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ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU SUMÁRIO Prefácio 4 Introdução 8 1. História da alfabetização 11 2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35 3. Avaliação, promoção, planejamento 61 4. O método das cartilhas 79 5. Panorama do processo de alfabetização 103 6. A decifração da escrita 119 7. Procedimentos para o estudo das letras 133 8. Sugestões de atividades na alfabetização 163 9. A produção de textos espontâneos 197 10. As hipóteses por trás dos erros 241 11. Ditado e cópia 287 12. Leitura e interpretação de texto 311 13. Ortografia da língua portuguesa 341 Apêndice — A categorização gráfica das letras 359 Bibliografia 389

ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

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Page 1: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU

SUMÁRIO

Prefácio 4

Introdução 8

1. História da alfabetização 11

2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35

3. Avaliação, promoção, planejamento 61

4. O método das cartilhas 79

5. Panorama do processo de alfabetização 103

6. A decifração da escrita 119

7. Procedimentos para o estudo das letras 133

8. Sugestões de atividades na alfabetização 163

9. A produção de textos espontâneos 197

10. As hipóteses por trás dos erros 241

11. Ditado e cópia 287

12. Leitura e interpretação de texto 311

13. Ortografia da língua portuguesa 341

Apêndice — A categorização gráfica das letras 359

Bibliografia 389

Índice de tópicos por capítulo 397

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PREFÁCIO

Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é, sem dúvida, um livro

pioneiro. O próprio título já evidencia o seu pioneirismo: uma

nova proposta de metodologia da alfabetização, totalmente

liberta do método silábico, cartilhesco ou não.

Ao contrário do que se pode imaginar, não é apenas quando

nos utilizamos da cartilha que o método silábico do bá-bé-bi-bó-

bu se encontra subjacente à prática de ensinar a ler e escrever.

Como bem mostra o autor, mesmo em práticas consideradas

inovadoras e bem distantes da cartilha, a única tábua de

salvação, para muitos professores, é voltar ao antigo bê-a-bá.

Outra grande inovação (diríamos até "evolução") trazida por

este livro é colocar no centro da discussão da aquisição da

leitura e da escrita a noção de ortografia, ausente de qualquer

outra abordagem do assunto já conhecida. Não nos referimos à

ortografia apenas como uma meta a ser atingida no final do

processo, mas como a noção fundamental que sustenta o nosso

sistema de escrita. O autor nos mostra que, ao contrário do que

comumente se pensa, nosso sistema de escrita não é apenas

alfabético (o que o tornaria uma mera transcrição fonética), mas

ortográfico (servindo a ortografia, entre outras coisas, para

anular a variação lingüística no nível da palavra). Assim, a partir

de considerações a respeito da própria natureza do nosso

sistema de escrita, e de como isto interfere no processo de

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alfabetização, vemos como a ortografia deve ser considerada

desde o início do processo e não como objetivo final

— como o fazem tanto os métodos tradicionais baseados no bá-

bé-bi-bó-bu, como também os ditos construtivistas, que dividem

a aquisição da linguagem escrita em níveis (pré-silábico, silábico

e alfabético), os quais não encontram correspondência exata em

qualquer sistema de escrita conhecido, menos ainda em um

sistema de escrita ortográfico como o nosso.

Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é uma obra voltada para a

formação do professor alfabetizador. Discute a teoria da

aquisição da linguagem escrita e fornece subsídios ao professor

que tiver coragem, vontade, ou simplesmente necessidade,

imposta pelo seu cotidiano de alfabetizador, de mudar. É o

resultado de quase vinte anos de dedicação do autor à causa da

alfabetização e de seus mais de trinta anos como lingüista. ~,

<4>

Representa, pois, a visão de um lingüista sobre o processo de

aquisição da leitura e da escrita e a sua contribuição, como

professor, para a educação do país, de um modo mais geral. O

autor afirma que um professor que tenha os conhecimentos

apresentados neste livro consegue conduzir com calma e

segurança o processo de alfabetização e tem chances de

alfabetizar uma criança a partir dos cinco anos ou um adulto em

dois ou três meses — o que significa uma enorme conquista,

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dados os alarmantes níveis de analfabetismo no Brasil. Isso

porque os conhecimentos apresentados independem do tempo

histórico e do espaço geográfico, já que dizem respeito

diretamente à natureza, função e usos da linguagem oral e

escrita e não estão subordinados a métodos pedagógicos. As

estratégias de ensino podem variar de professor para professor,

mas o conhecimento da linguagem oral e escrita é uma aquisição

da ciência e, desse modo, depende única e exclusivamente do

progresso da ciência. E nesse sentido, a ciência Lingüística já

tem um conjunto considerável de conhecimentos solidamente

estabelecidos, dos quais uma parte é colocada aqui à disposição

para uma aplicação à educação.

Na sua carreira acadêmica, Luiz Carlos Cagliari tem trabalhado

com três linhas de pesquisa: fonética e fonologia, sistemas de

escrita e alfabetização. Nas três áreas, além de ter produzido

muitas pesquisas, que resultaram em várias publicações, seu

percurso como professor do Instituto de Estudos da Linguagem

da Unicamp inclui cursos na graduação em Letras e Lingüística e

na pós-graduação em Lingüística, além de comunicações em

reuniões científicas importantes, dentro e fora do país. No

entanto, este livro não pode ser considerado apenas o resultado

de uma pesquisa desenvolvida do lado de dentro dos portões da

universidade, desvinculada da realidade de sala de aula dos

professores alfabetizadores do país. O contato e trabalho

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conjunto do autor com os professores alfabetizadores vêm já de

longa data.

O ano de 1980 é uma data-chave para a compreensão do seu

envolvimento com os estudos de alfabetização. Nessa ocasião,

uma equipe da CENP o convidou para ministrar um curso de

fonética acústica para professores alfabetizadores, uma vez que,

segundo os especialistas, os erros de troca de letras cometidos

pelos alunos eram devidos ao fato de os professores não

conhecerem o assunto, não tendo, portanto condições de

resolverem o problema quando ele se manifestava. ~,

<5>

Analisando a questão, ele concluiu que os problemas não se

restringiam à fonética acústica, mas envolviam falhas sérias no

processo de alfabetização, devido à falta de conhecimento

lingüístico. Esse curso, realizado com a colaboração de uma de

suas colegas de departamento na Unicamp, a Drª Maria

Bernadete Abaurre, e do Dr. Márcio Silva, foi o início de um longo

caminho de pesquisa e de cooperação com órgãos públicos,

faculdades e, sobretudo, com professores alfabetizadores, que

forneciam ao autor material produzido pelos alunos. Começou a

organizar assim um enorme arquivo de produções infantis.

No ano seguinte, a convite da equipe pedagógica da

Secretaria de Educação de Alagoas, juntamente com Maria

Bernadete, Luiz Carlos Cagliari ministrou um curso para

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professores alfabetizadores. Na ocasião, foi possível pôr em

prática as novas orientações propostas no curso da CENP,

sobretudo, convencendo os professores a deixar seus alunos

produzirem textos espontâneos. O que parecia a eles uma

loucura logo se revelou uma grata surpresa. A evidência dos

fatos mostrou a dimensão da capacidade dos alunos e que seus

erros, mais do que "falhas", revelavam hipóteses que os levavam

a fazer opções diante da escrita.

No ano de 1983, destaca-se sua participação no I Seminário

Multidisciplinar: Alfabetização, realizado na Pontifícia

Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nessa ocasião,

apresentou um trabalho intitulado A formação do professor

alfabetizador, em que já aparece um esboço de suas principais

idéias sobre o processo de alfabetizar.

Neste mesmo ano, outra colega sua do departamento de

Lingüística da Unicamp, a Drª Cláudia Lemos, organizou um

encontro sobre Linguagem, Aprendizagem e Interação. Ela já

conhecia o trabalho do autor na área de alfabetização e achava

que correspondia em grande parte ao que faziam os

construtivistas, sobretudo uma psicóloga que tinha encontrado

na Europa, chamada Emília Ferreiro. Nesse encontro foram

apresentadas as idéias do construtivismo, que, a partir daí,

invadiram os programas de alfabetização. Para esse evento, o

autor levou os textos espontâneos dos alfabetizandos de Alagoas

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e de Campinas com os quais ele havia trabalhado, expondo-os

em dois varais que acompanhavam toda a extensão do corredor

do pavilhão dos professores. Todos ficaram impressionados, e os

textos forneceram material para muita discussão.~,

<6>

Em 1984, o autor já, havia juntado grande quantidade de

trabalhos sobre os mais variados tópicos da alfabetização

relacionados com a fala, a escrita e a leitura. Esse material iria

formar, mais tarde, o livro Alfabetização e lingüística, publicado

pela Scipione em 1989. Um dos trabalhos que não entrou

naquele livro foi o "Roteiro de sugestões para professores

alfabetizadores", que serviu de embrião para esta obra que ora

prefaciamos, cuja versão preliminar foi escrita nos dois

primeiros meses de seu estágio de pós-doutoramento em

Londres, em 1987, e depois foi intensamente discutida e levada à

sala de aula por professores alfabetizadores de várias regiões do

país.

Já em 1985, Luiz Carlos Cagliari participou do Projeto Ipê,

coordenado pela CENP Nessa ocasião, publicou o artigo

"Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na

escola", que teve enorme repercussão. Com o material desse

artigo, foi feito o roteiro para um programa da TV Cultura

relacionado com o Projeto Ipê. Paralelamente a isso, começaram

a ser publicados no Brasil artigos de Emília Ferreiro e suas idéias

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apareceram também no Projeto Ipê. A pesquisadora Telma

Weisz, discípula de Ferreiro passou a liderar a divulgação do

construtivismo no estado de São Paulo, com o apoio da CENP e,

sobretudo depois, com a FDE. Nessa época, já era notória a

discordância do autor (ver o artigo "O príncipe que queria ser

sapo") e de outros lingüistas com relação às interpretações de

Emília Ferreiro a respeito do processo de letramento. A opção

pelo construtivismo e, de certo modo, sua imposição às

atividades da rede pública deixaram em um plano secundário as

críticas e outras formas de pensar e de fazer o processo de

alfabetização. Apesar disso, Luiz Carlos Cagliari continuou

pesquisando com empenho e profundamente, até a formação de

um conjunto de idéias sólidas, bem fundamentadas, que

explicam não só como alguém se alfabetiza, mas também como

tirar alguém do "mau caminho" e fazer com que supere seus

obstáculos e consiga se alfabetizar. São estas as idéias

apresentadas no presente livro.

Atualmente, seus olhos voltam-se para um novo horizonte: a

alfabetização de adultos. Continua sua luta incansável contra o

analfabetismo e por rumos melhores para a alfabetização dos

que efetivamente conseguem chegar até a escola.

Gladis Massini-Cagliari. ~,

<7>

Page 9: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

INTRODUÇÃO

Em 1981, baseando-me na experiência de alfabetização de

meu filho Daniel na Escócia (1976), disse para muitos

professores (em cursos e palestras) que as crianças podiam

escrever textos já no início da alfabetização, passando da

capacidade de produzir textos orais para a representação

escrita, mesmo sem saber bem a grafia das palavras. Fui então

considerado um maluco, que nunca tinha alfabetizado alguém.

Bastou a coragem de alguns professores, já no ano seguinte,

para que todos descobrissem que isso era possível. Com o

trabalho de colegas como Maria Bernadete Abaurre e João

Wanderley Geraldi e com a divulgação das idéias de Emília

Ferreiro, o que era medo de ensinar tornou-se procedimento

comum com relação à produção de textos espontâneos na

alfabetização e de livrinhos de classe em todas as séries iniciais.

Neste livro, há um outro desafio: ensinar a ler a partir da

reflexão sobre o processo de alfabetização, tornando conscientes

para o professor e o aluno as regras de decifração da escrita. As

crianças gostam de aprender coisas sérias, ensinadas com

seriedade — e é isto o que mais falta hoje na escola. Esse desafio

é fruto de extenso estudo sobre o processo de alfabetização,

ponderando as implicações dos estudos da linguagem no modo

como as crianças usam a fala, a escrita e a leitura. Além disso,

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leva-se em consideração uma investigação profunda da história

da escrita, da natureza e usos dos sistemas de escrita. Sem esse

suporte lingüístico e esse conhecimento dos sistemas de escrita,

grande parte da problemática do processo de letramento fica

distorcida, não raramente levando os estudiosos por caminhos

sem saída. A simples aplicação de um método ou de uma teoria

conduz facilmente o processo pedagógico a reproduzir um

modelo. Nesse contexto, os alunos precisam se virar com os

recursos do modelo.

E se não der certo, se o aluno, apesar das repetições a que é

submetido, não conseguir se alfabetizar? Essa preocupação

sempre foi a central de todos os meus estudos. A única saída

para impasses como esse — e, por que não, para conduzir

tranqüilamente um processo de letramento — é o conhecimento

sofisticado e correto das questões lingüísticas relacionadas à

alfabetização, bem como do funcionamento dos sistemas de

escrita. Idéias simples, porém, fundamentais, como a variação

lingüística e o fato de a ortografia ter modificado ~,

<8>

profundamente o sistema alfabético, quando ausentes ou mal

interpretadas na escola, podem criar grandes embaraços para a

aprendizagem do aluno e um quebra-cabeça extremamente

complicado para a ação do professor.

Tenho certeza (pois também já constatei na prática) de que os

Page 11: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

professores irão descobrir nos procedimentos sugeridos neste

livro uma forma nova e segura de alfabetizar. Não basta deixar

de lado o livro das cartilhas; é preciso deixar de lado o método

das cartilhas, o ensino centrado na noção de sílaba como

unidade privilegiada da escrita e da leitura. Ensinar as crianças a

tornar conscientes os procedimentos de decifração da escrita é

uma estratégia que as agrada mais do que ficarem repetindo

coisas aparentemente sem sentido, ou ser largadas à própria

sorte, esperando que saiam de dentro de si os conhecimentos

que a escola exige para ler e escrever. A proposta deste livro é

ensinar de maneira clara e com precisão como se faz para

aprender a ler e a escrever — o que corresponde exatamente às

expectativas das crianças.

O fato de ser este livro volumoso, abrangendo um assunto

complicado, não deve ser motivo de receio para os professores,

que sentirão seu trabalho facilitado e valorizado com a adoção

de uma nova postura em sala de aula. As crianças vão se sentir

valorizadas também em suas descobertas, ganhando maior

segurança ao observarem seu próprio progresso. Para o

professor, no começo, talvez esta apresentação do processo de

alfabetização possa parecer muito técnica e fora da realidade

pedagógica e psicológica das crianças. Lembro que o mesmo me

diziam quando afirmava que as crianças eram capazes de

produzir textos espontâneos, passando dos conhecimentos que

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tinham da linguagem oral para a forma escrita. Hoje, todos

concordam que produzir textos é algo que as crianças fazem com

facilidade, criatividade e prazer. Com o tempo, mesmo

problemas altamente complexos passam a ser vistos como

desafios comuns quando se familiariza com eles e com as

soluções necessárias. Um bom exemplo disso no mundo

moderno é a maneira como as crianças lidam com os jogos de

vídeo games. Depois de certa prática, aprendendo uma

quantidade enorme de regras, jogam com facilidade, para

espanto de quem não é capaz. Outro exemplo mais próximo de

nosso assunto está no próprio fato de as pessoas que

aprenderam a ler e a escrever (e isso se constata já nas

primeiras séries) tiveram de passar por todas essas regras e por

todos os ~,

<9>

conhecimentos "técnicos" que constituem o objetivo deste livro.

Na verdade, não há outra saída. O que existe são os caminhos

diferentes para se obter um resultado. Como costumo dizer,

alguém pode ir de São Paulo ao Piauí andando a pé, a cavalo ou

de avião. Há muitas escolhas, mas nem todas têm o mesmo

valor.

Para juntar conhecimentos teóricos com metodologias ou

estratégias de ação, foi preciso me alongar no assunto, dado o

volume de informação e a necessidade de clareza na exposição.

Page 13: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O livro está dividido em treze capítulos e um apêndice. Para

auxiliar na pesquisa do professor que está em busca dos

conhecimentos básicos há uma breve história da alfabetização,

uma sucinta apresentação da história da ortografia da língua

portuguesa e o apêndice, no qual as letras são estudadas

individualmente, mostrando as facilidades e dificuldades de seu

ensino e aprendizagem. O método das cartilhas mereceu um

estudo à parte, para contrastar com o que se propõe: deixar de

lado o bá-bé-bi-bó-bu e partir para um trabalho de pesquisa

envolvendo professor e alunos. Algumas questões pedagógicas,

como a avaliação, a promoção e o planejamento escolar, tiveram

de ser abordadas em vista de suas conseqüências para a ação do

professor e do aluno. O que se propõe é que a escola ensine os

alunos a estudar, a trabalhar com os conhecimentos, e não com

o objetivo menor de ganhar nota e passar de ano. A parte

principal do livro concentra-se nos procedimentos para o estudo

das letras, com sugestões de atividades e destaque especial para

a produção de textos espontâneos. Os problemas que o aluno e o

professor encontrarão são analisados e discutidos em detalhes,

mostrando, por um lado, o que é preciso saber para decifrar a

escrita e, conseqüentemente, ler e escrever, e, por outro, quais

as hipóteses que os alunos apresentam quando erram e como

não cair em impasses que impedem o progresso desses alunos.

Outras atividades importantes foram também consideradas,

Page 14: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

como o ditado, a cópia e a interpretação de textos.

Este livro pretende ser uma contribuição a mais (há tantas

coisas interessantes e importantes que têm sido apresentadas

aos professores alfabetizadores nas duas últimas décadas...)

para que se entenda melhor o processo de alfabetização. O

objetivo não foi fazer um livro teórico nem um manual do

professor, mas apresentar, discutir e sugerir idéias que o autor

pesquisou, que foram amplamente discutidas com pesquisadores

e, sobretudo, com professores alfabetizadores. ~,

<10>

Gladis Massini-Cagliari é professora assistente doutora de

língua portuguesa do Departamento de Lingüística da Faculdade

de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara. É mestre e doutora

em lingüística pelo Departamento de Lingüística da Unicamp e

autora de trabalhos publicados na área de alfabetização,

fonologia, lingüística histórica e lingüística textual. Interlocutora

privilegiada do autor por ser sua mulher e tê-lo conhecido como

professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp,

vem acompanhando seu percurso como lingüista e, a partir de

1991, passou a colaborar ativamente em seus trabalhos na área

de alfabetização.

1

História da alfabetização

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Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras

da alfabetização, ou seja, as regras que

permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o

sistema de escrita funciona e saber como usá-lo

apropriadamente. A alfabetização é, pois, tão antiga quanto os

sistemas de escrita. De certo modo, é a atividade escolar mais

antiga da humanidade.

Para que os sistemas de escrita continuem a ser usados, é

preciso ensinar às novas gerações como fazê-lo. Quando esse elo

se rompe, por abandono ou porque é trocado por outro modelo, a

escrita antiga passa a ser um sistema sem decifração. Nesses

casos, só com muito estudo, e também com um pouco de sorte

da parte dos decifradores dessas escritas abandonadas, as

regras que envolvem tais sistemas voltam a ser conhecidas,

permitindo assim que os textos antigos sejam lidos e que a

escrita possa ser novamente utilizada.

Na história da escrita, registram-se apenas dois casos de

povos que empregavam um sistema de escrita e que, por alguma

razão estranha e desconhecida, deixaram de fazê-lo, ficando por

um longo tempo sem utilizar qualquer sistema. Isso aconteceu

com os gregos e com os indianos.

A escrita cretense minóica (Linear B) foi usada pela cultura

grega micênica até 1250 a.C., quando Micenas foi destruída. Os

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gregos voltaram a escrever somente 500 anos mais tarde,

usando o alfabeto semítico. No vale do rio Indo, houve um

sistema de escrita ainda não decifrado que só foi empregado por

volta de 2500 a.C. Naquela região, a escrita só ressurgiria muito

tempo depois, no século III a.C., com a escrita brãmane.

Curiosamente, esses dois tipos de escrita, ao que tudo parece,

tiveram um uso muito popular, ou seja, não ficaram restritos a

atividades religiosas ou científicas. Mesmo guerras muito

violentas nunca interromperam o conhecimento da escrita, razão

pela qual esses dois casos são considerados hoje misteriosos. ~,

<12>

Estudando atentamente os sistemas de escrita, percebe-se

que quem os inventou sempre teve a preocupação de fornecer a

chave da decifração juntamente com o próprio sistema. Os

sistemas de escrita nunca tiveram nada de muito estranho ou

misterioso em si, pelo contrário, sempre foram simples e

práticos. Por essa razão, ensinar as novas gerações a usar o

sistema de escrita sempre foi uma tarefa fácil e de certa forma

banal.

< CAGLIARI, 1996b,p. 106-24.

A antiga civilização da ilha de Creta usou dois sistemas de

escrita que os estudiosos chamaram de Linear A e B. O primeiro

Page 17: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

representara uma língua desconhecida e foi decifrado somente

em parte. O segundo representava a língua grega arcaica e foi

decifrado.

A LEITURA E A ESCRITA

NA ANTIGUIDADE

HAMURABI, da Babilônia entre os anos de 1792 e 1750 a.c.,

fundador do Império Babilônico. Seu código é o mais extenso

conjunto de leis conhecido da Antiguidade.

Os sistemas de escrita estabelecidos na história dos povos

nunca foram privilégio de ninguém. É falsa a idéia de que na

Antiguidade somente os sacerdotes, os reis ou pessoas de

grande poder dominassem a escrita e a usassem como um

segredo de Estado. Essa é uma idéia errada e estranha, que não

faz sentido algum, bastando lembrar como argumento que a

escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue

sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos

históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche

todas as paredes e até colunas com escrita e exibe isso

publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor

maneira de guardar um segredo de Estado. Ao ler o que ele

Page 18: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

mandou escrever, ficamos sabendo que, às vezes, o texto tem

como interlocutor o próprio povo, súdito do monarca. Na

Mesopotâmia, Hamurabi mandou publicar em praça pública um

código de leis para que o povo soubesse sob quais leis vivia e

como deveria se portar em sociedade.

O que tem perturbado aqueles que acreditam ser a escrita um

privilégio das pessoas poderosas é o fato de terem chegado até

nós grandes obras da Antiguidade. Certamente essas obras

foram feitas por especialistas, assim como, hoje em dia, um livro

de engenharia é escrito por um engenheiro, um livro de medicina

por um médico, um livro de religião por um teólogo e assim por

diante. Isso não significa que somente engenheiros, médicos e

teólogos conheçam a escrita no mundo moderno.

Costumo dizer que quem inventou a escrita foi a leitura: um

dia, numa caverna, o homem começou a desenhar e encheu as

paredes com figuras, representando ~,

<13>

animais, pessoas, objetos e cenas do cotidiano. Certo dia

recebeu a visita de alguns amigos que moravam próximo e foi

interrogado a respeito dos desenhos. Queriam saber o que

representavam aquelas figuras e por que ele as tinha pintado

nas paredes. Naquele momento, o artista começou a explicar os

nomes das figuras e a relatar os fatos que os desenhos

representavam. Depois, à noite, ficou pensando no que tinha

Page 19: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

acontecido e acabou descobrindo que podia "ler" os desenhos

que tinha feito. Ou seja, os desenhos, além de representar

objetos da vida real, podiam servir também para representar

palavras que, por sua vez, se referiam a esses mesmos objetos e

fatos na linguagem oral. A humanidade descobria assim que,

quando uma forma gráfica representa o mundo, é apenas um

desenho; mas, quando representa uma palavra, passa a ser uma

forma de escrita. A partir dessa descoberta, criar um sistema de

formas gráficas, figurativas ou não, para representar palavras ou

frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado.

A história contada acima é obviamente fantasiosa e não

corresponde aos fatos reais, mas revela algo importante, que

não pode ser captado pelos documentos materiais da história,

porque pertence ao reino do pensamento. Provavelmente, a

necessidade de um sistema de escrita veio de situações vividas.

De acordo com fatos comprovados historicamente, a escrita

surgiu do sistema de contagem feito com marcas em cajados ou

ossos, e usado provavelmente para contar o gado, numa época

em que o homem já possuía rebanhos e domesticava os animais.

Esses registros passaram a ser usados nas trocas e vendas,

representando a quantidade de animais ou de produtos

negociados. Para isso, além dos números, era preciso inventar

símbolos para os produtos e para os nomes dos proprietários.

Nessa época de escrita primitiva, ser alfabetizado significava

Page 20: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

saber ler o que aqueles símbolos significavam e ser capaz de

escrevê-los, repetindo um modelo mais ou menos padronizado,

mesmo porque o que se escrevia era apenas um tipo de

documento ou texto. Com a expansão do sistema de escrita, a

quantidade de informações necessárias para que alguém

soubesse ler e escrever aumentou consideravelmente, o que

obrigou as pessoas a abandonar o sistema de símbolos para

representar coisas e a usar cada vez mais símbolos que

representassem sons da fala, como, por exemplo, as sílabas.

Como há cerca de 60 tipos de sílabas diferentes ~,

<14>

por língua, em média, o sistema de símbolos necessários para

representar as palavras através das sílabas ficou

muito reduzido, fácil de ser memorizado e conveniente para a

difusão da escrita na sociedade.

O longo processo de invenção da escrita também incluiu a

invenção de regras de alfabetização, ou seja, as regras que

permitem ao leitor decifrar o que está escrito e saber como o

sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente.

A escrita, pelo que se sabe hoje, começou de maneira

autônoma e independente, na Suméria, por volta de 3300 a.C. É

muito provável que no Egito, por volta de

3000 a.C., e na China, por volta de 1500 a.C., esse processo

autônomo tenha se repetido. Os maias da América Central

Page 21: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

também inventaram um sistema de escrita independentemente

de um conhecimento prévio de outro sistema de escrita, num

tempo indeterminado ainda pela ciência, que talvez se situe por

volta do início da era cristã. Todos os demais sistemas de escrita

foram inventados por pessoas que tiveram, de uma maneira ou

de outra, contato com algum sistema de escrita.

Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler

algo já escrito e depois copiando. Começavam com palavras e

depois passavam para textos famosos, que eram estudados

exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios

textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da

alfabetização. Note que essa atividade está diretamente ligada

ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar,

escrevendo para a sociedade e a cultura da época.

Muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que

não pretendiam tornar-se escribas. A curiosidade, certamente,

levava muita gente a aprender a ler para lidar com negócios,

comércio e até mesmo para ler obras religiosas ou obter

informações culturais da época. A alfabetização, nesses casos,

dava-se com a transmissão de conhecimentos relativos à escrita

de quem os possuía para quem queria aprender. Aprender a

decifrar a escrita, ou seja, a ler, relacionando os caracteres às

palavras da linguagem oral, devia ser o procedimento comum.

Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber

Page 22: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ler. Para quem sabe ler, escrever é algo que vem como

conseqüência.

Com a escrita semítica aconteceu algo muito curioso e que,

sem dúvida alguma, foi proposital para facilitar o uso do sistema

de escrita e sobretudo o seu aprendizado, ou seja, o processo de

alfabetização.

<15>

Ao formar seu sistema de escrita, os semitas escolheram um

conjunto de palavras cujo primeiro som fosse diferente dos

demais. Como nenhuma palavra naquelas línguas começasse por

vogal, a lista ficou apenas com consoantes. Essa escolha foi urna

decisão muito importante porque reduziu os modelos de

silabários da época, da escrita cuneiforme, por exemplo, de cerca

de 60 elementos para apenas 21 consoantes. Para representá-las

graficamente, foram escolhidos hieróglifos egípcios cujo aspecto

figurativo lembrava o significado das palavras daquela lista. Por

exemplo, a primeira palavra da lista era 'alef, que significava

"boi", e o hieróglifo escolhido foi o que representava a cabeça de

um boi. Dessa maneira, a figura da cabeça do boi passou a

representar o som inicial da palavra 'alef, que era oclusiva glotal.

E assim com as demais palavras e suas respectivas consoantes.

Uma outra novidade decorreu desse fato: as palavras da lista

passaram a ser os nomes das letras que representavam a

consoante inicial dessas palavras. Além disso, esse nome passou

Page 23: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

a ser a chave para se saber que som a letra representava: aief

representava a oclusiva glotal, por exemplo. A escolha de uma

lista de palavras como essa constitui o que se chama de princípio

acrofônico, ou seja, o som inicial do nome das letras é o som que

a letra representa: o desenho da cabeça de boi representa o som

da oclusiva glotal, porque o nome dessa letra é 'alef A segunda

letra era Beth, representada por um hieróglifo que retratava a

figura de uma casa; era usada para o som de B e significava

"casa". A terceira letra era o Daieth, que significava "porta" e

representava o som de D; tinha a forma gráfica da figura de uma

porta, tirada também de um hieróglifo egípcio, e assim por

diante.

O princípio acrofônico foi uma das melhores idéias que

apareceram nos sistemas de escrita: além de permitir uma

grande simplificação no número de letras, trazia de forma óbvia

como se devia proceder para ler e escrever. Uma vez identificada

a letra pelo nome, já se tinha um som para ela. Juntando os sons

das letras das palavras em seqüência, tinha-se a pronúncia de

uma dada palavra — o que, feitos os devidos ajustes, dava o

resultado final de sua pronúncia; e, pronunciando, o significado

vinha automaticamente.

Para se alfabetizar nesse sistema de escrita, bastava a pessoa

decorar a lista dos nomes das letras, observar a ocorrência de

consoantes nas palavras e transcrever esses sons consonantais,

Page 24: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

usando o princípio acrofônico. Para escrever David, por exemplo,

bastava identificar as consoantes DVD, procurar, na lista de

letras, aquelas que começam com sons de D e V e escrevê-las.

Já os gregos, como precisassem fazer alguns ajustes nas

próprias consoantes, uma vez que, em grego, o conjunto de

consoantes era diferente daquele das línguas semíticas,

resolveram escrever não apenas as consoantes, mas também as

vogais, mantendo o mesmo princípio acrofônico. Assim, por

exemplo, a letra egípcia que representava pictograficamente a

cabeça de um boi foi usada, como vimos, pelos semitas para

representar uma consoante oclusiva glotal, e a letra recebeu o

nome da palavra que significava boi, ou seja, 'alef. Como em

grego não houvesse consoante oclusiva glotal, a letra 'alef

passou a representar a vogal A, agora denominada alfa.

Apesar de manter o princípio acrofônico, os gregos adaptaram

os nomes das letras semíticas para a sua língua. Para eles, a

alfabetização acontecia de maneira semelhante à dos semitas,

com a única diferença de que os gregos tinham de detectar na

fala não apenas as consoantes, mas também as vogais, para

escreverem alfabeticamente. Como sempre, a ortografia fixou a

forma de escrita das palavras, para evitar que falantes de

dialetos diferentes escrevessem as mesmas palavras de

maneiras diferentes, seguindo apenas a observação da própria

fala e o valor fonético das letras.

Page 25: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Quando os gregos passaram a usar o alfabeto, aprender a ler e

a escrever tomou-se urna tarefa de grande alcance popular. De

fato, pode-se mesmo dizer que na Grécia antiga havia as escolas

do alfabeto.

Os romanos assimilaram tudo o que puderam da cultura

grega, inclusive o alfabeto. Práticos como sempre, acharam

interessante o princípio acrofônico do alfabeto grego, mas

perceberam que não precisavam ter nomes especiais para as

letras: era mais simples ter como nome da letra apenas o próprio

som dela. Dessa forma, mantinha-se o princípio acrofônico e

ficava ainda mais fácil usar o alfabeto e se alfabetizar. Foi assim

que alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc. transformaram-se em a,

bê, cê, dê, e, etc.

Os semitas, os gregos e os romanos nos deixaram alguns

"alfabetos": tabuinhas ou pequenas pedras ou chapas de metal

onde se encontravam todas as letras, na ordem tradicional dos

alfabetos. Na verdade, serviam ~,

<17>

de guia para as pessoas aprenderem a ler e a escrever, ou

mesmo quando fossem escrever. Tais documentos foram, por

assim dizer, as mais antigas "cartilhas" da humanidade: uma

cartilha que continha apenas o inventário das letras do alfabeto.

A alfabetização, na Idade Média, em geral ocorria menos nas

escolas do que na vida privada das pessoas: quem sabia ler

Page 26: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das

letras do alfabeto em determinada língua, a forma ortográfica

das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas

variações. Aprender a ler e a escrever não era uma atividade

escolar, como na Suméria ou mesmo na Grécia antiga. Nessa

época, como as crianças já não iam mais à escola, as que podiam

eram educadas em casa pelos pais, por alguém da família ou até

mesmo por um preceptor contratado para essa tarefa. Isso se

estende desde a época clássica latina até o século XVI d.c.

Como o alfabeto tinha no nome das letras o princípio

acrofônico, que é a chave de sua decifração, bastava o aprendiz

decorar o nome das letras para ter condições de iniciar a

decifração da escrita, a qual se completava quando, somando-se

os valores das letras, descobria-se que palavra estava escrita.

Isso era altamente facilitado pelo fato de os aprendizes serem

falantes da língua que estavam decifrando, o que ajuda em

muito as tentativas para descobrir, entre as várias

possibilidades, a leitura correta. O contexto lingüístico e as

ilustrações sempre ajudaram com informações complementares,

facilitadoras do processo de decifração. Vê-se, pois, que a

alfabetização pode perfeitamente acontecer fora da escola e do

processo escolar, podendo ser feita em casa se a isso as pessoas

se dedicarem. Ainda hoje, muitas pessoas aprendem a ler em

casa: algumas porque decidiram não esperar a escola chegar,

Page 27: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

outras porque foram expulsas da escola e resolveram aprender

fora da tradição escolar. Um exemplo famoso desse último caso

é Thomas Edison.

Com o uso cada vez maior da escrita na sociedade e com a

produção crescente de livros escritos à mão (e depois

impressos), o alfabeto passou a ter um problema a mais: foram

surgindo formas variantes de representação gráfica das letras

(sem modificar o inventário do alfabeto). Isso fez com que uma

letra passasse a ser apenas um valor abstrato do alfabeto, que

podia ser representado por muitas formas gráficas, as quais,

agora, o usuário do sistema de escrita tinha de conhecer.

<18>

A primeira manifestação desse fato aconteceu quando das

letras capitais (as maiúsculas — que eram as únicas do sistema

de escrita latina) surgiram as letras minúsculas com forma

gráfica diferente das antigas, que passaram a chamar-se

maiúsculas. Isso aconteceu sem que as letras perdessem seu

valor fonético e sem que a ortografia das palavras mudasse.

Agora, o usuário da escrita precisava saber que 'A" e "a" são a

mesma letra e, portanto, "CASA' equivale a "casa". Isso trouxe

um problema novo e complicado para a alfabetização e para os

leitores, em geral. Não bastava saber o alfabeto, seu princípio

acrofônico e a ortografia: era preciso, ainda, saber fazer a

categorização correta das formas gráficas, reconhecendo a que

Page 28: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

categoria pertence cada letra encontrada nas diferentes

manifestações gráficas da escrita. Nesse caso, a ortografia

mostrou uma vantagem a mais: além de servir para neutralizar a

variação lingüística na escrita, do ponto de vista fonético, passou

a ser o guia interpretativo do valor da variação gráfica das

próprias letras. Este último aspecto pode ser observado ainda

hoje, quando descobrimos (ou desconfiamos) que letra está

escrita, ao analisar o todo. Como sabemos, ainda através da

ortografia, quais letras devem compor aquela palavra, acabamos

nos convencendo de que determinada forma gráfica está

representando uma letra e não outra. Na escrita cursiva, esse

princípio é posto em prática a todo instante.

Notas

Thomas Alva Edison (1931), considerado um dos maiores

inventores do milênio, era americano de Milan Obio. Patenteou

1093 inventos, inclusive a lâmpada elétrica o gravador o

microfone e o projetor de cinema. Freqüentou a escola por

apenas três meses, sendo dispensado por ser "confuso de cabeça

e não conseguir aprender". Nunca mais voltou para a escola

tornando-se um autodidata com a ajuda da mãe, uma es-

professora.

Page 29: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O APARECIMENTO DAS CARTILHAS

Com o Renascimento (séculos XV e XVI) e, sobretudo, com o

uso da imprensa na Europa, a preocupação com os leitores

aumentou, uma vez que agora se faziam livros para um público

maior, e a leitura de obras famosas deixou de ser coletiva para

se tornar cada vez mais individual. Por isso, a preocupação com

a alfabetização passou a ter uma importância muito grande. A

primeira conseqüência disso foi o aparecimento das primeiras

"cartilhas". Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das

línguas neolatinas, e esse foi outro motivo que levou os

gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso

estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas

línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim.

<19>

A seguir apresentamos um breve apanhado das primeiras obras de alfabetização

que surgiram na Europa entre os séculos XV e XVIII.

Jan Hus (1374-14 15) propôs uma ortografia padrão para a língua tcheca e,

juntamente com este trabalho, apresentou o ABC de Hus: um conjunto de frases de

cunho religioso, cada qual iniciando com uma letra diferente, na ordem do alfabeto.

Essa obra era voltada para a alfabetização do povo.

Em 1525, foi publicada na cidade de Wittenberg uma cartilha do ABC intitulada

Page 30: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Bokeschen vor leven ond kind, que continha o alfabeto, os dez mandamentos, orações

e os algarismos. Em 1527, Valentim Ickelsamer incluiu, numa obra semelhante, listas

de sílabas simples. Esse tipo de obra permanece com esquema semelhante até o século

XVII. Somente no século XVIII, apareceram as primeiras gravuras das letras iniciais,

por exemplo, a letra S com o desenho de uma cobra, a letra A com a figura de uma

escada, etc.

O educador tcheco Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comênius (1592-

1670), fez de sua obra Orbis sensualispictus ("O mundo sensível em gravuras"),

publicada em 1658, um livro de alfabetização em que as lições vinham acompanhadas

de gravuras para ajudar e motivar as crianças para os estudos.

São João Batista de la Salle escreveu, em 1702, um regulamento para as escolas que

fundara, chamado "Conduite des é coles chrétiennes" ("Conduta das escolas cristãs"),

publicado em 1720. Com essa obra, pode-se ter uma idéia bem detalhada de como

eram as aulas naquela época, inclusive as de alfabetização. O ensino era dividido em

"lições", cada uma tendo três partes, uma destinada aos alunos principiantes, outra

aos médios e a terceira aos avançados. A primeira lição era a "tábua do alfabeto"; a

Page 31: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

segunda, a "tábua das sílabas"; a terceira, o silabário; a quarta, o segundo livro, para

aprender a soletrar e a silabar; a quinta (ainda no segundo livro) cuidava da leitura

para quem já sabia silabar perfeitamente, etc. No terceiro livro, os alunos aprendiam

a ler com pausas.

Para ensinar ortografia, o professor mandava os alunos copiarem cartas-modelo e

documentos comerciais para aprenderem, ao mesmo tempo, coisas úteis para a vida.

Nesse modelo de ensino, aparece uma distinção clara entre ler e escrever. A leitura era

dirigida para as coisas religiosas; a escrita, para o trabalho na

<20>

sociedade. Esse modelo de escola partiu da França e teve

grande repercussão nas escolas dirigidas por religiosos em

outros países.

Após a Revolução Francesa, surgiu o Ensino Mútuo, que se

espalhou sobretudo entre povos anglogermânicos. O pedagogo

alemão José Hamel, em sua obra Ensino Mútuo, descreve o

método de alfabetização em detalhes. Os alunos aprendem em

aulas de 15 minutos, estudando exercícios fáceis e em coro ao

redor de lousas colocadas nas paredes da sala. O ensino é

nitidamente coletivo, sendo dado para classes e não mais com

atenção individual.

O ensino com muitos alunos numa classe acabou criando um

Page 32: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tipo de escola para as crianças, as escolas infantis, jardins de

infância ou escola maternal, iniciadas por Robert Owen (1771-

1858) em 1816 para os filhos dos operários de sua fábrica têxtil

de New Lanark, na Escócia. Essas escolas logo se espalharam e

passaram a cuidar da alfabetização das crianças. O pedagogo

alemão Friedrich Froebel (1782- 185 2) fundou o primeiro jardim

de infância (Kindergarten) em 1837.

A Revolução Francesa trouxe grandes novidades para a escola:

uma delas foi a responsabilidade com a educação das crianças,

introduzindo a alfabetização como matéria escolar. Alfabetização

popular nessa época significava a educação dos ricos que não

tinham ligação com a nobreza, ou seja, membros da burguesia.

Diante dessa nova realidade, as antigas cartilhas sofreram

uma modificação notável. Com a escolarização, o processo

educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário

escolar. Como as antigas cartilhas fossem simples esquemas,

passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em

lições, cada uma enfatizando um fato. O ensino silábico passou a

dominar o alfabético. O método do bá-bé-bi-bó-bu começava a

aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de

cartilha iria ser o modelo dos livros de alfabetização.

A moda das escolas que ensinavam as crianças a ler e a

escrever espalhou-se pelo mundo. Apesar de a escola se

encarregar da alfabetização, os alunos que freqüentavam essas

Page 33: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escolas pertenciam a famílias com certo status na sociedade. O

povo simples e pobre continuava fora da escola. No Brasil, até as

primeiras décadas deste século, a escolarização da maioria das

<21>

pessoas que iam à escola pública não passava do segundo ou do

terceiro ano. Alguns documentos do final do Império mostram

que as Escolas Normais não

tinham alunos e o governo era obrigado a dar vantagens extras

àquelas pessoas que trabalhavam com alfabetização.

Naquela época, os professores das escolas

públicas eram em geral eleitos pela comunidade e tinham um

mandato determinado. Muitos professores

queixavam-se dos baixos salários, razão pela qual as poucas

escolas públicas lutavam para conseguir quem desse aulas.

CARTILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

João de Barros (1496-1571) escreveu a gramática portuguesa

mais antiga, publicada em 1540. junto com

a gramática, publicou a Cartinha, que é um outro diminutivo

de "carta", ao lado de "cartilha". O nome

"cartinha" ou "cartilha" tem a ver com "carta", no sentido

de esquema, mapa de orientação.

A Cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em

letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois,

Page 34: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

vinham as "taboas" ou "tabelas", com todas

as combinações de letras, que eram usadas para escrever todas

as sílabas das palavras da língua portuguesa. Em seguida, havia

uma lista de palavras, cada

uma começando com urna letra diferente do alfabeto e ilustrada

com desenhos (como: nau, tesoira, etc.). Por último, vinham os

mandamentos de Deus e da Igreja

e algumas orações. João de Barros incluiu também um gráfico

que permitia fazer todas as combinações de letras das "taboas".

A Cartinha de João de Barros não era um livro para ser usado

na escola, uma vez que a escola naquela época não alfabetizava.

O livro servia igualmente para adultos e crianças. Para se

alfabetizar, a pessoa decorava

o alfabeto, tendo o nome das letras como guia

para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em

prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto, e depois

punha-se a escrever e a ler, interpretando,

nas "taboas" (ou tabuadas), as sílabas da fala

com a correspondente forma de escrita. Notem que a ortografia

não tinha vez, O método estava mais voltado

para a decifração da escrita do que escrever corretamente.

<22>

A cartilha do ABC, que há poucos anos se podia comprar até

em alguns supermercados ou em certas lojas de estações de

Page 35: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

trem e rodoviárias, segue o mesmo esquema da cartinha de João

de Barros. Muitas pessoas que não podem ir à escola, ou que

saíram dela porque foram consideradas "burras" demais para

aprender, acabam aprendendo a ler através de livrinhos como

esse.

Uma cartilha famosa foi a de Antonio Feliciano de Castilho,

chamada Método portuguez para o ensino do ler e do escrever,

publicada em 1850. Essa obra merece um estudo detalhado. Uma

de suas características mais importantes é o emprego dos

chamados "alfabetos picturais ou icônicos", já usados na Grécia

antiga e muito em voga durante o Renascimento — na verdade,

até hoje aparecem nas cartilhas modernas.

Castilho apresentava também "textos narrativos" para ensinar

o uso das letras, fazendo urna lição para cada uma delas e para

os dígrafos. A segunda edição, de 1853, intitula-se Método

Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso,

manuscrito, e numeração e do escrever Obra tão própria para as

escolas como para uso das famílias.

<23>

Além do método de Castilho, outra cartilha portuguesa que

ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de João de Deus

(1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura.

Utilizava um modo de escrever letras com destaque dentro das

palavras, desenhando-as com hachuras; dessa forma, o aprendiz

Page 36: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

se concentrava no que de novo era apresentado.

A cartilha de João de Deus apresentava já uma forte tendência

para o privilégio da escrita sobre a leitura, embora, no título da

obra, haja um destaque à leitura. Essa cartilha foi, sem dúvida, o

modelo para muitas outras que vieram depois e que chegaram

até os nossos dias.

Entre os livros que pertenceram a D. Pedro II, encontra-se, na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, uma cartilha intitulada:

Manual explicativo do método de leitura denominado escola

brasileira, organizada por Francisco Alves da Silva Castilho (e

dedicada à classe dos professores de primeiras letras), publicada

no Rio de Janeiro em 1859. Já pelo título pode-se notar que essa

cartilha opõe o método do Castilho brasileiro ao do Castilho

português. O autor foi professor em Campo Grande e

alfabetizava as crianças pobres, passando depois a se dedicar à

alfabetização de adultos.

Ele chama a atenção para o fato de que se devem ler palavras

inteiras e não letras ou sílabas. Seu método começa sempre com

urna leitura coletiva, depois individual e, então, vêm os

exercícios de escrita, seguindo o método que ele denomina

"sintético/analítico".

<24>

No Brasil, depois da grande influência da Cartilha maternal

(1870), de João de Deus, apareceram inúmeras outras. Entre

Page 37: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

elas há quatro tipos bem marcantes, com métodos e estratégias

diferentes de conduzir o processo de alfabetização.

O mais antigo (até a Cartilha maternal) foi chamado de

método sintético. Partia-se do alfabeto para a soletração e

silabação, seguindo uma ordem hierárquica crescente de

dificuldades, desde a letra até o texto. Com a Cartilha maternal,

começa o método analitico, que vai assumir importância maior

na década de 30, quando a psicologia passa a fazer testes de

maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados

obtidos nesses estudos. Um exemplo típico desse caso é a

Cartilha do povo (1928), de Lourenço Filho, e o famoso Teste

ABC (1934), do mesmo autor.

Com o passar do tempo, apareceram mais obras que seguiam

o método misto, ou seja, cartilhas que misturavam estratégias

do método sintético e do analítico. A cartilha Caminho suave

(1948), de Branca Alves de Lima, com o período preparatório, é

um bom exemplo. No final dos anos 90, têm surgido obras que se

classificam como construtivistas e que se propõem a aplicar os

ensinamentos da psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro

e Ana Teberosky ao processo de alfabetização programada

através de livro didático.

Um livro como Primeira leitura para crianças, de A. Joviano, é

um tipo de cartilha. Na introdução, o autor traz muitas

considerações a respeito da forma de alfabetizar.

Page 38: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Nota

Primeira leitura para crianças, de A. Joviano

João de barro leva no bico uma bola de barro para fazer o ninho

João leva uma bola de barro leva uma bola para seu ninho uma

bola vai no seu bico fazer bola de barro com o bico vai uma bola

no bico de João de barro

Leva João, o barro para fazer bola!

<25>

AS CARTILHAS E A ALFABETIZAÇÃO

As primeiras cartilhas escolares até cerca de 1950 ainda davam

ênfase à leitura. Achavam importante ensinar o abecedário. A

leitura era feita através de exercícios de decifração e de

identificação de palavras, por meio dos quais os alunos

aprendiam as relações entre letras e sons, seguindo a ortografia

da época. Havia um cuidado com a fala (e sobretudo com a

pronúncia), voltado para o padrão social, trazido para a escola a

partir de textos de autores famosos. Copiava-se muito, e os

modelos eram sempre os bons autores, ou seja, autores famosos

da literatura. Como acontecia com as gramáticas, a norma de

bem escrever era a imitação dos bons escritores.

Page 39: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A cartilha dá ênfase à escrita

A cartilha baseada na leitura passou, em seguida, por uma

modificação radical, já na década de 50, quando a escola

começou a se dedicar à alfabetização dos alunos pobres,

carentes de recursos materiais e culturais na vida familiar, que

empregavam dialetos diferentes da fala culta. A ênfase passou a

ser dada à produção escrita pelo aluno e não mais à leitura. O

importante, agora, era aprender a escrever palavras. A atividade

escolar deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar

quase que exclusivamente do ensino — aquilo que o professor

deveria fazer em sala de aula. Em lugar do alfabeto, apareceram

as palavras-chave, as sílabas geradoras e os textos elaborados

apenas com as palavras já estudadas. As famílias de letras

passaram a ser estudadas numa ordem crescente de dificuldade.

Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de

leitura, agora também programado de maneira a ter dificuldades

crescentes, libertando aos poucos o aluno da cartilha e levando-

o a ler autores de textos infantis. Essa cartilha já trazia em si o

esquema de todas as outras cartilhas que apareceram depois,

até recentemente, caracterizando a alfabetização pelo estudo da

escrita e usando como técnica o monta-e-desmonta do método

do bá-bé-bi-bó-bu.

Parecia que ia dar certo, mas não foi bem assim. A cartilha

parecia um caminho suave, mas não era. E a escola percebeu

Page 40: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

logo de início que muitos alunos tinham dificuldade em seguir o

processo escolar de alfabetização. E as reprovações na primeira

série tornaram-se freqüentes.

<26>

Até o advento do ciclo básico na década de 80, a média de

reprovação na primeira série era de cerca de cinqüenta por

cento. Apesar de todos os esforços para superar essa situação, a

média de reprovação sempre se manteve por volta de cinqüenta

por cento. Diante dessa realidade, muitos alunos abandonavam a

escola, não conseguindo superar essa barreira inicial; outros

desistiam logo depois, e apenas uns poucos, cerca de dez por

cento, conseguiam concluir a última série do ginásio (na época, o

correspondente à oitava série do primeiro grau, ou seja, do ciclo

II do ensino fundamental).

O manual do professor

Pode-se dizer que a experiência escolar da alfabetização com

cartilhas foi desastrosa. Os dados estatísticos mostram que a

escola não consegue alfabetizar mais de cinqüenta por cento de

seus alunos. A repetência e a evasão escolar foram sempre um

monstruoso fantasma para as crianças, pais e professores.

Diante de um quadro desolador e perturbador, a escola

começou a investigar mais uma vez o que estava errado com a

alfabetização escolar. A primeira coisa que saltava aos olhos era

Page 41: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o fato de as cartilhas serem livros esquemáticos demais, o que

podia dificultar a sua aplicação. Alguns professores podiam não

saber exatamente como usar aquele tipo de livro,

comprometendo assim o processo educativo. Era necessário,

pois, dar uma ajuda especial aos professores, uma orientação

mais pormenorizada, subsídios mais práticos para uso em sala

de aula. Foi assim que a cartilha ganhou um companheiro: o

manual do professor. As cartilhas que sobreviveram passaram a

ter seu manual do professor, com raríssimas exceções, como a

Cartilha Sodré.

Mesmo assim, o índice de repetência continuou assustador. Onde

será que residia o segredo de tanta reprovação na primeira

série? A cartilha era "logicamente" perfeita, o professor tinha

todos os subsídios necessários e prontos para aplicar o método

das cartilhas; então, a dificuldade deveria residir nas crianças.

Devia haver "algo" em certos alunos que não permitia que

aprendessem adequadamente.

Os manuais do professor apostam na ignorância deste e por

isso não passam de verdadeiros scrzpts para serem

representados nas salas de aula. Em vez de ensinar os conteúdos

básicos do trabalho do professor, partem ~,

<27>

de considerações muito vagas a respeito do valor da educação, e

vão, em seguida, dizendo o que o professor e o aluno devem

Page 42: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fazer, passo a passo. Num certo manual encontra-se até um

diálogo que o professor deve promover com seus alunos, sendo

determinada a fala de cada um. Se o aluno responder diferente,

o professor precisa ensiná-lo a responder o que está no manual,

senão a lição não funciona. Nenhum diálogo. porém, ensina o

que o professor deve fazer se não der certo. A única saída que se

pode imaginar é repetir tudo de novo, para ver se o aluno

aprende, o que é, obviamente, uma estultícia. Como o manual do

professor não resolveu o problema da repetência e a evasão de

grande parte dos alunos, a escola foi buscar socorro nas

universidades.

O período preparatório

A partir dos anos 50, a psicologia começou a fazer um enorme

sucesso nas universidades do Brasil. Muitos alunos pesquisavam

para teses, aplicando teorias que, muitas vezes, nem eles

próprios tinham entendido muito bem. E a escola tornou-se um

bom laboratório para esses pesquisadores. Sem formação

pedagógica, sem formação lingüística, os psicólogos começaram

a aplicar uma variedade de testes e chegaram à conclusão de

que a grande dificuldade de aprendizagem das crianças na

alfabetização devia-se ao fato de essas crianças repetentes

serem pessoas carentes. Carentes de alimentação na infância,

carentes de estímulos ambientais, necessários para que

Page 43: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pudessem desenvolver o conhecimento, carentes de emoções

que as motivassem para aquisição de cultura, enfim, carentes de

praticamente tudo. Assim, não podiam aprender. Para resolver o

problema, já que não era conveniente deixar essas crianças fora

da escola, foi inventado um período que precedesse a

alfabetização, o chamado período preparatório, no qual as

crianças seriam treinadas nas habilidades básicas até ficarem

"prontas" para se alfabetizarem. Sem "prontidão" não se podia

realizar um processo de alfabetização eficiente.

Os psicólogos inventaram, então, uma série de coisas

estranhas para as crianças fazerem antes da alfabetização: fazer

curvinhas para cá e para lá, completar figuras, fazer bolinhas,

dizer se uma caixa de sapato é maior do que uma caixa de

fósforos ou não, localizar o gatinho à direita e à esquerda da

menina numa figura cm que ela aparece de frente e de costas,

fazer o ~,

<28>

coelhinho ir da esquerda para a direita numa linha curva até

chegar à toca, etc. Além da cartilha e do manual do professor,

surgiu agora o livro de "exercícios de prontidão".

CAGLIARI, 1997c, p. 193224. > Num artigo intitulado "O

príncipe que virou sapo", discuti alguns aspectos mais

importantes da teoria do "déficit" das crianças ou, como alguns

chamam, "a síndrome da dificuldade de aprendizagem". A

Page 44: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

discussão é longa, mas as conclusões são muito evidentes. A

universidade foi responsável pelo mal que causou à educação

com o período preparatório e os exercícios de prontidão,

convencendo os professores de algo que a academia achava

cientificamente correto, mas que era um grande equívoco. Os

testes aplicados às crianças foram mal elaborados, envolvendo

questões de linguagem, sem levar em conta o conhecimento dos

conceitos lingüísticos envolvidos, sobretudo da noção de

variação lingüística. O que aqueles psicólogos pensavam da

linguagem era algo muito diferente do que os lingüistas dizem a

respeito da linguagem.

Em meio a tantos equívocos, os resultados só podiam ser

igualmente equivocados. Por trás de tudo, o que se nota é um

grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos

favorecidas. Os assim chamados "pré-requisitos lógico-formais"

da teoria da prontidão são semelhantes aos argumentos de

preconceito racial, baseados na teoria da carência sociocultural e

na teoria da superioridade racial. Mais antigamente, as mulheres

tinham sido discriminadas de maneira semelhante, com mil

teorias acadêmicas, que pretendiam provar que a mulher era um

ser inferior porque tinha um volume de massa cerebral menor do

que o homem.

As crianças pobres têm mais coisas para aprender, ao entrar

na escola, do que as crianças ricas, por causa da história de vida

Page 45: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de cada uma e da natureza das nossas escolas. Isso, no entanto,

não deve ser confundido com falta de capacidade mental,

perceptiva, motora, psicológica, ou seja lá o que for. As crianças

pobres passaram a ser tachadas de deficientes, excepcionais e

carentes, simplesmente porque falavam ou escreviam errado,

segundo a opinião desses acadêmicos. A questão central desse

problema é essencialmente lingüística. Ao analisar com os

devidos cuidados lingüísticos os fatos de linguagem que a escola

diz que atrapalham o progresso dos alunos na alfabetização,

logo se verifica que esses alunos "incapazes" são, na verdade,

falantes de variedades lingüísticas estigmatizadas pela

sociedade.

<29>

Como a escola não aceita isso e não pode dizer que tem

preconceito contra a pobreza, começou a achar razões mais sutis

para disfarçar seus preconceitos.

Fazendo curvinhas, ninguém aprende a escrever nem a ler.

Para não escrever espelhado, de nada adianta ficar fazendo

exercício sobre coordenação motora direita e esquerda. Aliás,

algumas pessoas se confundiram com relação a isso, justamente

por causa dos exercícios de prontidão, uma vez que nunca

sabiam se direita e esquerda era para ser respondido em função

de quem vê ou do objeto visto: a direita de quem vê é a esquerda

do objeto visto, e vice-versa. Perguntar a uma criança se uma

Page 46: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

caixa de sapato é maior ou menor do que uma caixa de fósforos

é uma ofensa. As crianças respondem a perguntas dessa

natureza porque, apesar de acharem a brincadeira de mau gosto,

são sempre muito dóceis e condescendentes. Perguntar a uma

criança: "O que é dentro?" é uma maldade, porque o próprio

professor não sabe responder e, quando responde, simplesmente

exemplifica, o que, sem dúvida alguma, não é uma resposta à

pergunta que fez à criança. Se um professor disser a uma

criança: "Dentro da cozinha que fica dentro da escola tem uma

geladeira e dentro do congelador tem um sorvete dentro de uma

caixa amarela... você pode pegar que é todo seu" e deixar, de

fato, a criança fazer o que lhe foi dito, não há criança que não

saiba o que quer dizer "dentro de". Por coisas como essas (e

tantas outras...) é que o período preparatório não passa de um

grande equívoco pedagógico e psicológico. Está tudo tão errado,

que a melhor solução é abandona-lo por completo.

Apesar do enorme esforço em aperfeiçoar a "prontidão" nos

mínimos detalhes, o índice de cinqüenta por cento de reprovação

na primeira série manteve-se mais ou menos inalterado. Aquela

imensa parafernália não servia para resolver o mais importante,

que era a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças.

Em vez do período preparatório e dos tradicionais exercícios

de prontidão, o professor pode fazer inúmeras outras atividades

mais inteligentes, que contribuam de fato para o processo de

Page 47: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alfabetização. Uma delas, de valor inestimável, é propor aos

alunos que façam muitos desenhos livres. A sofisticação e a

riqueza dessa atividade são tantas que por si só valem tudo o

que se pensava alcançar com o tradicional período preparatório.

<30>

Nota

De acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da

Educação (1997), cabe aos estados decidir pela forma de

promoção dos alunos: com ou sem reprovação. Os estados de

Minas Gerais e São Paulo pretendem abolir a reprovação e

introduzir a promoção automática no ensino fundamental.

Algumas idéias, mesmo plenamente justificáveis, demoram a ser

absorvidas pelos órgãos oficiais, por causa muitas vezes de uma

discussão mal conduzida. No Brasil é evidente a confusão que se

costuma fazer entre avaliação (necessária sempre) e promoção

(que deveria ser automática). Veja a respeito as entrevistas A

escola não deve reprovar ninguém" (CAGLIARI, 1988b) e

Avaliação e promoção" (CAGLIARI, 1 996e).

ALFABETIZAÇÃO HOJE

Apesar de todas as interferências recentes no processo de

alfabetização, a prática escolar mais comum em nossas escolas

ainda se apóia na cartilha tradicional (a cada ano com nova

roupa e maquiagem). Quando o professor diz que não adota a

Page 48: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

cartilha, continua usando o método da cartilha, fazendo ele

próprio o que antes vinha nos livros didáticos. Contudo, há cada

vez mais um número crescente de professores que estão

conduzindo um processo de alfabetização diferente do método

das cartilhas, procurando equilibrar o processo de ensino com o

de aprendizagem, apostando na capacidade de todos os alunos

para aprender a ler e a escrever no primeiro ano escolar e

desejando que essa habilidade se desenvolva nas séries

seguintes, até chegar ao amadurecimento esperado pela escola.

Cada vez mais professores estão se dedicando seriamente ao

próprio objeto de estudo e ensino, que é a linguagem. Velhas

idéias, porém básicas, como ensinar o alfabeto, as relações entre

letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no

mundo em que vivemos, a ortografia, estão voltando a ter

importância na alfabetização.

Por outro lado, o "entulho" que se acumulou com o tempo,

enchendo a alfabetização de ridículos exercícios de prontidão e

coisas semelhantes, está sendo eliminado aos poucos da prática

escolar. Mesmo o "entulho gramatical" que se cristalizou na

primeira série, como o estudo de categorias gramaticais,

número, gênero, grau, etc, tem sido removido, trazendo para o

trabalho de alfabetização um esforço concentrado na

aprendizagem da escrita e da leitura como decifração da escrita

e do mundo através da linguagem.

Page 49: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Num esforço de muitas pessoas, a começar pelo estado de

São Paulo, conseguiu-se introduzir na escola o "ciclo básico",

juntando a primeira e a segunda série. A idéia inicial era ter mais

dois ciclos posteriores, um incorporando a terceira, a quarta e a

quinta série, e outro, a sexta, a sétima e a oitava série. Desse

modo, o aluno seria submetido a uma avaliação de promoção ao

final de cada ciclo. Infelizmente, só foi posto em prática o cicio

básico, o que deu a entender a muita gente que o objetivo era

apenas mudar as estatísticas de reprovação dos alunos da

primeira série, uma vez que agora a promoção era automática.

Muitos outros equívocos apareceram juntamente com o ciclo

básico, alguns ~,

<31 >

motivados pelos próprios órgãos oficiais da educação. Apesar

disso tudo, com ele foi possível realizar uma grande discussão

sobre a situação da alfabetização em nossas escolas e introduzir

novos estudos e novos modos de trabalho, com grandes

vantagens para a educação como um todo. Além disso, foi

possível tratar a alfabetização sem o medo da reprovação, levar

adiante um trabalho de ensino e de aprendizagem que não tinha

mais a nota como objetivo a ser alcançado, mas a formação, a

instrução, enfim, a educação.

ALFABETIZAÇÃO E ESCOLA

Page 50: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A história da alfabetização e das cartilhas fala por si. Aqui,

como em outros campos, vemos como a escola veio para

complicar tudo. A alfabetização que poderia (e deveria) ser um

processo de construção de conhecimentos que se faz com certa

facilidade, tornou-se um pesadelo na escola. A razão principal é

a atitude autoritária da instituição escolar. A autoridade escolar

funciona melhor depois que os alunos estão "domados". Porém,

nas primeiras séries, as crianças resistem mais porque ainda não

aprenderam a se submeter a tudo o que ouvem e vêem. A

individualidade ainda é uma marca forte da personalidade das

crianças, mas, infelizmente, já não se pode dizer o mesmo dos

alunos das últimas séries e sobretudo de níveis mais altos de

escolaridade.

Enquanto a alfabetização escolar ficou presa à autoridade de

mestres, métodos e livros, que tinham todo o processo

preparado de antemão, constatou-se que muitos alunos que não

trabalhavam segundo as expectativas dos mestres, métodos e

livros eram considerados incapazes e acabavam de fato não

conseguindo se alfabetizar.

Por outro lado, as propostas de alfabetização que começaram

a valorizar a criança e seu trabalho criaram um clima mais calmo

e tranqüilo em sala de aula, uma melhor interação entre

professor e aluno, proporcionando condições mais saudáveis

para que o processo de alfabetização se realizasse.

Page 51: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Os órgãos da administração pública encarregados da educação

interferiram muito no trabalho escolar, quer ditando as regras da

burocracia, quer, sobretudo, ditando ~,

<32>

as normas pedagógicas. Este é o país onde tudo é feito por meio

de leis e decretos e, desse modo, todo o mundo tem uma escusa

para o próprio fracasso, achando que tudo está bem e correto

quando a burocracia está em dia. Como as escolas de formação

de professores para o magistério, guiadas por estranhas idéias

oriundas das faculdades de educação, não conseguem dar a

formação necessária para os professores, os órgãos públicos

encarregados da educação passaram a dar periodicamente

"pacotes educacionais", de acordo com os modismos da época; é

o método sintético, analítico, fônico, global, lúdico,

psicopedagógico, freinet, semiótico, construtivista, lingüístico,

etc. Os professores, atormentados com tantas mudanças, vítimas

da própria incompetência, foram experimentando todos os

"pacotes". Essa loucura serviu mais para criar nos professores

uma aversão a tudo o que é novo, mesmo que traga

contribuições realmente importantes para seu trabalho. Houve

tantos "pacotes" e tantas decepções em tão curto prazo, que

hoje muitos professores já não sabem mais distinguir o que vale

e o que não vale, o que é certo e o que é duvidoso, o que é

verdade e o que é engodo. Se sua competência já era muito

Page 52: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

limitada, agora além de tudo ficou confusa, diante de tantas

"experiências educacionais". Alguns, novatos no trabalho ou

ingênuos por natureza, ainda acham que a última moda é a

panacéia para todos os males do passado e a esperança do

futuro.

CAGLIARI, 1992c, MAGNANI, 1993. e O que de fato está por

trás de toda essa história é a

presença de um grande número de professores alfabetizadores

que nem sequer são capazes de avaliar o que

vêem diante de seus olhos, quer se trate de um "pacote

educacional, quer se trate de um aluno que não aprende o que

eles ensinam. Um professor que não sabe avaliar com precisão

se um método é bom ou não,

dando as razões de sua conclusão, é um professor mal-

preparado, incompetente. A culpa em grande parte vem das

escolas de formação e dos "pacotes" educacionais mas em parte

vem também da atitude comodista do próprio professor, que não

se interessou pessoalmente em estudar o que não lhe foi

ensinado.

Essa competência está ligada ao conhecimento de muitos

aspectos da sua atuação como educador e como

professor alfabetizador. Estudar pedagogia, metodologia

psicologia é importante. Mas ninguém se forma um bom

alfabetizador só com essas disciplinas. O fundamental é saber

Page 53: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

como a linguagem oral e escrita são e

<33>

os usos que têm. Resumindo, a competência técnica do

professor alfabetizador se apóia em sólidos e profundos

conhecimentos de lingüística e dos sistemas de escrita (de

matemática e de ciências inclusive...). Esses conhecimentos,

aliados aos de pedagogia e psicologia, fazem dele um

profissional que sabe exatamente o que faz e por que faz de um

jeito e não de outro. Se formássemos de maneira correta nossos

professores alfabetizadores, teríamos, neste país, em pouco

tempo uma outra realidade em termos de analfabetismo. Hoje,

não só existem milhões de pessoas analfabetas, como também

pessoas que foram, de fato, mal alfabetizadas. Nenhum método

educacional garante bons resultados sempre e em qualquer

lugar; isso só se obtém com a competência do professor.

O Brasil precisa de uma modificação profunda na educação e,

em especial, na alfabetização. Para isso necessita de professores

com melhor formação técnica. As escolas de formação dedicam

muito tempo às matérias pedagógicas, metodológicas e

psicológicas e não ensinam o que devem a respeito da

linguagem; nem sequer têm cursos de lingüística (ou de

aritmética). Como um professor pode lidar corretamente com o

fenômeno lingüístico, se ele nunca estudou lingüística? Ninguém

alfabetiza só com metodologia e psicologia, como também não

Page 54: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alfabetiza somente com lingüística. A escola precisa saber dosar

todos esses conhecimentos para poder atuar de maneira correta.

Nada substitui a competência do professor e, enquanto nossas

escolas continuarem a formar mal nossos professores, a

alfabetização e o processo escolar como um todo continuarão

seriamente comprometidos.

Nota

Não se pode encerrar mesmo um sucinto relato da história da

alfabetização sem mencionar a importância da figura de Paulo

Freire. O chamado Método Paulo Freire dirigido sobretudo para a

alfabetização de adultos — foi aplicado em larga escala em

outros países, além do Brasil como outros grandes educadores

que se dedicaram à alfabetização. Paulo Freire trabalhou mais

com a intuição o bom senso e menos com rigor científico ao

tratar de fatos da linguagem. Sua obra mais importante está

voltada principalmente para questões ligadas à política

educacional e à pedagogia em geral.

<34>

2

O ensino e a aprendizagem: os dois métodos

A questão metodológica não é a essência da educação, apenas

Page 55: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

uma ferramenta. Por isso, é preciso ter idéias claras a respeito

do que significa assumir um ou outro comportamento

metodológico no processo escolar. É fundamental saber tirar

todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as

limitações de cada um.

Como o assunto é muito vasto e complexo, e sobre ele já

existe considerável literatura, apresentaremos apenas um

esboço geral dos pontos mais importantes para a discussão que

faremos em seguida. Existe, no mercado, uma quantidade

enorme de livros e publicações

a respeito de métodos de ensino (raramente

de métodos de aprendizagem) que, num esforço para defender

ou atacar certos procedimentos adotados pelas escolas, acaba

confundindo seus leitores, os quais, em meio a tantas posições

diferentes, ou mesmo contraditórias, já não sabem mais no que

acreditar. Daí o descrédito de alguns professores na educação,

fruto da indignação metodológica, oriunda dos pacotes

educacionais e das contradições metodológicas a que são

submetidos.

Às vezes, é preciso voltar às origens, aos princípios básicos, às

coisas mais simples e claras, rever a história,

retomando uma visão correta do fenômeno. Para isso, é preciso

rever alguns pontos gerais a respeito de ensino, aprendizagem e

métodos.

Page 56: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Por incrível que pareça, existe uma confusão muito grande

entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas

que lidam com educação. O mais comum é se levar em

consideração apenas o ensino, supondo que a aprendizagem

ocorre automaticamente, como fruto inevitável

do ensino, o que é um erro grosseiro. Muitos

aceitariam a diferença sem problemas, na teoria, mas a prática

mostra que a confusão é visível e está presente a cada passo.

CAGLIARI, 1990; PATTO, 1990; PATTO 1997

O QUE É ENSINAR, O QUE É APRENDER

Ensinar é um ato coletivo: pode-se ensinar a um grande

número de pessoas presentes numa aula ou numa conferência,

etc. Quem ensina procura transmitir informações

que julga relevantes, organizadas do modo

que lhe parece mais razoável, para que seus ouvintes aprendam

algo que deseja transmitir.

<36>

Aprender é um ato individual: cada um aprende segundo seu

próprio metabolismo intelectual. A aprendizagem não se

processa paralelamente ao ensino. O que é importante para

quem ensina, pode não parecer tão importante para quem

aprende. A ordem da aprendizagem é criada pelo indivíduo, de

acordo com sua história de vida e, raramente, acompanha passo

a passo a ordem do ensino.

Page 57: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

No ensino, é muito importante o que se diz; na aprendizagem,

o que se faz, mesmo quando o fazer significa dizer. Aprender não

é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante, a

partir da iniciativa individual de quem aprende. Quando

simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma

aprendizagem. Ela vai aparecer somente quando a pessoa, por

ação própria, conseguir realizar algo de acordo com as

expectativas alheias.

A aprendizagem é sempre um processo construtivo na mente e

nas ações do indivíduo. O ensino não constrói nada: nenhum

professor pode aprender por seus alunos, mas cada aluno deverá

aprender por si, seguindo seu próprio caminho e chegando onde

sua individualidade o levar. Por isso, a aprendizagem será

sempre um processo heterogêneo, ao contrário do ensino, que

costuma ser tipicamente muito homogêneo.

Escolas que se apegam demais ao processo de ensino, em

detrimento do processo de aprendizagem, gostam de manter

classes homogêneas, fazendo remanejamentos, sempre que

oportuno e possível, para facilitar o processo de ensino,

desconsiderando totalmente a natureza do processo de

aprendizagem, entre outros fatores pedagógicos.

Não é porque o professor ensina, que um aluno

automaticamente aprende. Aprender depende muito da história

de cada aprendiz, de seus interesses, de seu metabolismo

Page 58: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

intelectual. A maneira como aquilo que é ensinado passa a ser

algo aprendido é do foro íntimo de cada indivíduo. Obrigá-lo a

agir diferentemente é uma violência contra sua liberdade e

racionalidade. Obrigar alguém a aprender alguma coisa é

"lavagem cerebral". A aprendizagem precisa partir de uma

opção individual. O fato de se ter um professor, uma classe, uma

turma de alunos não significa que se tem uma escola. É essencial

saber o que faz o professor e o que fazem os alunos, o que

compete a cada um, o que cada um espera do outro. Sem uma

visão clara e correta da atividade escolar, corre-se o risco

<37>

de se colocar em prática um processo de educação totalmente

equivocado como, aliás, vem acontecendo muito freqüentemente

neste país.

Por outro lado, não é porque um professor não ensina algo,

que um aluno necessariamente não aprende tal ponto. Há muitas

maneiras de aprender: ir à escola é uma forma prática e

organizada (pelo menos deveria ser) de aprender "as coisas da

escola". Nada impede, todavia, que se aprenda com os pais, com

um colega, por iniciativa própria, olhando os livros ou mesmo

refletindo sobre o mundo. Afinal, antes da escola, as pessoas

aprendiam como? Nossa cultura ocidental atual criou urna

dependência exagerada das instituições escolares e seus

métodos. As atividades de sala de aula estão voltadas para o que

Page 59: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o professor faz ou deixa de fazer e deixam pouco espaço para

que os alunos aprendam de outra maneira que não por

intermédio do professor. Um aluno pode ensinar ao outro, os

alunos podem usar sua criatividade para procurar explicações e

soluções para os problemas escolares, refletir, pensar, tentar

fazer, refazer, etc. São coisas que os alunos são capazes de fazer

por iniciativa própria, se a escola criar condições de estudo que

facilitem esse tipo de atividade. Infelizmente, nossas escolas

reduziram-se cada vez mais à sala de aula e ao processo de

ensino dirigido pelo professor.

O PROFESSOR COMO EDUCADOR

Alguns professores têm muita dificuldade em olhar para seus

alunos e enxergar o que se passa com eles. Na maioria das

vezes, sabem apenas aplicar o que aprenderam nas escolas de

formação ou em livros, sem levar em conta se aquele é o

momento adequado para o que pretendem fazer e se aqueles

alunos se enquadram ou não no caso que querem aplicar. A

insensibilidade dos professores, da escola e dos órgãos públicos

com relação ao processo de aprendizagem é patente e

geralmente catastrófica para o ensino.

O que mais falta na educação deste país é a figura do

educador. Há muitos professores e profissionais da educação,

mas poucos educadores. Falta o professor educador que em

Page 60: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

primeiro lugar se preocupa em conhecer seus alunos e só depois

diz a eles, de maneira clara, honesta e adequada, aquilo que os

educa, de fato, para

<38>

a vida. A educação não se conhece a si mesma: quantas vezes

se vê um órgão público tomar decisões obrigando todos os

professores a agir de determinada maneira, sem respeitar a

individualidade de cada um, seu modo de ser e de trabalhar.

Exigir competência e honestidade profissional dos professores é

algo de que nunca se vai abrir mão, mas isso não significa que se

deva fazer com os professores o que alguns professores fazem

com seus alunos: dizem e nem querem saber o que o outro

pensa, como se toda ordem que vem de cima fosse sempre

perfeita e inquestionável.

Está na hora de devolver a educação aos educadores, está na

hora de exigir daquelas pessoas que lidam com educação uma

competência maior. A educação, no Brasil, é tão ineficaz que

nem consegue gerenciar adequadamente a si própria, O que falta

não é dinheiro: falta competência em todos os níveis para

melhorar a educação.

Infelizmente, não é raro encontrar nas nossas escolas

professores analfabetos por opção, ou seja, professores que,

depois de formados, pararam seus estudos. Não compram mais

nenhum livro e raramente escrevem algo que não seja sua

Page 61: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

obrigação diária de sala de aula. Há muitos professores que

passam anos e anos lendo e escrevendo as mesmas coisas,

porque acham que aprenderam assim e assim devem ensinar.

São professores que sabem ler e escrever, mas não usam esse

conhecimento. a não ser para repetir todos os anos as mesmas

práticas educativas.

A evidência maior da incompetência da educação neste país

encontra-se na falta de um projeto de educação. Muito se fala

sobre o assunto, mas, em vez de um projeto de educação

estruturado e de valor, tem-se um amontoado de leis e

regulamentos, juntamente com pacotes metodológicos que

alguém ou um grupo de pessoas decide impor a todos os demais.

O grande trabalho educativo deve voltar às mãos do

professor. Ele precisa ter liberdade de ação para que se possa

exigir dele competência e desempenho profissional à altura dos

ideais da verdadeira educação. Sem o professor, não há escola,

e, sem escola, não há educação de massa, de que o Brasil tanto

precisa. A educação vive mergulhada numa burocracia

sufocante. Ninguém parece confiar mais no professor. Todo

mundo quer dizer o que um professor deve ou não fazer. Em vez

disso, dever-se-ia dar mais liberdade e exigir mais

responsabilidade.

<39>

DOIS MÉTODOS

Page 62: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A educação não pode viver só do ensino, caso em que o

professor vem para a sala de aula e despeja em seus alunos um

longo discurso a respeito de um determinado ponto, como

também não pode viver só da aprendizagem, deixando os alunos

descobrirem tudo por si mesmos e livres para fazer o que bem

entenderem. Deve haver um equilíbrio entre os dois tipos de

atividade: o professor deve ensinar, caso contrário, as escolas

não precisariam existir, pois cada um aprenderia por iniciativa

própria. Por outro lado, o professor não pode ser o dono da

educação, aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que

haja também uma grande participação do aprendiz, porque afinal

de contas é ele quem precisa aprender e mostrar que aprendeu

e, sobretudo, saber que aprendeu. O aluno só pode ter certeza

de que de fato aprendeu algo, quando, por iniciativa própria,

conseguir utilizar adequadamente os conhecimentos que são

objeto do seu processo de aprendizagem.

Por essas razões, entre outras, pode-se dizer que a educação,

na sua essência, tem dois métodos apenas, com muitas

variantes: um baseado no ensino e outro na aprendizagem. A

verdadeira prática educativa serve-se de ambos, na medida

adequada. A exclusão pura e simples de um ou de outro torna o

processo falho, às vezes com conseqüências sérias.

Nos estudos pedagógicos, a metodologia do ensino ocupa um

lugar muito importante e em conseqüência disso tem-se

Page 63: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

produzido uma vasta literatura a respeito. Talvez por isso

mesmo, algumas pessoas tenham certa dificuldade de perceber o

essencial em meio à complexidade dos detalhes. Por essa razão,

apresenta-se, a seguir, um esboço geral e muito simplificado do

que vem a ser um método de ensino. O objetivo aqui vai além da

sala de aula e pretende mostrar que toda atividade de ensino e

de aprendizagem, no seu extremo, tem as características básicas

apresentadas abaixo.

Em primeiro lugar, podemos dizer que todos os métodos, no

fundo, baseiam-se em um dos dois métodos básicos, que vou

chamar de método de ensino (método 1) e método de

aprendizagem (método 2).

Há uma tipologia de métodos que, considerando os seus

processos de argumentação, costuma classifica-los de uma

maneira ou de outra, como, por exemplo, método dedutivo,

método indutivo, método mecanicista,

<40>

método construtivista, método global, método fônico, etc.

Toda essa discussão pode, de certo modo, ser derivada das

características daquilo que chamamos aqui de método 1 e

método 2. São as variantes das duas vertentes principais.

Como o enfoque neste livro é a alfabetização, o que se dirá a

respeito desses dois métodos estará voltado para o processo

escolar de alfabetização. No entanto, o método 1 e o 2 servem

Page 64: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

para qualquer atividade de ensino e de aprendizagem.

DUAS CONCEPÇÕES DE UNGUAGEM

É importante levar em conta ainda o fato de que, na prática,

esses métodos dependem muito da concepção de linguagem que

as pessoas têm: professor e aluno, quem ensina e quem

aprende. A linguagem exerce, na alfabetização, uma importância

fundamental. Na verdade, nesse momento, tudo gira em torno

dela. Por isso, dependendo da maneira como uma pessoa

interpreta o que a linguagem é, como funciona, que usos tem,

pode-se ter um determinado comportamento pedagógico e

métodos diferentes na prática escolar. Inversamente, pode-se

ver com clareza na prática em sala de aula, nos métodos que a

escola usa, qual é a concepção de linguagem subjacente.

Por exemplo, toda cartilha (independentemente do método

que lhe seja atribuído pelo autor ou pelos entendidos) baseia-se

exclusivamente no método do ensino. Mesmo atividades que

devem ser feitas pelos alunos, devem seguir um modelo prévio,

transmitido como ensino. Não conheço, em nenhuma cartilha,

um espaço real dedicado ao processo de aprendizagem. O aluno

procura sempre responder, com o que faz, de acordo com as

expectativas do autor da cartilha ou do professor "que passa a

lição". Essa atitude revela uma concepção de linguagem na qual

o falante se vê diante de um impasse, tendo de decidir entre o

Page 65: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

certo e o errado. A linguagem apresenta-se como algo "que

precisa ser corrigido". Ora, na vida real, quando as pessoas

usam a linguagem, não têm esse tipo de preocupação: elas,

simplesmente, pensam e falam o que quiserem, do jeito que

acharem mais conveniente. Nenhum falante acha que fala

errado, a não ser na escola, ou por influência da educação

escolar.

<41>

Outro exemplo: o método fônico considera que uma criança,

aprendendo a reconhecer e a analisar os sons da fala, passa a

usar o sistema alfabético de escrita de maneira melhor. Essa

idéia revela uma concepção de linguagem segundo a qual uma

pessoa "fala melhor" quando monitoriza os sons que pronuncia,

o que é falso. Quem fala "tchia" em vez de "tia" e aprende a

escrever "tia", continua falando "tchia" e nem se dá conta da

diferença, porque, quando falamos, nos preocupamos mais com

as idéias que queremos transmitir do que com os sons das

palavras que irão revelar nossos pensamentos. Há, ainda, o

problema da ortografia, que não atrapalha quem fala "tchia" e

tem de escrever "tia", mas que irá atrapalhar, e muito, quem fala

"drento" e tem de escrever "dentro"; trata-se de regras

lingüísticas diferentes.

Outra concepção de linguagem muito facilmente detectada

através da prática escolar é aquela que considera que a função

Page 66: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

mais importante da linguagem, senão a única, é a comunicação.

A linguagem também serve para comunicar, mas os lingüistas

estão cada vez mais convencidos de que a comunicação não é a

função mais importante da linguagem, nem talvez a mais usada.

Atrás de notícias encontram-se censuras, ocorrem tomadas de

posição, transmite-se uma cosmovisão, além de outros

pressupostos e de conotações que tornam o literal da

comunicação algo secundário, quando não um pretexto para a

manipulação das idéias do ouvinte. Quanto de enganação, de

mentira e de outras coisas pouco louváveis existe numa simples

enunciação ou numas poucas palavras escritas que encontramos

pelo mundo e pela vida... Basta refletir um pouco, que essas

verdades logo se revelam. Ora, a escola não pode ser ingênua e

pensar que a linguagem é essencialmente comunicação. Juntar

idéias e sons — formando a linguagem — não é a mesma coisa

que "comunicar". A comunicação é uma função importante da

linguagem, porém, esta não se reduz apenas a comunicar.

O MÉTODO 1- VOLTADO PARA O ENSINO

A situação inicial

O método 1 volta-se exclusivamente para o processo de

ensino. Nesse caso, a situação inicial do aprendiz

é interpretada como um começo absoluto de tudo,

Page 67: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<42>

o marco zero de uma caminhada, uma página em branco onde

se vai começar a escrever sua vida escolar. No começo do ano, o

professor programa o que vai ensinar, sem sequer conhecer seus

alunos, porque o que vai ensinar é um começo absoluto que não

precisa de pré-requisito, é um ponto de partida considerado ideal

para todos os alunos, independentemente da maneira de ser e de

saber de cada um.

Essa atitude é até mais comum nas outras séries do que na

alfabetização, porque os alfabetizadores já aprenderam, na

prática, que não podem ser tão cegos assim. Nas séries mais

adiantadas da escola, essa é a regra geral. Alguns professores

acham mesmo que a atitude mais adequada é "nem querer

saber" o que os espera, que alunos vão ter. Os alunos que se

virem, dizem.

Nesse quadro, os envolvidos acham que ninguém pode

reclamar do professor, porque ele começou do começo e de

maneira igual para todos, dando chances iguais para todos.

Obviamente, isso é muito conveniente para quem ensina, mas é

má pedagogia.

A técnica

A técnica do método 1, na alfabetização, consiste na atividade

do desmonta-e-monta da linguagem, em todos os seus níveis, de

todas as formas possíveis. O método 1 considera que a melhor

Page 68: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

maneira de ensinar alguém é desmontando e remontando, ou

montando coisas novas a partir de pedaços. Nesse caso, parte-se

sempre de um modelo exemplar, por exemplo, uma palavra-

chave. Depois, desmonta-se a palavra em "pedaços" (ou

sílabas). Em seguida, desmontam-se as sílabas em letras (ou

sons). Feito isso, a palavra é remontada. Assim, o professor

espera que o aluno aprenda como funciona a escrita e que

relações tem com a linguagem oral. Com alguns pedaços de

palavras, pode-se descobrir que é possível formar palavras

novas, diferentes das palavras-chave. Por exemplo,

desmontando BATATA, tem-se BA, TA, TA. Com esses pedaços,

pode-se formar as palavras "Tatá", "bata" e "taba". As sílabas

geradoras (o bá-bé-bi-bó-bu) nada mais são do que a

organização dos pedaços das palavras, extraídos das palavras-

chave, para os alunos construírem palavras conhecidas e

palavras novas.

Alguns alunos vão seguindo as pegadas do professor e acabam

fazendo tudo direitinho. Outros pensam que pegaram o "espírito

da coisa" e passam a inventar formas

<43>

estranhas de escrever, segundo o professor. Por exemplo,

escrevem "cavalolalelilolu" ou "tapabapa", mostrando que

aprenderam as sílabas geradoras, no primeiro exemplo, e que

sabem juntar os pedaços de palavras, formando "palavras

Page 69: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

novas", no segundo caso. Aprendem o jogo da escola, mas não

sabem de seus limites e usos reais, porque o método não ensina

isso. Alguns alunos unem palavras aparentemente sem sentido,

porque seguem apenas as regras do jogo, que diz que, juntando

dois pedaços de palavras, forma-se uma palavra nova. Como não

conhecem todas as palavras da língua (todos nós aprendemos

palavras novas todos os dias...), as crianças ligam os

pedacinhos, achando que o professor, que sabe tudo, saberá

qual o significado de uma palavra como "tapabapa", como sabia

antes o que significava "taba", que a criança nunca tinha ouvido.

Por mais estranho que pareça, alguns professores, diante de

fatos como esse, vão direto ao aluno e perguntam "O que

significa tapabapa?" O aluno fica assustado com a pergunta:

afinal de contas, quem deve saber essas coisas é o professor,

não ele. Ele apenas faz a lição, isto é, liga os pedacinhos de

letras para formar palavras. A pergunta do professor faz com

que o aluno sinta-se mais perplexo ainda, porque além de tudo

aquilo que não entendeu, o professor ainda quer que ele se sinta

culpado por um erro que ele não sabe onde está nem por que

aconteceu. E, se aconteceu, foi mais por culpa do professor do

que dele.

Desmontar e montar as palavras da língua não é um uso

natural nem da linguagem oral nem da linguagem escrita,

apenas uma estratégia de ensino escolar. Na linguagem oral,

Page 70: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

falamos tudo junto, fazendo pausas apenas em alguns lugares.

Não falamos fazendo pausa após cada palavra. Na escrita,

separamos as palavras com um espaço em branco por razões

ortográficas, não porque falamos desse modo.

Na verdade o método pretende associar os pedacinhos das

palavras aos sons, para que os alunos aprendam a ler. Ora, como

a ortografia esconde todas as variações dialetais, logo se

percebe que essa técnica causará confusão na cabeça das

crianças. Ninguém pode esperar das crianças (na verdade de

nenhum falante) que saibam se o que estão remontando com o

bá-bé-bi-bó-bu forma uma palavra aceitável ou não na língua.

Por outro lado, muito raramente um professor abre o jogo com

os alunos e diz que não basta ligar os pedacinhos, mas que é

preciso ir além e checar se a palavra que foi

<44>

formada existe, de fato, na língua e se sua forma de escrita

está de acordo com as normas ortográficas.

A base: o já dominado

Com o método 1, parte-se do zero e vão-se acrescentando

informações, uma após a outra, as quais o aprendiz precisa

dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao conteúdo

seguinte, que deve ser aprendido. Aprender é dominar, ou seja,

devolver a quem ensinou o conteúdo ensinado. A base desse

Page 71: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

método é, pois, o conhecimento já dominado. Para isso, decorar

é fundamental, sobretudo decorar de modo a repetir um modelo

dado e que será cobrado como expectativa de resposta. A

repetição é a prática mais comum para se dominar qualquer

conhecimento. Portanto, o aprendiz é levado a repetir a lição até

dominá-la, e, enquanto não provar que já o faz, repetindo-a

corretamente, irá fazer tantas tentativas quantas forem

necessárias.

Não é raro encontrar professor que vive se queixando dos

alunos, dizendo que sempre ensina as mesmas coisas e os

alunos não aprendem. Esses professores mostram que usam o

método 1. Nesses casos, nunca se questiona o ensino, mas tão-

somente o comportamento do aprendiz. O método 1 não é capaz

de aceitar que o mais importante não é dominar, mas saber

aplicar um conhecimento para realizar uma tarefa. Nem sempre

reproduzir um modelo garante a aprendizagem, embora garanta,

sim, uma réplica de algo que o aprendiz pode fazer sem saber

exatamente o que está acontecendo.

Na alfabetização, alguns alunos são exímios repetidores de

lições que dominam sem saber o que significam.

Conseqüentemente, quando precisam aplicar o conhecimento de

maneira criativa e individual, acabam revelando sua ignorância,

produzindo escritas absurdas. Por exemplo, alguns alunos

copiam corretamente o que lhes é solicitado, fazem sem erros os

Page 72: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ditados das palavras já dominadas, escrevem pequenas frases

em que só aparecem palavras "já dominadas", mas, quando se

vêem diante de palavras cuja escrita lhes é desconhecida, ou não

fazem nada, ou escrevem simplesmente amontoados de letras ou

de sílabas geradoras. Esses alunos foram ensinados pelo método

1.

Alunos que fazem isso raramente chegam a descobrir como o

sistema de escrita funciona, como se decifra algo escrito para ler

e, conseqüentemente, não chegam

<45>

a se alfabetizar. Como a escola não pode viver só do que é

considerado dominado, logo chega o dia em que o professor se

esquece disso e leva os alunos a aplicarem o que ele achava que

tinha ensinado e que o aluno tinha aprendido (fazia tudo tão

direitinho), e o resultado é uma enorme decepção para ele e,

principalmente, para o aluno.

O uso da memória

O uso da memória, nas atividades escolares, é muito

importante e não deve ser confundido com a prática de promover

o ensino baseando-se no já dominado. A memorização é

fundamental no processo de aprendizagem, mas não pode ser

um truque, como acontece no método 1. Neste, o já dominado

apenas revela um modelo repetido. No processo de

Page 73: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprendizagem, a memorização faz parte do processo de reflexão,

trazendo para a prática do aprendiz todos aqueles

conhecimentos necessários para que ele tome as decisões

corretas.

Às vezes, alguns professores, querendo fugir desse esquema,

acabam desterrando a memorização do processo pedagógico

escolar. Outras vezes, convencem-se, graças a argumentos

falaciosos que ouvem em congressos, palestras ou lêem em

livros, de que a memória não tem vez na aprendizagem, e de que

aprender é entender e não decorar. São frases feitas de grande

efeito e de pouco sentido. É preciso não confundir o memorizar

que vem da reflexão de um simples repetir que vem de um

exercício vazio de repetição controlada, como acontece com a

prática pedagógica do método 1. São duas realidades muito

diferentes. Memorizar é fundamental; repetir padrões do já

dominado não é uma prática escolar saudável.

A hierarquia: do fácil ao difícil

O método 1 tem uma concepção de ensino/aprendizagem

segundo a qual tudo deve ser hierarquizado, isto é, disposto

numa ordem necessária, para que o ensino e a aprendizagem

caminhem suavemente. Obviamente, essa hierarquia precisa ir

dos elementos mais fáceis para os mais difíceis, como se

esperaria de alguém que tem bom senso. Por essa razão, o

Page 74: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

método 1 gosta de atribuir valores às diferentes tarefas que a

escola realiza: o professor precisa saber o que deve ensinar

<46>

primeiro, caso contrário poderá pôr a carroça na frente dos

burros.

Será que as coisas são mesmo assim, quando se trata do

processo de ensino e de aprendizagem? Na verdade, para o

processo de ensino, até certo ponto, a organização hierarquizada

é uma atitude esperada, e caberá ao professor seguir uma certa

ordem quando for ensinar. No entanto, essa ordem depende

muito mais do jeito de cada professor trabalhar do que da

verdade das coisas que ensina. E difícil, e talvez seja mesmo

impossível, estabelecer uma hierarquia dos elementos que

constituem um saber, mesmo em sua forma sistematizada,

utilizada pela educação nos currículos escolares. É claro que

alguém precisa aprender a ler, para poder ler um livro ou

escrever uma carta sem a ajuda de outra pessoa; é claro que

alguém precisa aprender aritmética para poder fazer cálculos

corretamente. No entanto, tais afirmações são tão gerais, que

não se aplicam ao que se quis dizer acima.

A questão verdadeira reside no fato de a maioria dos

professores e a totalidade das cartilhas considerarem, por

exemplo, que a letra X é intrinsecamente mais difícil do que a

letra A. Isso acontece porque partem do pressuposto que

Page 75: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escrever palavras em que ocorre a letra X é mais difícil do que

escrever palavras em que ocorre a letra A. Ledo engano. Na

verdade, esses professores estão levando para a prática

pedagógica algo que é muito peculiar a eles, e não ao processo

de alfabetização.

Para uma criança que não sabe ler nem escrever, qualquer

palavra é igualmente difícil, não há nenhuma palavra fácil. Para

quem duvidar disso, aconselho estudar árabe, por exemplo.

Como a escrita dessa língua é muito diferente da nossa, achamos

difícil escrever, no começo, qualquer palavra. Somente depois

que aprendemos algumas tantas coisas é que vamos descobrir

que certas palavras (por serem mais familiares a nós) são mais

fáceis de escrever do que outras. Do mesmo modo vamos achar

mais fácil escrever certas letras do que outras, porque erramos

menos a ortografia com elas. A letra X só é difícil para quem já

sabe escrever e tem uma certa prática, mas ainda se confunde

com a grafia de certas palavras.

A dificuldade do alfabetizando é de outra natureza. Para ele,

tudo é difícil. Escrever "casa" é tão difícil quanto para o adulto

alfabetizado escrever "ojeriza", "estender" ou "extensão".

<47>

As dificuldades dos alunos vão mais longe do que em geral

imaginam os professores. O aluno que fala "drentu", "bardi",

"andano" ("dentro", "balde", "andando") tem uma dificuldade

Page 76: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

muito séria para acertar a forma ortográfica dessas palavras, e

essa dificuldade jamais é suspeitada pelos autores de cartilhas e

pelos professores.

Alguns professores acham que a letra X é mais difícil porque

pode referir-se a vários sons, como o som de S ("externo") e o

de SS ("próximo"), o que é um absurdo, uma vez que há o

mesmo som S em palavras como "externo" e "próximo". O que

há de diferente é o uso das letras na escrita. De acordo com as

regras de nossa ortografia, poderíamos escrever "esterno", mas,

se escrevêssemos "prósimo", o som da letra S, nesse caso, seria

o de Z, por estar entre duas vogais. É preciso, pois, separar fatos

da fala dos da escrita ortográfica. Além do som de S, a letra X

pode ter ainda os sons de KS ("táxi"), de CH ("lixo") e de Z

("exame").

Essas mesmas pessoas que reclamam das dificuldades do X

esquecem-se de que uma letra como A pode apresentar muito

mais casos de sons diferentes do que a letra X, dependendo do

dialeto e de outros fatores lingüísticos. Por exemplo, um aluno

fala "fizeru", "acharu", e esse som de U precisará ser escrito

com as letras A e M: "fizeram", "acharam". Falamos "todamiga"

e temos de saber que há um A que não foi pronunciado, mas que

deve ser escrito: "toda amiga". Dizemos "rapais" ou "rapaich",

mas, na hora de escrever, suprimimos o I: "rapaz". Por outro

lado, em palavras como "caixa", é comum não se pronunciar o I

Page 77: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que vem junto com o A, mas não se pode deixar de escrevê-lo. E

a lista é longa. Esses casos, que realmente são armadilhas para

os alunos, jamais entram nas considerações daqueles que acham

que precisam ensinar primeiro A e bem depois X, porque A é

mais fácil do que X, tanto para quem ensina, quanto para quem

aprende.

Na verdade, em todos os ramos do saber, é praticamente

impossível dizer o que é mais fácil ou mais difícil: é fácil aquilo

que se sabe e é difícil o que não se sabe; o resto não faz sentido.

Muitas pessoas contam que descobriram como realmente

funcionavam noções básicas de geometria e de álgebra somente

quando aprenderam a fazer cálculos avançados. Isso não quer

dizer que fossem maus alunos antes, mas precisaram ir além,

estudar coisas que aparentemente são consideradas complexas

para aprenderem coisas aparentemente

<48>

mais simples e mais fáceis. Fáceis e difíceis "aparentemente",

mas não de fato.

Controle rígido e avaliação

O método 1 necessita de um controle rígido e absoluto sobre

tudo o que é feito, cobrando a mais rigorosa e constante

avaliação. Como o ensino é completamente hierarquizado,

desenvolvendo-se passo a passo, do mais fácil para o mais difícil,

Page 78: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

e exigindo que o aprendiz progrida dominando o que foi

ensinado, é preciso verificar a todo instante se realmente o

aprendiz dominou o que deveria dominar, para que o ensino

possa dar um passo adiante. A avaliação, aqui, contempla

apenas o que foi ensinado e constitui-se do que o aluno precisa

dominar e repetir. Se não houver uma avaliação rigorosa e

constante, o aluno pode revelar dificuldade mais adiante,

atrapalhando a programação do professor e a ordem natural das

coisas, prevista pelo método 1.

Se o aluno revelar que não dominou algum ponto, o método 1

manda que se volte atrás e obrigue o aluno a repetir tudo de

novo, até demonstrar que já dominou, mesmo que tenha, no

final do ano, de repetir o ano todo, voltando àquele zero inicial,

àquele ponto de partida em que o aluno é encarado como uma

folha de papel em branco.

Na avaliação, o que conta são os erros e não os acertos. Como

o acerto é considerado previsível dentro da perspectiva do já

dominado, são os erros que irão mostrar que o aluno precisa

parar e recuperar o que ainda não dominou. O problema desse

método de ensino é o erro do aluno, não o que ele aprende. Isso

é tão ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização, que

elas não conseguem entender como a escola pode ser tão

injusta. O aluno escreve urna história de dez linhas e, só porque

cometeu dez errinhos, ganha nota cinco. E as outras coisas que

Page 79: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escreveu certo, as outras trezentas e oitenta letras que foram

escritas corretamente, e o resto que fez e fez bem, não conta? Já

que errou uma palavra com J ou G, precisa fazer cópias para

dominar a lição estudada, desconsiderando-se todas as demais

ocorrências de J e de G que o aluno escreveu corretamente?

O método 1 é implacável com a avaliação: errou, tem de voltar

atrás e repetir a lição. É pela importância exagerada e

equivocada dada a esse tipo de avaliação, que os ditados, na

alfabetização, passaram a ser uma das

<49>

atividades mais importantes e freqüentes. Ditado só serve

mesmo para avaliar o processo de ensino, fazendo aparecerem

erros, e em nada contribui para a aprendizagem. O aluno não

aprende fazendo ditados. Não é pensando que ele vai descobrir,

naquele momento, como se escreve uma palavra. O ditado, na

verdade, visa a detectar apenas se o aluno já dominou ou não o

que se pede nas lições.

A fixação da aprendizagem

Uma vez constatado que o aluno sabe algo, que já dominou

um certo conteúdo programático, o método 1 manda que se faça

imediatamente a fixação da aprendizagem. A fixação da

aprendizagem é um reforço na atividade de ensino, cujo objetivo

é fazer com que o já dominado fique sempre consciente na

Page 80: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

mente do aprendiz, como naquele momento da avaliação.

Nesse caso, em geral, a cópia é a maneira mais comum com

que o método 1 trabalha a fixação da aprendizagem, dando-se

preferência àquele tipo de cópia repetitiva e longa. Mais

raramente, acontece uma revisão geral para que o conteúdo

novo seja avaliado e fixado dentro do conjunto geral de

conhecimentos a que pertence. Repetir e repetir é o que manda o

método 1.

O que fazer com o erro

No método 1, o erro serve para indicar que o aluno não

dominou algum conhecimento nas avaliações. Fora isso, o erro é

um problema que o método não sabe resolver. Por isso, a

solução que adota é ignorá-lo. Não se discute e muito menos se

analisa o que está errado na tarefa do aluno. Simplesmente

ensina-se o certo. Há, na tradição pedagógica de nossas escolas,

sobretudo nas classes de alfabetização, a estranhíssima idéia de

que não se pode mostrar o erro ao aluno, discutir o erro, porque

isso levaria o aluno a aprender o errado, tendo maiores

dificuldades futuras para fixar o certo.

Não deixa de ser curioso ouvir uma afirmação muitíssimo

comum segundo a qual a professora não pode deixar o aluno

diante de uma escrita errada, porque assim ele fixa o erro e

depois não consegue mais corrigir. Por que as crianças fixariam

Page 81: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

apenas o que está errado, não fazendo o mesmo com o que está

certo? Não há aí uma certa discriminação? Alguns professores

apagam o que os alunos escrevem errado e colocam o certo,

<50>

na santa e ingênua crença de que escondendo o erro e

mostrando apenas o certo, seus alunos aprenderão melhor.

Aprender pelos efeitos

O método 1 faz com que o aluno aprenda pelos efeitos, não

pelas causas. Se o aprendiz precisa reproduzir o modelo e

corresponder às expectativas do professor que ensina, não

precisa saber por que acertou ou errou: basta acertar e está tudo

em ordem. O método garante a certeza ao aluno de que seguindo

as instruções, passo a passo, irá chegar ao resultado esperado.

Se acontecer qualquer imprevisto, o aluno não contará com

nenhuma ajuda específica que o faça sair do impasse, porque o

método não prevê nada fora daquilo que foi efetivamente

ensinado e copiado pelo aprendiz. O aluno não pensa no que faz,

simplesmente se deixa guiar por um processo de tentativa-e-

erro. Obviamente, a escola não tem sido tão rígida assim, na

prática, mas infelizmente também não tem estado muito longe

dessa realidade.

Um bom método de adestramento

Page 82: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Como se pôde observar no quadro descrito anteriormente com

tintas um pouco carregadas, o método 1 é fortemente

mecanicista, dando tudo pronto para o aluno, esperando que ele

siga sempre o modelo proposto. Se tentar inovar, corre o risco

de errar e não saber mais retomar o caminho suave e tranqüilo

das coisas já dominadas. O método 1 é, na verdade, um

excelente meio de adestramento e em geral funciona bem com

animais que precisam dominar certas habilidades para

desempenhar certas tarefas, agindo sempre de um único e

mesmo modo. Porém, as crianças são racionais, e pensam o

tempo todo, mesmo quando a escola se esquece de que são

seres humanos e, portanto, escravos da própria racionalidade.

Tudo o que o ser humano faz precisa de um comando de seu

pensamento: isso é sublime e, ao mesmo tempo, terrível. O

método 1 não é bom para os seres humanos porque somos

dotados da racionalidade e refletimos a todo instante. Quando

fazemos isso, temos toda a liberdade do mundo de acharmos o

que quisermos, seja lá a respeito do que for, com que idade for,

na rua, na sala de aula, na igreja ou em qualquer lugar.

<51>

Refletir pode desviar o esperado pelo método 1, conduzindo

os alunos por outros caminhos não previstos e atrapalhando a

vida do professor e da escola. Os alunos que usam mais de sua

própria reflexão se dão pior quando são submetidos a um

Page 83: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

processo de ensino baseado no método 1. Eles se dão melhor

com o método 2, que será comentado logo a seguir.

O MÉTODO 2— VOLTADO PARA A

APRENDIZAGEM

A base: a reflexão na aprendizagem

O método 2 é o oposto do método 1 em tudo e caracteriza-se

por estar voltado para o processo de aprendizagem. Leva em

conta o fato essencial de que o aprendiz como um ser racional,

vai juntando conhecimentos adquiridos pela vida toda, a partir

do momento em que nasce. Para isso, usa sua capacidade de

refletir sobre todas as coisas. O método 2 é, portanto, centrado

na reflexão, oposto ao método de condicionamento.

O método 2 concebe a linguagem como expressão do

pensamento; o falante a usa de maneira intencional para

interagir com os outros. Assim a comunicação é apenas um

aspecto desse processo.

A situação inicial

Num método baseado na aprendizagem e na reflexão, a

situação inicial de cada aprendiz é diferente, porque cada um

tem a sua própria história de vida e de conhecimentos. Como diz

uma velha recomendação da metodologia, deve-se partir sempre

da realidade da criança. Mas o que significa, na prática, partir da

Page 84: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

realidade da criança? A escola, nesse aspecto, tem trilhado

caminhos muito estranhos, não raramente achando que a

realidade dos alunos é a "tábula rasa". Conhecer a realidade e a

história do aluno é fundamental para uma prática educativa que

respeite o aprendiz como um ser humano em sua plenitude.

As classes de alfabetização formam-se necessariamente com

um conjunto de alunos com histórias de vida diferentes, sendo,

pelas contingências práticas, classes heterogêneas. Uns sabem

algumas coisas, outros sabem outras; alguns já aprenderam

algumas coisas

<52>

próprias da escola, outros não. Algumas crianças tiveram pré-

escola e aprenderam os rudimentos da leitura e da escrita,

outras nunca estudaram nada. Algumas crianças aprendem

coisas em casa, têm lápis, papel, livros, outros nunca tiveram

nada disso. Cada aluno tem urna história, e o método 2 vai levar

isso em consideração.

Como ficar sabendo qual é a realidade de cada um? Em vez de

fazer avaliações coletivas — ditado, prova, etc. —, o professor

precisará interagir com seus alunos, conversar com eles, deixar

que cada um expresse o que sabe, à sua maneira, ou que se cale,

porque ficar quieto também é um comportamento revelador. O

professor precisará conversar sobre todos os assuntos, inclusive

a respeito dos conhecimentos que a escola se propõe a ensinar

Page 85: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aos alunos, para que a aprendizagem e o ensino sejam tarefas

compartilhadas entre professor e alunos, através dos mais

variados modos de interação. Entre outras coisas, o alfabetizador

conversará com os alunos, logo no início, a respeito da história

de cada um, da comunidade onde vivem, dos ideais de vida, da

escola, da família e até a respeito do que os alunos acham que a

escrita e a leitura são nas suas mais variadas formas. Ouvir os

alunos é necessário para conhecer a realidade de cada indivíduo,

ponto de partida do processo de aprendizagem de cada um.

O professor pode ainda pedir para os alunos fazerem desenhos

ou rabiscos numa folha de papel para ver como usam o lápis e o

papel. Se alguém quiser, poderá escrever. Se alguém quiser

copiar algo, também poderá fazê-lo, mostrando suas habilidades.

Em suma, desde o começo do ano, o professor precisa incentivar

os alunos a falar e trabalhar com lápis e papel. Isso permitirá a

ele fazer uma análise dos conhecimentos e habilidades dos

alunos, de seu comportamento lingüístico oral e escrito, porque

essa é a melhor maneira de ficar logo conhecendo a realidade de

cada um.

O processo de ensino, segundo o método 2, levará em conta o

fato de que cada aluno é diferente do outro, e que, portanto, o

ensino não poderá ser somente coletivo, mas deverá em grande

parte estar voltado para as peculiaridades de cada aluno ou de

grupos de alunos que necessitem do mesmo tipo de assistência

Page 86: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

por parte do professor. Isso não significa que haverá somente

aulas particulares. A aula é coletiva, mas numa sala de aula

podem acontecer concomitantemente coisas

<53>

diferentes, sobretudo em relação às atividades realizadas pelos

alunos. O professor deverá dizer coisas de interesse comum,

voltando-se para toda a classe, e outras de interesse particular,

nos momentos adequados, ensinando uma questão ou outra a

um ou mais alunos, de maneira especial.

Nota

Tábula rasa: expressão de origem latina que era usada para

significar que deixar limpa a tábula revestida de cera em que se

escreviam mensagens breves que não deveriam permanecer

escritas durante muito tempo. Hoje, a expressão refere-se à falta

absoluta de conhecimento sobre determinado assunto.

A técnica: explicações adequadas

Como a base do método 2 é a reflexão, a técnica a ser usada

se apóia nas explicações adequadas, transmitidas ao aprendiz

nos momentos oportunos. A aprendizagem depende

crucialmente de entender o que se quer saber, e quanto melhor e

mais abrangente for esse entendimento, maior e melhor será o

processo de aprendizagem.

Page 87: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Entender é ter um conjunto de informações que expliquem a

natureza, a função e os usos do conhecimento. Isso não se

adquire linear nem automaticamente, pelo simples fato de se ter

ouvido alguém falar dessas coisas, mesmo que as palavras sejam

familiares e o texto, claro e correto. Cada um reage de uma

maneira individual à construção do conhecimento, cada um tem

um caminho próprio, cada um atribui valores próprios, muito

individuais, aos elementos do conhecimento que constrói no

processo de aprendizagem. Tudo isso precisa ser levado em

conta, porque faz parte intrínseca da natureza humana e,

portanto, de cada indivíduo.

Dar explicações adequadas requer do professor um trabalho

preliminar de descobrir a necessidade de esclarecimento de cada

aluno e da classe como um todo. Para isso, o professor precisa

ter um preparo profissional de alta qualidade: competência para

analisar todas as situações de trabalho escolar que enfrenta na

sala de aula, e para tomar decisões corretas como educador e

como professor, dizendo aos alunos o que é necessário, da

maneira adequada.

Infelizmente, muitos professores são, na realidade, mal

formados e, conseqüentemente, incompetentes, a ponto de

preferirem usar o método 1, que vem com toda a programação

curricular já pronta nos livros didáticos. No método 1, a

competência do professor pode ficar camuflada pela aplicação da

Page 88: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

lição, retirada de um manual qualquer. No método 2, a

competência do professor é posta em xeque a cada momento.

Dependendo de sua atitude, fica logo muito claro a todos

(inclusive às crianças) o fato de um professor ser um

profissional

<54>

competente ou não. O professor tem de procurar saber a razão

de tudo o que seus alunos fazem ou deixam de fazer, caso

contrário não saberá o que dizer.

O professor não pode ter medo de dizer a verdade aos seus

alunos. As crianças também gostam de saber as coisas como elas

são, também gostam de ser tratadas seriamente. E fazer isso não

é tratá-las como adulto; porém, o respeito sem preconceitos é

fundamental. Alguns professores, por razões muito equivocadas,

acham que precisam explicar tudo metaforicamente para os

alunos. Essa é uma atitude preconceituosa para com a

capacidade mental das crianças.

O professor como mediador

Costuma-se dizer que o professor é um mediador entre o

saber e o aluno. Ser um mediador, aqui, é ajudar o aprendiz a

construir seu conhecimento, passando a ele as informações

adequadas, explicando o que tem de ser explicado. Essas

explicações não devem referir-se apenas ao conteúdo

Page 89: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

programático organizado pelo professor, de acordo com um

currículo, o que na prática representa a atividade de ensino.

Devem, sobretudo, estar voltadas para os trabalhos que os

alunos realizam por iniciativa própria, como atividade específica

de aprendizagem. É dessa maneira que o processo de ensino,

através da mediação do professor, interfere no processo de

aprendizagem levado adiante pelo aluno. Quando o aluno erra

alguma coisa, ou não sabe realizar uma tarefa, precisa ouvir do

professor uma análise do caso e receber uma explicação

adequada para entender o que fez ou deixou de fazer, a fim de

agir corretamente nesses casos e fazer progredirem seus

conhecimentos.

O que fazer com o erro

No método 1, quando um aluno erra, o professor volta atrás e

repete tudo de novo. No método 2, quando uma explicação não

serviu para levar um aluno a corrigir um erro ou a fazer

determinada tarefa, o professor precisa procurar uma outra

maneira de explicar. Não há burrice maior do que a daqueles

professores que dizem que ensinam sempre as mesmas coisas e

os alunos não aprendem.

Procurar explicações adequadas requer saber abordar um

problema de muitas maneiras, de ângulos diferentes, seguir

caminhos alternativos. Se, apesar de todo

Page 90: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<55>

o esforço e competência do professor, ele ainda constatar que

determinado ponto não está sendo devidamente entendido por

um aluno (ou por uma classe), o que ele deve fazer é passar para

o ponto seguinte, sem remorso, sem sentimento de culpa, sem

preconceito contra a capacidade de aprendizagem dos alunos.

Muitas vezes, para se entender algo aparentemente simples é

necessário ter informações complementares, que o professor

obviamente tem, mas o aluno não. Freqüentemente, é preciso ter

conhecimentos pressupostos ou até mesmo saber relacionar

coisas já conhecidas de uma forma determinada para que o novo

conhecimento possa ser assimilado e aplicado.

Se o professor marcar passo diante das dificuldades, o

impasse pode se estabelecer, com sérias conseqüências para o

processo escolar. Nessas circunstâncias, o melhor que ele tem a

fazer é partir para outra, porque um dia, com ou sem as

explicações do professor, os alunos acabarão aprendendo aquela

questão deixada incompleta ou mal entendida.

Quando os adultos discutem coisas sérias, é muito comum que

fatos semelhantes aconteçam: tem-se a nítida impressão de que

o interlocutor entendeu tudo errado, e, no debate, a questão é

tratada de todas as maneiras possíveis; o resultado acaba sendo

o mesmo: cada um sai pensando exatamente o que pensava

antes, mesmo diante da evidência estrondosa de uma bela

Page 91: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

argumentação. Sem dúvida alguma, as pessoas não se

convencem apenas graças a uma bela argumentação. Por que, na

escola, as coisas deveriam ser diferentes?

A concepção de aprendizagem

A concepção de aprendizagem do método 2 baseia-se nas

decisões que o aprendiz toma, levando em conta as explicações

adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se aventure no

mundo do saber e procure a maneira correta de dar o passo

seguinte, como conseqüência de tudo o que aprendeu até o

momento. Aqui está o grande segredo da aprendizagem: o

aprendiz não só aprende o ponto, mas aprende a aprender. A

verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno generalizar o

processo de tal maneira que a intermediação do professor vai,

aos poucos, cedendo lugar à sua própria independência e

competência para buscar as explicações adequadas por si

mesmo e a construir seu

<56>

próprio saber. Quanto mais cedo o aprendiz chegar a essa

autonomia, melhor será para ele: aprenderá melhor, mais

rapidamente, mais dados. O método 1 fixa o aprendiz à lição sob

estudo, ao currículo, ao programa, ao que o professor manda

fazer. Isso segura o ritmo de muitos alunos os quais, apesar de

submetidos ao método 1, na prática agem por conta própria,

Page 92: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

seguindo o método 2.

Para que o aprendiz possa tomar suas decisões, é preciso que

a escola tenha um espaço especial em sua programação

destinado a esse tipo de atividade. Na alfabetização, é

fundamental que os alunos produzam trabalhos espontâneos,

façam atividades a partir de sua iniciativa, do jeito que acharem

melhor. Mesmo um trabalho com objetivos definidos, como fazer

um cartaz ou escrever uma carta reclamando da destruição das

florestas ou da poluição das cidades, pode ser realizado de

maneira a permitir que a expressão individual de cada aluno

encontre liberdade de realização.

Avaliação: tudo serve

No método 2, qualquer coisa que o aprendiz faça ou deixe de

fazer serve como material para avaliação da aprendizagem.

Avaliação, aqui, não significa dar nota ou conceito, como no

método 1, mas realizar um estudo interpretativo daquilo que foi

feito, para verificar o que está correto e o que está errado e por

que está certo e por que está errado.

A avaliação no método 2 tem como objetivo analisar as

decisões tomadas pelo aluno ao fazer o que fez, do jeito que fez,

para que o professor possa dar as explicações adequadas e para

que o aluno corrija seus erros, melhore e dê um passo adiante na

formação de seus conhecimentos. No método 1, a avaliação é

sempre circunstancial, localizada, e pondera fato por fato

Page 93: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

isoladamente. No método 2, a avaliação leva em conta o

processo de aprendizagem, a história de cada um dentro desse

processo; é sempre cumulativa, exigindo uma comparação com o

que já foi realizado. No método 1, basta constatar o erro,

quantificar, dar a nota ou conceito e ponto final. No método 2, é

preciso fazer um dossiê com os trabalhos dos alunos para

estudar o caminho que o aluno está seguindo ao construir seus

conhecimentos e saber que tipo de hipóteses ele faz a respeito

das questões que está estudando. Não basta

<57>

constatar os erros e deficiências, é preciso interpreta-los e

discutir o assunto com o aluno. Nenhuma tarefa é um trabalho

isolado: faz parte de um conjunto de outros trabalhos que o

aluno vem fazendo, e a avaliação precisa estudar cada caso

dentro deste contexto maior. A nota é algo que não faz sentido

no método 2. Em vez de nota, o método 2 responde com

explicações. Esse tipo de avaliação do processo de aprendizagem

em andamento, associado à intermediação do professor,

incentiva o aluno a dar o passo seguinte, tentando generalizar os

conhecimentos que já tem ou fazendo novas hipóteses sobre a

nova questão com que se defronta.

Caos e caminhos tortos

Um método que privilegie a aprendizagem sobre o ensino

Page 94: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

nunca será um caminho linear, bem-definido, será antes um

modo de progredir circular. Muitas questões serão tratadas em

diferentes ocasiões, dependendo da maneira como o aluno reage

e trabalha. O professor não precisa preocupar-se em levar um

programa à frente, item por item. No final, se o processo de

ensino e aprendizagem for bem equilibrado, os alunos acabarão

aprendendo tudo aquilo que constitui a expectativa da escola

para determinada fase do processo educativo. Na alfabetização,

os alunos acabarão aprendendo a ler, a escrever, enfim, a fazer

tudo certo e bonito. Esse resultado, no entanto, só começará a

aparecer depois de certo tempo.

No método 1, como tudo fica sob o controle do ensino, desde

o início os alunos apresentam cadernos muito bonitos, com tudo

certinho e no devido lugar, dando a impressão de que estão

aprendendo às mil maravilhas. Depois de certo tempo, começam

a aparecer os problemas, e o caos instaura-se na cabeça de

alguns alunos, para desespero do professor, da escola e dos pais.

No método 2, tem-se a impressão, no início, de que se está em

meio a um caos, por causa do tipo de trabalho que os alunos

fazem. Porém, à medida que o tempo passa, a rotina de trabalho

leva os alunos a se organizarem melhor, a classe torna-se mais

homogênea e, no final do ano, o que parecia um caos acaba

revelando ao professor que valeu a pena. Por caminhos diversos,

os alunos acabaram chegando aonde o professor queria que eles

Page 95: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

chegassem. E ninguém fica perdido no meio do caminho, como

acontece com o método 1.

<58>

Como fixar a aprendizagem

Como ficou claro pelo exposto acima, o método 2 faz com que

o aluno aprenda pelas causas, não pelos efeitos. Nesse caso, o

que vale são as hipóteses levantadas nos trabalhos, revelando as

decisões que os alunos tomaram, seguindo um processo de

reflexão.

A fixação da aprendizagem, no método 2, é o outro lado da

moeda da reflexão. Quando uma pessoa entende algo, ela

automaticamente sabe e, portanto, não precisa "fixar". Isso não

quer dizer que tudo o que entendemos (e sabemos) permanece

ao nível da consciência o tempo todo, a vida toda. Mas quem

sabe verdadeiramente sabe de cor, caso contrário, não sabe. Em

muitos casos, sabemos como operar com certos conhecimentos,

mas precisamos de auxílio externo para realizar determinadas

tarefas. Isso também é saber, e o fato de memorizar todas as

etapas intermediárias e procedimentos operacionais é

simplesmente um exercício de tornar consciente fatos já

entendidos e memorizados.

Existe uma memorização que é intrínseca ao próprio ato de

entender e aprender, e existe outra memorização que é

Page 96: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

simplesmente um ato de tornar consciente uma série de fatos do

conhecimento. Os dois tipos de memorização são importantes no

processo escolar. O que não faz sentido é a memorização como

repetição de algo, sem conhecimento nem entendimento do que

está sendo feito a não ser do próprio ato de repetir.

OS DOIS MÉTODOS NA

ALFABETIZAÇÃO

No caso do método 1, os cadernos dos alunos mostram que

eles logo aprendem a escrever usando apenas as formas já

dominadas, mesmo que, para isso, tenham de abrir mão da

habilidade que têm para produzir textos. As caricaturas de

textos desse método tornam-se pretextos para o uso das

palavras já dominadas. Salva-se a ortografia nos cadernos, mas

sacrifica-se a produção de textos reais, o uso real da linguagem.

No caso do método 2, o aluno aprende primeiro a ler, depois a

escrever e somente então passa a se preocupar com a ortografia.

No início, escreve a partir das hipóteses que tem sobre a

ortografia. Nessa fase, costumam

<59>

aparecer as formas mais estranhas de escrita quando

comparadas com a forma ortográfica estabelecida. Porém, essa

prática permite que o aluno passe da habilidade que tem como

falante nativo, de produzir textos orais, para a habilidade de

Page 97: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

produtor de textos escritos. No começo, será uma simples

transferência do oral para o escrito. Aos poucos, no entanto, as

regras do estilo escrito também começam a marcar presença.

Tem-se a impressão, no início, de que o aluno nunca

aprenderá ortografia. Com a produção de textos desde o início da

alfabetização, salva-se o uso real da linguagem, quer na sua

forma oral, quer na sua manifestação escrita. A ortografia é algo

que se recupera facilmente com o tempo, com a ajuda dos

dicionários e, principalmente, de muita leitura. Porém, quando

um aluno entende que fazer um texto é simplesmente utilizar as

palavras que sabe escrever, isso significa que ele está muito

enganado com relação ao significado real da linguagem. Escrever

assim é um erro que a própria escola mais tarde não irá perdoar.

Não demorará muito para esse aluno encontrar um professor que

diga que ele escreve mal e não sabe organizar um texto de forma

correta. O aluno, que acreditava que bastava não errar a

ortografia para obter um texto bem escrito, ficará perplexo e não

saberá, de imediato, o que há de errado. A culpa será atribuída

ao professor de português, e este, por sua vez, continuará

dizendo que o aluno não foi bem alfabetizado. Uma boa nota nas

avaliações nem sempre garante uma boa educação.

Um método não é uma panacéia que resolve todos os

problemas educacionais. Todavia, como se pode notar pelas

observações anteriores, o processo educativo depende do

Page 98: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

método adotado. Os dois métodos podem alfabetizar, mas o

método 1 o fará de uma maneira indesejável, embora

aparentemente adequada. O método 2 exige experiência e

competência do professor, paciência dos pais e uma escola

preparada para ser uma oficina de trabalho, não apenas uma

sala de aula onde o professor ensina e o aluno tem de se virar

para aprender.

<60>

3

Avaliação, promoção, planejamento

A avaliação e a promoção são duas atividades pedagógicas

sem as quais a escola não sobrevive, mas nem por isso as pratica

de maneira exemplar.

O primeiro ponto a ser levantado é a confusão que se

estabeleceu nas nossas escolas (e em muitas outras

no mundo moderno) entre avaliação e promoção. Nas nossas

escolas a avaliação tem como única meta a promoção, ou seja,

os alunos recebem notas pelos trabalhos que fazem para passar

ou não de ano. Isso parece óbvio e natural para muitos

professores, acostumados com essa prática. No entanto, é muito

importante que essas duas atividades sejam feitas

independentemente. A avaliação deve contemplar um

julgamento sobre o que os alunos fazem para aprender e sobre o

Page 99: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que o professor faz para ensinar, para que o ensino e a

aprendizagem aconteçam da melhor maneira possível. A

promoção julga da conveniência ou não de um aluno passar para

as atividades escolares do ano seguinte.

CAGLIARI, 1996e,

NOTAS E CONCEITOS

A prática de dar notas ou conceitos é o centro da confusão

entre avaliação e promoção. Na verdade, esse hábito desvirtuou

até mesmo o modo de avaliar. Algumas pessoas apresentam mil

argumentos para dizer que conceitos são melhores do que notas,

uma vez que os conceitos englobam menos categorias,

facilitando, portanto, um julgamento mais amplo e com menos

risco de erros. Certamente esse argumento é um contra-senso,

porque se poderia contra-argumentar, entre outras razões, que

as notas de O a 10 permitem avaliar com mais justiça do que o

uso de apenas 5 conceitos. Na verdade, a questão central não é

essa, mas o próprio fato de atribuir notas ou conceitos. Nem a

avaliação nem a promoção precisam de notas ou conceitos.

O surgimento de notas e especialmente dos conceitos deveu-

se não só ao fato de se avaliar o certo e o errado no trabalho do

aluno, como também ao fato de se premiar com um elogio o

aluno aplicado aos estudos e castigar expondo ao vexame o

aluno preguiçoso. Este último argumento é o mais comum para

Page 100: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

justificar o uso de notas e conceitos, Os professores dizem que,

sem as notas, os alunos não estudam e não existe uma

<62>

competição que os estimule. Alguns acham que as notas são

essenciais até para manter a disciplina. Ainda existem

professores que reprovam por indisciplina.

A necessidade de dar e receber nota tomou-se, com o tempo,

compulsória nas atividades escolares e estendeu-se por todos os

níveis, abrangendo todas as atividades. Como a escola educa

para a sociedade, vemos que nossa sociedade passou a ter a

mesma obsessão. Mesmo atividades que não precisam de

julgamento de valor passam a ganhar notas, como um jogo

social. Tudo pode ser traduzido em valores de O a 10, de acordo

com qualquer parâmetro. Por ocasião da última Assembléia

Constituinte, até os deputados e senadores passaram a ganhar

notas de acordo com o seu desempenho. Uma bela mulher passa

a ser conhecida como "mulher nota dez", a exemplo da tradução

do título de um filme.

Curiosamente, mas não sem razão, as notas são menos

encontradas justamente nos esportes e jogos. Como o objetivo é

muito claro, ganha quem consegue atingir tal meta: não adianta

o time de futebol ter um excelente desempenho, se no último

minuto o adversário, que jogava mal, faz o gol da vitória. No

boxe, contam-se pontos, mas um nocaute basta para qualquer

Page 101: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

lutador vencer. Na patinação sobre o gelo e em muitas formas de

ginástica olímpica, o júri dá notas baseado na realização de

determinadas tarefas e na perfeição com que elas são realizadas.

Neste último caso, as notas servem para classificar e indicam o

nível do desempenho de cada um na competição, uma vez que o

objetivo dessa atividade é apontar o campeão, ou seja, o melhor

de todos.

Nos concursos de seleção, a situação é semelhante: é preciso

classificar para admitir um certo número de pessoas e excluir as

demais. Em algumas escolas, as notas servem também para

indicar o campeão da turma, da série, da escola.

Como se vê, as notas estão por toda a parte.

As notas, refletindo um julgamento de valor, funcionam bem

quando se trata de classificação e, sobretudo, quando se

pretende fazer uma seleção a partir dessa classificação. Isso é

muito útil num concurso ou numa competição esportiva. Nesse

sentido, vê-se claramente a relação entre notas e

competitividade.

Nosso problema, porém, é outro: será que os alunos, quando

estudam, estão participando de uma competição, de uma seleção

para ver quem fica e quem é excluído ou, simplesmente, quem é

o campeão? Será esse o objetivo da escola, da educação, dos

estudos?

<63>

Page 102: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Na prática, o uso de notas nas atividades escolares parece

deixar bem claro que a escola optou por esses objetivos. Será

que estudar é uma competição em que é preciso ganhar, senão

se acabam as chances de continuar? Será que não se pode

estudar por ideais mais nobres? Será que a escola não pode ter

objetivos voltados mais para a formação e menos para a

competição?

Em qualquer ambiente escolar, é comum haver competição,

pela própria natureza das atividades da escola. Quando se

reúnem muitas pessoas, fazendo determinadas tarefas, a partir

da capacidade de cada um, logo fica evidente que algumas fazem

melhor, com mais arte e perfeição do que outras. E a

comparação mostra quem é melhor e quem é pior nisso ou

naquilo. Na vida, cada um se especializa naquilo que se julga

melhor. O fato de que alguém é melhor em determinada tarefa

não significa que é preciso desprezar todas as demais pessoas

que não sabem fazer com a mesma perfeição. Uma análise das

ocupações de trabalho em sociedade ilustra bem o que se disse

acima. Cada um cumpre o seu dever da melhor maneira possível

e a existência de diferenças é uma característica da própria

sociedade.

Pode haver promoção escolar sem competição através de

notas? A promoção depende de como se faz a programação

escolar e dos objetivos que se pretende alcançar. Nas escolas da

Page 103: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Antiguidade não fazia sentido reprovar alguém: as pessoas iam

para discutir idéias e muitas vezes cada um defendia seu ponto

de vista contra o do mestre.

A nota só entrou na escola quando a prática pedagógica tirou

a aprendizagem como alvo e colocou o ensino em seu lugar. Ou

seja, as notas surgiram quando os alunos começaram a ter de

reproduzir o que o mestre ensinava, do jeito que era ensinado,

deixando de lado as opiniões individuais. É por essa razão que as

notas não avaliam o processo de aprendizagem do aluno ou sua

esperteza intelectual, mas simplesmente sua capacidade de

reproduzir ou aplicar um modelo dado pelo professor ou pelo

livro didático. Basta fazer uma análise de provas, testes e

exames, para descobrir que essas avaliações nada mais são do

que um exercício de "faça segundo o modelo". Essas formas de

avaliação exigem que os alunos repitam para o professor o que

este lhes disse. Mesmo quando um aluno faz uma redação livre,

a nota é fruto do que o professor ensinou e que acha que o aluno

precisa reproduzir em seu trabalho, principalmente no que se

refere à ortografia, à concordância e a uma

<64>

certa lógica no desenvolvimento do argumento. Essa prática de

aplicar provas determinou o sentido que a avaliação e a

promoção passaram a ter na escola.

Page 104: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

PROMOÇÃO AUTOMÁTICA

A promoção é feita a partir dos resultados das notas, o que

significa que, no fundo, depende da avaliação. É muito

confortável saber que o artigo da Constituição brasileira que diz

que toda criança dos 7 aos 14 anos tem direito à escolarização

não faz nenhuma menção a notas nem avaliações. Certamente,

também não se pensou que uma pessoa pudesse ficar durante 7

anos na primeira série simplesmente porque tem o direito de

escolarização garantido pela Constituição. Intui-se que uma lei

como essa existe para não ser cumprida, servindo apenas para

mostrar para os demais países que o Brasil também se preocupa

com a educação. Não só não há escolas para abrigar toda a

população necessitada, como a própria escola encarrega-se de

marginalizar grande parte das crianças de 7 a 14 anos, julgadas

inaptas para o trabalho escolar. No caso, é um desrespeito não

só à criança como também à Constituição.

Uma pedagogia sadia e lúcida recomenda que a promoção seja

automática. Aliás, a promoção não deveria sequer ser objeto de

preocupação da escola, a não ser em casos muito excepcionais.

Assim, seria candidato à repetição de ano o aluno que não

tivesse assistido, por exemplo, a pelo menos metade das aulas,

talvez por motivo de saúde ou de trabalho, desde que não

tivesse compensado essa falta com conhecimentos escolares

adquiridos fora da escola.

Page 105: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

AVALIAÇÃO E RENDIMENTO ESCOLAR

O rendimento escolar não é razão suficiente para reprovar

ninguém. Pessoas que apresentam patologias deveriam ter uma

escola especial para receberem uma formação adequada. Nesse

caso, faz menos sentido ainda falar em reprovação.

<65>

Alguns professores ficam chocados quando ouvem dizer que o

rendimento escolar, expresso por notas ou conceitos, não é

razão suficiente para reprovar alguém. Algumas considerações

bastam para esclarecer esse ponto, embora haja muito mais a

ser dito.

Em primeiro lugar, a nota serve para que o interesse em

passar de ano (ganhar diploma) se torne o objetivo maior da

educação, deixando a idéia de formação, no sentido pleno da

palavra, num plano secundário e mesmo dispensável. O aluno

estuda não porque é importante para a vida, mas para livrar-se

de mais uma competição intelectual.

Uma análise honesta do que de fato acontece com o atual

sistema de avaliação mostra que um aluno pode ter nota, passar

de ano com louvor e não saber o conteúdo da matéria. Acertar

nas provas nem sempre significa que o aluno aprendeu, assim

como errar nem sempre significa que ele não estudou ou não

aprendeu. Quantas vezes um aluno lembra logo depois da prova

Page 106: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

como se resolve uma questão? Mas, então, já não há mais

tempo. O tempo da avaliação é irreversível, como irremediável é

a nota. De nada adianta o aluno dizer para o professor no dia

seguinte que ele sabe a lição na ponta da língua. A avaliação não

volta atrás.

Por outro lado, quantos alunos chegam mesmo a dizer, depois

de terminada uma prova, que fazem questão de se esquecer de

tudo, porque agora já conseguiram nota necessária para serem

aprovados? Quantos estudantes esperam as férias para rasgar os

apontamentos, queimar livros e tratar de esquecer a escola,

porque a nota já garantiu a promoção e, talvez, até o diploma?

Essa atitude é um alarme para a educação e significa, entre

outras coisas, que esses alunos estudam apenas para ganhar

nota e passar de ano. Esse será o típico cidadão que jamais se

interessará pelos estudos depois de diplomado. Estudar não é

uma atividade que se faça apenas na escola, mas ao longo da

vida, como aprimoramento pessoal e profissional. A educação

precisa modificar sua visão de si própria. E preciso educar para a

vida, não para a nota.

Qualidade de ensino e motivação

A falta de nota não é responsável pela baixa qualidade do

ensino. Num país como o Brasil, dizer isso é uma piada, uma vez

que piorar o ensino é impossível. A qualidade do ensino se

Page 107: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

consegue com um trabalho

<66>

competente, quer com relação ao conteúdo técnico das

matérias, quer na ação do professor como educador. E nada

disso tem a ver com notas.

Outro argumento, também inconcebível do ponto de vista

pedagógico, é dizer que as notas servem de motivação para o

aluno. Se o professor nunca passar uma prova, os alunos não

estudam. Pelo menos com medo das provas, eles estudam um

pouco.

Os alunos acabam tendo esse comportamento porque a escola

não deu a eles, desde cedo, uma outra perspectiva de trabalho

escolar. Os alunos são vítimas desse processo, não culpados.

Ainda nessa linha de raciocínio, alguns professores pensam que

seu trabalho (ou o do colega) perde a seriedade, fica sem

controle, se não houver provas exigentes e notas baixas. Alguns

diretores até consideram que professor bom é aquele que passa

muita prova e dá muita nota baixa. Professor que não faz isso,

passa a ser avaliado como alguém irresponsável, que gosta de

matar o tempo. Como pode ser diretor de escola urna pessoa

com essa mentalidade?

Avaliação e castigo escolar

Se alguém quisesse fazer um livro sobre a vida na escola,

Page 108: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

encontraria, nas provas e notas, um tesouro em comportamentos

patológicos e um sem-número de casos trágicos daí decorrentes.

Já ocorreram até casos de suicídio devido a notas e reprovação

escolar. O drama que pais e filhos passam a ter nas famílias por

causa das notas é algo de que a escola nunca quis tomar

conhecimento, embora seja ela a principal causadora dessas

tragédias.

Por fim, cria-se na escola aquele famoso clima de vingança

mútua: professor faz prova para os alunos ganharem notas

baixas, se sentirem humilhados e castigados. Em troca, os

alunos revidam com uma enorme bagunça nas aulas e nas

dependências da escola. Com o aumento das irregularidades de

comportamento, o professor se volta de novo contra os alunos,

usando sua arma terrível que é a nota. Surpreende-os com

provas relâmpagos para complicar ainda mais a relação entre

ensino e aprendizagem, comprometendo traiçoeiramente a

promoção de alguns alunos e instalando um ambiente de guerra.

Alguns professores elaboram provas já sabendo quais os

resultados que irão obter: duas questões são escolhidas a dedo

para que ninguém acerte; três questões são mal formuladas para

enganar de certo modo e confundir

<67>

o aluno menos esperto; três questões são tão longas que

exigem dos alunos um tempo que eles não vão ter para

Page 109: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

responder direito e de maneira completa; por fim, duas questões

de resposta fácil, mas com pequenas armadilhas na escolha das

palavras. Esses professores se gabam quando seus alunos erram

ao responder as coisas mais banais da matéria. Acreditam que,

dessa forma, estão ensinando seus alunos a estudarem direito, a

não se deixarem enganar pelas aparências...

Um professor que acompanha de perto o trabalho de seus

alunos na sala de aula acaba percebendo o que eles sabem e o

que não sabem, aluno por aluno. Este acompanhamento é a

melhor forma de avaliação, e a mais honesta. A convivência

mostra ao professor quem são de fato seus alunos. Essas

informações são cruciais para o professor planejar

adequadamente suas aulas e dirigir os trabalhos do aluno para

que ele progrida. Uma prática semelhante realmente dispensa

qualquer tipo de prova e nota.

Filosofar sobre a justiça ou não das notas e conceitos é uma

discussão bizantina, uma perda de tempo, e

equivale a discutir se existe uma avaliação justa.

Gostaria, não obstante, de dizer que o problema não está em

haver ou não um teste objetivo ou um critério bem-definido para

se atribuir uma nota justa. Como vimos, existem muito mais

coisas por trás dos testes e critérios utilizados na avaliação, cujo

envolvimento com as notas mostra que não é a maneira como a

nota é dada que faz justiça ou não, mas o próprio fato de dar

Page 110: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

notas.

O valor dos cálculos na avaliação

Algumas vezes ouvi professores alfabetizadores dizerem que

um aluno que acertasse mais de 70% da ortografia das palavras

teria condições de passar de ano. Analisando, porém, a produção

de crianças que tinham sido reprovadas e contando

minuciosamente os acertos e os erros, constatei que quase

sempre os alunos tinham um índice de acerto maior do que o

mínimo exigido.

Na verdade, a reprovação não vinha do cálculo de acertos e

erros, mas da qualidade dos erros. O professor dizia que não

podia aprovar o aluno que tinha escrito "mecadio" em vez de

"mercadinho", ou "piçoa" em vez de "pessoa". Numa frase como:

"Ze piriri fio uomino

<68>

mecadio" ("Zé Piriri viu um homem no mercadinho"), o

professor achava que estava tudo errado, dizendo que havia

apenas uma palavra certa. Obrigado a contar os erros de

ortografia pelas letras — o que é mais justo — achou 8 erros e 18

acertos. (Uma contagem mais rigorosa mostraria que há 12 erros

e 26 acertos, o que dá uma porcentagem de 3 1,57% de erros

contra 68,43% de acertos nesta frase, uma das mais

problemáticas do texto.)

Se os professores tivessem olhos para ver também o que os

Page 111: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alunos acertam, começariam a ver as notas com outros olhos. O

erro é sempre muito chocante, mas os acertos não costumam

despertar entusiasmo nos professores.

AVALIAÇÃO SEM NOTA

Tirar as notas da escola não significa acabar com o

processo de avaliação. Assim como a promoção não precisa de

notas, também a avaliação não precisa delas.

A avaliação é uma atividade importante, que deve estar

sempre presente na escola e na vida em geral. Na escola, a

avaliação deve ser uma análise e interpretação do progresso do

aluno. O professor também deve se auto-avaliar.

A avaliação é sempre uma atividade voltada para cada

indivíduo de maneira específica, porque cada um é diferente dos

demais, cada um tem uma história de vida diferente e apresenta

uma realidade escolar peculiar. O progresso de um aluno não

precisa ser igual ao de outro. O importante é que todos cresçam,

trabalhando e fazendo o que tem de ser feito.

Passar a mesma prova para todos os alunos de uma classe,

sobretudo nas primeiras séries, é desconhecer a realidade de

cada aluno. Somente aquele tipo de ensino massilicante,

uniformizante, em que o professor manda e os alunos obedecem,

leva um professor a aplicar a mesma prova para toda a classe.

Não é porque o professor ensinou algo, que todos os alunos

Page 112: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprendem do mesmo jeito. Não é porque o professor ensinou,

que já tem o direito de cobrar de seus alunos, na forma de

provas ou chamadas, uma reprodução do modelo apresentado,

como conteúdo específico ou como conhecimento derivado,

aplicado à solução de algum problema.

<69>

O trabalho substitui a nota

Uma escola sem nota precisa, em primeiro lugar, mudar seus

objetivos e adotar um processo de educação para a vida, não

para passar de ano. Nesse clima pedagógico, o que conta é o

trabalho sério do professor e do aluno. A escola precisa trocar as

provas, os testes, enfim as notas, por trabalhos que os alunos

irão fazer, alguns sob orientação direta do professor, outros por

iniciativa própria sob a supervisão dele.

Se a escola incentivar os alunos a produzir trabalhos, e se

esses trabalhos forem guardados, fica muito fácil para o

professor provar, para quem quiser ver, como um aluno começou

sem saber muito e, depois de uns tantos meses de aula,

aprendeu e fez inúmeras coisas interessantes. Em vez de boletim

de notas, OS professores deveriam ter arquivos para guardar os

trabalhos que os alunos realizaram ao longo do ano. No final do

ano letivo, o próprio aluno poderia ver, nesse arquivo, a história

da sua educação naquela série e constatar o quanto progrediu.

Através de uma prática intensa de realização de trabalhos, o

Page 113: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

professor tem condições de estudar o processo de aprendizagem

de cada um de seus alunos e orientá-los melhor. Esse tipo de

avaliação, porém, exige que o professor conheça profundamente

o assunto que ensina para poder analisar e interpretar os

resultados encontrados nos trabalhos e propor soluções e

melhorias. Somente quem possui um conhecimento técnico

sofisticado é capaz de conduzir um processo de avaliação

contínuo durante o ano todo, levando em conta tudo o que o

aluno fez ou deixou de fazer.

Auto-avaliação e autocorreção

Uma avaliação que acompanha o processo de alfabetização de

cada aluno, além de ajudá-lo, servirá para o professor organizar

melhor suas aulas futuras e adaptar seu programa de trabalho à

realidade do dia-a-dia, durante o ano escolar.

Com isso, o professor ensina ao aluno que avaliação é um ato

contínuo, paralelo a tudo o que se faz, e o treina a se auto-

avaliar e a refletir criticamente sobre o

próprio trabalho. Alguns alunos nem sequer chegam a desconfiar

de que podem errar por falta de um trabalho de avaliação

acompanhada pelo professor, quando

<70>

realizam suas tarefas. A escola deve formar pessoas

competentes não só para dizer e fazer, como também para julgar

Page 114: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o que os outros e o que elas próprias fazem.

O aluno na série seguinte

Se todos os professores, incluindo não só os da alfabetização,

mas também os demais, partirem da realidade de seus alunos,

no começo do ano, para ensinar o que acham que deve ser

ensinado, tem-se um argumento a mais para a promoção

automática na escola. Uma programação geral deve distribuir

conteúdos básicos para serem ensinados ao longo dos oito anos

do primeiro grau. Se um aluno não aprendeu direito um ponto

num ano, o professor do ano seguinte, em vez de reclamar do

colega, tem de assumir seu papel e ensinar a esse aluno o que

ele precisa saber.

Portanto, a promoção automática não precisa se preocupar

com a hipótese de um aluno não conseguir acompanhar a

matéria no ano seguinte. Mesmo hoje, apesar das provas e das

notas, quando um aluno é promovido, não se tem garantias de

que ele aprendeu de fato o que estudou no ano anterior.

Analisando friamente, constata-se que alguns alunos foram

reprovados porque cometeram certos erros em suas provas.

Quais serão esses erros, que conhecimentos tão importantes

eles envolvem para que um aluno repita de ano? Encontramos,

por exemplo, que o aluno errou o sujeito da oração, confundiu o

predicativo do objeto direto com outra função sintática ou,

Page 115: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

mesmo, não soube resolver um binômio de segundo grau. Na

alfabetização, os erros de ortografia prevalecem

como causas de reprovação. Como avaliar essa avaliação, senão

dizendo que é fruto de uma ingenuidade e uma ignorância que só

poderia vir de uma escola tão desorientada como a nossa?

< CAGLIARI, 1993c. >

Será que vale a pena criar tantos problemas por tão pouco? O

mundo não vai cair se o aluno não aprendeu o que é predicativo

do objeto direto ou como resolver um problema de álgebra, ou

qualquer dessas coisas que se tomam objeto de perguntas

fatídicas nas provas e testes.

Por causa de um predicativo do objeto direto, um erro de

ortografia ou o binômio de segundo grau mal resolvido numa

prova, muitos alunos já foram reprovados. A escola não sabe

dimensionar esses fatos nem mede as conseqüências do que faz.

Tal reprovação, além de causar danos emocionais nos alunos,

ocasiona danos financeiros às famílias e ao governo.

<71>

O círculo vicioso de quem não aprende

A avaliação por meio de testes e provas muito freqüentemente

cria um problema sério para os professores: eles acabam

acreditando que aquela forma de avaliação é de fato um espelho

Page 116: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

do processo de aprendizagem. E se o aluno vai mal na prova, o

professor pensa que ele não aprendeu e repete tudo de novo,

esperando que um dia o aluno devolva o que foi ensinado do

mesmo jeito como foi passado.

O processo de aprendizagem não funciona assim. Por isso,

alguns professores dizem que ensinam sempre as mesmas coisas

e os alunos nunca aprendem: isso mostra que esses mestres não

são muito espertos. Por que não ensinar algo diferente? Talvez

assim os alunos aprendam. Muitas vezes, para aprender

adequadamente um ponto é preciso avançar bastante na

matéria. Ora, se o aluno fica marcando passo em algumas idéias

e não tem a chance de ver outras, pode ficar condenado a não

aprender nada.

UMA NOVA VISÃO DA AVAHAÇÃO

E DA PROMOÇÃO

Como vimos, a escola não sabe avaliar para corrigir e ensinar,

mas somente para promover ou não o aluno. A formação de

arquivos com os trabalhos realizados pelos alunos é o material

de que o professor precisa para poder avaliar o progresso dos

alunos. Agir assim requer uma mudança de atitude. Não

acontece simplesmente porque alguém decretou uma lei ou uma

norma. Deve fazer parte das convicções pedagógicas mais

Page 117: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

profundas do educador.

A implantação do ciclo básico teve mais a pretensão de

começar uma discussão sobre o estado da educação do que

estabelecer a idéia, que muita gente passou a ter, de que haveria

apenas o aumento do período de alfabetização de um ano para

dois. A idéia mais elaborada contemplaria a promoção

automática para todo o ensino fundamental e médio (primeiro e

segundo graus).

Muitos professores gostariam de mudar radicalmente sua

prática pedagógica, mas encontram obstáculos nas normas e até

mesmo no comportamento de diretores

<72>

supervisores e orientadores pedagógicos, sem mencionar a

tradicional queixa dos pais.

Se o patrão exige que o professor dê notas a seus alunos, ele

pode até agir assim, mas certamente isso será feito com base

numa avaliação do progresso de cada aluno e de seus trabalhos,

e não através de provas e testes padronizados. Um professor que

incentiva seus alunos a trabalhar nas aulas, pesquisando,

fazendo todo tipo de atividade escolar, não pode dar outra nota

senão 10 ou A. Ninguém pode reclamar disso, porque afinal de

contas essa nota é mais do que justa: cada um fez o que devia,

dentro de suas possibilidades, e isso é altamente educativo e

uma excelente maneira de o aluno e o professor conduzirem o

Page 118: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

processo escolar.

Os alunos podem ter notas sem ligar para isso, considerando

uma tarefa do professor, uma obrigação profissional sem

conseqüências educacionais. Estudar é outra coisa. É algo sério,

que precisa ser feito com responsabilidade, como uma forma de

respeito que cada pessoa precisa ter consigo própria.

Outra questão que perturba muitos professores é o que fazer

com quem não aprende. Na alfabetização, esse é um ponto muito

grave: se o aluno não aprendeu a ler, o que vai fazer depois?

Em primeiro lugar, se um aluno não aprendeu a ler, é porque o

professor fracassou: não é possível que um ser humano não

aprenda a ler durante um ano de escola. Infelizmente, isso

acontece porque os professores não sabem lidar com esses

casos: ficam repetindo sempre as mesmas coisas, em vez de

fazer uma análise das dificuldades do aluno e orientá-lo de

maneira específica. Quando o professor ensina com competência

e seriedade, os alunos aprendem. Todos eles aprendem alguma

coisa. Talvez não saibam reproduzir o modelo de maneira exata

e completa, mas alguma coisa eles aprendem, e isso basta.

< CAGLIARI, 1998a. >

Fazer recuperação é uma tarefa desnecessária se na atividade

do professor a recuperação estiver presente todos os dias, como

deve estar. A necessidade de um período de recuperação surge

somente quando o professor ensina seguindo seu programa, sem

Page 119: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ligar para o que acontece com seus alunos. Então, de vez em

quando, faz uma prova e recomenda uma recuperação para

aqueles que tiraram nota baixa. Para os piores, recomenda

<73>

uma mudança para a classe especial. Para os repetentes

incorrigíveis, a única solução que visualiza é a evasão escolar.

O PLANEJAMENTO ESCOLAR

A questão das notas e da promoção exige uma visão além da

série em que o professor atua, especialmente se for na primeira

série. As escolas costumam fazer seu planejamento, e os

professores deveriam aproveitar essa ocasião para deixar bem

claro o caminho que a instituição espera oferecer aos seus

alunos nos anos de sua escolaridade. Apresentamos adiante uma

sugestão de como o ensino deve ser abrangente, levando em

conta as principais áreas da lingüística moderna.

Um planejamento do ensino de português (deixando de lado

os estudos literários...) deveria abandonar completamente a

gramática normativa e desenvolver um trabalho epilingüístico,

principalmente no ensino fundamental (primeiro grau), no qual

as questões básicas da linguagem fossem tratadas através de

um processo de reflexão sobre elas.

Por causa da variação lingüística, sabemos que uma língua

não dispõe de normas (gramática normativa) que controlam o

Page 120: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

certo da norma culta e o errado das variações dialetais, e sim

regras (gramática descritiva) que mostram como todos os

falantes, cada um do seu jeito, no seu dialeto, usam a

linguagem. Uma gramática descritiva apóia-se em teorias

específicas, como têm demonstrado os lingüistas modernos.

Entretanto, para se chegar a essas teorias e a uma descrição

adequada dos fenômenos lingüísticos é preciso refletir sobre a

língua, num primeiro momento, usando apenas a intuição do

sujeito falante e conhecimentos básicos sobre a linguagem.

Depois o resultado dessa reflexão tornar-se-á uma interpretação

exata dentro dos domínios de uma teoria.

Ao processo de reflexão sobre os fatos da linguagem sem

"compromissos" preestabelecidos por determinada teoria,

chama-se epilingüismo. As aulas de português deveriam ensinar

os alunos a refletir sobre a linguagem, deduzindo explicações e

regras a partir de conhecimentos que vão sendo adquiridos na

escola e da intuição que qualquer falante nativo tem de sua

língua.

74

CAGLIARI, 1991a.

Um planejamento mais detalhado para o ensino fundamental

poderia ser, por exemplo, o seguinte:

Page 121: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

1º ano

Alfabetização: ensinar a criança a lei; explicar como funcionam

os sistemas de escrita, sobretudo a ortografia. História da

escrita. treinar o aluno na produção de textos espontâneos.

Desenvolver o gosto pela leitura individual e a participação em

atividades que envolvam o uso da fala no dialeto padrão. Visão

geral da aquisição da linguagem oral. Primeiras noções de

variação lingüística.

2º ano

Continuação do trabalho de alfabetização. Treino de leitura em

voz alta com pronúncia no dialeto padrão. Produção de narrativa

orais e escritas - Atividades de pesquisa envolvendo leitura

individual. Produção de textos de natureza diferente, como

cartas

notícias, etc. Introdução de noções básica de fonética e de

fonologia.

3° ano

Estudo mais sistemático de fonética e da variação lingüística.

Estudo das relações entre linguagem oral e linguagem escrita.

Autocorreção da ortografia. Produção de

textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa.

Page 122: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Exploração de textos literários, sobretudo poesia.

4° ano

Estudo mais sistemático de fonologia. Estudo das funções

básicas da linguagem e da pragmática, ou seja, dos usos da

linguagem oral e escrita. Produção de textos orais e escritos.

Leitura de lazer e de pesquisa. lJabaibo com contos e pequenos

romances.

5º ano

Estudo de morfologia. Noções básicas de sociolingüística, ou

seja, dos vínculos entre os usos da linguagem e a realidade

socioeconômica e cultural das pessoas (dialetos, por exemplo).

Produção de textos oriundos de pesquisas. Leitura de lazer e de

pesquisa. Cuidado especial na produção de textos orais. Leitura

de romances.

6º ano

Estudo de sintaxe, regência e concordância. Introdução à teoria

da literatura. Leitura literária orientada. Produção de textos mais

sofisticados. Apresentação das línguas indígenas brasileiras.

7° ano

Estudo de semântica lexical e argumentativa. Introdução à

Page 123: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

análise literária. Leitura de obras importantes da literatura

nacional e internacional. Estudo da história da língua

portuguesa. Produção de textos de pesquisa e de obras de

modelo literário.

8º ano

Estudo de lingüística textual (estudo da estrutura textual, tipos

de texto e de fenômenos como coerência e coesão) e de

psicolingüística (aquisição da linguagem, interação lingüística,

linguagem e pensamento). Relatos de pesquisas desenvolvidas

pelo aluno. Produção de textos literários e científicos. Leitura de

textos científicos, artísticos e de autores famosos da literatura

universal. História da ortografia. História da literatura.

Diante de um quadro como esse, percebe-se logo que um

aluno precisa apenas participar das atividades escolares normais

para ter o direito de passar de ano. Como verá coisas diferentes

a cada ano, a única exigência para sua promoção é saber ler e

escrever, o que deverá aprender no primeiro ano.

No ensino médio (segundo grau), podem-se introduzir teorias

lingüísticas adaptadas, num trabalho metalingüístico, estudando

a formalização das regras descobertas

<75>

no primeiro grau, interpretadas agora segundo uma teoria e

Page 124: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

formando uma gramática moderna descritiva da língua.

No terceiro grau (graduação), haveria um aprofundamento no

estudo da linguagem, através da reflexão epilingüística e da

formalização metalingüística, com vistas a um estudo crítico de

teorias.

Na pós-graduação, além do aprofundamento de conteúdos

teóricos e da especialização de conhecimentos em determinada

área da lingüística, os alunos deveriam tornar-se pesquisadores.

AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO

Aprender a ler e a escrever no primeiro ano não significa saber

tudo sobre a produção da leitura e da escrita, tampouco saber de

cor a forma ortográfica de todas as palavras. Também não

significa que o aluno possa escrever sem se preocupar com a

ortografia. O professor deve deixar o aluno começar escrevendo

como ele acha que as palavras são. Depois, deve ensinar o aluno,

desde o primeiro ano, a corrigir a ortografia e a passar a limpo

as suas lições.

Em termos mais específicos, a expectativa dos professores

alfabetizadores com relação a seus alunos no final do primeiro

ano poderia ser a seguinte:

• Saber ler algo novo que lhe é apresentado.

• Produzir textos espontâneos, não importando os erros de

ortografia.

Page 125: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

• Ser capaz de corrigir individualmente um texto, de modo a

eliminar os erros de ortografia, com o auxílio de um dicionário

ou fichário de palavras.

• Participar das atividades escolares.

• Reproduzir oralmente textos que lê (com total liberdade para

fazê-lo a seu modo).

• Preparar e ler um texto no dialeto padrão.

• Escrever com letras de fôrma e com letras cursivas.

Como se vê, a escola não pode fugir à sua missão. Basta fazer

um trabalho sério, competente e constante, que não precisará de

provas, testes, notas nem terá dúvida de que assim todos os

alunos serão legítimos merecedores de aprovação final. Por

outro lado, isso

<76>

não significa que todos os alunos terminarão o ano iguaizinhos.

A escola precisa saber lidar com as diferenças. É justamente nas

diferenças individuais que a sociedade se enriquece e a vida se

torna mais interessante.

A LIÇÃO DE CASA

Uma última observação a respeito de atividades escolares

relacionadas à avaliação diz respeito às lições de casa. Alguns

pais pensam que uma escola que não pede lição todos os dias é

Page 126: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fraca e ruim. Isso é um absurdo, principalmente nas primeiras

séries. Lugar de estudar é na escola, onde os alunos encontram

os professores e os materiais à disposição.

Em casa, podem eventualmente fazer uma tarefa ou outra,

mas normalmente farão outras coisas, sobretudo brincar e se

divertir. Criança precisa se divertir e, se não fizer isso em casa,

fará na escola. A criança precisa aprender desde cedo que há

hora de brincar e hora de estudar, lugar para brincar e lugar

para estudar. Se a escola não deixar os alunos brincarem em

casa, obrigando-os a fazer longas e difíceis tarefas, as crianças

acabarão passando a infância e a adolescência mal vividas e com

raiva justa e imperdoável desses professores irresponsáveis, que

infelizmente proliferam em nossas escolas. Um bom

planejamento escolar deve necessariamente abrir um espaço

durante o período de aulas para os alunos fazerem as tarefas

que o professor acha que eles devem fazer.

Essa carga de lição de casa já seria uma aberração em escolas

particulares, em que estudam as crianças mais favorecidas social

e economicamente. Nas escolas públicas, onde os alunos pobres

estudam, elas tornam-se um absurdo. Esses alunos não têm

condições de estudar em casa: não há lugar, não há livros, e

seus pais, em geral, pouco sabem para ensinar (alguns são até

analfabetos) e quase nunca têm tempo para essa tarefa, depois

de um dia de trabalho.

Page 127: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Mesmo em séries avançadas, é inconcebível que um pai ou

uma mãe tenha de colaborar com a escola, ensinando aos seus

filhos matemática, geografia, história ou coisas como predicativo

do objeto ou sujeito oculto. Isso é tarefa exclusiva da escola.

<77>

Muitos pedagogos equivocadamente insistem em querer que a

família seja uma extensão da escola, e em pretender que os pais

ajudem seus filhos a fazer suas tarefas escolares e a estudar as

lições, sobretudo para provas e exames.

Por outro lado, já desde as primeiras séries a escola deve

incentivar os alunos a criar o hábito de estudar em casa por

iniciativa própria, gastando nessa atividade uma pequena

parcela de tempo. A medida que vão crescendo, o tempo

dedicado aos estudos em casa deve ir aumentando e o tempo da

brincadeira e do lazer, diminuindo. É mais importante a

constância na atividade de estudo individual em casa, do que

gastar muito tempo de vez em quando. E, mais importante, é

preciso mostrar ao aluno que ele deve estudar sem envolver

seus familiares. Mas, para que isso aconteça, o professor não

pode passar tarefas todos os dias, nem que absorvam grande

parcela do tempo que o aluno dispõe fora do período escolar. Se

a criança tem de fazer enormes e complicadas lições, como

achará tempo para estudar, para ler? O hábito de estudar em

casa não deve prever somente assuntos escolares do momento.

Page 128: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Pelo contrário, deveria satisfazer uma certa curiosidade

científica e artística do gosto pessoal. Quando se ensina a

pesquisar e a trabalhar em sala de aula, o aluno poderá fazer o

mesmo em casa, não para dar satisfação ao professor, mas para

estudar o que ele, aluno, escolheu para si. Muitos cientistas e

artistas famosos desenvolveram grandes trabalhos por iniciativa

própria, estudando e trabalhando fora da escola, pelo gosto da

pesquisa e da arte e para realização pessoal, sem prova, sem

nota, sem professor, sem diploma. A escola que conseguir

formar alunos assim é a verdadeira escola.

<78>

4

O método das cartilhas

A CARTILHA NA ESCOLA E NA VIDA

Já comentamos que a cartilha era antigamente apenas um

abecedário; depois tornou-se uma tabela de letras, que

representava as escritas dos padrões silábicos da fala;

reestruturando-se em seguida em palavras-chave e sílabas

geradoras, deixando assim de ser apenas um livro para ensinar a

ler e tornando-se um livro para fazer exercícios de escrita. Então

começou a apresentar textos com palavras já estudadas pelos

alunos, numa ordem crescente de dificuldades, e foram

incorporados exercícios gramaticais e estruturais para o aluno

Page 129: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

desmontar e montar palavras. Tempos depois, recebeu a

companhia do manual do professor e uma seção especial,

dedicada ao período preparatório, cuidando da prontidão dos

alunos para a alfabetização. As tabelas de letras sumiram e até o

alfabeto não fazia mais parte da cartilha.

Adota-se esse tipo de livro didático até hoje amplamente.

Mesmo quando, por alguma razão, baseada em conhecimentos

adquiridos em treinamentos, ou através de simples

acompanhamento dos modismos da educação, alguns

professores deixam de usar as cartilhas, constata-se que o

método das cartilhas tem resistido muito mais às críticas e

encontra-se em praticamente todas as salas de aula de nossas

escolas.

Muitos professores fizeram sua própria cartilha, com material de

preparação de aulas elaborado em anos de trabalho. Alguns

chegaram até a publicar esse material, fazendo ver aos demais

colegas como conseguiram uma boa receita para a alfabetização.

Os próprios órgãos encarregados da educação, atendendo a

pedidos de professores, compram, todos os anos, uma

quantidade enorme de cartilhas para uso nas escolas públicas.

Há ainda aqueles professores (e Secretarias de Educação),

que, não querendo adotar uma cartilha, compram, em

substituição, livrinhos de histórias, os quais, além de reduzir o

trabalho de alfabetização a interpretações subjetivas dos textos

Page 130: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

e transformar a sala de aula em palco de fantasia sem fim, ainda

são usados por alguns professores para extrair o que antes eles

faziam com as cartilhas, agora de maneira muito mais confusa e

difícil.

A opção por um trabalho alternativo, sem cartilhas, exige,

antes de tudo, que se conheça como elas são, o que propõem,

como propõem, o que pretendem e,

<80>

principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão,

apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar

melhor o que representam as cartilhas no processo de

alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar

nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de

alguns professores, que conseguem obter resultados

surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim.

Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em

comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de

sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única

coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem

apresentado.

Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem

como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos

nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um

pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais,

Page 131: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização

através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé-

bi-bó-bu. É por isso que muitos professores não vêem outra

saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi-

bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das

cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto,

essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias

são organizadas em lições e passadas para os alunos.

Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada

lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das

lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao

mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim,

apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não

presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado

teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno

na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá

saber escrever e ler por conta própria.

Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma

palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba

geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em

seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba

destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com

elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na

lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que

Page 132: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

palavras

<81>

principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão,

apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar

melhor o que representam as cartilhas no processo de

alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar

nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de

alguns professores, que conseguem obter resultados

surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim.

Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em

comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de

sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única

coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem

apresentado.

Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem

como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos

nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um

pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais,

nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização

através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé-

bi-bó-bu. E por isso que muitos professores não vêem outra

saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi-

bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das

cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto,

Page 133: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias

são organizadas em lições e passadas para os alunos.

Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada

lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das

lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao

mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim,

apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não

presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado

teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno

na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá

saber escrever e ler por conta própria.

Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma

palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba

geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em

seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba

destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com

elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na

lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que

palavras

<81>

são desmontadas e remontadas com elementos feitos de sílabas

geradoras ou de pedaços de palavras. Ou, então, aparecem os

exercícios de "faça segundo o modelo". Há, ainda, um pequeno

"texto" para leitura, cópia e ditado, e que pode servir também

Page 134: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

para exercícios de interpretação de texto. Nas lições mais

adiantadas, além das tradicionais cópias, aparecem os exercícios

de escrita: "minhas primeiras frases" e "minhas primeiras

histórias". Recheando esse esqueleto, uma quantidade enorme

de atividades, que vão desde a colagem de letras e palavras

recortadas de jornais e revistas, até propostas de

representações teatrais pelos alunos. Em geral, essas atividades

dão a falsa impressão de que uma cartilha é diferente da outra.

Como se disse antes, elas são diferentes apenas na maneira

como aplicam o bá-bé-bi-bó-bu.

As cartilhas partem de uma concepção de linguagem segundo

a qual uma palavra é feita de sílabas, uma sílaba, de letras, uma

frase é um conjunto de palavras e um texto é um conjunto de

frases. Isso está evidente nas atividades de "desmonte" das

palavras e reagrupamento das unidades geradoras. Ora, a

linguagem tem esses aspectos, mas ficar apenas nisso produz

uma imagem distorcida. A linguagem é basicamente a união de

sons e de significados, tudo muito bem ligado, através das

diferentes estruturas gramaticais que exercem funções próprias

e que têm usos específicos nos diferentes contextos em que

ocorrem.

A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita

confunde as crianças, uma vez que passa a idéia de que a

linguagem é uma "soma de tijolinhos", representados pelas

Page 135: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

sílabas e unidades geradoras. Ora, as crianças aprenderam a

falar de outra maneira e, portanto, para elas, a linguagem

apresenta-se como um todo organizado de maneira muito

diversa daquela que a escola lhes mostra. No fundo, as cartilhas

deixam de lado toda a trama da linguagem, ficando apenas com

o que há de mais superficial. Isso faz com que os alunos passem

a fazer apenas um uso superficial da fala e da escrita nas suas

atividades escolares futuras.

A alfabetização gira em torno de três aspectos importantes da

linguagem: a fala, a escrita e a leitura. Analisando esses três

pontos, tem-se uma compreensão melhor de como são as

cartilhas ou qualquer outro método de alfabetização.

<82>

A CARTILHA E A FALA

A variação lingüística

A variação lingüística mostra como uma língua é composta de

inúmeros dialetos, que apresentam semelhanças e diferenças. As

semelhanças constituem a base comum que permite agrupar os

dialetos em torno de uma mesma língua. Com relação às

diferenças, algumas não causam estranheza, pois são aceitas

socialmente, como o fato de algumas pessoas falarem "tia" e

outras "tchia". Há, porém, diferenças que representam a fala de

pessoas pobres, que não usam a norma culta da língua, e que

são, pois, interpretadas de maneira preconceituosa pela

Page 136: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

sociedade como um modo errado de falar. Exemplos: "drento",

"drobar", em vez de "dentro", "dobrar", etc.

A cartilha simplesmente ignora tal realidade lingüística da

sociedade. O aluno vai seguir as lições da cartilha usando, desde

o começo, uma fala espelhada no modelo apresentado pelo

professor. Como a cartilha é um livro que se propõe a tratar dos

assuntos de maneira gradual, quase sempre lidando com

questões muito fáceis, pressupõe-se que os alunos acompanhem

sem dificuldade o uso da fala padrão, mesmo que em casa sejam

falantes de dialetos que apresentam enormes diferenças com

relação ao dialeto da escola.

A dificuldade do aluno surge quando ele se vê obrigado a

responder a perguntas formuladas pelo professor. Como não

domina a norma culta, fala seguindo seu próprio dialeto,

recebendo dos professores inúmeras correções, acompanhadas

ou não da zombaria dos colegas.

O idioleto do professor

Através da prática dos professores em sala de aula, percebe-

se que o que se entende por dialeto padrão é na verdade um

idioleto do professor. Ou seja, usa-se como modelo de fala uma

maneira especial de pronunciar certas letras, de modo a facilitar

a compreensão pelo aluno das relações entre letras e sons em

função das formas ortográficas das palavras. Obviamente, esse

Page 137: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

modo de falar inventado pelo professor é usado de modo

especial em certas atividades do processo de alfabetização,

como nos ditados ou nas explicações básicas da introdução de

uma lição nova.

<83>

Por ser um dialeto artificial, sem vida na sociedade, nenhum

professor conseguirá manter esse modo de falar o tempo todo,

porque ele também é um falante nativo de uma variedade

lingüística (dialeto). Quando o professor se esquece de que está

passando matéria, fala como se estivesse usando seu modo de

falar coloquial de fora da sala de aula. Alguns professores

convencem-se de tal maneira que aquela fala que inventaram

para ensinar os sons das letras é, de fato, a ideal, que acabam

tornando-se pessoas pedantes fora da escola, levando para o

dia-a-dia uma pronúncia estranha de professor de alfabetização.

Para ilustrar o que ficou dito acima, seguem alguns exemplos.

Um professor, para explicar aos seus alunos a diferença entre a

escrita de L e U, pronuncia todas as letras L com o som de L,

incluindo aquelas que já passaram a ter o som de U (mesmo na

norma culta, pronunciando "balde" em vez de "baudi"; "alto" em

vez de "autu", etc. Outro exemplo: o professor faia "ta-té-tchi-

tó-tu", "da-dé-dji-dó-du" (sem perceber que palataliza os "tis" e

"dis"), mas ensina que se deve dizer "balde" e não "baudji";

"póte" e não "pótchi", etc. Do mesmo modo, exige que o aluno

Page 138: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

leia "tudo" e não "tudu", etc.

Esses professores acham que, procedendo assim, farão com

que os alunos errem menos quando forem escrever. Esquecem-

se, porém, de que eles mesmos dizem "balde" porque conhecem

a forma escrita da palavra. O aluno, por sua vez, não sabe como

se escrevem as palavras e, conseqüentemente, não pode saber

quando se usa L ou U: é "falta" ou "fauta"? é "flauta" ou é

"flalta"? Somente quem sabe escrever saberá responder

corretamente a perguntas como essa.

O método das cartilhas não leva em conta, no entanto, que a

maior dificuldade dos alunos, sobretudo daqueles que não são

falantes da norma culta em uso na sociedade, é aprender que

nem tudo o que eles falam fora da escola está de acordo com a

norma culta. Para esses alunos, falar palavras como "casa",

"batata", tem o mesmo valor de palavras como "drentu",

"drobar", "uzómitrabaia", "pranta", etc. E verdade que esses

alunos terão mais facilidade para escrever corretamente as

palavras depois que aprenderem a norma culta, mas pressupor

tal conhecimento como estratégia para aprender ortografia é

algo descabido. Ortografia se aprende de outra maneira.

Nota

Idioleto: variedade lingüística típica de um indivíduo: não

pertence a um dialeto (variedade lingüística comum a muitas

pessoas). XAVIER & MATEUS, 1990.

Page 139: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<84>

A silabação

Outro problema sério que o método das cartilhas (o bá-bé-bi-

bó-bu) traz é o uso da silabação a todo instante. Tudo gira em

torno da silabação. Isso faz com que o aluno passe a pensar que,

para ler, é preciso silabar (silabar para decifrar a escrita e

silabar para ter uma pronúncia bonita, bem-articulada). Alguns

levam até para a própria fala essa pronúncia silabada. Ao fazer

isso, o ritmo e a entoação (para não falar de outros elementos

prosódicos da fala) ficam totalmente modificados,

descaracterizando a fala natural, com conseqüências como

pedantismo e preciosismo, de quem fala assim, e, sobretudo,

com dificuldades de expressão do falante e de compreensão

geral dos textos.

A cartilha ensina os alunos a silabarem e depois quer que eles

leiam com fluência: isso é contraditório! As crianças aprendem a

falar e dizem tudo de maneira adequada nas mais diferentes

circunstâncias da vida, justamente porque, como falantes

nativos, aprenderam a agir assim e nisso são perfeitas. Poderiam

aprender a ler usando esse mesmo comportamento fonético.

Porém, a escola destrói essa habilidade já conquistada, porque

acha que falando naturalmente os alunos não irão aprender a

Page 140: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

grafar corretamente as palavras nem a ler no dialeto padrão. Há

um equívoco educacional nessa atitude escolar.

Observando a fala para escrever

Quando vão aprender a ler e a escrever, as crianças têm, como

única referência de conhecimento já adquirido, a própria fala.

Elas observam demais a própria fala, nesse momento. A cartilha,

porém, ignora esse fato e, aos poucos, induz os alunos a

interpretarem os fenômenos fonéticos da fala, tendo como

modelo a forma escrita das palavras e não a realidade fonética.

Depois de certo tempo, os alunos já não conseguem sequer

analisar a própria fala ou a de outras pessoas, a não ser através

da escrita ortográfica. E uma pena.

<CAGLIARI, 1989b. >

A escola deveria aproveitar essa habilidade de percepção da

fala que as crianças têm para explorar a linguagem oral cada vez

mais e fazer com que essas análises se tornem conhecimentos

solidamente estabelecidos. Isso é importante e servirá como um

recurso significativo para se entender muitos outros aspectos da

natureza da linguagem. Até para aprender ortografia é uma

excelente estratégia, porque o aluno não ficará mais tentando

achar a forma ortográfica, falando possíveis pronúncias de

professores alfabetizadores, mas saberá que a fala funciona

diferentemente da ortografia. É muito importante passar da

Page 141: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

habilidade de falar naturalmente uma língua para a de ler textos

com fluência: para tanto, a cartilha precisa mudar radicalmente

sua postura diante da linguagem oral.

Confusão entre fala e escrita

As cartilhas apresentam praticamente a cada passo erros

grosseiros de fonética, porque confundem fatos da fala com

fatos da escrita. Um exemplo clássico encontra-se na

interpretação dos valores fonéticos da letra X, em que se

distinguem o que alguns professores chamam os sons S e SS

quando, na verdade, eles representam um único som, como se

pode comprovar, observando a pronúncia de palavras como

"próximo" e "extra" (para os que falam "éstra" e não "échtra").

Outro fato notório é que a cartilha considera a mesma coisa o BA

de "banho" e o de "batata".

Como a cartilha está completamente equivocada a respeito do

funcionamento da fala e como a maioria dos professores não

recebe uma formação lingüística adequada, em particular com

relação à fonética, muitas explicações relacionadas a certos

erros da fala ou da escrita que alguns alunos cometem na

alfabetização chegam às raias do ridículo, como aquelas relativas

às famosas trocas de letras.

Dificilmente se encontra um professor que faça uma análise

correta desses erros. Eles acham que os alunos têm problemas

Page 142: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

auditivos (há sempre uma deficiência qualquer quando aparece

um erro na alfabetização), que os alunos falam errado porque

vivem constantemente distraídos, que não sabem observar

corretamente as letras, que não são capazes de memorizar

diferenças elementares, como as pronúncias de "vaca" e "faca",

etc.

A incompetência desses professores fica evidente quando se

pede para que analisem (ou escrevam) palavras inventadas (sem

ortografia definida), como, por exemplo, "vixrrabzó" (com a

letra X representando o som de CH). Em primeiro lugar, eles não

são capazes de ouvir direito e têm dificuldade em memorizar,

exigindo que o enunciado seja repetido inúmeras vezes. Não

sabem se existe ou não um I depois do X, estranham se lhes é

perguntado se o RR é surdo ou sonoro,

<86>

trocam V por F, B por P, Z por 5, exatamente como fazem seus

alunos, de quem eles tanto reclamam. O pior de tudo é que esses

professores nem sequer são capazes de entender os erros que

eles próprios cometem.

Haverá sempre aquelas pessoas que acabam concluindo que,

apesar de todos esses problemas, os professores alfabetizam e

os alunos aprendem (pelo menos alguns). E isso, é necessário

admitir, é verdade. Acontece, porém, que a escola não pode

adotar essa postura: ela não faz sentido. Se podemos ter um

Page 143: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ensino decente, por que nos contentarmos com um ensino

indecente?

< CAGLIARI, 1984b. >

Veja "Ditados e ditadores"

(CAGLIARL 1990, p. 94-117, no qual se relata uma pesquisa

realizada a partir de um ditado especial feito para professores

alfabetizadores e os resultados obtidos.

A CARTILHA E A ESCRITA

A cartilha moderna apresenta um método de alfabetização

baseado na aprendizagem da escrita (e não da leitura, como

antigamente). Tudo na cartilha gira em torno da escrita. Até a

fala dos professores que seguem a cartilha imita a escrita e não

a linguagem oral dos falantes nativos da língua. Essa visão

centrada na escrita será levada pelos alunos até o dia em que

puderem estudar seriamente lingüística e aprenderem que a

escrita é apenas uma forma de representação gráfica de alguns

elementos fonéticos da linguagem e esta, na sua essência, é

oral.

A escrita prevalece sobre a fala

Depois que a cartilha passou a fazer parte da escola, os

Page 144: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

estudos sobre a oralidade ficaram praticamente excluídos: tudo

é feito por escrito. A escrita, então, passou a ser considerada

algo nobre, perfeito, portador do pensamento lógico e literário,

ao passo que a fala começou a ser considerada algo vulgar, uma

linguagem cheia de erros e falhas, deselegante, incapaz de

traduzir o pensamento mais sofisticado da cultura.

Infelizmente esses são grandes preconceitos de nossa cultura.

As pessoas esquecem-se de que sem a linguagem oral sequer

poderia haver linguagem escrita. A escrita requer decifração

para ser entendida, e decifrar é devolver o texto escrito à forma

oral de realização da linguagem. É uma ilusão pensar que se

pode passar diretamente da decifração da escrita para o

pensamento puro, sem passar pela organização da linguagem

humana,

<87>

a qual, na sua essência mais profunda, nada mais é do que a

união de significados com sons da fala.

Embora a cartilha tenha em tão alta estima a escrita e faça com

que tudo, no processo de alfabetização, gire em torno dela,

constata-se que ela não sabe quase nada a respeito dos sistemas

de escrita e, pior ainda, divulga muitas idéias estranhas e

erradas a respeito desse assunto.

A palavra

Page 145: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Sem dúvida alguma, a palavra é a unidade principal de todos

os sistemas de escrita. A cartilha foi além: não só assumiu isso,

como passou a trabalhar como se a palavra escrita fosse a

unidade mais importante da linguagem, o que é falso. Na

verdade, a palavra, como unidade lingüística, é algo muito

confuso e de difícil definição e manipulação. A grande prova

disso pode ser encontrada na própria alfabetização, observando-

se a dificuldade que os alunos têm no começo para segmentar a

própria fala em palavras, seguindo os padrões da escrita.

Todavia, a palavra é o centro das atenções da cartilha. Pode-

se até ter uma frase ou um pequeno texto, junto com as lições,

porém o que vale não é o texto em si, mas o fato de ele conter

apenas palavras já estudadas. Uma frase é pura e simplesmente

uma seqüência de palavras. Do significado de cada palavra, tira-

se o significado total do texto. Essa é uma visão muito

reducionista da linguagem humana, a qual, no entanto, fica tão

marcada na formação dos alunos, que eles podem continuar com

essa idéia pelo resto da vida. Desse modo, a linguagem como

expressão do pensamento e como ação sobre o mundo fica

destruída. Essa é uma das razões pelas quais muitos alunos têm

dificuldades em lidar com a linguagem na escola e fora dela,

escrevem sempre coisas estranhíssimas nos seus textos e têm

enorme dificuldade para entender as sutilezas (e às vezes até as

coisas mais óbvias) da linguagem.

Page 146: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O que a cartilha faz diante da palavra escrita que ela considera

a essência da linguagem? Começa um jogo de desmonte e

remontagem, pressupondo-se agora que as palavras são feitas

de pedacinhos que se juntam. Esses pedacinhos, é claro, serão

organizados em famílias, compostas de uma consoante mais uma

das cinco vogais da escrita. Assim, a família do B é constituída de

ba-bé-bi-bo-bu. Como resquício do princípio acrofônico,

<88>

tradicionalmente ligado ao alfabeto, cada família recebe uma

palavra-chave, que servirá de recurso mnemônico. Por exemplo:

BARRIGA será a palavra-chave para a família do bá-bé-bi-bó-bu.

Como um dos objetivos do monta-e-desmonta é associar letras

às sílabas da linguagem oral, estudam-se primeiro as famílias

mais simples, constituídas de uma consoante mais uma vogal

(usando apenas as letras disponíveis na escrita, não os fonemas

que cada letra apresenta na fala), e depois as famílias em que

aparecem grupos de consoantes, como a família do chá-ché-chi-

chó-chu, do prá-pré-pri-pró-pru, etc. Finalmente, são estudados

os casos em que ocorre uma consoante no final de sílaba, como

nas palavras an-jo, cam-po, etc.

As cartilhas apresentam os piores textos, elaborados por

"razões pedagógicas", para gerar as unidades das lições com os

elementos já dominados. Basta comparar os textos das cartilhas

com os textos espontâneos das crianças para perceber

Page 147: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

imediatamente como os primeiros são ridículos e idiotas. Os

textos das cartilhas não lidam adequadamente com os elementos

coesivos e, às vezes, nem com a coerência discursiva, o que faz

deles péssimos exemplos para os alunos.

<MASSINI-CAGLIARI, 1997a. >

Elementos coesivos dizem respeito àquelas palavras que fazem

referência a outras mencionadas antes num texto, com os

pronomes substituindo nomes, advérbios, etc. A coerência

discursiva refere-se ao fato de se manter uma lógica nas

afirmações que o texto traz, um compromisso com a verdade do

texto, e ao fato de se passar de um assunto a outro mantendo

uma relação harmônica entre as partes.

Muitos alfabetos

Mas há outros aspectos da escrita a serem considerados.

Nenhuma cartilha explica a seus usuários que usamos

"diferentes alfabetos", como ABCÇDEFG... e abcçdefg...

Certamente, o professor dirá que temos letras maiúsculas e

minúsculas (além das letras de fôrma ou imprensa e das letras

cursivas ou manuscritas). No entanto, o essencial, que é o fato

de existirem alfabetos diferentes, nesses casos, passa

despercebido. Uma letra maiúscula pode ser escrita em tamanho

Page 148: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

menor do que uma letra minúscula, porque não é o tamanho que

conta, mas a forma gráfica. Alguns alunos têm grandes

dificuldades para perceber que letra é um valor abstrato ao qual

podemos associar uma variedade de alfabetos diferentes. E a

cartilha não explica isso. Os alunos acabam constatando por si,

depois de certo tempo, mas isso pode ser um processo longo e

difícil.

A escrita cursiva

O método das cartilhas tem uma preferência declarada pela

escrita cursiva, embora isso não fique evidente ao analisarmos

os próprios livros, nos quais se utiliza

<89>

também a letra de imprensa. Para se ter uma idéia da

importância da escrita cursiva na alfabetização, é preciso

analisar o que acontece nas salas de aula e nos cadernos dos

alunos — e não apenas nas cartilhas. Essa atitude de valorizar a

escrita cursiva revela um preconceito da escola e um equívoco

sério. Ninguém nega que a escrita cursiva seja importante, que é

mais fácil escrever rapidamente na forma cursiva do que usando

letras de fôrma. Também é verdade, porém, que a letra cursiva

representa essas vantagens apenas para as pessoas que já estão

muito familiarizadas com a escrita e com a leitura, ou seja,

pessoas já alfabetizadas. Para quem está aprendendo, a letra de

Page 149: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fôrma — especialmente a maiúscula — proporciona um material

gráfico melhor para a leitura e até para as primeiras escritas.

Tanto isso é verdade que as crianças quando estão passando dos

rabiscos para as primeiras formas gráficas utilizam

espontaneamente a letra de fôrma, mesmo estando habituadas a

ver as duas formas de escrita no seu cotidiano.

A escrita cursiva é uma maneira de adaptar o grafismo das

letras aos maneirismos pessoais: por isso, freqüentemente se

constata que é difícil ler a letra do outro. A escrita cursiva

apresenta um traçado de letras ligadas, facilitando uma escrita

rápida, que, por outro lado, dificulta o trabalho de leitura. Como

exige uma ação mais complexa do usuário pela sua natureza

gráfica, a escrita cursiva torna-se mais difícil para quem não tem

prática. Os alfabetizadores gostam dela também por essa razão,

uma vez que, sendo mais difícil de elaborar, permite avaliar

melhor se um aluno está aprendendo ou não a traçar as letras.

A escrita cursiva tem um uso quase exclusivamente pessoal.

Com o grande desenvolvimento tecnológico das máquinas de

escrever (chegando até os computadores), a escrita deixou de

ser feita à mão, ficando essa atividade restrita a pequenas notas

pessoais. Isso fez a escrita cursiva perder um pouco da sua

importância no mundo moderno. Apesar disso, o método das

cartilhas e a escola continuam insistindo na escrita cursiva.

Alguns professores acham que, se os alunos começarem a

Page 150: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escrever com letras de fôrma, não vão aprender a escrever com

letras cursivas, e no processo de alfabetização o alvo a ser

atingido é a bela escrita cursiva, redondinha, igual para todos.

Padronizar a escrita cursiva desse modo é ir contra a sua própria

natureza, cuja característica fundamental é ser uma expressão

gráfica individualizada.

<90>

Equívocos a partir da escrita cursiva

Um certo número de erros encontrados nas tarefas escolares

dos alunos deve-se a confusões causadas pelo uso da escrita

cursiva. Como ela deforma certas letras quando agrupadas, fica

difícil saber exatamente onde começam e onde terminam

algumas letras e até mesmo quais os elementos gráficos que as

constituem. É por isso que um aluno pode pensar que, na escrita

cursiva a letra "b" é formada por traços que se assemelham às

formas da letra "I", seguida dos de uma letra

— A. "v"; ou que a letra "h" é uma combinação de "I" e "s";

que a letra "A" é formada de um "C" e "e". Ou, ainda,

P — O que a letra "a" e a letra "d" são a mesma coisa,

distinguindo-se apenas pelo som que têm nas palavras (assim

como o "t" e o "tch", em palavras como TV e TIA,

— etc.). O aluno pode até constatar que há uma diferença na

Page 151: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

altura da "perninha", que também varia, de caso para caso.

Afinal, esse tipo de variação acontece a todo instante e nunca foi

considerado relevante, por que seria então no caso de "a" e "d"?

Dificuldades como essas em geral passam despercebidas pela

maioria dos professores, os quais se contentam em apagar o erro

do aluno e mostrar a forma certa.

Há outros problemas da escrita com os quais a cartilha não

lida adequadamente. Por exemplo, há uma série de exercícios e

orientações que vem desde o período preparatório, esclarecendo

à criança que se escreve da esquerda para a direita. Quando diz

isso ao

aluno, o professor está pensando na ordem das letras nas

palavras. Porém, o aluno pode pensar de outra maneira seguindo

a instrução recebida e entendida dentro do quadro de suas

dificuldades particulares, alguns alunos acabam escrevendo de

forma espelhada letras

esquerda como S, C, etc., em início de palavras. Uma letra puxa

outra e de repente o aluno está escrevendo a palavra e

até a frase inteira de forma espelhada. E o professor

(mal-informado) pode achar que essa criança tem problema de

lateralidade cerebral, um caso sério para a

medicina resolver.

Escrita sem sistema

Page 152: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Como a cartilha não apresenta nem discute, em momento

algum, a natureza, a função e os usos dos sistemas de escrita,

alguns alunos acabam enveredando por caminhos complicados,

em geral becos sem saída para si e para o professor. É o caso

daquele aluno que faz

<91>

uns rabiscos e diz que escreveu seu próprio nome. O professor

pensa que ele está "doido", sobretudo porque, ao ser indagado,

o aluno mostra que sabe ler o que escreveu. Esse mesmo

professor, que concluiu que seu aluno era "doido", horas depois

vai ao banco, assina um cheque fazendo exatamente o que fez

seu discípulo e não acha nada estranho; pelo contrário, orgulha-

se de ter uma assinatura exótica, cheia de rabiscos.

O aluno provavelmente levou para a sala de aula algo que

constatara na vida: as pessoas assinam o próprio nome — isto é,

escrevem — fazendo rabiscos.

Cópias e ditados

Através de cópias e ditados, o trabalho prossegue, até que o

aluno passe por todas as lições, podendo, então, ganhar seu

famoso diploma de alfabetização. O aluno, nesse meio tempo, vai

desmontando e remontando palavras para ver o que acontece:

não tem liberdade nem lhe é facultado ter qualquer iniciativa

para escrever o que gostaria. Pelo contrário, toda aventura

Page 153: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

individual pode levar ao erro, e o erro pode ser irremediável. Por

isso, ninguém pode escrever nada, a não ser o que já tenha

estudado com o professor.

Os alunos copiam palavras muitas vezes para fixar sua forma

ortográfica; depois, copiam as primeiras frases e, finalmente, os

primeiros textos. Somente depois de terminada a cartilha,

podem começar a escrever frases por iniciativa própria e, mais

adiante, os primeiros textos. Antes de chegar a este ponto, tudo

é feito de maneira coletiva: todos realizam a mesma tarefa, da

mesma maneira, no mesmo momento.

A cartilha pensa que ensina a ler, por meio de cópias e ditados

e desmontando e montando as palavras em famílias de letras. A

cartilha jamais discute a leitura em si, a decifração. Somente em

dois momentos (e de maneira equivocada) trata das relações

entre letras e sons:

quando apresenta os dois sons do E e do O, e os cinco sons do X.

O que falta no estudo da escrita

Infelizmente, a cartilha não apenas trata a escrita de maneira

inacreditavelmente equivocada, como deixa de tratar de muitos

aspectos da escrita que são interessantes e importantes e que,

por essa razão, deveriam começar a ser estudados desde a

alfabetização.

<92>

Page 154: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A história da escrita deveria fazer parte das preocupações da

escola e dos livros didáticos desde a alfabetização. As crianças

adoram ouvir histórias e a da escrita é verdadeira e fascinante.

Em particular, deverse-ia contar a história das letras do alfabeto,

os diferentes tipos de letras (ou estilos) que o alfabeto latino

produziu ao longo da história do Ocidente. Seria interessante

apresentar ainda, mesmo que sumariamente, um relato sobre a

ortografia da língua portuguesa, para mostrar aos alunos de um

modo muito interessante como a ortografia funciona numa

sociedade.

O mundo em que vivemos está cheio de escrita ideográfica,

feita com pictogramas ou com caracteres convencionais. Esse é

um aspecto interessantíssimo para ser explorado pela escola e,

conseqüentemente, pelas cartilhas, na alfabetização. Os alunos

podem inventar sistemas de escrita seguindo modelos

conhecidos. Podem experimentar escrever o que quiserem com

eles e testar se as demais pessoas conseguem ler ou não,

conferindo, assim, os limites e a importância da

convencionalidade na escrita. Uma atividade como essa permite

ao aluno ler e escrever logo

no primeiro dia de aula, o que pedagogicamente é motivo de

grande alegria e de entusiasmo para os alunos e grande

motivação para continuarem explorando novas formas de escrita

até chegar à escrita

Page 155: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

com as letras do alfabeto.

A escola precisa explicar como funciona o sistema de escrita, o

que são letras, como se decifra uma escrita com letras, o que é

escrever à moda de uma transcrição fonética — com a qual os

lingüistas registram

os sons da fala de acordo com a pronúncia de cada um — e

comparar esses modos de escrever com a escrita ortográfica. A

escola precisa explicar o que é ortografia, como funciona, como

os alunos fazem para

escrever respeitando a ortografia, para corrigir os textos que

produzem, para tirar dúvidas. A escola precisa não incutir nas

pessoas o medo de escrever errado alguma palavra de

conhecimento comum. Para isso, ela precisa ensinar os alunos,

primeiro, a aprender a escrever e, depois, a escrever de acordo

com as regras ortográficas, sem medo de ter dúvidas, de

perguntar, de buscar informações nos dicionários ou com as

pessoas que sabem, porque ninguém passa pela vida sem ter

dúvidas de ortografia. Às vezes, temos uma imensa dúvida

ortográfica com uma palavra que parecia conhecida, familiar,

que sempre escrevemos. Se a sociedade

<93>

fosse melhor preparada pela escola, não se escandalizaria

diante dessas dúvidas. Mas do jeito que a cartilha trata o

assunto, parece burrice não ter certeza sobre a ortografia das

Page 156: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

palavras. É óbvio que a escola vai cobrar dos alunos que

memorizem a ortografia das palavras de uso comum, de acordo

com o nível de escolaridade, mas poderia ser muito mais

benevolente com os erros. E quando não se sabe como se

escreve uma palavra, não adianta pensar, refletir, especular: é

preciso perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário.

A pior conseqüência da maneira como a cartilha trata a escrita

na alfabetização decorre inegavelmente da sua concepção de

texto. Mas esse ponto terá um tratamento especial, mais

adiante.

A CARTILHA E A LEITURA

Como a cartilha ensina a ler

Existe uma leitura que é a decifração da escrita, que a cartilha

pensa ensinar aos alunos quando mostra as famílias de letras e

propõe exercícios de desmonte e remontagem de palavras. E é

só o que os livros apresentam. Como a cartilha tem uma maneira

equivocada de tratar a escrita, a leitura também fica

prejudicada, pois depende crucialmente da escrita. Alguns

alunos chegam mesmo a explicitar o processo de decifração que

aprenderam, dizendo, por exemplo, "le-a-la, te-a-ta" ao tentar

ler "la-ta". Quando chega o momento da leitura, alguns

professores obrigam seus alunos a acompanhar com os olhos

Page 157: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

letra por letra, uma depois da outra, decifran do-as

individualmente e falando o que estão lendo. Os mais espertos

acabam realizando uma leitura silabada que, com o tempo, pode

até adquirir velocidade suficiente para dar a impressão de

fluência. Todavia, não raramente ocorre que, mesmo esses

alunos fluentes e rápidos na leitura, quando acabam de ler um

texto, não são capazes de lembrar o que leram, a não ser uma ou

outra palavra (geralmente aquelas que apresentaram dificuldade

de leitura, em que o aluno gaguejou, parou para pensar...).

Do modo como a cartilha trata a escrita e a fala, é quase

impossível que um aluno, na alfabetização, leia

<94>

com o devido ritmo e a desejada entoação. As cartilhas

preferem leituras coletivas às silenciosas, sem cobranças. Os

alunos são solicitados freqüentemente a ler de surpresa um

texto novo (é claro, composto só de palavras já estudadas, ou de

palavras com sílabas das famílias de letras já dominadas).

Preparar uma leitura com antecedência vai contra os costumes

das cartilhas. A leitura de improviso é mais uma atividade para

testar se o aluno aprendeu ou não a lição, se já dominou um

determinado conteúdo ou não. Para um aprendiz ler em voz alta,

como deveria ser a leitura, ele precisa decifrar a escrita com

facilidade, o que, nos primeiros meses de alfabetização, não está

ao alcance da maioria dos alunos.

Page 158: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A cartilha usa, ainda, a leitura como forma de ensinar e fixar a

pronúncia da norma culta, freqüentemente exigindo dos alunos

uma leitura com uma pronúncia artificial.

A interpretação de textos segundo a cartilha

O método das cartilhas introduziu uma nova atividade quando

percebeu que alguns alunos, bons leito res, não eram capazes de

dizer com as próprias palavras o que tinham lido. Essa atividade

é a interpretação de textos.

Qualquer texto passou a ser um pretexto para colocar em

prática aquela atividade. Mais uma vez, a cartilha meteu as mãos

pelos pés. Fazer interpretação de texto passou a ser preencher

os vazios de perguntas feitas com trechos do texto. Por exemplo,

se o texto diz: "Maria foi visitar a vovó", pergunta-se: "Quem foi

visitar a vovó?" "Maria foi fazer o que na casa da vovó?" "Maria

foi visitar a..." Ora, achar que um falante nativo de português

não é capaz de ouvir (ou ler) uma frase banal como essa e não a

entender é um insulto à racionalidade da pessoa.

Alguns professores, que preferiram trocar os textos das

cartilhas por "livros paradidáticos", passaram a dar importância

exagerada à interpretação de textos, reduzindo suas aulas a

essa atividade. Nesses casos o professor costuma propor um

longo exercício de perguntas e respostas, em um momento

inoportuno para esse tipo de atividade, já que o aluno mal sabe

Page 159: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ler. O que os alunos gostariam mesmo de fazer era aprender a

ler e a escrever, para ler por si e escrever suas historinhas como

bem quisessem.

<95>

OUTROS PROBLEMAS DAS CARTILHAS

O método das cartilhas tem outros problemas que não são

menos graves do que aqueles relativos à fala, escrita e leitura.

Alguns deles merecerão aqui um destaque.

Aprender em ordem

O princípio da progressão controlada, baseado na idéia dos

elementos já dominados, ordenando as dificuldades

progressivamente com cronogramas minuciosos, estabelecendo

o que vem antes e o que vem depois no ensino e na

aprendizagem, amarra de tal forma o processo de alfabetização

que os alunos passam a fazer apenas o que o professor manda.

Por outro lado, esse princípio serve de base para a avaliação que

permite ao professor passar para a lição seguinte ou não. Como

tudo vem rigidamente em seu lugar, quando o aluno erra, deve

voltar atrás e repetir a lição. O princípio da progressão

controlada pressupõe que apenas o elemento novo introduzido

na lição constitui dificuldade para o aluno, uma vez que o resto

"já foi dominado". Acontece, porém, que à medida que os alunos

avançam, acabam se esquecendo de coisas já vistas, e isso gera

Page 160: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

uma enorme confusão na aplicação do método. A única saída

para esses casos é separar os alunos atrasados em classes

especiais, onde começarão tudo de novo. Para alguns alunos,

esse processo irá se repetir até que ele abandone a escola,

julgando-se incapaz nos estudos.

O entulho gramatical

As cartilhas costumam trazer exercícios de gramática que são

verdadeiros entulhos jogados nas lições para preencher o tempo

dos alunos com atividades de linguagem. Esses exercícios

tratam, sobretudo, de gênero, de número e de graus das

palavras. Há, ainda, exercícios de identificação de categorias

gramaticais. Querer ensinar essas coisas na alfabetização é um

desastre. Como não há explicações sérias, apenas exercícios

como "faça segundo o modelo", nota-se que muitos alunos

erram, nesses exercícios, coisas que, de fato, conhecem

perfeitamente, como falantes nativos da língua. Assim, um aluno

ao ser perguntado sobre o feminino de "o pai" escreve "o paioa";

de "tio", escreve "tioa".

<96>

Nenhum falante confunde "pai" com "mãe" ou "tio" com "tia", a

não ser fazendo exercícios gramaticais como esse. Resumindo,

esses exercícios não só não ensinam nada, como ainda induzem

os alunos a errar. Para muitos alunos, parece mais natural que o

Page 161: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aumentativo de "macaco" seja "grande macaco" ou "gorila" ou

talvez até "cigecougue" (King-kong), mas não "macacão". Para

elas, definitivamente, "macacão" é um tipo de roupa.

Metáfora e fantasia

Faz parte da praxe das cartilhas conduzir um processo de

ensino em que se diz quase tudo de maneira metafórica,

indireta, evitando um tratamento sério, objetivo, preciso e direto

das verdades que se devem ensinar. Por se tratar de crianças,

alguns professores falam com seus alunos como se todos

vivessem num mundo de fantasia. Supõem que as crianças não

conseguem acompanhar uma explicação correta e objetiva,

precisando sempre aprender através de subterfúgios

pedagógicos. Então, sílaba virou "pedacinho", as palavras-chave

precisam ser apresentadas através de uma história fantasiosa e

representar uma idéia importante no texto básico da lição. Para

tudo, deve haver uma história e, se possível, uma musiquinha

para cantar, cuja letra repita inúmeras vezes os elementos da

lição. Tudo precisa vir acompanhado de gravuras, figuras, com

muito colorido e enfeites.

Ninguém contesta o fato de que as crianças gostam de

histórias e se divertem em meio a esse clima de sala preparada

para festa de aniversário; porém, quando vão para a escola,

sabem que não estão indo a uma festa, mas a um lugar sério,

Page 162: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

onde se aprendem coisas sérias, úteis para a vida e, portanto,

importantes. Elas têm essa consciência da seriedade. A escola,

não obstante, às vezes torna-as levianas e comodistas.

O excesso de histórias, na maioria das vezes sem nenhuma

graça, apresentadas apenas como pretexto pedagógico, acaba

levando a um ensino absurdamente metafórico. Evita-se a todo

custo falar de como as coisas são na realidade. Na prática

tradicional das cartilhas não se podem usar termos técnicos. As

letras não têm nomes: em vez de U, os alunos dizem "a letra do

chifre"; a letra o é "a letra da boca", porque foi com o desenho

dos chifres do boi que aprenderam a escrever a letra U, e com o

desenho de uma boca aberta que aprenderam a letra Q

<97>

Remanejamento para evitar problemas

A cartilha equivocadamente confunde ensino com

aprendizagem, avaliação com promoção, favorecendo uma

atitude de segregação dentro da escola e da própria sala de aula,

com os remanejamentos de alunos para classes especiais. Tudo

precisa ser avaliado e receber uma nota, e o que saiu errado

precisa ser refeito, até acertar. O método das cartilhas procura

uma homogeneização que destrói a iniciativa individual, partindo

do princípio de que educar é fazer com que todo o mundo saia da

escola exatamente com a mesma cara. O diferente é combatido e

não pode existir na escola. As diferenças individuais não são

Page 163: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

permitidas porque não podem ser avaliadas através de testes

coletivos, iguais para todos.

As cartilhas representam a prática de métodos mecanicistas,

bons para adestramento, para condicionamento, mas muito ruins

para quem quiser usar a reflexão para construir o conhecimento.

Na cartilha, tudo vem pronto para o aluno, basta digerir: não há

lugar para uma reflexão autônoma, para uma livre iniciativa,

para a criatividade, para continuar com as características

próprias. A uniformização é um imperativo.

O erro não tem vez

Como as cartilhas não sabem lidar com as diferenças no

processo de aprendizagem e como prevêem somente o certo,

nenhum erro será objeto de estudo. Por essa razão, não

encontramos nas cartilhas, nem nos manuais de professores,

formas de proceder quando um aluno não aprende algo que o

professor explicou direitinho, segundo manda o figurino. Os

professores sabem, por experiência própria, que é difícil ensinar

a ler e a escrever, mas quem analisa uma cartilha fica com a

impressão de que tudo é tão simples e perfeito, que ninguém

nunca erra nem tem dúvidas.

As cartilhas são implacáveis com relação a quem não entra no

esquema e, por isso, não têm nenhuma sugestão para o

professor aproveitar quando a evidência dos fatos da vida

Page 164: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

mostra claramente que o método não funcionou. A única saída é

repetir tudo de novo, da mesma maneira, remanejar a criança

para uma classe de alunos com dificuldades de aprendizagem, os

chamados "alunos carentes". E se não se corrigirem, a saída da

escola é a solução para o problema.

< CAGLIAR!, 1985b e 1986b.

<98>

O fascínio pelo já pronto

A maioria dos professores que usam o método das cartilhas foi

informada de que essa ou aquela cartilha é, de fato, um grande

livro didático, com métodos excelentes de alfabetização,

comprovados desta e daquela maneira. Ouviram dizer que tal

colega usa tal cartilha e seus alunos são alfabetizados da melhor

maneira possível. Por falta de espírito crítico, por falta de

competência necessária para discutir a questão a fundo e

seriamente, muitos professores continuam achando que a

melhor maneira de alfabetizar é pelo método das cartilhas, se

possível, seguindo o próprio livro didático.

Outros (poucos?) preferem as cartilhas pela comodidade de

aplicar em sala de aula um método já pronto, escolhendo, de

preferência, aquelas que vêm com toda a parafernália didática

preparada para o ano letivo.

Há ainda o interesse econômico, que tem feito das cartilhas

Page 165: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

um negócio muito lucrativo, sobretudo junto aos órgãos públicos

encarregados da educação. Para um bom trabalho de

alfabetização, sobretudo nas es colas públicas, é mais

importante ter lápis e papel do que cartilhas. Apesar de tudo, o

governo insiste em distribuir cartilhas, esquecendo-se do lápis e

do papel. Em algumas escolas, os alunos recebem um belo livro e

fazem as lições com tocos de lápis e sucata de papel de

escritório.

SUBSTITUTOS DAS CARTILHAS

As considerações acima mostram como é problemático o uso

do método das cartilhas na alfabetização. Mas, se a cartilha é tão

ruim assim, o que fazer para alfabetizar sem a cartilha e,

sobretudo, sem o método das cartilhas? Qual é a saída, ou

melhor, quais são as alternativas?

Depois desse longo caminho, analisando a história e os

métodos de alfabetização, podem-se tirar algumas conclusões

interessantes que nos levarão a entender por que proceder de

um jeito e não de outro, na escola, a fim de conduzir um

processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de

maneira mais correta e proveitosa.

Em primeiro lugar, é preciso entender que o segredo da

alfabetização está na aprendizagem da leitura. Aprender a ler,

aqui, significa aprender a decifrar a escrita. <99>

Page 166: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Para saber decifrar a escrita, é preciso saber corno os sistemas

de escrita funcionam e quais os seus usos. Como a escrita é uma

forma gráfica de representação da linguagem oral, é necessário

estudar os mecanismos da produção da linguagem oral, quais os

seus usos e, ainda, como a linguagem oral se relaciona com a

forma escrita que a representa, num contexto culturalmente

específico da sociedade moderna.

Infelizmente, constata-se que não basta jogar o livro fora ou

dizer que não se quer mais seguir o método do bá-bé-bi-bó-bu,

para levar adiante um bom trabalho de alfabetização. Há coisas

erradas demais no sistema educacional do Brasil, que tornam

qualquer iniciativa de boa vontade fadada ao fracasso, por falta

de infra-estrutura, pela presença constante e sufocadora de uma

máquina burocrática anacrônica e, principalmente, pela

incompetência de alguns professores. Estes recebem das escolas

de formação todos os equívocos, preconceitos e barbaridades

que depois levam para a sala de aula. Alguns autores de livros

didáticos, por sua vez, são tão despreparados quanto os

malformados professores. Acrescente-se a isso a exigência

ridícula de pais e avós que fazem questão de que seus filhos

sejam educados exatamente da maneira como eles o foram.

Apesar desse quadro pouco animador, aos poucos, os

professores interessados podem ir deixando de lado a velha

prática de alfabetização e iniciar um trabalho novo, com

Page 167: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

dedicação ao estudo para suprir as lacunas e deficiências e muito

bom senso. A própria prática - mestra da vida - ajuda muito.

O professor não pode ter medo de levar seus alunos a sério,

de ir direto ao assunto, conduzindo um processo equilibrado de

ensino e aprendizagem. Afinal de contas, o professor sabe ler e

escrever. Com um pouco de reflexão mais cientificamente

controlada, ele é capaz de realizar um excelente trabalho, sem

precisar gastar muito tempo, refazendo desde o início sua

formação. O professor também aprende ensinando. Se seus

alunos forem instigados a construir um processo de

alfabetização baseado na reflexão, na pesquisa, no trabalho

compartilhado, o próprio professor verá, para sua surpresa, que

ele também está aprendendo. Mais do que isso, ele começará a

deixar de lado a idéia de que seu trabalho é maçante, acabando

por descobrir o mundo fascinante da construção do

conhecimento pelos alunos, como uma mãe deslumbrada

<100>

diante do crescimento de seu filho, num processo de

aprendizagem verdadeiro, como deveria existir sempre nas

escolas.

A CARTILHA E OS PROFESSORES

CAGLIARI, 1997c.

Page 168: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Apesar de todos esses problemas, o método das cartilhas é

considerado em geral muito conveniente pelos professores. Se o

aluno não aprender, a responsabilidade não é dele, nem do

método, mas da incapacidade do aluno. Como o método

considera que todos os alunos partem do zero e vão estudando

ponto por ponto, do mais fácil para o mais difícil, isso dá uma

falsa aparência de ordem e organização. Todos os alunos devem

fazer a mesma coisa, do mesmo modo, no mesmo tempo. Para o

professor, fica fácil avaliar quem está acompanhando e quem

está ficando para trás. Como o trabalho é igual para todos e

avança aos poucos em complexidade, os professores conseguem

fazer com que seus alunos apresentem cadernos muito bonitos,

em que tudo está perfeito, em ordem, sendo muitas vezes uma

cópia exata do próprio caderno do professor, que ele usa como

modelo. Se o aluno errar alguma coisa, o professor apaga e

coloca o certo. Os pais e diretores olham os cadernos desses

alunos e acham que tudo vai às mil maravilhas. Ledo engano,

que não irá durar muito.

Por trás de toda aquela aparente ordem, esconde-se muita

coisa mal compreendida, que irá produzir péssimos frutos nas

séries posteriores. No esforço para salvar a ortografia e a

aparência correta da escrita, o método da cartilha destrói a

habilidade do aluno de lidar com a linguagem na sua forma plena

e natural, como fazia antes, quando apenas falava. O método da

Page 169: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

cartilha produz cadernos belos, sem erros, porque os alunos só

reproduzem o já dominado, e o professor só permite que ali fique

registrado o que está certo. Depois, quando os alunos tiverem de

escrever espontaneamente, cometerão toda sorte de erros,

mostrando uma "desaprendizagem" perigosa.

Aos professores que dizem que também se aprende pela

cartilha, que muita gente fez isso e aprendeu bem, deve-se

rebater, lembrando todos aqueles que não aprenderam e que

tiveram de abandonar a escola por causa de um método que

privilegia um planejamento

<101>

escolar rigoroso e detalhado, inocentando os professores e os

livros de sua incompetência. Os professores que adotam as

cartilhas nem sequer param para analisar cuidadosamente o que

fazem, ou para investigar por que alguns alunos aprendem e

outros não, ou ainda para ponderar a que preço seus alunos

aprendem.

Finalmente, convém ressaltar que, em séries posteriores, já

não aparecem mais cartilhas. Alguns professores, no entanto,

são tão obcecados por elas, que continuam aplicando esse

método nas séries posteriores. Livros de matemática tendem

fortemente a seguir o método de ensino das cartilhas. O que

salva, em parte, as aulas de português é a produção de textos, a

leitura e a literatura. Como a matemática não tem dessas coisas,

Page 170: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o ensino torna-se insuportável para grande parte dos alunos,

que se vêm obrigados a ter um estudo cujo único objetivo é o de

reproduzir um modelo. Afinal, para que servem os exercícios de

matemática, da maneira como aparecem em certos livros? A

atividade parece que se esgota em si mesma, e o aluno faz a

tarefa para ver se acerta e não tem a sensação de estar

aprendendo algo que poderá ser útil e aplicável na vida real. Um

fato semelhante acontece com certos professores de português

que passam um ano inteiro fazendo exercícios de análise

sintática.

O uso do método das cartilhas (com livro ou sem livro) é

largamente difundido entre os professores alfabetizadores

porque é um programa de trabalho já pronto, do começo ao fim,

que se escolhe no início do ano e que será aplicado ao longo dos

dias escolares.

Algumas pessoas partilham da opinião de que não se pode

estudar sem um livro didático, só que, em vez de escolher livros

mais interessantes, preferem as cartilhas, porque são mais

"práticas". Na verdade, há uma longa tradição escolar que tem

produzido cartilha atrás de cartilha, sem propor nada de

diferente. Se um professor achar no mercado editorial atual uma

obra que ensine a alfabetizar sem o bá-bé-bi-bó-bu, será um fato

surpreendente. Os livros didáticos são feitos, em geral, por

professores, e como eles não têm outra visão do processo de

Page 171: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alfabetização, repetem sempre o velho esquema. O círculo

vicioso se fecha quando, por falta de material adequado e de

uma sólida formação lingüística crítica, os professores justificam

a própria incompetência apegando-se à única tábua da salvação

que conhecem, o próprio método das cartilhas.

<102>

5

Panorama do processo de alfabetização

VALORIZAR O QUE É PRIORITÁRIO

O trabalho escolar de primeira série tem vários objetivos, mas

o principal deles é alfabetizar as

crianças. A alfabetização é uma das coisas mais importantes que

as pessoas fazem na escola e na vida. Os esforços devem estar

voltados para isso, embora a escola não deva se esquecer dos

outros objetivos que tem como instituição.

Para realizar um trabalho de ensino e de aprendizagem da

leitura e da escrita sem o método do bá-bé-bi-bó-bu, é preciso

ter em mente alguns pontos fundamentais.

Em primeiro lugar, é necessário saber exatamente o que se

quer fazer e o que se entende por alfabetização. Muitos

problemas surgiram na história da alfabetização realizada na

escola porque os objetivos a serem alcançados não eram muito

claros. Por exemplo, todo o período preparatório veio como uma

Page 172: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

concepção de alfabetização baseada numa teoria discriminatória

contra a capacidade intelectual das crianças, criando nelas uma

auto-avaliação de incapacidade para aprender os conhecimentos

que se adquirem nas escolas. A alfabetização passou a se

resumir, então, em grande parte, a exercícios que preparavam o

aluno para o estudo, enquanto o mais importante era deixado de

lado, ou seja, o conteúdo específico que torna uma pessoa

alfabetizada. Não é raro ouvir histórias de crianças que não

queriam mais ir à escola porque não aprendiam a ler nem a

escrever, mas apenas a rabiscar e a fazer joguinhos.

Alfabetizar é ensinar a ler e a escrever. Como já dissemos, o

segredo da alfabetização é a leitura (decifração). Escrever é uma

decorrência do conhecimento que se tem para ler. Portanto, o

ponto principal do trabalho é ensinar o aluno a decifrar a escrita

e, em seguida, a aplicar esse conhecimento para produzir sua

própria escrita.

Conhecendo a rotina nas escolas, a primeira coisa a ser feita é

uma faxina: jogar fora uma série de atividades que nada têm a

ver com os objetivos, tornando o trabalho mais simples e mais

tranqüilo tanto para o professor como para o aluno.

Brincar, cantar, contar histórias, recortar, colar, desenhar, etc.

sem dúvida são atividades escolares. Mas isso não é ensinar a ler

nem a escrever. Aprende-se a ler e a

escrever, lendo e escrevendo, e não pulando corda e fazendo

Page 173: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

festa.

<104>

Tem hora para aprender a ler e escrever e tem hora para

brincar. Juntar essas duas coisas o tempo todo é uma loucura

pedagógica: tira a seriedade da formação escolar e introduz uma

leviandade nos trabalhos. Brincar é imprescindível, mas deve ter

seu valor claramente estabelecido para todos.

OS ALUNOS SÃO FALANTES NATIVOS

Rigorosamente falando, na alfabetização não é preciso ensinar

ninguém a falar: nossos alunos já aprenderam isso quando

tinham de um a três anos. São todos falantes nativos do

português, cada qual usufruindo o dialeto da região em que

nasceu e viveu e que é partilhado pelas pessoas com quem

convive. Ensinar a norma culta também vai ser uma preocupação

da escola, e deve começar desde a alfabetização. Porém, essa

deverá ser uma atividade secundária, tecnicamente falando, com

relação à aprendizagem da leitura e da escrita. Qualquer aluno

pode alfabetizar-se perfeitamente sem precisar mudar o modo

de falar de seu dialeto.

Vendo essa questão por outro ângulo, percebe-se claramente

que o professor não precisa preocupar-se com o fato de seus

alunos falarem errado no início. Não é necessário que os alunos

aprendam a pronunciar bem as palavras, sílabas ou outros

Page 174: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

elementos fonéticos para aprenderem a escrever as palavras.

Uma coisa não é condição para a outra.

Tampouco quando um aluno é falante de um dialeto não

aceito como norma culta pela escola, não precisa abandonar seu

dialeto para aprender a norma padrão. Quando alguém estuda

uma língua estrangeira, por exemplo, inglês ou francês, não

deixa de ser falante de português. Aprende-se uma língua, sem

esquecer a outra. Do mesmo modo, quando alguém está

aprendendo um dialeto diferente, não precisa se desvencilhar

daquele que conhece. Na sociedade, a variedade lingüística deve

adaptar-se ao contexto, às exigências do momento, do lugar e

das pessoas com quem se fala. Numa sociedade tão heterogênea

como a nossa, as pessoas acabam falando mais de um dialeto:

um em casa e

outro na vida formal em sociedade. Variações de pronúncia (do

R; das fricativas CH e TCH; variações como

"déis" ou "dés", etc.), de concordância (por exemplo,

<105>

"chegou os homens" em vez de "chegaram os homens"), de

regência (por exemplo, "eu preciso dinheiro" em vez de "eu

preciso de dinheiro") fazem parte da vida dos falantes em geral,

marcando um uso informal e outro formal da língua.

MASSINI-CAGLIARI, 1997b

A IDADE PARA SE ALFABETIZAR

Page 175: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Por razões ideológicas, interesses políticos e econômicos,

somados a uma postura tradicionalista de pessoas que

trabalham nos órgãos públicos da educação. corroborada por

alguns psicólogos e outros que se acham entendidos no assunto,

ficou estabelecido que a alfabetização, no Brasil, começaria aos

sete anos e que o primeiro grau (atual ensino fundamental) se

encerraria aos quatorze anos.

Durante muitos anos venho fazendo uma campanha pessoal

para convencer as pessoas de que seria muito melhor que a

alfabetização começasse aos cinco anos (como, aliás, acontece

na grande maioria dos países do mundo) e que o primeiro grau

se estendesse até os doze anos. Com quatorze anos, muitos

jovens já são arrimo de família, têm de trabalhar duro para

sobreviver e sustentar irmãos, pais, avós, etc. Além disso,

começando a alfabetização aos cinco anos, todas as crianças

passariam a gozar de um beneficio que hoje está restrito àqueles

que freqüentam a pré-escola. Dos cinco aos sete anos, a pré-

escola é importante como escola e não como creche. Muda-se a

Constituição do país, mas não se muda a mentalidade dos

governantes, e os problemas sérios continuam sem solução.

Aos cinco anos uma criança está mais do que pronta para ser

alfabetizada, basta o professor desenvolver um trabalho correto

de ensino e de aprendizagem na sala de aula. Nessa idade, ela já

conheceu e aprendeu muita coisa da vida, do mundo e até da

Page 176: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

história, já testou sua participação na sociedade, seu

relacionamento com pessoas diferentes. Aprender a ler e a

escrever, dentro desse contexto, é algo simples e banal,

considerando-se a capacidade e a experiência de vida de

qualquer criança com cinco anos. Duvidar da capacidade de

aprender das crianças de cinco anos é um grande equívoco,

mesmo quando anunciado em teses e livros publicados por

intelectuais com muitos títulos acadêmicos.

<106>

QUERER SER ALFABETIZADO

Se com cinco anos uma criança pode ser alfabetizada, isso

não significa que ela queira ser alfabetizada. Dependendo do

modo de vida, algumas pessoas não acham que a alfabetização

seja algo de muita importância. As vezes, ganhar dinheiro é o

que realmente conta. Algumas pessoas chegam à idade adulta

sem se interessar pela alfabetização. Para elas, ler e escrever

não é algo tão fundamental como nós comumente achamos que

seja.

Essas considerações mostram que, mais importante do que a

idade é a vontade do aluno de se alfabetizar. Estar na escola é

um fato que cria expectativas. Mas alguns alunos podem ter uma

visão muito restrita do que os espera. Por isso, é necessário que

o professor, no início do ano, converse com seus alunos para

Page 177: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

saber de suas expectativas com relação ao trabalho escolar de

alfabetização que terão pela frente.

É preciso conversar a respeito do que significa aprender a ler e

a escrever, o que se faz com esses conhecimentos, em que

sentido a vida das pessoas se modifica depois que aprendem a

ler e a escrever, quais as previsões de uso desses conhecimentos

pelo resto da vida, fora da escola. Não é raro haver alunos,

provenientes de classes pobres, que achem que vão aprender a

ler e a escrever como uma espécie de obrigação da escola. Como

em casa ninguém lê nem escreve e não há livros (nem caneta ou

papel), essas crianças acham que aprender a ler e a escrever é

simplesmente fazer a lição da escola.

A escrita e a leitura têm muitos usos, que precisam ser

discutidos ao longo do processo de alfabetização, e uma boa

conversa deve acontecer antes mesmo do início das atividades

de ensino e aprendizagem. Os autores das cartilhas nunca

pensam que esse tipo de troca de informações entre o professor

e o aluno e dos alunos entre si seja algo importante. Mas é

imprescindível.

A questão exposta acima está relacionada com o próprio

conteúdo que vai ser ensinado. A escola sempre parte do

princípio de que o professor é quem decide o que é bom e o que

deve ser excluído do processo educacional. Mas é bom também

perguntar aos alunos quais são seus anseios. O que eles

Page 178: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pretendem ler? O que eles pretendem escrever? O que

pretendem fazer no começo da alfabetização? O que pretendem

fazer depois, quando já souberem ler e escrever fluentemente? O

que pretendem fazer depois, quando saírem da escola já

formados?

<107>

Muitos professores ficam surpresos com as exigências

dos alunos. É muito comum, por outro lado, a escola

subestimar a vontade das crianças. Às vezes, elas estão ansiosas

para copiar coisas que lhes interessam,

mas um professor que ouviu dizer que cópia é algo que deve ser

abolido da escola causa grande frustração

nos alunos. É melhor, na maioria das vezes, deixar os alunos

fazerem coisas por iniciativa própria, mesmo

que seja uma missão quase impossível, do que obriga-los

a fazer somente aquilo que o professor decide que deve ser feito.

Quando as crianças fazem trabalhos por decisão própria, o

processo de aprendizagem voa, mesmo quando os resultados

aparentemente não são

tão organizados e muito bem apresentados quanto os feitos sob

o controle direto do professor.

Para muitos alunos, o professor deverá explicar o que significa

aprender a ler e a escrever, segundo as expectativas da escola e

da sociedade. Deve fazer ver a

Page 179: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

todos os alunos a importância do trabalho escolar que

irão começar.

UM MÉTODO SEM MÉTODOS

O melhor método de trabalho para um professor deve vir de

sua experiência, baseada em conhecimentos sólidos e profundos

da matéria que leciona. O fato de não ter um método

preestabelecido não significa que o ensino seguirá navegando à

deriva, O professor

terá sempre as rédeas nas mãos, porque, afinal de contas,

ele é um educador e não um simples observador. O fato de não

se ter um método rígido para alfabetizar

não significa, tampouco, que o trabalho escolar será

feito sem método algum.

Quando o professor é um bom conhecedor da matéria que

leciona, ele tem um jeito particular de ensinar, assim como os

alunos têm seus jeitos de aprender. Essa

heterogeneidade, em vez de atrapalhar, é fundamental em todo

processo educativo.

Alguns órgãos públicos que respondem pela educação partem

do princípio de que todos os professores

de determinado nível e matéria precisam fazer as mesmas

coisas, do mesmo modo, porque senão — dizem eles — como se

poderá transferir alunos de uma escola para outra? O que essas

Page 180: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pessoas não percebem é que,

<108>

em nome de uma burocracia idiota, preferem comprometer o

mais importante, que é o trabalho verdadeiro que deve ser feito

pelos professores nas salas de aula. Se um aluno sai de uma

escola onde aprendeu alguma coisa e vai para outra escola onde

se está estudando outra coisa, deverá adaptar-se à nova

realidade e, com o tempo, isso acontecerá inevitavelmente,

assim como quem muda de país vai ter que adaptar sua vida à do

novo ambiente.

O bonito da verdadeira educação é ser um caleidoscópio: a

diferença a todo instante é seu charme e beleza; cada momento

revela algo novo e surpreendente. A educação deve formar

pessoas diferentes, não clones, réplicas intelectuais.

O professor que domina a matéria não precisa preocupar-se

com métodos: ele saberá entender e resolver tudo o que

encontrar pela frente na sala de aula. Além do mais, dentro do

processo de ensino, ele organizará suas atividades de um modo

geral: o que vai passar para os alunos, quando e como.

Associado ao modo de trabalhar de cada professor, isso acaba se

traduzindo, na prática escolar, num método de trabalho. Depois

de terminado o ano, o caminho percorrido mostra que nada

aconteceu por acaso, mas que houve uma intenção de realização,

houve decisões importantes, houve opções de escolha, enfim,

Page 181: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

houve, na prática, um método de trabalho. Entretanto, o que

aconteceu num ano não precisa ser repetido no ano seguinte,

mesmo porque os alunos serão diferentes e surgirão fatos novos.

Quando se adota um modelo de trabalho escolar como método

para ser aplicado ano após ano, incorre-se no erro de supor que

o que conduz o ensino e a aprendizagem é a estrutura

programática de um método, e não a interação entre o processo

de ensino e de aprendizagem, mediado pelo professor, levando

em conta a realidade de seus alunos, a cada dia de aula.

EM QUANTO TEMPO SE ALFABETIZA?

Outra questão que precisa ser comentada é o tempo

necessário para alguém se alfabetizar. Se a escola eliminar o

entulho do período preparatório, se for clara e objetiva,

priorizando a decifração da escrita como segredo da

alfabetização e dedicando uma hora por dia

<109>

às atividades específicas, todos os alunos aprenderão a ler (com

mais ou menos dificuldade) em dois ou três meses de trabalho.

Esse é o tempo suficiente para que os alunos aprendam a

decifrar o que está escrito. Quem sabe fazer isso está,

tecnicamente falando, alfabetizado, O resto é o desenvolvimento

dessa habilidade e a complementação com conhecimentos que

serão aprendidos depois.

Page 182: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Ao longo dos últimos anos, o processo de alfabetização foi

confundido com tantas coisas estranhas e ficou amarrado a

tantas atividades inúteis, que o tempo necessário para um aluno

aprender a ler (e a escrever) se espichou demais. O que podia

ser feito num semestre passou a ser feito em um ano. Com o

ciclo básico, alguns professores passaram a entender que agora

o aluno tem dois anos para se alfabetizar, o que é falso. Em

alguns casos, contando com a pré-escola e o segundo ano, o

aluno leva três anos para se alfabetizar, o que é um absurdo.

O professor precisa ter idéias bem claras a respeito do que

espera de seus alunos em todos os períodos escolares. A falta de

uma perspectiva como essa desorienta o professor e confunde os

alunos. Em todo o processo educacional, há coisas importantes

que receberão uma atenção especial, e coisas secundárias, que

são em geral irrelevantes. Por exemplo, é de importância

fundamental que o aluno tenha em mãos a chave da decifração

da escrita — o segredo da alfabetização. Sem isso, tudo o mais

fica prejudicado. Uma vez adquirida a chave da decifração da

escrita, o aluno tem condições de desenvolver, até por si só, o

resto do processo de alfabetização, explorando a extensão e a

profundidade da matéria. O professor que sabe disso trabalha

mais satisfeito, porque consegue acompanhar o progresso de

seus alunos, valorizando o que cada um faz, inclusive o seu

próprio trabalho.

Page 183: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Por outro lado, alguns professores vivem em meio a muitas

frustrações porque exigem demais do processo de alfabetização

e têm pressa de resolver todos os problemas de fala, leitura e

escrita dos alunos em apenas um ano. É preciso aliviar um pouco

essas tensões na escola, acalmar a ansiedade e ter perspectivas

mais realistas, O tempo é o melhor remédio, e a paciência, uma

virtude do educador. O importante é o professor e os alunos

trabalharem séria e constantemente, com perseverança e calma,

porque a aprendizagem não tem dia marcado para acontecer.

< CAGLIARI 1992a.

<110>

QUEM COMANDA É O PROFESSOR

O professor deve assumir o comando de seu trabalho e não

abrir mão disso. Não é o Ministério da Educação, nem a

Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, nem o diretor da

escola, nem a coordenadora, nem a monitora de alfabetização,

nem a associação de pais e mestres, nem a comunidade, nem os

pais, nem os avós ou os tios, nem as teorias acadêmicas, nem as

cartilhas ou os livros que devem impor ao professor o que fazer.

Antes de mais nada, é preciso salvar o direito sagrado de

cátedra. Na educação se propõe, e não se impõe. Quando a

autoridade — seja de quem for — se impõe à razão do professor,

significa que a educação perdeu seu Sentido e tornou-se uma

máquina de produzir resultados intelectuais. A educação vive da

Page 184: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

criatividade de todos.

A tarefa escolar de sala de aula precisa ser devolvida aos

professores. Eles precisam ter liberdade para poder se

responsabilizar pelo que fazem. Se todo o mundo dá palpite, a

educação vai de mal a pior, e ninguém se responsabiliza pela

situação. Discutir é uma coisa, impor um comportamento

profissional ao professor é outra, muito diferente e intolerável.

De um professor deve-se cobrar competência e

responsabilidade e não métodos ou adesão aos modismos

acadêmicos. Algumas pessoas acham que atualizar-se significa

falar de acordo com a última palestra que ouviu ou livro que leu.

A busca de conhecimentos novos é tão importante para a

sobrevivência do sistema quanto a alimentação para os seres

vivos. Mas tais conhecimentos precisam ser digeridos,

ponderados, avaliados, para depois entrarem na corrente

sanguínea do sistema educacional.

REMANEJAMENTOS SÃO AVILTANTES

O professor que realiza um trabalho sério em sala de aula não

pode permitir que ocorra remanejamento de alunos. As classes

formam turmas de amigos, que é preciso respeitar. A

discriminação é sempre aviltante.

Não é raro casos de professores incompetentes que adoram

remanejamentos, porque, assim, podem ficar sempre com os

Page 185: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

melhores alunos. Isso alivia o trabalho e esconde sua

incompetência. O trabalho duro acaba sobrando para uns poucos

professores que têm de aceitar

<111>

qualquer coisa, uma vez que nem sequer são considerados

professores de uma escola, mas apenas tapa- buracos do

sistema.

CONDIÇÕES MATERIAIS

Um bom trabalho de alfabetização não pode ser desenvolvido

sem as condições materiais adequadas. Criança odeia ficar

sentada, mas a maioria das salas de aula reservadas aos

alfabetizandos é exatamente igual às das demais séries. Criança

gosta de escrever em pé, às vezes até deitada. As salas de

alfabetização precisam ser mais espaçosas para permitir maior

trânsito de alunos.

É impossível desenvolver um trabalho adequado com uma

classe que tem um número exagerado de alunos. Mais de vinte

alunos por professor cria dificuldades muito sérias para um bom

trabalho. Infelizmente, por causa de uma noção errada de

humanidade e dó, alguns educadores acabaram engolindo dos

governantes classes superlotadas. Preferiram optar pela má

educação a decepcionar as promessas eleitoreiras dos

governantes, que prometem um lugar na escola para todas as

Page 186: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

crianças, sem saber o que isso representa em termos de

educação nas situações atuais. Cuidar das escolas é algo que

eles não querem. Escolas em condições precárias de

funcionamento, superlotadas e com pessoal mal pago fazem o

perfil da educação neste país. Depois de algumas semanas de

aula, professores e alunos passam a viver num clima de guerra,

numa irritação geral, causada por esses fatores. Para consertar a

alfabetização não basta abolir a cartilha e o bá-bé-bí-bó-bu; é

preciso muito mais.

Tudo o que foi exposto aqui deixa claro que cada professor

terá de traçar seu caminho de trabalho e não deverá esperar

soluções prontas. Assim como a aprendizagem, o ensino também

é um processo que deve ser construído pelo professor à medida

que acontece e, a cada vez que ocorre, terá um jeito próprio de

ser.

Isso, porém, não impede que se ilustre um trabalho de

alfabetização sem a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu sem,

contudo, fazer, desse exemplo, o modelo ideal que deva ser

seguido por todos e sempre. Exemplos são exemplos: são

elucidativos, mas não impositivos. E claro que uma boa idéia

sempre acha um seguidor, e adota-la não significa

necessariamente escravizar-se a ela.

<112>

É dentro desse espírito que propomos seguir idéias, sugestões e

Page 187: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

apresentamos exemplos. E sempre bom discutir certos assuntos

na teoria e constatar que de fato funcionam na prática.

LEITURA E ESCRITA

Ao contrário do que muita gente pensa, inclusive professores

de alfabetização, para alguém ser alfabetizado, não precisa

aprender a escrever, mas sim aprender a ler. Ou seja, no

processo de alfabetização, o professor poderia prescindir do

ensino da escrita, mas não da leitura. Em outras palavras, a

alfabetização realiza-se quando o aprendiz descobre como o

sistema de escrita funciona, isto é, quando aprende a ler, a

decifrar a escrita. De posse desses conhecimentos, escrever

nada mais é do que colocar no papel esses conhecimentos

fornecidos pela leitura. Quem escreve deve guiar-se

necessariamente pelos conhecimentos da decifração da escrita.

Deve escrever pensando em como seu leitor fará para descobrir

(decifrar) o que escreveu. Se cometer erros, poderá deixar seu

leitor confuso ou mesmo impossibilitado de entender o que foi

escrito. Se fizer tudo de acordo com as convenções e as regras

do sistema de escrita, seu leitor poderá decifrar com facilidade.

Portanto, o segredo da alfabetização, como se disse várias

vezes, é a leitura, ou seja, a decifração da escrita.

Em sentido mais amplo, a alfabetização tem outros objetivos,

além de ensinar a decifrar a escrita, sobretudo na escola. Saber

escrever corretamente é um deles. A escrita não deve ser vista

Page 188: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

apenas como uma tarefa escolar ou um ato individual, mas

precisará estar engajada nos usos sociais que envolve,

principalmente como forma especial de expressão de uma

cultura. Sem dúvida alguma, um bom professor terá sempre essa

preocupação em mente, em todos os momentos da vida escolar.

Porém, como essa questão está mais ligada aos usos especiais

que se faz da escrita do que à aquisição propriamente dita da

habilidade de escrever, o alfabetizador dará mais atenção a esse

último item do que ao anterior. Em séries mais adiantadas,

quando os alunos já souberem escrever com facilidade e tiverem

um estilo próprio, a perfeição do texto será objeto de trabalho

específico.

<113>

A reprodução de modelos

O método das cartilhas — o bá-bé-bi-bó-bu — ensina o aluno a

escrever reproduzindo um modelo. Em seguida, o aluno aprende

a ler o que escreveu. Esse método vai no sentido oposto ao

sugerido neste livro. Para a cartilha, o importante é aprender a

escrever juntando pedacinhos (as sílabas geradoras), sempre

supondo que esses pedacinhos, por serem conhecidos,

permitirão a leitura. Essa abordagem envolve muitos equívocos e

erros, como ficou claro no capítulo anterior.

A progressão, no método do bá-bé-bi-bó-bu, é rigorosa, e o

aluno só faz algo segundo um modelo preestabelecido, até

Page 189: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

dominar o exercício, passando então à lição seguinte. Se o aluno

cometer algum engano, o erro é logo apagado e substituído pela

forma correta. Isso faz com que os alunos apresentem lindos

cadernos.

Um fato comum na história de alguns alunos é que eles foram

excelentes estudantes nas duas primeiras séries, mas

apresentaram seriíssimas dificuldades na terceira. Na

alfabetização, o aluno escrevia tudo muito bonito, sem erros de

ortografia, como mostram seus cadernos. Na terceira série,

apareceram dificuldades insuperáveis porque a tarefa não

consiste mais em reproduzir o modelo dado pelo professor, mas

exige que o aluno tome a iniciativa de fazer um texto, uma

redação ou o que for preciso nas diversas atividades escolares.

Até sua letra piorou. Não é mais capaz de escrever sem cometer

inúmeros e estranhíssimos erros de ortografia. O aluno tinha

aprendido a escrever tão bem... Por que, agora, não sabe mais?

A explicação para esses casos é simples e, ao mesmo tempo,

trágica. O aluno não aprendeu, de fato, como o sistema de

escrita funciona, como se lida com o texto oral e o escrito, como

funciona a ortografia e como se resolvem dúvidas. Simplesmente

fazia o que o professor mandava, seguindo o modelo das coisas

já dominadas. Na terceira série, não existe mais modelo

(semelhante àquele a que estava acostumado) e não faz mais

sentido escrever somente palavras já dominadas. Nesse

Page 190: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

momento, começa a refletir sobre seu trabalho, sobre como

funciona a escrita, como funciona a cabeça de quem vai ler o que

ele escreve, achando, talvez, que vai encontrar em todos os

leitores que achar pela frente uma espécie de professor que

apaga o errado e coloca o certo quando necessário. Em vez

disso, encontra a constatação do seu fracasso, do erro

incorrigível, levando-o ao desespero. E, junto com ele,

desesperam-se professores, pais, amigos, etc.

<114>

Esse aluno deveria ter tido a oportunidade de errar antes.

Deveria ter tido antes a oportunidade de refletir sobre o sistema

de escrita. Não deveria ter ficado repetindo um modelo e

construindo a escrita apenas com elementos já dominados. A

terceira série foi a primeira viagem fora da cartilha. Somente

então foi solicitado a refletir sobre como funciona o sistema de

escrita e a elaborar suas próprias hipóteses a respeito dela. Só

na terceira série, esse aluno começou a produzir escrita como se

fosse um iniciante no processo de alfabetização, e o resultado do

que faz se assemelha muito aos resultados obtidos pelas

crianças quando começam a escrever errado no início da

alfabetização. Conseqüentemente, as pessoas passam a

considerá-lo um aluno mal-alfabetizado.

Se essa criança tivesse sido alfabetizada de outra maneira, se

tivesse tido a chance de mostrar ao professor o que pensava a

Page 191: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

respeito da fala, da escrita e da leitura, apresentando um

trabalho de escrita feito por iniciativa própria e não apenas

seguindo um modelo de coisas já dominadas, teria resolvido

seus problemas logo no início.

O professor deve ter em mente que nem sempre um aluno que

escreve corretamente está sabendo o que está fazendo e como

funciona a escrita. Por outro lado, não é porque um aluno erra,

ao tentar escrever uma palavra, que ele não esteja aprendendo a

escrever.

É preciso distinguir bem o ato de escrever do resultado que

uma escrita produz. O método das cartilhas preocupa-se apenas

com o gesto, com o ato de escrever em si, uma vez que o

resultado é controlado rigidamente pelo professor e passa a ser

então totalmente previsível. Por outro lado, um aluno que tem

seu espaço de aprendizagem aberto pelo professor para

construir seu conhecimento, sabe que o ato de escrever é uma

tentativa que pode levar a um resultado correto ou não. Sabedor

disso, deverá fazer um juízo de valor sobre sua ação e verificar

se, de fato, obteve êxito. Nesse caso, o professor sabe

perfeitamente bem que, primeiro, precisa deixar o aluno

aprender a escrever, para depois cobrar dele o resultado

esperado, em termos de correção ortográfica e perfeição gráfica.

A descoberta do mundo da escrita

Page 192: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A descoberta do mundo da escrita é mais fácil para alguns

alunos do que para outros. As crianças que vivem em casas onde

há livros, revistas, jornais, onde as

<115>

pessoas lêem e escrevem, começam logo cedo a se interessar

por essas atividades e a saber coisas a respeito da escrita e seu

funcionamento. Por outro lado, crianças que vivem em casas

onde não se lê e não se escreve crescem tendo um outro tipo de

comportamento e de conhecimentos a respeito da escrita e da

leitura.

Fora de casa, no mundo, a escrita está em toda a parte, e

tanto ricos como pobres sabem que ela existe e podem até dizer

que num jornal, na embalagem de um produto, nas placas

comerciais há coisas escritas. Isso não quer dizer que todos

sejam capazes de distinguir qualquer material de escrita do que

não é escrita. Mas, de modo geral, as pessoas sabem que

desenhos figurativos não constituem escrita. Sabem que a

escrita pode ser feita de inúmeras maneiras, o que torna muito

difícil ter uma idéia clara sobre ela. Por exemplo, não é fácil

distinguir rabiscos de escrita cursiva.

Ao contrário do que algumas pessoas pensam uma leitura

incidental não representa um reconhecimento de uma escrita

como desenho. Por exemplo, uma criança pode reconhecer que

se trata de Coca-Cola porque está vendo uma garrafa desse

Page 193: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

produto ou uma propaganda ou, mais especificamente, um rótulo

onde aparece escrito, de maneira típica, o nome da marca. O

reconhecimento do rótulo (leitura incidental, nesse caso) é de

fato uma leitura. Como a criança não conhece as relações entre

letras e sons, não pode identificar como o sistema de escrita

funciona de maneira específica. Porém, nosso sistema de escrita

não se presta a ser lido e escrito apenas através das relações

entre letras e sons, uma por uma. Embora não seja a maneira

mais comum e própria de se ler e escrever, urna pessoa poderia

em princípio tratar todas as palavras escritas como se fossem

ideogramas, e escrevê-las e lê-las como se estivesse diante de

um sistema ideográfico de escrita. Parece que a primeira

tentativa que as crianças fazem para penetrar no mundo da

escrita tem como estratégia considerar toda escrita como sendo

ideográfica. Muitas crianças abordam a escrita dessa maneira

quando ainda são muito novas e estão explorando o mundo. Mas

algumas chegam a levar essas idéias para a sala de aula e, se o

professor não perceber, durante um certo tempo elas tratarão a

escrita escolar como se fosse um puro sistema ideográfico.

Essa idéia é reforçada muitas vezes quando uma criança (ou

um analfabeto) pergunta a um adulto (ou a quem sabe ler) o que

está escrito. A resposta não é

uma explicação de como a escrita funciona, mas a

<116>

Page 194: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

identificação de uma ou mais palavras. Isso a leva a imaginar

que um conjunto de sinais gráficos (misteriosamente

elaborados) refere-se a uma palavra. No início, raramente acha

que existe um sinal para cada som da fala. Essa é uma idéia

muito elaborada, que exige uma explicação particular e

detalhada. Ninguém chega a ela sem a ajuda de alguém que já

conhece como nosso sistema de escrita funciona. E por isso que

ainda hoje há sistemas de escrita que não foram decifrados,

apesar de todas as tentativas: falta alguém para dizer como se

relacionam os caracteres com a linguagem oral.

Na sociedade, existem pessoas que lêem ou interpretam a

escrita, respondendo à pergunta mencionada acima, dizendo que

em tal lugar está escrita tal palavra; mas também, não é raro as

pessoas virarem decifradores tentando ler. Ao fazer isso,

algumas características do sistema começam a emergir e podem

servir de informações a quem não sabe ler. Por exemplo, é

comum alguém soletrar ou fazer sua tentativa de decifração

pronunciando possíveis sílabas. Seria muito estranho alguém

que pronunciasse apenas segmentos fonéticos, como se

estivesse interpretando uma transcrição fonética. Ora, aquele

esforço de decifração transmite a quem não sabe ler a idéia de

que se lê por sílabas, ou seja, que a escrita vem associada a

sílabas, antes de estar associada a palavras, e muito dificilmente

deixa claro que existem unidades menores do que a sílaba.

Page 195: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Outro fato comum ocorre quando alguém vai escrever e tem

dúvidas sobre a ortografia de uma palavra. Nesse caso, pode

perguntar diretamente por uma letra: "teste" se escreve com X

ou com S? Diante disso, uma pessoa analfabeta intui que a

escrita tem um conjunto de nomes especiais para analisar as

palavras, antes de descobrir o que ela representa. Mas o que

fazer com esses nomes? O que significa "xis" ou "esse"? Num

primeiro momento, essas palavras não têm um significado para o

ouvinte analfabeto ou significam apenas nome de letra, e a

palavra "letra" significa apenas "escrita" e não unidade de um

sistema.

Outro procedimento é responder às dúvidas ortográficas de

alguém usando o princípio acrofônico, típico do método das

cartilhas; isto é, comportando-se na vida real como um professor

alfabetizador. Quando alguém está tendo dificuldades para

escrever um nome, a resposta vem da seguinte forma: L de lata,

E de escola, S de sapo, C de cebola, A de árvore, U de urubu e X

de xarope, e acento agudo no E: LÉSCAUX.

<117>

Diante disso, uma pessoa analfabeta poderá fazer uma idéia de

que a escrita é algo surrealista e um jogo no qual cada um diz o

que bem quiser. Aquele procedimento de decifração, sem uma

explicação muito detalhada e convincente, não é transparente

para o analfabeto. Só mostra as relações entre letras e sons para

Page 196: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

quem conhece as regras do jogo. No máximo, um analfabeto

pode perceber que um certo padrão frasal se repete, como em "u

de urubu", "a — de árvore", o que já exige um enorme esforço de

análise. No mais, em geral, as relações entre letras e sons não

são nem um pouco transparentes.

Algumas crianças interessam-se pela escrita logo cedo e

começam a reconhecer certas palavras que vêem

freqüentemente. Depois, querem saber como se escreve o

próprio nome e acabam decorando que determinada letra é a

letra do seu nome. Aqui também funciona o princípio acrofônico:

A de Antônio, R de Regina, T de Tomás, etc. Esse tipo de

explicação é muito precioso para a criança porque ensina duas

coisas importantes: o nome das letras e seu valor fonético

através do princípio acrofônico.

Quando o professor começar a falar de escrita para as

crianças, precisa lembrar-se de que a maioria delas já tem

informações a respeito. Se ele fizer com que elas explicitem

essas informações, conversando a respeito do que já sabem, terá

um bom motivo e um caminho interessante para ensinar a ler e a

escrever.

Algumas classes, com crianças que já passaram por escolas

maternais ou pré-escolas, têm alunos que sabem muito mais a

respeito da escrita. Por isso, o professor deve fazer esse

levantamento antes de organizar o trabalho de ensino.

Page 197: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Reconhecer e respeitar esses conhecimentos das crianças

motiva-as a aprender mais rápido, uma vez que elas constatam

que já sabem muita coisa. Por outro lado, esse estudo prévio é

crucial no caso daqueles alunos que sabem muito pouco ou

quase nada a respeito do sistema de escrita. Com esses alunos, o

professor deverá tomar cuidados especiais, devendo ensinar

noções que parecem óbvias a todo o mundo, mas que não foram

sequer percebidas por algumas crianças. Se esses alunos não

receberem uma boa explicação, por exemplo a respeito da

distinção entre desenho e escrita ou, ainda, que escrevemos com

letras representando os sons das palavras, dificilmente

acompanharão explicações mais específicas a respeito do

funcionamento da escrita, da leitura e da fala.

<118>

6

A decifração da escrita

REGRAS PARA A DECIFRAÇÃO

DA ESCRITA

Neste capítulo, começaremos a analisar que conhecimentos

uma pessoa precisa ter para decifrar

e ler algo escrito no nosso sistema de escrita. Em outras

palavras, vamos ver quais são as regras que guiam uma pessoa

Page 198: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

nessa tarefa. Para quem já sabe ler, a decifração é algo

mecânico, assim como o controle fonético dá-se naturalmente

para quem já aprendeu a falar. Mas se quisermos explicitar esses

conhecimentos, vamos encontrar uma série de normas, mesmo

porque, se elas não existissem, não haveria a convenção social

que torna a escrita algo compartilhado pelos usuários. O

conhecimento dessas regras constitui o segredo da decifração da

escrita, que, por sua vez, é o segredo do processo de

alfabetização.

Há uma tradição equivocada segundo a qual não se deve

ensinar os alunos a decifrar a escrita, mas a ler "com

naturalidade"... Como alguém consegue ler um texto se não sabe

decifrá-lo? Constata-se em geral que os professores não sabem

dizer quais são os conhecimentos que uma pessoa precisa ter

para saber ler e, por isso, recusam-se a adotar o estudo da

decifração como matéria em suas aulas. A questão, com efeito, é

muito complexa, e os livros não costumam tratar desse assunto

correta e seriamente.

Apresentaremos a seguir os principais pontos que

urna pessoa precisa conhecer para saber ler.

1. Conhecer a língua na qual foram escritas as palavras

Diante de uma escrita chinesa, se eu não souber chinês,

posso ficar tentando descobrir o que está escrito, mas jamais

Page 199: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

conseguirei ler. A história das decifrações tem mostrado isso.

Conhecer a língua é o primeiro requisito para se ler.

Por outro lado, conhecendo uma língua, posso usar

esse conhecimento para tentar "ler" algo escrito em outra

língua.

O fato de uma criança saber que está escrito uma determinada

palavra, e não outra, ajuda muito a refletir sobre seus

conhecimentos da escrita e da leitura e a ousar um processo de

decifração. Se dissermos a uma criança que a palavra está

escrita numa língua que ela

<120>

não conhece, isso certamente não irá animá-la a usar seus

conhecimentos para ler o texto.

2. Conhecer o sistema de escrita

É preciso saber distinguir um desenho (figurativo ou abstrato)

de uma manifestação de escrita. O desenho representa algo do

mundo (ou relativo a ele), e a escrita representa a linguagem

oral (uma palavra). A linguagem oral, por sua vez, representa o

mundo. Uma mesma forma gráfica, portanto, pode ser apenas

um desenho ou uma escrita.

3. Conhecer o alfabeto

O alfabeto que usamos é uma das possíveis formas do alfabeto

Page 200: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

latino e segue um conjunto de normas atuais. É composto de

letras, formando um conjunto, tendo cada letra um nome, que

lhe foi dado para indicar um dos sons possíveis que a letra

apresenta na língua, através do uso de um princípio acrofônico.

Contar um pouco da história do alfabeto é, talvez, a

melhor maneira de apresentá-lo para as crianças.

4. Conhecer as letras

As letras são unidades do alfabeto que representam os sons

vocálicos ou consonantais que constituem as palavras. Variam na

forma gráfica e no valor funcional. As variações gráficas seguem

padrões estéticos, mas são também controladas pelo valor

funcional que as letras têm.

É importante aprender a distinguir as letras entre si e com

relação a outros sinais e marcas da escrita. Saber dizer que

letras aparecem em seqüência numa palavra é mais fácil com

alguns tipos de letras (por exemplo, letras de fôrma) do que com

outros (escrita cursiva). Saber os nomes das letras é importante

para poder conversar a respeito de quais rabiscos são letras e

quais, não.

5. Conhecer a categorização gráfica das letras

As letras podem ter muitas formas gráficas, gerando

diferentes alfabetos, como podemos ver na história dos sistemas

Page 201: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de escrita. Apesar da diferença gráfica entre

essas formas, uma mesma letra permanece a mesma porque

exerce a mesma função no sistema de escrita, ou seja, é usada

exatamente da maneira exigida pela ortografia das palavras.

<121>

As letras são categorias abstratas que desempenham uma

determinada função no sistema, que é preencher um

determinado lugar na escrita das palavras. Assim, no caso da

palavra CASA, de acordo com a ortografia da língua portuguesa,

é escrita com as seguintes letras:

1ª letra: letra cê; 2ª letra: letra a; 3ª letra: letra esse; 4ª letra:

letra a, novamente. A forma gráfica pode variar até os limites

das convenções que permitem ao leitor, vendo um rabisco,

reconhecer a letra cê, a, esse e a. Ou seja, é preciso saber a

categorização das letras, quer no seu aspecto gráfico

(equivalência das letras nos diferentes alfabetos), quer no seu

aspecto funcional (quais letras devem ser usadas para escrever

determinada palavra e em que ordem).

6. Conhecer a categorização funcional das letras

Apesar de variarem graficamente, as letras — como unidades

abstratas do alfabeto — têm valores funcionais fixados pela

história das letras, pelo processo de adaptação a uma

determinada língua e, principalmente, pela ortografia das

Page 202: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

palavras. Portanto, não se pode escrever qualquer letra em

qualquer posição numa palavra. Se as letras não tivessem esses

valores, poderíamos, por exemplo, escrever CASA com as letras

APXP (onde A C, P = A, X = S), ou mesmo MRIT, desde que

houvesse uma convenção que permitisse isso.

Além disso, seguindo as possibilidades geradas pela

ortografia, a palavra pronunciada "casa", em princípio, poderia

ser escrita das seguintes formas (apesar de apenas a primeira

forma ter sido escolhida pela ortografia):

CAZA

QAZA

KAZA

CASA

QASA

KASA

CAG

CAXA

QAXA

KAXA

Nota

O desenho das letras está muito diferente dos modelos

tradicionais, mas podemos lê-la porque distinguimos "letras"

nesse rabisco, e, para tanto, nos servimos dos conhecimentos

Page 203: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ortográficos da palavra CASA, ajudados pelo contexto em que

aparece essa escrita.

A alfabetização depende crucialmente do conhecimento da

categorização gráfica e funcional. Aí se localiza um divisor de

águas: quem consegue entender isso, pula a barreira do

analfabetismo e aprende a ler; quem não consegue, fica

tentando em vão outras maneiras de aprender. Grande parte do

trabalho de alfabetização deverá voltar-se, portanto, para o

estudo desses dois aspectos.

<122>

7. Conhecer a ortografia

A ortografia é mais importante do que a simples idéia de um

alfabeto no nosso sistema de escrita, porque ela controla a

categorização gráfica e funcional, muito mais do que o princípio

alfabético.

A dificuldade de ler começa com o problema da identificação

das letras. No início da alfabetização, uma criança tem tantas

dificuldades em reconhecer as letras em uma escrita cursiva

quanto um adulto experiente em ler "a letra do outro" como no

nome do remetente de uma carta.

Page 204: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

CAGLIARI, 1986b e 1994b.

Saber que a ortografia congelou o modo de escrever as palavras

ajuda muito os alunos a não tentar fazer do alfabeto um sistema

de transcrição fonética e a perceber que a fala segue as

variações dialetais, neutralizadas na escrita pela ortografia.

Conhecer a natureza, a função e os usos da ortografia é

importante ainda para entender as relações entre letras e sons e

entre fala e escrita. A ortografia comanda a função das letras no

sistema de escrita, estabelecendo a ordem dos caracteres nas

palavras e o valor fonético de cada um deles, de acordo com a

linguagem oral (dialetos de todos os usuários). Além disso,

estabelece como a linguagem oral deve ser segmentada para

formar as unidades da escrita, que chamamos de palavras.

Por outro lado, a ortografia fez com que a escrita tivesse como

função permitir a leitura, ou seja, permitir que os usuários de

diferentes dialetos pudessem

<123>

reconhecer uma determinada palavra e, assim, entender o que

está escrito. Uma vez identificada a palavra, através do estudo

dos sons e dos significados, o usuário está livre para dizer o que

está escrito, usando seu dialeto ou outro qualquer, porque as

marcas dialetais ficaram neutralizadas pela ortografia na escrita.

Dentro desse quadro constatamos que é mais fácil partir da

escrita ortográfica para a decifração da linguagem, atribuindo

Page 205: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

valores fonéticos às letras, do que analisar a fala e chegar à

forma ortográfica que a palavra tem. Em outras palavras, as

relações entre letras e sons são mais simples e fáceis do que as

entre sons e letras. Ou ainda, é mais fácil decifrar e ler do que

escrever. Juntando os segmentos da fala de todos os dialetos e

as letras, segundo o estabelecido pela ortografia das palavras,

temos o quadro completo das relações entre letras e sons.

Tem sido dada pouca importância ao estudo da ortografia,

quer nos sistemas de escrita quer nas atividades escolares. A

única coisa que alguns professores sabem fazer é corrigir erros

de grafia. O importante, contudo, está em compreender bem

como é a ortografia e como ela atua na linguagem escrita e na

leitura. Desse conhecimento, como vimos, dependem muitas

noções básicas, necessárias e indispensáveis para que uma

pessoa possa ler.

8. Conhecer o princípio acrofônico

O princípio acrofônico existe desde a formação do primeiro

alfabeto. O nome das letras traz, em seu início, o som mais

característico que a letra representa no sistema de escrita.

Assim, no nome "bê", da letra B, encontramos o som "b", que é o

som mais comum que essa letra assume. E isso acontece com

praticamente todas as letras.

O princípio acrofônico na verdade é um conjunto de regras que

Page 206: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

usamos para decifrar os valores sonoros das letras. Num

primeiro momento, atribuímos a cada letra o som que é dado

pelo seu nome. Depois, somamos os sons para descobrir que

palavra está escrita. Nesse momento, são feitos os arranjos

necessários a respeito dos valores sonoros das letras em função

da história das palavras, da ortografia e do dialeto que o leitor

conhece.

Alguns professores acreditavam que as cartilhas tinham algo

de especial e inexplicável, que fazia os alunos aprenderem. Esse

algo especial encontrava-se na

<124>

prática escolar que aplicava o princípio acrofônico de uma forma

ou de outra para ensinar as crianças a ler. Na verdade, o

princípio acrofônico é uma das ferramentas mais importantes

que o leitor tem para realizar sua tarefa de decifração e leitura.

9. Conhecer os nomes das letras

Os nomes das letras são: a, bê, cê, cê-cedilha, dê, é, efe, gê,

agá, i, jota, cá, ele, eme, ene, ô, pê, quê, erre, esse, tê, u, vê,

dáblio, xis, ípsilon, zê. Notar que o nome da letra H não se

escreve com H, o nome da letra K é com C (porque não se

escrevem palavras comuns com K na nossa língua), no nome da

letra W não aparece o som correspondente, nem no nome da

letra Y. Isso mostra que no nosso sistema o princípio acrofônico

Page 207: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

não está mais presente em todas as letras. Mas isso acontece

principalmente com letras de pouco uso, como K, W e Y; a letra H

é exceção.

Em Portugal, em vez de "dáblio" diz-se "duplo vê". Em inglês o

nome significa "duplo u". Alguns dialetos (por exemplo, do

Nordeste) têm outros nomes para algumas letras, para facilitar o

uso do princípio acrofônico. Eles dizem, por exemplo, fê, lê, mê,

nê, rê. Muitos professores de alfabetização adotam os dois

nomes para as letras, e isso facilita o trabalho.

10. Conhecer as relações entre letras e sons (princípios de

leitura)

Para saber que som uma letra tem, é preciso relacioná-la com

seu nome (som básico) e em seguida estudar o contexto em que

ocorre (letras que vêm antes e depois), para saber se existe

alguma regra especial que modifica o som básico em função do

contexto - por exemplo, S entre duas vogais tem o som de "zê";

C diante de A, O, U tem o som de "ka" e não de "cê", etc. Por

outro lado, é preciso levar em conta o dialeto do leitor. Por

exemplo, para alguns falantes, a letra T tem os sons de "tche" e

"tê", mas para outros tem apenas o som de "tê". Alguns falantes

dizem "catano" em vez de "catando" e, para esses, a letra D não

tem som, nesses contextos verbais.

As considerações acima mostram que existem regras que

Page 208: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

controlam os valores fonéticos que as letras podem ter numa

língua. Conhecer essas relações é indispensável para decifrar e

ler. Essas regras podem transformar-se em exercícios em sala de

aula. Os alunos adoram

<125>

descobrir as regras a partir de um conjunto de dados que lhes é

apresentado. Os professores devem aproveitar esse interesse —

para os alunos, um desafio ou jogo — e deixar que eles

construam, a partir da análise dos dados, o conhecimento de

como o sistema de escrita funciona e como se faz para ler.

11. Conhecer as relações entre sons e letras (princípios de

escrita)

Como vimos anteriormente, se alguém quisesse escrever

"kaza", teria diante de si muitas alternativas, mas deveria

acabar escolhendo apenas a forma estabelecida pela ortografia.

Para quem toma por base a ortografia para chegar à fala de

acordo com a norma culta ou com a pronúncia de seu dialeto, o

caminho partindo das letras para chegar aos sons é

relativamente fácil. Por exemplo, o aluno pode ver escrito

DENTRO e ler "drentu", aplicando seus conhecimentos básicos

das relações entre letras e sons, e depois adaptar o resultado

final à pronúncia do seu dialeto. Ao ler a palavra XA, dará à letra

X o som de CH, porque de acordo com as normas da nossa língua

Page 209: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

em início de palavra todo X apresenta apenas o som de CH. Por

outro lado, partindo da fala (que é sempre dialetal) para a

escrita, ou seja, indo dos sons para as letras, o caminho é outro.

Não basta, por exemplo, saber que X no início de palavras

representa o som de CH, uma vez que esse som pode ser

representado também por CH. Ao ouvir e tentar escrever "chá"

ou "cheque", o aluno deverá decidir se essas pronúncias serão

representadas por X ou por

CH: XÁ, XEQUE/CHA, CHEQUE. Quando se diz "andano" e

"drentu", dificilmente se descobre a forma ortográfica dessas

palavras: ANDANDO e DENTRO. Mas, no caminho inverso, quando

se conhece a norma padrão é mais fácil deduzir que a forma

ANDANDO é equivalente a "andano" e DENTRO, a "drentu".

12. Conhecer a ordem das letras na escrita

Para ler, é preciso ainda saber em que direção a escrita vai.

Quando dizemos que escrevemos da esquerda para a direita,

significa que a seqüência das letras nas palavras obedece a essa

ordem. Algumas crianças, muito preocupadas com o traçado das

letras, interpretam mal essa afirmação sobre a direção da escrita

e acabam escrevendo (sobretudo as letras arredondadas) de

forma espelhada, uma vez que o movimento

<126>

da mão, nesse modo de escrever, vai da esquerda para a direita

Page 210: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

e, na forma correta, da direita para a esquerda:

Podemos escrever seguindo outras direções. O importante é

permitir uma leitura clara, o que se obtém através da

identificação da linha de base sobre a qual as letras das palavras

se apóiam.

13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita

A questão anterior está ligada à característica linear da fala e

da escrita. Quando falamos, pronunciamos os elementos

segmentais (vogais e consoantes) e os elementos prosódicos

(entoação, ritmo, volume, velocidade, duração e ainda a

nasalidade, o acento, a qualidade de voz, etc.) todos ao mesmo

tempo e variando a cada momento. Mas, na escrita, fazemos

algumas separações.

Representamos as vogais e as consoantes sem outras

especificações. Depois, colocamos alguns sinais de pontuação no

final das frases, embora se deva modular a frase de maneira

apropriada desde o início. Escrevemos uma vogal e depois a

modificamos colocando um til ou um acento. As pausas da fala

nem sempre têm correspondência fixa com as pausas ou sinais

de pausa vírgulas, pontos) da escrita. A segmentação de

palavras na escrita, indicada pelo espaço em branco,

corresponde menos ainda a pausas ou segmentações na fala.

Isso tudo mostra que a fala e a escrita têm muitas diferenças e

Page 211: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que não há uma correspondência direta entre o que se escreve e

o que a escrita representa da fala. A escrita simplesmente dá

indicações que permitem a leitura. Cabe ao leitor, como

conhecedor da língua, tirar do texto as informações necessárias

para

<127>

reconstruir a linguagem oral na leitura, como se o que ele fosse

ler fosse o que ele estivesse dizendo por iniciativa pessoal.

14. Reconhecer uma palavra

Definir uma palavra na linguagem oral é uma tarefa difícil,

mas é fácil na escrita. De acordo com as normas ortográficas,

todo conjunto de letras separado por um espaço em branco

constitui uma palavra. O critério semântico ajuda muito, mas não

resolve todas as dúvidas.

No esforço para ler, a decifração começa a fazer sentido no

momento em que o leitor descobre uma palavra. Para chegar lá,

o fato de a escrita separar as palavras por espaços em branco

ajuda enormemente.

O professor deve mostrar ao aluno que uma primeira tarefa é

começar a identificar as segmentações das palavras. Para tal,

deve ater-se apenas à escrita.

15. Nem tudo o que se escreve são letras

Page 212: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Além de letras, a escrita usa sinais de pontuação, acentos e

outras marcas, que é preciso conhecer. A letra A com um til

representa um som diferente, ou seja, um A nasalizado. Porém,

nem todo A nasalizado será escrito com A mais til. A escrita usa

de acentos para marcar variações da qualidade das vogais,

mostrando se são abertas ou fechadas. Os sinais de pontuação

são diacríticos que servem para orientar a entoação e a prosódia,

embora façam isso de maneira muito precária. As vírgulas

servem, às vezes, para indicar pausas ou elementos

parentéticos. O ponto final representa uma pausa longa possível,

mas nem sempre necessária. Outras marcas como ponto de

interrogação, exclamação, reticências, etc. representam também

elementos prosódicos, sobretudo relacionados com a entoação.

O desconhecimento dessas marcas às vezes confunde o leitor

iniciante, que julga tratar-se de uma letra que ele desconhece, o

que bloqueia o processo de decifração.

16. Nem tudo que aparece na fala tem representação gráfica na

escrita

Como o leitor raciocina não só como alguém que está

tentando desvendar os segredos da escrita, mas também como

um falante que pode refletir sobre sua

<128>

fala, é preciso controlar as expectativas com relação ao que se

Page 213: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

vai ou não encontrar na escrita, comparada com a fala. No fundo,

essa é uma questão complexa.

Nem todas as características sonoras da linguagem oral têm

representação gráfica no sistema de escrita. No sistema

alfabético, as letras representam apenas os segmentos

fonéticos, isto é, aquelas unidades chamadas vogais e

consoantes, que são definidas como unidades constitutivas das

sílabas das palavras. Na prática, as vogais são mais facilmente

reconhecíveis através do prolongamento das sílabas: caaaa-

vaaaa-loooo, aaaan tiiii-gooo; e as consoantes pela observação

dos movimentos articulatórios da boca: ca-ca-ca-ca va-va-va-va

lo lo-lo-lo, an-an-an-an ti-ti-ti-ti go-go-go-go.

Como vimos, elementos prosódicos também têm pouca ou

nenhuma representação na escrita. Esses elementos ficaram de

fora porque o sistema de escrita segmentou a fala em palavras

sem levar em conta unidades maiores. Essas unidades formadas

da soma de palavras, como o grupo tonal por exemplo, precisam

ser recuperadas através dos conhecimentos que o leitor tem da

língua. Dado que nossos leitores são falantes do português,

saberão concatenar as palavras devidamente, como se o texto

fosse falado por iniciativa pessoal.

Apesar dessa limitação do sistema de escrita, na alfabetização

basta o professor falar, por exemplo, que o aluno precisa ler com

ritmo e entoação e explicar o que isso significa.

Page 214: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Nota

Neste livro optamos pelo uso das letras do alfabeto com seu

valor sonoro baseado no princípio aerofônico e não na forma de

transcrição fonética usual dos lingüistas (alfabeto próprio e

escrita entre colchetes) Assim o som da fricativa alveolar surda

será representado aqui por "çê" e não por (s). Essa opção foi

feita para mostrar ao professor que ele também pode fazer boas

transcrições fonéticas, usando apenas os conhecimentos do

alfabeto e uma boa observação de como as pessoas falam. Por

outro lado, mostra ao professor como a escrita parece estranha

quando se sai da ortografia, revelando um pouco da sensação

que o aluno tem ao se alfabetizar.

17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas

CAGLIARI, 1992c. >

Se deixarmos de lado a ortografia, podemos usar nossos

conhecimentos do sistema de escrita alfabético para fazer

transcrições fonéticas. Como os valores das letras foram

estabelecidos em função da ortografia da língua e da fala dos

dialetos, e não a partir das possibilidades articulatórias do

homem, tendo em vista todas as línguas e dialetos do mundo, o

uso do alfabeto para se fazer transcrição fonética é precário —

Page 215: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

há melhores sistemas para isso. Não obstante, esse uso especial

do alfabeto apresenta uma certa eficiência que pode ser

aproveitada pela escola. Dessa forma, pode-se transcrever

foneticamente a variação lingüística que encontramos nos

dialetos. Pode-se transcrever, por exemplo, as maneiras

diferentes que as crianças têm de pronunciar as palavras e

registrá-las sob a forma escrita. Esse tipo de prática ajuda

<129>

da enormemente a contrastar a escrita que respeita a ortografia

com a transcrição fonética da fala, com a qual os alunos

começam a escrever.

Alguns alunos acabam pensando que o alfabeto serve apenas

para escrever os sons à moda das transcrições fonéticas, e isso

causa algumas dificuldades não só na escrita, como também no

processo de aprendiza gem da leitura. Mostrar as duas

possibilidades de uso do alfabeto é indispensável para os alunos

poderem trabalhar tranqüilamente.

A COMPETÊNCIA TÉCNICA DO PROFESSOR

Saber decifrar a escrita é o segredo da alfabetização. E muito

importante que o professor tenha isso sempre em mente. Ele

deverá fazer muitas coisas como professor e principalmente

como educador. Mas ensinar a ler é sua tarefa principal. Para

tanto, é preciso ter, em primeiro lugar, os conhecimentos

Page 216: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

necessários para que alguém possa ler o que vê diante de si. Os

< CAGLIARJ, 1992c e 1 99 6h. cursos de formação de professor

têm se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando

muitas vezes um valor indevido aos aspectos pedagógicos,

metodológicos e psicológicos. Como educador, o professor

precisa ter uma formação geral, e esses conhe cimentos são

básicos. Como professor alfabetizador, precisa ter

conhecimentos técnicos sólidos e completos. Para ensinar língua

portuguesa, é preciso saber o mais possível sobre a linguagem

em geral e sobre a língua portuguesa em particular. Para ensinar

alguém a ler e a escrever, é preciso conhecer profundamente o

funcionamento da escrita e da decifração e corno a escrita e a

fala se relacionam.

<130>

Um professor bem-preparado, com competência técnica, sabe

exatamente o que fazer em qualquer situação de seu trabalho.

Sabe o que o espera pela frente, quais os problemas que

costuma enfrentar e como resolvê-los. Se acontecer algum

imprevisto, saberá como se comportar. Esse tipo de discurso

encontra-se em qualquer livro de pedagogia: é o óbvio. A

aplicação dessas palavras à vida das pessoas, porém, é uma

questão não tão óbvia, e menos fácil e comum ainda entre os

professores.

Se se perguntar a um professor alfabetizador tradicional como

Page 217: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ele faz para ler uma simples palavra como POTE, ele responde

que a gente verifica quais são os sons das letras e diz "pote". E

se quiser escrever a mesma palavra, basta observar que sons a

palavra tem, ver as letras correspondentes a esses sons e

escrever: POTE. E como alguém sabe quais são os sons das

letras? A sua resposta será que se aprende isso com o bá-bé-bi-

bó bu. O conhecimento de como a escrita, a leitura e a fala

funcionam está restrito a essas noções. Com apenas esses

conhecimentos, no entanto, ninguém é capaz de ensinar uma

pessoa a ler e a escrever como se deve. Nessas circunstâncias,

um aluno precisará descobrir, por conta própria — porque é

falante da língua portuguesa, capaz de refletir sobre o funciona

mento de sua fala e da fala alheia e de decifrar a escrita —,

muitas informações, sem as quais não poderá tornar-se um

leitor.

A AUTONOMIA DO PROFESSOR

A explanação acima é oportuna para que o professor reflita

sobre seu trabalho, vendo as questões não do ponto de vista

metodológico, mas da sua competência. Ele não precisa de

"pacotes" educacionais. Os métodos e técnicas não passam de

ferramentas que ajudam em alguns casos e atrapalham em

outros. Um professor competente saberá avaliar quais livros

didáticos são úteis e interessantes e se trazem erros e omissões

de questões importantes ao ensino. O professor precisa libertar-

Page 218: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

se das pessoas que apresentam soluções miraculosas num livro

ou método. Mas, para isso, para que esta autonomia possa se

sustentar, deverá ser realmente compe tente e um especialista

em sua área.

<131>

Um professor que pergunta numa palestra o que ele deve

fazer para ensinar a um aluno como ler sem soletrar, como

ensinar os grupos consonantais, como ele pode explicar ao aluno

o emprego das consoantes nasais em final de sílaba, etc, mostra

quão despreparado está para o desempenho de seu trabalho.

Como um professor como esse pode alfabetizar alguém? Se nem

ele sabe resolver essas questões, de que forma seus alunos

poderão saber?

Por outro lado, um professor que passou vários anos em sala

de aula tem uma experiência de vida muito rica, que pode e deve

ser aproveitada, para tirar daí o que a escola de formação não

lhe deu. Existe uma idéia muito preconceituosa em nossa

sociedade com relação aos autodidatas. No entanto, essa talvez

seja a maneira mais usual e eficiente de corrigir os defeitos de

um sistema educacional falho.

Aos poucos, o professor pode ir lendo livros de lingüística

geral ou de áreas particulares (fonologia, sociolingüística,

semântica, etc.) e verificando onde esses conhecimentos entram

na sua prática de sala de aula e quais as conseqüências que eles

Page 219: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

trazem. Deve estudar os sistemas de escrita e decidir como levar

esses conhecimentos para suas aulas. Deve, sobretudo, refletir

como usuário da língua portuguesa a respeito dos mecanismos

da fala, escrita e leitura e quais os seus usos. Deve procurar

explicitar, através de pequenas regras, o que faz quando ouve,

fala e escreve. Se o professor sabe ler, pode refletir sobre todos

os conhecimentos necessários para realizar essa tarefa e

traduzir essa reflexão em regras, que serão passadas

oportunamente para os alunos. Deve refletir sobre as próprias

dificuldades e tentar descobrir formas de superá-las, porque

assim saberá voltar-se às dificuldades particulares dos alunos e

procurar urna solução para elas.

Muitas das coisas que se ensina neste livro poderiam

perfeitamente sair de um trabalho pessoal de qualquer professor

alfabetizador, já que na vida profissional lidamos com todas

essas questões. Simplesmente não estamos acostumados a

refletir sobre elas e menos ainda a explicitá-las na forma de um

estudo. Mas é justamente essa explicitação que traz à

consciência do professor sua competência.

<132>

Procedimentos para o estudo das letras

Como já dissemos várias vezes, aprender a ler é o segredo da

alfabetização. Para alguém conseguir ler algo, precisa saber

como esse sistema de escrita funciona, isto é, precisa saber

Page 220: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

decifrar a escrita. De acor do com o sistema de escrita, o

processo de decifração ocorre de uma determinada maneira.

Para decifrar uma escrita feita com letras de um alfabeto, a

questão mais importante é saber quais sons estão associados a

quais letras. Por essa razão, apresenta-se, logo adiante, a título

de sugestão, o modo como um professor pode trabalhar esse

aspecto na alfabetização. Antes disso, porém, é bom lembrar

alguns fatos que servem de guia para que o processo de

alfabetização seja mais eficiente.

1. Fornecer as explicações básicas ao aluno

Do ponto de vista funcional, a escrita escolar que usamos

baseia-se num alfabeto de 26 letras (incluindo o "ç"), em alguns

diacríticos, como os acentos e o til, e em marcas, como os sinais

de pontuação. Cada letra representa um valor abstrato, que pode

ter inúmeras formas gráficas. Esse valor é dado pela expectativa

de ocorrência em palavras, de acordo com as normas

ortográficas. Por exemplo, "E" representa o mesmo valor de "e",

e, embora graficamente esses dois caracteres sejam muito

diferentes, é possível escrever a mesma palavra, variando esses

caracteres: "SELO" e "selo". A escrita representa sons da fala. O

próprio nome das letras traz em si um dos sons (em geral o

principal) que a letra representa. Ler não é o mesmo que

escrever. Quando se lê, o que vale é a decifração que conduz ao

reconhecimento da palavra, indo da análise de letra por letra e

Page 221: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de combinações de letras, até compor o resultado final. Feita a

decifração, o contexto em que aparece escrita a palavra em geral

é suficiente para mostrar para o aluno que ele está no caminho

certo. Quando se trata da palavra isolada, é preciso verificar as

alternativas possíveis, que o aluno pode checar, levando em

conta os conhecimentos que tem da linguagem oral, como

falante nativo. Depois, ele vai aprender que pode encontrar

escrita uma palavra que não conhece. Precisará, então, consultar

um dicionário.

Entretanto, o procedimento é diferente quando se escreve. Em

primeiro lugar, observam-se os sons que a palavra apresenta na

linguagem oral. Em seguida, faz-se uma hipótese a respeito de

quais letras podem ser usadas para transcrever os sons

detectados. Finalmente, leva-se em conta a ortografia. Se o

aluno já souber como é a forma ortográfica da palavra, escreve

com facilidade. Se não

<134>

souber ou tiver dúvidas, deverá resolvê-las antes, perguntando

ou procurando no dicionário.

É sempre bom lembrar que não é preciso ter uma ilustração

para se escrever ou ler: um texto basta, ou seja, algo falado

(quando se vai escrever) ou algo que se pode falar (quando se

vai ler). É interessante recordar também que a escrita não

representa a fala de um dialeto em particular. Qualquer falante,

Page 222: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de qualquer dialeto, pode ler decifrando as letras e compondo as

palavras segundo a fala de seu dialeto. Ao escrever, pensa nos

sons das palavras em seu dialeto, procura a forma padroniza da

pela ortografia e escreve.

É preciso estar atento para o fato de que se pode fazer "leitura

incidental" e até escrever palavras com letras, como se fossem

glifos, ou seja, caracteres ideográficos. Como, porém, o sistema

também é fonográfico e usa letras, o segredo da escrita das

palavras é a combinação de letras. Isso simplifica enormemente

a tarefa de escrever uma palavra, seja ela familiar ou não. O

mesmo vale para a leitura: pode-se ler uma palavra como se

fosse um ideograma, mas essa não é uma leitura produtiva.

Quem sabe combinar os valores fonéticos das letras para deci

frar as palavras escritas tem muito mais vantagens e facilidades

para ler. E é assim que os alunos devem aprender.

Essas noções básicas devem ser discutidas com os alunos

desde o início dos trabalhos e sempre que o professor tiver

oportunidade. Se perceber que algum aluno está fazendo

confusão com alguma dessas idéias, precisará esclarecê-lo. O

professor precisa explicar cada uma dessas noções, e não ficar

camuflando com histórias ou exercícios que indiretamente

propiciem o aluno a chegar às conclusões desejadas. É preciso ir

direto ao assunto, sem rodeios.

2. Explicar o que é uma letra

Page 223: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O aluno deve saber ainda que as letras são dispostas em

linhas (em geral horizontais e mais raramente de cima para

baixo), e que uma letra sucede a outra, da esquerda para a

direita, linha por linha. As letras têm tamanhos e formas

definidas nos alfabetos. Letras maiúscula e minúscula indicam

alfabetos diferentes (conjuntos diferentes de caracteres), e não

letras em tamanho grande ou pequeno. Toda letra tem uma

forma básica, que serve para distinguir um caractere de outro,

mas pode variar e ter "enfeites" sem interferir nas suas

características distintivas, como as serifas das letras de fôrma

maiúsculas. Corno as letras são dispostas no espaço,

<135>

em linhas, apoiadas na linha-base horizontal, e a seqüência é da

esquerda para a direita, elas têm uma direção fixada por esse

espaço, de tal modo que não se pode virá-la de cabeça para

baixo, da direita para a esquerda. A letra deverá estar disposta

na escrita das palavras, tal qual aparece no alfabeto. Aliás, a

disposição das letras no próprio alfabeto já mostra esse fato. As

letras são escritas separadamente, no alfabeto de letras de

fôrma, mas são interligadas na escrita cursiva.

Com relação aos usos da escrita, o aluno deve saber onde se

pode encontrar exemplos de escrita, através do reconhecimento

do que é letra e do que não é. Letras podem vir acompanhadas

de figuras ou rabiscos: é preciso saber distinguir um de outro. É

Page 224: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

necessário saber por onde começar a ler ou a escrever, e onde

terminar, o que são palavras isoladas e o que é um texto. As

vezes, juntamente com o aspecto gráfico e funcional de urna

letra, o autor tira proveito artístico ou qual quer outro efeito,

para "enriquecer" a escrita com mais idéias. É preciso distinguir

um uso lingüístico da escrita de outros usos possíveis.

Como vivemos num mundo onde coexistem muitos sistemas

de escrita, o aluno precisa saber isolar a escrita alfabética,

composta de letras e seguindo uma ortografia, de outras formas

de escrita, tais como numérica, simb&lica, as que utilizam sinais

e marcas. É preciso, ainda, distinguir uma escrita linear de certas

formas "abrevia das" ou "compostas", em que as letras são

simples pretexto para urna escrita do tipo ideográfica e não-

linear.

Enfim, antes de se ensinar as relações entre letras e sons, o

aluno deve saber o que é uma letra e corno reconhecê-la quando

a encontrar pela frente. Reconhecer o material da escrita e suas

características básicas é im prescindível para começar um

trabalho de decifração, descobrindo quais sons as letras

apresentam em deter minada palavra. Aprender a ler significa

aprender todas essas coisas. Alguns alunos se perdem em

detalhes (segundo o professor), mas sem superar essas

"pequenas" dificuldades, tudo o mais fica comprometido. E se o

aluno não for capaz de decifrar uma palavra, ele não saberá ler e

Page 225: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

não poderá ser considerado alfabetizado, mesmo que consiga

dizer coisas que vê escritas, ou reproduzir graficamente o

traçado de palavras.

3. Explicar como segmentar a fala em palavras

Uma palavra separa-se de outra na escrita por um espaço em

branco. Para saber como segmentar uma

<136>

palavra, observando a linguagem oral, há duas estratégias

importantes: a primeira, é separar por significado — cada

significado corresponde a uma palavra possível; a segunda, é

tentar colocar outra palavra no local que se quer segmentar — se

isso for viável, a segmentação é possível. Tudo isso é muito mais

complicado na prática do que esse comentário revela. Mas essas

idéias representam um primeiro passo para os alunos poderem

segmentar a fala oral em palavras, que deverão escrever, sem

muitas dificuldades. A palavra final será sempre dada pela

ortografia. E, nesse caso, quem sabe sabe; quem não sabe tem

de perguntar. Por exemplo, embora represente uma idéia só, é

possível separar em palavras escritas a expressão "assistir à

televisão", porque podemos reconhecer um significado em

"assistir" e outro em "televisão", o que nos permite variar parte

da expressão: "assistir ao jogo", "assistir ao filme", "ver

televisão" "consertar televisão", etc. Pode-se colocar uma

palavra intercalada entre uma e outra: "assistir sempre à

Page 226: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

televisão". Porém, no caso de "macarrão", se houver

segmentação, pode-se ter "maca", mas o que sobrou fica sem

sentido: "-rrão"; tampouco pode-se intercalar algo entre uma

palavra e outra: "maca-gostoso-rrão"... Compare as formas

"casa pequena" e "casinha" e faça os testes.

Os alunos não devem se preocupar em cortar palavras no final

de linha, porque esse é um procedimento encontrado em livros,

mas não na escrita comum do dia-a-dia.

Nota

E aconselhável pendurar uma faixa sobre a lousa em que

apareçam primeiro as letras de fôrma maiúsculas e depois as

letras de fôrma minúsculas e minúsculas lado a lado.

4. Explicar como descobrir as regras de decifração

Deve haver um cartaz bem grande (ou uma faixa) com as

letras do alfabeto em sala de aula, para que os alunos possam

consultar sempre que desejarem. Quando o professor for ensinar

as relações entre letras e sons, começará pelo nome das letras.

Em geral, a classe como um todo conhece todas as letras do

alfabeto, porque as crianças costumam ir aprendendo, mesmo

antes de entrar na escola, pelo menos as letras iniciais do

próprio nome. Decorar os nomes das letras é importante, mas o

professor não irá exigir isso, através de exercícios de memória,

Page 227: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

nos quais os alunos recitam o alfabeto. Isso se aprende e se

decora com o próprio estudo das letras.

O professor poderá pedir para os alunos ditarem palavras para

verem como são escritas e para proceder à análise de uma ou de

outra letra do interesse deles.

<137>

Poderá, se quiser, proceder a uma análise geral da palavra,

dizendo o nome de cada uma das letras que a compõem.

Seguindo a ordem da esquerda para a direita (ordem correta),

pode-se ler a palavra corretamente, mas se a leitura for feita da

direita para a esquerda, tem-se um amontoado de sons sem

sentido (raramente dá certo ler da direita para a esquerda.

Entretanto, pode-se ter palavras diferentes, ou até mesmo a

mesma palavra, como AMOR e ROMA; ASA, etc.).

Descobrir regras de decifração (relação letra/som) e de

escrita (relação som/letra) é uma estratégia para se alfabetizar

com rapidez e segurança, deixando de lado o método das

cartilhas, o famoso bá-bé-bi-bó-bu. Nessa atividade, o professor

pode programar aulas e material, fazendo o levantamento dos

sons que as letras têm. Por outro lado, pode fazer um

levantamento das letras que são usadas para representar um

mesmo som. Escrever listas de palavras para mostrar as funções

das letras será um procedimento cotidiano. Os exemplos das

listas servirão para uma discussão reflexiva sobre as relações

Page 228: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

entre letras e sons e demais fatos lingüísticos, como a variação

dialetal e a ortografia. Como resumo e conclusão das reflexões, o

professor ajudará os alunos a formularem regras que expliquem

os fatos considerados.

As cartilhas jamais pensaram nessas coisas, porque nunca se

preocuparam em ensinar como decifrar a escrita, deixando que o

aluno descobrisse isso por conta própria, de tanto escrever

palavras com "pedacinhos". É incrível que alguns professores

alfabetizadores nunca tenham pensado nesses fatos e, quando

se pede a eles para organizar um material nesse sentido,

sentem-se embaraçados e confusos.

JUNTANDO E GENERALIZANDO

Um estudo detalhado de letra por letra é apresentado no

Apêndice no final deste livro. Recomenda-se que o professor

consulte-o sempre que necessário. Levando em consideração

esse estudo em anexo, pode-se ver a questão das relações entre

letras e sons por outro ângulo. Como algumas letras têm um

comportamento muito semelhante entre si (paralelismo), ou se

comportam de uma maneira semelhante sempre que se

encontram em determinadas circunstâncias, isso permite

<138>

juntar o que for igual e generalizar os casos comuns a mais de

uma letra. Desse modo, em vez de uma série de regras

Page 229: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

parecidas, para letras diferentes, pode-se ter a mesma regra

para todos os casos que se enquadram dentro das regras

propostas. Refletir sobre tais questões é uma maneira um pouco

mais sofisticada de conduzir a análise dos conhecimentos

necessários para que alguém consiga ler e escrever. Uma

incursão por esse território será feita a seguir.

Em primeiro lugar, é preciso distinguir fatos de leitura

(decifração) de fatos de escrita (produção de escrita). Um fato

pode ser fácil para o aluno quando ele tem de decifrar e ler, mas

pode ser muito complicado quando, observando esse fato na

fala, ele tem de decidir como escrever. As facilidades e as

dificuldades de ler não são as mesmas quando se trata de

escrever. Esse é um ponto que as cartilhas nunca levaram em

conta porque tratam apenas da escrita, mesmo quando estão

pensando na leitura.

Além de distinguir fatos da leitura de fatos da escrita,

procuraremos avaliar o que é mais "fácil" e o que é mais "difícil",

partindo da complexidade que as letras têm nas suas relações

com os sons da fala, e vice-versa. A própria natureza das letras,

suas funções e empregos serão a medida usada para definir se

uma letra é mais difícil ou mais fácil do que outra, na decifração

ou na escrita. Essa é uma ordem de análise científica, não uma

ordem pedagógica. Para um aluno principiante, escrever ou ler

qualquer coisa é sempre muito difícil. Somente quem conhece o

Page 230: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

funcionamento de todo o sistema pode hierarquizar o que, para

si, é mais fácil ou não. O mito de que a letra x é a mais difícil

deve-se ao fato de as pessoas já alfabetizadas encontrarem

dificuldades ortográficas quando estão diante dessa letra. Para o

principiante, ler ou escrever CASA ou EXTRA pode apresentar o

mesmo grau de dificuldade e, nessas circunstâncias, é difícil

hierarquizar qualquer tópico com segurança.

OQUE É MAIS FÁCIL DE DECIFRAR

Antes de mais nada, é bom relembrar o que se disse

acima a respeito das noções de "fácil" e "difícil" aplicadas ao

estudo das letras. Trata-se de uma dificuldade

<139>

medida de acordo com a complexidade dos fatos de nossos

sistemas de escrita (decifração e ortografia) e de fala (variação

lingüística). Essas dificuldades aparecem cada vez mais à

medida que o aluno progride nos estudos. No início, tudo é

igualmente muito difícil. Entretanto, sabendo das dificuldades

futuras, o professor poderá entender melhor o percurso que os

alunos farão.

Quando se fala em decifração, subentende-se leitura. Vamos

separar os comentários a respeito das letras que representam

vogais (A, E, I, O, U) das demais que representam consoantes.

As vogais mais fáceis de decifrar são o I e o U. Sempre que se

Page 231: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

encontrar uma delas lê-se "i" ou "u". Igualmente fáceis são

essas mesmas vogais quando são ou podem ser nasalizadas.

Exemplos: JUNTO, TINTA.

Em seguida, tratemos da vogal oral A. Essa vogal muda de

qualidade vocálica quando se junta a ela a nasalização (note a

diferença entre LÁ e LÃ). A letra A, quando nasalizada, pode

gerar a formação de ditongos, juntamente com o M, ou o NH,

como em ACHARAM, BANHA. Pode ainda ser nasalizada ou não

quando ocorrer um M ou N ou NH no início da sílaba seguinte,

como

em: CAMADA, BANANA, BANHA.

As vogais mais difíceis são o E e o O. Ambas apresentam

regras semelhantes (mudando apenas os valores fonéticos em

jogo). A letra E pode ser lida como "é" ou como "é" em sílabas

tônicas (o valor fonético "é" ocorre raramente em sílabas

átonas, e somente em palavras derivadas, como CAFEZINHO, ou

na pronúncia especial de certos dialetos do Norte e do

Nordeste). Exemplos: DELE, DELA, BELO, BELEZA. Em sílabas

átonas, a letra E pode, ainda, ser lida com o som de "i". Veja os

exemplos: FERE, "féri", EMPRESTADO, "imprêstadu".

A letra O pode ter o som de "ô" ou de "ó" quando ocorre em

sílaba tônica (em sílaba átona, o som de "ó" ocorre somente em

palavras derivadas e na pronúncia de certos dialetos,

semelhantemente à letra E). Em sílabas átonas, é comum a letra

Page 232: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O ter o som de "u". Confira os seguintes exemplos: FOCA, FOGO,

COMIDA, COZINHA.

Todas as vogais juntas apresentam regras semelhantes

quanto à nasalização, embora somente a vogal A mude sua

qualidade vocálica básica ao se nasalizar. Assim, quando uma

vogal se encontra diante de um M ou de um N, que por sua vez

ocorre diante de outra comsoante,

<140>

a vogal precisa ser nasalizada: CAMPO, CANTO, ENTRE, EMBORA,

VINDA, LIMPO, ONDA, OMBRO, JUNTO, TUMBA. Quando a vogal

vem diante de uma consoante nasal (M, N, NH), a qual, por sua

vez, ocorre diante de outra vogal, a vogal precedente pode

nasalizar-se ou não. Se ocorrer diante de NH pode ditongar-se ou

não: CAMA, CANA, BANHA, PENA, LENHA, LEME, VIME, CINEMA,

VINHO, ZONA, COMA, SONHA, UNA, UMA, UNHA.

Em final de palavra, as vogais E e I, quando seguidas de M,

podem ditongar-se com "i", e a consoante nasal pode ser um

"nh" na fala. Por outro lado, as vogais O, U e A, quando seguidas

de M, em final de palavra, podem ditongar-se com "u", e a

consoante nasal pode ser uma velar, como nos seguintes

exemplos: VEM, VIM, ALGUM, BOM, ACHARAM.

Finalmente, toda vogal com til representa um som nasalizado.

Porém, na escrita o til só pode ocorrer sobre A e O, como em: LÃ,

MÃE, CIDADÃOS, LEÕES, PÕEM, etc.

Page 233: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Com relação às consoantes que são mais fáceis de

decifrar, podem-se ter três grupos. Primeiro grupo: H e

os dígrafos CH, LH, NH, mais Ç e J. Segundo grupo: P

B, T, D, F e V. Terceiro grupo: L e Z.

Com relação ao primeiro grupo, a letra H só ocorre em início

de palavra e aí não tem som algum (é preciso começar a

decifração pela vogal que vem logo depois). Exemplos: HORA,

HINO, HÁBITO, HERÓI. Como parte de um dígrafo, modifica o

som da letra que a precede, mas resulta num valor fonético de

fácil controle pelo falante ("chê", "lhê" e "nhê"). Exemplos:

CHINA, PALHA, VENHA. A letra Ç tem sempre o som de "çê", e a

letra J tem sempre o som de jê". Exemplos: MAÇÃ, POÇO, JOVEM,

AJUDAR.

As letras do segundo grupo representam valores fonéticos

fáceis quando ocorrem em início de sílaba. Em final de sílaba,

são pronunciadas com um "i" optativo. Apresentam maior

dificuldade quando são a primeira letra de grupos consonantais

terminados em R ou L (ou mais raramente S). Exemplos: POTE,

BOLA, TATU, DADO, FACA, VACA, OBJETO, RITMO, ADVOGADO,

TRABALHO, BROTAR, LIVRO, FRANGO, etc.

No terceiro grupo, estão as letras L e Z em início de sílaba.

Nesse contexto, a letra L tem sempre o som de "lê", e a letra Z

tem sempre o som de "zê". Em final de sílaba, a letra L tem o

som de "u", e a letra Z, de "çê". A

Page 234: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<141>

letra L apresenta certa dificuldade quando ocorre formando

grupos consonantais, ou seja, entre uma consoante e uma vogal,

na mesma sílaba.

O QUE É MAIS DIFÍCIL DE DECIFRAR

Podemos agrupar as maiores dificuldades de decifração das

consoantes em seis grupos. Primeiro grupo: letra C e grupos

consonantais SC, XC; segundo grupo:

S; terceiro grupo: G e os dígrafos GU e QU; quarto grupo: R (o

dígrafo RR é de fácil leitura); quinto grupo: os casos de juntura

intervocabular envolvendo R, S, Z e M; e sexto grupo: X e os

dígrafos XC e XÇ.

Com relação ao primeiro grupo, a letra C tem o valor fonético

de "çê" diante de E, I ou de outra consoante, como no caso dos

dígrafos SC, SÇ ou XC. Nos demais casos, tem o som de "kê"

(diante de A, O, U ou de outra consoante). Exemplos: CEBOLA,

CIDADE, NASCIMENTO, NASÇA, EXCEÇÃO, CABANA, COR, CRISE,

CLARO, TÉCNICA.

Quanto ao segundo grupo, a letra S tem o som de "çê" no

início de palavra, depois de consoante e no dígrafo SS, como em

SAPO, SELVA, PSICOLOGIA, PASSO Entre duas vogais, tem o som

de "zê". Exemplo: MESA. A letra S não representa som nos

dígrafos SC, SÇ e na forma de plural de certas palavras, em

Page 235: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

certos contextos, em alguns dialetos (cf. "as casas amarelas

foram vendidas"). Em alguns dialetos, a letra S, em final de

sílaba, tem o som de "çê", mas, em outros, tem o som de "chê".

Nesse caso, se houver uma consoante sonora no início da sílaba

seguinte, no meio da palavra, a letra S pode ter os valores

sonoros correspondentes nos dialetos mencionados acima, ou

seja: "zê" e "jê". Confira os exemplos:

BESTA, COSTA, DESDE, MESMO, SATANÁS, TOMÁS.

Com relação ao terceiro grupo, a letra G é semelhante à letra

C: diante de E e de I tem um tipo de som ("jê") e, diante de

outras letras, tem outro tipo de som ("guê"). Os grupos de letras

GU e QU podem ser dígrafos ou não. Só são dígrafos diante de E

e de 1 e nunca diante de outra vogal (A, O e U. No entanto, em

algumas palavras, os grupos GIJ e QU não são dígrafos, uma vez

que o U é pronunciado. Somente o falante nativo sabe se o u é

pronunciado ou não numa determinada palavra. Não há regras.

Exemplos: GENTE, GIRAFA, GARRAFA, GULOSO, GOTA, GLÓRIA,

GRAÇA, IGNORAR;

<142>

dígrafos: GUERRA, GUIMARÃES, QUENTE, ANIQUILAR, AQUI,

AQUELE; não-dígrafos: AGÜENTAR, SAGÜI, LÍQÜIDO,

FREQÜENTE.

O quarto grupo é o formado pela letra R (o RR é de fácil

decifração — tem como única dificuldade a variedade de sons em

Page 236: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

diferentes dialetos). O R representa o som do tepe (vibrante

simples) quando está entre duas vogais, e representa o som da

fricativa velar (ou da vibrante múltipla) quando está em início de

palavra. Acontece que esse segundo valor fonético é típico do RR

em posição intervocálica, motivo da confusão que alguns alunos

fazem com as duas formas de escrita. Nos outros contextos, a

variação é menos problemática (final de sílaba, por exemplo). É

preciso levar em conta, ainda, o fato de o R em final de verbos

não ser pronunciado em certos dialetos ou em certos registros

de fala (fala informal). Em todos os casos, soma-se ainda a

grande variedade de sons foneticamente possíveis nos vários

dialetos, sem contar a ocorrência ora de uma pronúncia vozeada

(sonora), ora desvozeada (surda). Exemplos: CARO, CARRO,

MURO, MURRO, RATO, RIO, RUA, BRASIL, POBRE, CRAVO,

PORTA, CERTO, MAR, PLANTAR, FERIR.

O quinto grupo refere-se aos casos de juntura intervocabular

envolvendo R, S, Z e M. Juntura significa ligar uma palavra com

outra na fala. Quando escrevemos, separamos as palavras com

um espaço em branco, mas, quando falamos, não é isso o que

acontece. Não há uma pequena pausa entre uma palavra e outra;

pelo contrário, o que ocorre mais freqüentemente é a ligação de

uma palavra com outra como se ambas fossem uma coisa só. Em

português, além disso, costumam ocorrer algumas modificações

quando certas palavras se juntam.

Page 237: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Vamos ver uma série de exemplos, mostrando qual a

pronúncia quando duas palavras se juntam:

Palavras isoladas Palavras

concatenadas

casa amarela (1) casamarela

está aqui (2) estáqui

fala alto (3) falaálto

está alto (4) estáalto

parte azul (5) parteazul

carro azul (6) carroazul

todo ódio (7) todoódio

está infeliz (8) estáinfeliz

compre ovo (9) compreôvo

<143>

No primeiro exemplo, quando se juntam dois "as", um deles

cai, o mesmo acontecendo com o exemplo número dois. Porém,

nos exemplos 3 e 4, houve o encontro de dois "as" mas nenhum

deles caiu. Será que existe alguma regrinha para esses casos?

Vamos ver que tipo de sílaba ocorre nesses contextos. No

exemplo 1, têm-se uma sílaba átona final e uma sílaba átona

inicial. No exemplo 2, ocorre uma sílaba tônica final, seguida de

uma sílaba átona inicial. No exemplo 3, tem-se uma sílaba átona

Page 238: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

final, seguida de uma sílaba tônica inicial. No exemplo 4,

ocorrem duas sílabas tônicas.

Considerando apenas o exemplo 1, não se sabe qual vogal

deixou de ser pronunciada. O exemplo 2 é de difícil análise.

Porém, nos exemplos 3 e 4, nota-se que a vogal tônica

permanece sempre, e que a vogal átona mantém-se apenas

quando é final da palavra e a seguinte começa com vogal tônica,

como no exemplo 3. Podemos formular agora uma regra: em

juntura intervocabular, a segunda vogal cai se for idêntica à

primeira em sua qualidade, e se for, além disso, átona. Essa

regra inclui todos os exemplos estudados.

O que acontece, porém, quando se juntam duas vogais de

qualidades diferentes? Vejamos os exemplos de 5 a 9. Nota-se

que, no contexto de juntura, formam-se ditongos crescentes (o

final do ditongo é mais saliente do que o inicio). E isso ocorre

independentemente da qualidade das vogais e da tonicidade que

elas apresentam, como mostram esses exemplos.

Fez-se uma análise mais completa do fenômeno para

evidenciar, mais uma vez, como refletir sobre as relações entre

fala e escrita. Do ponto de vista da decifração e da escrita, a

dificuldade dos alunos é maior no caso da juntura que provoca a

queda de alguma vogal. Envolve também algumas dificuldades

com a segmentação, nos demais casos, uma vez que as sílabas

se fundem, com a formação dos ditongos. A dificuldade mais

Page 239: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

comum que os alunos enfrentam, encarando o problema por

outro ângulo, é saber se devem ou não escrever o artigo "a", em

contextos de juntura com outra vogal precedente (ou, mais

raramente, subseqüente). Por exemplo, é comum alguns alunos

omitirem o artigo em expressões como "toda a família". Confere,

ainda, "toda a amizade", em que caem dois "as" na fala, mas não

na escrita.

Em alguns casos, a presença do artigo não é obrigatória, mas

muda levemente o significado da frase, como em: "comprava a

cebola por quilo e a banana a dúzia" em confronto com

"comprava cebola por quilo

<144>

e banana a dúzia". No primeiro caso, o falante quer marcar uma

oposição, no segundo caso, apenas enumera fatos.

Com relação à decifração, a maior dificuldade dos fenômenos

de juntura intervocabular acontece quando, em final de palavra,

há uma consoante e, no início da palavra seguinte, uma vogal.

Nesses casos, a consoante final junta-se à vogal inicial,

formando uma sílaba única e dificultando, assim, o trabalho de

segmentação da fala.

Pior ainda é o fato de haver mudanças muito significativas na

qualidade fônica dos elementos envolvidos. Por exemplo, uma

letra R em final de palavra tem o som de RR (cujo valor fonético

varia de dialeto para dialeto, como já se viu antes). Porém,

Page 240: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

quando se encontra em juntura intervocabular, o R tem o som da

vibrante simples (tepe) e não da vibrante múltipla (RR).

Concluindo, troca-se o som de RR por R, como se pode ver nos

exemplos a seguir: MAR ALTO, VIR AQUI, POR ALI, CARÁTER

AGRESSIVO, etc.

Quando o aluno analisa sua fala contínua, encontra um tipo de

som, mas, depois que a segmenta, depara-se com outro,

pronunciando a palavra isoladamente. Isso costuma causar

dificuldades sérias para alguns alunos, no início. O professor

precisa explicar ao aluno que a fala funciona de um jeito e a

escrita, de outro. A escrita funciona como se as palavras

ocorressem sempre isoladas.

Fato semelhante é o caso do S ou Z em final de palavra e vogal

no início da palavra seguinte, em juntura. As letras S ou Z,

nesses casos, têm sempre o som de "zê", independentemente do

dialeto. Porém, quando o aluno segmenta e vai analisar a palavra

isoladamente, descobre que o som mudou de "zê" para "çê" ou

"chê". Veja os exemplos: CASAS AMARELAS, TRÊS AMIGOS, DEZ

AMIGAS, RAPAZ INFELIZ, etc.

Em final de palavra, quando ocorre M e a palavra seguinte

começa por vogal, a nasal pode formar a sílaba independente

com a vogal seguinte. Nesse caso, se a nasal for precedida por I

ou E, ocorre uma consoante nasal palatal ("nhê"); se o M for

precedido por outra vogal, ocorre uma consoante nasal velar.

Page 241: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Veja os exemplos: VEM AQUI, VIM AQUI, HOMEM AMARELO,

VIERAM AQUI, RUM AMARGO, BOM AMIGO, etc. A mesma regra

aplica-se quando, mesmo não havendo a letra M na escrita,

ocorre uma vogal nasal no final de palavra, em juntura

intervocabular. Observe os seguintes

<145>

exemplos: MÃE INFELIZ ("mãi-nhi-fe-liç"), IRMÃ INFELIZ ("ir-

mã-rji-fe-liç"), PÕE AQUI ("põi-nha-ki"), etc.

Como se disse, essa regra, diferentemente da regra

estabelecida para o R e o S, o Z é opcional. Isso significa que, em

vez da consoante nasal indicada para a fala, pode não ocorrer

nenhuma consoante nasal, permanecendo apenas sílabas

diferentes, de acordo com a forma de cada palavra. Assim, os

exemplos acima, poderiam ser ditos da seguinte maneira: "véi-a-

ki", "vi-é-rãua-ki", "bõu-a-mi-gu", "ir-mã-i-fe-liç", "põi-a-ki",

etc.

Aqui também a variação entre escrita e fala traz dificuldades

para o aprendiz, sobretudo quando ele se depara com esses

fatos pela primeira vez. Uma simples explicação, contudo, é

quase sempre suficiente para que o aluno perceba como deve

agir perante a fala e a escrita. A falta de explicação, no entanto,

pode deixar algumas crianças num impasse ou em sérias

dificuldades, não entendendo por que as palavras variam tanto e

quais são as regras que regem as variações. Mesmo que o aluno

Page 242: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

não as aprenda, o simples fato de ouvir uma explicação significa

para ele que se trata de uma questão difícil, que ele aprenderá

mais tarde. Sem nenhuma explicação, o aluno procurará uma e

acabará confuso, julgando-se incapaz de aprender.

O último grupo de dificuldades de decifração da escrita

proposto anteriormente é aquele que se refere ao X e aos

dígrafos XC e XÇ. A letra X tem o som de "chê" no início de

palavra, o que torna sua leitura fácil, nesse contexto. Em final de

palavra, tem o som de "kç" ou "kch", dependendo do dialeto:

TÓRAX, PIREX, LATEX, etc. Quando ocorre em final de sílaba, no

meio da palavra, a letra X tem o som dc "çê" ou de "chê",

dependendo do dialeto: EXTRA, EXPLICAR, etc. Aqui, pode haver

uma ditongação da vogal anterior quando se trata do som de "ê",

como cm: "eichplicarr" (EXPLICAR). O mesmo acontece com os

dígrafos XC e XÇ: EXCEÇÃO ("eçeçãu", "eichçeçãu"). Porém, não

ocorre uma pronúncia como "echçeçãu".

A maior dificuldade com a decifração da letra X ocorre quando

ela representa uma consoante em início de sílaba e ocorre em

contexto intervocálico, como nos seguintes exemplos: VEXAME,

EXAME, PROXIMO, FIXO, etc. Como temos dito várias vezes,

quando o leitor se encontra diante de casos assim, saber as

relações entre letras e sons resolve o problema da decifração só

em parte. Para chegar à conclusão final, deverá lançar mão de

outro expediente, que consiste

Page 243: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<146>

em decifrar o que for possível e checar se o resultado obtido

produz uma palavra da língua portuguesa. Se não produz,

ocorreu algum equívoco nas relações entre letras e sons. Se

produz, ainda assim é preciso checar o contexto em que a

palavra se insere para saber se ela está correta. Por exemplo,

alguém vai tentar ler a palavra FIXA na frase "a etiqueta estava

fixa no caderno". Como o X entre vogais pode ter o som de

"chê", uma leitura possível seria "ficha". Porém, confrontando

com o contexto, o aluno percebe que a palavra que ele descobriu

não faz sentido ali. Deverá procurar então uma outra alternativa.

Sabe-se que entre vogais a letra X pode ter ainda o som de "kç".

Portanto, a leitura é "fikça" e o texto adquire seu sentido

correto.

Finalmente, deve-se destacar que as dificuldades de

decifração apresentadas acima levam em consideração o fato de

se usar a leitura como uma forma de aprendizagem e o emprego

da norma culta em sala de aula. Porém, na realidade individual

de cada aluno, sobretudo quando ele está lendo sozinho, a

passagem da escrita para a leitura o conduz de maneira natural

à fala do seu dialeto. Nesse caso, as diferenças entre escrita e

fala aumentam, dependendo da variedade lingüística em uso,

podendo trazer dificuldades sérias para alguns alunos.

Page 244: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

OQUE É MAIS FÁCIL DE ESCREVER

Existe uma diferença notável entre a decifração da escrita e a

produção de escrita com relação ao que é mais fácil ou difícil.

Alguns casos são de fácil decifração, mas apresentam

dificuldades sérias na escrita. As dificuldades referem-se ao fato

de haver mais de uma possibilidade de escrita, em princípio, ou

de a forma lexical de uma palavra, na fala, ser diferente da

forma escrita, em geral, por causa da variedade lingüística do

aluno.

Para o professor e para o aluno, é interessante e útil fazer um

levantamento desses casos, já que essa também é uma maneira

de ensiná-lo a decifrar a escrita e a escrever sem o bá-bé-bi-bó-

bu. Vamos começar fazendo um levantamento do que é mais fácil

de escrever. Esse é um estudo das relações entre sons e letras

(da fala para a escrita) e não entre letras e sons (da escrita para

a fala).

<147>

De modo geral, é fácil escrever quando ocorrem os casos de:

P/B, T/D, F/V É curioso, pois os professores dizem que é

justamente nesses casos que ocorrem as famosas trocas de

letras, ou seja, quando os alunos escrevem P em vez de B, F em

vez de V e T em vez de D. A explicação mais comum é que as

crianças cometem essas trocas de letras porque têm dificuldades

auditivas para distinguir sons sonoros de surdos. Essa afirmação

Page 245: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

não faz sentido, porque analisando tudo o que as crianças fazem,

logo se percebe que elas usam sons surdos e sonoros, em outras

situações, sem a menor dificuldade (lembrar que as vogais são

sonoras, assim como as laterais; as vibrantes podem ser sonoras

ou surdas, assim como as fricativas...).

Um aluno pode trocar letras pelo simples fato de sussurrar os

sons das palavras que escreve e, assim, produzir uma fala sem

sons sonoros, razão pela qual acaba concluindo que precisa

escrever as letras "surdas" e não as "sonoras".

Mais complicado é o caso de pessoas que não fazem essa

distinção na fala (por exemplo, os imigrantes poloneses). Nesses

casos, o aluno precisa se guiar pelo significado para escrever

uma letra ou outra. Então, sempre que achar que precisa

escrever F, deverá levantar a hipótese de ter de escrever

também V. A decisão final será tomada em função do significado

e da ortografia. Assim, se ele pretende escrever "vaca" e pensa

em F para a primeira letra, deve comparar as duas formas:

FACA e VACA. Em seguida, começa a aprender que a escrita com

F refere-se à ferramenta e a escrita com V refere-se ao animal.

Será mais dificil quando não houver um par mínimo. Por

exemplo, se o aluno for escrever "livro", irá comparar as duas

possibilidades: LIFRO e LIVRO. Nesse caso, como a troca de V

por F não muda o significado, a única solução é o aluno decorar a

ortografia.

Page 246: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Passando a outros casos, constata-se que é mais fácil escrever

o som de "zê" no início de palavra, porque a única letra que

representa este som nesse contexto é o Z.

É claro que o aluno principiante está pensando em geral nas

relações entre letras e sons fora dos contextos. Por isso, esse

exercício complementa as informações de que ele precisa para

aprender. Em outras palavras, ele pode achar que o som de "zê"

também pode ser escrito com X (EXAME) ou com S (CASA). Pode,

então, chegar à conclusão de que ZEBRA é escrita como

<148>

XEBRA ou SEBRA. Porém, ao estudar a distribuição dos sons e

das letras no contexto da palavra, o aluno vai aprender algumas

regrinhas: neste caso, que o som de "zê" em início de palavra só

pode ser escrito com a letra Z. Essa regra então resolve uma

dificuldade e ajuda o aluno.

Outros casos: o som de "lê" em início de sílaba é fácil de

transpor para a escrita: LATA, LADO, LIVRO, etc. Quando faz

parte de grupos consonantais, pode ser fácil se, na fala do aluno,

ocorrer a consoante lateral e não a vibrante, como em: PLANTA,

GLÓRIA, CLARO, etc.

O mesmo vale para os sons "mê", "nê" e "nhê", em início de

sílaba: MAPA, CAMA, NATA, CANA, TENHO, BANHO, etc.

O som de "jê" só pode ser escrito com J quando a vogal seguinte

for A, O ou U: JACA, JOVEM, JUNIOR, CORRIJO, CORUJA, HAJA,

Page 247: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

VIAJA, etc.

O som de "guê" só pode ser escrito com a letra G quando a

vogal seguinte for A, O ou U (não seguida de outra vogal): GOLA,

GULA, GARRAFA, etc. Se for preciso escrever o som de "guê"

seguido das vogais "ê" ou

"i", o aluno deverá escrever a letra U entre o G e a vogal E ou I:

GUERRA, GUIMARÃES, etc.

O som de "kê" é um pouquinho mais difícil. Há uma tendência

para escrevê-lo com C quando o som "kê" vem antes de A, O ou

U (não seguido de outra vogal):

CADA, COLAR, etc. Por outro lado, há uma tendência para

escrevê-lo com QU quando o som de "kê" vem seguido do som

de "u" e do som de outra vogal, como em: QUATRO, FREQÜENTE,

INÍQUO, etc. O som de "kê" seguido de E ou de I só pode ser

escrito com QU: QUENTE, QUINTO, etc.

Há outros modos de ver o problema. Por exemplo, pode-se

ensinar aos alunos que, no início de palavra, só se escreve um R,

nunca dois: RATO, RIO, etc. Nenhuma palavra começa com Ç,

nem com NH ou LH (exceto LHE e algumas palavras estrangeiras

como LHAMA, NHOQUE, NHEENGATU, etc.). Do mesmo modo, não

se escrevem palavras com certas seqüências de letras, como por

exemplo, numa mesma sílaba, HR, TH, etc. (a não ser em

palavras estrangeiras ou grafadas com ortografia antiga).

Outro tipo de regra que se pode ensinar é a seguinte: as

Page 248: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

terminações verbais de verbos derivados escrevem-se com -IZAR

(e não com -ISAR), como: FERTILIZAR (de fértil), UTILIZAR (de

útil). Porém: ALISAR (de liso — se fosse "alisizar" seria com -

IZAR). Outra regra:

palavras derivadas que não terminam em S no singular

<149>

que recebem a terminação com o som de "eza" são escritas com

-EZA. As que terminam em - s são escritas com -ESA. Exemplos:

BELEZA (de belo), INTEIREZA (de inteiro), porém: MARQUESA

(de marquês), INGLESA (de inglês), etc.

Mais uma regra: os finais paroxítonos dos verbos que

terminam com o ditongo nasal "ãu" são escritos com -AM, e os

finais oxítonos, com - ÃO. Exemplos: FIZERAM, ESTAVAM, IAM;

porém: ESTÃO, FARÃO, SÃO, ACHARÃO, etc.

É relativamente fácil mostrar aos alunos que, ao encontrarem

uma vogal nasalizada seguida de uma consoante, no meio de

palavra, se essa consoante for P ou B (M é muito raro), a

ortografia obriga o uso da letra M, entre a vogal e a consoante.

Nos demais casos (consoantes diferentes de P e B), a ortografia

obriga o uso da letra N, entre a vogal nasalizada e a consoante.

Exemplos: CAMPO, BOMBA, CANTO, BANCO, ONÇA, INFELIZ,

ENVIAR, ENLATADO, etc.

Com relação às vogais, é mais fácil escrever os sons "é", "é",

"ó", "ô", os quais, quando identificados na fala, passam a

Page 249: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

corresponder às letras E ou O (desconsiderando a acentuação

gráfica). Os sons de "a" e de "â" serão escritos com a letra A

(desconsiderando o til). Também é fácil escrever os sons de "i" e

"ii" quando ocorrem em sílabas tônicas, porém nas sílabas

átonas é muito difícil.

Nesse campo, também é possível estabelecer certas regrinhas

úteis. Por exemplo: pode-se dizer aos alunos que, ao

encontrarem o som de "à" em final de palavra, ele será escrito

sempre com til: LÃ, IRMÃ, ÍMÃ, TALISMÃ, etc. Se tiverem de

escrever o ditongo "ãu" em palavras que não são verbos, usarão

as letras -ÃO (e não -AM): IRMÃO, ÓRGÃO, ALEMÃO, etc.

O professor não deve se preocupar se, por acaso, houver

exceções às suas regras. Fatos novos ajudam a melhorar as

regras ou a indicar seus limites. Por exemplo, é muito raro

encontrar palavras em português que se escrevem com I + s +

consoante. Em geral, quando se tem os sons de "is + consoante"

(ou "ich + consoante", em alguns dialetos), a palavra escrita

começa com a vogal E: ESCOLA, ESPADA, ESQUADRA, etc. Como

exceção temos ISQUEIRO, ISTMO, ISCA... e alguns nomes de

origem estrangeira: ISRAEL, ISLAMITA, ISLANDÊS.

Algumas regras requerem conhecimentos gramaticais mais

sofisticados e, por essa razão, são menos interessantes na

alfabetização. E o caso de regras que envolvem conceitos como

"verbo", "adjetivo", "palavras primitivas

Page 250: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<150>

e derivadas", "sílabas tônicas e átonas", "paroxítonas e

oxítonas", etc. Às vezes, uma pequena explicação a respeito

desses conceitos pode ajudar. Não custa o professor tentar uma

vez para ver a reação da classe. Poderá se surpreender com o

interesse de alguns alunos.

OQUE É MAIS DIFÍCIL DE ESCREVER

A grande dificuldade que os alunos têm para passar da

observação da fala para a escrita reside no fato de esta não ser

uma espécie de transcrição fonética (como, às vezes, o sistema

alfabético nos leva a crer). Igualmente complicado é o fato de

alguns alunos falarem dialetos, cujas palavras têm uma forma

muito diferente da forma das palavras da norma culta, usada

como referência mais próxima da escrita que respeita a

ortografia.

Essas dificuldades somente se resolvem com o tempo.

Entretanto, o conhecimento do funcionamento da escrita, da fala

e da leitura pode ajudar muito a se obter um bom resultado com

esses alunos. Dentro desse quadro de preocupações, deve-se

lembrar que uma discussão a respeito da variação lingüística

(dialetos) e que papel a ortografia desempenha no nosso

sistema de escrita é imprescindível e deve ser freqüentemente

recordada pelo professor.

Page 251: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A passagem da fala para a escrita apresenta algumas

dificuldades especiais no caso de algumas letras, justamente

pelo fato de o aluno ter de optar por uma única forma entre

várias possibilidades. Vejam-se, a seguir, alguns casos.

O som de "chê" pode ser escrito com CH ou com X,

e só a ortografia pode dizer onde vai uma letra e onde

vai outra. Os professores costumam dizer que essa é

uma dificuldade inerente à letra X, mas na verdade é

inerente ao X e ao CH, quando se consideram os fatos

a partir da fala, e não da escrita.

Notar que o som de "chê" (ou "jê") que ocorre no final de

sílaba, em certos dialetos, será representado por S, Z ou X (X

somente no meio da palavra), como em CASAS, RAPAZ, EXTRA,

DESDE, etc.

Outro exemplo tradicional é o caso da escrita da letra L,

representando o som de "u", como parte final de alguns

ditongos. As vezes, esse "u" é escrito com L e, às vezes, é escrito

com U, como se pode ver nos

<151>

exemplos: "baudi" BALDE, "méu" — MEL, "çóu" — SOL, porém:

"çaudadi" — SAUDADE, "mêu" — MEU, "çôu" — SOU, etc. Em

alguns casos, é possível distinguir a forma ortográfica pelo

significado, como em ALTO e AUTO, mas esses casos são raros e

ajudam pouco.

Page 252: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Mais um caso dificil é o som de "çê", que pode ser escrito com

S, Ç, C (somente diante de I e E), Z (somente em final de sílaba)

e X. Aqui também dizer que apenas a letra x é complicada

significa ver o problema apenas pela ótica de uma letra. Um caso

mais simples é o do som "zê", que pode ser escrito com Z, S ou

X. Porém, em início de palavras, só se emprega a letra Z. A letra

S tem o som de "zê" apenas entre vogais ou diante de uma

consoante sonora.

O som de 'jê" se confunde na escrita apenas quando está

diante de I ou de E — quando pode ser escrito com G ou com J.

Nos demais casos, será usado apenas o J.

O som de "kê" apresenta dificuldade apenas diante de A, O ou

U, quando pode ser representado por C ou por QU. Diante dos

SONS "j" ou "e", só se escreve QU, nunca C.

A dificuldade de escrever R ou RR não é grande. Só se usa RR,

por oposição a R, quando o som estiver entre duas vogais.

Nesses casos, a distinção se faz pelos valores fonéticos

diferentes. Nos demais casos, o aluno escreverá sempre um R só.

A dificuldade maior que o professor encontra comumente se

relaciona com a variação lingüística e com a forma lexical de

algumas palavras, em alguns dialetos.

Notar que algumas diferenças de fala, na verdade, não trazem

dificuldades para a escrita. Por exemplo, há pessoas que falam

"tchia", "djia" e há pessoas que falam "tia" e "dia", mas esse

Page 253: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tipo de variação não atrapalha a escrita (casos de distribuição

complementar de sons no sistema fonológico). Isso significa que

uma pessoa que fala "drentu", "ãdãnu" pode aprender

facilmente a escrever DENTRO e ANDANDO, mesmo sem eliminar

sua pronúncia original.

Como se disse anteriormente, aqui também é possível fazer

algumas regrinhas que mostram que certas dificuldades são

mais aparentes do que reais. Por exemplo, o som de "ksi" pode

ser escrito com X ou com -QUE-SE. Porém, só serão escritos com

-QUE-SE se forem verbos, cujo infinitivo apresenta o som de

na última sílaba, como COLOCAR, SOCAR, FICAR, etc. Portanto,

nos demais casos, a escrita será provavelmente com X.

<152>

Com relação às vogais, a grande dificuldade está na escrita

dos sons "i" e "u" átonos e de alguns casos de

vogais nasalizadas.

Os sons de "i" e "u" átonos podem ser escritos com as letras I,

U ou E, Q Aqui, não há regras para facilitar o aprendizado, a

única saída é recorrer à ortografia. Deixar de lado a dúvida e

imediatamente procurar ver com que letras determinada palavra

é escrita.

Apesar do que foi dito acima, o professor poderá mostrar a

seus alunos que em certos casos é muito mais comum o uso das

letras E e O do que I e U Considerações a respeito de "inícios de

Page 254: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

palavra", "prefixos", "finais de palavra" e "sufixos" podem

revelar tais tendências. Já se falou antes, por exemplo, que

palavras que se iniciam com o som de "chk" ou "çk",

dependendo do dialeto, são escritas com ESC, e não de outra

forma: ESCADA, ESPADA, ESCORREGADOR, ESCOLHER,

ESPÍRITO, etc.

Se o aluno conseguir perceber que certas palavras têm um

"mesmo sufixo", e se souber como se escreve esse sufixo,

poderá generalizar a regra e ter menos dificuldades na escrita.

Por exemplo, vendo as seguintes palavras, constata-se que todas

acabam com os mesmos sons (porque têm o mesmo sufixo):

AMAVEL, TERRÍVEL, INCRÍVEL, HORRIVEL, POTÁVEL, etc.

Exemplos semelhantes ensinam os alunos a escrever o sufixo -

VEL. Outros exemplos, como HORROROSO, BONDOSO, FORMOSO,

DANOSO, CURIOSO (e as respectivas formas do feminino),

podem ajudar o aluno a escrever o sufixo -OSO, -OSA. Outro

sufixo comum é -MENTE: INFELIZMENTE, ALEGREMENTE,

TRISTEMENTE, PREGUIÇOSAMENTE, etc.

É fácil explicar aos alunos que a terminação -ÃO (tônico), ou

melhor ainda, o ditongo nasal que tem o som de "ãu" tônico se

escreve com O e não com U. Do mesmo modo o ditongo nasal

que tem o som de "õi" se escreve com ÕE e não com ÕI.

Conferir: PÃO, MELÃO, FARÃO, TÃO, SIMÃO, ou PÕE, PÕEM,

SIMÕES, LIMÕES, FERRÕES, LEÕES, etc.

Page 255: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Alguns alunos falam o gerúndio, usando a terminação -NO e

não -NDO. O professor pode aproveitar a oportunidade e explicar

que a norma culta admite que se fale "-ndu" e se escreva -NDO.

Portanto, em vez de escrever: ANDANO, FAZENO, FALANO,

CORRENO, FUGINO, o aluno, ao aprender o sufixo do gerúndio,

aprenderá a escrever também ANDANDO, FAZENDO, FALANDO,

CORRENDO, FUGINDO, etc.

<153 >

Fazer um levantamento de sufixos e de rimas pode ser uma

boa estratégia para o professor ensinar a escrever certos

pedaços de palavras. Isso acelera o domínio da ortografia. O

professor deve mostrar o que há de igual e o que há de diferente

e, se possível, até mesmo a extensão dessas considerações. Esse

procedimento tem a vantagem de ensinar não só a escrever, mas

também a refletir sobre a linguagem em geral e a escrita em

particular.

Outra dificuldade séria que os alunos encontram é quanto à

escrita da nasalidade vocálica. Escrever M, N e NH em início de

sílaba é fácil. Porém, escrever M e N em final de sílaba traz

muitas dificuldades para certos alunos, porque, em seus

dialetos, eles não pronunciam essas consoantes nasais, apenas

nasalizam a vogal precedente. Mesmo nos dialetos (em geral do

Sul do país) em que se falam comumente essas consoantes

nasais, é freqüente ouvir pessoas que não as falam, sobretudo

Page 256: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

numa fala mais rápida, menos formal. Como a norma culta não

exige que essas consoantes nasais sejam pronunciadas, fica

mais difícil para o professor ensinar ao aluno quando se deve

escrevê-las. A tendência geral dos alunos é escrever as palavras

sem nenhuma marca de nasalidade, seguindo o exemplo da

palavra MUITO, que não leva til nem tem consoante nasal entre o

I e o T Mas o ditongo Ul é um ditongo nasalizado.

Com relação ao problema da nasalidade, a melhor estratégia é

fazer uma análise da fala, escolhendo exemplos apropriados,

propostos pelo professor e pelos alunos, para esclarecer, em

primeiro lugar, a diferença entre ocorrências orais e nasalizadas

de vogais e ditongos, anotando em colunas, palavras como:

CAMA CAMPO PENTE ONÇA

CANA BOMBA CANTA ENLUARADA

BANHA LIMPO VINDA ENVIAR

CATA BOBA VIDA JUTA

CANTA BOMBA VINDA JUNTA

OUÇA MATA A IDA CEDO

ONÇA MANTA AINDA SENDO

O uso de pares mínimos é sempre uma boa maneira de

mostrar os contrastes e de ajudar o aluno a passar da fala para a

escrita com mais informações.

<154>

Page 257: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Logo no início, alguns alunos apresentam alguns problemas na

ordem das letras de algumas palavras. As inversões de letras

representam os casos mais comuns. O professor não precisa

preocupar-se com esse fato. Trata-se apenas de uma dificuldade

inicial que os alunos resolvem por si mesmos. E o caso de quem

escreve ON em vez de NO, ou mesmo TAMA em vez de MATA, ou

ainda CESUSU em vez de SUCESSO.

Mais complicado do que a ordem é a dificuldade que os alunos

têm para segmentar. Aqui também a melhor estratégia é deixar

que eles escrevam como pensam e esperar que descubram por si

mesmos como fazer. Algumas expressões levam mais tempo

para os alunos segmentarem corretamente. Se o professor

perceber que alguns alunos estão demorando muito para

segmentar expressões mais fáceis, poderá organizar algumas

aulas com o objetivo de ensinar a segmentação. Nesse caso,

basta usar exemplos dos próprios alunos e analisá-los com eles.

A regra de identificação semântica (uma idéia, uma palavra) não

ajuda muito nesse momento. Na verdade, essa regra pressupõe

muitos outros conhecimentos, inclusive de como a escrita

funciona. O fato de os alunos virem palavras escritas separadas

por espaços em branco é a melhor indicação de que dispõem. Em

último caso, dizer sempre que se deve escrever junto ou

separado isso ou aquilo porque é assim que a ortografia

estabeleceu. Portanto, quem tiver dúvidas, não adianta ficar

Page 258: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pensando sozinho: é preciso perguntar a quem sabe ou procurar

no dicionário.

A DIFÍCIL ARTE DE LER

E DE ESCREVER

Como se pôde ver nos estudos das letras, as relações entre

letras e sons são muito complexas. Isso explica por que decifrar

e escrever o nosso sistema de escrita é uma tarefa que exige

muito conhecimento. Ficou claro também que as relações entre

letras e sons não são exatamente as mesmas das relações entre

sons e letras. Resumindo, para ler, são necessários alguns

conhecimentos e, para escrever, além dos relacionados à leitura,

são necessários conhecimentos complementares. Isso mostra,

ainda, que é melhor

<155>

começar o processo de alfabetização ensinando o aluno a

decifrar a escrita e a ler, do que a escrever, como faz

tradicionalmente o método das cartilhas. Depois que o aluno

aprendeu um pouco a ler, pode ir tentando escrever, mas, se

misturar as duas coisas, acabará com sérios problemas de leitura

e, pior ainda, de escrita.

Uma decorrência das reflexões acima expostas é a consciência

que o professor deve ter de que para ler e para escrever são

necessários inúmeros conhecimentos, alguns complexos. Muitas

Page 259: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

vezes, a cartilha e o professor ensinam muito pouco ao aluno e

cobram dele um resultado injusto.

Um aluno aprende umas poucas palavras-chave, umas poucas

famílias de sílabas geradoras, e a regra insistente de que ele

deve observar a própria fala (ou a do professor) para escrever.

Soma-se a isso a expectativa de que aprendendo a escrever

aprenderá automaticamente a ler. Além de essa ser uma forma

muito complicada de ensinar a ler e a escrever, é incompleta e,

por essa razão, pode não ser suficiente para dar os subsídios

necessários para os alunos resolverem seus problemas.

Alguns alunos resolvem suas dificuldades por conta própria,

não levando muito a sério algumas coisas que ouvem na sala de

aula, e procurando as informações complementares que nem a

cartilha nem o professor forneceram. Outros tentam aplicar ao

pé da letra e à risca as regras que são apresentadas, e mais nada

(porque o aluno só faz o que o professor manda, senão aprende

errado...), e acabam sem saída. Então, vêem seus colegas que já

encontraram uma saída, que fazem coisas certas, enquanto eles

fazem tudo errado. Esses alunos acabam entrando em pânico e

causando muitos problemas para si, para o professor, para a

escola, para o governo e para os pais.

Nessa situação, encontramos alunos que, seguindo a cartilha e

a regra de observar a própria fala a fim de escrever, fazem o

seguinte: ao tentar escrever uma palavra simples como PAI, a

Page 260: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

primeira coisa que fazem é falar e observar. Dizem "pai-paaaaa"

e escrevem o A porque detectaram o som de "a". Depois, falam:

"paiaaaa-iiii" e reconhecem o ditongo e escrevem AI. Voltando à

fala, repetem: "pa-pa-pa-ii" e escrevem PA, que é da família do

pá-pé-pi-pó-pu, e sempre se deve escrever essas coisas, como se

aprende com as palavras-chave. O resultado final é: AAIPA.

<156>

CAGLIARI, 1997c. >

Muitas pessoas, vendo as crianças escreverem coisas assim,

em vez de estudar por que isso acontece, analisam a questão

apenas superficialmente, dizendo que elas não sabem escrever,

que escrevem de qualquer jeito, que não têm direção certa para

colocar as letras e não aprendem porque escreveram "aaipa" e

dizem que escreveram "pai", numa clara evidência de que têm

problemas de aprendizagem, certamente de fundo psicológico ou

neurológico.

A incompetência desses profissionais é um crime contra as

crianças. A criança simplesmente fez o que o professor mandou.

Ela simplesmente ainda não dispunha das informações

necessárias para escrever de outro modo. Para o professor,

parecia claro e evidente que "pai" se diz "pai" e se escreve PAI,

porque ele, professor, já sabe muito mais do que a simples

regrinha de "escreva observando a fala". O pior disso tudo é a

preocupação do professor com o aluno que escreve AAIPA. Para

Page 261: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que um aluno que escreve assim possa superar sua dificuldade,

tem de deixar de lado algumas das explicações mais comuns e

enfáticas que o professor dá. Nem todos os alunos conseguem

superar essa barreira, porque acreditam demais nos professores.

Mas tudo tem limite. Depois de um certo tempo sem obter

resultados, alguns alunos começam a duvidar de si, do professor,

da escola e transformam a própria vida num dilema. Muito

freqüentemente, antes que isso aconteça, o aluno já deve ter

passado por outra experiência traumatizante, ao ser colocado

numa classe especial, com colegas que também não conseguem

aprender. Essas classes são portas fáceis para os alunos

abandonarem a escola e os estudos, principalmente numa escola

pública.

A AÇÃO DO PROFESSOR

O professor deverá explicitar aos seus alunos como se faz para

ler e, ao realizar essa tarefa, deverá tratar das relações entre

letras e sons na leitura e na escrita.

O professor não deverá explicar tudo o que consta no estudo

das relações entre letras e sons (Apêndice). Para o aluno

começar a ler e a escrever, alguns conhecimentos são

prioritários e outros vão ser adquiridos com o tempo. A respeito

das relações entre letras e sons, é mais importante ensinar ao

aluno como aprender,

Page 262: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<157>

do que ficar analisando detalhadamente letra por letra, caso por

caso. Ao estudar uma determinada letra, por exemplo A ou G, o

professor irá abordar alguns aspectos, deixando outros para

depois. Ele voltará muitas vezes a falar no assunto, e algumas

observações serão feitas somente quando houver razão para

isso, ou porque um aluno perguntou ou porque se tornou

necessário para corrigir um erro, ou até mesmo por curiosidade.

Mantendo uma prática regular de análise do processo de

decifração com os alunos, os conhecimentos vão se sofisticando

à medida que os alunos aprendem mais a respeito da leitura e da

escrita. E importante deixar os alunos tomarem a iniciativa de

refletir sobre os fenômenos que estudam, porque sozinhos

também chegam a resultados interessantes e até

surpreendentes. Os conhecimentos passados já adquiridos

servem de apoio para o desenvolvimento de novos

conhecimentos. Assim funciona o processo de aprendizagem. O

ensino nada mais é do que a criação das condições adequadas

para que a aprendizagem aconteça.

Em geral, não vale a pena o professor ficar explicando

questões que são muito complexas. Essas explicações servem

para uma análise lingüística, mas já não são tão interessantes

para a alfabetização. As crianças acabam aprendendo a decifrar

e a escrever muito mais tranqüilamente através de umas poucas

Page 263: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

regrinhas e praticando a leitura e a escrita, do que através de

explicações muito complicadas. O professor precisa ter bom

senso para avaliar a situação. Se os alunos quiserem saber algo

que exige uma explicação técnica muito sofisticada, o professor

pode dar uma explicação mais elaborada, mesmo que os alunos

não compreendam bem o alcance e a profundidade do que ele

diz. É melhor ouvir uma explicação correta, mesmo que difícil, do

que uma mentira, um erro ou uma explicação que deverá ser

abandonada logo adiante.

Um roteiro de idéias gerais para começar uma discussão pode

levar em conta os tópicos:

Quando se vai ler.

1. Usamos o nome das letras para saber que som a letra tem: a

letra A tem o nome de a e o som de "a". A

letra C tem o nome de cê e o som de "çê".

2. Uma letra pode ter mais de um som, representando sons

diferentes. A classe vai aprender isso aos poucos. Por enquanto,

é só não estranhar se isso acontecer.

<158>

3. A letra A também tem o som de "ã".

4. A letra C tem o som de "çê" somente quando vier antes das

letras I e E. Nos demais casos (diante de A, O, U, R, L ou de

qualquer outra consoante), terá o som de "kê".

Page 264: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Quando se vai escrever:

1. Em primeiro lugar, é preciso descobrir a palavra, isolando-a

da frase.

2. Depois, é preciso saber a ordem das sílabas na palavra.

3. É preciso descobrir as vogais e consoantes que formam as

sílabas e em que ordem.

4. Para cada segmento (vogal/consoante), é necessário

escrever uma letra, partindo dos conhecimentos adquiridos, no

caso da leitura.

5. Ficar atento aos problemas causados pela variação

lingüística: quem é falante do dialeto padrão tem um tipo de

dificuldade e quem é falante de outros dialetos tem outro tipo de

dificuldade.

6. Checar o que se escreveu com a forma gráfica das palavras de

acordo com o estabelecido pela ortografia, ou seja, aprender a

ter dúvidas ortográficas inteligentes.

7. Resolver as dúvidas ortográficas, perguntando a quem sabe

ou olhando no dicionário.

Com esse conjunto de informações específicas sobre as

relações entre letras e sons, mais o estudo de uma meia dúzia de

outras letras e noções básicas sobre a escrita, vistas

anteriormente, o professor terá um aluno que já sabe bastante e

Page 265: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que até pode se arriscar a escrever algumas palavras e pequenas

frases. Este é o segredo da alfabetização. Um trabalho como esse

não leva mais de dois meses e, após esse tempo, o professor

constata que seus alunos já sabem ler e escrever, certamente

com muita dificuldade, mas já sabem o que devem fazer para

progredir, porque o segredo já foi aprendido. A perfeição virá

com o tempo e com muito trabalho tanto por parte do professor

como do aluno.

Existe uma grande diferença na prática de ensino que

distingue a competência do professor do conteúdo da matéria

que ele ensina. Todos esses conhecimentos detalhados e

explícitos a respeito da fala, escrita e leitura fazem parte da

competência técnica do professor. Será daí que ele irá tirar os

conteúdos daquelas

<159>

matérias que ensina, O que ele vai tirar, como vai apresentar e

quando ensinar são coisas que ele deve julgar e resolver,

levando em conta as circunstâncias. É por isso que se disse que,

quando o professor é de fato competente, ele sabe o que

ensinar, como ensinar e quando ensinar. Se ele não tem essa

competência técnica, a única saída é usar um método

preestabelecido como o bá-bé-bi-bó-bu, ou um livro guia como a

cartilha, levando para sua prática, juntamente com os problemas

que esses métodos têm, sua incompetência de modo velado ou

Page 266: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aberto.

APRENDENDO A ESTUDAR

O esforço dispendido na análise das letras do alfabeto é um

bom exercício de reflexão sobre o funcionamento do nosso

sistema de escrita com relação ao seu aspecto alfabético,

ortográfico e sobre as características fonéticas mais importantes

que essas letras representam. Somente de posse desses

elementos uma pessoa pode decifrar algo escrito e ler um texto.

Todos nós, como usuários familiarizados com o sistema de

escrita, sabemos como proceder para decifrar a escrita, mas

comumente lemos e escrevemos sem explicitar, a cada instante,

as regras que permitem que façamos isso. Agimos

automaticamente, guiando-nos, como convém, pelo fluir do

texto, acompanhando as idéias que queremos expressar ou que

vamos descobrindo à medida que a leitura prossegue. Ou seja,

acontece com as atividades de leitura e de escrita algo

semelhante ao que acontece quando falamos: precisamos de

toda a gramática, de todo o vocabulário disponível, de todos os

mecanismos articulatórios de produção de fala, mas não ficamos

pensando nessas coisas. Quando falamos, simplesmente usamos

esses conhecimentos interiorizados para guiar a expressão

lingüística do pensamento.

Assim como um lingüista precisa saber explicitar as regras da

Page 267: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

linguagem para poder entendê-la, analisá-la e formar a ciência

da linguagem, assim também o professor de alfabetização

precisa saber explicitar todos os conhecimentos necessários

para que alguém possa ler e escrever e se alfabetizar. O grande

problema dos nossos professores, acostumados com a cartilha,

está

< CAGLÍAR1, 1996h.

<160>

em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos.

Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão

sobre a matéria que lecionam. É fundamental e imprescindível

que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que

aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e

saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim,

saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o

processo de ensino (que depende do professor) e o processo de

aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do

professor como mediador e guia).

O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para

alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não

se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no

Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas

ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver

Page 268: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a

regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor

desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela

frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo

terá uma poderosa ferramenta de trabalho:

sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos

precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e

livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu

trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de

escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá-

los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita,

enfim, a se alfabetizarem, O tempo, o programa predeterminado,

o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora

pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu

trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor

irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos

estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a

escrever.

Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e

expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará a

tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os

alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular

regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais

detalhadas e abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos

Page 269: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e

principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de

<161>

em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos.

Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão

sobre a matéría que lecionam. É fundamental e imprescindível

que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que

aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e

saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim,

saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o

processo de ensino (que depende do professor) e o processo de

aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do

professor como mediador e guia).

O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para

alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não

se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no

Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas

ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver

a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a

regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor

desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela

frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo

terá uma poderosa ferramenta de trabalho:

sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos

Page 270: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e

livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu

trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de

escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá-

los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita,

enfim, a se alfabetizarem. O tempo, o programa predeterminado,

o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora

pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu

trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor

irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos

estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a

escrever.

Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e

expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará à

tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os

alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular

regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais

detalhadas e abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos

apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e

principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de

<161>

estudar, de investigar. Os resultados deverão ser considerados

muito importantes (e imprescindíveis). Para o educador, durante

a formação de seus alunos, mais importante do que os

Page 271: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

resultados é a formação de bons hábitos de estudo. A cartilha

tira a iniciativa do aluno de pensar, refletir, pesquisar e chegar a

conclusões. Se o professor, abandonando o método do bá-bé-bi-

bó-bu, conduzir um processo de ensino e de aprendizagem,

refletindo junto com seus alunos, depois de certo tempo, seu

trabalho de mediador torna-se muito reduzido, uma vez que seus

alunos saberão como estudar o que não sabem. Muitas vezes, os

professores preocupam- se tanto com notas, com resultados

positivos em testes e provas, que acabam se esquecendo de que

é muito mais importante saber como estudar do que dominar o

conteúdo de uma determinada matéria.

Infelizmente, alguns professores jamais pensam nisso.

Passam anos ditando pontos, lendo livros didáticos, resolvendo

exercícios, aplicando provas, passando testes, atribuindo notas,

e a educação fica reduzida a esse ritual de reproduzir um

modelo, fazer segundo o que foi visto, etc. Tudo gira em torno do

ensino do professor, e o aluno não tem nenhum espaço para

desenvolver seu processo de aprendizagem. Ele não aprende de

fato, apenas repete o modelo segundo as expectativas do

professor. O problema de nossas escolas não está somente na

alfabetização, no ensino da leitura e da escrita; talvez o

problema mais grave seja não ensinar a estudar.

<162>

Page 272: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

8

Sugestões de atividades

na alfabetização

O TRABALHO COM A LEITURA

Como se tem insistido tanto até aqui, o segredo da

alfabetização é a leitura, é ensinar ao aluno como

decifrar a escrita. Outras interpretações sobre a leitura

só fazem sentido depois que o leitor tiver acesso à decifração.

Por outro lado, outras práticas escolares não se comparam em

importância à decifração da escrita. Há muitas maneiras de se

chegar ao conhecimento que

permita ler um texto, algumas muito confusas e demoradas,

como a prática que proporciona o aluno a

descobrir por si — tendo o professor como simples

espectador —; outras estão mais voltadas para um trabalho

conjunto de ensino e aprendizagem, envolvendo

professor e aluno numa mesma tarefa.

Além de uma atitude sadia diante do processo de

alfabetização, há muitas coisas práticas que ajudam

pouco ou mesmo atrapalham o trabalho em sala de

aula. A seguir, serão feitos alguns comentários a respeito

disso.

Primeiras leituras

Em vez de começar o trabalho com letras e palavras

Page 273: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escritas ortograficamente, pode-se mostrar aos alunos

que eles conseguem ler outros sistemas de escrita, por

exemplo, os pictogramas usados de modo geral na sociedade

moderna, como as indicações de toalete masculino e feminino,

os logotipos de marcas famosas, etiquetas, símbolos, etc.,

explicando que a essas formas

gráficas se pode associar uma palavra, e que isso é ler,

no sentido mais técnico do termo. Aqui há um mundo

inteiro a ser explorado.

O professor pode mostrar para os alunos que se ele

fizer um tracinho, pode representar o número 1; se for

acrescentando outros tracinhos, pode representar os

demais números, estabelecendo uma contagem. Isso é

urna estratégia aritmética: para saber que número representa

um conjunto de tracinhos, basta contar. Esse

é um processo de decifração de um sistema de escrita.

Depois, com as letras faz-se a mesma coisa, só que, em

vez de contar, será preciso descobrir que som a letra

tem e ir somando esses sons até descobrir a palavra,

como se descobre um número. Um número é a soma

de unidades aritméticas e uma palavra é a soma de unidades

sonoras na fala e de letras na escrita.

<164>

MASSINJ-cAGLIAR1, 1993c. >

Page 274: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Pode-se mostrar a diferença entre desenho e escrita. Uma

figura é um desenho quando é usada para representar um objeto

do mundo. E uma escrita quando é usada para representar uma

palavra da linguagem oral. O professor pode fazer o desenho de

uma casa (ou mostrar uma foto), fazer o desenho de um

caminho, ou de alguém andando, e fazer o desenho de uma

pessoa (ou uma foto de si próprio). Cada figura ou foto está

representando coisas do mundo, não constituindo, portanto,

linguagem escrita. Porém, juntando a foto do professor com o

desenho de um caminho ou de alguém andando, mais o desenho

da casa, nessa seqüência, posso representar uma frase como:

"Vou para casa". Nesse momento, as figuras deixam de ser

apenas desenhos e passam a representar palavras. As figuras

transformam-se em escrita. Ler o que está escrito significa saber

que palavras as figuras representam. Escrevendo desse modo,

pode-se ter leituras variadas: "Fui para casa", "Irei para casa",

"Ele vai para casa", etc.

Essa demonstração deixa claro para os alunos que eles podem

usar figuras para representar as palavras que querem escrever.

Podem testar a leitura, isto é, o processo de decifração e de

interpretação da escrita, pedindo aos colegas que leiam o que

escreveram. O professor pode explorar esse tipo de atividade,

escrevendo palavras, frases, pequenas mensagens e até

pequenas histórias.

Page 275: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Recortando material de jornais e revistas, o professor pode

mostrar aos alunos como esse tipo de escrita (pictográfica, com

desenhos) é usada na vida real. Pode exemplificar como, além de

desenhos que representam figuras de objetos, esse tipo de

escrita inventa desenhos para representar palavras, como os

logotipos, as grifes, os escudos, as bandeiras, etc.

Inventando um código

Os alunos podem inventar seus sistemas de escrita servindo-

se de pictogramas. Podem tentar escrever histórias e fazer

bilhetes. O professor deve acompanhar o trabalho dos alunos,

mostrando-lhes como o sistema que estão inventando funciona:

coisas iguais são escritas da mesma maneira, coisas diferentes

precisam de formas diferentes ou de marcas diferenciadoras,

tendo o cuidado de permitir que as outras pessoas possam

interpretar o código e ler. Para isso, ou se usa uma figura

evidente num pictograma ou se ensina aos possíveis leitores

como interpretar e ler os caracteres.

<165>

Os alunos podem inventar desenhos convencionados por eles

para representar palavras. Podem, por exemplo, recortar figuras

de objetos, animais, pessoas, e colocá-las em colunas, fazendo

ao lado os símbolos ou desenhos que representarão as palavras

que essas fotos mostram. Depois, podem tentar escrever usando

Page 276: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o sistema de escrita que inventaram. Um aluno vai mostrar e

explicar aos outros o que fez, enfim, vai ensinar os demais a

lerem seu sistema de escrita. O professor irá discutir as

vantagens e as desvantagens da tarefa. Irá pedir para que

escrevam sem a chave da decifração, ou seja, usando apenas os

símbolos inventados, sem mostrar as figuras a que eles se

referem. Em seguida, o aluno pedirá para os colegas descobrirem

o que ele escreveu. Como fica muito difícil guardar na

memória todos os símbolos e seus significados inventados na

sala de aula, essa tarefa será resolvida apenas em parte. Exceto

quem inventou o símbolo, os outros terão muita dificuldade para

ler o que foi escrito.

Com isso, o professor mostra aos alunos que seria bom todos

usarem apenas um sistema de escrita porque, uma vez

estabelecido, todos se comunicariam apenas através dele. Isso

seria muito mais útil e fácil de ser usado na sociedade, onde

vivem milhões de pessoas. Essa imitação do que aconteceu

historicamente, há muito tempo, ajuda os alunos a

desenvolverem conhecimentos a respeito do funcionamento da

natureza da escrita. Além disso, motiva-os a progredir, pois eles

começam a ver que, de certo modo, não só já entraram no

mundo da escrita e da leitura, como também já conseguiram ler

e escrever.

É sempre possível escrever coisas enigmáticas ou códigos

Page 277: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

secretos. A criptografia é algo que fascina as crianças: por que

não deixá-las usar isso, neste momento inicial de descoberta da

escrita? Podem fazer dicionários em que apareçam dois sistemas

de escrita: um pictográfico de fácil reconhecimento, e outro

constituído de caracteres arbitrários, como os de um código

secreto. Esses jogos de escrita e leitura servem para mostrar à

criança que escrever e ler é algo fácil ou difícil, dependendo da

forma como o sistema se apresenta.

As letras já foram um sistema de escrita muito mais fácil do

que são hoje. E isso pode servir de motivo para se introduzir um

pouco da história da escrita e das letras do alfabeto, mostrando

seu caráter pictográfico antigo e a época em que havia pouca

variação na forma gráfica das letras.

<166>

A palavra como unidade de escrita

A história da escrita servirá também para mostrar aos alunos

que ela gira em torno de palavras, e não apenas de letras. Isso

irá facilitar, futuramente, a tarefa que os alunos terão pela

frente de segmentar a fala para escrever palavras, bem como a

de lidar com letras isoladas em sílabas e em palavras.

Unidades de fala menores do que a palavra podem ser

tratadas, nesse momento, através do uso de rébus, como se

explica com o exemplo a seguir. Pode-se escrever a palavra

Page 278: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

"irmão" desenhando um menino ao lado de outro, o que

consistiria num pictograma e não num rébus para a palavra

"irmão". Por outro lado, pode-se também escrever essa mesma

palavra, fazendo o desenho das pernas de uma pessoa andando

("ir") ao lado do desenho de uma mão. Os dois desenhos

representam agora uma única palavra "irmão". Esse modo de

escrever tem o nome técnico de rébus. Através dessa estratégia

de escrita, é fácil mostrar aos alunos que se pode escrever

baseando-se no significado das palavras ou nos sons que elas

têm. Temos, assim, um sistema ideográfico e um sistema

fonográfico.

Nota

IR MÃO

O rébus é um jogo mental muito antigo e comum, consiste em

exprimir palavras ou frases através de desenhos ou de sinais

cuja leitura e interpretação oferecem uma analogia com o que se

quer fazer entender Exemplos: 20V — "vim te ver"; D+ =

"demais"

Letras e sons

Para chegar aos segmentos fônicos que correspondem às

letras, a questão é muito mais complexa. Vão ser necessárias

três etapas: primeiro, será preciso reinventar as letras, o que se

pode fazer a partir dos próprios pictogramas que deram origem

Page 279: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

às nossas letras; segundo, aplicar o princípio acrofônico para

atribuir a cada letra um som especial, particular e distintivo no

sistema; terceiro, aprender a analisar os sons que a palavra que

se quer escrever tem na fala, achar as letras correspondentes,

na ordem correspondente e, então, escrever a palavra, segmento

por segmento, com as letras convencionadas. Esse pode ser um

longo caminho, mas basta percorrê-lo uma vez, passo a passo.

Isso não significa que com essa atividade os alunos já

aprenderam a escrever facilmente palavras com letras. O que se

pretende nesse momento é simplesmente mostrar ao aluno como

diferentes sistemas de escrita funcionam e o que os espera pela

frente.

Para o professor mostrar aos alunos como observar

os sons da fala, há duas maneiras principais, ou seja,

duas estratégias de observação. A primeira consiste em

<167>

silabar uma palavra, prolongando o som das vogais (mais

raramente de algumas consoantes, como as fricativas). Por

exemplo, a palavra BATATA: "baaaa-taaaataaaa". Note que

existe uma parte diferente ("ba') e duas iguais ("ta-ta"). Note

ainda que o som de "a" é o mais longo nas três sílabas. Desse

modo, pode-se perceber a recorrência prolongada de um mesmo

som, a vogal "a". Outro exemplo: FESTA: "féééés-taaaa" (ou

"fééééchtaaaa"). Agora, destacamos um som na primeira sílaba,

Page 280: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que é o "ééé", e outro diferente na segunda, "aaa". Por outro

lado, na segunda sílaba da palavra FES-TA, tem-se o mesmo som

observado na palavra BA-TA-TA.

Seguindo esse procedimento de análise, acompanhado dos

devidos comentários, o professor pode mostrar aos alunos como

observar os sons da fala de uma maneira muito interessante

para a alfabetização.

A outra estratégia para analisar os sons da fala consiste em

silabar as palavras, repetindo as articulações das consoantes nos

inícios das sílabas. Por exemplo: BATATA: "babababa-tatatata-

tatatata"; ou FESTA:

"fésfésfésfés-tatatata"; ou CADERNO: kakakakaderderderder-

nunununu". O professor pode fazer vários exercícios desse tipo,

analisando com os alunos o que há de igual e o que há de

diferente.

Na primeira abordagem, o professor ajuda os alunos a

destacar as vogais das sílabas e, na segunda, a consoante inicial

das sílabas. Há outras maneiras de mostrar como analisar a fala.

Uma delas, de uso muito comum, é fazer levantamento das

rimas. Toma-se uma palavra e procuram-se outras que terminem

nos mesmos sons (em geral, as rimas são dadas não por sílabas

completas, mas somente pelas vogais das sílabas finais das

palavras). Por exemplo: encontrar palavras que rimem com

AVIÃO:

Page 281: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

CORAÇÃO, IRMÃO, DEDÃO, ACHARÃO, etc. Outra maneira é

identificar palavras que comecem com os mesmos sons (aqui é

preciso levar em conta a sílaba como um todo). Por exemplo,

palavras que comecem com o som de "çi": CIDADE, SINO,

CINEMA, SITIO, CIGARRO, SINAL, etc. Outro exemplo são

palavras que comecem com o som de "dis": DESCOBERTA,

DESCASCAR, DESCARREGAR, DESMONTAR, DISTRIBUIR,

DISTINTO, DISPUTAR, etc. O professor irá fazer todos esses

exercícios sem escrever nenhuma palavra: todos acompanharão

a análise somente através da fala e da audição.

Além disso, o professor pode inventar mil situações

para explicar fatos importantes da escrita e da leitura.

Por exemplo, pode começar escrevendo a palavra "camelo",

<168>

recortando uma foto ou um desenho de camelo e mostrando a

associação entre a palavra "camelo" e sua representação.

Pode decompor a palavra através da análise dos sons e

atribuir a cada segmento uma forma de representação gráfica.

Essa representação pode ser feita com desenhos de objetos

cujos nomes permitam, através do princípio da acrofonia,

associar o desenho à fala. Nesse segundo modo de escrita, um

desenho não representa mais uma palavra inteira, mas apenas

um pedaço, de preferência apenas um som, o som inicial do

nome do desenho. Procedendo assim para cada som da palavra

Page 282: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

"camelo", acaba-se tendo um tipo de escrita com letras

figurativas. Por exemplo, como um dos resultados possíveis, a

palavra "camelo" poderia ser escrita com "letras" na forma de

desenhos (pictogramas) representando, por ordem, um cabide

("e"), um avião ("a"), o mar ("m"), um elefante ("e"), uma lata

("L") e um ovo ("o"). Ensinar o truque para ler essa escrita é

ensinar o aluno a ler letras. Se há algo de bom e eficiente nas

cartilhas é a aplicação do princípio acrofônico através do bá-bé-

bi-bó-bu. Os alunos aprendiam a ler com a cartilha por essa

razão.

Se um aluno preferir usar um cacho de uva, representando o

som "u" no final da palavra "camelo", está perfeito, e o

professor pode mostrar aos alunos que podemos falar "camelu"

ou "camelo", razão pela qual ele optou pelo som de "o", e o

aluno, pelo som de "u". A solução encontrada pelo aluno pode

criar uma boa oportunidade para o professor falar um pouco

sobre ortografia e variação lingüística. Como se vê, um assunto

puxa outro. O professor sabe de onde vai partir quando começa

seu trabalho de ensino, mas quase nunca sabe de antemão onde

vai parar. E é assim que deve ser.

Quando os alunos inventaram um sistema de escrita,

basearam-se no significado das palavras: as fotos e os desenhos

correspondiam às idéias que as palavras

<169>

Page 283: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

representavam. Os sons vinham depois de identificados os

significados e produziam palavras da língua portuguesa porque

os alunos estavam representando, na escrita, a língua que falam.

Assim, vendo a foto de uma casa, atribuímos a ela a palavra que

tem esse significado e que se pronuncia, em português, com os

sons "kaza". A escrita revelou uma idéia, através da atribuição

de uma palavra aos sinais gráficos. Ao fazermos isso,

descobrimos também os sons dessa palavra que representa a

idéia que falamos. Portanto, as palavras sempre se compõem de

idéias e sons. Podemos dividir o significado de uma palavra em

partes, gerando novas idéias (significados), que fazem parte da

idéia mais geral. Por exemplo, podemos dividir a idéia de "casa"

nos componentes que constituem uma casa, como telhado,

paredes, chão, janela, porta, etc. Ao fazer isso, descobrimos que

essas idéias formam novas palavras. As idéias não conseguem

sobreviver sem os sons das palavras. E sons sem significado não

formam palavras, são apenas ruídos.

Por outro lado, quando segmentamos os sons da palavra

"casa", temos "ka-za". No todo, existe um significado. Porém,

considerando cada pedaço (sílaba) em separado, perde-se o

significado original, podendo ou não resultar outro significado.

Assim, "ka" significa, isoladamente, "aqui", "cá estou eu"; mas

"za" não significa nada (talvez um apelido...).

Mexer com o significado para saber o que faz parte de uma

Page 284: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

idéia ou não é muito complicado e, na prática, é uma tarefa

impossível de ser feita até o fim... Sempre se descobre algo

novo. Porém, com os sons das palavras tudo é bem mais simples

e fácil.

O alfabeto

Aos poucos, passa-se da escrita ideográfica para a

fonográfica, do aspecto figurativo dos caracteres para o

convencional, dos grifos para as letras e, assim, chega-se ao

alfabeto das letras de fôrma maiúsculas. Essas letras serão

usadas por um bom tempo e com elas os alunos aprenderão a

decifrar nossa escrita tradicional e a escrever seus primeiros

textos.

Quando se chega às letras, o melhor é falar logo do alfabeto e

apresentar todas as letras de uma vez. Para isso, seria bom que

houvesse na sala uma faixa com o alfabeto das letras de fôrma

maiúsculas, que pudesse ficar bem visível, talvez acima da lousa

(ou quadro-negro), para que os alunos tenham esse modelo

constantemente

<170>

diante dos olhos. Esse alfabeto deve conter todas as letras do

dicionário, seguindo a ordem alfabética, ou seja:

A B C Ç D E F G H IJ K L M N O P Q R S T U V W X Y Z.

Apresentado o alfabeto, ensina-se o nome das letras, não só

para que os alunos o aprendam, mas também para terem um

Page 285: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

referencial dos sons que as letras têm. É claro que a questão na

verdade é bem mais complicada, mas nesse momento basta o

professor alertar para a dificuldade futura, esclarecendo que um

dos sons possíveis que as letras têm pode ser encontrado no

próprio nome das letras. Portanto, sabendo o nome das letras,

pode-se decifrar a escrita de uma palavra, sem grandes

dificuldades. O professor pode, por exemplo, apresentar uma

palavra na forma escrita, sem dizer do que se trata, e pedir aos

alunos para decifrá-la. Descobre-se que a tentativa não deu

certo, quando não se chega a nenhuma palavra (conhecida).

Então, pode-se deixar de lado algumas letras e tentar recuperar

a palavra (descobrir seu significado). Desconfiar e tentar são

tarefas comuns nesse momento. É sempre muito importante

estar atento para o fato de o resultado da decifração ter de

revelar uma palavra conhecida, cujo significado é evidente, e não

apenas sons. Na vida às vezes nos deparamos com palavras

desconhecidas, mas isso não acontece na alfabetização ou, se

acontecer, será algo extremamente raro. Portanto, se o

resultado final é uma palavra desconhecida, o aluno deve

desconfiar que a decifração apresentou alguma interpretação

errada dos valores fonéticos de uma ou mais letras. O que vale

sempre é o resultado final, ou seja, a palavra, que o aluno

deverá reconhecer facilmente, como falante nativo.

Para ilustrar o que foi dito, suponhamos que o professor

Page 286: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escreveu CASA e pediu para os alunos identificarem primeiro os

nomes das letras: c, a, esse, a. Com os nomes das letras, os

alunos tentam juntar os sons relevantes e descobrir de que

palavra se trata. Um aluno pode dizer que está escrito "saça".

Então o professor o faz ver que não existe a palavra SAÇA (não

se conhece um significado para essa seqüência de sons) e volta-

se atrás e se procura um som diferente e possível para as letras.

A letra C pode ter o som de "kê" e a letra S pode ter o som de

"zê". O resultado, agora, é "kaza". Está descoberta uma palavra

conhecida.

Com essa técnica, o professor pode escolher palavras, fazer

com os alunos o reconhecimento das letras escritas, identificar

cada letra com seu respectivo nome,

<171>

dizer que palavra está escrita, analisar os sons e fazer a

correspondência das letras com os sons, para verificar naquela

palavra que sons as letras têm. Isso não só ensina os alunos a

identificarem as letras, como também ensina-os a ler palavras

simples. Não é tudo, mas já é um grande avanço.

Primeiros problemas com a decifração

Com o progresso obtido, logo começam a aparecer problemas

que deverão ser tratados cuidadosamente. Alguns deles exigem

explicações um tanto complicadas. E sempre preferível dar uma

Page 287: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

boa explicação, mesmo que complicada, a ter de camuflar o

problema, disfarçar, usar de subterfúgios com explicações

metafóricas. Se os alunos não entenderem direito (ou nada), não

faz mal. Algumas explicações precisam ser dadas por causa das

circunstâncias, mas como os problemas voltarão a aparecer em

outras ocasiões, os alunos terão outras chances de aprender.

Quando o professor prefere uma explicação aparentemente fácil,

metafórica, incompleta e meio deturpada, corre o risco de ter de

se desculpar mais tarde. Alguns alunos se sentirão enganados

quando descobrirem que a verdade tem outra cara.

Ao iniciar a decifração da escrita, os alunos irão encontrar

algumas dificuldades causadas pela falta de informação a

respeito de alguns aspectos da linguagem oral e escrita. O

professor não pode ensinar tudo de uma vez. Portanto, é preciso

reconhecer a falta de informações preliminares e procurar

resolver isso à medida que for conveniente e importante.

Somente depois que os alunos tiverem ouvido explicações a

respeito de muitos fatos básicos da linguagem oral e escrita,

poderão entender verdadeiramente os mecanismos da

decifração. Mas começar tentando decifrar a escrita é a melhor

prática para discutir e aprender.

Entre esses problemas estão os seguintes: a variação

lingüística; a aquisição da linguagem oral e da escrita; as noções

básicas de fonética e fonologia; o modo como a fala, a escrita e a

Page 288: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

leitura funcionam e quais os seus usos; o que é decifrar uma

escrita e como fazer; o que é a ortografia e como resolver

dúvidas ortográficas; como é um texto na linguagem oral e como

é um texto na linguagem escrita; como analisar e interpretar os

erros; como avaliar a importância de atividades pedagógicas

relacionadas com os conteúdos programáticos e outros menos

importantes.

<172>

O professor não poderá tratar cada um desses assuntos de

maneira isolada e completa, numa ordem predeterminada. As

explicações devem acontecer quando for o momento e de

maneira dosada às necessidades. Em geral, é preciso abordar

vários aspectos de muitos tópicos numa única ocasião. Somente

em séries mais adiantadas, quando os alunos já tiverem certas

noções básicas, será o momento oportuno de fazer um estudo

mais detalhado e organizado desses pontos.

Pares mínimos

Voltando ao trabalho específico de decifração da escrita e de

técnicas para aprender a ler, há um tipo de exercício, muito

usado pelos lingüistas, que ajuda a explicar aos alunos como

detectar os segmentos fonéticos da fala, para relacioná-los

depois às letras do alfabeto. São os pares mínimos. Obtém-se um

par mínimo quando se juntam duas palavras de significados

Page 289: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

diferentes, cuja forma fonética varia apenas com relação a um

som. Por exemplo: "bato/mato" (a única diferença fonética é B,

que se opõe a M no início das palavras do par), "casa/caça",

"mar/mas", etc.

Do ponto de vista da fala, "concerto" e "conserto" são

palavras ambíguas (como "manga", por exemplo, que significa

uma fruta e uma parte de roupa), mas do ponto de vista da

escrita, formariam uma espécie de "par mínimo", porque

representam palavras de significados diferentes. O professor

pode explorar essas duas possibilidades: pares mínimos

considerando a fala ou a escrita, relacionados entre si ou não.

Com o par mínimo falado, destacam-se os sons que distinguem

uma palavra de outra; com o par mínimo escrito, destacam- se

as letras diferentes que representam um mesmo som. Perceber

diferenças em meio a igualdades é um requisito muito

importante em todo trabalho lingüístico.

Feito isso, basta mostrar quais letras serão usadas para

representar os sons distintivos, explicando que no próprio nome

da letra, já se tem uma dica de que som ela representa, ou de

que letra terá de ser usada para escrever, quando já se sabe o

som, observando a fala.

Rimas

Outra atividade muito útil para ensinar o reconhecimento de

segmentos fonéticos de palavras é o uso de

Page 290: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

rimas: palavras terminadas em sons semelhantes, como,

<173>

por exemplo, em "ão": "avião", "coração", "habitação", "irmão",

etc. O professor pode escrever na lousa as palavras rimadas,

ditadas pelos alunos, fazendo colunas, de tal modo que se

perceba na escrita que todas essas palavras terminam com um

mesmo conjunto de letras e sons (no caso, "ão").

Fazer exercícios que levem o aluno a aprender a relacionar as

letras com os sons das palavras é fundamental.

Categorização gráfica das letras

Outro aspecto importante dos sistemas de escrita é a

categorização das letras do alfabeto. Como usamos muitos

alfabetos, é preciso saber que uma mesma letra pode ser escrita

com formas gráficas diferentes.

Depois que os alunos já avançaram bem no trabalho de

decifração, usando apenas as letras de fôrma maiúsculas, o

professor pode apresentar escritas de palavras com alfabetos

diferentes, em colunas, para que os alunos percebam que, para

cada lugar de escrita na palavra, há uma letra, e que as letras,

nas colunas verticais, pertencem a alfabetos diferentes (colunas

horizontais), e têm, portanto, o mesmo valor alfabético.

Primeiras leituras de textos

Page 291: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Depois que os alunos conseguirem decifrar por si palavras

isoladas, o professor os levará a ler pequenos textos. Aqui, há

alguns pontos importantes a serem considerados. Em primeiro

lugar, é preciso que o professor convença-se de que é mais

importante que o aluno leia e não que exiba para ele ou para a

classe que já sabe ler. Assim, o professor estimulará seus alunos

a lerem em particular, para si, até que adquiram habilidade e

velocidade de leitura para ler em voz alta para a classe, sem

grandes dificuldades

Ler textos de uma ou duas frases, no início, exige um grande

esforço de decifração (são muitas letras...). Porém, esses textos

oferecem a vantagem de poderem ser facilmente decorados.

Portanto, o professor deixará que cada aluno descubra o que

está escrito. Feito isso, poderá, então, dizer o que foi que leu.

Aqui, o fato de reproduzir literal e exatamente o que está escrito

não é importante. O que conta é o fato de o aluno descobrir o

que está escrito porque, para isso, ele precisará ter decifrado

pelo menos as palavras mais importantes para a compreensão do

texto. Uma leitura mais rigorosa, mais fiel ao texto, será cobrada

mais adiante.

< MASSINI-CAGLIARI, 1998a.

<174>

Com o tempo, vai-se passando de textos curtos para textos

cada vez mais longos, deixando sempre os alunos lerem

Page 292: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

individualmente. Se algum aluno quiser ler para os colegas, será

preciso que prepare muito bem sua leitura com antecedência. Se

o professor perceber que o aluno está lendo mal (gaguejando,

silabando, sem ritmo, sem a correta entoação, etc.), deverá

solicitar do aluno que prepare melhor sua leitura, mostrando

como ela deve ser feita.

Interpretar ou discutir o que leu

Convém relembrar que é desnecessário, e mesmo ridículo,

querer fazer interpretação de texto nas primeiras séries. Análise

literária ou análise de discurso de textos deverão ser feitas em

séries avançadas. Portanto, o professor não deverá ficar

preocupado se seus alunos estão entendendo ou não o que estão

lendo, pois é claro que estão entendendo, uma vez que os textos

são, em geral, histórias de fácil compreensão. Trabalhar as

sutilezas dos textos é de menor importância na alfabetização.

Isso não quer dizer que o professor não possa discutir certos

assuntos com seus alunos, servindo-se da leitura de textos.

Nesse tipo de atividade, o que vale é a discussão das idéias

pessoais, incluindo as expressas pelo autor do texto. O que não

faz sentido é querer discutir o texto como fato lingüístico ou

literário. Discussões podem ser feitas mesmo sem o pretexto de

um texto. Fazer discussões em sala de aula é uma atividade de

grande importância. Interpretar textos com perguntas e

Page 293: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

respostas é uma idiotice.

O que ler

Os alunos precisam ser incentivados a ler todo tipo de

material, quer com relação à forma gráfica, quer com relação aos

variados tipos de textos. Devem ler coisas impressas e coisas

manuscritas, devem ler propagandas ou outro material

semelhante. O professor precisa mostrar aos alunos material

escrito com os mais variados tipos de letras. Usos artísticos da

escrita merecem um destaque. Usos especiais em propagandas

também são interessantes, como palavras decoradas com

desenhos que ilustram seu significado. Por exemplo, a palavra

"incêndio" escrita com letras pegando fogo.

É preciso ler histórias (muitas), notícias, reportagens que

falem de assuntos científicos, técnicos, curiosos, da vida de

pessoas famosas, etc. É preciso ler jornal,

<175>

revistas, receitas culinárias, instruções de uso de equipamento,

de montagem ou de conserto, enfim, ler de

tudo. E ler nunca é demais.

O TRABALHO COM A ESCRITA

Quando se falou da leitura, incluíram-se muitos fatos

relativos à escrita, porque um processo necessariamente

Page 294: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

implica outro. Aos poucos a escrita vai tornando-se

familiar quando se estuda como se deve ler. O

próprio sistema de escrita revela-se com a descoberta

da decifração. Em outras palavras, as noções básicas

de um sistema de escrita, do ponto de vista gráfico e

funcional, são aprendidas no processo de aprendizagem

da leitura. Por essa razão, insistimos no fato de

que o segredo da alfabetização está em saber ler, ou

seja, em decifrar o sistema de escrita que temos.

As considerações que seguem estão voltadas para os

conhecimentos dos sistemas de escrita que os alunos

adquirem ao lidar com a leitura. Interessa mais a produção

de material escrito pelas crianças do que teorizar

a respeito desse fato. Tal qual foi feito em seções anteriores,

serão apresentadas sugestões numa ordem que

não precisa ser necessariamente aquela que vai ser

transmitida.

Primeiras descobertas sobre a escrita

No começo, os alunos podem colecionar letras, fazendo

álbuns de recortes: uma folha para cada letra.

Depois, dispõem-se as folhas em ordem alfabética e tem-

se um pequeno dicionário de letras.

Os alunos conseguem fazer leituras incidentais, isto

Page 295: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

é, reconhecem que certas coisas estão escritas em certos

lugares. Por exemplo, sabem que numa garrafa de

Coca-Cola está escrito Coca-Cola com o design feito

de uma determinada maneira. E interessante que eles

colecionem rótulos de produtos para terem consigo

esses materiais que sabem ler. Podem, ainda, colecionar

pictogramas, sinais de trânsito, símbolos, grifes, logomarcas,

logotipos, etc. Esse material já impresso, que é recortado, pode

servir para os alunos montarem suas mensagens escritas,

bolarem suas propagandas ou fazerem cartazes. Essa já é uma

maneira de escrever sem

precisar usar o lápis.

<176>

Paralelamente ao estudo da leitura, os alunos irão produzir

textos escrevendo com os pictogramas que inventarem, podendo

chegar a escrever textos relativamente longos, como histórias e

cartas. Brincar de escrever, inventando sistemas de escrita, é

altamente instrutivo e auxilia muito na alfabetização. Explorar

caminhos novos é sempre um desafio, e as crianças gostam

muito de enfrentar essas aventuras educativas. Até para o

professor, o trabalho toma-se mais atraente e menos pesado.

Descobrindo que a escrita representa a fala

À medida que os alunos forem trabalhando, o professor irá

orientando-os a relacionar os símbolos com os textos (a pomba

Page 296: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

da paz com o ramo de oliveira... lembrando o dilúvio...), sinais de

trânsito com frases (é proibido estacionar), pictogramas com

suas mensagens (é proibido fumar, frágil...), pictogramas que

representam palavras (banheiro masculino, natação...), formas

de rébus que indicam sílabas ou pedaços de palavras, cartas

enigmáticas, etc. É importante que esse caminho desemboque

sempre nas letras e na representação de sons da fala associados

às letras.

A exploração desse material, aliada ao processo de leitura,

permite que os alunos já realizem muitas atividades de escrita. O

professor deve ajudar os alunos a percorrerem esses caminhos

todos, mas deve, sempre que possível, andar um passo atrás e

não à frente dos alunos. E fundamental deixar que eles escrevam

o que acharem importante, mesmo não sabendo quase nada

sobre a escrita. Eles vão se sentindo cada vez mais confiantes no

processo de aprendizagem e no desempenho das tarefas

escolares. Assim, para a criança, escrever logo deixa de ser um

mistério e torna-se, sem que eles percebam, algo familiar e

banal.

Sistema ideográfico e fonográfico

Depois de muito fazer, o professor pode ensinar aos alunos

que os sistemas de escrita são basicamente dois:

ideográfico ou fonográfico. No primeiro caso, escreve-se a partir

Page 297: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

do significado, procurando encontrar depois os sons que esses

significados têm. Quando fazemos um pictograma figurativo e

depois dizemos a palavra que aquela escrita representa, ou

quando escrevemos um número e sabemos que aquele caractere

representa uma certa quantidade, que se traduz numa palavra,

estamos diante de uma escrita ideográfica.

<177>

No segundo caso, o fonográfico, escreve-se a partir

dos sons que as palavras têm na linguagem oral. A relação

entre letras e sons pode ser estabelecida de várias

formas, através de rébus, sílabas, vogais e consoantes e

até de outras propriedades fonéticas (por exemplo, o til

indicativo da nasalidade — LÃ —, o acento indicativo

de tonicidade ou de mudança de qualidade vocálica —

AVÔ, AVÓ). É importante saber relacionar os elementos

da fala com os da escrita. Tratando-se da escrita alfabética,

a cada letra será associado um som, com exceção

da letra h, que depois deverá compor os sons da

palavra.

Existem estratégias diferentes para ler e para escrever,

usando-se o sistema fonográfico. Para escrever é preciso

relacionar cada som da fala a uma letra, seguir uma ordem de

escrita e verificar a ortografia. Para ler,

é necessário associar a cada letra um som, somar os

Page 298: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

sons na ordem e descobrir que palavra está escrita. Se

não der certo, será preciso rever o processo e usar

outras alternativas, até que o significado apareça.

Contar a história da escrita

O professor deverá contar para os alunos a história

da escrita, privilegiando as letras e os números. Explorar

esse assunto ao máximo, como recurso para ensinar

fatos importantes a respeito da leitura e da escrita.

Contar a história do alfabeto, sua evolução, a história

dos estilos de letras, da caligrafia, dos livros. Os recursos

visuais aqui são úteis.

Outro tipo de material interessante é encontrado na

maneira como as línguas adaptaram o alfabeto latino

para escrever as mais diferentes línguas do mundo. As

vezes, uns poucos exemplos são suficientes para mostrar

coisas curiosas e altamente pertinentes para o processo

de alfabetização. Uma lista de palavras de línguas

diferentes pode esclarecer como uma letra, por exemplo,

A, tem sons diferentes.

Nota

Português Inglês Francês;

banho "bãnhu" table "teibl" (mesa) nouveau "nuvô" (novo)

caixa "kacha" cat "két" (gato) maitre "métr"

Page 299: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

(professor)

rapaz "rrapaiç" battle "btl" (batalha) mâle "mal" (macho)

é símbolo da IPA — International Phonetical Association

(Associação Fonética Internacional,).

<178>

Traçar as letras com gabaritos

Quando os alunos já estiverem sabendo os nomes das letras e

os principais sons que elas têm, está na hora de começar a usar

esses conhecimentos para escrever.

Com relação à parte gráfica, um modo interessante de ensinar

os alunos a traçarem correta e facilmente as letras (no começo

apenas as letras de fôrma maiúsculas), pode ser através do uso

de gabaritos, como fazem os letristas. Para as letras de fôrma

maiúsculas, um gabarito de três linhas é o suficiente. Um

gabarito mais completo tem oito quadradinhos para cada letra,

em duas fileiras verticais de quatro quadradinhos, por quatro

fileiras horizontais de dois quadradinhos.

ABCDEMPQRX

ABCDMPQR

O professor deverá ainda dar instruções precisas sobre como

fazer o traçado das letras, dizendo, por exemplo, que nas de

fôrma maiúsculas, o traçado é feito sempre de cima para baixo e

Page 300: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

da esquerda para a direita, quando houver mais de um traço, ou

da direita para a esquerda, quando houver só curvas, etc.

Cada tipo de alfabeto exige um traçado gráfico próprio. As

letras, em geral, sobretudo as de fôrma maiúsculas, são escritas

iniciando-se o traçado na linha de cima e riscando para baixo. As

curvas presas a hastes verticais começam nas hastes, na parte

mais alta, e vão para a direita, descendo. Traços horizontais vão

da esquerda para a direita e são feitos depois dos traços

verticais (que são os primeiros) e das curvas. Letras que

apresentam apenas curvas, sem hastes, são traçadas da direita

para a esquerda, e de cima para baixo. Essas técnicas também

devem ser ensinadas pelo professor. Elas ajudam os alunos a

escrever uniforme e caligraficamente. Ajudam também a

reconhecer os traços distintivos que compõem as letras

graficamente.

<179>

Explicações como essa são de grande ajuda, mas o professor

não deve exigir que os alunos façam somente como ele indicou.

As crianças podem inventar alguns traços. Todavia, é bom não

deixar que escrevam de qualquer jeito, segurando o lápis

displicentemente. O professor deve avaliar, usando o bom senso,

o que está acontecendo e intervir quando julgar necessário. Por

outro lado, é bom lembrar que escrever tem uma tradição gráfica

no feitio e no resultado que é conveniente preservar; a escola

Page 301: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tem o dever de zelar para que essa tradição não desapareça.

Localização da escrita no espaço

Olhando fotografias de casas comerciais nas ruas das cidades,

logo percebemos que também é possível escrever uma letra

debaixo de outra, isto é, podemos escrever na vertical. Nesse

caso, a seqüência das letras de uma palavra deve respeitar a

ordem que vai de cima para baixo e nunca de baixo para cima.

Isso também tem de ser discutido com os alunos.

O professor pode ir além e mostrar como se escreve formando

um círculo, exemplificando com moedas e medalhas. Nesse caso,

a linha de base fica sendo a do círculo interno e a linha de cima,

a do círculo externo. Esse princípio aplica-se também quando se

quer escrever fazendo curvas para cima e para baixo. Aplica-se

ainda quando se considera que o material sobre o qual se

escreve será usado de maneira variada, estando ora com uma

parte voltada para cima, ora para baixo ou para os lados. Quando

a escrita em círculo se atém a um material fixo, que o leitor verá

sempre numa única posição, há várias formas de dispor as letras

em curvas. Pode-se até escrever como se fosse uma reta que foi

cortada ao meio e dobrada: metade para cima e metade para

baixo. Uma investigação desses fatos no mundo real revela as

regras para dispor as letras em curvas.

O alfabeto das letras de fôrma maiúsculas apresenta todas

Page 302: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

elas bem distintas graficamente, o que não acontece com as

letras de fôrma minúsculas e, menos ainda, com a escrita

cursiva. Por exemplo, há uma notável distinção gráfica entre D,

B, Q e l porém o que distingue as letras minúsculas

correspondentes d, b, q e p é apenas a sua localização espacial.

Uma pessoa só sabe se se trata de uma letra ou de outra, se

souber qual é o lado de cima e o lado de baixo. Se a folha estiver

de cabeça para baixo (posição que ocorre freqüentemente), o

valor

<180>

dessas letras altera-se: o d transforma-se em p, o bem q, o q em

b e o p em d. Se o professor não tiver uma boa conversa com

seus alunos a respeito da localização das letras no espaço, eles

podem se confundir.

Para ensinar isso, o professor não precisa disfarçar que existe

uma dificuldade de interpretação, dependendo do modo como se

observam as letras, e, em contrapartida, passar exercícios de

"prontidão". Pelo contrário, deve mostrar ao aluno o que

acontece quando vemos as letras de um lado ou de outro, com o

papel certo ou virado de cabeça para baixo. Além disso, deve

dizer que, para se saber o valor das letras, é preciso estabelecer

primeiro o lado certo do papel, o que se consegue, analisando

em que sentido estão dispostas as letras: se da esquerda para a

Page 303: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

direita (ou vice-versa), se há letras facilmente reconhecíveis

como estando de cabeça para baixo (ou não), como a letra A, e

outras pistas que o aluno pode encontrar para se orientar.

É mais difícil escrever as letras sem confundir sua localização

espacial do que reconhecê-las. Quando algum aluno apresenta

dificuldades nesse sentido, deve-se mostrar a ele a importância

da relação espacial que as letras apresentam com relação ao

leitor. Cartazes com diferentes alfabetos ajudam os alunos a

entender melhor o que se pretende ensinar.

Copiar para aprender

Fazer cópias, principalmente de alguns exemplos que o

professor explica na lousa, é algo que os alunos apreciam. Faz

muito bem a eles. Copiar para aprender sempre foi uma prática

muito usada e eficaz de estudar e se alfabetizar. Um dos

segredos da alfabetização tradicional é a cópia. Enquanto os

alunos copiam, pensam naquilo que as letras representam.

Porém, se o aluno encarar a cópia como uma simples

reprodução, caso das cartilhas, essa atividade pode não só não

ajudar o aluno, como lhe passar a idéia de que escrever é apenas

copiar. Daí a importância da cópia de textos significativos para o

aluno, como aquilo que o professor explica e escreve na lousa ou

outros textos sugeridos pelos próprios alunos.

Page 304: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Escrita espelhada

O professor não pode simplesmente dizer para os alunos

escreverem da esquerda para a direita, supondo que assim eles

não irão escrever de forma espelhada. Quando o professor diz

isso, está pensando na seqüência

<181>

de letras na palavra: que letra antecede qual. Porém,

muitos alunos estão, nesse momento, mais preocupados em

como se traçam as letras. Lembrando das

orientações do professor, eles tentam escrever as letras

indo com o lápis da esquerda para a direita e acabam

fazendo, por exemplo, o S e o C de forma espelhada. Seguindo

essa direção, compõem todas as

demais no mesmo padrão, e a palavra inteira muitas vezes

apresenta-se da forma espelhada.

O professor pode apresentar palavras escritas em

vidros ou plásticos transparentes para mostrar como vemos as

letras do lado certo e na forma espelhada.

Portas de casas comerciais costumam mostrar a escrita

dessas duas maneiras. Carros de bombeiros, de polícia

e ambulâncias apresentam palavras escritas de forma

espelhada na dianteira. Isso acontece para que o motorista

do carro que estiver à frente possa ler direito, pelo

retrovisor, o que está escrito nesses carros oficiais. O

Page 305: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

professor pode arrumar um espelho grande e mostrar como as

letras ficam invertidas (espelhadas) quando

refletidas no espelho. Essa também é uma forma de

analisar com alunos como a escrita funciona.

Explicar o que é ortografia

Muito mais importante do que a cópia é incentivar

os alunos a produzirem escritas espontâneas, visando

sempre à redação de um texto, seja ele curto ou longo.

Quando isso começar a acontecer, inevitavelmente vão aparecer

os famosos e inúmeros problemas de ortografia, que a escola

costuma chamar de troca de letras.

Então, está na hora de explicar o que é ortografia, como

funciona e quais os seus usos.

A explicação ficará mais atraente e será mais bem

assimilada nos seus pontos principais se vier associada à história

da ortografia da língua portuguesa, ilustrada com exemplos do

passado.

Muitos alunos vão se sentir menos frustrados quando

souberem que antigamente havia pessoas que escreviam

(em documentos e em livros) palavras como eles

fazem atualmente, porque a ortografia naquela época

permitia. Mas hoje é diferente. Como exemplo, escrever "onrras"

(honras), "deru" (deram), "çinquo" (cinco),

Page 306: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

"homes" (homens), "filia" (filhas), "doçe" (doce), "vaquas"

(vacas), "milhor" (melhor, "dici" (disse), etc.

Ficarão mais consolados ainda quando, ao explicar a

ortografia, o professor mostrar que os próprios dicionaristas, em

alguns casos, não sabem qual é a forma

<182>

ortográfica preferida das palavras e, portanto, admitem mais de

uma maneira de grafá-las como, por exemplo, "flecha" e

"frecha", "caminhão" e "camião", "aluguel" e "aluguer",

"assobiar" e "assoviar", "louro" e "loiro", etc. Não são só os

alfabetizandos que têm dúvidas ortográficas. Com essas

explicações, os alunos sentir-se-ão mais confiantes na aventura

de escrever os seus textos e o professor receberá com mais

tranqüilidade o resultado obtido pelas crianças.

Como atividade de escrita, é essencial que os alunos

aprendam (e pratiquem) primeiro a escrita e ponham-se a

escrever como eles acham que deve ser. Somente depois, já mais

familiarizados com o ato de escrever, serão levados a

reconsiderar o que fizeram, em função das normas ortográficas.

À medida que os alunos forem escrevendo e forem sendo

instruídos a respeito da ortografia, de seus usos e de como tirar

dúvidas ortográficas, procurarão escrever cada vez mais

corretamente, chegando em pouco tempo a ter poucos erros de

grafia, mesmo na primeira versão dos textos que escreverem.

Page 307: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Texto não é só ortografia

Juntamente com a habilidade de escrever graficamente, o

professor precisa ir ensinando aos alunos que os textos escritos

têm peculiaridades próprias e que os escritores precisam

respeitá-las, porque isso faz parte da nossa cultura.

Quando se fala, tem-se o interlocutor diante de si e, por essa

razão, podem-se fazer gestos, usar recursos não-lingüísticos

para tornar o texto oral eficaz e ser entendido plenamente. A

escrita é muito pobre em recursos dessa natureza e, quando se

escreve, o interlocutor não está vendo o autor nem interagindo

com ele, perguntando o que não entendeu, pedindo explicações,

etc. Portanto, o autor do texto escrito precisa de certo modo

adivinhar as possíveis dificuldades de seu interlocutor (o leitor)

e facilitar a compreensão do texto, revelando através de

palavras todas as informações contextuais necessárias para que

seu texto tenha a eficácia esperada.

Fazer isso requer prática. Adquire-se essa habilidade através

de um trabalho escolar bem desenvolvido, desde a alfabetização.

Escrever, como qualquer arte, é algo que também se aprende

com o estudo das técnicas, embora o gênio, como se diz, já

nasça com a arte

<183>

no sangue. A escola, todavia, não espera que todos os alunos

Page 308: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

sejam grandes escritores. Espera apenas que todos aprendam a

escrever o que for necessário, de acordo com a tradição da

cultura da sociedade em que vivem.

A correção da escrita

Tão importante quanto aprender a escrever é aprender a

corrigir o que se escreve. A correção feita pelo professor deve

ser sempre acidental e ocasional. O importante é a correção que

o próprio aluno faz dos seus trabalhos. Como diz um velho ditado

chinês, não basta dar um peixe a quem tem fome; é preciso

ensinar a pescar. Não basta dizer ao aluno que ele errou, que seu

texto está todo desarticulado ou coisa semelhante. É preciso

ensinar a ele como resolver essas dificuldades, como se

autocorrigir, sem precisar do professor. Essa é uma tarefa que

vai sendo aprimorada aos poucos e, sem dúvida, leva anos para

atingir um nível satisfatório. Mas é preciso que comece a se

desenvolver desde as primeiras manifestações de escrita.

Nos primeiros textos, como o objetivo é simplesmente fazer

com que o aluno passe da habilidade que tem de produzir textos

orais para a habilidade de traduzi-los para textos escritos, o

professor não deve nem sequer mencionar o fato de que o aluno

precisa corrigir o que escreveu, que precisa fazer primeiro um

rascunho ou versão preliminar, corrigir, melhorar e, depois,

passar a limpo. No começo, vale o que o aluno faz, do jeito que

Page 309: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ele fez. Nenhum professor tem condições nem tempo para

corrigir todos os erros dos alunos no começo da alfabetização e,

pedagogicamente, nem é preciso.

Com o tempo, quando os alunos já estiverem mais à vontade

com a escrita e a leitura, produzindo textos espontâneos, o

professor começa a explicar-lhes que é preciso melhorar os

textos, não só no aspecto visual-gráfico, como também levando

em conta a ortografia e, acima de tudo, a estruturação do

conteúdo do discurso.

Esse é o momento das explicações técnicas adequadas e das

cobranças. A partir daí, os alunos farão dois tipos de texto:

aqueles para uso pessoal, que não precisam ser corrigidos e têm

apenas uma única versão, e outros, que serão lidos por outras

pessoas, que irão formar livrinhos, os quais deverão atender às

exigências da escola, e serão feitos em pelo menos duas versões,

permitindo a correção e o aprimoramento da versão inicial.

<184>

Esses cuidados significam formas de respeito ao leitor e,

portanto, uma prática pedagógica muito importante, a que a

escola precisa dedicar-se. Não há nada mais desagradável do

que receber uma carta, um bilhete ou um trabalho mal escrito,

mal organizado, ininteligível com relação às idéias e à grafia,

sujo, mal planejado. Fazem parte da boa educação esses

cuidados com a escrita.

Page 310: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Diacríticos, marcas e arte na escrita

A escrita não é feita só de letras. Há uma série de

marcas e diacríticos que fazem parte do sistema de escrita como

um todo e que precisam ser estudados com os alunos,

juntamente com o alfabeto. No início, os acentos e os sinais de

pontuação, como o ponto final, a vírgula, o ponto de

interrogação, os dois-pontos e o travessão são os diacríticos

mais importantes.

As crianças gostam de escrever palavras com letras artísticas,

enfeitadas. Esse é um bom motivo para fazer cartazes sobre os

mais variados assuntos. Os alunos se entusiasmam com essas

atividades e, ao mesmo tempo, vão aprendendo e produzindo

novos materiais escritos.

A arte de escrever prevê uma programação gráfica, um layout,

ou seja, uma maneira elegante de distribuir o material gráfico

sobre a folha de papel, além da caligrafia bonita. Essas sutilezas

da cultura também precisam ser cultivadas na escola, desde a

alfabetização. Esses temas serão tratados a seguir.

Letras cursivas

As letras cursivas representam modos individuais de traçar as

letras. Tradicionalmente, por causa do método das cartilhas, a

escola passou a exigir dos alunos um certo tipo de letra cursiva

Page 311: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

(manuscrita, script...), com ou sem as adaptações que os

professores poderiam fazer.

O ensino à prática da escrita cursiva começa quando os alunos

já aprenderam a ler (decifrar) e já escreveram os primeiros

textos com as letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Em

geral, a escrita cursiva é dada no início do segundo semestre.

Quando os alunos estiverem na terceira série, ou forem mais

adiantados, seria bom que o professor analisasse com eles como

funciona a escrita cursiva que eles apresentam naquele

momento. Além das formas pessoais de amalgamar letras,

<185>

deformando características gráficas das letras (isoladas), os

usuários costumam abreviar palavras e usar outros tipos de

anotação ideográfica.

De acordo com sua natureza, a escrita cursiva serve para

escrever com rapidez ou para fazer anotações pessoais. Por essa

razão, ela contempla todas as idiossincrasias dos usuários.

Porém, como as pessoas se acostumaram a escreverem textos

com letra cursiva também para que outras pessoas lessem, é

preciso que se escreva de maneira clara e elegante. É por essa

razão que muitos professores ensinam um certo tipo de letra

cursiva e exigem-no de seus alunos.

O professor precisa explicar esses usos da escrita cursiva para

que seus alunos compreendam que podem escrever com a letra

Page 312: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que quiserem quando fizerem anotações pessoais, porém

deverão usar uma letra clara e bonita quando forem escrever

para outras pessoas.

Caligrafia

A caligrafia sempre foi uma arte. Os próprios computadores

modernos não se esqueceram disso. Parece, no entanto, que

muitos professores, por razões estranhas, abandonaram o

ensino da caligrafia. Os alunos passam anos na escola e

escrevem cada vez mais garranchos, sem saber escrever de uma

maneira elegante, quando necessário. Caligrafia não deve ser

confundida com aquele tipo de letra que em geral as cartilhas

exigem dos alunos (letra cursiva), nem com o tipo de traçado

atribuído tradicionalmente a Petrarca. Caligrafia é simplesmente

escrever bonito. Cada um pode desenvolver a sua caligrafia

desde que obtenha uma escrita bonita, elegante, charmosa,

sofisticada. Caligrafia é uma arte típica da escola. No Brasil, essa

manifestação de arte, à semelhança de outras, não tem tido a

menor chance nas salas de aula. É uma pena.

O traçado caligráfico atribuído a Petrarca, usado

tradicionalmente nos cursos de caligrafia, pode ser ensinado em

séries mais adiantadas, complementando os estudos sobre a

escrita iniciados na alfabetização. O segredo desse tipo de

escrita consiste em usar uma caneta que permita a variação da

Page 313: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

espessura dos traços; desse modo, quando se escreve a linha

descendente, força-se o traçado com a caneta, e, quando se

escreve a linha ascendente, suaviza-se.

Na alfabetização, o professor pode mostrar catálogos de

letras, no qual os alunos poderão encontrar uma variedade

enorme de estilos, cujas peculiaridades divergem da forma

original de letras de fôrma maiúsculas e minúsculas. Encontrarão

letras enfeitadas para fazerem cartazes, letras sugerindo fogo,

vento, alegria, tristeza, etc. Usar letras desse tipo para enfeitar

trabalhos, títulos, cartazes, etc. é uma forma de ensinar não só a

escrever, como também a escrever segundo uma cultura. No

mundo em que vivemos, essas formas escritas são muito

comuns, e a escola não pode deixá-las de lado. As crianças

divertem-se com essa atividade e, enquanto se preocupam com

os enfeites, vão aperfeiçoando os conhecimentos sobre a escrita

e a leitura.

Os professores deveriam dispor de uma coleção de material de

escrita diversificado para ilustrar o que vem a ser escrever

bonito. Há inúmeras maneiras de fazer caligrafia e enfeitar um

texto escrito. Apresentar esse material aos alunos é altamente

educativo e incentivá-los a fazer uso desse aspecto artístico

também é uma obrigação da escola.

Os alunos também podem recortar de jornais e revistas tipos

diferentes de letra, classificá-las do ponto de vista das

Page 314: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

características gráficas e organizar álbuns. A classe pode fazer

um álbum coletivo, com as contribuições dos alunos. Esse tipo de

atividade educa o bom gosto e o senso crítico do aluno, além de

contribuir para que avance em seus conhecimentos a respeito da

natureza e usos da escrita, no mundo em que vivemos.

Layout e pontuação

O layout ou o modo como se distribui o material escrito sobre

o papel, também merece a atenção de professores e alunos.

Quando estes estiverem escrevendo textos, o professor

precisará explicar como se cuida do layout. Muitas informações a

respeito desse aspecto só serão acessíveis aos alunos em séries

mais adiantadas, quando souberem, por exemplo, como dividir

um texto em parágrafos. O professor, porém, pode introduzir

algumas idéias gerais. Um texto fala de um assunto, seguindo

algumas idéias básicas. Essas idéias básicas constituem os

parágrafos. Quando alguém disser alguma coisa, usa-se o espaço

de parágrafo, a marca do travessão e escreve-se a fala. Quando

se acaba

<187>

de falar sobre uma idéia (período), coloca-se ponto final. A

vírgula traz algumas dificuldades, mas, em certos casos, como

nas enumerações, é fácil mostrar o emprego da vírgula. No início

de períodos usam-se letras maiúsculas e, em seguida, as letras

Page 315: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

minúsculas do alfabeto adotado. Poesias têm um modo especial

de dispor as palavras.

Embora as explicações não sejam rigorosas, os alunos vão

aprendendo que precisam cuidar não só da ortografia, da clareza

e da beleza gráfica das letras, mas também da maneira como as

palavras são colocadas no papel, dos sinais de pontuação e das

demais marcas da escrita.

No começo, os alunos escrevem palavras isoladas, e o

professor não precisa se preocupar com o lugar onde essas

palavras estão escritas. Porém, quando os alunos estiverem

escrevendo histórias, vão ter de tomar alguns cuidados

especiais.

Nos livros, por razões estéticas, as palavras são cortadas no

final de linhas, quando isso é necessário. (Existem regras para

isso...) Porém, quando as pessoas escrevem à mão, não é

costume cortar palavras, porque não há necessidade de manter o

padrão estético dos livros. Muitas pessoas fazem isso porque

aprenderam assim na escola e levam esse costume escolar para

a vida, O professor de alfabetização deveria mostrar aos alunos

que eles deveriam calcular se uma palavra vai caber ou não no

final da linha, e se acharem que não vai caber, simplesmente a

escrevem na outra linha.

Deve haver uma preocupação com a margem esquerda,

mesmo na escrita à mão, mas não é preciso fazer margem

Page 316: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

direita. No entanto, faz parte da boa estética da arte de escrever

deixar sempre um espaço em branco em toda a volta do texto

(nas quatro margens). Os alunos devem aprender isso desde o

começo da alfabetização.

No primeiro semestre de aulas, provavelmente, o professor só

tocará nesse assunto se algum aluno perguntar algo a respeito

ou para dar alguma instrução muito especial e particular. Porém,

no segundo semestre, esses aspectos precisam ser esclarecidos.

O acabamento correto do texto, quanto à sua apresentação

gráfica, também faz parte daquele conjunto de elementos

culturais associados ao uso da escrita na nossa sociedade que a

escola precisa cultivar.

<188>

As primeiras escritas da criança

Quando o professor começar a ensinar as relações entre letras

e sons, deve escrever palavras no quadro-negro para

exemplificar os fatos que comenta. Nessa hora, as crianças

gostam de copiar. O professor pode deixá-las fazer isso, mas

deve chamar a atenção para o fato de que elas vão aprender a

escrever um pouco mais adiante, quando forem passadas as

informações básicas sobre como traçar as letras.

Essas escritas que as crianças procuram copiar do quadro-

negro servem para o professor perceber como elas estão se

Page 317: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

virando: alguns alunos copiarão direitinho, outros, não, O

professor ficará atento a todos os detalhes, porque essas

informações o ajudarão a saber quais conhecimentos os alunos

têm a respeito dos aspectos da escrita.

Depois de treinado o traçado das letras com os gabaritos, o

professor irá sugerir aos alunos que escrevam o que quiserem:

palavras isoladas, pequenos textos, frases, expressões, nomes,

etc. Nesse momento, fazer pequenas cópias de versos,

provérbios, letra de música ou coisa semelhante é um bom

exercício. Os alunos têm um certo medo de escrever errado

quando são solicitados a escrever uma palavra a partir dos

conhecimentos que têm, mas se sentem mais tranqüilos ao

copiar algo já escrito. A cópia ajuda, então, a aliviar um pouco a

tensão. Como sempre, o professor procurará dar como cópia

algum material interessante e não qualquer coisa. Um bom texto

dispensa qualquer motivação para a escrita.

O material escrito pode ser ilustrado pelos alunos, quer

colando recortes, quer desenhando o que quiserem. É sempre

uma boa estratégia pedir para o aluno escrever primeiro e

ilustrar depois, e não o contrário. Quando parte de um desenho

ou de uma figura colada, o aluno pode ir simplesmente

ajuntando palavras e frases, cada uma relativa a algo que vê nas

figuras. Isso desarticula o texto. Quando o aluno faz o texto

primeiro, o conhecimento da linguagem o guia a compor um

Page 318: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

texto mais bem planejado.

É muito importante que os alunos produzam textos

espontâneos. Esses textos devem ser feitos com total liberdade.

Portanto, os alunos vão escrever o que quiserem, do jeito que

quiserem. As crianças gostam de contar histórias verdadeiras ou

inventadas. Algumas até se arriscam a fazer poesias. Produzir

textos

<189>

deve ser a principal atividade de escrita, depois que os alunos

souberem os rudimentos da escrita. Os textos espontâneos

podem começar quando a criança se interessar por escrever, ou,

por sugestão do professor, quando o aluno já tiver escrito e feito

cópias com letras de fôrma maiúsculas. Isso não significa que

esse tipo de texto pode ser sugerido já na metade do primeiro

semestre.

Ao iniciar esse tipo de atividade, o professor pode deixar os

alunos redigirem, por exemplo, dia sim, dia não. Os alunos farão

o texto e o ilustrarão. O professor não deve interferir de modo

algum no trabalho dos alunos, a não ser que alguém pergunte

alguma coisa. Como alguns alunos (inseguros) gostam de

perguntar tudo para o professor, este deve perceber qual é a

intenção do aluno e, se for o caso, dizer que se deve escrever

como a criança achar melhor, porque, assim, o professor saberá

como ensiná-la se houver algum erro. O professor não corrige

Page 319: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

nada que for entregue pelos alunos. Simplesmente analisa o que

eles fizeram e faz suas anotações para poder preparar melhor

suas aulas futuras, ensinando aqueles pontos que descobrir que

os alunos erram mais, ou com relação aos quais cometem erros

mais graves. No próximo capítulo, trataremos de modo

detalhado da produção de textos na alfabetização.

Aprender fazendo

Como se pôde observar nos comentários a respeito da

produção da escrita na alfabetização, o mais importante é os

alunos produzirem os mais variados tipos de material escrito,

desde textos curtos e simples, até textos longos e pequenos

livros. Aprende-se a escrever, escrevendo, e quanto mais os

alunos escreverem, mais e melhor aprenderão.

O professor não precisa ter a lição preparada: o ideal é que as

crianças decidam o que querem escrever e como realizar o que

pretendem. O professor simplesmente orienta para facilitar os

trabalhos ou dar condições reais de realização. Isso mostra que

o mais comum numa sala de aula de alfabetização é a ocorrência

de atividades diferentes, realizadas por diferentes alunos, em

grupos ou individualmente, todos escrevendo, mas cada um a

sua tarefa. Essa produção de trabalho é a atividade pedagógica

que se espera, e não que os alunos façam segundo um modelo,

como pretendem a cartilha e o método do bá-bé-bi-bó-bu.

Page 320: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<190>

ENTENDENDO COMO SE FALA

Os alunos são falantes nativos

O professor de alfabetização não precisa se preocupar em

ensinar português aos seus alunos, porque todos são falantes

nativos e ninguém mais do que o falante nativo é dono da língua

que fala. Isso, na verdade, é um grande alívio. Quando se trata

de decifrar um sistema de escrita, se a pessoa não conhece a

língua, a tarefa é praticamente impossível. Uma das condições

básicas para aprender a ler é saber a língua em que o texto foi

escrito. Como todos os alunos são falantes de português, pode-

se conversar com eles, discutir, ouvi-los e, quando eles forem

ler, decodificarão as mensagens da escrita de maneira

semelhante à que usam para entender uma conversa ou alguém

falando.

Quando as pessoas adquirem a linguagem, aprendem não só a

falar, como também a entender o que as outras pessoas dizem.

Compreender bem esse fato é fundamental para lingüistas e

professores.

A variação lingüística

Todo falante nativo fala de acordo com a variedade lingüística

Page 321: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

estabelecida na comunidade em que cresceu e viveu. Porém,

como a língua portuguesa, como um todo, é falada em muitos

lugares, apresenta variedades, firmando-se assim os dialetos. Na

verdade, todo falante é falante de um dialeto. Uma vez que as

pessoas compartilham uma vida social e política no âmbito da

nação, os falantes de dialetos diferentes ouvem uns aos outros,

comunicam-se, conversam entre si e, depois de certo tempo e

costume, as diferenças dialetais passam quase despercebidas ou

são simplesmente consideradas irrelevantes.

O resultado dessa situação torna o falante nativo ouvinte e

entendedor de muitos dialetos. Em resumo, um falante nativo é

geralmente monolíngüe de um dialeto: fala de determinada

maneira; mas é ouvinte poliglota de todos os dialetos de sua

língua: participa, como ouvinte, de todos os dialetos. Mais ainda,

o falante nativo usa um sistema lingüístico específico quando

fala (a gramática do seu dialeto), mas usa todos os demais

sistemas que integram a língua, relativos aos dialetos, quando

ouve. Para entender o que ouve, é preciso que esse falante

nativo tenha interiorizado todas as gramáticas de todos os

dialetos da língua.

<191>

Como se vê, o problema da escola não é ensinar a falar ou a

entender português: isso todos os falantes nativos sabem fazer e

muito bem. O problema escolar coloca-se quando se pretende

Page 322: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que uma pessoa, que não é falante de um determinado dialeto,

passe a falá-lo ou adquira a habilidade de substituir seu dialeto

por outro em certas ocasiões, quando necessário. Nesse caso,

falar um dialeto diferente do próprio exige um esforço

semelhante àquele necessário para aprender uma língua

estrangeira. Falar uma outra língua ou um outro dialeto, por

mais semelhante que seja do próprio, é uma tarefa árdua, que

requer tempo e muita prática.

Na verdade, aprender uma língua estrangeira é mais difícil do

que aprender a falar um dialeto diferente, dentro de uma mesma

língua, porque, no caso do dialeto, o falante entende, embora

não fale, o mesmo não acontecendo no caso de uma língua

estrangeira.

O dialeto padrão na escola

As crianças que entram na escola já falando o dialeto padrão

ou norma culta têm uma enorme vantagem sobre aquelas que

são falantes de outros dialetos. No começo, o professor não deve

se preocupar muito com os diferentes dialetos. Esse fato em si

não atrapalha o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita.

Apenas exige uma compreensão correta do fenômeno, por parte

do professor, para explicar adequadamente o que deve ser feito

e, por parte do aluno, para saber o que a escola espera dele.

Como o objetivo da escrita é a leitura, uma pessoa pode ler um

Page 323: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

texto em seu próprio dialeto sem problema algum. Assim como

alguém vê escrito "pote", "dia" e pode ler "póti", "dia", outra

pessoa pode ler "pótchi", "djia", e assim por diante. Do mesmo

modo, um falante do dialeto caipira pode ver escrito "planta",

"milho", "dentro", e ler, seguindo seu dialeto, "pranta", "miiu",

"drentu", etc. Para escrever, há menos problemas ainda, porque,

embora usemos um alfabeto, somos obrigados a escrever

seguindo uma ortografia preestabelecida, e não fazendo

transcrições fonéticas da pronúncia que cada pessoa usa. Basta

conferir "pote" e "dia", que automaticamente se entende

"dentro" e "milho".

Os professores que trabalham com as cartilhas têm uma visão

tão errada de como a fala, a escrita e a leitura

funcionam, que acabam ficando desesperados quando

<192>

encontram um aluno que é falante de um dialeto muito diferente

do dialeto padrão. Entendem que o aluno precisa, sempre,

aprender a falar primeiro para então aprender a ler e, sobretudo,

a escrever.

A aquisição do dialeto padrão ou norma culta é uma tarefa que

deve ser realizada não só na sala de aula e não só através de

lições planejadas. A melhor e mais segura maneira de aprender

uma língua (ou um dialeto) é usando-a na vida real. Na escola, é

preciso que haja muito recreio, muita festa, muito entrosamento

Page 324: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

entre alunos e professores, para que os alunos se sintam

pressionados a usar o dialeto padrão. As zombarias dos colegas,

muitas vezes, são um argumento decisivo para os medrosos ou

acomodados. Nessas ocasiões de interação social, a criança vai

passando da habilidade de ouvir e entender o dialeto padrão

para a habilidade de expressar-se nele.

Na sala de aula, o professor irá orientando aos poucos seus

alunos para empregar, na escola, só o dialeto padrão. Mas não se

deve ficar cobrando dos alunos, chamando a atenção a todo

instante para seu modo diferente de falar. Certamente, a

maneira mais eficaz de os alunos aprenderem a falar o dialeto

padrão está na aprendizagem da escrita e principalmente na

prática da leitura. Mas às vezes isso requer muito tempo.

Falar sobre como se fala

Para que os alunos não se desesperem, quando perceberem

que terão de aprender a falar um dialeto diferente do habitual, é

preciso que o professor, nos momentos oportunos, converse com

eles a respeito dos vários problemas de fala, explicando-lhes

como a fala funciona e quais os seus usos. Algumas dessas

questões serão comentadas brevemente neste capítulo e mais

detalhadamente em outra parte do livro.

CAGLIARI, 1997a. c

Para que o professor desempenhe adequadamente esse papel

Page 325: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de conversar sobre a fala dos alunos, ele precisa conhecer bem

fonética e fonologia geral e, principalmente, o português do

Brasil. Há muitos trabalhos de lingüistas que o podem ajudar.

A aquisição da linguagem oral

É sempre importante contar para os alunos como uma pessoa

adquire a linguagem oral. Qualquer um, em qualquer lugar do

mundo, aprende a falar entre o primeiro e o terceiro ano de vida,

aproximadamente. Nesse

<193>

espaço de tempo, aprende uma gramática, um vocabulário

e uma série de regras que permitem usar a linguagem

nas mais diferentes circunstâncias. Como já dissemos antes, as

pessoas usam mais esses conhecimentos

para entender o que ouvem do que para falar. Na fala,

empregam uma parte menor desse conhecimento

geral. Por exemplo, as crianças entendem frases na voz passiva,

porém não costumam usar essa construção quando falam.

Nessa ocasião, os conhecimentos gramaticais são adquiridos

na sua quase totalidade, e a pessoa aprenderá poucas novidades

nessa área, pelo resto da vida. O vocabulário, por outro lado, é

uma lista aberta de palavras

que irá se enriquecendo à medida que a pessoa for

vivendo

Aprender a falar significa seguir regras. Ninguém consegue

Page 326: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

falar, seja que dialeto for, sem seguir regras muito

precisas. Se alguém diz que "mesa" é "copo", "cavalo" é

"árvore", etc., não está seguindo as regras da língua

portuguesa, mas cometendo um verdadeiro "erro" do

ponto de vista lingüístico. Porém, esse tipo de "erro", os

falantes nativos não cometem.

A linguagem não é feita só de palavras isoladas; ela é

fundamentalmente um conjunto de palavras organizadas

num discurso ou texto, com regras de combinação muito

específicas. Por exemplo, num dialeto, algumas

palavras precisam concordar, ficando todas no singular ou no

plural, conforme o caso. Deve-se dizer, por exemplo:

"As meninas loiras brincam nos jardins". Já num outro dialeto, a

gramática tem regras diferentes, e o falante dirá: "as menina

loira brinca nos jardim". No segundo

caso, não há falta de regras ou de lógica, mas a aplicação de

regras de gramáticas diferentes, cada uma

específica de um dialeto. Note que o resultado semântico é igual

nos dois dialetos.

Todas as línguas do mundo — ou, mais especificamente, todos

os dialetos de todas as línguas — precisam de regras. As línguas

nada mais são do que um

conjunto de regras de um determinado tipo. Em razão

disso, um mesmo pensamento, dito no dialeto padrão de uma

Page 327: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

língua ou num dialeto estigmatizado pela sociedade, tem o

mesmo valor semântico. Isso pode acontecer até com línguas

diferentes. O exemplo acima, se vertido para o inglês, apresenta

outras regras gramaticais:

"The blond girls play in the gardens". Traduzida literalmente

para o português, a frase inglesa corresponde ao seguinte

esquema sintático: "A loira meninas

<194>

brinca no jardins". Aí, encontra-se um terceiro tipo de regra de

concordância, diferente das apresentadas pelos dialetos do

português.

Ser diferente não é um problema lingüístico; pelo contrário,

são as diferenças que permitem que as línguas existam. A

linguagem exige tão-somente que as regras sejam observadas.

Essa é a razão profunda pela qual um falante nativo comumente

se recusa a modificar sua fala. Para ele, seu jeito de falar é a

maneira exigida pela gramática do seu dialeto. Falar diferente,

para ele, seria deixar de ser falante de seu dialeto, o que nem

sempre é uma idéia muito atraente, sobretudo para uma criança.

Essa concepção de linguagem era encontrada comumente em

gramáticas do século passado.

Linguagem e lógica

Não existe verdade na afirmação de que o dialeto padrão

Page 328: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

representa a expressão do pensamento lógico, bem-estruturado,

ao passo que os dialetos populares revelam mentes

desorganizadas, desarticuladas e sem capacidade para exprimir

idéias mais sofisticadas. Todo dialeto serve para exprimir

qualquer idéia, basta o usuário se dispor a isso. Como, na nossa

sociedade, os bens culturais são escritos no dialeto padrão e não

em outro, alguém pode ter a impressão de que é a gramática do

dialeto padrão que controla o pensamento. Na verdade, ocorre o

contrário.

GNERRE, 1985.

A discriminação pela linguagem

O homem vive em sociedade e, por isso mesmo, rodeado de

preconceitos. Sempre alguém quer prevalecer sobre os demais,

levar vantagem, destruindo, como pode, seus concorrentes. Por

essas razões, formam-se as classes sociais. Esses grupos passam

a ter um modo de vida diferente e, depois de muito tempo, um

dialeto próprio. As diferenças lingüísticas passam, então, a fazer

parte daqueles elementos marcadores das diferenças sociais e,

conseqüentemente, da manifestação dos preconceitos. Na

prática, a linguagem acaba sendo apenas uma maneira

conveniente de a sociedade disfarçar sua intolerância para com

os menos favorecidos econômica e culturalmente. Desse modo,

passa-se a crer que a fala dos pobres é errada, ilógica e sem

Page 329: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

elegância.

A escola precisa analisar esses fatos com os alunos,

explicando o que significam, e não ser uma mera reprodutora

desses preconceitos. A escola deve respeitar todos os dialetos e

inculcar nos alunos o respeito ao indivíduo.

<195>

Respeitar um dialeto não significa não dar chance ao aluno de

aprender outro. Aprender o dialeto padrão é indispensável, não

para justificar os preconceitos associados a ele, mas como forma

de garantir uma vida melhor aos que estudam.

O aluno pode aprender o dialeto padrão sem precisar esquecer

o dialeto com que adquiriu a linguagem oral. Todos os dialetos

representam bens culturais. Essa é uma questão que deve abrir

muitos debates na escola, desde a alfabetização.

SOBRE O TRABALHO ALTERNATWO

As considerações apresentadas neste capítulo mostram como

é possível desenvolver um trabalho de alfabetização sem usar a

cartilha e o método do bá-bé-bi-bó-bu. A proposta é simples e

não tem um caminho predeterminado. Existe uma sugestão de

trabalho direta e muito produtiva em tarefas específicas de

leitura e de escrita.

A proposta deste capítulo não é apenas tirar a cartilha como

livro didático, mas, sobretudo eliminar a idéia de que o professor

Page 330: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

precisa de uma receita que o oriente passo a passo na sua

atividade. Se ele souber tudo o que necessita a respeito da

leitura, da escrita e da fala, tem o segredo pedagógico para

desenvolver um trabalho correto. Na verdade, ele não precisa ser

um grande lingüista: o conteúdo necessário para fazer um bom

trabalho não é tão grande, nem tão complicado, quanto as

pesquisas lingüísticas modernas. Nem tudo o que a lingüística

estuda e descobre serve para a atividade de alfabetização. Além

disso, muita coisa o professor já aprendeu na sua prática de

trabalho, ao longo de anos de observação.

<196>

9.

A produção de textos

espontâneos

UM TEXTO NÃO É UM AMONTOADO

DE PALAVRAS

Na vida real, as pessoas não pronunciam palavras

isoladas. Quando alguém se põe a falar, sua intenção é dar uma

informação completa, e isso acontece através de um texto.

Somente em circunstâncias especiais, num contexto específico,

as pessoas dizem palavras isoladas, mas sempre elas estão

inseridas num texto maior ou são esperadas como resultado de

Page 331: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ações ocorridas. Assim, se alguém fizer uma pergunta, posso

responder dizendo apenas "Sim" ou "Não". Esse tipo de resposta

faz parte de um texto maior, que motivou a resposta. Na

verdade, o texto continua na resposta do interlocutor. Houve

apenas mudança de falante. Em outro contexto, se alguém grita

por socorro, ou dá uma ordem, tendo em vista a necessidade do

momento, dizer apenas uma palavra é o que basta, dada a

situação.

Normalmente, o que acontece é um uso da linguagem que

obriga o locutor e o ouvinte a produzirem um texto e não

palavras isoladas. O tamanho do texto varia. As pessoas falam o

que acham que precisam falar, organizando o conteúdo e o estilo

do texto de acordo com sua vontade.

Na vida real, quando as pessoas usam a linguagem oral, estão

mais preocupadas com o que vão fazer com ela, como vão

despertar idéias e reações no seu interlocutor, do que em falar

certo ou errado. Essa preocupação só surge quando as

circunstâncias sociais de uso da linguagem trazem à consciência

do falante o peso que a sociedade atribui ao falar, seus

preconceitos e suas manias. Por isso, o aluno fala sem se

preocupar com juízos dessa natureza quando está no seu

ambiente familiar, mas começa a se apavorar quando entra na

escola e, sobretudo, quando o professor lhe dirige a palavra

pessoalmente. Nesse momento, esquece-se de que é falante

Page 332: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

nativo e de que é senhor da sua língua, e passa-se a ser um

escravo daquilo que pensa que representam as expectativas

culturais da sociedade, da escola e, principalmente, do professor.

A escola (mais especificamente nas aulas de linguagem) é o

único lugar onde se ouve e também se fala de outra maneira. O

professor desmonta e monta textos, frases, palavras e até

sílabas para explicar os mecanismos da linguagem. Desse

processo resultam

<198>

segmentos que remetem ora para o significado, ora apenas para

os sons da linguagem, e até mesmo para as letras. Todo corte

implica, de certo modo, modificações do texto. Mesmo quando se

procura explicar um texto, palavra por palavra, como os

elementos prosódicos se modificam, os comentários semânticos

perdem de vista as atitudes do falante e, às vezes, até

informações gramaticais importantes, como as carreadas pela

entoação e o ritmo. As segmentações da fala feitas nas aulas de

linguagem pretendem justamente isolar partes para melhor

analisá-las, uma vez que a fala como um todo é sempre

extremamente complexa. No entanto, nem tudo num texto pode

ser segmentado para análise, porque em certas situações o

significado depende do contexto.

Depois de muitos anos de estudo sobre a linguagem, as

pessoas acham muito fácil e familiar fazer todos os tipos de

Page 333: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

segmentação da fala. Com o uso dos sistemas de escrita, isso se

torna ainda mais corriqueiro. A escrita segmenta a fala em

palavras e em letras, e isso parece ser a essência da linguagem

para as pessoas que estudaram. No entanto, na sua essência, a

linguagem é uma realidade oral falada e existe como a soma de

inúmeros parâmetros que controlam o significado e os sons do

que se diz.

As pessoas que não conhecem o sistema de escrita são

levadas a ver a linguagem oral como unidades de outro tipo:

para elas, o que vale, em primeiro lugar, é o significado e, em

segundo lugar, a maneira como esse significado é dito. Quando

as pessoas pensam e falam, guiam-se quase exclusivamente pelo

significado, permanecendo no nível do inconsciente todos os

conhecimentos requeridos para um completo e necessário

controle da linguagem. A gramática de uma língua nada mais é

do que a explicitação desses conhecimentos. Somente quando

acontece algo estranho com o significado ou com os sons é que

os usuários de uma língua começam a transpor do subconsciente

para o consciente as regras que regem o uso da linguagem. Caso

contrário, tudo vem normalmente, e a gramática é o que menos

interessa numa conversa.

Essa maneira de conduzir a fala e usar a linguagem também

pode ser claramente constatada pelas pessoas que usam a

escrita com muita facilidade. Depois que alguém passa a

Page 334: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escrever com velocidade e fluência, começa a deixar para o

domínio do subconsciente as regras que regem o sistema de

escrita que usa, passando

<199>

a escrever (quase) automaticamente, guiando-se apenas pelo

significado. As palavras são escritas tão naturalmente quanto

são ditas numa conversa. Para falar, é preciso articular os sons

de maneira precisa e, para escrever, é preciso traçar as letras.

Essas atividades são feitas automaticamente. Se tivéssemos de

relembrar todas as regras para falar ou escrever, a todo

instante, ficaríamos perdidos e confusos em meio a uma enorme

complexidade de dados.

Quando se interrompe a fala ou a escrita, procura-se em geral

uma forma melhor de expressar o pensamento. A dificuldade

reside mais em juntar as idéias do que em falar ou escrever o

que se gostaria de dizer. É claro que alguém pode não se lembrar

de uma palavra específica, ou ter dúvidas quanto à pronúncia ou

à ortografia. Mas esses são casos especiais e raros.

TEXTOS OU PALAVRAS ISOLADAS?

As considerações anteriores mostram que usar a linguagem

como um material que se pode dissecar, analisar e comparar é

uma atividade escolar típica e não um uso comum. Quando

entram na escola, as crianças lidam com a linguagem como

Page 335: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

qualquer falante nativo. Para elas, a linguagem é um texto que

se diz ou que se ouve, um texto dito por uma pessoa ou

elaborado com a participação de várias pessoas. Pensar a

linguagem como sendo composta de unidades bem-delimitadas e

com valores bem-definidos é algo que se consegue somente

depois de muitos anos de estudo.

Isso tudo mostra que, para uma criança que entra na escola

para se alfabetizar, é muito mais natural e fácil lidar com textos

do que com palavras isoladas, sílabas ou outros segmentos. O

mundo da linguagem é o mundo dos textos. Por essa razão, o

professor deve tentar, sobretudo no início, criar situações em

sala de aula em que predominem o texto. Por outro lado,

principalmente no começo, o professor deve tomar cuidado

quando exemplifica com pedaços de fala. Obviamente, será

necessário segmentar a fala não só para ensinar a escrever, mas

também para analisar a linguagem oral.

Sempre que possível, o professor precisa estar atento para as

prováveis dificuldades oriundas dessa atividade. Engana-se

redondamente o professor que pensa

<200>

que é banal e fácil dizer que a palavra-chave BEBE tem dois

pedacinhos "bê" + "bê", os quais, por sua vez, pertencem à

família dos "bês", ou seja, do bá-bé-bi-bó-bu. Isso parece óbvio

para o professor que está mais do que acostumado a lidar com a

Page 336: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

linguagem. Para os alunos, trata-se de algo fantástico. Eles

jamais pensaram a linguagem oral dessa maneira. É

surpreendente que se possa falar sobre a linguagem fazendo as

palavras perderem seu significado próprio e ficando sujeitas a

novas regras e valores semânticos, restando sobretudo valores

semânticos que só existem quando fazemos esse exercício de

análise da linguagem.

TEXTOS ORAIS E ESCRITOS

Quando se fala em texto (ou discurso como dizem os

lingüistas), algumas pessoas se confundem, concluindo que nem

toda produção oral é um texto, mas somente aquelas que

revelam traços literários. Essa atitude nega uma das realidades

lingüísticas mais notáveis, uma vez que as línguas só existem

porque as pessoas produzem textos quando falam. No fundo,

tudo o que se diz, mais o contexto em que é dito, forma um

discurso ou texto. Outra coisa é o modo como esse discurso ou

texto é apresentado e a finalidade para a qual ele é feito.

A literatura nada mais é do que um dos possíveis usos da

linguagem ou uma das possíveis finalidades para esse uso. Um

texto literário precisa ter um toque de arte, um texto científico

precisa ter uma apresentação especial, uma carta é escrita com

outro estilo. Resumindo, os textos têm estilos diferentes. Há

diferenças notáveis entre o modo como produzimos nossos

Page 337: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

textos orais e nossos textos escritos, dentro das exigências

escolares ou em determinadas circunstâncias culturais.

Alguns professores consideram que as crianças que iniciam

sua alfabetização não conseguem lidar bem com textos e, por

isso, eles dão em sala de aula apenas palavras e frases isoladas.

Acham que as crianças não são capazes de produzir textos

literários, científicos ou mesmo de uso escolar mais comum. Em

outras palavras, essas pessoas estão preocupadas com os estilos

culturalmente exigidos pela escola, e não

<201>

com o fato de as crianças saberem ou não produzir textos, no

seu sentido mais amplo. Pior ainda, esses professores supõem

que na fala comum não existe um texto ou um estilo que valha a

pena. Por causa de idéias preconceituosas dessa natureza,

desprezam em geral os textos dos alunos quando estes não

apresentam traços culturais bem marcantes (ou estereótipos

baseados numa expectativa literária que têm).

Como se disse, a fala é diferente da escrita, e nisso não há

nada de novo nem de ruim. A criança vem para a escola sabendo

lidar bem com os estilos de sua linguagem oral e espera que lhe

ensinem os demais estilos, especialmente os da linguagem

escrita. Para tanto, a escola não precisa destruir o que o aluno já

sabe nem negar o valor dos conhecimentos da criança. Precisa,

ao contrário, discutir o assunto com os alunos.

Page 338: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O TEXTO NA VIDA E NA ESCOLA

Uma criança deve levar a sua habilidade de produzir textos

orais para a sala de alfabetização e usar isso como ponte para

aprender a produzir os textos escritos nos estilos esperados pela

escola e pela cultura.

Porém, se em vez de fazer isso, a escola começar negando

essa habilidade e substituindo-a por atividades pedagógicas

equivocadas, como os exercícios de monta/desmonta a

linguagem, acabará passando ao aluno a idéia de que o texto que

ele fala (a língua que conhece) não tem nada a ver com o texto

que a escola exige dele (um uso um tanto misterioso de sua

própria língua).

O emprego de atividades que atomizam demais a linguagem,

como o uso dos "tijolinhos" das famílias de sílabas para

construir o "muro" chamado texto, acabam destruindo o texto na

sua essência, porque não se trata simplesmente de uma fileira

de palavras. Há regras muito rígidas de coerência e coesão que

estabelecem relações entre as palavras. Essas regras não estão

em palavras isoladas, mas nas pontes que ligam as palavras num

texto. Essas relações ou pontes jamais aparecerão num bá-bé-bi-

bó-bu.

Falar a linguagem da criança não significa ser confuso e

ensinar errado. O excesso de metáforas pode levar o ensino ao

Page 339: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

caos. Algumas atividades são apresentadas como uma espécie

de jogo de adivinhação, o que

<202>

acaba insinuando a alguns alunos que a linguagem nada mais é

do que um jogo de azar. Há momentos em que a escola tem de

ser clara, objetiva, precisa, mesmo que alguns alunos não

compreendam bem o que se diz num primeiro momento.

Apesar do que ouve e faz na escola, a criança continua usando

a linguagem oral normalmente no seu dia-a-dia. Trazer para a

sala de aula essa atuação é muito importante para que o aluno

perceba que está lidando com o mesmo objeto e não com coisas

muito diferentes.

Uma criança pode lidar bem com seus textos orais na

alfabetização, quer falando, quer escrevendo. A partir deles,

pode aprender como a linguagem funciona, comparar sua fala

com outros tipos de texto, de estilos diferentes, e ir aprendendo

a produção de textos orais e escritos dentro das expectativas da

escola.

Além disso, pode lidar com conceitos e regras que se utilizam

de segmentos da fala sem perder de vista "o contexto maior". O

método do bá-bé-bi-bó-bu procura tirar da mira do aluno todas

as palavras não estudadas para não confundi-lo, quando na

verdade esse uso da linguagem sem um contexto maior torna

muito mais difícil o próprio estudo de unidades menores, que

Page 340: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

precisam, às vezes, ser isoladas.

Para aprender a falar, as crianças não precisam estudar os

sons da fala isoladamente e depois agrupá-los, formando

seqüências que começam por padrões mais simples e vão até os

mais difíceis. As crianças aprendem a falar usando a linguagem

no seu contexto natural e na sua forma mais plena e abrangente

possível.

O mesmo pode-se aplicar à aprendizagem da escrita. Temos o

alfabeto com letras, mas escrevemos palavras e não apenas

letras, uma depois da outra. O método que propicia o aluno a

aprender letra por letra ou sílaba por sílaba, cria um contexto no

qual a linguagem não faz mais sentido. Fora desse âmbito, as

regras perdem seu poder explicativo. Esse procedimento de lidar

com a linguagem é sem dúvida uma das grandes causas da

dificuldade que algumas crianças apresentam para se

alfabetizar. O professor acha, às vezes, que está facilitando o

trabalho do aluno, quando na verdade o está complicando, a

ponto de impedir a aprendizagem.

Há muita diferença entre uma palavra-chave, geradora de

uma análise em sílabas, letras e sons, e um uso de palavras num

outro contexto, em que elas encontram

<203>

vida própria. As palavras-chave ocorrem de maneira arbitrária e

são pretextos com fundamento equivocado, quer do ponto de

Page 341: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

vista lingüístico, quer do ponto de vista da motivação do ensino.

A escolha da palavra-chave gera um esvaziamento semântico, no

qual o próprio sentido literal soa estranho, como é o caso do

professor que diz "bebê" ou mesmo "cachorro". Os métodos

aconselham a narrativa de uma história em que a palavra-chave

representa o personagem central. Essas histórias em geral não

têm graça e soam ridículas. Esse uso da linguagem é típico da

escola.

Na vida real, entretanto, algumas palavras isoladas podem ter

um uso perfeito. Quando alguém escreve o nome de um

estabelecimento comercial, uma indicação, o rótulo de um

produto, podem-se encontrar palavras isoladas e usadas com

propriedade. Muitos professores já descobriram isso e fazem

seus alunos pesquisarem o mundo da escrita nas situações

cotidianas. Alguns professores inicialmente trabalham com os

nomes dos alunos, etiquetando cabides, material escolar,

carteiras, etc. Obviamente, o professor não vai ficar fazendo só

isso. Não há muito jeito de explicar os mecanismos da

linguagem, sobretudo a escrita, sem levar em conta o uso de

palavras isoladas.

Trabalhar só com palavras isoladas é tão errado quanto

trabalhar somente com textos. As duas coisas são

indispensáveis.

Page 342: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O PROFESSOR E O TEXTO DO ALUNO

O professor precisa tomar alguns cuidados. Em primeiro lugar,

deve incentivar seus alunos a ler e escrever textos, e não apenas

palavras isoladas. Sempre que possível, é melhor usar textos do

que palavras soltas. Em segundo lugar, o professor precisa dar

explicações, dizendo o que está fazendo e o que pretende fazer e

mostrando o funcionamento da linguagem basicamente através

de discursos orais. Mas, para tanto, é necessário fazer uns cortes

e pensar a linguagem de outro jeito, através de regras que

consideram uma questão por vez, de maneira isolada. Com

relação à escrita, essa abordagem é mais evidente. Desse modo,

o aluno fica sabendo que o estudo gramatical faz um uso

especial da linguagem.

<204>

O professor deverá mostrar ainda que seus alunos conhecem

muitas coisas sobre a linguagem, mas que não estão

acostumados a refletir sobre seu funciona mento. Para isso

deverão usar a capacidade de refletir e examinar o que

conhecem da linguagem através da simples introspecção da

própria fala. Nesse caso, a segmentação da fala em partes

arbitrárias ou motiva das mais por regras sintáticas do que pela

semântica é o que eles precisam levar em conta. Esses

conhecimentos estão implícitos na cabeça do professor, mas

precisam ser explicitados aos alunos. Aqueles que recebem esse

Page 343: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tipo de explicação antes das atividades lidam melhor com os

estudos depois.

Quando aprendem a falar e a ouvir a linguagem diante de

textos, as crianças passam a dominar não só os sons da fala e os

significados literais das palavras, mas também as formas de

argumentar, de construção da coerência e da coesão dos textos

e o uso literal e metafórico da linguagem. Num texto, esses

elementos são tão importantes quanto as palavras e os sons da

fala. Isso tudo é adquirido com a aquisição da linguagem oral.

Uma discussão entre os tais chamados "meninos de rua" mostra

como conseguem manipular a linguagem muito bem, mesmo

nunca tendo ido à escola.

Se a escola encarar o ensino da alfabetização dessa forma, irá

fazer com que os alunos não percam essas habilidades orais

quando forem aprender a ler e a escrever, pelo contrário, irão

enriquecê-las. Porém, se a escola reduzir a linguagem a

conjuntos de palavras isoladas, pedaços de palavras, esses

elementos básicos do discurso lingüístico desaparecem, e o

aluno começa a produzir textos que não passam de amontoados

de palavras e frases. A escola destrói algo que os alunos já

tinham e depois irá cobrar caro pela incapacidade de certos

alunos de produzirem textos aceitáveis, porque nesses textos

faltam justamente os elementos que foram negligenciados. Uma

metodologia inadequada pode fazer alguns alunos desmontarem

Page 344: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

a linguagem e não saberem remontá-la corretamente, como

atividade escolar de produção de textos.

Para facilitar e se adequar aos métodos usados, os autores

das cartilhas e muitos professores inventam textos que

representam o pior exemplo que os alunos podiam ter do que

vem a ser um texto. Fazem isso por que pensam que os textos

dos escritores famosos são muito difíceis ou inapropriados para

os objetivos da lição, segundo as expectativas do método. Essa é

uma

<205>

visão equivocada. Primeiro, porque o método das cartilhas é um

grande equívoco em todos os sentidos. Depois, porque o texto de

um escritor famoso, que escreve para crianças, de fato envolve

os leitores, caso contrário, esses escritores não seriam famosos.

Escrever textos como esses é muito difícil e poucos conseguem

tal proeza. Mas os bons autores representam o que há de melhor

também para as crianças. Ouvir, ler e entender esses textos é

bem diferente de produzi-los. Se é difícil escrever um texto

desse tipo, isso não significa que seja igualmente difícil lê-lo ou

ouvi-lo. Os escritores famosos conseguem envolver seus leitores

de tal modo que eles nem se dão conta da forma do texto, muitas

vezes deixando-se levar apenas pela mensagem transmitida.

Um ensino baseado em palavras-chave e no bá-bé-bi bó-bu

exige uma repetição excessiva de elementos semelhantes para a

Page 345: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fixação da aprendizagem, ou simples mente para chamar a

atenção para uma determinada estrutura. Porém, um ensino que

está profundamente comprometido com a reflexão e com a

construção do conhecimento pela criança encontra nos textos de

escritores famosos o que há de melhor.

O PLANEJAMENTO DOS TEXTOS

Há muitas coisas que se podem dizer a respeito de textos. Os

estudos literários têm uma tradição milenar. A filosofia e, mais

recentemente, a lingüística moderna têm contribuído

enormemente para esse tipo de estudo. Tudo é muito importante

e muito interessante. As considerações que estamos fazendo, no

entanto, estão selecionando alguns aspectos tendo em vista o

trabalho de alfabetização nas primeiras séries escolares. Dentro

dessa perspectiva, um texto tem dois aspectos: um interno e

outro externo.

O aspecto interno é o planejamento textual, ou seja, juntar o

que se quer dizer com o modo com que isso vai ser dito,

seguindo uma determinada ordem. Todo texto pronto revela

essas noções. O aluno que vai escrever um texto precisa

aprender a fazer o planejamento textual. A idéia em si não é

novidade. Porém, a maneira como muitos livros e professores

tratam desse assunto revela problemas sérios.

<206>

Page 346: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Quando uma pessoa conversa, organiza o que diz em função

das idéias que tem e da reação das pessoas a seu redor, à

medida que vai falando. Quando escreve, não conta com a reação

de pessoas presentes como interlocutores. Por isso, é preciso

prever as reações possíveis dos leitores que são os

interlocutores ausentes na hora da produção do texto, mas que

entrarão na história desse texto mais tarde. Os textos não têm

apenas palavras e personagens da história; contêm também os

personagens da produção e da leitura do mesmo.

Além disso, quando se fala, não se volta atrás, a não ser em

continuação do que já foi dito. Quando se escreve, porém, pode-

se apagar e fazer tudo de novo, como se nada tivesse

acontecido. Assim, ao escrever, é possível fazer um

planejamento melhor daquilo que vai ser dito.

Esse planejamento realiza-se em duas etapas. Na primeira, o

escritor pensa e anota algumas idéias a respeito das quais vai

dissertar. Na segunda, o escritor faz seus comentários sobre o

que tinha assinalado, completando seu discurso. Terminada uma

versão, procede-se a uma correção e revisão, para melhorar o

que for possível. Cada texto acaba saindo de uma determinada

forma, dentre as inúmeras possibilidades de realização.

A prática tradicional de montar um roteiro para os alunos

escreverem textos ou simplesmente mandarem fazer, por

exemplo, cinco frases usando uma determinada palavra ou idéia

Page 347: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

é uma concepção errada de planejamento de texto. Quando as

pessoas falam, não precisam disso e, quando vão escrever,

também não. A reflexão do indivíduo é que deve guiar o texto.

Na produção dos primeiros textos pelas crianças, não vale a

pena ficar tratando de planejamento de texto. Basta o professor

dizer para os alunos escreverem o que quiserem, do jeito que

quiserem, sobre o que quiserem ou sobre um determinado

assunto. O planejamento do texto deve ser ensinado depois que

os alunos já estiverem produzindo textos com certa facilidade e

estiverem familiarizados com textos que eles próprios leiam.

Quando for a hora, o professor deve cuidar para que os alunos

aprendam a escrever textos como um arquiteto que planeja a

casa que vai construir, acostumando-os a ter na mente uma

visão de qual vai ser o resultado final. Alunos que escrevem sem

planejamento freqüentemente fazem textos que são difíceis de

corrigir, tendo como única saída refazer tudo.

<207>

Faz parte da bagagem de conhecimentos educativos relativos

à linguagem, o treinamento para planejar o que se pretende

escrever. Além disso, a escrita, dependendo de quem é o

destinatário, exige do escritor a tomada de certas providências,

por exemplo, com relação à escolha do vocabulário, da

organização das idéias, do modo de argumentar ou conduzir as

idéias, e até mesmo do capricho e elegância da apresentação

Page 348: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

gráfica. A cultura e a sociedade em que vivemos têm exigências

com relação aos textos que as pessoas escrevem, e a escola tem

a obrigação de discutir essa questão e mostrar aos alunos como

proceder, de maneira muito semelhante à discussão a respeito

da variação lingüística e da norma culta.

Os aspectos externos à estrutura dos textos referem-se à

forma de apresentação, quer do ponto de vista do modo como o

discurso é estruturado, quer do ponto de vista do modo como

esse discurso é transmitido. Podemos ver essa arquitetura do

texto de outro jeito. Quanto à forma, um texto pode ser uma

poesia, uma prosa, um esquema, etc. Do ponto de vista do estilo,

pode ter uma linguagem formal ou informal, mais arcaica ou

mais cheia de gíria, mais típica de uma região ou de outra, de

uma categoria social ou de outra, etc. Sob outra ótica, pode ser

do tipo dissertativo, narrativo, como pode ser uma carta, uma

descrição, uma propaganda, um informativo com instruções, etc.

Outro aspecto externo aos textos é a forma como são

transmitidos. Um texto oral pode ser apresentado em diferentes

dialetos e com interpretações mais teatrais ou mais próximas de

uma fala comum. Um texto escrito tem características próprias

de organização espacial sobre o papel ou o material sobre o qual

se escreve, além das letras empregadas. Aprender a apresentar

trabalhos acabados com a sofisticação necessária também deve

ser uma preocupação da escola, desde as atividades de

Page 349: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alfabetização. Desde cedo, os alunos precisam aprender os bons

hábitos, e os professores das séries posteriores também

deveriam continuar exigindo uma boa apresentação para os

textos produzidos pelos alunos. Essa não é uma tarefa exclusiva

da alfabetização.

É muito importante que o professor peça aos seus alunos para

tomarem a iniciativa e escolherem por si o que desejam fazer, o

que acham que podem fazer, produzindo textos livres ou

espontâneos. O professor deve também apresentar textos de

tipos diferentes, compara-los,

<208>

mostrar o que caracteriza um tipo e o que o diferencia dos

demais, e incentivar seus alunos a produzirem todos os tipos de

texto.

A PRODUÇÃO DE TEXTOS NA ALFABETIZAÇÃO

MÁSSINI-CAGLIARI, 1996a. e 1997a; CAGLIARI, 1985b.

Se o professor alfabetizador deve trabalhar, sempre que

possível, com textos, os alunos também devem estar sempre

envolvidos com a problemática da linguagem, analisando-a

dentro de um contexto real de uso, ou dentro da própria

linguagem, como é o caso do estudo das relações entre letras e

sons. Isso faz com que os alunos passem da habilidade de

produzir textos orais para a habilidade de produzir textos

Page 350: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escritos; da habilidade de produzir textos no estilo da fala do

dia-a-dia para a habilidade de produzir textos segundo as

exigências escolares e culturais. Essa liberdade de usar uma

língua que o aluno já domina para estudar permite que

ele escreva sem medo de dizer o que pensa e sem medo de errar.

O que os alunos fazem produzindo textos serve, ainda, para

mostrar para o professor o que eles já sabem e o que precisam

aprender no processo de aquisição da leitura e da escrita. Desse

modo, acompanhando o desenvolvimento de cada um e da classe

nas suas necessidades gerais, o professor pode programar

melhor suas aulas e conduzir adequadamente o processo de

ensino e de aprendizagem.

Para um bom professor deve ser tão importante o que o aluno

acerta quanto o que ele erra. Se o ensino for muito dirigido, se o

aluno só fizer segundo o modelo, só trabalhar com os elementos

já dominados, o professor recebe apenas a reprodução de algo

que ele passou para os alunos. O que de fato eles pensam não

tem chance de aparecer. Os textos livres feitos espontaneamente

pelos alunos revelam o que realmente sabem e como operam

com esses conhecimentos. Analisando o que os alunos elaboram,

o professor acaba descobrindo, como os lingüistas, quais as

hipóteses que regem o comportamento lingüístico das crianças e

quais as regras que utilizaram na sua produção. O erro é mais

revelador do que o acerto. O acerto pode ser fruto do

Page 351: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

acaso, mas o erro sempre é fruto de uma reflexão, de um uso

indevido de algum conhecimento.

<209>

Dentro dessa visão da produção de textos na alfabetização,

logo se vê que os alunos farão apenas pequenos textos no

começo, com uma ou duas frases. Depois, irão tentando escrever

mais, à medida que ficarem mais fluentes na escrita.

Certamente, os primeiros textos vêm sobrecarregados de erros

de todos os tipos, O que vale é o trabalho, não o resultado em si.

Por isso, o professor não irá corrigir esses primeiros textos. Irá

simplesmente analisá-los, discuti-los com os alunos, mostrando

algumas coisas interessantes e guarda-los no dossiê de material

de cada aluno. Algumas anotações serão feitas tendo em vista a

programação de aulas futuras.

A CORREÇÃO DE TEXTOS

Depois que os alunos começarem a ficar mais hábeis e a

produzir textos mais longos e com mais facilidade, o professor

começará a exigir o planejamento textual e, sobretudo a

autocorreção. Essa autocorreção pode ser feita em duplas,

individualmente ou até mesmo coletivamente. Nem todo texto

precisa ser corrigido, alguns são feitos simplesmente para que o

aluno desenvolva mais fluência ao escrever. De modo geral, todo

texto que deverá ser lido por outra pessoa e quando for

Page 352: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

divulgado, precisará ter passado por rigorosa correção.

Feito o texto, o professor pede para os alunos corrigirem e

melhorarem tudo o que quiserem. Em seguida, discutem o texto

em duplas e chegam a uma versão definitiva. Finalmente, o texto

será revisado pelo professor. Somente então, o aluno o passa a

limpo, produzindo o texto definitivo.

O professor precisa ensinar aos alunos como fazer a

autocorreção. Problemas de coesão, coerência ou uso de

determinadas estruturas sintáticas precisam ser tratados

diretamente com o professor. Na alfabetização, o mais

importante é cuidar da ortografia.

O professor precisa ensinar os alunos a terem dúvidas, a

desconfiar se algo está certo ou errado. Aprender a ter dúvidas

ortográficas é tão importante quanto aprender a escrever, O

aluno deve saber, a partir de uma análise pessoal de seus

conhecimentos, se, ao escrever uma palavra, todas as letras

estão corretas ou não.

<210>

Um aluno pode não apresentar nenhuma dúvida ortográfica ao

escrever a palavra PATO. Ele a escreve e vai adiante. A próxima

palavra pode ser GIRAFA. Aqui, se não tiver certeza absoluta de

que GIRAFA se escreve com G, ele precisará olhar no dicionário

ou perguntar a quem sabe. Depois, poderá escrever a palavra

GENTE e não ter dúvida ortográfica, embora o caso seja

Page 353: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

semelhante ao da GIRAFA. O professor deveria reservar algumas

aulas, de vez em quando, para ensinar os alunos o que pode

suscitar uma dúvida ortográfica e o que não. Não adianta pedir

para os alunos fazerem autocorreção, se eles não souberem o

que corrigir.

Do ponto de vista do aluno, não existe professor mais

desagradável do que aquele que não sabe ler o texto de um

aluno, principalmente quando o texto apresenta dificuldades.

Não basta o professor dizer que o texto está ruim. É preciso

fazer uma análise e mostrar por que está ruim e, especialmente,

o que fazer para que o texto fique bom. Alguns professores lêem

os textos de seus alunos (ou simplesmente o que os alunos

escrevem em ditados, cópias, etc.), como se a escrita fosse uma

transcrição fonética da fala. Essa é uma forma desrespeitosa de

tratar o trabalho da criança. O professor não faz isso com os

textos dos livros. O professor pode escrever TIA e falar "tchia",

pode escrever BALDE e falar "baudji", mas se o aluno pensa que

se escreve PRANTA, o professor não lê "planta", achando que a

única forma possível de leitura, nesse caso, é "pranta".

Quando erra na grafia, o aluno não está querendo escrever

conforme a sua própria pronúncia. Isso acontece porque ele

ainda não domina o sistema de escrita e, sobretudo, a ortografia

das palavras. O professor pode perfeitamente ler um texto de um

aluno em que aparecem muitos erros, em conformidade com a

Page 354: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

norma culta. Ao fazer isso, nota-se quase sempre que os textos

espontâneos são muito mais interessantes do que parecem,

muitas vezes, a alguns professores.

Resultado semelhante surge quando o professor pede para o

aluno ler o que escreveu, e ele faz uma leitura fluente. O texto,

então, torna-se outro, mais interessante. Um professor jamais

pode dizer para o aluno que ele leu errado, porque escreveu uma

coisa e leu outra. Afinal, a escrita existe para representar a fala e

usamos um sistema ortográfico para neutralizar a variação

dialetal. O que o aluno escreveu representa a sua fala e, se leu

daquele jeito, é porque ele quer que seja lido daquele jeito. Seus

erros são de ortografia e não de transcrição

<211>

fonética. Se quisermos que o aluno respeite o que ensinamos,

precisamos respeitar o que o aluno sabe, o que aprende e,

sobretudo, seu esforço para melhorar.

Um bom professor também está atento ao que acontece com

seus alunos nas diferentes atividades que eles realizam,

observando o que os ajuda e o que os atrapalha. Por exemplo, é

muito evidente que os alunos que fazem um desenho antes (ou

colam uma ilustração) e depois escrevem um texto são mais

inclinados a produzir textos menos interessantes, em que

predominam descrições de personagens e ações, resultando

quase sempre num conjunto de frases soltas. O ideal é pedir

Page 355: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

para o aluno fazer o texto e depois ilustrá-lo. Nesse caso, há

menos problemas de coesão, e os textos são em geral mais bem

estruturados e desenvolvidos. Alguns alunos gostam de

sugestões, outros não. Alguns temas trazem mais motivação

para os alunos, outros menos ou, até mesmo, são do desagrado

de certas crianças. É necessário habilidade para lidar com cada

caso.

TEXTOS SIGNIFICATIVOS PARA OS ALUNOS

A prática de produção de textos, que é uma das atividades

mais importantes das aulas de português, não deve restringir-se

ao trabalho do aluno, unicamente porque o professor assim

ordenou, sob pena de baixar a nota.

Na alfabetização, a prática da produção de textos tem como

objetivo ensinar os alunos a passar seus conhecimentos sobre a

linguagem oral para a forma escrita. Numa segunda etapa, se

cuidará para que o aluno aprenda a produzir textos de todos os

tipos, conforme as exigências culturais e escolares.

Há ainda outro aspecto importante. Ninguém fala para si

próprio e, por razão semelhante, ninguém escreve apenas para

si. A fala e a escrita precisam de interlocutores ou de leitores. É

lamentável o que fazem alguns professores que passam

redações simplesmente para ocupar o tempo de seus alunos ou

dar notas. O aluno acaba tendo como interlocutor apenas o

Page 356: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

professor, que corrige o que ele faz, ou apenas a nota que

recebe.

<212>

Desde a alfabetização, o professor deve desenvolver

atividades de produção de textos dentro de um contexto no qual

o aluno tenha um interlocutor e um leitor,real para o que produz,

além do professor que corrige. No início da alfabetização, os

alunos irão compor textos com o objetivo de aprender a

escrever. Esses textos são mais um pretexto para a escrita do

que uma produção para ser lida pelos outros. Muitas vezes, os

alunos irão escrever anotações em sala de aula. Esses textos são

pessoais e não precisam interessar a outras pessoas.

As atividades de produção de texto propriamente ditas devem

ser feitas sempre com possíveis leitores em mente. Isso se

consegue redigindo textos para finalidades específicas. Desde a

alfabetização, os alunos podem fazer textos que irão ser

reunidos num livrinho de histórias, de poesias, de pesquisas da

classe, etc. A redação de cada aluno irá seguir instruções no que

se refere aos aspectos externos do texto. Os alunos sabem que

esses livrinhos vão ser reproduzidos em xérox, por exemplo, e

cada qual terá um exemplar para poder mostrar em casa aos

pais, parentes e amigos. Antes disso, os colegas da classe já

terão lido os textos. Nesse tipo de atividade, já aparecem alguns

leitores em potencial, além do professor. Isso dá uma nova

Page 357: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

dimensão ao trabalho do aluno. Ele passa a se interessar mais

pela atividade e se esforça cada vez mais para apresentar um

bom trabalho. Os trabalhos que não forem aproveitados para

formar o livrinho da classe serão usados para formar livrinhos

individuais de cada aluno, no final de cada semestre.

Além dos livrinhos, os alunos podem fazer textos para um

jornal da classe. Alguns professores gostam mesmo que ele seja

semelhante a um jornal de verdade que se compra em bancas de

revista. Pega-se uma folha de papel grande e divide-se o espaço

em partes, como nos jornais comuns. Cada espaço será

reservado para um tipo de texto e de ilustração. Cada aluno ou

grupo de alunos ficará encarregado de um espaço. Completada a

tarefa, cola-se cada trabalho no respectivo espaço e tem-se uma

folha de jornal. Os assuntos podem ser notícias internacionais,

do país, da cidade, da escola, bem como esportes, moda,

ocorrências policiais, cultura, televisão, fofocas, etc.

Os alunos podem fazer também revistas à moda dos jornais,

imitando algum modelo. Podem ser revistas em quadrinhos,

propaganda para televisão, noticiários que

<213>

depois serão lidos em aula, etc. Uma outra idéia é escrever

pequenas peças de teatro para serem encenadas ou quadros do

tipo que se vê na televisão. Podem fazer documentários que

serão apresentados ou até mesmo pequenas novelas.

Page 358: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Concluindo, a escola deve imitar a vida, e o professor lança mão

de inúmeras manifestações que requerem a produção de textos,

as quais propiciam uma prática mais significativa e interessante

para os alunos.

Certa ocasião, fui a uma escola que não sabia o que ensinar

aos alunos nas aulas de Problemas Brasileiros de segunda série.

Sugeri, como atividade, que os alunos fizessem pesquisas sobre

determinados assuntos e escrevessem um livrinho com suas

anotações, O tema escolhido, então, foi o trânsito. Cada aluno

entrevistou motoristas e pessoas para saber o que elas achavam

do trânsito, o que havia de ruim, o que podia ser melhorado. Eles

próprios deram sua opinião. De repente, todos passaram a se

interessar pela atividade até a conclusão do livrinho.

Atividades de produção de texto podem estar ligadas a muitas

matérias e a uma infinidade de conteúdos, não só na

alfabetização. Se os alunos de matemática, em vez de ficarem só

fazendo problemas de matemática, pesquisassem, por exemplo,

a história da matemática e elaborassem livrinhos relatando suas

descobertas, a matéria passaria a ter um gosto especial para

muitos alunos, e o ensino se tornaria muito mais fácil e eficiente.

Há professores que desenvolvem um belo trabalho de

produção de poesias ou de letras de músicas com seus alunos. O

que não se pode fazer na escola é simplesmente mandar o aluno

fazer uma redação. Essa atividade precisa ser feita dentro de um

Page 359: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

outro contexto, que não seja apenas o de ganhar uma nota.

A CARTILHA E A PRODUÇÃO DE TEXTOS

O método das cartilhas, em geral, não propõe a produção de

textos, menos ainda textos espontâneos e livres. Os alunos só

escrevem frases, empregando as palavras já dominadas,

juntando-as do jeito que acharem melhor. A própria cartilha dá

exemplos de textos assim.

<214>

Além disso, o método das cartilhas gosta muito de controlar

tudo o que os alunos produzem, fazendo com que todos os

alunos façam suas tarefas do mesmo modo, seguindo o mesmo

caminho.

De acordo com o método das cartilhas, alguns professores

usam uma estratégia indesejável para induzir os alunos a

produzir o que eles chamam de "texto". Para tanto, dão roteiros.

Após a indicação do título, vem uma série de perguntas a que o

aluno deverá responder: o quê, quem, quando, onde, como, por

quê, não se esquecendo de que o texto deve ter começo, meio e

um fim com uma lição de moral para qualquer tipo de história...

As respostas a esse esquema produzem o texto esperado.

Quando falam, as crianças não precisam desses esquemas ou

roteiros. Não precisam se preocupar com começo, meio e fim. O

texto sai espontaneamente, de acordo com as idéias que têm na

Page 360: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

cabeça. Quando elas forem escrever seus textos, devem agir do

mesmo modo. A marca da individualidade faz de um simples

texto um trabalho original, e se seu estilo agradar a uma

comunidade, torna-se um texto literário.

Se a escola insiste em fazer com que os alunos escrevam,

guiando-se por esquemas como os mencionados acima, eles

acabarão produzindo textos estereotipados, que serão

severamente criticados, depois, nas séries mais adiantadas, pela

própria escola. Aqui, como em outras ocasiões, a escola ensina

os alunos a fazerem suas tarefas de um jeito e, depois, cobra

deles justamente o contrário. O método das cartilhas quer que os

alunos escrevam textos seguindo uma forma inadequada e

depois a escola vai exigir que eles escrevam bem, com

criatividade e arte.

Outra forma de uso de uma camisa-de-força para a produção

de textos são os exercícios com lacunas para completar. Alguns

livros antigos faziam esse tipo de exercício, de tal modo que

numa lição o aluno completava as frases com nomes

(substantivos), noutra com adjetivos, noutra com verbos e assim

por diante.

Tais exercícios podem ser feitos esporadicamente. O

professor, no entanto, cuidará para que os alunos não pensem

que eles estão produzindo textos, mas que estão apenas fazendo

os exercícios de busca de palavras apropriadas para certos

Page 361: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

contextos. A atividade de produção de textos Será feita de outra

maneira e não se confundirá com isso.

<215>

Outra atividade que não pode ser confundida com a produção

de textos é a formação de frases a partir de uma palavra dada.

Por exemplo, o professor escreve no quadro-negro uma lista de

palavras: pedreira, água, alto, mexer — e os alunos deverão

formar frases usando essas palavras. No final, terão cinco frases.

O professor deverá estar atento para distinguir esse tipo de

trabalho — que serve apenas para mostrar aos alunos que se

podem inventar inúmeras frases a partir de uma mesma palavra

— da produção d textos.

Essas atividades sem a produção concomitante de textos

espontâneos (e distinguindo-se uma coisa de outra) podem

induzir o aluno a uma dependência nefasta dos famosos

esquemas de produção de frases, destruindo sua criatividade e

inibindo sua capacidade de produção de textos, alcançada

juntamente com a aquisição da linguagem oral quando ainda era

bem pequeno.

Tenho diante de mim o livro da 2ª série, de Antônio Pedro

Wolff, intitulado Composições escolares, 7ª ed., 1950. Esse livro

traz as atividades com que o professor ensinava a prestar

atenção à elaboração de frases e textos, seguindo o velho

esquema de responder a perguntas. Para se ter uma idéia mais

Page 362: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

completa, seguem os títulos dos capítulos:

— completar sentenças. — Descrição de objetos por meio de

— Formação de sentenças interrogativas, perguntas.

— Formação de sentenças exclamativas. — Descrição de

animais por meio de

— Responder a perguntas. perguntas.

— Responder a questionários referentes a — Descrição de

gravuras com assuntos de outras disciplinas. questionário.

— Reprodução de contos com — Descrição de gravuras sem

questiona questionários. — Redação de envelopes.

— Reprodução de contos sem questionário. — Redação de

cartões de visita.

— Passar quadrinhos para prosa. — Redação de bilhetes.

Esse programa mostra como os alunos aprendiam a redigir

antigamente. O objetivo de trazê-lo aqui não foi matar as

saudades. Ainda hoje se ouve com freqüência professores

dizerem que antigamente as pessoas aprendiam muito bem com

as cartilhas. Essa argumentação leva em conta apenas os alunos

que aprenderam, esquecendo-se dos que não aprenderam,

aprenderam mal e tiveram de interromper os estudos. Esse tipo

de argumento saudosista é uma forma de justificar o mal do

presente com uma utopia do passado.

Page 363: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<216>

Outra prática consiste em pedir para os alunos escreverem

uma história depois de ouvirem um texto várias vezes. Contar

com as próprias palavras uma história que o professor leu para a

classe ou que eles leram em algum livro às vezes ajuda a

escrever com mais tranqüilidade, com a segurança de que será

um bom trabalho. A verdade não é bem essa, mas a expectativa

dos alunos de que assim farão um bom trabalho ajuda, em geral,

a conseguir melhores resultados.

O excesso dessas atividades, porém, pode criar preguiça

intelectual e favorecer a idéia de que se pode fazer um texto

desde que haja um modelo prévio. Esse tipo de atividade

facilmente descamba na idéia de que a produção do aluno

depende de um modelo, como ensina o método das cartilhas. E

isso, como já vimos, é desastroso.

A OPÇÃO PELOS TEXTOS ESPONTÂNEOS

Recentemente, muitos professores acabaram se convencendo,

pelas evidências encontradas no próprio trabalho, de que vale a

pena fazer com que os alunos produzam textos espontâneos

variados. Surpreenderam-se com os resultados. Pensavam que

seus alunos, por serem pobres e oriundos de famílias

problemáticas e carentes, não seriam capazes de escrever belas

Page 364: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

históri as, como os alunos bem-nutridos e bem-vestidos das

ricas escolas particulares.

Entretanto, certos professores têm medo de entrar nesse mundo

porque o acham muito caótico, uma vez que sempre trabalharam

sob rígido controle das atividades produzidas pelos alunos, para

que eles não errassem e, conseqüentemente, não fixassem o

erro. Com muito bom senso e um pouco de coragem, talvez

começando como atividade paralela às demais atividades

tradicionais, o professor pode propor a redação de textos

espontâneos a título de experiência para checar os resultados.

É preciso tomar certos cuidados, nesses casos, já que os

alunos, acostumados a trabalhar sob um rígido controle por

parte do professor e do método, sentem-se inibidos, no início, a

fazer, por exemplo, textos espontâneos. Lamentam, dizendo que

assim não dá para fazer

<247>

nada (e com razão, pelo que aprenderam até então). O

professor deve conversar sobre esse tipo de atividade, mostrar

suas vantagens e deixar que os alunos encontrem aos poucos um

novo caminho para produzir seus textos. O tempo como sempre

é um fator importante, e o professor não deve desanimar com as

dificuldades iniciais.

Um outro tipo de comentário comum, quando se discutem

questões como a produção de textos espontâneos, encontra-se

Page 365: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

na seguinte afirmação: "Eu sempre fiz assim e não deu certo...

não é bem assim... os bons alunos aprendem de qualquer jeito e

os maus alunos não aprendem nunca". Em primeiro lugar,

gostaria de dizer a esses professores que é muito estranho o

comportamento relatado: se eles chegavam sempre à conclusão

de que não adiantava ensinar desse modo, porque repetiam

sempre as mesmas estratégias? Em segundo lugar, se algum

aluno não aprendia, por que o professor não foi estudar as

razões mais profundas e verdadeiras do fracasso? Em terceiro

lugar, tenho sérias dúvidas com relação à afirmação de que eles

"faziam sempre assim", querendo dizer que, de fato, não

seguiam o método do bá-bé-bi-bó-bu e sempre trabalharam com

a produção de textos, tal qual sugerida por nós.

Um comentário diferente, mas que ainda demonstra certa

relutância em levar para a prática escolar da alfabetização a

produção de textos espontâneos, vem daquele professor que

declara que pediu para seus alunos produzirem textos

espontâneos e eles escreveram textos à moda das cartilhas, com

todos os problemas que já tinham antes, usando o método das

cartilhas. Em outras palavras, o professor quer dizer que, mesmo

deixando seus alunos produzirem textos espontâneos, eles

acabam reproduzindo os erros e tendo dificuldades semelhantes

às que ele encontra com aqueles alunos com os quais não

costuma aplicar esse tipo de atividade. Portanto, tanto faz agir

Page 366: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de um jeito ou de outro.

Na verdade, não é bem assim. A produção de textos

espontâneos variados aparece aqui dentro de um contexto, no

qual os alunos são alfabetizados sem o método do bá-bé-bi-bó-

bu. E isso faz muita diferença. Um aluno que produz textos

espontâneos dentro do contexto de ensino das cartilhas não

escapará dos malefícios do ba- bé-bi-bó-bu, pelo menos em

parte e em certas ocasiões.

O fato de redigir textos espontâneos é uma janela para um

mundo novo, mas o acesso a ele ainda depende de cortar certas

amarras. Se o professor analisar o

<218>

que seus alunos fazem seguindo as instruções dos exercícios

estruturais, dos ditados, e comparar com o que fazem nos textos

espontâneos vai começar também a ver as diferenças entre

esses dois tipos de abordagem do ensino da escrita. A grande

incidência de erros nos textos espontâneos mostra mais

claramente como o aluno pensa, como faz para escrever, que

tipo de solução dá para suas dúvidas. Conseqüentemente,

permite ao professor conhecer melhor seus alunos e ensinar o

que for preciso de maneira objetiva.

Por outro lado, certos erros vão evidenciar que, apesar de o

aluno acertar tudo no ditado, ele erra ao escrever

espontaneamente, o que denuncia que o ditado não é uma boa

Page 367: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

forma de avaliação (e pior ainda de ensino), O professor pode

constatar que o aluno levou para o texto espontâneo frases ou

expressões estereotipadas, que aprendeu na cartilha. Começou

escrevendo um texto interessante e foi até certo ponto. Depois,

escreveu frases soltas para completar o texto. Como se vê, uma

simples abertura no método das cartilhas já é muito interessante

para fazer uma crítica dessa prática educativa e possibilitar uma

melhor compreensão do processo de aprendizagem do aluno, de

como ele está construindo os conhecimentos a respeito da

escrita, da leitura e da fala.

Para ilustrar os comentários expostos acima, será

apresentada, a seguir, uma série de textos dos mais variados

tipos e origens. Será feito um comentário geral sobre cada texto

e, depois, os erros serão analisados, em busca de uma

explicação. Haverá também sugestões de como ensinar o aluno a

melhorar, errando cada vez menos no futuro, até dominar a

produção de textos escritos.

EXEMPLOS DE TEXTOS DE

CARTILHAS E OUTROS

As cartilhas antigas em geral dispunham abaixo da lição das

letras algumas frases para serem lidas, estudadas e copiadas.

Essas frases não pretendiam formar um texto, eram apenas

Page 368: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

exemplos para leitura, cópia e ditado. Os textos vinham ao final

da cartilha, quando o aluno já sabia ler e podia fazê-lo sem se

apegar apenas às palavras já dominadas de cada lição (todas de

uma só vez).

<219>

Vejamos o que acompanha o estudo de uma letra e um texto da

Cartilha do povo: para ensinar a ler rapidamente, de Manuel B.

Lourenço Filho.

LOURENÇO FILHO, 1951.

33ª lição — A zebra

1. O rapaz estudou a lição do exame.

2. Devemos seguir os bons exemplos.

3. O besouro zumbe; o sapo coaxa; o burro zurra.

4. Ponha o vidro de xarope debaixo da luz.

5. Tio Xerxes comprou uma caixa de charutos.

6. Zezé não zela de suas coisas.

A-le-xan-dre A-ta-xer-xes Zu-lei-ca

Nota-se que o autor está preocupado não só com as relações

entre letras e sons, mas também com as relações entre sons e

letras, ou seja, não só com a leitura que as letras têm, mas com

o trabalho que a criança tem de passar da fala para a escrita. Por

Page 369: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

isso, aparecem exemplos de palavras com a letra Z e exemplos

em que há o som de "zê", porém, escritos com outras letras,

como o X e o S.

Não há excesso de palavras que têm o mesmo som, como em

outras cartilhas, em que se encontram exemplos como "Ivo viu a

uva". Para o autor, uma ou duas ocorrências de um fato sob

estudo numa frase bastam.

Da lição 37 em diante, aparecem cinco textos no final da

cartilha: "Já sei ler", "A galinha esperta" (fábula), "A nossa

bandeira", "Minha Terra" (com os nomes dos estados) e a letra

do Hino Nacional. O primeiro texto é este:

1. Já sei ler!

2. Já sei ler nos livros, nas cartas e nos jornais.

3. Que bom! Posso agora aprender lindas histórias.

4. Posso conhecer minha terra, o meu querido Brasil lendo

histórias de viagens.

5. Posso saber o que outros homens fizeram e pensaram há

muito tempo.

6. Posso escrever cartas aos meus amigos e parentes.

7. Como é bom saber ler!

8. Todos os brasileiros precisam saber ler.

9. O brasileiro que não sabe ler não é bom brasileiro.

10. Devemos ensinar a ler aos que não sabem.

Page 370: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Como é bom saber ler!

O grande problema desses textos dados como exemplos nas

cartilhas é que o aluno acaba concluindo que é desse modo que

se produz um bom texto.

<220>

Nota-se que o autor escreveu algumas frases a res peito de

um assunto, mas não redigiu um texto. Até mesmo a disposição

das frases, com números e paragrafação, denota isso. Como o

texto vem ao final da cartilha, o autor tomou a liberdade de

escrever sem se preocupar com o ensino de determinada letra,

nem com as noções já dominadas, uma vez que ele supõe que o

aluno, nessa altura, seja capaz de ler qualquer coisa. Apesar

disso, achou conveniente, por bom senso, escrever um texto

"fácil". Na verdade, nada prova que esse tipo de texto seja "mais

fácil" do que uma poesia do livro Ou isso ou aquilo, de Cecília

Meireles. Como falantes nativos de uma língua, os alunos são

capazes de enfrentar uma variedade enorme de textos. A

restrição com relação à escrita reside apenas nos casos em que

os alunos não sabem decifrar determinadas letras ou conjuntos

de letras, dificultando ou impossibilitando a leitura. Depois que

eles decifraram a escrita, o texto pode ser qualquer um desde

que a criança tenha condições de entender. Ou se tem um texto

incompreensível para a criança (como um texto científico

Page 371: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

especializado) ou se tem um texto que elas podem entender

(como qualquer texto destinado às crianças). Não é possível,

cientificamente falando, dizer se o texto da cartilha, apresentado

acima, é mais fácil ou mais difícil do que o poema de Cecília

Meireles citado a seguir:

O Menino azul

O menino quer um [burrinho] para passear. Um burrinho manso,

que não corra nem pule, mas que saiba conversar.

O menino quer um [burrinho]

que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores

— de tudo o que aparecer.

O menino quer um [burrinho]

que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos

e com barquinhos no mar.

E os dois irão pelo mundo

que é como um jardim

apenas mais largoe talvez mais comprido e que não tenha fim.

(Quem souber de um [ burrinho desses, pode escrever para a

Rua das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não

[sabe ler.)

Intencionalmente, a poetisa faz versos de poucas palavras

para facilitar a leitura e, assim, não precisou escrever números

Page 372: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

antes das frases. Esse poema é um

<221>

dos que não se prendem, de maneira típica, ao ensino de

determinada letra ou som, como ocorre com outros poemas do

livro. Por exemplo, o poema a seguir salienta o uso da letra C

com o som de "kê":

Colar de Carolina

Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da

colina.

O calor de Carolina cobre o colo de cal, torna corada a menina. E

o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral

nas colunas da colina.

O poema de Cecília Meireles assemelha-se à idéia das cartilhas

de ficar repetindo um determinado som ou letra, mas sua arte

acaba produzindo um texto bem-acabado e sugestivo, bem

diferente dos exemplos da cartilha, como se pode ver,

comparando o texto anterior com este outro:

< BRAZ 1967, p. 10.

A casa é de Lalá.

É uma casa bonita.

A casa tem copa.

Page 373: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A copa tem caco.

O texto acima é típico das cartilhas modernas: o autor escreve

frases soltas, utilizando-se apenas de palavras já estudadas ou

formadas com sílabas geradoras já dominadas. É óbvio que o

autor da cartilha sabe que seu objetivo é apenas ensinar o aluno

a usar os conhecimentos já estudados para ler e escrever e,

como o método está organizado de modo hierárquico,

rigorosamente estabelecido e controlado na sua progressão, o

autor intui que fazendo textos apenas juntando sílabas

geradoras para formar palavras, e juntando palavras para formar

frases, acabará tendo uma "espécie" de texto ao escrever

algumas frases.

Diante desse material apresentado pelas cartilhas e ouvindo o

professor propor atividades de escrita com essa história, ou esse

conjunto de frases, o aluno passa a entender que, para as

finalidades da escola, é assim que se faz um texto. E assim

continuará fazendo, até que encontre um professor que chame

sua atenção, dizendo que ele não pode escrever desse modo ou

simplesmente

<222>

dando-lhe uma nota baixa. Como se vê, é desastroso apresentar

esse tipo de material aos alunos, justamente quando eles estão

querendo saber como a escola lida com a linguagem oral e

escrita. Atividades iguais a essa significam a transmissão de uma

Page 374: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

concepção errônea do que seja um texto e até mesmo do que

seja a linguagem oral e escrita. Como o método obriga o aluno a

não sair do esquema e a repetir o modelo, ele acaba entendendo

que, além de se alfabetizar, precisa produzir textos como os da

cartilha e lidar com a linguagem à semelhança dos exercícios a

que está habituado a fazer dentro da escola.

Para poder comparar os textos dos alunos com os textos das

cartilhas, começaremos apresentando alguns outros textos

típicos, produzidos dentro do método do bá-bé-bi-bó-bu,

extraídos da cartilha Coração infantil. cartilha de alfabetização

rápida, de Vicente Peixoto.

(Passamos a numerar os textos para facilitar os comentários.)

PEIXOTO, 1950,p. 8. >

Texto 1 — 1ª Lição

1. O boi bebe.

2. O boi baba.

3. O boi bebe e baba.

4. O boi bebeu e babou.

PEIXOTO, 1950,p. 14. >

Texto 2 — 4ª Lição

1. O boi de Fábio fugiu.

2. Fábio foi cedo à cidade.

Page 375: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

3. A geada "caiu" cedo.

4. Fábio fugiu da geada.

PEIXOTO, 1950, p. 30. >

Texto 3 — 1ºª Lição

1. O sapo pula na rua.

2. A rua é de subida.

3. O sapo sobe a rua.

4. Romeu ri do sapo.

PEIXOTO, 1950, p. 46. >

Texto 4— 4ª Lição da Segunda Parte

1. Oh! que bonita blusa!

2. É a blusa de Carlos.

3. A blusa de Carlos não é de brim.

4. A blusa de Carlos é de seda.

5. É de seda branca.

6. Como cai bem no ombro!

7. Que bom alfaiate é o pai de Joel!

PEIXOTO, 1950, p. 70. >

Texto 5— 14ª Lição da Segunda Parte (última lição)

1. Os exames estão próximos.

2. Xerxes estuda dia e noite.

<223>

Page 376: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

3. Ele fixa a atenção nas lições.

4. Por isso explica bem o que estuda.

5. No último exame fez provas exatas.

Não adianta alguém dizer que o autor não queria fazer textos,

apenas frases para treinar os alunos. Quando se analisam esses

textos, percebe-se logo que o autor quis, na verdade, escrever

frases, mas procurou uma ligação semântica entre elas,

discorrendo sobre um certo tema e, por isso, o aluno acaba

entendendo que se trata de um texto, e não simplesmente de

frases soltas. Esse é um mau exemplo que o livro didático dá ao

aluno. Se as frases fossem totalmente desligadas

semanticamente, seria mais inofensivo.

No texto 4, o autor usa uma informação dada anteriormente —

de que o pai de Joel é alfaiate — para tirar a conclusão do texto.

Para quem lê esse texto sem ter lido os anteriores, a frase 7,

QUE BOM ALFAIATE E O PAI DE JOEL!, é interpretada como algo

que não faz sentido no texto, uma vez que se falava da blusa e

acabou-se tirando uma conclusão a respeito do pai de joel. Aqui,

como no método do bá-bé-bi-bó-bu, só se trabalha com coisas já

vistas e já dominadas, mesmo que de maneira desconexa (falta

de coerência). O autor pressupõe que o aluno esteja a todo

instante remetendo suas idéias a tudo o que já foi visto antes.

Esse conjunto de informações das coisas já vistas é, na verdade,

Page 377: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

um contexto lingüístico que cresce à medida que o estudo

progride, e com referência ao qual tudo é construído, devendo

todo significado ser entendido a partir desse quadro semântico e

discursivo compartilhado pelo livro e pelos alunos. Quem lê o

texto sem saber dessas informações, fica surpreso com a falta de

coerência entre as idéias.

Alguns autores têm uma preocupação excessiva em usar a

linguagem escrita de maneira lógica, do ponto de vista

semântico. É por essa razão que o autor usa aspas na palavra

CAIU, no texto 2, uma vez que a geada não cai, por exemplo,

como a neve, mas se forma com a umidade. Entretanto, a

linguagem é freqüentemente usada de maneira metafórica, e não

lógica (veja, por exemplo, a expressão "pé de mesa"). Dentro

das preocupações subjacentes do autor, ele também deveria

colocar entre aspas a expressão FUGIR DA GEADA, logo abaixo,

porque ninguém, logicamente, foge de geada. Esse texto tem,

ainda, outro problema de lógica: se Fá bio foi cedo à cidade, e se

a geada caiu cedo, como foi possível Fábio fugir da geada? No

texto 4, frase 6, o

<224>

autor usa o verbo cair na expressão "cai bem", sem colocar

aspas. Por que num caso foi preciso o uso das aspas e no outro

não?

Finalmente, lendo esses textos, percebe-se logo o mau gosto

Page 378: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

literário, a falta de originalidade, a chatice com que é tratado

qualquer tema, e a falta de imaginação para lidar com as

palavras. São textos sem graça, insípidos e, até certo ponto,

idiotas, quando apresentados por um livro didático ou por um

professor, de quem o aluno esperaria coisa bem melhor.

TEXTOS ESPONTÂNEOS

DE CRIANÇAS

Quando as crianças se põem a redigir textos espontâneos,

mesmo que não saibam quase nada sobre o funcionamento do

sistema da escrita, e, menos ainda, a respeito da ortografia das

palavras, nota-se que escrevem com uma grafia muito

idiossincrática (individual). Apesar disso, os textos têm um certo

sabor interessante e, do ponto de vista do valor, são no mínimo

razoáveis. Compare os textos da cartilha com alguns textos

espontâneos produzidos por alunos de primeira série,

apresentados a seguir.

Texto 6—Alvaro L. E

estálio = história.

Estálio umdia Eu fui nacazada minha Vovó.

Os meus dio nadaro debecireta.

Eu imeoto dio su Bimo eicima da arvore

Page 379: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Texto 7—José Roberto

(a) Eu fui no cinema

Oca chorro mimodeu a celina

Eu edeucaeixada no caxorro

Eu viu aminina no são

(b) O coelho e do juão

brite = presente da. o rerudo = orelhudo.

O coelho resebeu o brite na abelha

O coelho é o rerudo

O coelho foe no boque

O coelho é bonida

(c) O cavalo coremotobe

O cavalo moreo

O cavalo coria

O cavalo e tavacofomi

<225>

Os textos 6 e 7 são de alunos de uma professora que

costumava alfabetizar pela cartilha e nunca tinha pedido para

seus alunos tentarem escrever uma história. Depois de uma

discussão sobre o assunto, ela resolveu experimentar. O

resultado foi surpreendente: embora escrevendo com

dificuldade, as crianças fizeram textos e não frases

Page 380: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

desconectadas. Esse resultado abriu os olhos da professora para

esse tipo de abordagem de ensino e, daí para a frente, ela não

parou mais de trabalhar com textos espontâneos. No final do

ano, seus alunos não só estavam escrevendo com facilidade, mas

passaram a se interessar muito por leitura, o que veio a ajudar

no domínio das formas ortográficas na escrita.

Texto 8 — Ronaldo

Oleão andando comumta presa derepete eli caiu numa almadilia

e pasou dois coelio naalmadilia e falaro asin nãovamo s sauva o

leao pogue sinos sauvavoce, coando voce tivé a aiinsima voce vai

comenois

O texto 8 é de um aluno que tinha sido reprovado duas vezes na

1ª série. Segundo a professora, ele confundia todas as coisas,

não fazendo direito as lições da cartilha. Apesar do esforço da

professora, ele não dominava o que era ensinado. Em outras

palavras, segundo a expectativa da escola, ele não escrevia de

acordo com a ortografia das palavras. Quando a professora

passava um trabalho de cópia ou de produção de frases (minhas

primeiras frases), o aluno escrevia páginas, no tempo em que os

demais apenas completavam a lição. Quando a professora

começou a passar textos espontâneos, percebeu que o aluno era

pior ainda, inventando um modo estranho de grafar as palavras,

Page 381: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

embora escrevesse histórias interessantes.

Foi aí que a professora percebeu que o problema do aluno, a

causa de sua reprovação na 1ª série (numa época antes do GB)

era o fato de ele não saber como lidar com a ortografia.

Seguindo a cartilha, a professora supunha que o aluno tinha um

caminho seguro para escrever corretamente as palavras.

Todavia, este aluno não seguia as regras da cartilha de fazer

somente o já dominado, seguindo o modelo. Ele queria

<226>

escrever com liberdade e não entendia por que nunca dava

certo.

Com a produção dos textos espontâneos, professora e aluno

puderam perceber claramente que era preciso ensinar como lidar

com a ortografia, ou seja, que a ortografia não vinha

automaticamente com as lições já dominadas da cartilha, nem

podia ser obtida com a simples observação da fala para escrever.

Ortografia não era questão de sorte, como uma loteria. Era

preciso tomar consciência de que todas as palavras têm apenas

uma forma de escrita, e que essa forma deve ser usada por

todos. Quem não souber ou tiver dúvidas precisa perguntar a

quem sabe ou olhar no dicionário.

Texto 9— Elizângela

Era uma vez uma bela adormecida tava ormindo na calçada é o

Page 382: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

princepe chegou e deu um beijo na boca e ela acordou.

Texto 10— Gislaine

(a) Era uma vez um macaco caiu no lago e gritou para a macaca

socorro macaca meu amor, a macaca escutou e foi la na onde ele

caiu e falou: meu querido voce esta vendo voce voi fica de molho

na basia até tirar estê fedo teu

(b) O menino que chama carlos ele estava na rua ele tava

bricando de bola ai apareu a menina que ele queria

(c) Era uma vez a galinha estava na Rua e falou para o galo oi

qui vida margurada o galo falou é memo eu já to velho e voce ta

nova, esta noiva.

(d) Era uma vez minha professora tia é boa e ela chega atrasada

e a jente escomde im baixo da cartera e o menino fala que a

gente não feio

Texto 11 — Edilson

Era num dia Lulú esta bricano comdo 2 minino desconensido

aparesero (desenho) chamaro o Lulú e levou o Lulú para longe.

Lulú des confiou que Ele érão trãobadinha aí Lulú dis cubriu que

estava virano trãobadinha.

<227>

Ai condo deu um dia Eles alsaltaro banco deu no radio

mamãe e papai (desenho) ficarão sabeno que Lulú estava preso

Page 383: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

mamãe e papai ficarão triste.

Epa a policea vemvino.

duca o trãobadinha vemos elboraduca o chefe falou vemos afalta

um banco vemos

foram alsantar

Entrarão no banco pegemo grana e ia saino na porte e a bulicia

parou e viu a grana

E predemo o duca e Lulú e dodu.

Texto 12— Dirceu L.

Eu gosto de niais Dedeus e domeu Papai e da minha mãe e

doquisto e da nosasinhora e de santo daminhavída mamai

e de mais comer coiza de mais Ede a leguia dema daconta.

Condo eu fico alegui eu fico alegui tamen demais daconta

Texto 13— Zilda

Estória

Um dia uma mulher falava capeta. ai Ela falou tiabo Otro dia

Ela falou inferno Ela ficou falano espalavão ai Ela encrotou uma

valinha na arvores e Ela falou purque aciora está xorrado vocé

não xamou o capeta e inferno e tiabo fim

O texto 9 enquadra-se no mesmo caso dos textos 6 e 7. O

texto 10 é também de uma aluna repetente. Enquanto os colegas

Page 384: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fizeram apenas um texto, ela fez quatro.

Os textos de 11 a 13 pertencem ao mesmo caso dos

textos 6 e 7.

Texto 14 — Regiane

texto espontâeo

A casa é da macaca

A macaca é a tata.

<228>

A macaca é baoneta

A macaca pita a casa

A macaca gota de nada

A macaca gota da casa

A macaca upa a casa

Uma forte influência das cartilhas aparece no texto 14. Ao

solicitar que a aluna fizesse um texto espontâneo, o resultado foi

um amontoado de palavras, numa tentativa de compor frases

soltas. A aluna escreve sobre a casa e a macaca ao estilo dos

textos das cartilhas. Comete erros causados pelo não-domínio de

certas palavras que viu na lição da cartilha e que ainda não

conseguiu fixar. Assim, ao invés de BONITA escreve "baoneta",

GOSTA DE NADAR fica "gota de nada", PINTA E LIMPA são

escritos sem a nasal: "pita" e "lipa". Além disso, em vez de dizer

Page 385: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que A MACACA SE CHAMA TATA, escreve, a seu modo: "A macaca

é a tata".

Como se vê, mesmo com todo o esforço das cartilhas, do

professor e do aluno, produzir textos com esse método nem

sequer ajuda a não errar a grafia das palavras. Basta o aluno ter

alguma dúvida ortográfica para perceber que não sabe como

resolver a sua dúvida, arriscando, então, qualquer forma de

escrita. Como seu referencial não é a busca da forma ortográfica

através da consulta, mas o esforço para descobrir como se

escrevem as palavras apenas pensando, observando a fala, essa

aluna tem grandes chances de errar. Pior de tudo é a estrutura

do texto. Os outros alunos, pelo menos tentaram passar para a

escrita um texto que qualquer falante nativo poderia dizer

normalmente. Mas o texto 14 é algo que uma criança jamais diria

para outra, sendo apenas um jogo de palavras, produto do

método do bá-bé-bi-bó-bu.

Texto 15— Samuel

(a) A cachorra é o dono da casa.

A dona da casa e o pai e a mãe.

O menino é de bagunsa drento da casa

A menina e de rua.

O giigante gebrevu daliom. (?)

Amanha é dia pascua.

Page 386: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Vôvo foi na cidade compra um gato

A menina que um cachorro de pele.

O pelo da duensa nas criansas.

O bone e da menina.

O feio e o leão (?)

A menina e a jogadora.

O dia comeu nublado.

<229>

(b) O chapeu.

Era uma vez um chapeu que nao pode sair de casa

[porque Ele que chamar casa que Eu não poso brincar de pega-

pega

— É bom isso e brincadeira de criansa. logo apos que Eu chegar

do cerviso meu filho.

— É como Eu vou sair de casa sem minha mae assim eles viveram

feliz para sempre. fim

Altor Samuel J. M.

(c) O aniversario.

Era uma vez uma titia que ia vazer anivesario

Ninguem lebrou que hoje ia ser o anivesario da titia.

Mas a titia não estava legal por que estava com dor

[ de dente.

Então Ela foi para o médico

Chegando no medico a dor passou e foi para casa.

Page 387: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

E disse:

— Eu acho que vou dormir?

e Ela dormiu.

A titia chamou a sua visinha para fazer o bolo.

A visinha fez o bolo e a titia ficou muito contente.

quando a titia ia chamar suas visinhas a subrinha veio e

cantaram parabens.

FIM

(d) Reelaborasão da Estoria O aniversario

Era uma vez uma titia que ia fazer aniversario. Ninguem

lembrou que era o aniversario da titia. Mas a titia não estava

legal por que ela estava com dor de dente. Então ela foi ate o

medico.

Chegando aõ medico a dor passou e foi para sua casa e falou:

— "Acho que vou dormir!" E dormiu.

quando ela acordou ela foi chamar sua amiga pa ra fazer o bolo.

a amiga fez o bolo e a titia ficou muito contem te.

E a titia foi chamar suas amigas e sua sobrinha chegou e todos

cantaram parabens.

Texto 16— Graziela P S.

Um dia a mulher maravilha foi ver se tinha algum

[vigiante.

Uma menina estava chorando a mulher maravilha falou:

Page 388: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<230>

porque você está chorando? porque um ladrão pegou o meu

cachorro.

Como ele se chama Buberman eu prometo que eu vou encontra-

lo.

O esconderijo é ali.

Vou aproveitar que ele saiu. Ali está o cachorro.

Bom já estou chegando pronto menina o seu cachorro obrigada

Mulher maravilha ali está ele tenho um prano.

Agora vou lassar meu laço mágico proto já peguei.

Os textos 15 e 16 são de alunos que foram alfabetizados sem

a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu. O primeiro aluno (texto 15 —

a, b, e, d) demonstra dificuldade inicial para acertar a ortografia,

mas aos poucos foi aprendendo, chegando ao ponto de fazer

autocorreção ou reelaboração de um de seus textos (texto d), no

segundo semestre.

Apesar das dificuldades ortográficas, nota-se claramente que

o aluno já tem uma preocupação séria com a ortografia e busca

acertar. Por outro lado, sabe que as dificuldades vão ser

resolvidas na atividade de reelaboração, o que lhe dá

tranqüilidade para passar da oralidade para a escrita, de maneira

integral, o texto que produz. Convém ainda notar que os textos

de alunos que são alfabetizados dessa maneira são mais ricos

Page 389: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

em detalhes, mais semelhantes à espontaneidade com que os

falantes dizem o que querem dizer e, justamente por essas

razões, geralmente mais longos.

O texto 16 mostra como um aluno pode escrever certo (ou

quase tudo certo), sem precisar passar pelo processo de

aprendizagem das cartilhas. Em pouco tempo e beneficiado pela

leitura assídua, o aluno passa a escrever com naturalidade, sem

medo, com precisão mesmo com relação à ortografia das

palavras. Note que o aluno, nesse caso, escreve qualquer

história, qualquer palavra que deseja, porque não tem de se

preocupar com o já dominado, já estudado. Ele sabe como

buscar a informação correta em caso de dúvida. Tem consciência

de que deve resolver todas as suas dúvidas ortográficas e não

ficar simplesmente tentando acertar.

Quando os alunos aprendem a ler primeiro e a escrever como

uma decorrência disso, interessam-se muito pela leitura. Esse

interesse ajuda enormemente a resolver os problemas de

escrita. Além disso, os alunos vão aprendendo a distinguir o

estilo falado do estilo escrito.

<231>

Eles observam nos livros que às vezes apare cem construções

sintáticas ou certas palavras que eles não ouvem nas conversas

do dia-a-dia, mas que aparecem na escrita, como uma forma

sofisticada de uso da linguagem. É por isso que um aluno acaba

Page 390: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

transportando para seus textos expressões como "eu vou

encontra-lo", vide texto 16 (repare que essa aluna é daquelas

que falam "prano" em vez de "plano", como também se vê no

mesmo texto).

Outra coisa que se nota no texto 16 é o fato de a aluna não

ficar repetindo o mesmo tipo de frase nem certas palavras. Na

fala, raramente usamos um mesmo esquema de frase repetidas

vezes, a saber: "O menino foi no cinema. O menino assistiu um

belo filme. O filme era de mocinho. O mocinho matou o bandido.

O bandido roubou o banco". A elisão do sujeito da oração é outra

característica do estilo de textos escritos, mais do que orais, que

a aluna já percebeu, ao ler, e está tentando empregar na

redação. Já aparecem frases como VOU APROVEITAR QUE ELE

SAIU; BOM; JÁ ESTOU CHEGANDO; TENHO UM PRANO; AGORA

VOU LASSAR; JÁ PEGUEI.

É preciso dizer, ainda, que num enunciado como COMO ELE SE

CHAMA BUBERMAN EU PROMETO QUE EU VOU ENCONTRALO,

exceto o último "eu", os outros pronomes sujeitos são usados

para dar uma ênfase exigida pelo contexto semântico do texto.

Os pronomes ELE e EU, nesses casos, prosodicamente marcam a

sílaba tônica saliente do grupo tonal e sinalizam um foco, isto é,

um elemento semântico que precisa ser realçado.

Texto 17- Reinaldo C. Extraído de Relatos de Experiências

Page 391: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 32.

a samanta e o escube

quando eu venho pra escola

meu cachorro está souto

ele vem comigo ele fica olhando pra ela ela olha pra ele não sei

quiqui vai dar isso

Texto 18 — Wagner S. S. Extraído de Relatos de Experiências

Premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 45.

Responder: O que é melhor, ser criança ou ser adulto?)

Eu não gosto de ser criança porque a criança não trabalha para

ajudar em casa mas posso estudar na escola E.E.PG. Professora

Aurea de Godoi. O adulto não tem paciência comigo porque eu

sou arteiro e maligno.

Fim

<232>

Os textos 17 e 18 são exemplos de como uma professora

trabalha com seus alunos a produção de textos espontâneos,

indicando um tema para que cada aluno escreva o que quiser a

respeito. Como se pode observar, as dificuldades ortográficas

dos alunos são muito menores do que alguns professores

imaginam. O que choca, às vezes, não é a quantidade de erros

que as crianças cometem, mas certos tipos de erros, como

Page 392: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

analisaremos, em detalhe, mais adiante. Veja, por exemplo, no

texto 17: NAO SEI QUIQUI VAI DAR ISSO: onde foi que o aluno

descobriu uma palavra como QUIQUI em português? Essa é uma

das tantas "palavras" que se diz na linguagem oral de um jeito,

mas que se escreve de outro. As pessoas falam "eu num fui", "eu

sinto ni mim", mas têm de escrever EU NÃO FUI, EU SINTO EM

MIM, etc.

Há muitas outras palavras com as quais acontece a mesma

coisa. Quando escrevem textos espontâneos, os alfabetizandos

são peritos em descobrir essas coisas. Um professor esperto

aproveita a oportunidade e faz uma discussão com seus alunos,

organizando um levantamento de casos semelhantes e

explicando por que isso ocorre.

Cartas escritas pelas crianças

na atividade de correio, extraídas de Relatos de Experiências

Premiados 1989, II Concurso, MEC, p. 108-9.

Texto 19

(a) VOCE

E O MEU

MELHOR

AMIGO

MUITO

OBRIGADO

Page 393: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

POR

ISSO

AMIGÃO

(b)OI

AMIGUINHO

ATÉ QUE

VOSE É

BONITINHO

QUÉ UM

BEIJO

(c) oi marila

eu ciria

coece a sua

caza

FIM

Os textos a, b, c do número 19 são cartas escritas por

crianças da pré-escola, que estão começando a aprender a ler e a

escrever. As crianças se saem bastante bem,

<233>

procurando descobrir como escrever o que querem: olham,

perguntam ou mesmo tentam escrever por si para ver o que

Page 394: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

resulta. Note que os erros ortográficos que ocorrem nessa fase

São diferentes dos que ocorrem em fases mais adiantadas.

Nesse primeiro momento, freqüentemente ocorrem erros que

demonstram um desconhecimento do uso das letras nas suas

relações com a fala, levando-se em conta o contexto de escrita.

Mais para a frente, ocorrem mais erros de ortografia

propriamente ditos. Veja no texto 19c, como o aluno escreveu

QUERIA (ciria) e CONHECER (coece). Ele ainda não aprendeu que

a letra C diante de I e de E tem o som de "çê" e nunca de "kê".

Para se obter o som de "kê", a única saída, neste caso, é usar as

letras QU. Por outro lado, COECE é uma excelente transcrição

fonética, sem a marca da nasalidade.

Texto 20— Fábio E G. (2ª série)

"Balão"

Eu sou um balão, Um balão de São João. E vim dizer para você:

Eu fui feito pra subir pelo céu e me perder. Agora, se eu cair,

veja o que faço:

Incêndios provocar e pessoas machucar. Muitas pessoas ainda

me soltam Isso me entristece tanto! Vou pedir um favor: por

favor, não me solte mais!

Texto 21 — Marina E E (2ª série)

"A BORBOLETA"

Page 395: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Já está de manhã.

E o galo diz có-có-ri-có!

E a borboleta se levanta e sai para passear

Lá no meio do caminho ela encontra a abelha e diz:

— Dona abelha, se eu fosse você eu não conseguiria fazer tudo

isso.

E lá mais adiante ela encontrou as formigas.

Só que elas estão andando e a borboleta estava voando. Então

ela pôde falar — bom dia!

Mas ela ficou pensando:

— Cada trabalho difícil que elas têm! Só que estava na hora de

comer.

Então ela foi para casa e comeu.

<234>

Só que ela comeu muita comida e não pode sair. Então ela ficou

na cama.

Os textos 20 e 21 são da 2ª série, de uma classe que trabalha

muito com textos espontâneos, desde a 1ª série. Note como os

textos amadureceram. Não só

sumiram quase todos os erros de ortografia como, sobretudo, os

alunos passaram a produzir textos com certo estilo literário. Se

esses alunos continuarem a produzir textos espontâneos nas

demais séries e se continuarem lendo assiduamente, jamais

Page 396: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

terão problemas de redação. Podem se ver diante de qualquer

desafio de escrita, que, certamente, resolverão muito bem todos

os seus problemas de redação pelo resto da vida.

Texto 22 —Jurandyr V

(a) Descrição do cão

O cão e um animal inteligente

O cão sempre persegue o

patrão quando ve alguem

homem que não é da casa

ele começa a latir

Quando e noite que tudo

estão dormindo ele esta guardando a casa. Quando o patrão bate

nele elle sai e depois vem outra vez perto do patrão.

Quando o patrão perde alquoma cousa elle fica hai até

que não vem buscar elle

não sahi dahi

(b) Descrição — A colheita de café

Aproxima-se o mez de maio. Todos estão se preparão para a

colheita de cafe Arruumando

todo os objectos nessesarios

para apanha e depois de colher

O cafe esta pronto para

Page 397: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

se lavar no tanque. Depois

de lavado vae para enxugar se

no terreiro Se over broca antes

de ir para o tanque vae para a

estufa depois para matar os bixinhos vae ao benficio Quando

esta limpo tora-o bem e com o pó obtem-se uma bebida

deliciosa.

<235>

Os textos 22a e b são de um aluno da 4ª série de 1937.

Naquela época, a ortografia adotada pela escola era diferente.

Vê-se que o aluno tinha algumas dificuldades, como traçar

corretamente a letra "g", distinguindo-a do "q". Escreve TUDO

em lugar de TODOS. Escreve sem segmentar OUTRAVEZ,

acrescenta um "o" (sem corrigir) ao escrever ALQUOMA. O uso

dos sinais de pontuação é praticamente ignorado. O texto tenta

reproduzir aquelas histórias de cunho moral típicas dos livros

didáticos da época. O aluno não produz um texto espontâneo,

mas induzido pelo método de ensino usado na escola e nos livros

didáticos. Além disso, tem de fazer um texto do tipo padrão,

ensinado pelo professor, ou seja, que segue um modelo.

Começou com palavras; agora, escreve textos seguindo o

modelo.

No texto b, apesar de ter cometido mais erros de ortografia (e

mais graves), sua nota foi maior. Certamente, o professor achou

Page 398: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que o aluno, no texto a, não descreveu exatamente o cão, mas

falou de seus hábitos... Já no texto b, ele achou que a descrição

era melhor. O que interessa, na verdade, é constatar que o

professor dava menos importância à ortografia. No texto b,

ocorrem os seguintes erros de ortografia: PREPARÃO, ou seja,

PREPARANDO; ARRUUMANDO, ou seja ARRUMANDO; TODO, ou

seja, TODOS; NESSESARIOS, ou seja, NECESSÁRIOS; APANHA, ou

seja, APANHAR; OVER, ou seja, HOUVER; BIXINHOS, ou seja,

BICHINHOS; TORA O, ou seja, TORRA-O. Há de se notar, ainda, a

construção: QUANDO ESTÁ LIMPO TORA-O BEM.

Ao comparar esses textos da 4ª série (de 1937) com os da 2ª

série (de 1989), percebemos que os alunos da 2ª série não só

lidam melhor com a ortografia, como produzem textos mais

interessantes, do ponto de vista literário. Ambos mostram que o

estilo da linguagem escrita é tido como modelo e ideal, mas

antigamente os alunos estavam muito mais presos a modelos,

fazendo textos menos criativos, nos quais a marca da

individualidade era de certo modo negada.

Muitas pessoas costumam dizer que antigamente OS alunos

aprendiam melhor. Como se vê, as coisas não eram bem assim.

Na 4ª série, havia aluno escrevendo OVER (HOUVER BIXINHOS

(BICHINHOS), etc. Convém lembrar que um aluno que chegava à

4ª série em 1937 era um privilegiado em termos de chance de

estudo, pois a maioria estudava até a 2ª série.

Page 399: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Apesar de seguir a cartilha (era uma cartilha diferente das

atuais), o professor daquela época valorizava mais

<236>

o esforço do aluno em obter um texto mais bem redigido do que

sem erros de grafia. A meta a ser atingida era outra. Hoje,

muitos professores só sabem avaliar em função dos erros de

grafia. Certamente, as notas das duas redações de 1937

estariam invertidas para esses professores de hoje. Não só

mudaram as cartilhas como mudou também a atitude dos

professores ao longo dos anos. A escola tornou-se muito mais

rígida e até mesmo intransigente com relação à ortografia.

QUESTÕES PERTURBADORAS

Ao discutir a produção de textos espontâneos com professores

que usam o método do bá-bé-bi-bó-bu, tem-se notado que eles

ficam muito chocados com os erros de ortografia. Consideram

que tudo deve ser feito sob seu absoluto controle, para que o

aluno aprenda em ordem, indo do mais fácil para o mais difícil,

reproduzindo o modelo do já dominado.

Essa crença relaciona-se a uma outra (mais equivocada

ainda), segundo a qual o aluno só deve visualizar o que é certo.

O que está errado deve ser evitado. Se ocorrer, deve ser

eliminado o mais rápido possível, para que o aluno não fixe o

erro e depois não consiga mais se livrar dele. Por essas razões,

Page 400: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

esses professores acham que não devem deixar seus alunos

escreverem errado, o que é comum, principalmente no início da

alfabetização. Produção de textos livres será feita como última

atividade, depois que o aluno aprendeu a ler e a escrever com

perfeição.

Os efeitos nefastos dessa atitude já foram comentados

anteriormente e não é preciso voltar a falar do mesmo assunto.

Porém, como esse tipo de argumentação é freqüente, inclusive

para impedir que as crianças façam textos espontâneos, é bom

lembrar aqui, especialmente para comparar o que significa,

através de exemplos, escrever segundo o modelo das cartilhas e

o que representa escrever produzindo textos espontâneos. Os

resultados imediatos são mascarados pela metodologia, mas,

com o tempo, são claramente reveladores, mostrando que o

aluno que nunca fez textos espontâneos irá encontrar

dificuldades enormes (e muitas vezes insuperáveis) nas séries

mais adiantadas, ao passo que os alunos que produzem textos

espontâneos, desde a primeira série, irão saber como resolver

suas dificuldades pelo resto da vida.

<237>

Uma outra questão, que perturba demais certos professores,

não é tanto o erro ortográfico (eles acham até natural que os

alunos errem de vez em quando), mas o tipo de erro cometido.

Para eles, é até aceitável que um aluno escreva CASA com Z

Page 401: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

(CAZA), ou LIXO com CH (LICHO), porque essas dificuldades não

têm solução (segundo eles...). Por outro lado, não aceitam que

um aluno escreva COMUMTA (COM MUITA — texto 8),

NAALMADILIA (NA ARMADILHA — texto 8), A JENTE ESCOMDE

IM BAIXO DA CARTERA (A GENTE SE ESCONDE EMBAIXO DA

CARTEIRA — texto 10 d), ALSANTAR (ASSALTAR texto 11), EDE A

LEGUIA DEMA DACONTA (E DE ALEGRIA DEMAIS DA CONTA

— texto 12), EU CIRIA COECE A SUA CAZA (EU QUE RIA

CONHECER A SUA CASA texto 19 c), etc.

JULGAR PELOS ERROS

E PELOS ACERTOS

Essas concepções estão ligadas a uma outra, que leva o

professor a julgar seus alunos apenas pelos erros que cometem,

e nunca pelos acertos. É a avaliação punitiva. É a correção que

visa a amedrontar o aluno diante do erro e da ignorância, e não a

incentivá-lo a superar suas dificuldades, apoiando-se naquilo

que já aprendeu. Parece que o processo escolar tornou-se algo

que vai cortando, derrubando, destruindo coisas que o aluno faz

(o errado), e não um processo de construção, progresso,

aumento, que também terá seus momentos de revisão e de

reorganização dos conhecimentos que o aluno possui.

Alguns professores se esquivam desse tipo de argumento,

dizendo que são justos; consideram o certo e o errado

Page 402: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

objetivamente. Em resumo, acham por exemplo, que um aluno

que acertou 70% das palavras ou das dificuldades ortográficas

(o que é isso?), foi bem na escola e merece ser aprovado. Até

hoje não encontrei nenhum professor que aceitasse apenas

50%: eles acham que 50% é muito pouco, porque a maioria das

palavras são muito fáceis (ou seja, pertencem ao conjunto de

palavras especiais já dominadas!?...).

Quando, porém, pergunta-se a esses professores se

aprovariam um aluno como o Ronaldo (texto 8), eles dizem que

não, porque o aluno não tem condições, já que

<238>

não aprendeu o mínimo necessário. Então pergunto dos 70% de

acertos e eles acham que o aluno errou muito mais, ou seja,

acertou muito menos do que os 70% esperados, sendo essa mais

uma razão para a reprovação.

Esses professores têm uma noção de cálculo estatístico

baseada não em números reais, mas numa certa desconfiança

imprecisa. Jamais chegam a fazer os cálculos realmente. E

acabam simplesmente guiando-se pela qualidade do erro: se o

erro ortográfico é chocante, o aluno tem índice baixo de acerto,

precisando, portanto, ser reprovado.

Vamos analisar com mais cuidado o texto número 8 e ver nos

seus detalhes, o que ele representa em termos de erros e

acertos.

Page 403: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Contaremos, em primeiro lugar, os erros de ortografia

considerando uma letra errada ou uma letra a mais ou a menos.

Por exemplo, na primeira linha: O LEÃO ANDANDO COMUMTA, o

aluno acertou as letras 0,1, e, ã, o (5), a, n, d, a, n, d, o (7), c, o

(2), m, u, t, a (4); e errou: m (falta em COM, que ele escreveu

CO) (I), o m (de MUMTA, na verdade um "i": MUITA) (I).

Portanto, na primeira linha, o aluno acertou 17 ocorrências de

letras e errou apenas 2. Procedendo assim, temos o seguinte

resultado:

Acertos erros

Linha 1 17 2

linha 2 19 5

linha 3 17 3

linha 4 19 3

linha 5 17 4

linha 6 13 5

linha 7 12 5

linha 8 12 7

linha 9 12 6

linha 10 7 4

total: 146 41

187 letras

Porcentagem (%) 78,07 21,93

Page 404: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

100

Outro item que poderia ser investigado é a segmentação

correta das palavras. Vamos transcrever o texto, assinalando

com uma barra inclinada — / — o lugar onde ocorreu erro de

segmentação e com o sinal de igual, o lugar onde o aluno

acertou:

<239>

Testos acertos erros

1 O/leão = andando co/mumta =3 2

2. presa = de/repete = eli = caiu =4 1

3. numa = almadilia = e = pasou = 4 —

4. dois = coelio = na/almadilia = 3 1

5. e = falaro = asm = não/vamo 3 1

6. s=sauva=o=leao=pogue = 5 —

7. si/nos = sauva/você = 2 2

8. coando = voce = tive = 3 —

9. a/ai/in/sima voce = vai 3 3

10 come/nois 1 1

Total 31 11 42

Porcentagem (%) 7380 2620

100

Como se vê, um professor que tivesse como critério de

Page 405: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprovação pelo menos 70% de ocorrências certas de letras e

segmentação, deveria aprovar Ronaldo. Porém, quando os

professores vêem somente o texto, acham que o aluno não

aprendeu quase nada, que escreve tudo errado, e que,

conseqüentemente, não tem condições mínimas de ir adiante.

A análise feita acima atesta que alguns professores usam uma

forma desonesta de fazer a avaliação do aluno, dizendo as regras

de um jeito e agindo de outro. Mostra, ainda, o preconceito

contra certos erros de ortografia, que ele, professor, considera

gravíssimos, não percebendo que para o aluno alfabetizando as

dificuldades ortográficas residem praticamente em cada letra

das palavras, a cada segmentação que faz ou deixa de fazer.

Se o professor fizesse um cálculo estatístico real, ambos

poderiam ver, pelo lado positivo, que muita coisa já foi

aprendida, e o que falta precisa ser dado através de atividades

específicas.

O texto 8, comparado com outros, apresenta muitos

problemas, o que significa, por outro lado, que os outros textos

têm um índice muito mais alto de acertos.

A produção de textos espontâneos pelos alunos, desde o início

da prática de escrita, apresenta resultados aparentemente

caóticos e estranhos, mas, analisados com mais cuidado,

constata-se que, no fundo, são muito mais certos do que

errados. Essa constatação é um bom argumento para convencer

Page 406: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

qualquer professor de que vale a pena incentivar os alunos a

produzirem textos espontâneos.

<240>

10

AS hipóteses por trás dos erros

O HOMEM É UM ANIMAL RACIONAL

Uma criança usa sua capacidade de refletir sobre

tudo o que faz. Nenhuma criança é capaz de fazer o menor gesto

ou tomar a menor iniciativa, ou ainda ficar sem fazer nada, sem

que isso seja o resultado de uma decisão, fruto de uma reflexão.

Nisso, não há nenhuma novidade. Desde os mais antigos

filósofos, a humanidade sabe que o homem é um animal

especial, dotado de uma faculdade chamada racionalidade; em

outras palavras, o homem é um animal racional. O homem não

pode se ver livre da racionalidade, em nenhum momento, sob

nenhum pretexto, caso contrário, simplesmente deixaria de ser

homem. O homem é escravo de sua racionalidade. É por essa

razão que todo ser humano tem suas ações comandadas pela

racionalidade, sempre e em todas as circunstâncias, mesmo

quando comete barbaridades.

Tudo o que o ser humano faz é movido por um ato de reflexão

qualquer, como uso da faculdade da racionalidade. Nem toda

Page 407: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

reflexão é consciente ou ponderada em todos os seus aspectos.

Quando andamos, mal sabemos como fazemos isso, mas o andar

requer uma tomada de decisão, caso contrário, não andaríamos.

A participação da reflexão na vida das pessoas torna-se bastante

evidente quando alguém se propõe a fazer algo diferente do

habitual. Se em vez de andar alternando os pés, alguém

resolvesse andar dando um passo e um salto, logo perceberia

que precisaria tornar consciente e constante a decisão de agir

dessa maneira, ou seja, precisaria acompanhar essa prática

pensando a cada instante como realiza-la. A reflexão e a decisão

sobre como andar, que antes eram inconscientes, passam a ser

conscientes para que a pessoa seja capaz de realizar

corretamente o que quer.

É evidente que a estrutura de nosso corpo, pelas suas

características físicas, pode agir sob influência de fatores

externos, por exemplo, a força da gravidade pode derrubar um

corpo em desequilíbrio, uma alfinetada num músculo pode fazê-

lo contrair-se automaticamente, etc. Os próprios animais fazem

muitas das coisas que fazemos. A diferença entre o animal e o

homem é justamente o fato de o animal nunca poder tomar uma

decisão refletida, mesmo que ele tome uma decisão mais

inteligente entre algumas alternativas, por exemplo, usando sua

estratégia de ataque ou defesa. Esse conhecimento sobre a vida

é considerado, nos animais, um instinto.

Page 408: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<242>

A interação dele com o mundo criou formas biológicas de agir

mas não de refletir. No homem o "instinto" é criado através de

uma interpretação da interação com o mundo, e isso já é refletir.

A reflexão só é possível com a presença da linguagem e vice-

versa. É por essa razão que, para muitos filósofos, linguagem e

racionalidade, ou linguagem e pensamento, são duas maneiras

diferentes de falar da mesma realidade. São dois lados da

mesma folha de papel: não se pode ter um lado, sem ter o outro.

A CRIANÇA E A RACIONALIDADE

Uma criança é um ser humano, portanto, um animal racional.

Isso significa que toda criança também é um explorador do

mundo, uma pessoa interessada em interpretar a realidade e o

imaginário, como fruto de uma necessidade essencial, senão não

seria gente. Ler o mundo é a sina de todos nós na vida e não há

como escapar.

Ao interpretar a realidade, a criança (o homem) processa seu

pensamento e tira suas conclusões sobre ela. Isso acontece em

todos os níveis e em todas as circunstâncias. Por isso, quando

uma criança entra para a escola, já percorreu um longo caminho

de exploração do homem, da vida e do mundo. Além disso,

através da linguagem e da cultura, a criança pode refletir sobre

sua reflexão e interpretar a realidade sob diferentes

Page 409: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

perspectivas. Nesse âmbito, é fácil concluir que as crianças não

adquirem a capacidade de linguagem através da simples

interação com pessoas falantes, porque a linguagem —

entendida como racionalidade — é sua própria essência — sua

diferença específica, diria Aristóteles. Por essas razões, alguns

filósofos e lingüistas chegaram à conclusão de que a essência da

linguagem, ou a faculdade da linguagem, é inata. Através da

interação social, uma pessoa adquire apenas a forma material da

linguagem de outras pessoas que são falantes dentro de uma

sociedade; em outras palavras, aprende a falar português deste

jeito ou daquele, aprende chinês de um jeito ou de outro, ou

aprende qualquer variedade de qualquer outra língua.

Já vimos antes que uma criança aprende a falar a língua do

adulto numa idade muito tenra (de 1,5 a 3 anos). Durante vários

anos — em geral 7 —, vive interpretando a realidade,

acumulando uma bagagem de pensamento,

<243>

que é a marca de sua personalidade. Nessa aventura humana

pela vida, ela já teve inúmeras oportunidades para interpretar o

que seja a linguagem humana, a fala, a gramática da língua, os

usos da linguagem, a escrita, a leitura, as formas de

comunicação verbal e não-verbal e muito mais.

Portanto, toda criança que entra para a escola já pensou sobre

várias questões e já acumulou informações em sua mente. Esse

Page 410: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

acúmulo de informações é o referencial de que se serve para

proceder a novas interpretações e construir, assim, novos

conhecimentos. Nada é totalmente estranho para uma criança:

sempre há algo de conhecido. Ao longo da vida, as novidades

tornam-se cada vez mais raras, razão pela qual se começa a

buscar sutilezas. É por essa razão que as ciências, por exemplo,

se desenvolvem.

Conhecer a realidade da criança no processo educativo escolar

significa entre outras coisas reconhecer que toda criança entra

para a escola com uma bagagem intelectual que ajuntou ao

longo de sua vida. Nessa bagagem, há muitas idéias a respeito

de fatos que serão tratados na escola. Nem sempre as crianças

têm as mesmas idéias que a escola, os livros didáticos ou os

professores transmitem. Para aprender, elas precisam descobrir

o que a escola, os livros didáticos e os professores pensam. Para

ensinar, por outro lado, a escola, os livros didáticos e os

professores precisam saber o que pensam os alunos. E isso deve

acontecer não apenas no primeiro dia de aula, mas em todos os

dias, em todas as séries, caso contrário, alunos e escola não

entrarão num acordo.

CONHECER OS ALUNOS

Na alfabetização, é fundamental que o professor saiba o que

pensam seus alunos a respeito da leitura, da escrita e da fala.

Page 411: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Essa é uma preocupação dos primeiros dias de aula, ocasião em

que o professor irá conversar com seus alunos. Ao longo do ano

escolar, essa deverá ser uma preocupação decorrente da

atividade de avaliação por parte do professor, de tudo o que o

aluno faz ou deixa de fazer.

A experiência tem mostrado que há algumas formas de

interpretação recorrentes no processo de alfabetização. Há

muitas idéias em comum e, nessa lista, estão

<244>

sobretudo as idéias corretas a respeito da realidade. As idéias

estranhas, erradas e incompletas também podem ser agrupadas

em categorias e refletem características de grupos específicos de

crianças, de tal modo que, na prática, a tarefa do professor é

muito mais simples do que poderia parecer na teoria.

Seria útil que o professor fizesse um levantamento das

interpretações mais comuns que os alunos novos e velhos têm a

respeito: 1) da escola, do ensino, do aprender, das noções de

certo e errado, da avaliação, da promoção, em suma, da vida

escolar; 2) do professor, de suas idéias e atitudes; 3) da

realidade: do homem, da vida e do mundo; 4) da sociedade e da

cultura; 5) da ciência, da superstição, da fé, da ilusão, do real e

do imaginário; e, sobretudo, 6) da linguagem e, em particular, da

leitura, da escrita e da fala em seus mais varia dos aspectos.

Como não é o caso de discutir aqui todos esses tópicos em

Page 412: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

detalhe, prossegue-se com o estudo minucioso das questões

relativas à linguagem. Apresenta-se a seguir uma série de fatos

que demonstram formas de interpretar a realidade comuns a

crianças antes e no início de se submeterem ao processo de

alfabetização. Em resumo, trata-se de hipóteses das crianças a

respeito de fatos da fala, escrita e leitura, isto é, comentários

sobre o que pensam as crianças quando cometem certos erros,

principalmente de leitura e escrita.

EXPLICAÇÕES PARA OS ERROS

Freqüentemente, a análise dos erros conduz logo a uma

explicação clara e correta. Outras vezes, há dificuldades mais ou

menos sérias em saber exatamente as razões pelas quais um

aluno fez tal coisa e não outra. Nesses casos, há a possibilidade

de explicações alternativas, que serão mencionadas

oportunamente. Uma explicação não exclui a possibilidade de

outras. Porém, as causas mais evidentes serão as escolhidas. Por

outro lado, não existe nada para o qual não seja sequer possível

levantar uma hipótese de interpretação. Tudo o que um aluno faz

ou deixa de fazer tem uma razão de ser para ele, e o professor

precisa descobri-la para poder ensinar adequadamente.

<245>

- PATTO, 1997.

Pesquisar o que os alunos pensam e as hipóteses que

Page 413: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

levantam ao estudar requer um conhecimento profundo e

especializado do assunto sob investigação, caso contrário,

acabam aparecendo interpretações equivocadas, como aquelas

que sugeriram o período preparatório, baseadas numa noção

errônea de "prontidão" no método das cartilhas. Também dizer

que o aluno é burro, lento, preguiçoso, incapaz, relaxado, etc.

não esclarece, de fato, a razão do erro do aluno. Nem sempre um

comportamento errado está associado a uma interpretação

errada da realidade. São coisas diferentes. Há alunos relaxados

que acompanham muito bem o progresso escolar, e há alunos

bem-comportados que apresentam sérias dificuldades de

aprendizagem e vice-versa.

Todo erro de matemática pressupõe uma explicação

matemática. Todo erro de português suscita uma explicação

gramatical (no sentido mais amplo). Interpretar erros de

ortografia, por exemplo, como distúrbios da fala, como problema

emocional do aluno ou de sua família, como problema

neurológico ou como uma doença psicológica é fugir das

verdadeiras causas, é enganar ao aluno e a si. Erro de ortografia

relaciona-se com as hipóteses que o aluno levanta sobre a

escrita, apenas isso. Problemas de outra natureza (físico,

emocional), quando de fato ocorrem, afetam não apenas a

resolução de problemas de matemática ou de ortografia, mas

toda a vida da pessoa. Os erros escolares são sempre muito

Page 414: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

localizados e circunstanciais. Ocorrem em determinados

contextos, e não em outros (ocasiões em que o aluno acerta).

Por isso, são facilmente identificados e podem ser corretamente

interpretados por um bom especialista.

Hipóteses estranhas (não esperadas pelo professor) ocorrem

não só quando os alunos erram (sempre), mas também quando

eles acertam (às vezes). Por exemplo, um aluno pode multiplicar

420 por 32, escrevendo 40, 800, 840, 60 0, 1 440, 1 200 - O = 13

440. O aluno chegou ao resultado certo, seguindo um caminho

diferente daquele que o professor ensinou para fazer as contas

de multiplicação. Um bom professor procura descobrir que

raciocínio levou o aluno a escrever aqueles números estranhos e

depois colocar o resultado certo. Será que ele colou? Copiou do

colega? Ou será que o aluno fez de outro jeito? Vejamos:

multiplicar 420 por 32 significa somar 32 vezes o número 420,

ou somar o resultado de 2 X 20 + 2 X 400, ou seja, 40 + 800,

resultando em 840; depois somar ainda 30>< 20 (que o

<246>

aluno fez 3 X 20, acrescentando um zero ao resulta do), o que

dá 600, que somado aos 840 anteriores dá 1 440. Em seguida,

multiplica-se 30 por 400 (que o aluno fez 3 X 400, acrescentando

um zero ao resultado), o que dá 12 000, que por sua vez,

somado ao resultado anterior (1 440), dá o total de 13 440, que

é a resposta. Sem dúvida alguma, esse aluno não copiou o

Page 415: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

resultado e muito menos colou. Mas um professor despreparado

pode não acreditar na versão do aluno, achando que ele

escreveu um monte de números aleatórios e depois colou o

resultado do caderno de algum colega. O final da história pode

ser uma nota baixa que poderá, eventualmente, causar uma

repetição de ano. Fatos como esses aparecem freqüentemente

na escola.

Descobrir as idéias dos alunos é entrar num mundo fascinante

e surpreendente. Talvez seja esse o motivo pelo qual, apesar dos

baixos salários, muitas pessoas insistem em continuar sendo

professores: é uma experiência intelectual e humana

maravilhosa.

A REFLEXÃO DO ALUNO NA ESCOLA

Para entender a realidade dos alunos, é preciso, ainda, estar

convicto de que as crianças não vivem passivamente no mundo,

mas estão a todo instante atentas para aprender tudo o que lhes

interessa, em todas as circunstâncias.

A leitura do mundo é algo que todo ser humano faz a todo

instante, graças à racionalidade. Todo ser humano, por mais

simples, mais rico ou pobre que seja, é escravo da própria

racionalidade. Por isso, tudo o que faz é fruto de um

pensamento, de uma reflexão, de uma decisão pensada.

Conseqüentemente, toda pessoa precisa estar constantemente

Page 416: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

lendo o mundo e procurando entendê-lo. Cada um faz isso

segundo seu próprio modo de ser, segundo as características da

sua personalidade. Isso explica por que as pessoas chegam a

conclusões diferentes, tentando interpretar fatos iguais. O que é

importante para uma pessoa pode não ter valor para outra e

vice-versa.

Alguns educadores parecem ter descoberto só agora que as

crianças pensam, que tudo o que fazem reflete uma decisão

pessoal, resultante de uma reflexão. Em

<247>

outras palavras, todos os acertos e erros das crianças trazem

por trás de si hipóteses que levaram a criança a tomar

determinada decisão e fazer algo de um certo modo e não de

outro.

- Ver debate sobre o assunto promovido por Maria Helena

PATTO (1985) em vários números da revista Cadernos de

Pesquisas.

A nossa escola foi desviada desse caminho no momento em

que alguns piagetianos brasileiros começaram a dizer que as

crianças não aprendiam porque apresentavam uma síndrome da

dificuldade de aprendizagem, resultando dai os trabalhos de

prontidão e todas as atividades do período preparatório.

Page 417: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Recuperar o aluno como ser pensante passou a ser algo

imperativo para que a escola pudesse retomar seus trabalhos

com decência e, curiosamente, foi uma piagetiana (Emília

Ferreiro) quem chamou fortemente a atenção dos educadores

deste país para essa realidade. Nessas circunstâncias, o trabalho

de Emília Ferreiro apareceu com um certo tom de novidade.

Já em métodos antigos de alfabetização, encontramos um

esforço dos autores para interpretar a razão pela qual um aluno

chegou a uma conclusão errada. Trata-se de uma tentativa de

descobrir quais as hipóteses que as crianças levantam quando

cometem certos erros de escrita ou de leitura. Por exemplo, no

Manual explicativo

< CASTILHO, 1859, p. 45-7. do método de leitura denominado

escola brasileira, de Francisco Alves da Silva Castilho, o autor faz

um levantamento de alguns tipos de erro que os alunos

cometiam nas suas aulas. Apontou os seguintes fatos: aluno que

escreve como fala, segundo um dialeto que não respeita a norma

culta, acaba escrevendo errado. Por exemplo: quem escreve

ORDENCIA em lugar de PRUDÊNCIA, ou TIVE por ESTIVE; quem

troca -NHO por NIO; L por R, como ARMA por ALMA, CARDO por

CALDO; quem inverte a ordem de letras em palavras, como em

CRAVÃO; aluno que mistura letras, fazendo um uso indevido de

certas letras: FEIO ou FELO em vez de FERRO, NAVA em vez de

Page 418: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

LAVA, XUA em vez de SUA, AJA em vez de ASA (que no tempo do

autor se escrevia AZA).

O MÉTODO, O PROFESSOR,

O ALUNO E A ESCOLA

Mesmo quando o ensino é impositivo, obrigando o aluno a

seguir o modelo a todo instante, os alunos continuam sendo

indivíduos com direito às suas próprias

<248>

idéias e interpretações. Nenhum método de alfabetização

controla tudo, sempre, o que obriga o aluno a tomar algumas

decisões por conta própria, interpretando até mesmo o que o

método ensina.

É por isso que, apesar do esforço do professor e da exatidão da

explicação do método das cartilhas, alguns alunos cometem

erros, aparentemente incompreensíveis (ou aceitos somente se

associados a problemas mentais). O aluno não deixa de lado sua

racionalidade, nem seu direito de refletir, porque está sendo

submetido a um método ou a outro. Quando o método é muito

rigoroso, os alunos que se submeterem mais facilmente e mais

plenamente acabam acertando mais; porém, aqueles que

começarem a questionar os resultados ou mesmo os

procedimentos, acabam, quase sempre, tomando um caminho

que não leva aos resultados esperados pelo método. Por

Page 419: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

exemplo, o aluno que aprendeu pelo bá-bé-bi-bó-bu, escreve no

ditado LT para LATA, CP para CAPA, etc. Ele entendeu que a

vogal já vem com a consoante, sendo dispensável na escrita. No

fundo, volta-se à velha distinção entre ensino e aprendizagem:

não é porque o professor ensina que o aluno aprende; não é

porque o professor ensina de um determinado modo, que o aluno

se convence de que esse é o único modo de interpretar; como

também é verdade que não é por que o professor não ensina que

o aluno não pode aprender.

O importante é o fato de que, seja em que método for, os

alunos estão sempre pensando quando fazem suas tarefas, isto

é, para tudo o que fazem, têm uma hipótese que representa a

conclusão de um processo de argumentação, que revela ao aluno

que ele deve fazer algo de determinado modo e não de outro.

Um professor que conhece profundamente como a escrita, a

leitura e a fala funcionam e o que acontece durante o processo

de alfabetização, é capaz de analisar qualquer coisa que

aconteça ou deixe de acontecer com os alunos, quando eles vão

ler ou escrever. Por outro lado, um professor que não for capaz

disso, não tem condições de lidar com certos fatos que encontra,

principalmente quando os alunos fazem coisas estranhas ou têm

comportamentos inesperados.

Um professor terá condições de analisar e entender seja lá o

que for somente se se dispuser de uma competência técnica

Page 420: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

bem-adquirida. Nem sempre o bom senso funciona. Às vezes, é

preciso saber muito bem

<249>

como a linguagem oral e escrita funcionam. Isso demanda do

professor alfabetizador conhecimentos sóli dos de lingüística e

dos sistemas de escrita. Como as escolas de formação têm

negligenciado sistematicamente esses aspectos, os professores

precisam sanar essa deficiência procurando estudar por conta. É

particularmente importante fazer um trabalho de reflexão,

análise e interpretação de tudo o que acontece no dia-a-dia em

sala de aula, a fim de não ter apenas a visão do método e da

cartilha na prática escolar.

Quando um aluno começa a errar sistematicamente, seguindo

o método do bá-bé-bi-bó-bu, a cartilha tem como única

alternativa obrigar o aluno a rever as lições anteriores, até

compreender o que ficou faltando ou o que foi entendido errado.

Se, apesar disso, não superar suas dificuldades e continuar

fazendo do mesmo modo, o aluno é remanejado, submetido a

processos de recuperação, reprovado, até que chegue à

conclusão de que não serve para os estudos.

Essa situação extremamente constrangedora precisa ser

abolida da escola. Mas, para isso, o professor precisa entender

realmente o que significa o que o aluno faz. As explicações mais

tradicionais que os professores usam têm a ver com as

Page 421: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

deficiências dos alunos, com seus déficits. A escola usa de

rótulos já prontos, sem saber se são verdadeiros ou não, do

mesmo modo que opta por um método como o das cartilhas, sem

medir as conseqüências. Faz isso simplesmente para resolver

dificuldades circunstanciais, porque tem medo de enfrentá-las,

considerando mais fácil ignorá-las ou afasta-las para outro lugar,

criando a falsa aparência de que, eliminando os erros a qualquer

preço, tudo está em ordem. Raramente se lembram de que o

método também pode ser o culpado e quase nunca chegam à

conclusão de que os erros, sejam eles quais forem, podem ser

entendidos como hipóteses ou raciocínios lingüísticos dos alunos

que não correspondem às expectativas da escola.

Atribuir os erros das crianças à falta de capacidade de

observação, de inteligência, a fatores socioeconômicos, médicos,

fonoaudiológicos, de desnutrição, etc. são formas equivocadas

de interpretação de fatos lingüísticos e que têm levado a

educação por péssimos caminhos. Essas explicações foram

levantadas para inocentar os métodos de sua incompetência. A

escola precisa ser mais honesta e parar de ficar interpretando os

erros das crianças de uma maneira preconceituosa.

< MASSINI CAGLIARI, 1996i

<250>

O CERTO, O ERRADO E O DIFERENTE

Page 422: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Há um interesse particular em estudar os erros que os alunos

cometem quando estão aprendendo a ler e a escrever. A partir

da correta análise desses erros, o professor poderá ajudar o

aluno a se superar e a progredir na aprendizagem escolar.

Alguns erros são tão sérios que, se não forem sanados, o aluno

acaba não aprendendo a ler e, conseqüentemente, não se

alfabetiza.

Tradicionalmente, os livros didáticos e, sobretudo, o método

das cartilhas não gostam de erros. O método é feito de modo a

prevenir o aluno de cometer qualquer erro, mesmo que ele não

saiba muito bem o por quê das coisas que faz. De modo geral, a

escola detesta o erro no processo de aprendizagem, razão pela

qual a nota goza de tão grande prestígio. A nota é o castigo do

erro. Obviamente, a escola, os métodos e os professores só

pensam nos erros dos alunos, jamais nos seus próprios.

Em se tratando de linguagem, é preciso distinguir o certo, o

errado e o diferente. Uma língua vive em função de seus

falantes. Como a linguagem oral é um fato social, vamos sempre

encontrar um grupo de pessoas que usam a mesma linguagem

oral. Por exemplo, no Japão, as pessoas falam o japonês, na

Coréia falam coreano, na França falam francês, no Brasil falam

português. Para estudar essas línguas, o lingüista vai pesquisar

como as pessoas desses lugares falam. Ao fazer isso, descobre

que, apesar de essas pessoas usarem a mesma língua, falam

Page 423: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

com diferenças regionais e até pessoais. Para organizar a

gramática de uma língua, que é o conjunto de regras desse

sistema lingüístico, o lingüista precisa descrever, por um lado, as

igualdades e, por outro, as diferenças.

Essa descrição é feita sobre fatos da linguagem oral. A escrita

nada mais é do que uma representação da linguagem oral.

Porém, nosso sistema de escrita, por ter um uso social muito

abrangente, está acima dessas diferenças entre os dialetos,

sendo um só para todos. Isso, obviamente, trouxe uma grande

vantagem no uso, mas também uma grande complicação na

descrição das relações entre linguagem oral e escrita. Nosso

sistema de escrita ortográfico não está mais preocupado em

saber como o usuário fala. Este simplesmente deve seguir o que

foi estabelecido para todos nas convenções da escrita.

<251>

Essa visão de linguagem oral e de escrita tem muito a ver com

o que comumente se chama erro de linguagem. Como a escola

tradicional trabalha com a linguagem somente do ponto de vista

da escrita, fica muito difícil entender os mecanismos da fala e

quais os seus usos. Tudo o que foge ao padrão da escrita passa a

ser considerado erro. É preciso acabar com esse equívoco.

Entendendo essa diferença entre linguagem oral e linguagem

escrita, podemos voltar à discussão do que é certo, errado e

diferente em cada um dos casos.

Page 424: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Do ponto de vista da escrita, está errado tudo o que vai contra

a ortografia e as normas gerais do nosso sistema de escrita. A

escrita também tem um estilo próprio, exigido de acordo com as

circunstâncias pela tradição cultural. As pessoas têm muita

liberdade dentro dessas regras: um tem letra mais bonita, outro

não; um escreve mais elegantemente, outro menos; um escreve

de forma mais clara, Outro de forma mais confusa. São

diferenças aceitáveis. Porém, escrever sem seguir a ortografia

está errado (a não ser em casos muito especiais, como em

propaganda, por exemplo). Escrever sem levar em conta certas

exigências culturais também constitui erro. Por exemplo,

escrever uma carta comercial em gíria é certamente um erro, e

não apenas uma manifestação de estilo individual.

Passemos agora à linguagem falada. Às vezes, uma pessoa vai

dizer uma coisa e troca de palavra, ou gagueja, ou se atrapalha

na pronúncia, na sintaxe ou na semântica. Esses erros ocasionais

são logo percebidos pelos falantes e em geral corrigidos em

seguida. Não são erros propriamente ditos, mas acidentes

lingüísticos.

O diferente na fala aparece na comparação de um dialeto com

outro. Essas diferenças não constituem erros lingüísticos. Assim,

se alguém falar "borboleta" e as outras pessoas disserem

"barbuleta", estamos diante de diferenças dialetais, e não de

erros. Se algumas pessoas dizem "nózvãmuçtrabalhar" e outras

Page 425: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pessoas dizem "nóízvaitrabaiá", estamos diante de dialetos com

regras diferentes e não diante de uma fala certa e de outra

errada. Se uma pessoa chama "biscoito" de "bolacha", ou vice-

versa, trata-se de diferenças dialetais e não de erros. Isso ocorre

porque cada um fala seu dialeto. Portanto, a gramática de cada

dialeto terá suas regras próprias. Não se podem misturar as

regras de

<252>

um dialeto (gramática ou sistema) com as regras de outro,

quando há diferenças entre elas. Assim, ao dialeto que admite a

forma "nózfomuçtrabalhar" não se aplicam as regras do dialeto

que admite "nóizfumu trabaiá". Isso seria um erro, e o contrário

também. Cada dialeto tem seu modo de ser, de acordo com o uso

que as pessoas fazem da linguagem oral. Está tudo certo nos

seus devidos lugares, sem misturas de regras.

Os falantes nativos não cometem erros, a não ser por

acidente, como foi mencionado anteriormente. Assim, nenhum

falante de qualquer dialeto do português diz que "mesa" é

"cachorro" ou "Mesa o está de baixo cachorro da". Mas poderia

dizer: "O cachorro está debaixo da mesa" ou "Debaixo da mesa

está o cachorro" ou até "O cachorro debaixo da mesa está".

Vemos claramente por esses exemplos o que é um erro

lingüístico e o que constitui uma diferença lingüística.

Page 426: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

PATOLOGIAS DA FALA

Há problemas lingüísticos oriundos de patologias? A resposta

é sim, mas exige cuidados ao dimensionar tal realidade. Uma

pessoa que sofre uma lesão cerebral pode tornar-se afásica. O

traumatismo físico afeta o uso da linguagem de várias maneiras.

Uma pessoa com fissura palatina tem dificuldades no controle

aerodinâmico da fala e, conseqüentemente, na pronúncia das

palavras. Alguém com grande retardamento mental fará um uso

especial da linguagem, em grande parte diferente do uso comum

das pessoas. Uma pessoa que nasce surda terá enormes

dificuldades para lidar com a linguagem oral. Esses são

problemas sérios porque envolvem questões da integridade

física dos indivíduos. Tais pessoas manifestam suas dificuldades

constantemente, enquanto perdurar a patologia. Uma educação

especial poderá ajudá-las.

Não é raro, sobretudo na escola, encontrar professores que

confundem casos patológicos com outros em que simplesmente

se usa a linguagem de uma maneira diferente. Não existe uma

patologia da linguagem sem uma patologia física. O inverso

precisa ser analisado com todo cuidado. Não é porque uma

pessoa fala de modo estranho que ela traz consigo uma

patologia física, por exemplo, neurológica.

<253>

Na prática, uma pessoa que faz tudo normalmente, mas

Page 427: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

apenas "fala errado", não apresenta um caso patológico. Por aí,

a família e a escola já poderiam fazer um diagnóstico bastante

confiável. As patologias físicas são perenes, e sua manifestação

estará presente em todos os casos ligados à deficiência. Se a

pessoa é deficiente auditiva, não irá ter dificuldades apenas com

as consoantes sonoras, mas com os sons em geral, e sempre. Se

a pessoa tem problemas de lateralidade, não irá simplesmente

escrever em forma espelhada ou trocando letras, mas irá

também esbarrar nas paredes e não conseguirá passar pelas

portas. Se uma pessoa fala com os colegas, brinca discutindo o

que acontece e, depois, escreve: "O cavalo é Edu vavevivovu",

não é um afásico. Uma pessoa que copia da lousa a palavra

"pato", escrita de forma cursiva pelo professor, escrevendo

ISATO não faz isso porque tem problema de discriminação

visual, mas simplesmente porque interpretou errado a escrita.

Perturba muito a alguns professores (e pais) as crianças com

dislexia ou dislalia. Esses termos já são complicados por si. Uma

forma de defini-los é dizer que a dislexia refere-se a dificuldades

mentais e patológicas de leitura, e dislalia refere-se a

dificuldades de articulação, causadas por lesão dos órgãos da

fala. Na prática, diferenças dialetais, idiossincrasias, equívocos

de aprendizagem são facilmente classificados por algumas

pessoas como casos de dislexia ou dislalia. Para erros

semelhantes de ortografia, inventaram um termo chamado

Page 428: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

"disortografismo". É uma forma de inserir os erros de ortografia

nos casos patológicos. A escola precisa parar de concluir que as

crianças são deficientes por que falam ou escrevem errado.

Apesar de nascerem num ambiente onde se fala um

determinado dialeto, algumas crianças acabam falando de modo

estranho. Essas idiossincrasias acontecem porque as pessoas

tomam caminhos diferentes ao adquirir a linguagem oral. Somos

falantes de um dialeto, mas somos ouvintes de todos os dialetos.

Resumindo, na aquisição da linguagem, aprendemos antes a

ouvir e a entender do que a falar. Entender parece, então, ser o

ponto principal na aquisição da linguagem. Por outro lado,

concebemos a variação lingüística como sendo um fato marcante

da linguagem: há pessoas que dizem "tchia" e há outras que

dizem "tia", pessoas que dizem "baudji" e outras que dizem

"bardi".

Algumas crianças têm a marca da própria individualidade tão

forte, que começam a testar usos diferentes

<254>

da linguagem para falar (não para entender...). Acabam

produzindo regras muito consistentes e de aplicação geral,

modificando alguns aspectos do dialeto que estão aprendendo. E

curioso notar que as modificações são de cunho morfofonológico,

agindo especialmente sobre o aspecto sonoro. Por exemplo,

criam uma regra que ensurdece todas as consoantes oclusivas e

Page 429: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fricativas, mas não outros segmentos fonéticos, que continuam

sonoros. Essas crianças aca bam falando coisas como: "patata"

(BATATA), "póla" (130- LA), "katu" (GATO), "faka?' (VACA),

"foçefaipuçkautiçku?" (VOCÊ VAI BUSCAR O DISCO?). Outra

criança substitui todas as fricativas e oclusivas sonoras pelas

oclusivas surdas correspondentes:

"totêtaitutátumatólataraminh?" VOCÊ VAI BUSCAR UMA BOLA

PARA MIM?).

Essas crianças se fazem entender e, se a família entra neste

jogo, continuam falando desse jeito até saírem de casa e

começarem a perceber que as outras pessoas as ridicularizam.

Com o tempo, por causa da pressão social, essas crianças

deixam de falar assim. Mas pode acontecer de alguma criança

chegar até à escola falando desse modo. Por outro lado, quando

a pressão familiar é muito forte, algumas crianças ficam tão

preocupadas com a fala que acabam cristalizando esse modo de

falar, com medo de aprender algo diferente e com outros erros. É

o caso típico de pessoas gagas. A criança começa gaguejando

para passar da fala silabada que usa no início para uma fala num

ritmo acentual, típico da fala do adulto. Os erros ocasionais

produzem uma certa gagueira, que desaparece normalmente.

Mas, sob pressão psicológica muito forte, a criança pode

cristalizar a gagueira, em vez de eliminá-la.

Em todos esses casos, com muito tato, as famílias deveriam

Page 430: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

forçar as crianças a imitar os adultos, evitando, assim, esses

modos de falar estranhos. Todavia, não se deve criar um

problema maior do que existe. O tempo ajuda mais do que os

conselhos. Por isso, em vez de esconder a criança, o melhor é

expô-la à comunidade, deixá-la interagir com outras crianças,

receber críticas e até zombarias, porque, no convívio, esses

problemas se resolvem melhor e muito mais cedo. Se o professor

tiver alunos que se encaixam nesse caso, precisará agir com

muito cuidado, sabendo que o melhor remédio é a pressão social.

É por isso que as atividades sociais na escola, como os recreios e

as festas, são tão importantes, principalmente para as primeiras

séries. Convém observar também que alguns dos "defeitos" de

fala de

<255>

crianças não são encontrados em fala de adultos, como é o caso

de quem fala somente com oclusivas: "totê tétitáti?" (VOCÊ

QUER FICAR AQUI?).

Os fonoaudiólogos deveriam se dedicar apenas aos casos em que

há patologia física, ajudando as pessoas a melhorar o

desempenho verbal. Os problemas da escola, ela própria deveria

resolver. Se fôssemos usar os mesmos critérios de certas

pessoas para classificar algumas crianças como portadoras de

patologia, a partir da observação de como usam a fala e a

escrita, deveríamos considerar muitos adultos, que estão

Page 431: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprendendo línguas estrangeiras, como deficientes, porque

falam tudo errado, não conseguem aprender direito, etc.

Estariam no mesmo caso adultos que não conseguem "entender

direito" como lidar com computadores e com máquinas em geral,

ou não conseguem se virar direito em certos jogos de vídeo-

game. Os erros que cometem são tão primários quanto os das

crianças que estão aprendendo a ler e a escrever. Numa aula de

chinês para adultos falantes de português, iríamos encontrar

inúmeros adultos disortográficos e até com dificuldades de

controle mecânico fino, com problemas de lateralidade ao traçar

os caracteres, e assim por diante. Então, somos todos portadores

de patologias? Se não nos consideramos deficientes nessas

situações, por que achar que as crianças em situações idênticas

são deficientes? Não será um preconceito contra elas?

Isso não significa que as crianças não tenham mais nada a

aprender. Pelo contrário, a escola existe justamente para ensiná-

las o que ainda não sabem. O problema está em avaliar o que a

criança sabe e que precisa ser melhorado, o que precisa ser

incorporado como conhecimento novo, e o que precisa ser

deixado de lado, por ser um erro. Sua fala não precisa ser

melhorada porque o aluno já é falante de um dialeto do

português. Mas ele pode incorporar ao seu uso o de outros

dialetos, principalmente se não for falante da norma culta. E

inevitável que uma pessoa cometa erros quando está

Page 432: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprendendo a ler e a escrever, como também é certo que esses

erros precisam ser corrigidos com o tempo. O professor não deve

falar apenas dos erros, mas também do processo de

aprendizagem, salientando que os alunos podem se aventurar

com os conhecimentos que têm, sabendo, contudo, que nem tudo

sairá correto. Daí a necessidade de educar as dúvidas a respeito

do que se faz, para checar constantemente se o resultado obtido

está certo ou não.

<256>

O ERRO E A REFLEXÃO DO ALUNO

Os erros que as crianças cometem são fruto de uma decisão

errada que tomaram. Uma decisão é o resulta do prático de um

processo de reflexão sobre um determinado assunto. Assim, ao

tomar uma decisão, uma pessoa tem de optar entre várias

possibilidades. Através de um processo de reflexão, ela chega a

uma das alternativas, considerada a mais adequada. A decisão

tomada nem sempre corresponde a uma "verdade" esperada.

Quanto menos informações tiver o indivíduo, mais dificuldades

terá para acertar.

Em casos de dúvida, as pessoas começam a agir através de

tentativa-e-erro, fazendo o processo de reflexão funcionar mais

efetivamente na avaliação dos resultados, julgando a adequação

através de comparações e tomando decisões mais eficientes, que

Page 433: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

levam a um resultado já sabidamente conhecido como correto.

O método das cartilhas costuma avaliar apenas por

comparação. Confere-se com o original, e logo se vê se houve

acerto ou erro. Outro tipo de procedimento procura interpretar o

processo de reflexão individual que levou a pessoa a tomar

determinada decisão. No caso da cartilha, se o aluno errou,

pede-se a ele que faça uma nova tentativa. Talvez acerte. No

segundo caso, analisando o que o aluno pensou, pode-se

fornecer a ele novas informações para completar as que já tem

e, assim, ter melhores chances de tomar as decisões corretas.

Deve ser assim até que o aluno saiba tomar as decisões corretas

por si.

PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM DE LEITURA E ESCRITA

Vamos fazer algumas observações a respeito de certos

problemas de interpretação da escrita e da leitura que a escola

enfrenta no processo de alfabetização. Iremos estudar

especialmente os problemas de aprendizagem de leitura e de

escrita, através da produção de escrita espontânea pelas

crianças.

Apresentaremos uma série de casos que ilustram diferentes

tipos de erro relativos à escrita e à leitura, juntamente com os

comentários necessários para esclarecer as hipóteses que

levaram os alunos a cometer esses erros.

Page 434: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<257>

Quando a própria explicação das hipóteses das crianças não

deixar claro o caminho a seguir, serão apresentadas sugestões

para o professor ensinar o aluno a não errar e a melhorar seu

desempenho na alfabetização.

Os testes revelam o que as crianças pensam da escrita?

1. Interpretação semântica da palavra

Alguns psicólogos costumam fazer o seguinte teste:

mostram um litro de um líquido e o despejam numa jarra

estreita; depois, pegam um outro litro do mesmo líquido (ou o

conteúdo da jarra estreita) e despejam numa jarra larga. Então,

perguntam às pessoas se há a mesma quantidade de líquido na

jarra estreita e na jarra larga. Algumas pessoas, principalmente

as crianças, acham que há mais líquido na jarra estreita do que

na jarra larga, partindo da idéia de que quanto mais alto o

volume da água, mais água contém a jarra. Para a criança, a

jarra que está mais cheia na vertical é a que contém mais

líquido. Medir volume por outros meios não parece ser fácil.

Usando a idéia do realismo nominal, oriunda de experimentos

como o mencionado acima, segundo Emilia Ferreiro, alguns

psicólogos fizeram testes, mostrando as palavras FORMIGA e

BOI, na forma escrita, e pedindo para que a criança indicasse

qual delas era a palavra BOI e qual a palavra FORMIGA.

Page 435: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Verificaram que as crianças costumam indicar a palavra

FORMIGA como sendo BOI e vice-versa. Concluíram, então, que

as crianças têm uma tendência a julgar pelas aparências e não

pelo valor simbólico da representação lingüística.

Provavelmente, as crianças pensariam que o tamanho das

palavras devesse ser proporcional ao tamanho dos objetos que

elas representam.

Tenho minhas dúvidas a respeito dessa interpretação. Se, em

vez de mostrar as palavras escritas, pedíssemos para a criança

analisar sua fala, pronunciando as palavras BOI e FORMIGA,

para então dizer em que caso a palavra é maior, ou seja, leva

mais tempo para falar, certamente a resposta seria diferente.

Quem faz uma pergunta como: "Que palavra é maior: BOI ou

FORMIGA?" costuma pensar na forma escrita e se esquecer de

que a palavra tem também um significado. Aliás, as pessoas,

inclusive as crianças, guiam-se muito mais pela semântica do

que pela fonética, quando falam. Portanto,

<258>

do ponto de vista semântico, a palavra BOI pode perfeitamente

ser interpretada como sendo "maior" do que a palavra FORMIGA,

porque, no primeiro caso, o animal representado é maior.

Os dois tipos de experimento são armadilhas para as crianças

e, na verdade, nada provam. Poderíamos fazer outras perguntas

e descobrir que as crianças, de fato, sabem distinguir

Page 436: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

quantidades ou sabem responder corretamente. Por exemplo,

com relação à linguagem, se o experimento fosse conduzido da

seguinte maneira: pegam-se os dois cartões com as palavras BOI

e BORBOLETA, diz-se o que está escrito, mostram-se as letras, e

pergunta-se qual é a palavra que está escrita com mais letras. As

crianças, neste caso, respondem corretamente.

Se for perguntado apenas: "Qual é a palavra maior",

a criança julga pelo valor semântico que as palavras

têm e, nesse caso, tem toda a razão de dizer que a palavra BOI é

maior do que a palavra FORMIGA. O pesquisador está

preocupado com a escrita, e a criança, com a semântica.

Portanto, é falso dizer que as crianças não-alfabetizadas

fazem hipóteses erradas a respeito do tamanho das palavras. É o

psicólogo quem faz uma interpretação equivocada do fenômeno,

confundindo fala com escrita.

2. A figura como interpretador de texto escrito

Outro experimento, oriundo do trabalho de psicólogos,

consiste em pedir para uma criança não-alfabetizada ler um

livrinho de história e mostrar com o dedo o que está lendo. A

criança corre com o dedo o texto escrito, olha as figuras da

página e vai contando a história a seu modo. Depois, apresenta-

se à mesma criança um texto sem figura e pede-se para ela ler.

Ela diz que é impossível ler, porque não tem desenho. Daí, o

Page 437: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

psicólogo seguidor das idéias de Emília Ferreiro conclui que a

criança pensa que não se pode ler um texto sem figura, que a

figura é o interpretador de qualquer texto escrito.

Como se trata de uma criança que não sabe ler, o que ela pode

fazer numa situação como essa? Ela sabe que os textos escritos,

quando acompanhados de fotos ou desenhos, referem-se a essas

figuras. Como ela não sabe ler o texto, a única alternativa é

tentar dizer algo a respeito do texto, interpretando as figuras e

os desenhos. É uma saída inteligente, usada comumente pelos

especialistas em decifração.

<259>

Curiosamente, a prova de que a criança sabe muito bem que

escrita é diferente de figura, está justamente no fato de que ela

confessa não ser capaz de ler um texto sem desenho. Isto é,

sabe que ELA não pode ler porque é analfabeta. Mas isso não

impede que OUTRA PESSOA o faça. Se o pesquisador tornasse o

texto sem desenho e lesse, e perguntasse à criança se é possível

ALGUÉM ler um texto sem desenho, a criança certamente iria

concluir que é perfeitamente possível. Aliás, escreve-se

justamente para que alguém possa ler, e desenho não é letra,

caso contrário, porque se imprimiriam tantos livros sem figuras?

Na história da escrita há inúmeros casos de decifração de

escrita antiga que foram interpretados a partir de desenhos que

acompanhavam o texto. Nem por isso, os pesquisadores

Page 438: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

acreditavam que fosse preciso uma figura para ler o texto,

embora reconhecessem que isso poderia ajudar. A decifração das

inscrições do rochedo de Behistun é um exemplo. A escrita maia

é outro exemplo. Champollion sabia que no obelisco de Cleópatra

devia estar escrita a palavra Cleópatra.

3. Adivinhando palavras na leitura

Num outro tipo de experimento para testar o que as crianças

pensam da escrita e da leitura, mostra-se uma foto, por

exemplo, de um trator com dois homens conversando, e uma

legenda: "João emprestou o trator a José". O teste consiste em

fazer com que uma criança, que não sabe ler, indique onde está

escrita a palavra TRATOR, sem dar nenhuma pista para a

criança: ela deve descobrir por si e explicar a razão de sua

escolha (sic!). A criança tem, em geral, duas atitudes em casos

dessa natureza: diz que TRATOR é a primeira palavra escrita ou

aponta para a que tiver mais letras (nesse caso, a palavra

EMPRESTOU).

Obviamente, essa é uma brincadeira de adivinhar de muito

mau gosto: gostaria de fazer o mesmo com aquele pesquisador,

usando, porém, um texto em chinês ou mesmo em árabe, para

ver sua reação. A criança é constrangida pela obrigação de

responder e, para se ver livre do pesquisador, responde qualquer

coisa. A prova disso é que se o pesquisador disser que ela está

Page 439: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

errada, ela continua mostrando outras palavras, até satisfazer a

curiosidade do pesquisador. Ela tem consciência de que não sabe

ler, então, porque obrigá-la a fazer algo impossível?

DOBLHOFFER, 1957 e MELLA 1981.

<260>

As crianças não-alfabetizadas não ficam procurando associar

fatos da escrita, como tamanho e forma de palavras, baseando-

se em analogias com o mundo real. Se ela não faz isso quando

fala, por que deveria fazer com a escrita? Seu comportamento é

induzido pelo pesquisador para produzir determinado tipo de

resposta e, portanto, não serve de evidência para mostrar o que

de fato uma criança que não sabe ler pensa a respeito da escrita

e da leitura.

Por outro lado, esses equívocos experimentais propiciam

atividades pedagógicas nocivas ao processo de aprendizagem,

induzindo a criança a pensar coisas estranhas a respeito do

mundo da escrita e da leitura. Depois disso, algumas delas

começam a dar retorno, fazendo tudo segundo as expectativas

do pesquisador ou do professor, confundindo seu próprio

raciocínio.

4. Quantas letras formam uma palavra?

Algumas pessoas elaboraram testes perguntando quantas

letras seriam necessárias para se ler algo e descobriram que as

Page 440: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

crianças diziam que uma escrita deve ter no mínimo três letras,

que não podiam ser iguais.

Essa afirmação contradiz o fato de haver muitas crianças que

simulam espontaneamente a escrita de um texto e apresentam,

às vezes, uma enorme repetição da mesma letra. Por Outro lado,

sem dúvida alguma, parece muito razoável que as crianças

pensem que ler apenas uma letra não faz sentido, e ler letras

iguais não tem graça, mesmo porque na fala ninguém fica

repetindo o mesmo som três vezes seguidas.

5. Identificação de palavras

Algumas pessoas têm mostrado que as crianças se apegam mais

a nomes (substantivos e adjetivos) do que a verbos — e menos

ainda a outras categorias da morfologia —, quando tentam

identificar palavras ouvidas, apontando onde elas ocorrem na

escrita. Se a frase é: O TRATOR QUEBROU, as crianças julgam

mais importante achar primeiro a palavra TRATOR e não

QUEBROU, por exemplo. Se a frase é MARIA COMPROU UM BOLO

PARA A FESTA DE ANIVERSÁRIO, as crianças vão procurar as

palavras FESTA, BOLO, MARIA, e não COMPROU.

Essa escolha não depende de um comportamento

psicológico, mas lingüístico. O que a criança faz nada mais é do

que privilegiar o foco do enunciado, a idéia principal,

<261>

Page 441: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aquilo do que se fala, que mais interessa ao interlocutor. Nesses

casos, a escolha é um substantivo e não um verbo. Atrás da

resposta da criança há um uso pragmático da linguagem, não

uma análise gramatical.

6. Inventando palavras onde elas não existem

Diferente do teste anterior é aquele em que as crianças

inventam palavras para modificar o texto original apresentado,

nas primeiras tentativas de leitura. Diante de um enunciado

como MARIA COMPROU UM BOLO DE CHOCOLATE, a criança

conta uma história: "No aniversário da Maria tinha um bolo

muito gostoso".

Isso não significa que a criança ainda não seja capaz de juntar

as palavras para ler corretamente a frase. Pelo contrário, tal

leitura revela um leitor que já sabe ler e interpretar o que lê,

apropriando-se do texto e modificando-o de acordo com o

próprio desejo. Se o aluno tivesse lido algo corno: ONTEM

CHOVEU E INUNDOU A CIDADE, isso mostraria que ele não sabe

ler e está inventando.

O esforço de descoberta possibilitou a produção do texto

enunciado pela criança. As modificações representam sua

interpretação do texto original. A criança colocou-o num

contexto seu e disse o essencial dentro desse novo quadro. Esse

tipo de leitura é o que nós adultos fazemos. Quando lemos

Page 442: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

um romance, por exemplo, ou uma poesia, ficamos vagando no

nosso mundo de fantasia, inventando mil coisas paralelas ao

texto escrito. Como fomos educados pela escola, sabemos que

não podemos expressar nossos sentimentos nessas ocasiões,

porque nossa cultura exige que respeitemos o princípio da

literalidade na leitura. Assim, ao lermos em voz alta, devemos

pronunciar apenas as palavras escritas no texto, deixando

dentro de nós toda e qualquer interpretação que não seja a

reprodução do que a escrita representa literalmente.

Outras formas de descobrir o que as crianças acham da escrita

7. "Cachorro começa com FU"

Com muita razão, as crianças pensam que as palavras têm

sons e significados e que são usadas para se referirem ao mundo

interpretando a realidade... Se não soubessem disso, não

aprenderiam a falar. Segundo os lingüistas,

<262>

as pessoas, quando falam ou ouvem, guiam-se pelas idéias que

a linguagem transmite e só secundariamente analisam os sons e

as estruturas gramaticais. Na escola, porém, a atividade de

estudo da linguagem consiste basicamente em analisar os sons e

as estruturas gramaticais, deixando de lado por vezes o

conteúdo semântico das palavras.

Page 443: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Uma professora me contou, certa vez, que na época em que

estava sendo alfabetizada sua professora perguntou: "Cachorro

começa com quê?" Ela prontamente respondeu: "Com FU". Todos

riram e a professora a mandou sentar, sem nenhuma explicação.

Como diz o ditado popular: "Quem pergunta o que quer, ouve

o que não quer". A forma de perguntar é muito importante.

Muitos alunos, de todos os níveis escolares, são reprovados não

porque não saibam, mas porque não conseguem perceber que a

pergunta do professor é capciosa e precisa ser respondida

segundo as expectativas do professor, e não literalmente.

Quando a aluna disse que CACHORRO começava com FU, estava

pensando no animal cachorro, em suas partes e, para ela, era

natural que um cachorro começasse pelo FOCINHO. Porém, a

professora não disse, mas queria que os alunos entendessem a

sua pergunta da seguinte forma: 'A palavra cachorro começa

com que letra?"

Se uma professora perguntar: "Quem sabe uma palavrinha

que começa com o som de GATO?", muito provavelmente vai

ouvir de algum aluno, como resposta, a palavra MIAU. O

professor diz que está errado (sic!) e corrige falando, por

exemplo, GARFO (sic!). A professora está pensando na forma

escrita das palavras, e o aluno, nas idéias que o enunciado

transmite, mesmo porque ainda não sabe ou não pensa com

rapidez a forma escrita das palavras.

Page 444: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Atividades conduzidas dessa maneira podem levar alguns

alunos a não entenderem o que se faz na escola, criando

embaraços sérios para continuar acompanhando o que o

professor ensina e o que deve aprender. É um absurdo pensar

que o aluno que respondeu FU ou MIAU, nos casos discutidos

anteriormente, não consegue perceber sons semelhantes em

início de palavras.

Os professores alfabetizadores se deparam com uma

quantidade enorme de fatos curiosos a respeito do

comportamento das crianças, ao aprender a ler e a escrever.

Esse anedotário constitui um excelente material para uma

pesquisa interpretativa das hipóteses que as crianças levantam

ao adquirir a linguagem escrita. Em vez

<263>

de aplicar testes idiotas, com perguntas capciosas, por que não

interpretar diretamente o que acontece nas salas de aula

durante o processo de alfabetização?

8. Aprendendo sozinho por níveis ou por incorporação de

ensinamentos?

Alguns pesquisadores acreditam que, deixando a criança

exposta a atividades de escrita, elas vão por si mesmas fazendo

uma mudança conceitual cada vez mais avançada, passando por

níveis cada vez mais sofisticados de interpretação da escrita.

Page 445: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Para jsso, por exemplo, o professor fica durante um certo tempo

pedindo para os alunos escreverem nomes próprios ou dando

ditados de palavras isoladas (ou até pequenas histórias). Os

alunos escrevem como quiserem, orienta o professor.

Na prática, tem-se constatado que, nesse tipo de atividade,

aparece de tudo um pouco, não só com relação à classe como um

todo, mas também para um mesmo indivíduo. Não existe um

caminho certo e único para aprender. Mas é verdade que, ao

longo do tempo, pode-se perceber muito bem como os alunos

(apesar de estarem aparentemente livres e sozinhos) vão

incorporando pequenas informações a respeito da escrita e da

leitura. Isso acaba produzindo alguns fatos semelhantes entre

os alunos, razão pela qual alguns pesquisadores começaram a

atribuir a essas modificações uma classificação por níveis. Por

exemplo, Emília Ferreiro e Ana Teberosky propõem níveis como:

pré-silábico, silábico e alfabético. Não se pretende discutir aqui a

classificação científica, mas os fatos.

Quando um professor pede aos alunos, que não sabem ler, que

escrevam qualquer coisa, como os nomes dos colegas, alguns

põem-se a copiar o que vêem escrito. Copiam fazendo rabiscos,

imitando a escrita cursiva, tentando desenhar letras, etc. Os

alunos têm grande convicção de que se aprende copiando.

Mesmo agindo assim, os alunos estão pensando e, quando não

têm um modelo para copiar, apóiam-se em conhecimentos que

Page 446: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

podem extrair da realidade mais próxima ou simplesmente usam

os conhecimentos prévios que já adquiriram. Além de copiar,

as crianças esperam que alguém — o professor — explique o que

precisam saber para que a cópia não se torne uma atividade

puramente mecânica.

Nenhuma criança (ou pessoa) aprende como funciona o

sistema de escrita simplesmente copiando ou imitando. É preciso

muito mais. A razão disso é que, ainda hoje,

<264>

há vários sistemas de escrita que ainda não foram decifrados.

Aliás, uma das tentativas mais antigas de decifração de escrita

continua frustrada até hoje: a escrita maia. Outras escritas que

despertaram o interesse muito tempo depois, como a escrita

egípcia e a cuneiforme, foram decifradas com certa facilidade. O

que leva um sábio a decifrar uma escrita é a descoberta de como

ela representa a fala de uma determinada língua. Sabendo a

língua, fica mais fácil; do contrário, torna-se praticamente

impossível. A decifração exige comparações e a formulação de

regras com coerência e generalização. E esta é, sem dúvida, uma

boa maneira de alfabetizar alguém. Quando o sistema de escrita

é conhecido, isso pode ser feito em pouco tempo e com bons

resultados. É o que o professor deveria fazer em sala de aula.

Como o aluno conhece a língua, poderá facilmente entender as

regras de decifração. A partir de umas poucas idéias de como

Page 447: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

funcionam as relações entre letras e sons, poderá generalizar o

processo de entendimento e aprender por si. Porém, se não tiver

algumas explicações iniciais, ficará perdido durante um tempo

longo demais para as exigências da escola e da vida. Mina!, a

escola existe para ensinar e não como um lugar onde as crianças

descobrem tudo sozinhas.

Nota

Recentemente, têm aparecido tentativas de decifração da

escrita maia, cuja aceitação ainda não foi confirmada.

Portanto, deixar as crianças fazerem isso por si é perder tempo e

paciência. Por isso, induzir os alunos a percorrer um caminho

que passa pelos níveis de construção da escrita, propostos pela

psicogênese da língua escrita de Emilia Ferreiro, não faz sentido.

Por que uma criança passa do nível pré-silábico para o silábico?

Essa é uma pergunta fundamental. Ela não faz isso porque a

natureza humana a leva de um nível a outro automaticamente,

pelo simples fato de ter diante de si lápis e papel. A criança

começa a escrever rabiscando porque nem sequer lhe dão algo

que possa copiar, então só lhe resta pressupor que a escrita é

uma representação gráfica da fala, que pode ser feita de

inúmeras maneiras. Assim, apega-se à única idéia que tem: a

escrita é uma forma gráfica de representação da fala. Logo, faz

seus rabiscos, representando a fala. Como é que as formas

Page 448: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

gráficas representam a fala é algo que sobretudo ela gostaria de

saber, mas não sabe. A segunda idéia é a do caos do mundo da

escrita: escreve-se de muitas formas, portanto, nada mais

natural do que acrescentar mais uma...

A criança sente-se tão frustrada quanto o adulto e sabe que

escrever em todos os sentidos não pode ser o que ela fez. A

criança tem consciência de que não sabe

<265>

escrever, porque tem consciência de que não sabe ler... Então,

como ninguém a ensina a ler e a escrever, acaba procurando as

letras, porque sabe da sua existência; ela já as viu de muitas

formas. Com isso, passa a escrever grafando as letras que

consegue descobrir em algum lugar: alguns tentam imitar a

escrita cursiva e logo percebem que é uma forma muito

complicada de produção gráfica. Então, começam a usar letras

de fôrma maiúsculas (às vezes misturadas com minúsculas) para

escrever: agora, pelo menos, a produção gráfica da escrita é

mais fácil. O resultado é bem mais semelhante ao modelo.

Depois dessas tentativas de escrita aleatórias, a criança ouve

alguém dizendo que as letras representam os sons das palavras.

Isso parece algo muito interessante, pensa o aluno. Resta,

agora, descobrir como as letras representam os sons. Então,

surgem as famosas perguntas: "Que letra é esta? É a letra U de

URUBU", "Que letra é esta? É a letra B de BOLO", e assim por

Page 449: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

diante. Descoberta a técnica, o aluno põe-se a investigar os

casos que se lhe apresentam, ao tentar escrever uma palavra.

Por exemplo, quer escrever BOLO. Como fazer? Falar é fácil. E

preciso descobrir as letras, agora. A palavra BOLO pode ser

analisada em partes, observando-se a qualidade das vogais ou a

articulação das consoantes. Então, o aluno começa a analisar sua

fala, dizendo: B0000-LUUUU. E chega à conclusão de que BOLO

se escreve O U. Por outro lado, analisa os movimentos

articulatórios das consoantes: bobobobo lulululu, e escreve: B L.

Esse aluno não chegou a esses resultados por si, mas porque

alguém lhe deu uma informação preciosa: as letras representam

sons da fala, como U de URUBU, B de BOLO. Ora, se o aluno

aprende pelas informações que vai incorporando, e não por

simples e espontânea reflexão, por que, em vez de dar uma

informação tão reduzida, o professor já não vai ensinando de

maneira mais inteligente?

É incrível como algumas crianças com tão poucas informações

acabam escrevendo coisas como: C V L ou AA O para CAVALO, B

B LT ou O O EA para BORBOLETA. Essas escritas não são fruto de

uma interpretação por parte da criança, segundo a qual a escrita

representa sílabas por letras. A explicação é a que foi dada

acima. O curioso é que esses alunos já sabem a forma gráfica

das letras, o valor fonético que representam e até a forma

ortográfica das palavras. Eles escrevem letras corretas, de

Page 450: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

acordo com a ortografia. Falam "u" e escrevem O...

<266>

Em geral, escrevem apenas as vogais ou apenas as

consoantes, mas pode-se encontrar uma mistura, numa tentativa

de escrever o que foi identificado, de um modo ou de outro. Por

exemplo, é o caso do aluno que escreve: C M U para CAMELO. Ele

conhece o C ("kê"), o M ("mê"), mas não conhece o L (o "lê" de

LU). Porém, conhece o U do LU, e escreve C M U.

É evidente que o procedimento de descoberta usado pelo

aluno envolve uma relação entre letra e sílaba na fala. A

hipótese dele, porém, não é de que uma letra represente uma

sílaba, mas de que basta representar a sílaba por uma vogal ou

por uma consoante, ou seja, pela qualidade vocálica ou pela

articulação consonantal e, dessa forma, a escrita tem uma chave

de leitura bastante razoável. Essa hipótese, na verdade, é uma

das razões pelas quais a escrita semítica (egípcia, fenícia, árabe

clássico, hebraico clássico) representa apenas as consoantes e

não as vogais. As crianças fazem da mesma maneira e pelas

mesmas razões. Gelb tentou interpretar a escrita egípcia como

sendo silábica, mas seus argumentos não convenceram os

especialistas em sistemas de escrita. Uma escrita silábica típica

é a japonesa (katakaná, por exemplo), em que, para cada grupo

silábico composto de uma consoante mais uma vogal,

corresponde uma letra na escrita. Por exemplo, existe uma letra

Page 451: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

diferente para cada sílaba do tipo bá-bé-bi-bó-bu, o que as

crianças fazem quando escrevem CAVALO, usando apenas as

letras C V L ou A A O. Esse raciocínio não tem nada de

semelhante com o funcionamento de uma escrita como a

japonesa.

9. Explicitação da decifração na leitura

As crianças constroem hipóteses baseadas em dois pontos de

vista distintos: um é o do método a que são submetidas, outro é

o da decisão pessoal, baseada nos conhecimentos que possuem

e na argumentação para chegar ao resultado ou conclusão

pessoal.

O primeiro tipo de hipótese predomina quando o aluno é

alfabetizado pelo método das cartilhas. Embora ele venha

observando os fatos de leitura e de escrita há muito tempo e

tenha opiniões pessoais a respeito, na escola, prefere usar, como

referência principal para sua argumentação, os conhecimentos

relacionados ao processo de ensino que recebe. E o caso típico

do aluno que aprende seguindo o bá-bé-bi-bó-bu e, quando vai

ler, explicita em voz alta essa técnica, lendo, por

<267>

exemplo: 'A lê-a-lá, tê-a-tá, la-ta: a lata". Concluindo, lê

analisando as letras em famílias de sílabas, depois compondo as

partes da sílaba que descobriu e, finalmente, juntando as sílabas

Page 452: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

e formando a palavra.

Esse tipo de aluno encontrará enorme dificuldade em ler

corretamente grupos de consoantes ou quando encontrar as

chamadas "consoantes surdas". Assim, ao tentar ler uma palavra

como BRASIL, o aluno percorre o seguinte caminho: bê de

barriga, do bá-bé-bi bó-bu, rê de rato e do rá-ré--ri-ró-ru, A, o

esse do sá-sé si-só-su, o 1 e o lê do lá-lé-ii-ló-lu. Agora,

juntando: bê rê-a-çê.-i-lê = "berreaçeilê" (sic!?). Quando o

professor diz que está errado, o aluno logo percebe que não

juntou direito as letras e lê: "bê-rra-çi-lê" (sic!?). O professor

insiste em que está errado, e o aluno faz nova tentativa:

"berraçil" (sic!?). O professor perde a paciência, diz que está

escrito "Brasil". O aluno faz uma cara de derrotado e diz

baixinho "Brasil".

Quem quiser entender por que um aluno lê desse jeito, precisa

descobrir que idéias ele usa para ler. Nesse caso, é evidente que

o aluno segue o método do bá bé-bi-bó-bu, que o ajuda a ler

corretamente sílabas do tipo consoante mais vogal, mas se

atrapalha muito para descobrir como se lêem sílabas de outra

natureza.

Ao ler uma palavra como APTO, alguns alunos só conseguem

dizer "apítu" e não "á-pi-tu" ou "ap-tu". Isso acontece porque,

no método do bá-bé-bi-bó-bu, as famílias de letras (sílabas) são

sempre constituídas de uma consoante seguida de uma vogal.

Page 453: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Para resolver parte das dificuldades apresentadas pelo método,

as cartilhas passaram a apresentar também famílias com grupos

consonantais, como: brá-bré-bri-bró--bru. Essa lição pode

ajudar o aluno a ler mais facilmente uma palavra como BRASIL.

Mas as cartilhas não apresentam "famílias" de letras com sílabas

contendo consoantes mudas: ap-ep ip-op-up. Para um aluno ler

segundo o modelo, de acordo com o método do bá-bé-bi-bó-bu,

as cartilhas precisariam apresentar todas as combinações

possíveis de letras que representam uma sílaba. