discutirei mais a

fundo essa relação, por meio da tentativa de geografar uma moral pós-moderna, ou seja, uma

moral produzida sem referência, contexto de fundo da contemporaneidade. Por enquanto, ca-

be pensar, como disse antes, de que maneira essa questão se faz problema em uma ordem so-

cial em que a igualdade ainda é uma questão moral. A moral começa a perder sentido em um

mundo centrado na multiplicação incessante dos comportamentos de consumo, mas, o que

parece um paradoxo, ainda surge (e cabe) a pergunta de Guillebaud (2003, p. 12):

Será que temos que nos resignar ao fim dos pensamentos totalizadores, ao reinado ver-sátil da “democracia de opinião”, às forças do mercado total ou da tecnociência, à rigi-dez do direito substituindo as crenças coletivas, ao desaparecimento definitivo das uto-pias e da esperança? Por trás desse bricabraque pressentimos novas formas de domina-ção, desigualdades que se aprofundam, um princípio de humanidade que naufraga.

Ele acha que não se deve falar em uma moral, em uma moralidade pós-moderna. Para

ele, seja lá o que devamos imaginar como alternativa de justificação à incorporação das crí-

ticas para pressupor um bem comum de maior igualdade, não pode ser feito pelo discurso da

norma. Mas um detalhe chama a atenção na percepção do ensaísta: é a afirmação de que ele

sente o cheiro de “novas formas de dominação” no modelo pós-moderno, na sociedade de

consumo e na democracia liberal do capitalismo avançado.

Page 49: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

39

Que irônico com a ironia do cínico pensar que o sistema que se cria sob a bandeira

de conferir maior liberdade − liberdade total − ao indivíduo ameace a própria liberdade.

Mas parece ser justamente esse o cenário que se desenha em um mundo com a igualdade

tão fortemente desarticulada. Por quê?

Embora não confessamente, Bauman (2000, p. 162) trabalha com referência no modelo da

sociedade de controle de Deleuze (1997) para estudar a condição do que ele (Bauman) chama de

“homem modulado”: “Os laços com que os homens (e mulheres) modulados se ligam a outros (e

outras) não são rígidos, mas ad hoc”. A sociedade de controle ou modulada é esta em que não há

sistema moral/disciplinar a produzir coerção sobre os indivíduos, o que há é um sistema de mo-

dulação de desejos, para fazer com se deseje o que o poder quer que seja desejado. “Isso tem

efeitos notáveis: torna possível uma sociedade que é simultaneamente ‘bem integrada’ − e costu-

rada muitas vezes em todas as direções − e, no entanto, livre de uma forma rígida”, continua

Bauman. Esse desenho mostra de fato um grande desafio para os libertos do mundo do consumo:

a ferrugem da igualdade cria uma liberdade frágil, dispensada de laços afetivos com o semelhan-

te e, ao mesmo tempo, ameaçada por uma instabilidade social cada vez mais incontrolável. É o

que está por traz da grande crise política observada por Guillebaud: as ordens sociais só podem

se manter se forem sustentáveis moralmente (mostrarão, nas próximas páginas, Boltanski, Thé-

venot e Chiapello) mas, no mundo contemporâneo, passou a ser necessário que se não se consti-

tuam como ordens de igualdade, com a indignação dos incluídos de um lado e a revolta dos ex-

cluídos de outro. E nem é necessário que se torne uma revolta armada que venha se tombar sobre

nós, incluídos, e nos devorar em nossas ilhas de conforto consumista. Trata-se, antes, de uma

questão de princípios. Para Bauman (2000, p. 15), por exemplo, é exatamente isso: “A liberdade

individual só pode ser produto de trabalho coletivo (só pode ser assegurada coletivamente)”.

Claro, isso não é necessariamente verdade. Pode ser que haja um método de se garantir indefini-

Page 50: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

40

damente a liberdade individual de forma individualista. Pode ser que caminhemos para um mun-

do de instâncias de garantia privatizadas de uma forma tal que a coletividade intencionada − que

ultrapasse a dimensão passiva do público, embora aqui tratemos o público de forma bem pouco

passiva − seja mesmo um modelo a ser abandonado. Para Castel (1998, p. 609), trata-se justa-

mente da “questão social”. Para ele, esse não é um problema apenas ideológico − achar ou não

achar que a ampliação da igualdade é ou boa ou desnecessária −, mas de sobrevivência: faz parte

do estatuto de ser ordem social em nosso tempo pressupor a resolução do problema da igualdade:

A contradição que atravessa o processo atual de individualização é profunda. A-meaça a sociedade de uma fragmentação, que a tornaria ingovernável, ou de uma polarização entre os que podem associar individualismo e independência, porque sua posição social está assegurada, e os que carregam sua individualidade como uma cruz, porque significa falta de vínculos e ausência de proteções.

Integrantes de uma tradição de pensamento transformadora e igualitária, Guillebaud, Bau-

man e Castel obviamente positivizam eticamente tanto a indignação diante do sofrimento quanto

a ação transformadora dela oriunda. Como meu fim aqui é aparentemente apenas científico, dei-

xarei de lado por enquanto − haverá um momento para isso na conclusão − uma tomada de parti-

do − embora ela já tenha sido insinuada nas primeiras linhas da introdução. Por enquanto, pare-

ce-me antes de tudo uma construção lógica a idéia de que igualdade e manutenção da ordem

estejam ligadas. A idéia de provas em torno do bem comum (melhor, de um bem comum) pro-

posta por Boltanski e Thévenot no próximo item mostrará como isso pode ser relativizado.

A reflexão que me cabe aqui, por enquanto, é da construção da operação cínica. Diante

de ordens sociais alimentadas moralmente por uma positivização ética da igualdade, o cínico

é aquele que se mantém de pé, livre, individualista, desigual, com o argumento de que, ainda

que a ordem exija dele tomada de posição em torno da igualdade, ele pode dela se isentar,

porque, afinal, no mundo contemporâneo, em que o maior valor é a liberdade individual e o

direito ao consumo, é ridículo perder a liberdade para que todos sejamos iguais.

Page 51: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

41

1.2 − PIEDADE E JUSTIÇA

Ao descrever a oposição entre o sistema político produzido pela Revolução Americana e

o produzido pela Revolução Francesa, Boltanski opõe dois modelos de ordem, a partir de dois

modelos de política. Ao mundo europeu, ele − baseando-se em Hannah Arendt − associa o

que a filósofa judia-alemã chamou “política de piedade”. Já ao modelo americano, ele associa

uma “política de justiça”. O primeiro se baseia em dois traços marcantes: 1) a distinção entre

atores que sofrem e atores que não sofrem, definindo condições e 2) a produção de uma ação

política centrada na observação, na exibição, no “espetáculo do sofrimento”.

O segundo sistema é baseado em uma avaliação meritocrática dos atores, por meio

de uma máquina de equalização deles diante uma norma utilizada para avaliá-los. É a esse

segundo sistema que se aplica mais puramente o modelo proposto por Boltanski e Théve-

not de ordens sociais − chamadas cidades − baseadas na justificação por uma verificação

do estado de bem comum. Na política de piedade, entretanto, o sofrimento é um dado em

si. Boltanski (p. 17) afirma: “Uma política de piedade não se pergunta se o sofrimento do

infeliz é justificável”. O modelo da política de piedade se baseia, então, em uma exibição

do sofrimento e em uma conseqüente tomada de posição de um observador frente ao so-

frimento observado. Diante dele, um ator pode ser indiferente, pode erguer-se e dar um

pedaço de pão, pode engajar-se em uma luta pela transformação do mundo etc. Mas em

termos sociais a política de piedade ganha uma dimensão que se confunde com a própria

ação moderna. Isso porque, como parece óbvio, basear uma política em uma economia das

exibições de sofrimento e das reações a elas corresponde a criar uma economia da palavra

pública, uma problemática da exibição desses sofrimentos em um espaço a que tem aces-

so, cidadãos irmanados conceitualmente.

Page 52: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

42

Boltanski demonstra que esse é um sistema de olhares, o que dá aos aparatos de apresen-

tação do sofrimento importância capital na política moderna. Na modernidade, isto correspondi-

a, ao mesmo tempo, a constituição de uma economia do conhecimento, ou melhor, de uma eco-

nomia da alienação/emancipação. Ter revelado que o sofrimento do outro, ou o seu, tem causa e

que essa causa é uma ou outra é operação suficiente para permitir a transformação. Neste senti-

do, a alienação é repressora e o conhecimento é emancipador e conduz à libertação.

Já na atualidade, a “revelação” da causa não é mais − como observam vários analistas e

como mostro aqui − condição suficiente para produzir reação, ou pelo menos, reação trans-

formadora. Pelo contrário, ela é justamente produtora de um princípio da conservação: diante

do sofrimento e do conhecimento de que este sofrimento possui uma causa e do conhecimento

de que esta mesma causa é historicamente imbatível surge o cinismo, que em vez de ironizar a

própria causa, e com isso ridicularizá-la para conquistar, ironiza o próprio desejo de transfor-

mação e sua aparente insanidade em um mundo voltado para a eficácia.

Boltanski estuda três “tópicas”, três modos de exibição, através dos quais o sofrimento é

lido pela esfera pública: A primeira é a tópica da denúncia. Por esse modelo, o sofrimento é

lido segundo a idéia de que ele tem sempre um causa e que essa causa pode representar uma

culpabilidade. Há invariavelmente um terceiro no jogo do sofrimento, além do sofredor e do

observador. Nesta tópica, esse terceiro é o culpado. A tópica de denúncia se preocupa em

mostrar que as causa do sofrimento devem ser combatidas. Em outro momento (WERNECK,

2001), cheguei a chamar essa tópica de “retórica de esquerda”, em oposição às duas outras

tópicas, que chamei “retóricas de direita”. A definição delas mostrará porquê.

A segunda tópica é a do sentimento. Nela, não se chama a atenção para causas. Em vez dis-

so, o sofrimento é mostrado como parte subjacente de um teatro de benfeitoria. Boltanski usa

como exemplo uma foto, publicada no livro The power of photography, de Vicky Goldberg,

Page 53: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

43

em que se vê uma missionária que, trabalhando como enfermeira, atende a uma criança africana

doente. Neste modelo, o terceiro não é culpado, mas, ao mesmo tempo, também não é alguém

que intervenha no sofrimento senão de forma pontual. Da maneira como é apresentada, essa tó-

pica torna invisível a causa (e, principalmente, a necessidade/possibilidade de transformação).

A terceira tópica é a chamada tópica estética. Nela, o sofrimento não tem nem um cul-

pado nem um benfeitor, ela é redentora. “Ela consiste em considerar o sofrimento do infeliz

não como injusto (para se indignar); nem como tocante (para se enternecer), mas como subli-

me”, diz Boltanski (p. 168. Grifos dele). Não é preciso andar muito para concluir que esta

tópica pressupõe a sublimação justamente da ação diante do sofrimento.

Essa economia da racionalidade decalca-se em uma economia dos sofrimentos, como dois

mercados paralelos. Os sofredores exibem suas chagas, uma parcela da intelligentzia as inter-

preta e as reexibe − através de uma das três tópicas − e a opinião pública a elas reage. Mas é

preciso lembrar que, ao falarmos de intelectuais, não nos referimos apenas a quem prospecta o

conhecimento de sua penumbra caótica. Gramsci (1978) mesmo observa que o jornalista cerra

fileiras com a academia na formação de uma classe social dos intelectuais. Os acadêmicos pro-

duzem o conhecimento com suas regras de disciplina e seus limites de sistemas de pensamento,

ditando metodologicamente o que se pode fazer, dizer, pensar; os jornalistas produzem o conhe-

cimento para fora deste campo de disciplina, traduzindo em linguagem corrente, de opinião

pública, o conhecimento encerrado no hermetismo das descobertas da academia. O jornal ga-

nha, então, um papel central nesta economia de dois mercados paralelos: é ele que, pela produ-

ção de um conhecimento generalizante (porque unificado) sobre o sofrimento e sobre aquilo que

deve ser alvo da atuação política dentro da ordem social, permite a reação ao sofrimento, mola

da transformação do mundo para a modernidade. E essa transformação depende, então, desses

dois sistemas de interpretação/exibição e a política passa a ser uma política de visão.

Page 54: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

44

Quero voltar agora ao modelo de justificação proposto por Boltanski e Thévenot e che-

gar ao uso do modelo de cidades feito por Boltanski e Chiapello para falar das transformações

do espírito do capitalismo. Já apresentei o argumento deles (p. 580) de que o capitalismo exi-

ge uma justificação fora de si porque é considerado “absurdo”: “As pessoas não podem ser

levadas e mantidas no trabalho à força”. Pois para eles, a forma utilizada pelo capitalismo

para essa justificação é a da incorporação da crítica. Por isso, eles chamam a atenção para o

enfraquecimento da crítica diante da conformação do capitalismo correspondente a um novo

espírito, marcado pela produção de uma outra forma de cidade e cujo modelo é o da rede. Para

Boltanski e Chiapello, a “cidade formada por projetos” é o modelo de ordem social e a rede é,

ao contrário de como aparece para boa parte dos autores da atualidade como para Castells

(2000), por exemplo, uma fotografia. A rede em geral é o fluxo, a rede em Boltanski e Chia-

pello é a forma parada, um agrupamento temporário, de um sistema de constantes modifica-

ções. O capitalismo depende de um sistema de transformação e a mola dessas transformações

é o choque entre o capitalismo vigente e a crítica, ou seja, as exigências de prova de bem co-

mum diante dos fatos dados na ordem. A crítica é, então, não só um mal necessário para o

novo do capitalismo, mas, mais que isso, aquilo que o torna possível.

Boltanski e Chiapello falam em quatro diferentes fontes de indignação a produzirem

críticas diante do capitalismo: a) uma demanda por liberdade; b) uma rejeição à falta de

autenticidade; c) uma recusa do egoísmo; c) uma resposta ao sofrimento. As duas primeiras

formas de indignação, eles associam a um tipo de crítica, que chamam “artística”. De fato, é

mais em uma estética do sistema que se fala ao tocar nelas duas. Trata-se, como apresentei

anteriormente, da crítica ligada à problemática da liberdade, sobretudo à problemática da

liberdade individual. Entendo que o motivo mais forte para chamá-la “artística” é o fato de

que sua reivindicação está ligada à afirmação da singularidade.

Page 55: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

45

As duas outras são associadas à outra forma de crítica, a “social”, interessada na transfor-

mação do sistema. O novo espírito do capitalismo, entretanto, acaba por incorporar em seus pro-

cessos de justificação a própria crítica artística (o que é visível no trabalho de Boltanski e Chia-

pello, quando eles analisam o discurso gerencial que chama a atenção para liberação e criativida-

de dos executivos), produzindo este capitalismo mais fluido, de rede, de individualidades etc.

Não é difícil, então, enxergar que as duas formas de crítica estão associadas aos dois

problemas mestres da modernidade: a crítica artística, como mostrei há pouco, ao da li-

berdade (individual) e a social ao da igualdade. Também é bem fácil enxergar uma associ-

ação entre as formas de indignação listadas por eles e a problemática do sofrimento e, em

conseqüência, da política de piedade. Outra operação bastante “natural” parece ser a de

associar as formas de indignação às tópicas do sofrimento, as da crítica social à tópica de

denúncia e as da crítica artística às tópicas da emoção e da estética. Pois parece que se

trata de um problema de mobilização proveniente da indignação diante do sofrimento.

Assumir uma postura crítica e orientar essa postura para o problema da igualdade − exibir

segundo a tópica de denúncia e assumir uma crítica social − é a postura que para o cínico

é uma ingenuidade e que, por isso, deve ser ironizada. É a postura de política moderna por

excelência, aquela que nos cerceou a liberdade individual(ista), e, então, como tal, deve

ser interditada. E interditada nos argumentos, através de sua ridicularização.

Um dado digno de nota nessa prática do cinismo é que parece se tratar de um posicio-

namento especificamente individual, mais que isso, individualista, de foro até mesmo privado.

A descrição de Boltanski e Chiapello, entretanto, permite enxergar que se trata de um sistema

de produção de grandes contingentes de individualismo, em vários campos da cultura. Ora,

uma vez que o capitalismo demanda um comportamento individualista de seus quadros, não é

difícil imaginar que se torna factível a aparente contradição que seria um movimento coletivo

Page 56: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

46

se tornar individualista e, no limite, carregado de uma forma cínica de ver sua própria ação

tradicional, afinal, ele pode ser envolvido por uma cultura cínica, por uma ordem cínica1. Sob

esse ponto de vista, um movimento coletivo pode se ver obrigado a assumir uma postura mais

realista, diante das cobranças da opinião pública para que se “modernize”, para que “evolua”.

O problema como o coloco, o do surgimento de uma alternativa cínica para o contexto

de desencanto com o conhecimento e, em conseqüência disso, com a política, pode ser enca-

rado, então, como um sistema de justificação/incorporação. Observada de perto, a ação cínica

é, como já disse, uma argumentação, uma desculpa, uma forma de desengajamento moral, de

licença para inação. O argumento cínico constitui uma forma de incorporação da crítica ao

capitalismo, no sentido de fornecer justificativas morais para integrantes do sistema que, ten-

tados pelo desejo de crítica, encontrem solo mais fértil e travesseiros mais confortáveis no

ajustamento. O cinismo funciona como uma espécie de entorpecente, sob ação do qual, o bem

comum do sistema é sempre e mais factível. É sem dúvida uma desculpa de negociação: não é

o estado de maior bem comum, mas seria o mais factível.

O que conduz a uma pergunta inevitável: a quem a justificação se dirige? A resposta

a essa pergunta se insinua o tempo todo ao longo do texto de Boltanski: não há mais uma

ágora na cidade. As instâncias de prova manifestam-se momento a momento, caso a caso,

localização a localização. O cínico parece deslocar essa esfera duplamente e fazer confun-

dir a opinião pública (um espaço de justificação essencial ao se falar de política na mo-

dernidade) e a esfera individual. Isso, sobretudo porque o cinismo aparece como um dis-

curso de crítica (aos que são ingênuos e praticam a crítica social à moda antiga). Parece

estar no processo mesmo de uma incorporação da crítica pelo discurso de justificação do

capitalismo contemporâneo a gênese desse cinismo. 1 Não se pode, entretanto, falar de “cidades cínicas” no sentido de Boltanski e Chiapello, o que corresponderia a falar em ordens sociais cínicas. Quando uso o termo “ordem”, estamos tentando dar conta de um sistema de ordenamento, de uma máquina de dispositivos críticos à disposição dos atores.

Page 57: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

47

Como mostrei na Introdução, o capitalismo se mobiliza − de forma descentralizada no

modelo conexionista − em uma operação de atração e de convencimento, de produção de anu-

ência para incorporar as críticas. A uma determinada parcela da classe trabalhadora (classe que

se tornou o cerne da luta política e da crença na libertação pelo conhecimento e na transforma-

ção do mundo pela crítica social na política moderna) é justificado seu engajamento no sistema.

A retórica produzida para isso na atualidade, é, como já mostrei, a de uma produção de uma

dualidade outra, diferente da do mundo da luta de classes, que opunha capital e classe trabalha-

dora. A oposição passa a ser a entre incluídos (capital e classe trabalhadora) e excluídos, aqueles

que estão fora do sistema. Uma das operações mais poderosas de incorporação da crítica pelo

espírito conexionista do capitalismo é essa criação do conceito de exclusão. Ele não surgiu ape-

nas para dar conta de uma categoria que não era contemplada no discurso da política ou das

ciências sociais. Surge por oposição e em substituição ao conceito mesmo de exploração. A

operação de luta da classe trabalhadora se tornou um processo de denúncia da exploração (com

todas as mais-valias absolutas e relativas do marxismo). A polarização entre grandes e pequenos

da ordem social era feita entre capital explorador e trabalho explorado. Os procedimentos de

prova buscavam demonstrar que essa condição, constantemente atacada pelas críticas produzi-

das pelas quatro formas de indignação apresentadas por Boltanski e Chiapello, representava

maior bem comum do que uma situação diferente. A incorporação da crítica artística parece ter

produzido, sobretudo, uma paralisia na crítica social. A categoria da exploração deixa de ser

usada não apenas porque ficou démodé, mas principalmente porque foi possível fazer outro de-

senho de justificação. A começar por se deslocar o eixo do processo dessa justificação da ins-

tância coletiva para a individual. Com isso, é preciso constatar, a crítica social não ficou apenas

paralisada, mas também pôde ser incorporada pelo discurso de justificação do capitalismo, co-

mo lembram justamente Boltanski e Chiapello (p. 425):

Page 58: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

48

A crítica social é a mais diretamente afetada pelo enfraquecimento do modelo de clas-ses sociais na medida em que ela repousou, por mais de um século, sobre a colocação em evidência de desigualdades de todos os tipos entre classes de indivíduos e se esfor-çou para promover uma partilha eqüitativa de prejuízos e lucros associados à participa-ção desses diferentes grupos nos mesmos processos produtivos. A negação de existên-cia de classes diferentes, (...) e a centralização das análises sobre uma categoria, a dos “excluídos”, definida precisamente por sua não participação no processo produtivo, in-validaram quase automaticamente o discurso da crítica social tradicional.

Isso deu fôlego a uma nova parcela da classe trabalhadora, que se enxerga “salva” do

processo de exclusão, e, por garantia dessa condição segura, contribui alegremente para a ma-

nutenção do sistema capitalista, aquele que já foi constatado como inevitável e o único luci-

damente aceitável. Não há culpados no sistema, há apenas uma inevitabilidade.

O emprego, em um contexto de oferta, era um dado que podia ser discutido como produtor

de sofrimento − uma vez que impunha a exploração. Em um contexto de falta, passa a ser ofereci-

do como tábua de salvação. O desempregado e, em extensão, o excluído, é colocado como o novo

pólo de dicotomia da ordem social. O trabalhador, sobretudo um grupo dele mais bem (ou menos

mal) remunerado que outros é o próprio sujeito da justificação. É ele quem passará a utilizar e

exercitar o próprio discurso que justifique a manutenção da cidade através da demonstração do

quão estapafúrdia é a cidade alternativa oriunda da crítica. Sustento que grande parte desse discur-

so, e boa parte dele na forma coletivizada, começa a ser moldado pela justificativa cínica.

Robert Castel (p. 41), entretanto, ao fazer sua monumental “crônica do salário”, lembra

que “integrados, vulneráveis e desfiliados pertencem a um mesmo conjunto, mas cuja unidade

é problemática. As condições de constituição e de manutenção dessa unidade é que devem ser

interrogadas”. Com isso, ele quer dizer que os excluídos fazem parte da ordem, mais que isso,

para além de uma leitura que considere essa perspectiva apenas como uma tintura ideológica,

ele quer dizer que faz parte do processo de manutenção da ordem que haja “desfiliados”. E é

disso que se trata. Fazer uma história desse processo é, creio, fazer uma história do cinismo na

atualidade. Trata-se de uma operação retórica, de uma operação de adestramento das instân-

Page 59: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

49

cias críticas para produzir um discurso de pouca ameaça. Até a crítica social, a que não admi-

tia o egoísmo e daria uma pronta resposta ao sofrimento, só pode produzir enunciados se esti-

ver dentro das regras de enunciação da cidade ajustada.

Em um contexto como este, uma instância socialmente aceita como crítica, como o

movimento sindical, torna-se mecânica, um sistema operacional de produção de discurso

(apenas) esteticamente crítico, mas não desejoso de, com isso, transformar o mundo. So-

bretudo porque, como categoria, os trabalhadores se transformaram em incluídos, lutam

para não se tornarem excluídos e zelam por suas posições a salvo. No Capítulo 3, mostra-

rei como não é difícil enxergar em algumas posturas coletivas do movimento sindical,

alguns traços do individualismo cínico. A começar por uma autodeclaração de não-

inocência. O cínico não é ingênuo. Parece que paira sobre toda a classe trabalhadora, sal-

vo em casos pontuais, uma certa consciência da inevitabilidade da condição atual. O so-

frimento parece estar deixando de ser um problema do trabalhador.

A justificação se dá em um teatro e, Boltanski ajuda a concluir, é justamente neste te-

atro de sofrimento que se constituiu outrora na crítica social. A observação da desventura −

por exemplo, a do excluído −, aliás, parece ser chave para se entender o cinismo. O cínico

é capaz de ser indiferente ao sofrimento alheio e de justificar essa indiferença com o argu-

mento de que nenhuma ação da parte dele surtirá efeito sobre o sofrimento de longo prazo

do sofredor. Trata-se de uma operação moral complexa, mas que parece surtir efeito. O

cínico está plenamente ajustado à ordem e a pergunta que clama por ser feita na atualidade

é onde ele está e se estará ou não ele dentro de nós mesmos.

Page 60: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

50

1.3 − O OCASO DA UTOPIA BRASILEIRA

Como já disse, só faz sentido uma reflexão a respeito do cinismo conforme aqui apre-

sentado em uma sociedade em que faz sentido a indignação. Não se trata de naturalizar a in-

dignação como um processo obrigatório. O que se pode dizer, entretanto, é que ela é, sem

dúvida, um dado da cultura brasileira, em que a desigualdade continua a ser uma ferida aberta.

Assim, ainda faz diferença para a ordem moral do Brasil uma preocupação com o sofrimento

coletivo e com o problema da igualdade. Em um contexto como este, o cinismo se coloca co-

mo uma afirmação de que a não indignação diante da desigualdade tem razão de ser e que

merece ser desculpada. O cínico brasileiro sabe que a ordem moral em torno dele exige indig-

nação, mas “sabe” que se indignar de nada adianta. Logo, escusa-se com os indignados (in-

dignados inclusive com sua não indignação), ou seja, com a opinião pública em torno dele,

que o tempo todo reapresenta a constituição moral da ordem social.

Ora, o Brasil é um enigma diante dos dois modelos de sociedade descritos um por Bol-

tanski e Thévenot outro por Boltanski. O modelo da ordem social brasileira é um híbrido. As

constatações de Raymundo Faoro (1998) e Sérgio Buarque de Holanda (1997) − perpassadas

por um olhar weberiano − sobre um Estado patrimonialista fornecem uma forte pista para

entender esse quadro. Faoro (p. 822), por exemplo:

A realidade história brasileira demonstrou (...) a persistência secular da estrutura pa-trimonial, resistindo galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressi-va, da experiência capitalista. Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as em-presas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar.

E depois (p. 823), lembrando a transição do patrimonialismo, nascido da monarquia e da

aristocracia rural, ao Estado racional, completa:

Page 61: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

51

O caminho burocrático do estamento, em passos entremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O pa-trimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercanti-lismo como a técnica de operação da economia.

Todo esse movimento pode ser lido como o percurso de criação de um modelo misto, em

que se tenta criar uma estrutura burocrática de justiça, mas com uma sociedade, e uma esfera

pública, de piedade. Mas não se trata de associar ao modelo patrimonialista a política de pieda-

de e nem espelhá-los um no outro. Claro, são dois sistemas diferentes, que, curiosamente juntos,

no Brasil, encontraram solo fértil para cruzar justiça e piedade e com isso criar uma sociedade

dotada de fortes contradições. País de cultura católica, com uma ordem moral perpassada pela

idéia de caridade, o Brasil não parece ser um mistério como país em que uma política de pieda-

de se torna parte da ordem. No Brasil, assim como na Europa, descrita por Boltanski, a implan-

tação dessa política passa, cultural e mecanisticamente, pela passagem da operação da caridade

religiosa para o plano laico. Ao mesmo tempo, entretanto, como constatou Faoro, a implantação

de um sistema de formato capitalista eficiente (embora não com um espírito como tal) e, com

ele, uma burocracia (no sentido weberiano) funcional baseada numa lógica de meritocracia ce-

ga. O discurso no Brasil tem sido o da “justiça social” desde que se constituiu como república.

Entretanto, com a outra mão, a mesma ordem quer conservar um modelo de igualdade calcado

no sofrimento e na produção de uma piedade coletiva diante dele. É em grande parte por conta

da esquizofrenia desse modelo que o problema da desigualdade ainda faz sentido no Brasil.

Boltanski (p. 18) afirma que, sob o ponto de vista de uma política de piedade, “é somente em

um mundo do qual o sofrimento já foi banido que a justiça poderia fazer valer seus direitos”.

Não se trata de uma historiografia apenas retórica. Trata-se do estatuto da indignação brasileira.

A história do Brasil é uma história de impedimento da igualdade e isso paira sangüineamente

sobre nossa história, afirmando o nosso “não-ser-nação” (D’Amaral, 2004), a nossa impossibi-

lidade de ser um, de ser iguais por completo.

Page 62: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

52

Não cabe aqui ampliar essa historiografia das bases da formação dessa contradição bra-

sileira. É uma história que Buarque, Faoro e outros já fizeram muito bem. O que interessa

aqui é uma história mais recente, a do desencanto brasileiro com as possibilidades desse mo-

delo como condutor dos atores à felicidade, a história do ocaso da utopia brasileira.

Gostaria muito de dizer, a esta altura, a título de efeito literário, que o brasileiro, no fun-

do, no fundo, sempre foi um pouco cínico. Afinal, sempre fomos bem humorados e sempre

rimos de nossas desgraças e de nossas impossibilidades. A reação a isso seria esteticamente

singular. Mas não quero cometer injustiça e nem faltar com piedade. O bom humor nominal

brasileiro está mais ligado a uma capacidade de rir do sofrimento do que de rir da luta contra

ele. A indignação diante do semelhante que sofre tem sido uma mola habitual da política bra-

sileira, seja em sua dimensão mais historicamente transformadora seja em sua dimensão mais

retórica (mãe do populismo que nos é tão conhecido).

Por isso mesmo, é muito fácil enxergar a grande ruptura dada no Brasil ao longo dos

anos 80 e 90, ruptura de um paradigma de visão de mundo a respeito do país. O fim do regime

militar abriu as portas para uma grande revisão filosófica da sociedade brasileira. Paralisada

em sua dimensão transformadora ao longo de todo o regime exceção, a politização brasileira

guardou dentro de si um grande grito de esperança e liberdade. Para todos os efeitos, o Brasil,

de 1964 a 1985, esperou (como já havia esperado em alguns momentos ao longo do século

XX). É como se o país tivesse ficado parado, estagnado, no compasso da espera de um mo-

mento de virada. Ao longo desse período, salvo para as camadas mais conservadoras da soci-

edade (e ainda assim para uma parte delas), a grande utopia era a da redemocratização, ou

seja, o direito à manifestação política, a entrega às mãos da própria sociedade da esfera de

tomada de decisões a respeito de seu destino e da busca pela solução de seus próprios proble-

mas (claro, através de um sistema de representação eleita).

Page 63: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

53

Pois essa utopia sofreu seu grande golpe com quatro grandes feridas narcíseas impingi-

das à sociedade. Forjada ao longo de um século XX marcado pela construção da república

brasileira por uma elite isolada da população, por revoltas de grupos militares distanciados da

população, por um “reinado” populista − a chamada “Era Vargas”, de 1930 a 1945 −, por uma

política de alinhamento com os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial e por uma

ditadura militar que durou duas décadas, a idéia de que o Brasil poderia se tornar uma grande

nação, tanto econômica quanto socialmente, chega ao século XXI com força apenas de anedo-

ta para muitos analistas e, os jornais nos informam, para o cidadão comum.

Quero chamar a atenção para os quatro momentos que essas feridas narcíseas da utopia

brasileira. Esse ocaso veio rapidamente, muito mais rapidamente que se pode construí-la.

1) O fracasso do Plano Cruzado, em 1986. Era o momento de auge da esperança do

país nas possibilidades de futuro. Apesar de a campanha pelas eleições diretas2, realizada

entre novembro de 1983 e abril de 1984, não ter dado certo, a vitória do candidato do

PMDB, Tancredo Neves, nas eleições no Colégio Eleitoral de janeiro de 1985, havia aber-

to ao país a primeira possibilidade de mudança em décadas: o partido da oposição (ainda

que dá oposição mansa e possível) iria presidir o país e um governante civil finalmente

tomaria as rédeas do destino do país. Na véspera da posse, entretanto, Tancredo foi inter-

nado com um problema intestinal grave. Em seu lugar, assumiu seu vice, José Sarney (i-

ronicamente, ex-presidente do partido de situação, o PDS, ligado à ditadura). Tancredo

faleceria em 21 de abril3. Sarney assumiu em definitivo o poder um dia depois. Ele se tor-

nava, então, o primeiro presidente civil do país desde 1964 e sobre ele as esperanças do

2 Pode-se argumentar que o fracasso da campanha das diretas devesse ocupar o lugar de primeiro marco. Mas me parece claro que aquela derrota do desejo de escolher o governante do país foi, na verdade, mais uma injeção de ânimo no ímpeto de lutar do que uma derrota propriamente dita. 3 Muita polêmica se formou na época a respeito da data da morte, cujo anúncio teria sido protelado para que coincidisse com o dia que marca a morte de Tiradentes e, assim, dar tom heróico ao falecimento do primeiro presidente civil do país desde 1964. À época, inclusive, surgiu o boato de que Tancredo fora assassinado, mas tal hipótese não foi levada a sério e nunca foi investigada.

Page 64: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

54

país foram depositadas. Esperanças que não estavam apenas nas amplas possibilidades de

se constituir o Brasil como um Estado de direito e bem-estar abertas pela promessa de

que, no ano seguinte, seria eleito, por voto direto, um Congresso Nacional que seria con-

vertido em Assembléia Nacional Constituinte, mas, também (e talvez sobretudo) na gestão

da economia sem a mão de ferro do regime militar, a fim de produzir um capitalismo mais

igualitário. Mas a despeito de toda a esperança, o primeiro ano do governo Sarney foi

marcado por uma forte crise econômica (que continuava outra, iniciada já no governo mi-

litar, particularmente a crise de 1983), com uma inflação que passou os 220%. Com uma

forte demanda por uma solução para o problema, o ministro da Fazenda, Dílson Funaro,

anunciou, em 1o de março de 1986, o Plano Cruzado, o primeiro grande plano econômico

pós-ditadura a se propor a transformar a economia brasileira.

O plano trazia duas faces muito visíveis. A primeira era a criação de uma nova moe-

da, que substituiria o cruzeiro: o cruzado, que nascia com o corte de três zeros da unidade

monetária. A outra era o congelamento por um ano de preços e salários (estes, pelo valor

médio dos últimos seis meses acrescido de um abono de 8%). O país foi tomado por um

forte clima de euforia, traduzido pelo voto de confiança que a população depositou no

plano, o que ficou demonstrado pela participação sem precedentes do cidadão comum na

manutenção do congelamento. Do dia para a noite, milhões de “fiscais do Sarney” esta-

vam nos supermercados, tabelas nas mãos, verificando o cumprimento dos preços permiti-

dos. Quatro meses depois, entretanto, a euforia começou a dar lugar a um pragmatismo

inevitável: mercadorias começaram a desaparecer das prateleiras e o comércio começou a

praticar ágio sobre os valores de troca. Um dos casos mais radicais foi o da carne de boi.

Os fazendeiros começaram a estocar “bois em pé”, para aguardar que o preço subisse.

Carne, nos supermercados, apenas com ágio.

Page 65: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

55

Mas o golpe de fato veio apenas em novembro daquele ano. Mesmo com alguns pro-

blemas econômicos, as eleições deram aos partidos ligados ao presidente Sarney uma es-

magadora vitória, tanto em termo de conquista de governos estaduais quanto de vagas para

o parlamento. Em 21 de novembro, entretanto, o brasileiro recebeu o Plano Cruzado II,

uma série de medidas que liberava os preços de produtos e serviços, autorizava que os

aluguéis fossem negociados livremente entre inquilinos e proprietários e alterava o cálculo

da inflação, que passou a ser medida com base nos gastos das famílias com renda até cin-

co salários mínimos. O plano aumentou os impostos de cigarros e bebidas. Houve grande

declínio das exportações e aumento considerável de importações, esgotando as reservas

cambiais. A inflação disparou, e a população perdeu a confiança no governo. Cinco meses

após a edição do Cruzado II, o ministro Dílson Funaro foi substituído por Luis Carlos

Bresser Pereira, ironicamente às vésperas do Primeiro de Maio. Começaria ali uma série

de edições de planos econômicos, cada um batizado de forma mais pitoresca (Plano Bres-

ser, Plano Verão etc) e cada um com a promessa de que finalmente, a casa seria arrumada.

Mas o passo estava dado e não havia mais como voltar atrás: o Brasil entendeu que libera-

ção política não significava necessariamente sucesso econômico. Ou seja: a utopia demo-

crática não encerrava e muito menos abarcava em si “a” utopia brasileira. O problema da

desigualdade persistia e não havia sido a política que o resolvera. O presidente civil não

dera conta da inflação. De alguma forma, apesar da crise econômica de 1983, para o cida-

dão comum, o regime militar havia gerido a economia de maneira mais competente.

Apesar dessa ferida, entretanto, alguma esperança na esfera política brasileira se mante-

ve, sobretudo graças ao processo de elaboração da nova constituição, a partir de 15 de no-

vembro de 1986. A carta, apelidada “Constituição Cidadã”, graças a sua abertura para receber

emendas populares e a sua aproximação dos interesses de várias camadas da sociedade, inje-

Page 66: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

56

tou novo ânimo na participação popular no poder. Era uma nova constituição para um novo

país, ressurgido das cinzas do regime militar. A nova carta previa o fortalecimento de todas as

liberdades individuais cerceadas pela ditadura e a ampliação da esfera coletiva do país.

Mas um novo golpe estava por vir.

2) O seqüestro dos cruzados no governo Collor, 1990. Terminado o governo Sarney e a

transição democrática, o Brasil estava pronto para a coroação definitiva do fim do regime mi-

litar: a escolha do primeiro presidente eleito pelo voto direto no país desde 1964. Em 1989, as

eleições levaram ao poder Fernando Collor de Melo, então governador de Alagoas eleito pelo

PMDB, mas candidato a presidente por um partido novo, praticamente criado para as eleições

presidenciais, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN). A vitória, decidida no segundo tur-

no contra Luiz Inácio da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi a demonstração de que

o Brasil começava a se decepcionar com a política tradicional: o eleitor votava na pessoa,

mas, mais que isso, votava não no PDS, não mais no PMDB, não ainda no PSDB, PFL ou PT,

de jeito nenhum no PDT. Nada aos partidos tradicionais (ou aos à esquerda demais). Em vez

disso, votou em um presidente jovem e de um partido inexpressivo (o que significava que ele

era, aos olhos do eleitor, mais “puro”, “inocente” da política). O Brasil foi tomado de assalto

pelo neopopulismo de Collor, pintado com as cores de uma campanha contra a corrupção no

governo de Alagoas (campanha em que se cunhou o termo “marajá” para designar os funcio-

nários públicos que recebiam altos salários e que fez do governador um atlético cruzado em

seu encalço). Em 15 de março de 1990, Collor tomou posse. Foi um evento de pompa e cir-

cunstância, com direito ao presidente responder a perguntas em francês na entrevista coletiva

dada às imprensas nacional e internacional logo após a posse, numa demonstração de domínio

e correção do novo governante. Naquele dia, o país, salvo no caso dos mais céticos (ou escla-

recidos), foi dormir com uma sensação de segurança.

Page 67: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

57

Na manhã seguinte, entretanto, mais uma a tomada de assalto: a equipe econômica a-

nunciava seu plano para as finanças do país. No centro do projeto, uma medida inacreditável:

todos os cruzados novos (moeda criada com o corte de três zeros do cruzado, na gestão do

ministro Maílson da Nóbrega, o terceiro de Sarney) seriam convertidos em cruzeiros (sem

nenhum corte de zeros) e todos os depósitos bancários superiores a Cr$ 50 mil seriam retira-

dos do poder de seus titulares e guardados, nas mãos do Banco Central, por um período de 18

meses (com um rendimento de correção monetária, mais juros de 6% ao ano). O plano previa

ainda um aumento de salários em reposição à inflação do mês de fevereiro de 1990, congela-

mento de preços e reajustes trimestrais do salário mínimo. Mas nenhum outro detalhe conse-

guiu tirar as luzes da notícia sem precedentes que o país recebia. Nem mesmo os empréstimos

compulsórios do governo Sarney chocaram o país tanto quanto o que ficou conhecido como

“confisco dos cruzados novos”. O episódio representou o mais profundo abalo na credibilida-

de da esfera política diante do cidadão que a história republicana brasileiro já viveu.

O pacote de medidas econômicas de Collor seguiu uma postura de alinhamento ao

chamado Consenso de Washington, conjunto de “propostas” de reformas para os países da

América Latina imaginadas por comissões do governo americano, do Fundo Monetário

Internacional, do Banco Mundial e de outros organismos internacionais, divulgadas em

novembro 1989 pelo International Institute for Economy. As medidas, claro, visavam à

retomada do crescimento econômico, a partir da centralização das políticas do país em

reformas liberalizantes. A idéia central é a de “Estado mínimo”, com presença mínima de

um centro nas tomadas de decisão econômicas. Por isso mesmo, propunha privatização de

empresas estatais e abertura do país ao capital estrangeiro. Também previa alterações pro-

fundas nas legislações trabalhistas, abrindo espaço para a livre negociação e flexibilizando

direitos de empregados. Outra medida do governo Collor foi igualmente primordial para a

Page 68: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

58

mudança de comportamento da classe trabalhadora brasileira: o fim do protecionismo para

todas as áreas da economia. A abertura comercial do país foi um dos cavalos de batalha do

novo presidente. Ficou notória a afirmação de Collor de que o automóvel produzido no

Brasil era “uma carroça”. Pois seu governo abriu totalmente o país para importações de

automóveis e outros bens, com o argumento de que a indústria brasileira era acomodada e

que, com a competição, seria forçada a ser mais competitiva.

Os efeitos sobre a indústria nacional são óbvios: pega de surpresa, sofreu um forte aba-

lo. Entretanto, mais sutil, mas mais profundo, foi o efeito das medidas sobre a classe trabalha-

dora, sobretudo sobre a organizada. Em um primeiro momento, por conta da mudança clara

ocorrida no quadro industrial brasileiro. Como sublinha Carvalho Neto (2001, p. 47), por con-

ta da influência do Consenso de Washington, “muitos países em desenvolvimento na América

Latina abriram suas economias quando essas ainda não eram competitivas internacionalmente,

o que produziu muitas falências de empresas, enormes perdas de postos de trabalho e agrava-

mento na distribuição de renda”. Ele dá como exemplos, no caso brasileiro, dos setores têxtil

e coureiro, que simplesmente foram liquidados em algumas regiões.

Mas a grande conseqüência daquela reforma específica foi a de alteração na cultura

das relações de trabalho. Até porque o processo iniciado no governo Collor que, ainda se-

gundo Carvalho Neto (p. 46), “representou o choque dessa ‘modernidade’ neoliberal radical

no Brasil”4, foi seguido pelos governos subseqüentes, os de Itamar Franco e Fernando Hen-

rique Cardoso. A mudança cultural apontada pelo autor é o da substituição do Estado de

bem-estar por um “Estado concorrencial distorcido”:

Com o avanço do ideário liberal, ganhou força a tese do profit squeeze (compressão de lucros), que atribui a queda de lucratividade, no investimento, na competitividade e a capacidade do setor privado em gerar empregos ao aumento dos encargos fiscais e direitos sociais consagrados pelo Welfare State. Essa versão atualizada da tese con-

4 Grifo dele.

Page 69: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

59

servadora dos anos 60 sobre a ingovernabilidade capitalista, provocada pelo “exces-so” de demandas políticas e direitos sociais, passa a ser defendida também por boa parte dos governos social-democratas europeus.

No Brasil, esse conjunto de mudanças começou a representar uma forte tendência a

um maior pragmatismo da parte da classe trabalhadora organizada, que começou a incorpo-

rar em grande medida o discurso social-democrata. No Capítulo 3, mostrarei como a des-

culpa de que é mais lúcido lutar por ganhos pontuais do que por uma transformação do sis-

tema aparece cada vez mais a partir deste momento. O importante, por enquanto, é ter em

mente que esse resultado é parte de um processo de “pós-modernização” da América Latina

e, mais especificamente, no caso desta análise, do Brasil. Claro, por pós-modernização, en-

tendo uma passagem de um contexto de uma relação com o futuro para outro. O Brasil se

torna rapidamente um país de regido por uma visão conexionista de capital e centrado na

privatização dos destinos e na emancipação. É em um contexto como esse que a descrença

com a política desenha-se como um argumento cotidiano e o procedimento discursivo de

ridicularização da política torna-se cada vez mais sério. Nos termos de Jacoby (2001): “Nos

bons tempos, os esquerdistas e radicais falavam de libertação do trabalho ou de sua aboli-

ção. Hoje, fala-se de pleno emprego e recapacitação da força de trabalho”.

3) O impeachment de Collor, em 1992/1993. A imagem construída de Fernando Collor

de Melo antes das eleições − sobretudo em grandes reportagens na imprensa − foi, como aca-

bo de mostrar, a do “caçador de marajás”, a do cruzado contra a corrupção. Pois bem, o ano

de 1991 fez com que a memória do brasileiro se transformasse em uma operação de ironia

sem precedentes. Denúncias contra o tesoureiro da campanha presidencial, Paulo César Ca-

valcante Farias, o “PC Farias”, começaram a aparecer aqui e ali. Ele teria criado um mega-

esquema de superfaturamentos e propinas em gastos governamentais. Surgiram afirmações de

que Collor não tinha como não saber do que PC fazia e de que ele dava cobertura ao crime.

Page 70: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

60

Pois em 9 de maio de 1992, a revista Veja começou a publicar, em reportagem de

capa, um dossiê preparado pelo irmão do presidente, Pedro Collor, a respeito das empre-

sas de Paulo César Farias no exterior. A repercussão da matéria foi grande, mas não che-

gou aos pés da obtida pela edição de 23 de maio da mesma revista, que publicou a foto do

irmão do presidente na capa, sob o título “Pedro Collor conta tudo”. Na matéria, ele dizia

à revista que PC Farias era testa de ferro de Collor, o verdadeiro líder do esquema, que

repartiria um bolo corrupto na proporção de 70% para ele e 30% para o auxiliar. Três dias

depois, criava-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as denúncias.

Veja ainda publicaria outras matérias que complicariam a história de Collor. A revista

Isto é e os jornais O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil também. Em 16 de agosto,

um domingo, manifestantes saem às ruas em todo o país vestidos de preto ou ostentando

tarjas ou bandeiras negras, pedindo a cassação de Collor. Em 29 de setembro, a Câmara

autorizava o Senado a abrir um processo contra Collor por crime de responsabilidade e em

29 de dezembro, Collor renunciou à presidência. Ainda assim, o Senado, no dia 30, con-

denou Collor e lhe impingiu o impedimento de exercer cargo público por oito anos. Em 16

de dezembro de 1993 o Superior Tribunal de Justiça confirmaram a decisão do Senado.

PC Farias havia fugido para a Argentina no começo da crise e só seria capturado nova-

mente em dezembro de 1993, na Tailândia. Condenado a quatro anos de prisão e posto em

liberdade condicional em 1995, morreu assassinado em 23 de junho de 1996 em sua casa,

em Alagoas, em um crime até hoje não esclarecido. Collor cumpriu sem período de qua-

rentena política e já retornou ao mundo eleitoral.

Esse é, na verdade, um episódio ambíguo. Se por um lado mostrou forte crédito das ins-

tituições democráticas brasileiras − então ainda em gatinhas depois da ditadura − que se mos-

traram capazes de julgar até mesmo o presidente, por outro, mostrou o quão sem ética pode

Page 71: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

61

ser a política, o que chamou atenção justamente para a fraqueza das mesmas instituições de-

mocráticas. De certa forma, a esfera política brasileira saiu muito mais ridícula do caso − so-

bretudo por seu desenrolar final − e o cinismo brasileiro saiu dele muito mais sólido.

4) A reeleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1998. Depois do primeiro mandato

como presidente (entre 1994 e 1998), Fernando Henrique Cardoso chegou às eleições virtual-

mente sem oponente. Luiz Inácio da Silva representava uma oposição impotente diante do su-

cesso que o Plano Real fizera. Mas o dado mais importante sobre aquela eleição é sem dúvida a

maneira como os dois candidatos foram apresentados pela campanha de FHC (portanto, a cam-

panha vencedora): a oposição estabelecida foi não entre esquerda e direita ou entre oposição e

situação, mas entre política e técnica, melhor entre a incerteza da gestão política (e, nesse senti-

do, transformadora) representada por Lula e a aparente segurança da gestão de competência (e,

nesse sentido, conservadora) representada por Cardoso. Ao longo da campanha, o Brasil, que

era governado por Fernando Henrique, não estava bem, vivíamos uma crise cambial forte, ori-

unda das crises da Rússia e do México. Mas ainda assim, valeu como argumento em favor do

candidato-presidente: diante de uma crise iminente, apenas a competência provada poderia nos

salvar. Qualquer mudança poderia ser arriscada (AGUIAR; WERNECK, 1999).

Pois a vitória de FHC naquela eleição é muito importante para esta análise. Representou

o maior choque de pragmatismo político da história eleitoral brasileira. Pareceu seguir a risca

a observação de Peter Sloterdijk (1999, p. 9) a respeito da política contemporânea:

A famosa sentença de Bismark, segundo a qual a política é a arte do possível, con-tém uma advertência contra o ataque ao Estado por crianças grandes. Aos olhos do estadista, teriam permanecido crianças aqueles adultos que nunca estiveram em con-dições de aprender seriamente a diferença entre o politicamente possível e o impos-sível.A arte do possível é equivalente à capacidade de proteger o espaço da política contra exigências oriundas do impossível.

Page 72: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

62

Aquela eleição foi a prova de que a cultura política brasileira passou a poder ser lida como

um espaço de impureza, um atravancamento para o bem maior de uma sociedade e não um cam-

po para sua conquista. Mas não mudou o processo e sim o objetivo: é a liberdade individual para

o consumo. Para todos os efeitos, ali, naquela eleição, qualquer princípio político que pudesse

permear a votação deveria ser abandonado em nome de uma severa redução ao pragmatismo, a

um realismo irrestrito. Eleitores e políticos fundaram “sua imagem de mundo inteiramente sobre

o realismo” (SLOTERDIJK, 1987, p. 27). E não se tratava de se posicionar mais à direita ou à

esquerda. Não havia mais lados políticos na disputa. Outra ocorrência que parece cair como uma

luva em uma análise sobre o cinismo, desta vez uma de Bouveresse (p. 19):

Todo o mundo hoje em dia se dá conta, em maior ou menor medida, de que a esquerda não consegue mais se distinguir da direita contentando-se em reafirmar alguns grandes ideais herdados, no que têm de essencial, do racionalismo clássico. Ela tem que aceitar, queira ou não, dar lugar a concepções e a valores que não lhe é mais possível rejeitar com apenas a qualificação de “irracionais”, “obscurantistas” e de “reacionários”.

Pelo contrário, a valoração ética desses “xingamentos” vindos da esquerda caiu por terra

e serve apenas como uma marca de inocência e ingenuidade. No Brasil, esse discurso é cada

vez mais considerado uma cantilena sem sentido. Claro, o nosso país não é, embora tenha

suas peculiaridades como sistema híbrido, um campo isolado. Não se pode esquecer que o

país, como todos aqueles em que a esquerda participou de maneira relevante da esfera pública

ao longo do século, sofreu as conseqüências culturais da queda do muro de Berlim, em 1989,

e do fim da União Soviética, em 1991, ou seja, do processo de degeneração da política radical

ao longo da segunda metade do século XX. De maneira geral, então, o ocaso da utopia brasi-

leira é um caso particular da grande crise da esquerda no mundo, que iniciou seu processo de

desencantamento em fevereiro 1956, com a revelação dos crimes do stalinismo feita no dis-

curso de Nikita Krushev no 20o Congresso do Partido Comunista da União Soviética. A reve-

lação que o grande exemplo da implantação do socialismo no mundo havia cometido atroci-

Page 73: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

63

dades comparáveis ao nazismo caiu como uma grande sombra sobre socialistas e esquerdistas

de todo o mundo. “E o comunismo ainda sofreria outros golpes em meados dos anos 50: pro-

testos generalizados em Berlim Oriental, sublevações na Polônia e a invasão soviética da

Hungria para sufocar uma revolta”, lembra Jacoby (p. 16). E não ficaria naquela década. O

processo que culminou em 1989 e 1991 foi minando pouco a pouco a crença do mundo oci-

dental no radicalismo das transformações definitivas, ou seja, na idéia de revolução. No caso

do Brasil, suficientemente alinhado com os Estados Unidos e amedrontado com uma ditadura

(imagem imediatamente associada no país à União Soviética), esse desencanto tomou a forma

de uma domesticação cada vez mais forte da esquerda. É nesse sentido que se aplica ao Brasil

a observação de Boltanski e Chiapello segundo a qual a crítica social (aquela, associada ao

problema da igualdade e, portanto, à transformação da ordem) só pode se fazer como voz

quando operando dentro das regras discursivas do capitalismo.

Tenta-me, aqui, acrescentar um novo capítulo a essa história. Este capítulo, que deverá ser

reescrito com o passar do tempo e à medida que a história permita. Mas a veemência do analista

clama pelo debate. Para fazer uma análise dos primeiros meses do governo de Luiz Inácio da

Silva, César Benjamin (2003), fundador do Partido dos Trabalhadores, escreveu um artigo de

título poderoso e agressivo, mas muito sugestivo para este trabalho, “O triunfo da razão cínica”,

publicado na revista de esquerda Caros Amigos. Nele, o jornalista resolve usar o partido que

ajudou a construir e sua chegada ao poder (e seu comportamento nele) como índice do desen-

canto com a política no Brasil, mais que isso, como índice do uso do mecanismo descrito nesta

dissertação. Tomarei de um texto de opinião apenas um trecho pequeno, mas julgo-o suficiente

para mostrar não apenas seu argumento como também seu espírito:

A crise do PT é a mais profunda crise da esquerda brasileira. Para o bem e para o mal, foi o PT a vanguarda política da nossa esquerda nos últimos vinte anos, e dentro dele foi vanguarda a Articulação. Além de perseguir com coerência uma estratégia política e controlar com competência os principais aparatos de poder, ela propunha a toda a es-

Page 74: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

64

querda uma forma de luta estratégica, que, uma vez vitoriosa, seria capaz de abrir um período novo de ação política em nosso país: a eleição de Lula à presidência. Partici-pávamos de múltiplas iniciativas militantes no cotidiano, e a cada quatro anos renová-vamos nossa esperança em uma possibilidade especial, a de colocar Lula lá. Durou menos de um ano a transição de um auge a uma crise. Hoje, a Articulação tem um poder que a esquerda nunca teve, mas não é vanguarda de mais nada, nem para o bem nem para o mal. É, simplesmente, outra coisa: um grupo que ocupa posições de mando em um Estado corrompido e conservador, forte para premiar e punir, fraco para transformar. Adaptado a ele, usa essas posições para negociar tudo com todos. Falar de um “governo em disputa” era um erro há nove meses. Hoje é apenas cumplicidade com o charlatanismo.

Imediatamente depois, na edição eletrônica da mesma publicação, Benjamin escreveu ou-

tro, “Peço desculpas”, em que disse que o primeiro texto, “sob muitos aspectos, é equivocado e

injusto”5. Na edição posterior, entretanto, o analista retomaria as críticas, de uma forma, diga-

mos, “mais educada”, no artigo “Falarei de George W. Bush”. Já sem tantas papas na língua

também seria sua entrevista à Folha de S. Paulo em 28 de dezembro de 2003. Idas e vindas da

retórica de Benjamin à parte, o que fica de sua argumentação é a leitura de que a esquerda brasi-

leira, na figura do PT, para chegar ao poder, teve que se adaptar ao pragmatismo da atual social-

democracia européia e fazer concessões − para ele, grandes demais − a um certo realismo des-

politizante em suas políticas. Como disse acima, a comprovação desta tese ainda carece de pas-

sagem de tempo, de mais análise, mas vale a observação como um efeito de sentido provocado

pelo processo de que o Brasil foi campo e que apresentei acima. Por todos os cantos, ouve-se

sobre o governo Lula que ele surpreendeu ao mostrar a maturidade de não politizar o que era

técnico, por não apostar em transformação em áreas em que o “correto” seria a manutenção.

Não se trata tanto do PT, mas da esfera política: de um lado e de outro, conclui-se que a noção

de lado é que está em crise. De todos os lados, as críticas em torno dessa crise (para a direita, a

crítica da idéia de que ela seja um mal; para a esquerda de que ela seja um bem e do cinismo de

que haja uma crise) confirmam pelo menos um elemento central para esta dissertação: o Brasil

mantém uma preocupação moral com o problema da igualdade.

5 Segundo o autor, em um texto publicado na versão eletrônica da revista, o segundo texto foi enviado à redação antes mesmo da publicação do primeiro, mas este já havia sido enviado à gráfica e não houve tempo para a “correção”.

Page 75: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

2 − DO VIRA-LATA AO CANIS FAMILIARIS

Page 76: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

66

2.1 − UMA ELIPSE NEM TÃO OUSADA ASSIM

Cínicos contemporâneos, clássicos cínicos. Cínicos clássicos que (será?) atravessam

do século IV a.C. ao XXI d.C. Qual pode ser o sentido de se olhar para um grupo filosófi-

co grego para entender algo igualmente chamado de “cinismo” na modernidade e na pós-

modernidade? Pode parecer uma elipse por demais ousada, uma arqueologia absurda, que

busca encontrar na mudança de significado de um termo ao longo de cerca de 2.500 anos a

produção de seu percurso histórico. A preocupação deste trabalho não é fazer uma história

da filosofia. É, antes, tentar entender pressupostos culturais/comunicacionais para a pro-

dução de um tipo de reação da atualidade que tem uma dívida histórica com um outro mo-

delo de pensamento, ou, como diz Bouveresse (p. 11), concordando com Sloterdijk: “A

desilusão atual não faz outra coisa senão renovar uma tradição antiga que se manteve, de

maneira mais ou menos sub-reptícia, em todas as épocas”.

Mas que dívida é essa? O que há para aprender sobre o cinismo clássico que possa con-

tribuir em uma análise do cinismo da atualidade? Peter Sloterdijk (1987) prefere diferenciar

cinismo de kynismo (kunisme, na edição francesa, usada nesta dissertação). O primeiro, para

ele, dá conta da acepção moderna/atual do termo; o segundo refere-se ao sentido mais antigo,

a nomeação da corrente de pensamento da Grécia Antiga. Essa diferenciação não é apenas

terminológica e obviamente não é desmotivada. Ela dá conta, em toda a argumentação do

autor, da profunda diferença entre os dois modelos, que não está apenas na obviedade da dis-

tância epocal, mas também da sutileza da inflexão da homonímia. Usarei aqui as designações

“cinismo clássico” e “cinismo moderno/pós-moderno” quando opuser os dois sistemas de

ação/pensamento, mas, de maneira geral, quando se falar isoladamente em “cinismo” é do

cinismo contemporâneo, com todas as suas peculiaridades, que se está falando.

Page 77: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

67

Há entre os historiadores da filosofia uma grande controvérsia em relação às origens do ci-

nismo clássico. Para muitos autores, como Navia (1996) e Mora (1982), influenciados por Dió-

genes Laércio, que recontou a história e definiu os cínicos, o criador da “escola” cínica foi Antís-

tenes, que teria sido aluno de Sócrates. Ele pregava no Cinosargo, um ginásio nos arredores de

Atenas. Outros autores, como Dudley (1937, p. IX), acham que essa hipótese deve ser abandona-

da: “Antístenes não teve contato direto com os cínicos, que nunca formaram nenhuma escola

filosófica e eram intolerantes com a organização e impacientes com a teoria”. O único grande

consenso é o de que Diógenes, “o Cínico”, que (diz-se) andava por Atenas com uma lanterna

acesa, dizendo com ela procurar um homem honesto, e Crates, discípulo dele, foram os dois

maiores expoentes do “movimento”, que nunca se configurou como um movimento de fato. Um

discípulo de Crates, Zenão, foi um dos fundadores do estoicismo, mas, como argumenta Dudley

(p. XI), “a simpatia pelos cínicos que sempre marcou os mais austeros braços do estoicismo foi

baseada em afinidades genuínas e de fato o cinismo preservou uma reconhecível versão da ética

socrática em ação. Mas a ‘sucessão’ Socrates-Diógenes-Crates-Zenão é uma fabricação”1.

O fato é que, ainda que isoladamente, sem nunca se reunirem formalmente, os cínicos e-

xistiram por cerca de nove séculos, do mundo grego (século IV a.C.) ao mundo latino (século

VI d.C.), até que as invasões bárbaras (e problemas internos) dissolveram o Império Romano. O

que marcou sua atuação foi justamente sua forma de atuar, como marca Dudley (p. XI) a com-

binação de três elementos particulares: “uma vida vagabunda e asceta; o ataque a todos os valo-

res estabelecidos; e um corpo de gêneros literários particularmente bem adaptados para a sátira

e para a propaganda popular filosófica”. O cínico buscava menos uma observação teórica e uma

busca reflexiva de princípios e mais uma atitude. Era prática a filosofia dos cínicos. Eram como

terroristas discursivos anárquicos. Daí se associar a eles a imagem de piadistas. Porque não raro

1 Grifo dele.

Page 78: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

68

eles desobedeciam a leis em atitudes de ironia profunda. Sua luta era contra o pensamento insti-

tucionalizado, a postura elitista das escolas filosóficas e a dissociação entre vida e pensamento.

Nesse sentido, o cinismo clássico é antes uma filosofia de reação do que uma ação do pensa-

mento. Daí seus atos serem fortes e possuírem um poder quase dramatúrgico, como lembra Slo-

terdijk (1987, p. 145), não sem sua própria dose de ironia estética:

Materialista dialético, o cínico deveria provocar a praça pública porque ela é o único lugar em que a ultrapassagem da arrogância idealista pode ser demonstrada de uma forma sensata. O materialismo espiritual não se contenta com palavras e sim passa à argumentação material que reabilita os corpos. Certamente, a idéia reina na academia enquanto a urina cai discretamente nas latrinas. Urina na Academia, então. Este seria o esforço dialético absoluto, a arte de mijar [sic] contra a onda idealista. (...) Lançar para a praça pública aquilo que fica por baixo, separado, provado, eis a subversão.

Mas a marca mais forte do cinismo é que, diferente de correntes habituais de filoso-

fia, eles são um grupo filosófico ligado mais radicalmente a seu contexto de época que a

uma cosmogonia ou a uma ontologia: sua proposição para todas as coisas está mais ligada

ao agora do que à ágora propriamente dita. Mas se isso tira o caráter metafísico − tanto

em termos etimológicos quanto em termos escolásticos − do cinismo clássico, ao mesmo

tempo dá-lhe uma dimensão política pouco transformadora, como aponta Dudley (p. XI):

A “anarquia” cínica nunca chegou a ser tão prática que pudesse organizar o assassi-nato de um tirano e suas investidas contra a riqueza se davam mais por benefício es-piritual dos ricos do que por melhoramento material para os pobres. De fato, ao pre-gar que pobreza e escravidão não eram impedimento para a felicidade, os cínicos permitiam concluir que uma revolução seria supérflua.

Parece estar nesse elemento a primeira chave para a ligação entre o cinismo clássico e o

moderno/pós-moderno. Ambos são “filosofias” visceralmente ligadas à história cotidiana de

seus tempos, uma vez que seus integrantes vivem de acordo com o contexto de época e sofrem

alterações à medida que a ordem social − e as formas de formalização do pensamento − se alte-

ra. E ao mesmo tempo − e este parece ser o traço mais forte de associação entre os dois sistemas

Page 79: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

69

− são formas de crítica à falta de pragmatismo de seus contemporâneos. O cínico clássico odeia

a falta de cotidiano que há na “doutrina da verdade”, por isso atenta contra ela na praça pública;

o cínico moderno/pós-moderno odeia a falta de dia-a-dia que há na doutrina da iluminação e na

politização das ordens sociais, por isso, bate-se conta elas em quaisquer esferas em que possa,

discursivamente, defender sua ausência da esfera política. Navia (p. 4) coloca:

A primeira questão que deve ser levada em conta (...) é o cinismo associado com certas filosofias gregas e romanas com as quais sua temática concerne. Quando falamos do cinismo clássico o que temos em mente é um movimento filosófico cuja existência re-monta ao começo do século IV antes de Cristo e seguiu até os tempos romanos. Mais do que uma “escola” de filosofia com um conjunto definido de crenças e convicções, o cinismo constituía um “séquito” informal de filósofos e indivíduos filosoficamente ori-entados que exibiam certas atitudes comportamentais e modos de vida comuns e que se designavam todos a si mesmos como cínicos ou que eram assim nomeados por outros. Estamos então diante de um movimento de idéias e ações de elementos fragilmente in-terligados entre si que existiu por cerca de oitocentos anos, sob mudanças de ideologia e comportamento em resposta a alterações de condições culturais.

Vários autores, entretanto, chamam a atenção para a dimensão mais passional dos cí-

nicos, sua ligação emocional com a performance − no que diferem, aliás, radicalmente dos

cínicos modernos/pós-modernos, discretos e com horror à espetacularização, como aponta

Sloterdijk (1987, p. 30): “o novo cínico não se manifesta mais com a amargura agressiva

que diz respeito a sua concepção” ou, ainda mais claramente, “o cínico moderno (...) evita

correr o risco de se dar como espetáculo” (1987, p. 27). Para Dudley (p. X), entretanto, cha-

mar a atenção mais para a estética do que para a ética cínica foi uma operação retóri-

ca/política de seus detratores. “O cinismo nos é geralmente apresentado em histórias da filo-

sofia grega, na qual ocupa o papel de um interlúdio de alívio quase cômico entre Sócrates e

Platão ou entre Platão e os estóicos”, diz ele. E completa:

A razão mais importante [para isso] é que os cínicos representam um modelo de pensa-mento com o qual não estamos mais familiarizados − para dizer o mínimo. Depois de tan-ta exposição a estatísticas, podemos entender qualquer concepção que envolva uma norma − o custo de vida, o salário real do trabalhador, por aí vai −, mas no mundo moderno nin-guém voluntariamente vive − como faziam os cínicos − no nível da subsistência.

Page 80: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

70

Pois é muito curiosa essa operação que mora em se usar, para designar uma forma de ação

da atualidade, um nome tão antigo quanto a palavra “cínico”. E parece ser irônico que na raiz de

uma elipse tão ousada (dos tempos pós-socráticos para os pós-modernos) haja uma relação. A

saber, uma relação zoológica. É curiosa a torção que o termo “cínico” sofre entre corresponder a

um grupo comprometido com um projeto anárquico de reatividade ao formalismo teórico e se

tornar sinônimo de uma anuência risonha ao mundo capitalista liberal, através, como já disse, da

ridicularização humorística dos argumentos que poderiam invalidar o sistema. Zoológica porque

se o nome “cínico” vem, para a maior parte dos historiadores, do termo grego kynikós, que sig-

nifica “aquele que se porta como cão” (kýon=cão), e do comportamento de andar na rua e olhar

para as posições formalistas de outras “escolas” com refinada ironia.

Irônico, porque parece que os cães vira-latas de outrora se tornaram animais domésticos,

domesticados, canis familiaris fiéis a seus donos e, principalmente, ao estilo de vida de seus

donos. O sentido atual e coloquial do termo cínico, que designa alguém fingido, que se faz

passar por ignorante de algo, mas que conhece esse algo (ou que, ao contrário, sabe desse al-

go, mas que a esse conhecimento é indiferente) não é tão novo. Ele provém da própria dege-

neração do movimento cínico que, diante dos cidadãos helênicos, começou a designar mais

gente fingida do que radicais opositores de uma disciplina no pensamento e na vida. Na raiz

da elipse, o movimento é de oposição, como aponta Navia (p. VIII):

É uma relação fraca e tênue que poderíamos inicialmente colher do uso comum dos termos “cínico” e “cinismo”, que são habitualmente empregados para designar tanto os cínicos clássicos quanto os modernos. De fato, minha convicção é a de que o ci-nismo moderno é, na realidade, a antítese do cinismo clássico. Um cínico moderno se coloca na maior parte dos casos em oposição àquilo por que um cínico clássico se ergueria. O cinismo moderno (...) é caracterizado por um penetrante tipo de niilismo ético e por um permeável comprometimento com o egoísmo, e é um fenômeno social vazio de cada uma e todas as formas de aspiração humana. O cinismo clássico, por outro lado, é baseado em um conjunto de convicções morais e éticas que, embora se-jam fracamente definidas e indistintamente estabelecidas, pode ser discernida da ne-gatividade aparente em seus ensinamentos e exemplos.

Page 81: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

71

No que diz respeito a essa estratégia de exemplo, o cínico pós-moderno parece ser movido

por uma onda de conversão total a um tipo contemporâneo de realismo. Realistas do mundo uni-

vos! Eis a proposta cínica, ainda que essa “união” de maneira nenhuma pressuponha uma coleti-

vidade. Mais adiante demonstrarei como o cinismo pode ser pensado, diferente do que parece,

como parte de um sistema moral, dentro de uma lógica de justificação. Para Sloterdijk (1987, p.

27), é primordial pensar no cínico como alguém que também possui uma moral: “Instintivamen-

te, ele [o cínico] não entende seu modo de existência como algo que tem a ver com ‘ser mal’,

mas como uma participação em um ponto de vista coletivo que se reduziu ao realismo”.

A comparação aparentemente inútil − mas se disse que este trabalho seria inútil! −

entre cinismo moderno/pós-moderno e cinismo clássico possui um elemento chave para a

questão aqui discutida: a relação entre o cínico e a realidade que o cerca. Sloterdijk (1987)

sugere que o cinismo moderno foi uma das feridas mais profundas dos séculos XIX e XX

e que isso se deu por conta de certa “falta de personalidade” desse personagem. Nesse

sentido, ele seria de fato a antítese de seu homônimo clássico, como propôs Navia (p. 2),

que o considera um indivíduo que “rompeu com todas as normas e expectativas tradicio-

nais e em uma atitude de desdém sarcástico ele proclama a si mesmo auto-suficiente”.

Para esses autores, essa falta de solidez interior do cínico atual rivaliza torrencialmente

com a presença de espírito e a rigidez do caráter asceta do cínico clássico. Sloterdijk pro-

põe que essa fraqueza do cínico foi a responsável por ele ter se tornado, sem opor grande

resistência, uma fácil conquista para modelos políticos que, no século XX, interpenetra-

ram-se no desvão de sua incompreensão do mundo. “Tais ideologias, exemplificadas pelo

nazismo, pelo fascismo e pelo comunismo, foram criadas e sustentadas por cínicos que,

apenas um passo à frente das massas, tiveram sucesso em manipulá-las em seus próprios

propósitos cínicos”, diz Navia (p. 2).

Page 82: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

72

Sloterdijk (1987, p. 27-28) descreve o cínico contemporâneo como “um anti-social

integrado” e seu modelo como uma aparentemente paradoxal “falsa consciência esclareci-

da”. Ele quer denunciar a dimensão de ressaca do cínico pós-moderno, que, depois que já

se tornou um dado da cultura cotidiana o fato de que o conhecimento não mais libertará o

homem, coloca-se em uma posição de isenção moralmente defendida pelo conhecimento:

“Essa consciência aprendeu a lição do Iluminismo, mas não a põe em prática e, sem dúvi-

da, não o poderia fazer. Abastado e miserável ao mesmo tempo, ele não se sente mais a-

tingido por nenhuma critica da ideologia; sua falsidade está armada de saídas reflexivas”.

A ironia de Sloterdijk (1987, p. 27) com seu objeto é tão forte que ele chega a dizer que

se trata de “um caso limite de melancolia” que aprendeu a controlar os ataques de depressão

para se manter de pé. É a praticidade, doa a quem doer, o que interessa ao novo cínico. Esse

pragmatismo, convertido no ethos do personagem, produz uma forma muito clara de ação.

A ação cínica pode ser, então, dividida em três diferentes elementos: 1) o desencanto

com a política, com o conhecimento como agente transformador do mundo e com a própria

idéia de que o mundo tenha que ser transformado; 2) a recusa à ação política; 3) o olhar ri-

dicularizador sobre a ação política, usado como argumento e pedido de desculpa. Esse ato

de fazer da ação política anedota é central. É a parte propriamente cínica do cinismo con-

temporâneo. É humor. É retórica. Claro, a cada ação cínica, corresponde uma reação daque-

les a quem se move o pedido de desculpa. E essa ação, de maneira geral, é de condescen-

dência, de desculpa. A esfera pública recebe o argumento na forma de um olhar anulador,

interditador da ação política. Pois um dos maiores poderes do humor é a desqualificação do

objeto que é alvo de uma pilhéria. Fazer anedota é desconstruir, é anular valor, é revelar o

que está por trás. É exibir as vergonhas dos procedimentos, submetendo-as a um pudor cru-

el, a um riso catártico e quase punitivo. A história do uso do humor politicamente é uma

Page 83: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

73

história de derrubar cortinas. Os cínicos gregos faziam exatamente isso ao pararem na ágora

e se masturbarem diante da Verdade platônica. O cínico contemporâneo sabe que o humor

tem uma função desqualificadora e o adotaram como procedimento maior em uma ordem

em que o prazer foi transformado em valor supremo. Daniel Kupermann (2003, p. 159), por

meio de Freud, chama a atenção para a importância política do humor na constituição das

ordens sociais: “Enquanto o perverso parece querer ser o regente exclusivo da sua própria

lei, o piadista realiza uma ‘transgressão autorizada’ através da qual obtém uma certa cota de

satisfação pulsional, reforçando, simultaneamente o laço social”2.

Essa leitura psicanalítica do fenômeno não renega sua dimensão sociológica, pelo

contrário, apenas a reforça: há, sem dúvida, o estabelecimento de uma cumplicidade entre

aquele que ri e aquele que faz rir, ambos diante do objeto do riso. Essa cumplicidade con-

tribui para produzir uma sensação de coesão de grupo, ainda que esse grupo seja público e

não multidão. Um conjunto de atores que ri das mesmas coisas é fatalmente uma comuni-

dade, partilha de um mesmo sentido de desconstrução de uma mesma realidade. Sendo

assim, o fato de o cínico contemporâneo ser capaz de mostrar o engajamento político co-

mo bazófia, diz muito sobre o comprometimento entre a ordem que se permite rir e as du-

as primeiras etapas da ação cínica apresentadas acima.

Nesse sentido, fica mais claro que não se deve pensar o cinismo como um procedi-

mento que isole seu praticante da ordem social, e sim como um sistema de negociação, de

demonstração de que a ação em tela deve ser aprovada como uma flutuação aceitável no

sistema moral que permeia a ordem social. Trata-se de uma sutil forma de incorporação da

crítica, que passa por um mecanismo de antecipação à própria crítica. O cínico diz de si

mesmo que desafia a regra moral, mas que tem motivos corretos para isso. De fato, o maior

2 Grifo dele.

Page 84: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

74

motivo do cínico para desafiar a moral do bem comum é uma moral outra, baseada em um

realismo e uma praticidade estritos e na operação de liberação para o exercício da liberdade

consumista descrita por Bauman ao falar em “mal-estar da pós-modernidade”. É ela o que

sustenta não apenas seu pedido de desculpa, mas também o mecanismo de seu humorismo.

O que é ridículo na ação política é sua ingenuidade, sua falta de pragmatismo, sua inocên-

cia. No humor cínico, toda forma de negociação politizada sucumbe diante da seriedade − e,

sobretudo, da urgência − das exigências cotidianas individuais do cínico. Ele não tem tempo

para as bobagens da esquerda. Há um aluguel a ser pago, há as variações do câmbio, há as

conquistas salariais possíveis, há as compras de natal.

Aquilo para que me parece importante chamar a atenção e aquilo que estou tentando

dizer é que embora pareça que o cínico é apenas um mentiroso, um dissimulado isolado,

há na relação dele com a ordem que o cerca muito mais parceria do que parece. É preciso

levar esse fenômeno mais a sério. Um trabalho sobre o cinismo é um trabalho, no limite,

sobre as ordens sociais pós-modernas. Não quero dizer com isso que as ordens sociais

sejam cínicas e nem que o cinismo exerça um papel forte em suas constituições. Quero

dizer, antes, que o cinismo moderno/pós-moderno é, a exemplo do cinismo clássico, uma

forma de reação. Não em um sentido de combate, mas em um sentido direto: o cínico exis-

te em resposta à constituição da ordem e ao mundo que o cerca.

Assim, falar sobre a classe trabalhadora nesta dissertação é menos falar sobre o trabalho

e sobre suas mazelas como organização e mais falar sobre como esse grupo exemplifica a

flexibilidade moral a que estão submetidas as ordens sociais contemporâneas. Falar de esvazi-

amento da esfera política só tem sentido, como disse, em um lugar em que essa esfera política

faça falta ou em que sua crise faça diferença. O cínico é, para todos os efeitos, o agente

daquela flexibilização e, para mim, o índice dessa diferença.

Page 85: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

75

2.2 − A TECNOLOGIA DA MORAL

Ao falar do jornalismo, expus a maneira como na modernidade a esfera pública tornou-se o

elemento político central e que tipo de alteração esse quadro sofreu na passagem para a atualida-

de. Hannah Arendt (1997, p. 61) lembra que “nossa percepção da realidade depende totalmente da

aparência, e, portanto, da existência de uma esfera pública” e depois (p. 63) chama a atenção para

um detalhe que me parece crucial para se pensar o trânsito entre posição singular e posição geral:

Nas condições de um mundo comum, a realidade não é garantida pela “natureza co-mum” de todos os homens que o constituem, mas sobretudo pelo fato de que, a des-peito das diferenças de posição e da resultante variedade de perspectivas, todos estão sempre interessados no mesmo objeto.

A partir disso, quero pensar a esfera pública em sua dimensão moral. A noção de que a or-

dem só se constitui (de que a realidade só é possível) dentro de um campo em que há um objeto

comum, um objeto público, é central para se pensar o que leva indivíduos a sustentarem a ordem

social. Trabalho com a idéia de que uma das principais dimensões dessa objetivação, dessa con-

centração de interesse dos atores de uma ordem envolvida publicamente, é moral, ou seja, que

um dos principais interesses dos integrantes de uma ordem social está na maneira como eles

mesmos e os outros agem e nas regras de ação que condicionam o pertencimento à ordem.

Essa questão faz sentido neste debate porque a descrição feita por Boltanski e Thé-

venot com o modelo das cidades parece sugerir a necessidade de uma forma particular de

engajamento de cada um e de todos os atores nas ordens sociais. Mais que isso, parece

sugerir uma precedência da dimensão dos atores individuais sobre a movimentação do

próprio sistema. Seria, então, necessária uma consciência moral forte para mover um sis-

tema constituído por provas em torno do bem comum. Isso parece pressupor também uma

considerável dose de consciência reflexiva.

Page 86: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

76

Mas não me parece ser uma obrigação, entretanto, nem um elemento nem outro. O cen-

tro da teoria moral desta dissertação é a idéia de que os atores de uma ordem social não preci-

sam estar particularmente comprometidos de forma racional-reflexiva com a moral em ques-

tão. A ordem é que precisa ser constituída em torno dessa moral e exigir desses atores não um

engajamento consciente e sim a entrada em um sistema de negociação. Assim, o bem comum

do sistema de Boltanski e Thévenot é, na verdade, um elemento de constituição da ordem,

mas não necessariamente uma paixão de seus integrantes. Apesar disso, esses atores, para

integrarem a ordem, serão mobilizados por essa moral e terão seu cotidiano perpassado pelas

regras e exigências de sua manutenção. A moral circula e se ensina, afeta vidas, mas não é

necessariamente produtora de seus ímpetos mais objetivos.

Essa proposição se faz necessária porque uma maneira de se olhar inicial e habitualmen-

te para o cinismo é pensá-lo como uma atitude de absoluto desengajamento moral. Sloterdijk

mesmo chega a esboçá-la, em sua associação entre cinismo e filosofias políticas totalitárias do

século XX, na qual esses sistemas aparecem como centros de manipulação das massas por

seres cínicos maléficos intelectualmente à frente delas. Por essa leitura, o cínico é aquele que

vira as costas para a moralidade e assume uma postura a-moral para si e i-moral para os inte-

grantes da ordem que o observam. Mas, ora, parece-me que o fato de a ordem exigir um “ob-

jeto comum” moral não pressupõe necessariamente engajamento racional.

A forma como proponho que se olhe o cínico questiona essa exigência de se ter uma

postura efetivamente desengajada moralmente. A tese desta dissertação − que pressupões que

um desengajamento moral total seja impossível − é a de que o cinismo é um argumento, ou

seja, que o cínico é alguém que, inserido em um círculo moral, mesmo que não concorde com

ele, está a ele submetido e tem que com ele negociar. O cínico tem uma relação de mutualis-

mo com a moral que o rodeia. Ele não compactua com ela e nem nela está engajado, mas lhe

Page 87: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

77

deve tributos para que possa pertencer à ordem social. Inserido na ordem social, o cínico de-

pende da aprovação de seus pares (não na condição de cínicos, mas na de atores). Optar por

uma leitura ou por outra faz pensar a relação entre a constituição das ordens sociais e a moral.

E faz pensar, sobretudo, no papel da moral nas sociedades contemporâneas.

Assim, se há, como defendem Boltanski e Thévenot, uma idéia de bem comum que ser-

ve de fiel da balança das ordens organizadas em torno dos mecanismos de prova, esta idéia é

composta na ordem do público, não apenas é um elemento constitutivo da individualidade.

Sustento que os atores não são tão racionais assim em suas tomadas de decisão, nem para se-

rem engajados moralmente em um sentido reflexivo e nem para serem independentes de uma

regra moral. O bem comum é como uma goma arábica, uma condição utópica de prescrição

que funciona como guia para a manutenção da ordem social. Não significa, claro, que cada

indivíduo tome cada uma de suas decisões a partir de uma concepção analítica de bem comum

(um exame de consciência elementar mostra facilmente que tomamos decisões de maneira

bem mais individualista que isso). Mas quando essas decisões são tomadas no campo público,

na ordem da justificação, são pressionadas por essa idéia.

Comecei a mostrar e concluirei mais à frente como para Boltanski e Chiapello é importan-

te trazer para o primeiro plano a força dos atores singulares nos processos de justificação, prin-

cipalmente nos mecanismos de crítica. Apesar de Boltanski dar especial atenção à mídia e às

operações de narração na esfera pública, Boltanski e Chiapello não fazem uma pergunta, que

para eles não é importante, mas para este trabalho é: a quem a justificação se dirige? Para o ho-

rizonte de análise da busca do novo espírito do capitalismo, a opinião pública não é um elemen-

to tão primordial nos processos de justificação do bem comum no capitalismo. Pois para mim,

apesar de esse negligenciar a opinião pública tem grande valor, no caso, ideológico − porque

chama a atenção para o poder dos atores singularmente diante dos procedimentos de prova −,

Page 88: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

78

ele ignora a função dos atores ouvintes. Isso oculta a dimensão de pertencimento à ordem que,

na verdade, os atos que vão contra a lei moral da ordem costumam ter. O que quero dizer é que

não é apenas de bem comum que se fazem procedimentos de permissão, mas de procedimentos

que passam a ser lidos como aprováveis diante da urgência de um pressuposto que produza um

bem comum localizado. A moral das ordens conexionistas é uma moral funcional, que busca

resultados práticos a partir de avaliações pragmáticas.

D’Amaral (2002) faz uma história do pensamento contemporâneo como história da en-

trada em uma era que ele chama de “tecno-lógica”, de lógica técnica. Ele estabelece como

marco desse processo − iniciado, segundo ele, no começo da modernidade, no trabalho de

Immanuel Kant − o projeto Manhattan e seu desenrolar mais dramático (e dramatúrgico), as

explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki, em 6 e 9 de agosto de 1945. Na-

quele momento, propõe D’Amaral, pela primeira vez o pensamento científico foi deslocado

de sua função de busca da verdade como adequação e colocado totalmente a serviço da eficá-

cia. E daquele momento em diante, sustenta, a lógica da produção científica e, mais, do pró-

prio pensamento, passou a estar atrelada a essa mesma idéia. “A cultura comunicacional con-

temporânea anda de bicicleta sobre uma corda bamba. Não pode parar para se perguntar como

a bicicleta funciona ou como pode se equilibrar, sob pena de cair”, diz ele.

A tarefa inicial do pensamento na atualidade foi constatar a morte da utopia, a morte da

salvação. A morte da Verdade em si, em Kant, e a morte de Deus, em Nietzsche, são as pri-

meiras etapas desse processo. Mas o que nos impressiona é que esses obituários abandonaram

leitos confortáveis em uma instância de pensamento, uma instância que podemos chamar de

intelectual, e chegaram à cultura. A Verdade e Deus morreram para os pensadores porque já

estavam adoentados nas almas, nas conversas de praça, mas a produção dessa cultura continua

sendo uma operação. Essa tarefa do pensamento ganha um significado outro neste processo. A

Page 89: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

79

investigação de como se constrói uma cultura cínica de dentro dela e com os instrumentos

com os quais ela mesma se produziu e se reproduz é uma empresa perigosa. No mínimo con-

traditória. Por isso é que afirmei, logo na abertura, a inutilidade deste trabalho. Aqui, neste

momento, cabe uma nota de elogio à prosa acadêmica de Bouveresse. O primeiro item do

terceiro capítulo de seu texto é intitulado “Sobre uma certa maneira de praticar a filosofia-

ficção ou como nos tornamos racionalistas e somos bem considerados”. Para além da ironia

deliciosa que mora no título, a idéia de uma filosofia-ficção parece-me bastante clara. É por-

que parece ser nesse sentido que se direciona o conhecimento na atualidade. Um homem sem

fundamentos é um homem constituído em uma cultura sem fundamentos e, nesse sentido, sem

referencial. É de uma guinada de ethos que estou tratando. O título de Bouveresse ainda cha-

ma a atenção para uma outra economia, a da própria intelligentsia. Sloterdijk (1987, p. 7-8)

fala em um fim da tarefa da filosofia, que ela está à morte e que “com ela, tem fim a tradição

de um saber que, como indica seu nome, era uma teoria erótica − amor da verdade e verdade

do amor”. Mas morto o amante, vivo ainda está o dono da floricultura, ou seja, mesmo sem

referências, nosso tempo de eficácia conservou as máquinas que em busca delas iam.

D’Amaral (2004) aponta que tanto a Ciência quanto a História quanto a Filosofia se tornaram

sistemas de pensamento sem suas referências. Mas o que me parece relevante pensar aqui é

que, como já mostrei, também no campo da moral o mundo ganha uma dimensão de eficácia.

Isso pode servir, por exemplo, para construir uma tese sobre o esvaziamento da fun-

ção da academia, como esboçam tanto, por um caminho da sociologia das profissões, Pier-

re Bourdieu (1984), quanto, por uma via de crítica à perda de potência da ideologia, Rus-

sel Jacoby. Mas ao mesmo tempo, e isso parece mais importante, serve para mostrar como

nosso tempo produziu uma moral mecânica, que “anda de bicicleta sobre a corda bamba”.

A constatação da existência de uma moral como essas, sem referência, de imediato levanta

Page 90: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

80

a questão sobre o que pode sustentar uma moralidade pós-moderna. Qual pode ser o ele-

mento que nos sirva de guia para avaliar se um ato é bom ou não? Genealogistas de su-

permercado que nos tornamos, aprendemos na televisão, sem a necessidade de ir à Genea-

logia da moral de Nietzsche, que as regras de conduta são interessadas e, mais que isso,

interesseiras. Com isso, a nova ordem se furta de estabelecer uma centralidade para a no-

ção de bem (e mal). Ainda mais diante da idéia de multiculturalismo que parece se instalar

como um dado inexorável deste tempo. Nenhuma religião, por exemplo, mostra fôlego

suficiente para ser universal e nem guia. Nem a católica, mergulhada cada vez mais em

descrédito moral por conta de seu anacronismo de costumes, nem o judaísmo, auto-

excludente por definição e nem o outro grande monoteísmo, convertido em monstruosida-

de fundamentalista pela nova mitologia antiterrorista.

As últimas fronteiras da moral parecem ser a liberdade individual e o culto à sincerida-

de. O primeiro como um fim, o segundo como um meio. É a liberdade do indivíduo através do

culto da verdade de cada um. Por esses bens e pelo direito de este indivíduo consumir e lucrar

que se fazem guerras e que se pode chegar ao extremo de matar. E nesse sentido, o maior bem

da moral é o grau de penetração do indivíduo no círculo dos livres para o consumo. Essa fun-

cionalidade conduz a uma moral em que o bem comum é avaliado em termos não de amplia-

ção da igualdade, mas em termos de eficiência maior do sistema. O maior bem comum passa

a ser aquele que oferece maior efetividade de realização. E, nesse sentido, entra em jogo o

problema da lucidez: o que é imoral, na atualidade, é aquilo que “só pode ser coisa de louco”,

agir em desacordo com a cultura da eficiência, desperdiçar oportunidades de ampliação da

liberdade, não multiplicar o capital pessoal. É também nesse sentido que se pode falar de uma

moral tecnológica, de uma moral que é construída para a produção e não para a manutenção

da abstração de um bem maior. Não há bem maior, há bens. E eles não precisam ser duráveis.

Page 91: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

81

Justamente nessa mecânica da sanidade é que entra a dimensão humorística do novo

cínico, como procedimento de invalidação do que o cínico considera ingênuo. É de fazer

anedota, então, que se trata. E isso, como disse, não assume uma dimensão discreta, mas

sistêmica. Lipovetsky (1989), por exemplo, diz que vivemos em uma “sociedade humorís-

tica”, dominada por uma codificação de humor em seus campos os mais variados. Tudo é

irreverente, tudo é engraçado. Tudo é leve, light. “O humor pós-moderno é (...) uma espé-

cie de lubrificante social”, diz Daniel Kupermann (p. 16-17). Ao mesmo tempo, entretan-

to, esse mesmo humor continua com sua função de ir-reverência, ou seja, de demonstração

de falta de apreço pelo objeto do anedotário.

A idéia de pensar um riso conservador parece bastante irônica. Já mostrei antes a li-

gação que o tema tem com a psicologia, mais particularmente com a psicologia social.

Parece-me importante abrir um parêntese psicanalítico aqui, para conseguir pistas sobre a

motivação para cinismo. Faço isso, inclusive, inspirado por Bauman, em sua empreitada

de atribuir dimensão sociológica ao Mal-estar da civilização de Freud de que já falei no

capítulo anterior. Pois em um ensaio de 1927, O humor, Freud (1974) lembra que sua

primeira visão a respeito do riso (do ensaio de 1905 Os chistes e sua relação com o in-

consciente) era apenas econômica, ou seja, que estava em jogo apenas um sistema de

compensação pulsional. No mesmo ensaio, ele chama a atenção para o jogo de cumplici-

dade entre aquele que faz rir (aquele que conta uma piada) e aquele que ri. Para Freud (p.

190), “não há dúvida de que a essência do humor é poupar os afetos a que a situação natu-

ralmente daria origem e afastar com uma pilhéria a possibilidade de tais expressões de

emoção”. Esse evitar uma ligação “pesada” entre observador e objeto do humor (seja o

observador um terceiro ou o próprio piadista) tem a ver, para ele, com um “triunfo do nar-

cisismo, com uma afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego”. Isso parece dizer

Page 92: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

82

muito sobre o cínico, se se pensar na auto-suficiência que ele se atribui. Mas me parece

que o enunciado mais elucidativo a respeito do cinismo contemporâneo é aquele em que

Freud (p. 191) compara o procedimento do humor a um mecanismo cotidiano:

É que o indivíduo se comporta para com eles [os outros em relação aos quais ele as-sume uma postura humorística] como um adulto o faz com uma criança, quando iden-tifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a es-sa última. Assim, o humorista adquiriria sua superioridade por assumir o papel de adul-to, identificar-se até certo ponto com o pai, e reduzir as outras pessoas a crianças.

Freud prossegue sua análise propondo uma explicação para essa tomada de papel ligada

ao deslocamento de catexia (energia libidinal). Claro, este não é um trabalho de psicanálise e

não me estenderei muito mais no tema. Chegar até aqui permitiu pensar que o riso diante da

não transformação do mundo encontra eco em nossa economia pulsional o suficiente para

justificar sua manutenção, graças a um mecanismo de criação de hierarquia. Mais à frente,

Freud (p. 194) ainda acrescenta um raciocínio que corrobora esse argumento: “Também é

verdade que, ocasionando a atitude humorística, o superego está realmente repudiando a rea-

lidade e servindo a uma ilusão”. Essa operação me parece particularmente interessante, por-

que chama a atenção para uma dimensão dúbia do humor. Como disse antes, ele tem sempre

uma dimensão reveladora, que parece despudoradamente movida para mostrar o qual cênico é

um objeto ou uma prática. No fundo de toda a piada, está a revelação de uma verdade sobre

aquilo de que se está rindo. Assim, operação de fazer bazófia é a operação de mostrar que há

um quê de ilusão nos objetos. No limite, então, toda atribuição de anedota é um pouco uma

atribuição de falta de veracidade de alguma apresentação. Se se pode fazer piada de algo, é

porque esse algo é uma grande bobagem, uma grande mentira, não ameaça:

O principal é a intenção que o humor transmite, esteja agindo em relação quer ao eu quer a outras pessoas. Significa: “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigo-so! Não passa de um jogo de crianças, digno de que sobre ele se faça uma pilhéria”.

Page 93: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

83

Essa última passagem de Freud, claro, dá uma dimensão positiva ao humor: trata-se de

uma operação de redução do medo do homem diante do mundo. Mas o cinismo pode muito

bem fazer uso da mesma operação, com o fim último de conquistar a anuência do ouvinte. Den-

tro de uma moral que preza a eficiência da produção de bem-estar, nada mais adequado que

uma busca por cumplicidade sorridente. A operação cínica é aquele ato de dar uma pequena

cotovelada no colega ao lado e apontar com o queixo a crença política, para dizer: “Olhe! Ali

está o transformador do mundo, que parece tão ameaçador a nosso desejo de paz para consumir!

Não passa de uma criança que joga, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria”.

Em seu trabalho sobre a ironia da comunicação, Henri-Pierre Jeudy (2001, p. 9), coloca:

A ironia advém de uma catástrofe de crenças (...) Ela aparece como mecanismo de defesa na vida cotidiana, como um meio de contornar as normas, de brincar com as instituições, de dar razões ao que se impõe como uma necessidade de aceitar uma ra-cionalidade se tem bastante dificuldade de aceitar.

E, logo depois (p. 10), chega a uma formalização que parece cristal para uma defini-

ção do cinismo, embora ele esteja falando apenas do mecanismo da ironia:

Zomba-se do que acontece ou do que é decidido porque nada se pode fazer. Ao mesmo tempo, aqueles que têm ares revoltados e que militam para que as coisas mudem encarnam um espírito sério que permanece duvidoso aos olhos e ouvidos dos incrédulos. Suas crenças são transformadas em derrisão porque nada prova que elas conduzirão a um melhor estado de sociedade. Ao contrário, tudo o que aconteceu demonstra que aquilo que advirá amanhã não será melhor. É a lógica do abandono pela defesa do sarcasmo.

Pois é munido do espírito que lê dessa forma a prática da ironia − mecanismo por ex-

celência do cínico − que se porta um trabalho de Comunicação sobre o cinismo. A grande

diferença de se lançar um olhar comunicacional sobre esse caso é que, visto do ponto de

vista de uma ordem social composta por discursos, o cínico não é uma entidade isolada,

cujas decisões são imorais e a quem cabe (apenas) a execração pública. Se se entende o ci-

nismo como um fenômeno retórico, aparece em todas as cores a parcela de responsabilidade

Page 94: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

84

que os atores observadores − para uma leitura de Comunicação, a opinião pública − têm na

perpetração do crime de que o cínico é facilmente culpado. O cínico encontrou apenas uma

forma divertida (para ele e para nós) de se desculpar por algo de que somos todos responsá-

veis e cuja responsabilidade tornou-se fácil − e conveniente − lançar apenas sobre ele.

Este trabalho, claro, não é uma defesa do cinismo como alternativa. Com sua preten-

são científica (de dissertação), é uma defesa apenas da validade de seu recorte do mundo.

Apesar disso, é ainda assim uma demonstração de que, não inocentado o cínico, menos

ainda o deve ser a ordem social que o cerca. O cinismo não me parece uma anomalia da

pós-modernidade. Em relação a ela, parece mais uma simples conseqüência. Parece mais o

filhote de um animal do que um efeito colateral de uma doença.

Esta leitura chama a atenção para a negociação moral como um processo cotidiano das

ordens e se coloca no desvão de duas leituras habituais e, creio, duras, da inserção da moral na

constituição das sociedades, duas leituras que quero agora discutir.

A primeira delas, oriunda do racionalismo mais estrito, é a de que a ordem social é constitu-

ída por atores racional e reflexivamente engajados em termos morais. Por essa leitura, cada ator

possui um senso moral de julgamento bastante aguçado e toma atitudes dentro da ordem social

sempre no horizonte de uma consciência de que seus atos correspondem à observância de um

bem. Por essa perspectiva, há um componente de altruísmo na participação em qualquer ordem.

Como a moral é um conjunto de regras criado para tornar possível a convivência entre os atores,

estes seriam conscientemente impelidos a defendê-la, pelo seu próprio bem e pelo bem de todos.

A segunda leitura, oriunda das correntes estruturalistas e pós-estruturalistas e que en-

contra eco em boa parte dos autores liberais pós-modernos, diz que as ordens sociais têm ato-

res que agem por conta de suas próprias perspectivas individuais. Por essa leitura, a moral é

uma instância apenas coercitiva ligada ao poder. Da parte dos atores, eles apenas obedecem a

Page 95: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

85

ela se são obrigados ou pedagogizados e constituem um ethos burlesco e individualista. Uma

vez que moral é um conjunto de regras criadas para obrigar a convivência entre os atores, es-

tes seriam conscientemente impelidos a desafiá-la, pelos seus bens individuais.

Nenhum dos dois modelos me parece dar conta corretamente da relação entre moral e

sociedade. É onde me parece correto pensar em uma ordem social constituída em torno da

desculpa, ou seja, em torno de processos de negociação entre indivíduos e ordem, em torno

das possibilidades de relativização de regras morais instituídas para a manutenção do sistema.

Não é um modelo híbrido daqueles dois. Difere deles radicalmente na irracionalidade. Parece-

me que, nas ordens sociais, as decisões tomadas são influenciadas por perspectivas morais,

mas isso não é um processo reflexivo, consciente. Por outro lado, não se trata de uma ação

manipulada, como um modelo via panóptico poderia pressupor. O que me parece acontecer é

que os atores se inserem nas sociedades, nelas se deparam com regras morais mais ou menos

difundidas e com elas negociarão, no sentido de fazer valer interesses pessoais ou coletivos.

Por isso, trabalho aqui para demonstrar o nexo entre discursos de desculpa e discursos

que dão sustentação à desculpa dentro de uma ordem baseada na noção de público. E é por

isso, também, como já citei antes, que o jornal é um objeto que se presta a essa operação: se é

de moral que se trata, é justamente ela que está impressa nas páginas dos periódicos, porque é

ela que diz o que é notícia e o que não é e ela que seleciona, entre as notícias, o que será man-

chete e o que será rodapé. Essa seleção, além da forma como são narrados e descritos os acon-

tecimentos na cobertura do Primeiro de Maio é que informarão sobre aquele nexo. Antes, po-

rém, quero acrescentar ao sistema de análise um elemento ainda pertinente: o problema do

conhecimento e de sua relação com a política, que para mim está na raiz do processo de sur-

gimento e manutenção do cinismo contemporâneo.

Page 96: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

86

2.3 − O CREPÚSCULO DA UTOPIA DO CONHECIMENTO

Quando, no capítulo anterior, estudei a crise da política moderna, traduzi-a como um

problema de duas dimensões: de um lado, uma incompatibilidade entre igualdade e liberda-

de e, de outro, uma contaminação mútua entre piedade e justiça. No limite, são duas pro-

blemáticas morais: ambas produzem crises da capacidade de indignação. Na descrição de

Boltanski e Chiapello, a indignação é a fonte das duas formas de crítica ao capitalismo e,

também, no modelo de Boltanski (a partir de Hannah Arendt), do comprometimento que é

condição para sustentar uma política de piedade. Também constatei que há uma crise na

moral de nosso tempo: sem referência − absoluta ou relativa − do que possa ser o bem, ne-

nhuma moral pode ser tratada como necessária, a não ser em um sentido ideológico. Ora, no

limite, afirmar uma crise da política moderna é afirmar uma crise da ideologia, de nossa

capacidade de transformar problemas de opinião ligados à igualdade em problemas éticos.

Agora, quero referir-me ao elemento de ligação entre aquelas duas crises e esta crise moral.

Esse elemento, para mim, é crucial para o entendimento do cinismo. Trata-se da crise − já

citada aqui − do conhecimento como porta para a transformação positiva da ordem.

Sloterdijk (1987, p. 28) chama o cinismo − também um tanto ironicamente, como faz

em toda sua obra sobre o tema − de “A falsa consciência esclarecida”3 e diz que a missão de

seu hercúleo trabalho de mapeamento do cinismo moderno/pós-moderno é “descrever a mo-

dernização da falsa consciência”. Essa “modernização”, que me parece mais uma “pós-

modernização” (no sentido de uma adaptação a um contexto ligado ao mal-estar descrito por

Bauman), corresponde, para mim, a uma produção de uma máquina de desculpa, um sistema

para, no seio da própria ordem social, permitir que se possa mostrar que o conhecimento não

3 Grifo dele.

Page 97: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

87

representa a salvação. Ao falar de um novo “mal-estar da civilização”, que acredita ser o ci-

nismo − o que apresentei na Introdução −, Sloterdijk (1987, p. 25) diz que “a crítica tradicio-

nal à ideologia fica impotente diante dele”. Claro, porque a crítica à ideologia buscará justa-

mente mostrar como é uma operação intelectual (e não naturalmente moral) aquela que procu-

ra sustentar as condições de produção. Ora, para todos os efeitos, todos nós, cidadãos comuns

pós-modernos, já temos a noção de como funciona o capitalismo. E nada que se possa revelar

a respeito dele é mais muito capaz de chocar, menos ainda, parece, de mobilizar. Sloterdijk

fala justamente da falta de capacidade de um mundo guiado pela utopia do conhecimento em

dar conta de um desencanto como o que foi capaz de produzir o novo cinismo:

Ela [a crítica à ideologia] não enxerga onde ativar, nas consciências cínicas, a leve-za do Iluminismo. O cinismo moderno se apresenta como esse estado de consciência que sucede às ideologias ingênuas e a seu Iluminismo (...) A série de formas da falsa consciência existente até hoje − mentira, engano e ideologia − está incompleta; a mentalidade atual impõe o acréscimo de uma quarta estrutura: o fenômeno cínico.

Trata-se, então, de uma crise de modelo de mundo. Os argumentos de Sloterdijk (1987),

Jacques Bouveresse e Luis E. Navia podem ser traduzidos − e unificados − na idéia de que o

cinismo é uma resposta “artística” à crença iluminista de que o conhecimento libertaria o ho-

mem. O uso do termo “artístico” aqui, claro, refere-se à oposição entre “crítica artística” e

“crítica social” de Boltanski e Chiapello. A compreensão do termo como uma operação estéti-

ca é importante para dar conta da operação cínica: parece que das duas problemáticas moder-

nas, a da liberdade e a da igualdade, a primeira pôde ser resolvida com uma alteração da esté-

tica da sociedade, ou seja, com modificações na maneira de se apresentar os problemas. A

resolução do problema da igualdade pressuporia uma modificação ética mais radical. Pois a

principal crítica feita na modernidade à proposta moderna de transformação do mundo − e que

acabou sendo o fiel da balança para a aposta em um modelo pós-moderno − é que ela deu

atenção demais à igualdade − do proletariado, por exemplo, e entre os povos, no sentido da

Page 98: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

88

criação de uma nação universal, ainda que à força − e pouca à liberdade, a não ser em termos

teóricos, no Iluminismo. A vitória da liberdade, na forma de vitória da liberdade individual,

aos poucos representou a derrota do modelo baseado na utopia do conhecimento como pres-

suposto da igualdade. Foi a derrota do Iluminismo, para Sloterdijk (1987, p. 35), o que dá

fortes indicações de como se dá a operação cínica de redução ao realismo absoluto:

Dar hoje continuidade à linhagem do Iluminismo quer dizer se preparar para admitir que tudo aquilo que, na consciência, é simplesmente moral é vencido pelo moralis-mo inevitável do real. Não é isso que a social-democracia aprende atualmente, quan-do ela é usada, quase contra sua vontade, pela Grande Dialética?

“A grande dialética”, diz Bouveresse (p. 33), “quer dizer, em termos mais simples, a

grande confusão”, a inexorável e caótica ambivalência do real. No mundo contemporâneo,

entretanto, conclui ele (p. 9), não há lugar para tamanha inocência, por isso vale o “mora-

lismo inevitável do real”:

Aquilo que percebemos atualmente como uma ingenuidade marcante no programa inicial do Iluminismo (Aufkärung) é a convicção de que o desenvolvimento do saber e a ampli-ação do poder sobre as coisas dele resultante direta ou indiretamente devem fazer o ho-mem melhor. O Iluminismo ficou largamente tributário da idéia de que o mal resulta principalmente da ignorância e pode, em conseqüência disso, ser combatido em grande número de casos simplesmente pelo conhecimento.

Fazer uma história da passagem da modernidade para a contemporaneidade, em ter-

mos políticos, é, então, em grande parte, fazer uma história do desencanto do homem com

essa dimensão libertadora do conhecimento. Bernstein (1991, p. 32) mostra-se inquieto com

a relação entre o mundo contemporâneo e a idéia de racionalismo:

Por que há tantas vozes hoje chiando sobre a Razão? Por que existe uma raiva contra a Razão? O que precisamente está sendo atacado, criticado e amaldiçoa-do? Por que há algo como quando “Razão” e “Racionalidade” são mencionadas, evocam-se imagens de dominação, opressão, repressão, patriarcalismo, esterili-dade, violência, totalidade, totalitarismo e mesmo terror? Essas questões são es-pecialmente relevantes e inquietantes quando nos damos conta de que não muito tempo atrás o clamor por “Razão” sugeria associações com autonomia, liberda-de, justiça, igualdade, felicidade e paz.

Page 99: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

89

Faz sentido perguntar. Afinal de contas, a Razão se tornou um sinônimo direto da

máquina moderna de produção de igualdade forçada. Mas, mais que isso, o racionalismo

tornou-se o mecanismo em si de uma relação com o futuro motivada por uma agenda de

determinação na história. O futuro moderno, além de ser dado, era um futuro do qual não

se poderia escapar. Ora, mudamos nossa relação com o futuro. Aquilo que antes era cienti-

ficamente planejado a partir de projetos imaginados por um rebatimento do passado sobre

o presente − e, em conseqüência disso, de uma forma de construção do tempo que inseria

sempre o presente em uma grande história, em que grandes ondas se sucedem − tornou-se

um sistema de rebatimento do futuro sobre o presente, por meio de uma hercúlea busca

por garantias de que o amanhã não seja tão desconfortável quanto o hoje. O que mudou

entre um modelo e outro? Para Bauman (2001), saiu de cena a certeza e entrou em jogo a

insegurança. Ser emancipado, estatuto do homem pós-moderno, como ele descreve, é estar

ao mesmo tempo livre e desprotegido. As incertezas modernas eram etapas a serem galga-

das no caminho inevitável da superação, as de hoje, são dados inevitáveis sobre o que não

se sabe no que vai dar. Bauman (2000, p. 26):

Difunde-se a consciência de que, ao contrário das incertezas de outrora, a imprecisão dos sinais da estrada da vida e a indefinição dos pontos de orientação existencial já não po-dem mais ser vistas como uma amolação passageira provavelmente superável com mais informação e instrumentos mais eficazes; torna-se cada vez mais óbvio que as incertezas de hoje são, para usar a expressão de Anthony Giddens, fabricadas − de modo que viver na incerteza revela-se um estilo de vida, o único estilo da única vida disponível.

O que pode representar um contexto como esse para a indignação e, em conseqüência, para

a idéia de uma política que queira transformar as ordens sociais? Mais uma vez, Bauman (2000,

p. 28): “A insegurança sobre como ganhar a vida, somada à ausência de um agente confiável

capaz de tornar essa situação menos insegura ou que sirva pelo menos de canal para as reivindi-

cações de uma segurança maior, é um duro golpe no coração mesmo da política de vida”.

Page 100: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

90

O que é o conhecimento em um contexto como esse? Antes de tudo é o porta-voz

dessa incerteza inevitável. A informação que chega diariamente pelo jornal apenas reitera

o quão inexorável é uma impossibilidade. A leitura dos jornais sobre o Primeiro de Maio

no período estudado − imaginada ao lado do noticiário de TV, ou seja, do enorme volume

de discursos circulantes, da própria esfera pública, portanto − mostra a inutilidade da luta:

ano após ano, o Dia do Trabalho recoloca o mesmo debate sobre a igualdade, sem que o

presente mude, sem que o futuro chegue. Além disso, essa mesma produção está inserida

em um contexto de excesso de informação. Há um forte tédio do conhecimento no mundo

contemporâneo, sobretudo diante do conhecimento produzido diariamente. Nada parece

surpreender mais o homem emancipado, nada mais parece capaz de indigná-lo. A noção

de informação pública se tornou algo tão amplo − no sentido de alcançar cada vez mais

indivíduos, com um discurso cada vez mais mediano − e, ao mesmo tempo, tão restrito −

no sentido de exigir filtragem e, com isso, produzir um noticiário cada vez menos variável

− que tudo o que se pode esperar do conhecimento é que ele se coloque como um dado

acessório. O dado principal sobre a realidade, o jornal mostra diariamente, é que ela não

muda, opera por meio do provável, não está preocupada − como disse na Introdução − se

“um outro mundo é possível” ou não.

Bauman (2000, p. 14) diz que “o problema com a nossa civilização é que ela parou

de se questionar”. Esse processo de questionamento tem raízes mais profundas do que

apenas o pôr em dúvida uma informação. D’Amaral (2002), constrói seu argumento sobre

a atualidade no fato de que as perdas de referência dos grandes sistemas de pensamento −

filosofia, história e ciência − colocaram o problema de uma crise do próprio processo de

pensar, o que para ele é necessariamente um “inquietar-se diante do fato de que existem

coisas e não, em seu lugar, nada”. Tomada politicamente, essa constatação ontológica po-

Page 101: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

91

de ser pensada como a inauguração de um mundo que se recusa a uma operação que confi-

ra valor ao movimento de conhecer e que, com isso, retira o valor das coisas. Para essa

leitura, restam, no mundo contemporâneo, apenas processos. “Tendemos a nos orgulhar do

que talvez devêssemos nos envergonhar: de viver em uma época ‘pós-ideológica’ ou ‘pós-

utópica’, de não nos preocuparmos com uma visão coerente de boa sociedade e de ter tro-

cado a preocupação com o bem público pela liberdade de buscar satisfação pessoal”, diz

Bauman (2000, p. 16). Parece ser um paroxismo da leitura de Bouveresse (p. 11) sobre a

idade das luzes: “A ‘distração’ do Iluminismo, que consiste em se crer que é suficiente dar

instrução ao homem para fazer dele melhor ou mais racional e mais sábio, foi combatida

muito tempo antes pelos pensadores que tinham uma percepção imensamente mais realis-

tas da situação”4. Hoje, é o próprio senso comum quem renega essa perspectiva como uma

tolice, como mais um dado fantasioso da modernidade.

Gostaria de retornar a Bernstein e a seu questionamento sobre o ódio para com a Ra-

zão no mundo moderno e contemporâneo. Ele parte da visão utopista de Condorcet, mani-

festada em seu Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano,

escrito entre julho de 1793 e março de 1794, para fazer uma história da Razão e de como

ela se tornou o fantasma que aponta. Primeiro (p. 33), Bernstein destaca que “com a in-

venção da imprensa, o bom trabalho dos publicistas e especialmente com a educação pú-

blica, toda a iluminação da Razão se espalharia por toda a humanidade”, para logo depois

(p. 35), entretanto, observar que “a partir do ponto de vista das décadas finais do século

XX, com lembranças vivas de totalitarismo bárbaro, campos de concentração e do ainda

presente risco de cataclisma nuclear, é difícil resistir à tentação de ler o Esboço, testamen-

to de Condorcet sobre o futuro − nosso tempo − com sardônica ironia”.

4 Grifo dele.

Page 102: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

92

Ele prossegue com uma leitura da obra de Max Weber, para mostrar como este é, ao

mesmo tempo, herdeiro do Iluminismo − em sua apaixonada defesa do chamado (Beruf) da

ciência − e um de seus mais severos herdeiros (ao começar a expor aquilo que Adorno e Hor-

kheimer chamariam de “a dialética do Iluminismo”). Weber criticou severamente a idéia de

história como processo evolutivo e, como diz Bernstein (p. 36), “se o Iluminismo se compro-

meteu a destruir mitos, superstições, ilusões e preconceitos, então Weber − segundo sua tradi-

ção − busca expor e esmagar a mítica em torno dos padrões do próprio Iluminismo”.

A tese de Bernstein obedece a dois princípios gerais. O primeiro é a confirmação da cons-

tatação feita pelo filósofo moral Alasdair MacIntyre: “Nosso tempo, em sua apresentação de si

mesmo, é predominantemente weberiano”. A segunda é a de que está certa uma tese que pode

ser depreendida de Weber a respeito da racionalização5 do mundo moderno, a idéia de que ela

própria conduziu ao desencanto em relação à Razão e ao conhecimento. O autor cita Weber, em

um texto de 1906, em que ele dissocia a idéia de progresso natural do projeto capitalista:

É profundamente ridículo enxergar alguma ligação entre o capitalismo avançado de hoje − da forma como ele está sendo importado atualmente para a Rússia e como já existe na América − com a democracia ou com a liberdade em nenhuma acepção dessas palavras. Ainda que esse capitalismo seja um inevitável resultado de nosso desenvolvimento econômico. A questão é: como liberdade e democracia são possíveis de alguma forma sob a dominação de um capitalismo altamente de-senvolvido? Liberdade e democracia só são possíveis onde a vontade resoluta de uma nação de não se permitir ser controlada como uma ovelha esteja permanen-temente viva (WEBER, apud BERNSTEIN, p. 36/37).

Para Bernstein (p. 37), o que mais chama a atenção no pensamento de Weber é que ele

deixa claro que não acredita em uma tendência utópica na construção do moderno pela razão:

“A modernidade não é caracterizada por uma inclinação universal para − e nem por uma insti-

tucionalização de − direitos naturais, mas por um novo politeísmo de batalhas, incomensurá-

5 A noção de racionalização de Weber é bem mais complexa que a de Condorcet, não corresponde especularmente à idéia iluminista de Razão. Mas é justamente nessa diferença, Bernstein mostra, que está o argumento de Weber.

Page 103: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

93

veis comprometimentos de valor, por uma nova e violenta luta entre deuses e demônios”. O

argumento mais gritante de Weber, nesse caso, entretanto, é o da oposição à idéia de que o

progresso da ciência pode informar o homem sobre a melhor maneira de se viver. Tenta-me

anexar a essa proposição a observação de Durkheim (1995, p. 46) sobre o papel do conheci-

mento científico na construção de uma vida melhor:

Ora, se a ciência não pode nos ajudar a escolher o melhor objetivo, como poderá nos indicar o melhor caminho para chegar àquele objetivo? Por que ela deveria reco-mendar que escolhêssemos o caminho mais rápido à preferência do mais econômico, o mais certo em vez do mais simples, ou vice-versa? Se ela não é capaz de nos guiar na definição de nossos fins mais elevados, terá ainda menos poder para determinar aqueles fins secundários e subordinados a que chamamos de meios.

Mas é no tema do chamado “paradoxo da racionalização” que se encontra a mais forte

contribuição de Weber para o problema, segundo Bernstein. Para isso, a análise de Albrecht

Wellmer descrita pelo próprio Bernstein (p. 40) é central:

Através de suas análises dos correlatos institucionais da racionalização progressiva − economia capitalista, burocracia e ciência empírica profissional − [Weber] mostra, ao mesmo tempo, que a “racionalização” da sociedade não levou consigo nenhuma perspectiva utópica, em vez disso, está mais para ter levado a um crescente aprisio-namento do homem moderno em sistemas desumanizados de um novo tipo de cres-cente “reificação”, como Lukács, discípulo de Weber, depois chamaria.

Trata-se, então, de se demonstrar que o procedimento moderno de primazia da Ra-

zão foi, ele mesmo, responsável pelo crescente descrédito do conhecimento como força

propulsora para o crescimento. Toda a idéia nasce no fato de que a modernidade, através

da Razão, criou uma fôrma de sistemas que, na verdade, desumanizaram o homem − cer-

cearam sua liberdade individual −, o que fez da própria Razão um oponente.

O cinismo está intimamente ligado a esse desencanto com o conhecimento. Mas, na

verdade, há uma aparente contradição nessa operação, como já insinuei na Introdução: ao

mesmo tempo que o cínico é um filhote do desencanto com o saber, ele é também defen-

Page 104: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

94

sor de uma forte atrelagem ao real palpável. Isso porque mudou justamente o uso feito do

conhecimento, uma vez que mudou a relação dos atores com o tempo. De painel em que se

espelhar, o conhecimento tornou-se sistema de apostas. “Da utopia, migrou-se para as

probabilidades” (AGUIAR; WERNECK, 1999). O conhecimento a que se recorria na mo-

dernidade era o dos mecanismos ocultos por trás dos procedimentos da ordem social. A

idéia envolvida na economia da alienação (e da falsa consciência) e emancipação pressu-

punha que só o fato de que havia um conhecimento de nós ocultado pelo poder já seria

suficiente para mobilizar a luta pela transformação da situação de ocultação. O conheci-

mento a que se recorre na pós-modernidade é o dos cenários de probabilidade futuros pró-

ximos, o que faz do presente uma constante repetição.

Diante desse mais-do-mesmo é que se constitui o argumento do cínico. Observador, ele

reparou que o jornal de hoje é virtualmente igual ao jornal de ontem. Podem mudar as ima-

gens, mas as estruturas dos fatos, o plano sobre o qual eles se manifestam, permanecem os

mesmos. O único conhecimento que faz sentido, então, para ele, é: a realidade é conservadora.

Este mundo é inevitável. A luta é inútil. Como a eficácia é seu padrão moral, cabe a ele man-

ter a bicicleta na corda bamba, discretamente, apenas se dando ao luxo de lançar ao público

pedidos de desculpa por não revelar segredos de sua mágica. A desculpa é boa: afinal de con-

tas, não há mesmo o que revelar, todos já sabem que é um truque. Ele, que não é tolo, apenas

aproveita aplausos e flores que, esporadicamente, são lançadas da platéia.

Page 105: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

3 − PRIMEIRO DE MAIO

Page 106: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

96

3.1 − A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO

Foto: Sérgio Castro/Agência Estado

Diante da massa, o indivíduo repousa, inerte. A imagem acima, publicada na primeira pá-

gina do jornal O Estado de São Paulo em 2 de maio de 1998, sábado, é um emblema. Parece

uma conspiração ou uma cena preparada ao extremo, conquanto seja, na verdade, um trabalho

documental, jornalístico. Seu poder simbólico, entretanto, salta de cada um de seus detalhes: do

cartaz que, no meio da multidão, praticamente lhe serve de legenda, indicando as comemorações

do Primeiro de Maio como seu pano de fundo, à caixa de papelão desmantelada que, surgida na

linha dos pés do personagem, traz a irônica frase “Não colocar peso em cima”, reforçando o tom

de ociosidade; do gramado fofo que, captado no nível do solo pelo fotógrafo, praticamente con-

vida a se invadir o plano para dividir a soneca, ao tornozelo desnudo da figura adormecida, que

parece um escape de humanidade em sua indumentária desapropriada para aquele sol.

Page 107: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

97

A legenda da imagem no jornal:

Dia do Trabalho: Um trabalhador repousa no gramado do Pacaembu, lotado com 70 mil pessoas atraídas pela festa do 1o de Maio, em que a Força Sindical sorteou 10 automó-veis, promoveu jogo de futebol e evitou transformar a data em mais um ato de protesto.

Na mesma primeira página, uma chamada secundária parece servir de segunda le-

genda para a foto: “Trabalhador troca protesto por sorteios”. No mesmo dia, o Jornal do

Brasil ostentava em sua primeira página também uma grande foto, em que se vêem milha-

res de manifestantes no Pacaembu. Depois, na cobertura efetiva do fato (AGUIAR, 1998,

p. 4), faria eco à legenda da foto do Estadão1:

O sorteio de 10 automóveis zero quilômetro e uma farta distribuição de prêmios que incluiu 90 aparelhos eletrodomésticos levaram 50 mil pessoas2 ontem ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, na comemoração do Dia do Trabalho promovido pela For-ça Sindical (...) A CUT optou por um ato político de protesto contra o desemprego e não conseguiu reunir mais de 3 mil pessoas no auge da manifestação na Av. Paulista.

De volta à foto emblemática de O Estado de São Paulo, o que há de simbólico é que

ela consegue se fazer imagem-síntese daquilo que expus até aqui: de face virada para o céu,

os olhos protegidos da luz pelos braços, o trabalhador ignora por completo a manifestação −

imagina-se, barulhenta − que o cerca. Não deixa de ser um ato ironia − embora para muitos

analistas possa ser apenas uma mostra de alienação − e um ato de uma ironia muito especí-

fica: nada daquilo, da manifestação, das reivindicações, dos protestos, parece conseguir a-

trair sua atenção. Para ele, todo aquele espetáculo, toda aquela reencenação da luta de clas-

ses, não parece ser mais do que apenas uma encenação de fato, um gesto cenográfico e, no

limite, inútil. Virar a cara e dormir uma atitude cínica por excelência.

1 Tratarei por vezes os jornais por seus nomes conhecidos: Jornal do Brasil por JB; O Estado de São Paulo por Estadão; e Folha de S. Paulo por Folha. 2 A disparidade entre os dados de participação entre um jornal e outro provém da própria discrepância entre as informações oriundas da Polícia Militar e das organizações dos eventos, um problema que acompanhará toda esta análise. Isso não será um problema, entretanto, uma vez que o que interessará a ela mesmo serão as ordens de grandeza e não os valores exatos de número de manifestantes.

Page 108: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

98

Mas eis que a ironia da imagem é ainda maior. Observada e perto, a manifestação re-

tratada na foto revela uma estranha cumplicidade entre o dorminhoco e os outros, nela

minúsculos, que lotam o estádio. A aproximação é revelada na distância entre o teatro

mesmo da manifestação e seus bastidores, apresentados na cobertura de três jornais. A

reportagem da Folha de S. Paulo (ESPÓSITO, 1998, p. 2-1), por exemplo, é reveladora:

As comemorações do Dia do Trabalho ontem em São Paulo mostraram a distância e-xistente entre as duas principais centrais sindicais do país, a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a Força Sindical. Enquanto a CUT optou por realizar um ato políti-co, que reuniu cerca de mil manifestantes em uma passeata, a Força Sindical atraiu o trabalhador com sorteios de carros e outros prêmios, levando 66 mil ao estádio do Pa-caembu. (...) De meados de fevereiro até o final de abril, os 14 sindicatos consegui-ram quase 50 mil novos sócios. Somente trabalhadores sindicalizados poderiam con-correr aos prêmios sorteados ontem. (...) A falta de tom político no evento da Força Sindical, entretanto, foi percebida nas palavras dos próprios ganhadores dos prêmios. O pedreiro Givaldo Bento, 32, por exemplo, ficou com um dos dez veículos Corsa 1.0 sorteados. Ele é sindicalizado há cerca de uma semana. Precisava de atendimento mé-dicos e foi ao sindicato. Filiou-se e, de cupom na mão, foi ao estádio com a família. O metalúrgico Elismar Antônio Costa Vieira, 32, foi ao Pacaembu levando o cupom de um companheiro que trabalha na mesma fábrica. Um dos carros sorteados saiu para o amigo. "Sou sindicalizado há um mês e entrei para o sindicato por causa da campa-nha", disse enquanto comemorava a sorte do amigo.

Nos três jornais, fica clara a impressão de que não é o conteúdo político o que interessa

aos presentes no evento promovido pela central sindical. Pois bem, é disso que se trata: a ca-

pacidade de mobilizar o trabalhador não-militante, o cidadão comum. Aquilo que move mais

fortemente esta pesquisa, como já mostrei nos capítulos precedentes, é o questionamento so-

bre como a argumentação cínica pode agir sobre a ordem pública, de forma a justificar, des-

culpar, a inação política dela. Na matéria acima, um curioso jogo entre alienação − no sentido

marxista − e da “falsa consciência esclarecida” de Sloterdijk se apresenta. É difícil precisar

qual dos dois move os ganhadores dos automóveis. Seus discursos, entretanto, apresentados

publicamente em primeiros de maio dos anos 80 e 90/2000, servirão para, a partir de agora,

procurar o espírito do cinismo, esse conjunto de impressões um tanto irônicas que desqualifi-

cam a alternativa como alternativa, que interditam o “outro mundo possível”.

Page 109: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

99

A leitura das edições dos primeiros dias de maio dos jornais ao longo do período es-

tudado mostrou um dado do qual não se pode fugir: o Primeiro de Maio assume de fato

uma dimensão fortemente simbólica − em certo sentido, mítica − no calendário da classe

trabalhadora. Por mais que, ao longo dos anos, a partir do governo Vargas, ele tenha sido

convertido em data de dissídio universal por conta da divulgação da taxa de aumento do

salário mínimo, não importa apenas o quão a questão social − no sentido de Castel − do

trabalhador vem à tona nessa data. O valor simbólico se pronuncia inclusive em um au-

mento da expressividade do movimento sindical − findado o período do sindicalismo

chamado “pelego” que marcou uma forte promiscuidade entre Estado e sindicato no Esta-

do Novo e após −, que tem marcado suas grandes movimentações de expressão nacional

para a data. É como se a movimentação política da classe trabalhadora obedecesse a outro

calendário. Como disse antes, para todos os efeitos, para a militância trabalhadora, o Pri-

meiro de Maio é o Primeiro de Janeiro.

A cobertura do Dia do Trabalhador pode ser dividida em dois momentos, correspon-

dentes aos dois dias em que é realizada: nos jornais publicados no dia 1o de maio, são pu-

blicadas matérias que anunciam a data e que preparam os leitores para os acontecimentos

do dia; nos do dia 2, publicam-se as coberturas dos eventos realizados para marcar a data.

No primeiro caso, trata-se de um noticiário voltado para o debate. Até os anos 90, era pra-

ticamente uma regra nos jornais ser publicado um texto com a origem histórica do feriado.

É nesse dia também que se encontram, geralmente, editoriais voltados para o tema e em

que a temática política da data é mais relembrada. No caso do segundo dia, os jornais ten-

dem muito mais para o noticioso, para as ocorrências efetivas e seus desenrolares. O jor-

nal de 1o de maio é, nesse sentido, uma geografia da data, uma preparação de terreno, e o

de 2 de maio é uma historiografia, uma narração.

Page 110: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

100

Fica, então, com esta divisão a cobertura: 1) um conjunto de expectativas a respeito da

data, correspondentes ao que se esperava do dia e àquilo que estava em discussão a seu respei-

to e por conta dele; 2) um conjunto de fatos concretos observados nas manifestações do dia 1o

de maio e que dariam origem a novos debates e retroalimentariam sua carga simbólica. É pela

composição dos dois tipos de abordagem que se pode fazer um retrato de como a esfera públi-

ca percebeu o Primeiro de Maio em cada momento da história que estou fazendo.

Todo o conteúdo de símbolo da data em questão é, claro, antes de tudo, fruto do

processo histórico que fez de 1o de maio, Primeiro de Maio. A história (RODRIGUEZ,

1991) da instituição do Primeiro de Maio como Dia Internacional do Trabalho é justamente

o primeiro elemento a sustentar o mito da data. A luta originária foi a da redução da jornada

de trabalho para níveis humanamente sustentáveis. Desde a segunda década do século XIX,

líderes dos trabalhadores nos Estados Unidos e Inglaterra organizavam protestos pela redu-

ção da jornada de 12 horas para oito horas e pela limitação dos trabalhos infantis. Mas só

em agosto de 1866, o Congresso Operário de Baltimore, nos EUA, definiu a conquista das

oito horas como a luta central da classe no país. Em 25 de junho de 1868, diante dos protes-

tos que surgem em várias regiões, o parlamento americano aprovou a Lei Ingersoll, que fi-

xava a jornada de trabalho em oito horas. Mas a norma definia inúmeras situações em que

as necessidades específicas de empresários poderiam ser usadas como justificativas para

ampliação dos turnos, o que, na prática, mantinha a jornada superior a oito horas.

Os anos de 1870 e 1880 foram marcados por muitos e violentamente reprimidos protestos

em favor da redução efetiva da jornada, sobretudo nos Estados Unidos. Em abril de 1886, os

enfrentamentos começaram a explodir em diversas cidades. Vários empresários cederam e acei-

taram assinar contratos com redução da jornada para oito horas diárias. Os protestos se alastra-

ram pelo país e, em Chicago, sede da vanguarda do empresariado americano na época, várias

Page 111: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

101

passeatas foram marcadas para o início de maio e uma promessa de repressão era notória. No

dia 1º de maio, a cidade amanheceu completamente parada. Milhares de pessoas aderiram ao

chamado das organizações sindicais cujo lema era: “Nenhum operário deve trabalhar mais de

oito horas por dia”. Uma grande passeata, formada por milhares de trabalhadores foi feita no

centro e se dissolveu pacificamente após um comício, que marcaria outro protesto para dali a

dois dias. No dia 3, a polícia atirou em um grupo de operários que protestavam diante de uma

fábrica, matando dois deles, deixando cinqüenta feridos e centenas de presos. Um novo protesto

aconteceu em 4 de maio, mas ele foi dispersado por uma tropa de quase 200 policiais. Na con-

fusão, uma bomba explodiu entre os guardas e reforços foram chamados para coibir a manifes-

tação, o que resultou em milhares de prisões e dezenas de mortes, ambas de trabalhadores.

Sete operários, August Spies, Sam Fielden, Oscar Neeb, Adolph Ficher, Michel Schwab,

Louis Lingg e Georg Engel, foram levados ao tribunal. O julgamento começou no dia 21 de junho

de 1886. Pouco tempo depois, a sentença condenou Engel, Fischer, Lingg, Spies e Robert Par-

sons, preso foragido que havia se juntado ao grupo por sua própria vontade no meio do processo,

a morte; Field e Schwabb à prisão perpétua e Neeb a 15 anos de prisão. Em 11 de novembro de

1887, os condenados à morte foram executados. No dia, apesar do aparato policial, seis mil traba-

lhadores carregaram os restos mortais de seus líderes. Em 1892, pressionado pela persistente onda

de protestos contra a iniqüidade do processo, o governador do estado anulou a sentença, libertou

os presos e acusou de infâmia o juiz, os jurados e demonstradas falsas testemunhas.

Os eventos de 1886/87 tornaram-se símbolo de luta da classe trabalhadora no mundo

inteiro. Em dezembro de 1888, a Federação Americana do Trabalho aprovou a proposta de

realizar uma nova greve geral no dia 1º de maio de 1890 para estender a jornada de oito

horas a todo o território americano. A decisão acabaria tendo repercussão no Congresso

Socialista que em julho do ano seguinte reuniria em Paris 391 delegados de 20 países.

Page 112: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

102

Entre suas decisões, o 1º de maio de 1890 foi escolhido para uma grande manifestação

internacional a impor aos poderes públicos a redução legal da jornada de trabalho para

oito horas diárias. Seria o Dia Mundial do Trabalho. A partir dali, o dia se tornaria a data,

e anualmente seria lembrada em todo mundo, menos nos Estados Unidos. Lá, o Primeiro

de Maio é chamado “May Day” e não é associado à luta da classe trabalhadora. O Dia do

Trabalho, no EUA, é comemorado na primeira segunda-feira de setembro.

No Brasil, enquanto o Congresso Socialista de Paris deliberava sobre o 1º de maio de

1890, o mês de maio marcava o primeiro aniversário da Lei Áurea, com a qual se abolira a es-

cravidão. Em 1900, a classe operária ainda era pequena e não reunia mais de 55 mil pessoas. Os

problemas com a jornada de trabalho e o trabalho infantil, entretanto, eram os mesmos enfrenta-

dos em outros países mais industrializados. Talvez por isso, já havia grupos a comemorar o Pri-

meiro de Maio e, claro, havia repressão a eles. Ali, inclusive, começaria a nascer uma imprensa

sindical brasileira. Em 1906, aconteceu no Rio de Janeiro o 1º Congresso Operário Brasileiro,

que deliberou por centrar a luta operária nacional na conquista da jornada de oito horas. Em suas

conclusões, os delegados condenaram festas promovidas pelos empresários para a data (medida

claramente adotada para esvaziar seu conteúdo político), e incitavam os operários a protestar

contra a repressão e a fazer do 1º de maio de 1907 o momento em que o operariado do Brasil

imporia a redução da jornada de trabalho. Em São Paulo, o 1º de maio de 1907 transcorreria com

a proibição de uma concentração marcada pelos sindicatos na Praça da Sé, enquanto soldados e

policiais ocupavam as ruas do centro. A Federação Operária de São Paulo convocaria, então,

uma reunião na sua sede para discutir os rumos a serem tomados e três dias depois, os metalúrgi-

cos da capital entrariam em greve, seguidos por várias outras categorias, inclusive em outras

cidades paulistas. Na paralisação, muitos manifestantes seriam presos. Dali para frente, a história

da data seria marcada por vários conflitos. Em 1917, Primeira Guerra Mundial e Revolução Rus-

Page 113: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

103

sa às portas, os operários têxteis do Rio que faltaram ao trabalho para participar das comemora-

ções do 1º de maio seriam punidos e decidiriam paralisar a produção. O movimento atinge Pe-

trópolis, Juiz de Fora e se espalha até o Rio Grande do Sul. O seu ponto mais alto é na cidade de

São Paulo, em julho do mesmo ano, quando, apesar da repressão, o comando de greve chegaria a

controlar a distribuição dos gêneros de primeira necessidade. Os patrões se vêem forçados a a-

tender várias reivindicações, mas se opõem à redução da jornada de trabalho.

Em 26 de setembro de 1924, um decreto do presidente Artur Bernardes transformou a da-

ta em feriado nacional. Mas a medida é considerada uma jogada para apropriação da data pelo

capital, já que foi criado o feriado, mas não se corrigiu o problema que tinha sido sua origem:

não se criou uma lei que reduzisse a jornada de trabalho. Foi apenas no Estado Novo, entre

1930 e 1945, que a jornada de trabalho começou a ser regulamentada em oito horas diárias. Ao

mesmo tempo, entretanto, o Primeiro de Maio passou ali a ser uma festa governamental, em um

cenário de sindicalismo subserviente ao Estado, primeiro na forma do populismo da era Vargas,

depois em um quadro que se manteria por muito tempo depois do fim do Estado Novo, até o

final dos anos 70. O sindicalismo “pelego” se manteria como um padrão no país até aquele

momento, quando um quadro de lutas se consolidaria a partir da luta pela redemocratização e do

surgimento de uma nova geração de sindicalistas. Giannotti (2002, p. 15), localiza em 1978 uma

virada no comportamento do movimento sindical brasileiro:

Ainda em plena ditadura militar, as classes trabalhadoras do Brasil foram protagonistas de uma tremenda explosão de lutas operárias, sindicais e populares. O panorama das lu-tas sociais do país mudará rapidamente. O Brasil passará a ser falado no mundo, não só como o país do futebol e do samba, mas também como um país com uma classe traba-lhadora combativa que faz assembléias e piquetes de dezenas de milhares de pessoas.

Também Santana (p. 287) chama a atenção para aquele ano como um marco:

Quando os metalúrgicos do ABC paulista entraram em greve em 1978, abrindo ca-minho para a paralisação que se seguiu em outras categorias, eles rompiam com os limites estreitos estabelecidos pela lei antigreve, com o “arrocho salarial” e o silên-

Page 114: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

104

cio geral ao qual havia sido forçada a classe trabalhadora pelo menos desde as greves de Contagem e Osasco, em 1968. Com isso, eles impactaram alguns dos pilares de sustentação política e econômica da ditadura militar.

Santana chama ainda a atenção para o fato de que o “novo sindicalismo” que começava

ali a nascer, tinha, naquele momento a estratégia de denunciar a falsidade cínica do processo

de negociações então em vigor. “A política do sindicato, então, era trazer a público o que seria

uma farsa de participação gerada pelo governo e deixar um vazio em termos da parte referente

à representação dos trabalhadores”, diz ele (287-288). Mas a constatação mais forte a que ele

(p. 289) chega sobre o ano é mesmo o seu papel inaugural:

Após a greve de 1978, tornaram-se possíveis outras mobilizações, em um pro-cesso que se consolidaria com as greves de metalúrgicos em 1979 e 1980, às quais, em volume ainda maior que na anterior, se incorporam outras categorias (bancários, petroleiros, professores etc.) em todo o país, em uma verdadeira as-censão da classe trabalhadora no Brasil do período.

Toda essa história, entretanto, é paralela a outra, a da consolidação de uma moral do

trabalho no país, que o positiviza como mola principal da sociedade. Antônia Colbari (1998,

p. 8), sustenta que “a motivação para o trabalho, ainda que desencadeada por uma racionali-

dade referida a fins econômicos, legitima-se por meio de valores e idéias afirmados simboli-

camente”. Com isso, ela chama a atenção para o fato de que há uma dimensão moral primor-

dial na ação do trabalhador e que sua motivação para se inserir no sistema capitalista é mol-

dada por essa motivação (como justamente propõem, como mostrei, Boltanski e Chiapello).

Em outro momento, Colbari (p. 15), expande essa análise para a manifestação política

da classe trabalhadora, dando a ela uma outra dimensão:

A forma como atualmente se projetam as manifestações de resistência da classe operá-ria, e mesmo do conjunto de trabalhadores assalariados, não pode ser entendida separa-damente do contexto social e político mais geral. O padrão moderno de conflito envolve as relações entre a fábrica e a sociedade, entre a estrutura social e a classe trabalhadora.

Page 115: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

105

O Primeiro de Maio, então, pode ser pensado, ao mesmo tempo, como data de luta e

como elemento moralizador, como painel para tentativa de conquista da anuência do pró-

prio trabalhador para a causa trabalhadora. Se, como mostram Boltanski e Chiapello, o

capital tem que justificar a participação de trabalhador e capitalista em um sistema “ab-

surdo”, também a parte engajada da classe trabalhadora tem igualmente que justificar a

existência de uma luta para o trabalhador comum. Ora, ambas as justificações são feitas

no campo simbólico. Antônia Colbari (p. 7) mostra como o capital trabalha no campo

simbólico para, através da eleição de um operário-padrão em um concurso, conquistá-lo.

Em seu estudo, ela chama a atenção para o quanto essa operação é feita através da produ-

ção de uma moral ligada a elementos que pouco tem a ver com o trabalho em si:

Muitos dos elementos que compõem a imagem do operário-padrão são estranhos à condição de trabalhador livre e à lógica mercantil que preside a transação da mercado-ria força de trabalho no mercado; não se restringem ao desempenho profissional. À performance profissional alinham-se atributos e sentimentos estranhos à condição de produtor: honestidade, solidariedade, caridade, fé religiosa, companheirismo, qualida-de de “bom pai”, “bom marido” e “bom sujeito”, no trabalho e na comunidade.3

O caso do Primeiro de Maio é bastante semelhante. Também em torno dele circulam

elementos que não são propriamente ligados à dimensão meramente econômica da classe

trabalhadora. O Dia do Trabalhador possui uma dimensão moral-pedagógica. Mais que

isso, aliás, ele é a manifestação maior de um espírito da classe trabalhadora, espírito cen-

trado no fato de que todos os trabalhadores de um país (ou, para os mais marxistas, todos

os do mundo) estão unidos sob uma mesma categoria, com os mesmos debates e as mes-

mas reivindicações. É um fator de pertencimento à própria ordem social. Como mostrei

acima, essa unidade está em crise, mas a leitura dos jornais de mais de duas décadas mos-

tra que, independentemente do contexto histórico, parece persistir o valor simbólico em

torno dela operado no Primeiro de Maio. 3 Grifo dela.

Page 116: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

106

Em todos esses momentos, a data, como mostrarei à frente, foi o marco maior do ano

operário. A sensação de que as portas estão abertas para o debate sempre se manifestou diante

da chegada da data, como constatava o editorial da Folha de S. Paulo de 1o de maio de 1981,

sexta-feira: “As diferentes formas através das quais se rememora essa data, nos variados paí-

ses, são indicativas não só do papel que neles desempenham os trabalhadores, mas também da

importância que se lhes atribui, ou ainda do temor que despertam”. Vale, entretanto, mostrar

uma oposição curiosa. Em 1o de maio 1984, terça-feira, a primeira página do jornal Folha de

S. Paulo, assim como seus pares pesquisados, não dava como título principal o Dia do Traba-

lhador. Preferia, como os outros, levar para o topo de página e para o título de corpo maior o

presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo, que fizera um discurso em cadeia nacional de

televisão para conclamar os políticos da oposição a negociarem as possíveis reações às medi-

das cerceadoras “de emergência” impetradas por seu governo dias antes (e que seriam revo-

gadas no dia 3 de maio). Na mesma primeira página, entretanto, em letras de mesmo tamanho,

estampava uma segunda chamada forte: “Um primeiro de Maio pelas diretas-já”. Na página 2

da mesma Folha, para a qual o título apontava, o editorial “Diretas na praça”, dizia, a partir da

constatação de que a retomada da campanha pelas eleições diretas, combalida pela derrota no

Congresso do projeto que as permitiria, exigiria a abertura de negociações com as camadas

mais conservadoras, representadas pela situação:

Seria um grave equívoco, no entanto, querer esvaziar a praça pública a fim de facili-tar tais negociações no âmbito do Congresso Nacional. (...) Embora os atos públicos convocados hoje devam atrair principalmente trabalhadores sindicalizados, darão com certeza uma medida do ânimo do conjunto da população para manter erguida a bandeira das diretas-já (...) Não ao confronto irresponsável, mas a manutenção da pressão ordeira e legítima da cidadania sobre seus representantes eleitos.

No Jornal do Brasil do mesmo dia, a mesma preocupação estava manifestada. Fica claro,

aliás, na leitura dos três jornais, que havia uma forte expectativa em torno das manifestações

convocadas no Rio e em São Paulo pelas centrais sindicais para, no Dia do Trabalho, retomar a

Page 117: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

107

campanha das diretas. A sociedade dava licença para a politização da data, o que fica claro na

preocupação de que essa permissão fosse usada para capitalizar atos políticos de interesse pró-

prio. O editorial do Jornal do Brasil (p. 10), “Aliança enferrujada”, no mesmo dia, não deixa

dúvida quanto aos limites dessa utilização: “O sindicato não pode ser o lugar em que se sonha

com a sociedade perfeita, mas um centro de aglutinação de interesses e reivindicações atuais”.

O mesmo se sente da aparente indiferença do jornal O Estado de São Paulo que, ao longo do

período observado, sempre manifestou concordância com as críticas de seus pares por meio não

do ataque direto e sim do não-aprofundamento dos temas em questão. Assim, na edição de Pri-

meiro de Maio, em vez de mandar recados para o sindicalismo, o jornal simplesmente reportou

que os comícios tinham ligação com a campanha das diretas, com pouco destaque. Sem chama-

da em primeira página, saiu com duas matérias menores na página 4, apontando justamente para

entrada da campanha pelas diretas na pauta do Primeiro de Maio daquele ano.

Mais de duas décadas depois, a licença para a politização que ora se dava ao Primei-

ro de Maio é retomada na forma de uma nostálgica indignação por outro analista de jornal

(BUCCI, 29 de abril, 2001, p. B10), dias antes do feriado:

Por acaso, terça que vem é Primeiro de Maio. Pelo que me lembro, teria sido uma data histórica da classe operária, coisa que já não importa, naturalmente. Classe ope-rária designa um conceito em desuso, fora de moda. Mesmo assim eu me lembro. (...) Primeiro de Maio é o dia internacional de luta dos trabalhadores. De que importa tudo isso, hoje? Acho que nada. Entro na internet e vou ao site da Força Sindical e da CUT, as duas centrais sindicais mais fortes do Brasil. No primeiro, nada encontro sobre a história desse dia. O site da CUT traz dois breves artigos sobre as lutas do passado. Pelo menos isso. De volta ao site da Força Sindical, dou de cara com a or-ganização de um megaevento com astros da indústria fonográfica. As presenças prometidas vão de Zezé Di Camargo e Luciano a Daniel, Leonardo, e muitos pago-deiros. Sou surpreendido também pela presença de merchandising e de publicidade no supershow: “o evento é patrocinado por empresas como Brahma, Embraer, Tele-fonica (sem acento), GM, CBA (Companhia Brasileira de Alumínio), Caixa Econô-mica Federal e Bovespa.” Cotas de patrocínio serão comercializadas e os anuncian-tes terão seus logotipos espalhados por toda parte. E mais: sorteios de cinco aparta-mentos e dez automóveis para os sócios da entidade. Não quero generalizar, mas tenho a impressão de que a mídia e a indústria do entre-tenimento devoraram o Primeiro de Maio. Um misto de Baú da Felicidade e Festa do Peão Boiadeiro, com prêmios e cantoria, vai embalar o feriadão. Talvez os organiza-dores acreditem que, se não for assim, a massa não comparece. Pior: talvez estejam certos. Como um Sabadão Sertanejo. Como um Domingão do Faustão.

Page 118: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

108

O panorama das coberturas mostra que a melancolia do colunista não é de todo justificada.

Ao longo dos anos analisados − e mesmo antes deles, como comprova Santana − a precedência da

festividade sobre a “luta dos trabalhadores” não é uma surpresa. Em vários momentos, inclusive,

um menor entusiasmo contextual explicável caso a caso esvaziava os eventos marcados para cele-

brar a data. O que, entretanto, parece digno de nota e faz questão em relação à maneira como era

tratado o Primeiro de Maio no começo dos anos 80, são a comercialização do evento como uma

marca e os sorteios de prêmios. A prática foi instituída pela Força Sindical, entidade que se tornou

o grande espaço de um estilo de discussão das questões trabalhistas que, se floresceu no país ape-

nas no começo dos anos 90 − sobretudo no governo do presidente Fernando Collor de Melo −

conservou-se como um espectro e mesmo como prática no debate sobre a desigualdade no país: o

chamado “sindicalismo de resultados”. Na edição de 7 de dezembro de 2003, o jornal Folha de S.

Paulo publicou um conjunto de reportagens sobre como seria o Primeiro de Maio de 2004 para a

Central Única dos Trabalhadores (CUT). As matérias dão conta de como um mecanismo pratica-

do pela central “rival” da CUT, justamente a Força Sindical, passaria a ser usada por ela: a “mega-

festa” passaria a ser incorporada ao calendário de eventos da central que, descrevia a matéria,

crescia enormemente, sobretudo por conta de sua aproximação histórica com o presidente Luiz

Inácio da Silva. Para organizar os eventos festivos que “chegaram a reunir 6 milhões de pessoas

nos tempos da Força Sindical” (FERNANDES; ROLLI, 7 de dezembro, 2003, p. B1), a CUT

contratava um profissional da área de marketing, o mesmo que fora responsável pelos eventos da

oponente. Na matéria, anuncia-se para 1o de maio de 2004 as presenças do ministro da Cultura e

músico Gilberto Gil e a Orquestra Sinfônica de São Paulo, e se acena com a possibilidade de a-

presentações de nomes como os músicos populares Zezé Di Camargo & Luciano, Chitãozinho &

Xororó, Wanessa Camargo e o grupo KLB.

Page 119: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

109

O que está em jogo nessas observações? Justamente a perda do valor simbólico do Pri-

meiro de Maio. Mas o que está por trás desse descaimento? Minha hipótese é a de que dois

fenômenos operaram para isso e que ambos têm a ver com o cinismo.

O primeiro foi a chegada do cinismo à classe trabalhadora. Estou falando diretamente

de uma conversão de trabalhadores − sobretudo lideranças sindicais − em praticantes da

desculpa pela falta de ação por meio da redução ao ridículo, desculpa para escapar da in-

dignação diante da desigualdade instalada no seio do mundo do trabalho. Em lugar dela,

uma visão estrategista de obtenção de melhorias localizadas, isoladamente categoria a ca-

tegoria, com prioridade para a manutenção das conquistas de grupos mais fortes em termos

de negociação. Isso, claro, é completado pela argumentação e o pedido de desculpa, com a

demonstração − todas as vezes que uma justificação for exigida − de que se está isento da

inocência em se acreditar na luta operária. Ao citar este fenômeno, estou falando de duas

categorias de trabalhadores. A primeira é a dos executivos − sobretudo os do baixo clero da

estrutura gerencial, mais próximos da base da pirâmide e por isso mesmo mais críticos em

relação a ela e a suas “ilusões políticas”. A segunda categoria é a das lideranças sindicais

cooptadas para a defesa do capital. É o que Giannotti encontra no sindicalismo de resulta-

dos, com seu realismo estratégico. Para ele, é apenas de cinismo.

O segundo fenômeno que compõe a decadência do mito do Primeiro de Maio é, na ver-

dade, uma conseqüência indireta do primeiro, mas representa uma operação bem mais pode-

rosa: a aceitação, por parte da base da pirâmide da classe trabalhadora, dos argumentos do

cinismo. Não se trata, então, de o trabalhador adquirir o conhecimento que, desencantado, é

pai do cinismo. Trata-se de desculpar o cinismo e o adotar como um horizonte de tomada de

posição possível. É diante deste segundo fenômeno que esta dissertação mais se deparou ao

fazer a leitura da cobertura do Primeiro de Maio nos jornais.

Page 120: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

110

Trata-se, então, do espírito do cinismo, em fluxo discursivo, em franca atuação como retóri-

ca. Trata-se da partilha de uma mesma temática: o desencanto com a perspectiva transformadora

do conhecimento e da política e a ridicularização da ação radical − no sentido de Anderson. Trata-

se, no limite, de uma crise da indignação e da crítica, conforme apontada por Boltanski e Chiapel-

lo, mas lida sob o ponto de vista não de procedimentos discretos de prova, mas de procedimentos

amplos de aceitação ou, como tenho chamado, de desculpa. Não tentarei, no entanto, responder à

pergunta sobre por que a classe trabalhadora prefere desculpar o cinismo. Para isso, como mostra-

rei na Conclusão, é preciso fazer uma grande teoria social da desculpa − mapeamento de que este

trabalho serve apenas como um preâmbulo. Pode-se, desde já, mesmo sem fazer uma investigação

que cruzaria psicologia social, sociologia moral e análise jornalística (nos moldes realizados aqui)

desconfiar que essa explicação passa pela forma como a liberdade de consumo foi convertida em

bem a priori no mundo contemporâneo, conforme a análise de Bauman (1998; 1999; 2000; 2001).

Por aqui, entretanto, permitir-me-ei apenas dar conta do que está ao alcance das mãos: há descul-

pa, e ela aceita o cinismo, mais do que nossa consciência moral gostaria de admitir. E quando falo

“nossa” aproveito para chamar a atenção para o fato de que a escolha da classe trabalhadora como

objeto não se deu por acaso. É que ela é suficientemente abrangente para dar conta de todos nós,

inclusive nós, analistas. Falar do trabalhador é, falar, invariavelmente, do ator das ordens sociais.

Page 121: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

111

3.2 − O CINISMO CONTEMPORÂNEO MANDA NOTÍCIAS

A primeira questão que me ocorreu diante do universo do noticiário de três jornais

sobre um mesmo fato ao longo de 24 anos é: que relevância teve o Primeiro de Maio na

esfera pública brasileira? Verifiquei, então, as aparições do tema nas primeiras páginas dos

jornais, para ponderar sua presença no debate nacional. Essa análise partiu do pressuposto

de que se pode considerar que a escolha de um tema para figurar na primeira página o inse-

re no procedimento de dupla hermenêutica da atuação pública do jornal que já citei anteri-

ormente: ao mesmo tempo que a escolha do tema é motivada pelo interesse público que é

captado na feitura das edições, o interesse público passa a se voltar para o tema a partir de

sua aparição em uma primeira página. Em ambos os casos − independentemente da posição

de ovo ou galinha − o tema está em debate e com importância central para o público. A

leitura dessa importância é o primeiro dado de que lançarei mão para analisar o grau de

penetração do espírito do cinismo no ethos do Primeiro de Maio. Claro, essa não será uma

detecção direta, mas sim uma observação de tendências. Como disseram Sloterdijk (1987)

e Navia, o cinismo contemporâneo tem horror ao espetáculo, é sutil.

Ao longo do período analisado (1980-2003), o Primeiro de Maio esteve presente na primei-

ra página das edições de 1o e 2 de maio (e 3 de maio em casos de O Estado de São Paulo, con-

forme expliquei anteriormente) em 70% dos casos. Pode parecer uma participação não tão inten-

sa, se se comparar, por exemplo, com feriados como o natal, que seguramente aparecem na pri-

meira página de perto de 100% das edições dos jornais. Mas como o Primeiro de Maio é o único

feriado político do calendário brasileiro − os outros, salvo o Dia da Confraternização Universal e

o carnaval, são ou religiosos ou patrióticos −, fica claro que a unanimidade em torno de seu inte-

resse para a esfera pública difícil. Afinal, esse interesse depende de mobilização política.

Page 122: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

112

Isso fica ainda mais claro se se analisar um outro conjunto de dados observados: a

proporção de vezes em que o assunto foi considerado chamada principal da primeira pági-

na. A primeira composição possível dessa variável é a relação entre o número de vezes em

que o assunto teve chamada principal de primeira página e o número total de edições:

20%. A outra composição é a relação entre o número de aparições como chamada princi-

pal e o número de aparições na primeira página: 29%.

Números baixos compreensíveis por vários motivos. O primeiro é justamente a pecu-

liaridade que acabei de apontar para o Primeiro de Maio com feriado. Mas dois outros

detalhes devem ser levados em conta também na observação: o primeiro é o de que a co-

bertura de qualquer evento ou data marcante está submetida a uma variável aparentemente

inofensiva, mas que é de grande influência: o dia da semana em que a festa cai. No caso

do Dia do Trabalhador, do qual analiso a parcela de capacidade de manifestação popular,

isso é ainda mais forte. Um dos motivos para isso diz respeito à proximidade do feriado

em relação ao fim de semana. Dias 1o de maio que caem na segunda-feira ou na sexta-

feira tendem a se converter em feriados prolongados, o que costuma abater fortemente

possibilidades de mobilização − a debandada das cidades é grande. Ao mesmo tempo, a

data, caída em feriados prolongados ou no fim de semana pode resultar em coberturas

mais modestas. Por exemplo: quando o Primeiro de Maio cai em um sábado, o noticiário

sobre suas manifestações sai no domingo, um jornal que começa a ser feito já na sexta-

feira e que nos últimos anos tem circulado já a partir de sábado à tarde. Os eventos que

marcam a data costumam aparecer nas segundas edições, mas raramente tomam o lugar de

destaque que outros temas já haviam conquistado, salvo em casos extremos (a explosão de

uma bomba em uma manifestação, por exemplo). Por essa razão, assinalarei sempre o dia

da semana em que recaírem os primeiros de maio analisados.

Page 123: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

113

Outra variável relevante mais parece uma curiosidade, mas também não deve ser

desconsiderada. Trata-se do fato de que até o ano de 1991, o jornal O Estado de São Pau-

lo não circulava no dia 2 de maio. Dava folga a seus profissionais pelo Dia do Trabalha-

dor. Com isso, toda a cobertura do Primeiro de Maio ia para o dia 3. Essa passagem, claro,

fez com que a cobertura da data tivesse menos fôlego e com que ela se resumisse, geral-

mente, a uma pequena matéria, em nenhum momento com chamada na primeira página

(uma vez que o jornal do dia 3 referia-se, na verdade, ao dia 2 e carreava apenas alguns

detalhes do dia 1o para sua edição). Por conta disso, claro, a leitura, no caso desse periódi-

co, levou em conta não apenas os dias 1o e 2 de maio, mas também o dia 3. Obviamente,

isso impede a comparação direta das coberturas feitas pelos três jornais das manifestações

do dia 1o. Ora, meu interesse principal é analisar como podem ter mudado ao longo do

período em questão justamente o corpo de questões em torno do Primeiro de Maio − a fim

de demonstrar com isso a penetração da razão cínica no campo discursivo de desculpa da

classe trabalhadora − e como elas acabaram repercutindo para a reescrita da simbologia da

data. Assim, pareceu-me suficiente a leitura dos outros dois jornais (Jornal do Brasil e

Folha de S. Paulo) para a cobertura efetiva do que aconteceu nas comemorações do Dia

do Trabalhador, usando como apenas “desempate” a cobertura atrasada − e, portanto, me-

nos, digamos, entusiasmada jornalisticamente, de O Estado de São Paulo.

A terceira inferência estatística que pareceu relevante foi cisão justamente desse grau de

presença na primeira página ao longo do período em dois períodos: 1) os anos 80; 2) os anos

90/2000. Para os primeiros anos, esse número ficou em 80%. Para a segunda parte, cai para

63%. Observei a mesma divisão nos índices de chamada principal: principal no geral dos anos

80: 23%; principal no geral dos anos 90/2000: 18%; principal entre primeiras páginas dos anos

80: 29%; principal entre primeiras páginas dos anos 90/2000: 28%.

Page 124: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

114

Uma terceira classificação dos dados pareceu ainda mais relevante e foi a que permitiu

maior grau de observações: trata-se da aplicação da diferença entre as coberturas do dia 1o e

do segundo dia ao número e ocorrências de presença na primeira página. Pois consideradas

apenas as edições do primeiro dia (mais voltadas para as expectativas), 65% das edições pes-

quisadas em todo o período traziam o Dia do Trabalhador como destaque. Consideradas as do

segundo dia apenas (mais voltadas para o noticioso), o percentual é de 75%. Pouco acima, fiz

uma observação em relação às edições de O Estado e São Paulo e a passagem a cobertura da

data par o dia 3 de maio. Esse fato, claro, contribui para que o índice de presença dos eventos

na primeira página não seja mais alto (um dia depois, como disse, a importância dos eventos

fica reduzida e perde atualidade que justifique a presença na primeira página).

O dado mais significativo proveniente dessa análise, entretanto, é um dos mais sutis. Vem

quando se comparam as presença na primeira página no dia 1o com as do segundo dia (seja ele o

2 ou o 3) entre os anos 80 e 90/2000. A presença na primeira página feita no segundo dia cresce

de 73% para 76%. Ao mesmo tempo, entretanto, a cobertura em primeira página feita no dia 1o

de maio caiu de 87% para 50%. A observação dos dados mais de perto faz reparar que houve

uma inversão nos papéis dos dois dias na composição da cobertura. Se nos anos 80 há uma pre-

sença maior e cobertura no dia 1o e menor no 2, nos anos 90, esse dado se inverte e com a inten-

sidade de uma queda de 37 pontos. Isso indica o que posso chamar de uma eventização do Pri-

meiro de Maio nos anos 90/2000, ou seja, uma concentração das atenções nos eventos a posteri-

ori, em detrimento do debate político aberto pelas expectativas do Dia do Trabalhador. Esse dado

tem ainda mais sentido quando pensado juntamente à análise qualitativa que farei a seguir e que

já ficou um tanto insinuada na primeira parte deste capítulo. Com essa eventização, não são ape-

nas os eventos que ganharam mais espaço em comparação ao debate, mas os conteúdos das co-

berturas dos eventos também se tornaram mais pródigos em termos do espírito do cinismo.

Page 125: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

115

Observados esses dados quantitativos, é nos dados qualitativos, ou seja, na análise efeti-

va dos textos publicados, que se poderá encontrar de fato o sistema que sustenta o cinismo,

seu espírito. Esse espírito, como se viu (digamos, em teoria) e verá, faz humor do desejo de

transformação da política e coloca em seu lugar um olhar ultra-realista do mundo: é em um

conformismo pejado de eficácia que ele se revela. O que busco nesses textos, espero que até

aqui tenha conseguido deixar claro, é um conjunto de argumentos em favor dessa posição, um

conjunto de demonstrações de efetividade, de motivações para a desculpa.

A primeira observação geral que pode ser extraída da leitura é a de que há dois hemisfé-

rios a serem levados em conta no que diz respeito à percepção pública do Primeiro de Maio,

uma referente aos anos 80 e ao “novo sindicalismo” que surgia dos anos 70 e da luta pela re-

democratização, e uma referente aos anos 90, em que a data claramente tem sua imagem re-

negociada entre os atores. Essa explícita passagem mostra que o Primeiro de Maio serve como

um espelho da imagem mesma do sindicalismo ao longo do período, o que corrobora Santana

(p. 285), que, em sua história do movimento trabalhador brasileiro daquele momento, diz:

A década de 1980, caracterizada pela abertura política (em que o regime militar im-plantado no país em 1964 ia dando seus últimos suspiros) e pela transição para o regi-me democrático, pode ser considerada um período de ressurgimento, mobilização e as-censão do movimento dos trabalhadores, reintroduzindo este importante ator na cena política nacional. Já a década de 1990, marcada pelas mudanças econômicas que abri-ram a economia brasileira e intensificaram o que se convencionou chamar de reestrutu-ração produtiva, se caracteriza, para o movimento dos trabalhadores, como época de arrefecimento em termos mobilizatórios e reorientação de práticas e estratégias.

Em 1980, as edições de 1o de maio, quinta-feira, nos três jornais é centrada em uma

mesma problemática: as pressões do governo militar contra manifestações na data. Jornal do

Brasil e Folha de S. Paulo davam como chamada principal a ameaça de prisão do bispo da

cidade de Santo André, no ABC paulista, dom Cláudio Hummes, que anunciava tomar parte

de manifestações proibidas preparadas pelos sindicatos. O Estado de São Paulo chamava a

atenção para o assunto na primeira página, mas não lhe dava título principal. Líderes sindicais

Page 126: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

116

já haviam tido prisão preventiva declarada e era tenso o clima para a passeata convocada para

acontecer em 1o de maio daquele ano em São Bernardo do Campo, na qual se esperava contar

com a presença de 100 mil pessoas. Naquele momento, todo o investimento discursivo era

feito no sentido de se exacerbar a problemática política. “Trabalhador” e “cidadão” eram ter-

mos lidos então como sinônimos. A oposição era, então, entre o operariado, frente organizada

mais clara em oposição à ditadura, e o governo militar. Os jornais, em sua parcela de avalia-

dores da situação, transparecem uma imagem ao mesmo tempo de coragem e de insanidade

para os futuros manifestantes do dia seguinte, como fica claro tanto na matéria mais crítica do

Jornal do Brasil (1o de maio, 1980, p. 14) − “D. Cláudio Hummes viria realizando sermões e

missas que levam os menos desavisados a se manterem em greve, num verdadeiro incitamen-

to, se contrapondo às leis, ao tribunal e ao próprio governo” − quanto na mais simpática da

Folha de S. Paulo (1o de maio, 1980, p. 2) − “Não há no momento para os empresários cami-

nho mais inteligente que conviver com o sindicalismo brasileiro. Procurar simplesmente es-

magá-lo pela repressão e violência já não é possível. E insistir numa política superada, quando

não é um erro grave, é rematada asneira”. O Estado de São Paulo assume, ele mesmo, por

meio de seu editorial (1o de maio, 1980, p. 3), sob o título bastante sugestivo de “Deve preva-

lecer a razão”, um lado no problema e uma posição de desqualificação do lado oposto:

É da decisão sobre a greve dos metalúrgicos do ABCD que dependerá, disso estamos certos, o futuro da democracia no Brasil (...) O momento correto em que a greve po-deria ter sido suspensa sem maiores sacrifícios − quando o Tribunal Regional do Trabalho decretou a ilegalidade do movimento − foi perdido pelas lideranças, deci-didas a fazer do ABC campo de prova de sua vontade e de seus objetivos políticos.

Pois bem, o quadro era o de que uma greve de metalúrgicos já se arrastava havia um mês

e começava a perder força, com os abandonos de trabalhadores de algumas cidades do ABCD

lançava sobre o Primeiro de Maio uma grande expectativa. A Folha, em sua primeira página,

resumia muito bem o clima de esperança em torno das manifestações do feriado, em uma foto,

Page 127: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

117

sobre a legenda: “Metalúrgicos exibem o jornal de seu sindicato durante a assembléia de ontem

em São Bernardo”. Na foto, um operário ostenta a capa do jornal sindical ABCD, cuja manche-

te era: “O 1o de Maio vai dar mais força à nossa greve”. Apesar da tomada de partido por parte

do Estadão, pelas leituras dos jornais, fica claro o que estava em jogo naquele momento: o Pri-

meiro de Maio havia sido escolhido como o momento forte de uma luta política. O dia seguinte,

sexta-feira, confirmaria essa impressão. As chamadas principais de primeira página de JB − “O

governo autoriza a passeata dos 100 mil em São Bernardo” − e Folha − “Cem mil no 1o de

Maio do ABC” − davam conta da força política que se depositava na classe trabalhadora.

Pois a cobertura da passeata de primeiro de maio de, por exemplo, 2000, segunda-feira,

mostra muito bem a oposição clara que se pode fazer entre anos 80 e o duo anos 90/2000 nes-

ta história. O Estado de São Paulo trouxe como chamada principal de primeira página em 2

de maio daquele ano: “Força Sindical reúne 900 mil pessoas em SP: Movimento promoveu

shows musicais e sorteios de apartamentos e carros, enquanto a CUT fez discursos para 15

mil pessoas no ABC e admitiu que o sindicalismo corre o risco de desaparecer”. Na matéria

de dentro (MODÉ; PINHEIRO, 2 de maio, 2000, p. 4), a constatação impinge uma oposição

fortíssima em relação à imagem do Primeiro de Maio do início dos anos 80:

As manifestações promovidas ontem em São Paulo pelas duas principais centrais sindicais do país para comemorar o Dia do Trabalho foram marcadas por nítidas diferenças, refletindo as posições políticas de seus organizadores. Enquanto o show "popular" da Força Sindical, na Praça Campo de Bagatelle, zona norte, foi acompanhado por cerca de 900 mil pessoas, o evento mais "ideológico" da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em São Bernardo do Campo, teve a participação de apenas 15 mil pessoas. O fato de a CUT ter atraído pouca gente mostra a reali-dade do movimento sindical de hoje, de muito menor poder de mobilização por causa do desemprego, disse o presidente da entidade, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho. O presidente do PT, Luís Inácio Lula da Silva, também reconheceu a debilidade atual do sindicalismo. Segundo ele, o momento político, de democracia, é menos propício a mobilizações de massa. Ciente da nova realidade do sindica-lismo brasileiro, a Força Sindical tratou de oferecer diversos prêmios ao público e se aliou a parceiros, como uma grande emissora de rádio FM paulistana, para levar à manifestação algumas das maiores atrações da música popular brasileira.

Page 128: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

118

A constatação de que o sindicalismo perdia forças naquele momento e que corria o risco de

enfrentar o seu ocaso vinha como impressão diante do fato de que os métodos utilizados pela

Força Sindical para conquistar a presença dos trabalhadores em sua manifestação não apenas não

chamavam a atenção para a dimensão política, como a renegavam. A conclusão mais forte diante

daquela impressão é a de que o trabalhador comum, aquele não diretamente militante, não depo-

sitava mais crédito no movimento sindical e considerava o Primeiro de Maio uma data sem gran-

de importância, salvo no caso em que ela fosse transformada em evento com outra dimensão. O

que impressiona é que essa impressão será a mais habitual nos anos 90. E ela é explícita, o que

transparece, por exemplo, na fala do presidente da central Força Sindical sobre as manifestações

da entidade no 1o de maio de dois anos antes, uma sexta-feira, na Folha de S. Paulo: “Luiz An-

tônio de Medeiros (...) afirmou que a intenção da central era fazer um evento ‘light’. Ele disse

que a CUT faz evento só para militante. ‘É da idade da pedra’, declarou” (ESPÓSITO, 2 de mai-

o, 1998. p. 2-11). Vê-se claramente nesta fala o mecanismo cínico de argumentação: a atuação

combativa da outra central é anacrônica e, portanto, faz rir. Esse tipo de anedota, aliás, será a

tônica das declarações dos líderes sindicais da Força Sindical em resposta à CUT.

A Força Sindical, aliás, aparece como um forte agente de uma crescente ampliação da

despolitização do Primeiro de Maio. Giannotti (p. 47) sugere que ela se tornou um agente cen-

tral para a implantação de um sistema de justificação do modelo de capitalismo “neoliberal”

no país: “Até que enfim surgiu quem defenda um sindicalismo apolítico, um sindicalismo que

se declara a favor do capitalismo, do lucro e da competitividade”, diz ele, simulando as pala-

vras do empresariado. Ele cita uma frase de Luiz Antônio de Medeiros, dita em 1998, que

novamente deixa claro o tom humorístico com que passa a ser tratado o discurso radical: “Se

1 Procurei respeitar os sistemas de numeração adotados por cada jornal. Em diferentes épocas, entretanto, eles apresentam sistemas diferentes, ora com numerações contínuas, ora referenciadas a cadernos. Em alguns casos, essa numeração utiliza o modelo número do caderno-número de página. Claro, essa numeração em jornais não deve ser entendida como o apontamento de uma seqüência de páginas, como nas referências de livros e artigos.

Page 129: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

119

o capital estrangeiro deixar o país, faço greve”. Mas Giannotti (p. 46) evita transformar a des-

crição do nascimento do “sindicalismo de resultados” em uma caçada anticonspiratória:

Obviamente, o nascimento dessa tendência sindical não é um processo linear, muito menos maquiavélico, conspirativo, produzido em laboratório. Mas pode-mos dizer que o sindicalismo de resultados é a síntese entre a ação deliberada de algumas lideranças sindicais e as condições políticas e econômicas que propicia-ram seu nascimento e crescimento.

Tanto Giannotti quanto Santana (p. 290) fazem a história da Força Sindical como a his-

tória da divisão histórica entre dois blocos do sindicalismo brasileiro:

De um lado, os chamados sindicalistas “autênticos”, reunidos em torno dos sindica-listas metalúrgicos do ABC, agregando sindicalistas de diversas categorias e partes do país, os quais, com os grupos integrantes das chamadas Oposições Sindicais, compunham autodenominado bloco “combativo”. Tendo sindicalistas como Lula (metalúrgicos de São Bernardo), Olívio Dutra (bancários de Porto Alegre) e Jacó Bi-tar (petroleiros de Campinas) como nomes de ponta, este setor formaria a base do chamado “novo sindicalismo”. De outro, a Unidade Sindical, que agrupava lideran-ças tradicionais no interior do movimento sindical (muitas delas vinculadas ao setor conservador do sindicalismo, denominado “pelego”), e os militantes de setores de esquerda dita “tradicional”, tais como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Par-tido Comunista do Brasil (PC do B) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Estes dois blocos seriam as bases de sustentação dos organismos intersindi-cais de cúpula que seriam criados no processo.

É no braço da Unidade Sindical que surgirá a linha que se deixará levar mais fortemente

pela razão cínica. Santana (p. 291) caracteriza o sindicalismo de resultados como “defensor da

economia de mercado, anticomunista e pragmático” e considera que seu surgimento é herdei-

ro mesmo da divisão histórica apontada acima:

O bloco “combativo”, em grande parte via PT, defendia um combate direto ao regime a partir do centro sindical e da organização e demanda dos trabalhadores. Já a Unidade Sindical, se tomarmos como exemplo as posições do PCB, que de alguma maneira es-pelhavam outras propostas, visava a evitar enfrentamentos diretos com o regime, con-quistar o apoio de amplos setores da sociedade, trabalhando firmemente no sentido de enfraquecer o regime militar e garantir a continuidade do processo de transição, ainda que isto pudesse significar uma certa redução do ímpeto dos movimentos reivindicató-rios dos trabalhadores. (...) Assim, o bloco combativo considerava a estratégia da Uni-dade Sindical como negocista, conciliadora e reformista. A Unidade Sindical, por sua vez, avaliava a estratégia do outro setor como sendo esquerdista e desestabilizadora.

Page 130: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

120

O que a cobertura do Primeiro de Maio mostrou é como a data passou a ser altamente

influenciada pela mesma despolitização que é mãe da Força Sindical. Uma demonstração se-

vera desse processo está na ida ao poder de Antônio Rogério Magri, que deixara a presidência

da Central Geral dos Trabalhadores para se tornar ministro do trabalho do governo de Fernan-

do Collor de Melo, em 1990. Em 1o de maio daquele ano, uma terça-feira, ele dava uma en-

trevista a O Estado de São Paulo (NEUMANE, 1o de maio, 1990, p. 4), em que afirmava que

seu objetivo era dirigir, à exemplo do modelo que ajudara a implantar nos sindicatos, um “mi-

nistério de resultados”. Na mesma entrevista, ele dizia que os sindicalistas que ainda rezavam

pela cartilha da “oposição política ao governo” e que clamavam pela “transformação da soci-

edade” eram “muito engraçados” e que viviam em um “mundo de fantasia”. Mais uma vez, o

argumento cínico ganha como porta-voz uma liderança sindical. “O fato de o governo federal

não promover comemorações do Dia do Trabalho hoje, 1o de maio, faz parte dessa estratégia

não intervencionista do novo ministro. ‘O 1o de Maio é uma data dos trabalhadores e não do

Ministério do Trabalho’”, dizia a matéria, em que ele ainda profetizava que cada vez mais o

modelo a que o sindicalismo de resultados se opunha ia perder a simpatia do cidadão comum.

O que impressiona é o alcance dos argumentos, mesmo tendo o ministro sido afasta-

do depois, por suspeita de corrupção. O nome da “ideologia” do sindicalismo de resulta-

dos (o termo parece estar muito mais próximo de um clichê estético do que de um para-

digma político, mas traveste-se facilmente de modelo de ação) nasceu, como gostam de

recontar seus defensores, um tanto ao acaso. Veio coroar a postura “pragmatista” que se

depreende da história de separação entre as duas tendências sindicais descritas por Santa-

na e Giannotti. Este, aliás, reconta a história com particular ironia, ao relembrar que foi o

próprio Magri quem contou a um jornalista a origem do termo, que nasceu em 1986, quan-

do o líder sindical desafiou, em um programa de televisão, o “colega” Jair Menegheli (en-

Page 131: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

121

(então presidente a CUT) a “dizer quais os resultados que ele tinha conseguido para os

trabalhadores com seu discurso” para que se comparasse com o que ele (Magri) havia con-

seguido como liderança dos eletricitários. Giannotti (p. 43) prossegue: “Para além dos

simplismos (sic) de Magri (...) esse termo e esse conceito não são novos. Nos Estados U-

nidos são conhecidos como business unionism, isto é, sindicalismo de negócios”. Para o

autor, o modelo é apenas a passagem para o Brasil do sistema americano de sindicalismo.

O que me interessa no debate, entretanto, é como o discurso em torno desse modelo, atu-

ando no Primeiro de Maio, transparece com mecanismo de desculpa.

Ao longo do período analisado, essa impressão fica bastante clara, em um processo cada

vez mais nítido de conversão da comemoração tradicional da data em uma espécie de absurdo

anacrônico, seguindo em paralelo à lógica de conversão mesma da luta trabalhadora dos anos 80

para os 90 (processo continuado neste começo de século), conforme explorou Santana (p. 304):

O pano de fundo que conjugava [nos aos 90] desemprego e precariedade no trabalho fez também com que os sindicatos mudassem as pautas de reivindicação. Se nos a-nos 1980 a questão econômico-salarial assumia alguma prioridade, nos anos 1990 (principalmente em sua segunda metade), a temática da garantia do emprego e as tentativas de combate ao desemprego assumem o primeiro plano. Além disso, os sindicatos buscaram intervir em outras alternativas que ampliassem seu escopo de ação, contribuindo para a consolidação de novas institucionalidades.

Pois bem. Em 1981, a cobertura do Primeiro de Maio seria amplamente deslocada do

contexto das reivindicações trabalhistas. Em 1o de maio, sexta-feira, o noticiário ainda se vol-

tava para as expectativas em torno das manifestações, mas no dia seguinte, a explosão da

bomba no Riocentro, caso que se tornou um dos marcos do ocaso da ditadura, tomou de assal-

to as coberturas. Mesmo assim, como o caso aconteceu durante as comemorações do Dia do

Trabalho no Rio de Janeiro, nem todas as edições conseguiram ter toda a velocidade para dar

ampla cobertura ao caso. A Folha de S. Paulo mesmo deu ainda como chamada principal:

“ABC propõe uma greve nacional a 1o de outubro”. A chamada, claro, dava conta das mani-

Page 132: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

122

festações do Dia do Trabalho. A matéria sobre o atentado era uma chamada secundária na

primeira página. O Jornal do Brasil conseguiu transferir o tema para a chamada principal

ainda no dia 1o, em uma segunda edição. Por isso mesmo, seu olhar para o Dia do Trabalho

teve o cheiro de pólvora que a opinião pública deu: só se falava do caso Riocentro. O Estado

de São Paulo, mais uma vez, dava uma chamada distante do Primeiro de Maio no dia 1o,

chamando para um fato da agenda internacional. Apesar disso, além de a Folha ter noticiado a

proposta de greve nacional aclamada nos atos do ABC e de ter privilegiado as fotos das mani-

festações, as seções de debates dos jornais deram bastante atenção ao Primeiro de Maio, so-

bretudo considerando que era o ano subseqüente aos grandes acontecimentos de 1980. A Fo-

lha, por exemplo, no dia 1o, publicava artigo de José Álvaro Moisés (1o de maio, 1981, p. 1-

13) que saudava “os treze do ABC”, os líderes sindicais cujas prisões preventivas foram de-

cretadas como parte da política de contenção do governo em relação à greve de metalúrgicos

que naquele momento afrontava a ditadura:

Ninguém esqueceu a lição que vocês e o conjunto dos metalúrgicos do ABC nos deram no ano passado. Em meio a uma greve reprimida, com seus líderes presos e com todos os seus locais de reunião ocupados pelas tropas policiais, ainda assim vocês tiveram força para celebrar o 1o de Maio com aquela memorável marcha de mais de 100 mil pessoas.

O que de principal transparece deste texto, para além do tom de homenagem, é o di-

videndo político acumulado pelas lideranças sindicais ao se posicionarem em uma luta

contra a ditadura, luta que, no fundo, interessava a muitos setores da sociedade que, na

forma, não possuíam o mecanismo e nem o pretexto − melhores condições trabalhistas −

para se digladiar com o poder militar em uma esfera política. Tal reconhecimento sub-

reptício se deixava transparecer sutilmente em alguns momentos desde as greves de 1978,

mas havia chegado a seu ponto mais alto no Primeiro de Maio de 1980: a adesão de 100

mil pessoas à passeata dos trabalhadores era mais do que uma manifestação reivindicató-

Page 133: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

123

ria de classe. Era um selo de representatividade que as massas depositavam no trabalhis-

mo. “A moderna evolução da economia mundial assentou a data [o Primeiro de Maio]

sobre um significado não apenas político, mas principalmente democrático. Os trabalhado-

res são parcelas sociais importantes nas sociedades evoluídas, credenciados a uma partici-

pação que pressupõe liberdades permanentes”, dizia o editorial do JB daquele dia (1o de

maio, 1981, p. 10).

Não deixa de ser curioso contrapor esse voto de confiança às manifestações do Primeiro

de Maio de 2000. Em O Estado de São Paulo (MODÉ; ROSSI, 2 de maio, 2000, p. 30), ela

aparece em cores que deixariam o analista Eugênio Bucci ainda mais melancólico:

Nada de discursos ideológicos ou protestos contra a política econômica do governo. A maioria absoluta das cerca de 900 mil pessoas presentes ao show promovido pela Força Sindical ontem, na Praça Campo de Bagatelle, zona norte de São Paulo, queria apenas ouvir seus cantores favoritos e concorrer aos prêmios oferecidos pela central sindical. (...) As irmãs Gisele, de 19 anos, e Juliana Silva, de 16, foram ao show para "ver o gatão do Daniel", como explicou, aos gritos, Juliana. Mais ponderada, Gisele lembrou que a situação dos trabalhadores brasileiros não é das melhores. "As pesso-as ganham pouco no Brasil", reclamou. (...) O vendedor Lourivaldo Marques, de 53 anos, debutou ontem em manifestações populares. Deixou sua casa, na zona leste, às 7 horas, porque está preocupado com o baixo valor do salário mínimo e com o de-semprego no Brasil. Sustentou a justificativa por não mais do que dois minutos. Lo-go confessou que os prêmios oferecidos eram seu principal estímulo para estar na Praça Campo de Bagatelle. "O que vier para mim é lucro", afirmou.

Os casos apresentados na reportagem são emblemáticos. Podem até ser considerados

pontos isolados em uma curva de participação, mas tudo indica que a presença de 900 mil

trabalhadores no evento da Força Sindical de 2000 ou o número ainda maior de pessoas no

de 2001 (SILVA, 2 de maio, 2001, p. B1) tenham sido motivados muito mais pelos atrati-

vos apolíticos e de entretenimento do evento do que pelo ímpeto de luta da massa. Em

2001, ano em que o feriado caiu em uma teça-feira, “A megafesta organizada pela Força

Sindical reuniu cerca de 1,5 milhão de pessoas na Praça Campo de Bagatelle, equivalente

a 15% da população da capital”.

Page 134: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

124

A comparação entre as décadas de 80 e 90/2000 pode ser ainda mais refinada e lida em

paralelo ao sistema de marcos que estabeleci no Capítulo 1. Cada um daqueles marcos atuou

sobre a moral dos trabalhadores e, em conseqüência, sobre sua capacidade de depositar crédi-

to na política transformadora e de levar a sério o Primeiro de Maio.

Em 1987, ano imediatamente posterior ao que apontei para o primeiro marco, a decepção

com o Plano Cruzado, o Jornal do Brasil trazia na primeira página de 1o de maio, sexta-feira,

uma grande foto de uma manifestação, sobre a legenda: “A bandeira das diretas volta à Cine-

lândia pelas mãos da CUT”. Na mesma edição (1o de maio, 1987, p. 4), matéria dava conta da

real repercussão do evento, planejado como prévia das comemorações do Dia do Trabalhador:

Praticamente todos os manifestantes usavam camisas da CUT ou broches de PT, PV e PDT. As pessoas que assistiam das calçadas não se animavam a segui-los (...) A campanha das diretas voltou às ruas. Não com a multidão de 84, que em sua primeira passeata no Rio reuniu 120 mil pessoas. Esta primeira passeata organizada pela CUT (...) não chegou a reunir 1 mil pessoas. Marcada para as 17 horas, só saiu às 18h30min, para esperar a adesão de quem saía do trabalho. Mas ninguém aderiu,a tendência era assistir das calçadas e, em vez de papel picado, o que cai foi uma chu-va de verdade, o que atrapalhou mais ainda a manifestação.

Como já mostrei, a decepção com o governo era grande naquele momento, o que poderia

até permitir que se imaginasse que o povo seria mobilizado para voltar a exigir eleições diretas e

manifestar o desejo de chegada logo de um novo presidente, desta vez escolhido de fato por ele −

Sarney, além de ter sido um vice que entrara no lugar do presidente eleito, chegara ao cargo por

votação em colégio eleitoral do Congresso. O que as manifestações naquele momento − anotadas

também pelos dois outros jornais − provaram era que o efeito obtido havia sido o de abalar a

crença do cidadão comum na esfera mesma da reivindicação política. O Plano Cruzado já havia ,

alterado a data de anúncio do novo salário mínimo, passada para 1o de março2, retirando do Pri-

meiro de Maio um dos elementos que lhe justificavam a mobilização. E depois que toda a luta

2 Na verdade, o fim do elo entre Primeiro de Maio e Salário Mínimo só viria definitivamente em 1996, com uma medida provisória que revogava o artigo 29 da lei 8.880, que estabelecia a data-base universal no Dia do Traba-lhador. A medida do governo Sarney, entretanto, transferira temporariamente para março o reajuste.

Page 135: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

125

em torno do congelamento de preços não surtiu efeito, deixando a população, inclusive, depois

do pacote de novembro, com a sensação de que havia sido traída, era difícil esperar qualquer

manifestação mais entusiasmada. A matéria da Folha de S. Paulo do dia seguinte (2 de maio,

1987, p. A-10) resumia bastante bem as comemorações que as centrais sindicais haviam conse-

guido fazer, um dia depois do fracasso da passeata carioca em favor das eleições diretas:

As manifestações convocadas pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) para comemorar o 1o de Maio em São Paulo, apesar de feitas em separado, tiveram um ponto em comum, a inexpressividade e a pequena participação dos trabalhadores paulistanos.

Em maio de 1990, o país ainda estava perplexo com o confisco das poupanças ocorrido

em março. O que se viu nas manifestações do Dia do Trabalhador, que caiu numa terça-feira,

foram casos isolados um traço de conformismo que era notado, por exemplo, em artigo na

Folha de S. Paulo (DIMENSTEIN, 2 de maio, 1990, p. A-2):

As comemorações do Dia do Trabalho mostraram ontem que os dirigentes sindicais colocaram como prioridade não o aumento salarial, mas a garantia do emprego. Diri-gentes como Jair Meneguelli, da CUT, aceitam tranqüilamente a idéia de reduzir os sa-lários em troca de estabilidade. É o chamado “arrocho consentido”. Daí se nota o pâni-co que vem tomando conta das bases industrializadas das regiões industrializadas.

Naquele momento, o governo implantava seu novo modelo de relação com a indústria,

com a abertura comercial. Os automóveis nacionais, dali para frente, teriam que competir com

os estrangeiros, cuja importação, o governo começava a facilitar. Isso trazia para a categoria

mais organizada do país, a dos trabalhadores da indústria automotiva de São Paulo, a possibi-

lidade real de demissões em massa. O contexto era de ameaça, de risco contra a sobrevivên-

cia. Ao mesmo tempo, começava também o programa de privatizações do governo, que aca-

bara de anunciar a passagem, em breve, da Companhia Siderúrgica Nacional às mãos da inici-

ativa privada. Esses eventos contribuíram para o lançamento de uma sensação de salve-se-

quem-puder na classe trabalhadora brasileira, como assinalaria Pochman (1o de maio, 2001, p.

Page 136: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

126

13): “Nos anos 80, 32% dos trabalhadores eram sindicalizados, na década de 90, apenas 19%.

Vários fatores contribuiriam para a queda. Além do aumento do desemprego, que faz com que

os trabalhadores se tornem individualistas, as empresas mudaram o conceito de contratação”.

Pois esse individualismo do trabalhador pode ser manifestado claramente na reação à

privatização da CSN. Sem atos que marcassem a data nas ruas, a manifestação dentro da side-

rúrgica, feita por seus funcionários foi o ato mais marcante daquele momento, como mostrou

o Jornal do Brasil (VIEIRA, 2 de maio, 1990, p. 3):

Ao anunciar a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional e a conseqüente de-missão de um terço de seus 21.000 funcionários, o governo Collor enfiou a mão em uma caldeira fervente. Foi o que ficou evidente (...) numa manifestação de 1o de maio que acabou se transformando na primeira grande manifestação contrária às medidas econômicas do governo. Milhares de trabalhadores da usina foram à Praça Juarez Antunes, bem ao lado da CSN, para avisar que estão dispostos até mesmo a um novo confronto com o exército − como o que matou três operários em novembro de 1988 − para evitar o que classificam de “venda da dignidade nacional”.

De seu lado, as centrais sindicais paulistas, negociavam com as montadoras para tentar

evitar demissões entre os metalúrgicos do ABC. O Primeiro de Maio daquele ano era a tradu-

ção clara das mudanças pelas quais começava a passar o trabalhismo brasileiro e, sub-

repticiamente, a moral do trabalhador. Também serve para corroborar o que já mostrei acima

em relação a uma eventização. O conteúdo de debates lançados no dia 1o de maio é mínimo

nos jornais, tendo ficado a cobertura toda pragmaticamente voltada para os acontecimentos do

dia 2. E essa centralidade dos eventos será ainda mais relevante a partir do meio dos anos 90,

quando os megashows se tornarem um padrão da Força Sindical, como mostrarei adiante. Por

enquanto, devo prosseguir nas coberturas do Dia do Trabalhador nos anos que considerei co-

mo marcos na história de conversão simbólica da data.

Um feriado de Primeiro de Maio foi diretamente marcado pelos eventos referentes ao im-

peachment de Fernando Collor de Mello, os de 1993. Na verdade, as primeiras denúncias que

implicavam o presidente surgiram justamente poucos dias depois do Primeiro de Maio de 1992,

Page 137: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

127

na edição da revista Veja de 9 de maio. A cobertura de 1992, entretanto, merece ser incluída

nesta história. Ela fica a meio caminho entre a decepção com o seqüestro dos cruzados e a com

o caso de corrupção nos altos escalões do poder. Os três jornais dão conta de um Primeiro de

Maio inexpressivo naquele ano. Apesar de estar marcada uma manifestação que se prometia

histórica − o retorno dos trabalhadores de São Bernardo do Campo ao estádio da Vila Euclídes,

que havia marcado a grande manifestação de 1980 −, mas os acontecimentos ficaram em um

plano muito mais doméstico do que de combate. Em 2 de maio, sábado, o Jornal do Brasil saía

com uma grande fotografia na primeira página mostrando “milhares de pessoas que ocuparam

(...) a Linha Vermelha para a comemoração do 1o de Maio transformaram a via expressa em

uma alegre passarela com jogos e shows”. Em São Paulo, “as comemorações pela passagem do

1o de Maio organizadas pela CUT (...) transformaram a Praça da Sé (...) em palco de uma bata-

lha campal”, mas a briga havia sido iniciada entre os próprios integrantes da central, porque

algumas facções da mesma discordavam da realização do ato único em São Bernardo. Em todos

os lugares, o saldo da cobertura era o de uma série de eventos isolados e sem energia.

Em 1o de maio de 1993, sábado, já depois da saída de Collor do poder, o Estadão

trazia uma chamada principal de primeira página bastante sugestiva para aquele momento

do país: “Rejeição a políticos passa de 90%: População acha que os governantes enrique-

cem e só querem se reeleger”. Na reportagem propriamente dita (1o de maio, 1992, p. 8),

mostra que a pesquisa, de cobertura nacional, fazia um diagnóstico bastante desapontado

da população em relação ao engajamento político:

Os brasileiros não acreditam mais nos políticos. Uma pesquisa feita pelo Ibope na terceira semana de Abril chegou a um conjunto de respostas impressionante: para 92% da população, quem faz política enriquece; 88% acham que os políticos só pen-sam em resolver seus próprios problemas e 93% acreditam que eles só têm um plano − a reeleição. O tamanho da insatisfação das pessoas com os políticos praticamente não se altera nos vários extratos da sociedade nem muda muito de região para região. (...) Parte dos entrevistados do Ibope indicou algo mais grave, que o descrédito com os políticos é acompanhado pela sensação de que a redemocratização foi um fracas-

Page 138: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

128

so: para 25% da população os serviços públicos são melhores num regime militar do que numa democracia e para 33% não há diferença nesse aspecto entre uma ditadura e um regime democrático (...) Da mesma forma, 51% preferem alguém com experi-ência administrativa de empresas para ocupar o cargo de presidente da República. Para 31%, é melhor que seja um político (...) O Ibope ouviu 2000 pessoas entre 14 e 19 de abril: eleitores de mais de 16 anos em todo o país.

No mesmo dia, a Folha noticiava a mesma pesquisa do Ibope. Os três jornais, além disso,

chamavam a atenção para o fato de que 44% dos votantes votaram ou branco ou nulo no plebis-

cito que escolhia o sistema de governo do país. Naquele momento, 40 milhões de pessoas − a

maior parcela, é fácil imaginar, trabalhadores, empregados ou não − manifestava não se impor-

tar com se o Brasil é uma monarquia ou uma república, se tem sistema presidencialista ou par-

lamentarista. O Jornal do Brasil (2 de maio, 1993, p. 3) publicava uma outra pesquisa, que

mostrava que o carioca estava “cada vez mais pessimista com a situação do país” e dava “notas

de zero a cinco (em uma escala até dez) para presidente, governador e prefeito. Tudo isso com-

punha um quadro de distância pronunciada entre o cidadão comum e esfera política. Com isso,

o Primeiro de Maio daquele ano andava a passos trôpegos, a beira de uma queda, o que era de-

monstrado por matéria publicada em O Estado de São Paulo (1o de maio, 1993, p. 10):

São Paulo não terá grandes festividades hoje, Dia do Trabalho. As principais lide-ranças da Central Única dos Trabalhadores (CUT) estarão em plena campanha su-cessória, num ato político em Salvador (...) A Força Sindical aproveitará a posse da nova diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo para promover ato no Pa-lácio do Trabalhador (...) Fábio Júnior será a principal atração.

O show do cantor atrairia entre quatro e cinco mil pessoas (duas mil e quinhentas,

segundo a PM) para a posse de Luiz Antônio Medeiros. Mas esse não era o único sinal de

despolitização da classe trabalhadora naquele momento. A Folha de S. Paulo publicava (2

de maio, 1993, p. 1-4), junto à pesquisa sobre a perda de credibilidade dos políticos, uma

outra enquête, que dava conta de uma curiosa tendência:

Roberto Marinho, presidente das Organizações Globo, seria o preferido dos brasileiros para a Presidência da República e a escolha se limitasse a empresários. Teve 27% das

Page 139: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

129

menções na pesquisa CNI-Ibope, mas perde longe para Antônio Ermírio de Morais (grupo Votorantim), entre os pesquisados com nível superior (44% x 14%).

Soa como uma grande ironia essa intenção de voto, mas corrobora as impressões pas-

sadas pela outra pesquisa, de extrema decepção dos cidadãos em relação à esfera partidária

da política, o que se refletiu fortemente na esfera participativa dos mesmos. Já em

1998/1999, o contexto era diferente. Mostramos em outro momento (AGUIAR; WER-

NECK) como o processo eleitoral que resultou na vitória de Fernando Henrique foi molda-

do pela oposição entre política (representada por Luiz Inácio da Silva) e técnica (represen-

tada pela maneira como Cardoso geria a crise econômica do país). Naquele momento, mos-

trei como os debates na esfera pública foram todos dominados pela presença de uma termi-

nologia que chamava a atenção para os riscos de se apostar em uma alternativa política de

voto em detrimento de uma alternativa de continuidade, associada à segurança de uma ad-

ministração competente. Pois 1998 também foi o ano do começo das megafestas da Força

Sindical e foi marcada por um clima de esvaziamento de confrontação. O editorial do Jor-

nal do Brasil em 1o de maio, sexta-feira (p. 8), acentuava esse desejo: “Aqueles que mar-

cham na tentativa de engessar o Brasil no passado estarão vendendo bandeiras rotas e ilu-

sões esfarrapadas”. Era um recado a possíveis manifestações de Primeiro de Maio que cla-

masse por mudanças na situação do país naquele ano eleitoral. Curiosamente, o texto pode

ser colocado ao lado de uma fala publicada pelo mesmo JB anos antes (1o de maio, 1995,

p. 4): “O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Paulo Pereira da Silva, chamou de ba-

derneiros os que estão indo para as ruas combater as mudanças na Constituição”.

Já mostrei como foram as comemorações da Força Sindical em 1998. Dali para fren-

te, consolidar-se-ia a era das megafestas de Primeiro de Maio. A manifestação da central,

que naquele ano havia levado entre 50 mil e 70 mil pessoas a um estádio e futebol, segun-

do matéria do Jornal do Brasil (2 de maio, 1999, p. 2), levaria 80 mil pessoas a seu even-

Page 140: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

130

to em 1999. Um dia antes, sábado, o JB (MAYRINK, 1o de maio, 1999, p. 13) informava

que “Paulinho [Paulo Pereira da Silva, presidente da Força Sindical] anunciou que a For-

ça Sindical fará hoje um minuto de silêncio contra o novo salário”.

Mesmo com todo esse vigor combativo da Força Sindical, os eventos da central foram

marcados mesmo pelos eventos de divertimento. O Estado de São Paulo (2 de maio, 1999, p.

A13), noticiou que “manifestações pacíficas marcaram o 1o de Maio”:

O Dia do Trabalho foi lembrado ontem em várias capitais do país, mas com pouca par-ticipação da população, com exceção de São Paulo. Convocadas pela Força Sindical, quase 90 mil pessoas estiveram no sambódromo paulista (...) O pessimismo dos desem-pregados não diminuiu a participação nos shows de música e nos sorteios de carros.

Iniciado o século XXI, o grande desafio da luta trabalhista brasileira parece ser convencer o

trabalhador de que existe uma luta trabalhista. Nesse sentido, o que as megafestas da Força Sindi-

cal fizeram de mais forte foi apontar para essa problemática. O discurso de interdição por meio da

redução ao ridículo da alternativa transformadora persiste e atravessa cada uma das comemora-

ções do Primeiro de Maio desde então. Em 2000 (1o de maio em uma segunda-feira), o Estadão

(MODÉ; PINHEIRO, 2 de maio, 2000, p. B3) publicava uma declaração de conformismo da parte

da central sindical festeira, que levava naquele ano mais de 600 mil pessoas a seu evento:

"Ninguém vem mais para a praça pública apenas para ouvir discurso", analisou o ho-je deputado federal pelo PFL de São Paulo e uma das principais lideranças sindicais do País nas décadas de 80 e 90, Luiz Antônio Medeiros."Esse tempo já passou e, por isso, resolvemos misturar atrações musicais com protestos e discursos políticos." Quem tentou "ideologizar" a parte artística do evento não foi perdoado pelo público. A presidente do Projeto Meu Guri, Elza de Fátima Costa, chamada para sortear um dos prêmios, reclamou do governo Fernando Henrique Cardoso e foi vaiada pelos espectadores. Mesmo os artistas convidados não pareciam dispostos a lutar pelas causas do trabalhadores. A atriz Maria Fernanda Cândido, a Paola da novela Terra Nostra, antes de subir ao palco, gritava para quem quisesse ouvir que estava com medo de ser "agarrada" pela multidão. O cantor Leonardo, furioso com o atraso de sua participação, reclamava rispidamente da organização.

O Jornal do Brasil (2 de maio, 2000, p. 6) também publicava uma defesa dos

sindicalistas da Força:

Page 141: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

131

Paulinho contestou as críticas ao uso do sorteio para atrair a multidão (...): “Metalúr-gico não tem casa nem carro. Eu gosto de música boa e posso ir aos shows, mas a maioria daqui gosta e não pode pagar por isso. Se não podemos ter melhoria, pelo menos temos alegria”.

Sobre o mesmo evento, a Folha de S. Paulo (VARGA; FERNANDES, 2 de maio, 2000,

p. 2-9), fez um teste curioso: “Apesar do sucesso do evento da Força, muitas pessoas não ti-

nham idéia do papel da entidade. A Folha ouviu 100 pessoas e apenas 25 disseram que a For-

ça Sindical era uma central de trabalhadores”.

No outro hemisfério da questão estava a Central Única dos Trabalhadores, como conta-

ria a matéria de O Estado de São Paulo (PINHEIRO, 2 de maio, 2000, p. B2):

A festa do Dia do Trabalho promovida pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) no ABC reuniu cerca de 15 mil pessoas, menos de um terço do público esperado, que era de 50 mil pessoas. O estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, que no passado chegou a ter sua capacidade para 100 mil pessoas totalmente esgota-da, em históricas assembléias dos metalúrgicos, desta vez recebeu platéia bem dife-rente: o público era predominantemente adolescente, interessado nos shows de rap contratados pela Central (...) O fato de a CUT ter atraído pouca gente para a festa do Trabalhador, reflete, segundo Vicentinho, a realidade do movimento sindical hoje, de muito menor poder de mobilização por causa do desemprego. Ele mesmo lem-brou do dia 1º de maio de 1980, quando o estádio de Vila Euclides era o maior sím-bolo de luta por aumento salarial e pela democracia.

Em 2001, a única mudança apreciável no contexto parece ter sido no número dos partici-

pantes do evento da Força Sindical. Se em 2000, conforme disse à Folha (VARGA; FER-

NANDES, p. 2-9), o presidente da entidade, Paulo Pereira da Silva, já havia se orgulhado de

fazer “o maior comemoração de 1o de Maio da história do Brasil”, mesmo admitindo que “nem

um terço do público estaria lá se não fossem os sorteios”, em 2001 ele teria ainda mais motivos

para ser feliz. Afinal, ele conseguiu reunir 1,5 milhão de pessoas. As imagens nas primeiras

páginas dos jornais eram impressionantes. Nos três, uma grande foto dominava o espaço, mos-

trando a multidão gigantesca que se unia para assistir a shows de artistas e a sorteios de brindes.

O JB (MARINELLO, 1o de maio, 2001, p. 13) dizia que era um “Primeiro de Maio em clima de

Page 142: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

132

Gugu e Faustão”, comparando os eventos marcados para o dia a programas de apresentadores

de TV populares”. Na mesma matéria, Paulo Pereira da Silva defendia o patrocínio de empresas

para as festas: “A parceria − e não o confronto − entre empresas e trabalhadores pode ser vista

com estranheza por muita gente. Mas não pelo presidente da Força Sindical (...): ‘Não há nada

de errado nisso. As empresas estão pagando para aparecer em um megaevento. Se alguém é

contra, é por ciúmes”. O mesmo Paulinho escrevia artigo na Folha de S. Paulo (PEREIRA DA

SILVA, 1o de maio, 2001, p. 1-3) em que defendia a ação:

Embora alguns nos critiquem por distribuir prêmios e oferecer ao povo um grande show com artistas famosos, é esse o principal objetivo do evento: refletir sobre as condições de vida e trabalho dos cidadãos. Sabemos que a maior parte das pessoas que se dirigirão à praça Campo de Bagatelle lá irá para ver seus artistas e concorrer aos prêmios. Não vemos problema nisso (...) Ninguém suporta só ouvir discursos. O sorteio de bens é uma atividade lúdica defensável. Numa democracia incipiente, em que as pessoas comuns fogem do debate político (mesmo votando irrefletidamente em candidatos inadequados), é forma válida para atraí-las. No meio da festa, elas ouvem discursos e podem refletir sobre seu conteúdo.

O mesmo se repetiria em 2002 e 2003, com megaeventos que reuniram cerca de 1,5 milhão

de pessoas, no que se pode considerar o paroxismo da eventização: a única notícia importante

sobre o Primeiro de Maio passou a ser a pujança dessas manifestações, o que pode ser um fetiche

jornalístico, mas que certamente informa sobre a ausência de fatos e de debates em torno do Dia

do Trabalho. Em 2002, ano eleitoral, a Força Sindical, embora Paulo Pereira da Silva fosse candi-

dato a vice-presidente na chapa de Ciro Gomes, optou por oferecer espaço aos candidatos a presi-

dente na manifestação, como mostrou O Estado de São Paulo (SILVA, 2 de maio, 2002, p. B1):

Em telões montados no palco e áreas laterais da praça, os quatro principais can-didatos à Presidência puderam apresentar vídeos de três minutos cada com suas propostas, em meio à apatia do público que estava mais interessado em ver artis-tas como os cantores Leonardo, Alexandre Pires e Wanessa Camargo, a dupla sertaneja Pedro e Thiago e os grupos KLB, Titãs e Chiclete com Banana (...) O ministro do Trabalho, Paulo Jobim, escolheu participar da festa da Força "por causa da representatividade em número de pessoas"

Page 143: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

133

Giannotti (p. 180-181) sustenta que as ações da Força Sindical funcionaram em consonân-

cia com interesses pessoais ou de políticas do governo. Em 2001, por exemplo, a Força Sindical

estaria atuando junto com o ministro do trabalho, Francisco Dornelles, para convencer os traba-

lhadores ligados à entidade a aprovarem um plano de liquidação de dívidas do próprio governo

com o Fundo de Garantia por Tempo de serviço (FGTS). “Queriam que os trabalhadores abris-

sem mão da inclusão nos seus FGTS dos atrasados devidos aos planos econômicos Bresser e

Verão, respectivamente de janeiro de 89 a abril de 90”. De acordo com o autor, uma decisão

judicial obrigava o governo a pagar a sessenta milhões de trabalhadores esses valores atrasados.

O fato é que o governo propôs um acordo para os trabalhadores: o pagamento parcelado,

ao longo de cinco anos. Para Giannotti, a intenção do governo era usar a Força Sindical para

convencer os trabalhadores a aceitarem o acordo. “A proposta tinha todo o jeito de chanta-

gem. Ou o trabalhador aceita renunciar à maior parte de seu direito ou enfrentará uma espera

de ninguém-sabe-quantos-anos para receber o que já era seu”, diz ele.

Giannotti afirma ainda que durante a manifestação de Primeiro de Maio daquele ano foi

montado um estande da Caixa Econômica em que os trabalhadores eram incitados por lideran-

ças da Força Sindical a aceitar o dito acordo. E sustenta ainda que o próprio Paulinho havia ten-

tado sair do acordo após ganhar uma ação judicial em seu favor. Matérias da Folha de S. Paulo

(4 de maio, 2001) dão sustentação à tese, mas não discutirei sua veracidade. O que parece mais

forte nesta narração é o preenchimento de sentido que ele confere às movimentações da central

sindical: sejam pejadas de corrupção ou não, essas manifestações ocuparam apenas um espaço

estético na construção simbólica do Primeiro de Maio, deixando vazio o espaço da crítica social.

Com esta análise, espero ter demonstrado como os discursos circulantes em torno do

Primeiro de Maio comprovam sua condição de situação-síntese. Síntese do movimento

trabalhista e das questões políticas em torno dele e síntese das impressões do trabalhador a

Page 144: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

134

seu próprio respeito. Em um contexto de crise da política, uma comemoração de Dia do

Trabalhador pode se transformar em uma pura forma, em uma encenação sem sentido em

si, à mercê da razão cínica. Nas próximas páginas, retomarei este problema, dentro da

perspectiva de uma teoria discursiva da desculpa.

Page 145: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

CONCLUSÃO: APONTAMENTOS PARA UMA TEORIA DA DESCULPA

Page 146: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

136

MÁSCARAS E IMAGINÁRIAS

O homem está sentado à mesa. De madeira, pequeno, de apenas um lugar, o móvel tem

um dos lados menores colado à parede mal caiada e cheia de marcas de infiltração e machas

de fungos. No alto, uma lanterna, na qual uma vela mal ilumina a saleta, conferindo-lhe um ar

quase soturno. Sobre a mesa, apenas uma garrafa d’água (ou outro líquido transparente, por

que não algo etílico?), meio vazia (ou meio cheia?). O homem usa um chapéu preto e roupas

igualmente escuras − o paletó opressor faz com que ele se assemelhe a uma grande mancha de

breu no meio da imagem − e suas duas mãos jazem sobre a tábua da mesa, insinuando que ele

talvez vá se levantar, ou que ele mantém uma posição defensiva.

Diante dele, uma figura (para a qual ele olha fixamente) acaba de entrar (ou está prestes

a sair?) pela porta a sua frente. É uma mulher de trajes matronais, mas depauperados, com

uma saia de tecido gasto e uma espécie de grande xale ou manto de cor avermelhada. Sobre a

cabeça, uma espécie de escapulário e, na mão direita (a esquerda mantém a porta aberta, não

sabemos se para fechá-la em seguida ou porque acabou de descerrá-la), segura um bastão,

uma espécie de bengala, erguida em uma posição ameaçadora, não se sabe ao “colega” ou a

quem mais ela esteja indo perseguir na rua.

As duas figuras se observam, lançando um ar de expectativa dramatúrgica à cena. O que

se passará logo depois? A iminência de movimento de cada um produz uma tensão

impressionante. Qual é o conteúdo de sua conversa?

Mas, não pode restar dúvida, a maior interrogação a respeito do que está a acontecer

está nas faces de ambos: em vez de rostos, máscaras. A dele, oculta toda sua face com um

enorme nariz que, alongado, precede-o em cerca de um palmo. A dela esconde-lhe os olhos

atrás do que parecem ser lentes escuras e lhe dá uma aparência bruxal, com um nariz adunco e

Page 147: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

137

volumoso. Seus lábios são ambiguamente expressivos. Parecem esboçar um sorriso, mas não

há certeza de se em vez disso, não portam uma expressão de raiva. Ambos trazem expressões

sem expressão, imagens que nada transmitem de si, que informam a quem os vê apenas sobre

uma estranha aparência, ampliada pela imobilidade que impõe o olhar momentâneo

simbolizado pela pintura. Se não agem, não há como se observar suas verdades.

O pintor belga James Ensor (1860-1949) adorava máscaras. Durante boa parte de sua

poderosa carreira como um dos mais promissores nomes da arte belga do final do século XIX

e início do XX, pintou personagens que ocultavam suas verdadeiras faces. Ignotas,

desconhecidas e sem verdade, essas figuras davam conta da sensação de Ensor de que a

sociedade ocultava suas verdadeiras faces. Metáfora direta, crítica severa, Ensor criou as mais

variadas cenas de sociedades mascaradas e chegou ao extremo de mascarar multidões inteiras.

O quadro que descrevi, As máscaras escandalizadas, de 1830, foi o primeiro que Ensor

pintou com o motivo das máscaras. A cena nele apresentada, diferentemente do que se

seguiria no trabalho do pintor, que foi invariavelmente para as ruas mascarar (ou, em certo

sentido, desmascarar) a sociedade, é mais intimista, impõe um momento decisivo entre dois

personagens cuja singularidade remete para seus próprios estatutos.

Mas aquilo que me parece mais significativo na pintura de Ensor, e mais

particularmente no homem e na mulher que se entreolham em um espetáculo de potência

sem ato − o que está para acontecer? Torno a perguntar − é o fato de que, estranhas que

sejam, suas situações impõem uma forte noção de cotidiano. Não se tem, diante do nariz

grotesco do homem ou dos olhos mortificados da mulher nenhuma sensação de

anormalidade. Pintados por Ensor, homens, mulheres e crianças usam máscaras desde

sempre. Ele não pinta carnavais em seus quadros, imagina o calendário inteiro. A máscara,

para Ensor, é uma parte da anatomia humana.

Page 148: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

138

É clara a metáfora que o autor usou para olhar para a sociedade européia do fim do

século XIX. Ela, aliás, dialoga com uma imagem moderna por excelência (arraigada no

pensamento desde o século XVIII): o mundo como teatro. Boltanski (p. 45-46) chama a

atenção para os quatro significados possíveis dessa imagem: “1) nos usos satíricos e cínicos

ela serve de sustentação a uma denúncia da hipocrisia humana e da falta de autenticidade

social: a sociedade é um palco sobre o qual cada um interpreta um papel e simula, por

interesse, uma realidade que não é real”; “2) No uso que foi feito dela pelos estóicos serve (...)

para valorizar seu caráter ilusório [do mundo] a fim de diminuir a influência da realidade,

obter um efeito de posicionamento à distância e favorecer, com isso, o desprendimento”; “3)

É sem dúvida o uso que foi retido pela patrística, mas para opor a irrealidade do mundo

terreno à realidade do mundo elevado”; “4) Entre os neoplatônicos, a metáfora faz referência

ao mundo como cena em que se encena a peça da qual Deus é o autor. A contemplação do

espetáculo do mundo é, então, a maneira de se conhecer a obra de Deus”.

O uso moderno da metáfora remete para sua dimensão política e social: uma nova forma de

espectador, que pode se posicionar em lugares privilegiados para a observação, ganha dimensão e

importância. Com um poder que está “na capacidade que lhe é conferida de ver sem ser visto (...)

O novo espectador observa, de lugar nenhum, os atores e seus espectadores” (BOLTANSKI, p.

47). É dessa operação − produzida pelo surgimento do olhar científico das ciências sociais e pelo

olhar neutro do jornalismo − que nasce o puro observador descrito anteriormente. Essa

teatralização, claro, é uma produção de cenas de sofrimento, como apontou Boltanski.

Agora, quero falar da idéia de um observador moral. Não entrarei no mérito da

construção do mundo disciplinar descrito por Foucault (1987), embora a passagem desse

sistema para um modelo de moral do controle (modelo deleuziano que apresentei) seja o

processo aqui em jogo. O que me interessa apontar é como o cinismo serviu, nesta

Page 149: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

139

dissertação, para pensar uma outra economia do olhar: para o homem modulado, segundo

Bauman (1998; 2001), vale uma moral, como se viu, funcional, em que se priorize o

direito à liberdade individual (para o consumo) acima de tudo. Ao mesmo tempo,

entretanto, como mostrei no item sobre o Brasil, algumas ordens sociais contemporâneas

mantêm em atividade uma preocupação moral com o sofrimento do outro, seja na forma

de mecanismos institucionais − o que ainda resta do Estado de bem-estar −, seja em uma

constante manifestação de indignação diante do sofrimento quando este é veiculado na

esfera pública − na imprensa, por exemplo. Como disse antes e como tentei demonstrar no

Capítulo 1, não se pode definir uma sociedade híbrida como a brasileira nem como um

campo de individualismo estrito nem como um espaço de busca pela igualdade. O que se

pode dizer (novamente) é que a ordem social − manifesta em sua esfera pública − mantém

uma preocupação com a igualdade e que mantém em funcionamento um sistema de

observação dos sofrimentos. Como mostrei na análise do Primeiro de Maio, entretanto, a

movimentação diante desses sofrimentos é que se tornou algo negociável, graças a um

sistema de desculpas, de licença para a não-indignação que nos acompanha nesta era de

capitalismo conexionista e de moral tecno-lógica.

Por isso a citação ao quadro de Ensor e às formas de uso da metáfora do teatro-mundo.

Essa economia de mascaramento, de fazer-se-passar-por é aquilo que tentei apresentar ao

fazer dialogar cinismo e ordem moral. O Primeiro de Maio tem alterado seu valor simbólico

em grande medida porque começou a se tornar inútil, não funcional e, nesse sentido, começou

a se tornar ridículo usá-lo como data forte de batalha (uma vez que a própria batalha se tornou

objeto de pilhéria). Todas as observações feitas a respeito da data mostraram-na deslocada de

um contexto real de resolução de problemas da classe trabalhadora. O problema passa a ser o

trabalhador anacrônico que insiste na seriedade da festa, que dá a ela mais valor do que ela

Page 150: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

140

deveria ter de fato. Com isso, estão desculpadas até as voltas e voltas que o calendário dá

entre um mês de maio e outro, sem que mudança apreciável se dê no debate em jogo na data,

sem que ela deixe de ter uma dimensão mais dramatúrgica que propriamente política.

A conclusão deste trabalho é, então, a abertura de uma questão. Não se trata de um

efeito textual, daqueles produzidos para demonstrar humildade ou para servir de preâmbulo

para uma conclusão ensaística. Desta vez, ao contrário das afirmações da introdução, é um

pedido de desculpa. Mea culpa feita, é preciso explicá-la. Clamor por desculpa, clamor por

uma sistematização maior. Milhares de páginas lidas e pouco mais de uma centena delas

escritas, a maior conclusão a que este texto chega é a abertura de um espaço vazio: é preciso

pensar a desculpa. Assim, em vez de revisar aqui as observações feitas a respeito do cinismo e

de como ele se difunde sutilmente pela esfera pública a ponto de a classe trabalhadora, sem

notar, assimilar dele mecanismos de licença, aproveito este espaço para traçar apontamentos

para uma teoria da desculpa. É algo que assusta e remete para uma conseqüência inevitável:

nenhuma teoria da desculpa pode não ser, antes de tudo, uma teoria da culpa. A culpa, a

grande culpada da modernidade, parece merecer um olhar especial no mundo contemporâneo.

O olhar lançado sobre a cobertura jornalística do Primeiro de Maio permitiu enxergar

algo que, não sem ironia, chamaria de uma vontade de desculpa da parte de um indivíduo

marcado por uma história que lançou sobre ele uma responsabilidade: a ordem moral das

sociedades modernas depositou sobre o trabalhador a tarefa de mover o mundo e − em sua

dimensão política − transformá-lo. O quadro de uma luta trabalhadora que não se quer mais

necessária e não se quer mais generalizante − de busca do bem para todos, mas apenas para si

− é um dos problemas por excelência a serem enfrentados pelo pensamento: diante de um

novo trabalho, de um novo capitalismo − descrito, como apresentei, segundo uma lógica de

rede −, como se pode pensar uma forma de bem?

Page 151: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

141

Pretendi aqui colocar o problema de forma que ele não se convertesse em uma culpa

facilitada. O cinismo deve ser pensado, acredito, não como um desvio comportamental da

individualidade, mas como um sistema: trata-se de um mecanismo para que o individual peça

desculpa e para que o coletivo constitua flexibilidades morais e se mantenha sustentável. Por

essa perspectiva, quero dizer que funcionamos um pouco como pinturas de Ensor. E não

porque haja um jogo de hipocrisia a ser revelado. As máscaras estão mais na constituição de

um sistema de imaginárias, de imagens semelhantes às religiosas: constituímos representações

a serem miradas e, delas, observamos apenas suas idas e vindas.

Por isso, carece ser feita uma teoria da desculpa, para a qual este texto, se não serve nem

como primeiro passo, quer ser pelo menos uma provocação. Como prometi, não foi uma caça aos

cínicos, e sim um apontar para o quanto deles está em todos nós e o quanto começamos a nos

tornar dependentes de sua existência para conseguirmos, nós mesmos e não eles, dormir à noite.

Page 152: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

BIBLIOGRAFIA

Page 153: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

143

LIVROS E ARTIGOS

AGUIAR, Thais [e] WERNECK, Alexandre. O Real e a crise do Real: Reflexões sobre política e mídia na atualidade. Em: XXI Jornada de Iniciação Científica e Cultural da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.

ANDERSON, Perry. Introdução. Em: ANDERSON, Perry [e] CAMILLER, Patrick (orgs). Um mapa da esquerda na Europa Ocidental. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

_________________. Globalização: Conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

_________________. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

_________________. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BERNSTEIN, Richard J. The new constellation: The ethical-political horizons of modernity/postmodernity. Cambridge: MIT Press, 1991.

BOLTANSKI, Luc [e] THEVENOT, Laurent. De la justification: Les economies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

_______________ . La souffrance à distance: Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Metailié, 1993.

_______________ [e] CHIAPELLO, Ève. Le nouvel esprit du capitalisme. Paris: Gallimard, 1999.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.

________________. Homo academicus. Paris: Minuit, 1984.

________________ [com] WACQUANT, Loïc. Réponses. Paris: Seuil, 1992.

BOUVERESSE, Jacques. Racionalité et cynisme. Paris: Minuit, 1984.

Page 154: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

144

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: A era da informação − Economia, sociedade e cultura − Volume 1. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

COLBARI, Antônia. Ética do trabalho. Rio de Janeiro: Letras & Letras, 1995.

D’AMARAL, Márcio Tavares. O homem sem fundamentos. Rio de Janeiro: UFRJ -Tempo Brasileiro, 1995.

_________________________ (org). Contemporaneidade e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

_________________________. Transcrição de aulas do Curso de Mestrado em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ, 1o semestre de 2002.

_________________________. A arte da guerra: Uma filosofia para uso dos homens comuns. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, no prelo.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: 34, 1997.

DUDLEY, Donald R. A history of cynicism from Diogenes to the 6th century A.D. Londres: METHUEN & CO, 1937.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SANTANA, Marco Aurélio. Trabalhadores em movimento: O sindicalismo brasileiro nos anos 1980-1990. Em: FERREIRA, Jorge [e] DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs). O Brasil republicano − Vol. 4 − O tempo da ditadura − Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

FILGUEIRAS, Luiz. História do Plano Real. São Paulo: Boitempo, 2000.

FREUD, Sigmund. (1927) Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GIANNOTTI, Vito. Força Sindical: A central neoliberal − De Medeiros a Paulinho. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

Page 155: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

145

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1993.

GUILLEBAUD, Jean-Claude. A reinvenção do mundo: Um adeus ao século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

JACOBY, Russel. O fim da utopia. Rio de Janeiro: Record, 2001.

JEUDY, Henri-Pierre. A ironia da comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2001.

KUPERMANN, Daniel. Ousar rir: Humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

LIPOVETSKY, Gilles. L’Ere du vide: Essai sur l’individualisme contemporain. Paris: Gallimard, 1989.

MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

NAVIA, Luis E. Classical cynicism: A critical study. Westport: Greenwood Press, 1996.

NETO, Antônio Carvalho. Relações de trabalho e negociação coletiva na virada do milênio: Estudo em quatro setores dinâmicos da economia brasileira. Petrópolis: Vozes, 2001.

RODRIGUEZ, Miguel. Le 1er mai. Paris: Gallimard, 1991.

SLOTERDIJK, Peter. Critique de la raison cynique. Paris: Christian Bourgois Éditeur, 1987.

_________________. No mesmo barco: Ensaio sobre a hiperpolítica. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

TARDE, Gabriel. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2002.

WERNECK, Alexandre. Plantadores de verdades: Os movimentos coletivos na mídia e o individualismo. Monografia (Graduação). UFRJ/ Escola de Comunicação, 2001.

Page 156: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

146

ARTIGOS DE JORNAIS E REVISTAS1

AGUIAR, Rejane. Sorteio lota Pacaembu: Força Sindical atrai 50 mil pessoas no dia do trabalhador. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 de maio, 1998. País. p. 4.

BENJAMIN, César. O triunfo da razão cínica. Caros Amigos. São Paulo, Nov 2003. Ed. 80.

_______________. Falarei de George Bush. Caros Amigos. São Paulo, Dez 2003. Ed. 81.

BUCCI, Eugênio. Operários, festas e protestos. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 29 de abril, 2001, p. B10.

DIMENSTEIN, Gilberto. Salário, corda e pescoço. Folha de S. Paulo. São Paulo, 2 de maio, 1990, p. A-2.

ESPÓSITO, Mauricio. Promoção e ato político dividem centrais. Folha de S. Paulo. 2 de maio, 1998, p. 2-1.

FERNANDES, Fátima [e] ROLLI, Claudia. Em expansão, CUT adere às megafestas. Folha de S. Paulo. São Paulo, 7 de dezembro, 2003, p. 2-1.

___________________________________. CUT prepara ‘boas vindas’ a novos filiados. Folha de S. Paulo. São Paulo, 7 de dezembro, 2003, p. 2-4.

___________________________________. ‘Mudança é conservadora’. Folha de S. Paulo. São Paulo, 7 de dezembro, 2003, p. 2-4.

___________________________________. Palco da festa será na Paulista. Folha de S. Paulo. São Paulo, 7 de dezembro, 2003, p. 2-4.

___________________________________. Central diz buscar 1o de Maio “social”. Folha de S. Paulo. São Paulo, 7 de dezembro, 2003, p. 2-5.

MAYRINK, José Maria. Sindicalistas protestam. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 1999, p. 13.

MODÉ, Leandro [e] PINHEIRO, Liliana. Festa da Força Sindical atrai 900 mil pessoas: Eventos de 1º de Maio promovidos pela Força Sindical e pela Central Única dos

1 Estes são os artigos efetivamente citados no texto. Além deles, são citadas chamadas de primeira página cuja referência direta é a própria data. A bibliografia, entretanto, inclui a leitura de Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo em todas as edições de 1o de 2 de maio (e 3 de maio de alguns anos, no caso de O Estado de São Paulo, como foi explicado em nota) entre 1980 e 2003.

Page 157: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

147

Trabalhadores evidenciam mudanças no sindicalismo brasileiro. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 de maio, 2000, p. B3.

______________ [e] ROSSI, Valéria. Gritos de fãs substituem palavras de ordem durante comemorações: Público de 900 mil pessoas estava mais interessado nos shows e sorteios. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 de maio, 2000, p. B4.

MARINELLO, Fabiana. No Dia do Trabalho, música toma lugar de reivindicações: Empresas pagam até 300 mil para patrocinar show da Força Sindical. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 2001, p. 13.

NEUMANE, José. Magri quer governo fora do sindicato. O Estado de São Paulo. São Paulo, 1o de maio, 1990, p. 4.

PEREIRA DA SILVA, Paulo. O maior 1o de Maio do mundo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1o de maio, 2001, p. 1-3.

PINHEIRO, Liliana. Nostalgia marca evento da CUT em S. Bernardo: Festa de 1º de Maio organizada pela CUT reuniu 15 mil pessoas. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 de maio, 2000, p. B2.

POCHMAN, Márcio. Sindicalismo se acomodou. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 2001, p. 13.

SILVA, Cleide. Shows, sorteios e CPI marcam o 1o de Maio: Mais de 1 milhão foram às ruas, maioria queria ver apresentação de cantores sertanejos. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 de maio, 2001, p. B1.

SILVA, Cleide. Força Sindical reúne 1,5 milhão no 1º de Maio: A central comandada por Paulo Pereira da Silva festejou o dia com megashow e sorteios. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 de maio, 2002, p. B1.

VARGA, László [e] FERNANDES, Fátima. Força sorteia carros e casas e critica FHC: Cerca de 600 mil vão a evento da central em SP. Presidente é vaiado por causa do mínimo de R$ 151. Folha de S. Paulo. São Paulo, 2 de maio, 2000, p. 2-9.

VIEIRA, Marceu. Primeiro de Maio em Volta Redonda vira ato de protesto. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 de maio, 1990, p. 3.

Atos de 1o de Maio reúnem pouca gente em São Paulo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 2 de maio, 1987, p. A-10.

A utilidade de Lula. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1o de maio, 1980, p. 1-2.

Page 158: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

148

Bandeiras rotas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 1998, p. 8.

Cariocas não aprovam seus governantes: Em pesquisa do DataBrasil, maioria da população do Rio dá notas de zero a cinco para presidente, governador e prefeito. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 1993, p. 3.

CUT leva campanha de volta às ruas, mas povo não adere. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 1987, p. 4.

Deve prevalecer a razão. O Estado de São Paulo. São Paulo, 1o de maio, 1980, p. A3.

Dops afirma que Dom Cláudio está incitando a greve no ABC. Jornal do Brasil. Rio e Janeiro, 1o de maio, 1980, p. 14.

Fiesp na festa da Força Sindical. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 1995, p. 4.

Força faz festa milionária. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 de maio, 2000, p. 6.

Manifestações pacíficas marcam o 1o de Maio. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 de maio, 1999, p. A13.

Marinho e Ermírio lideram. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1o de maio, 1993, p. 1-4.

Protestos marcam 1o de Maio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 de maio, 1999, p. 2.

Reflexão de maio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1o de maio, 1981, p. 10.

Rejeição a políticos no país supera 90%: Segundo o Ibope, 93% dos brasileiros acham que os políticos só pensam na próxima eleição e 92% consideram que a vida pública enriquece. O Estado de São Paulo. São Paulo, 1o de maio, 1993, p. 8.

Sucessão marca o Dia do Trabalho. O Estado de São Paulo. São Paulo, 1o de maio, 1993, p. 10.

Page 159: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 160: ALEXANDRE WERNECK COMUNICAÇÃO E CINISMOlivros01.livrosgratis.com.br/cp023199.pdf · gue, que viu e reviu não apenas pontos, vírgulas e atrações pronominais, como também minha

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo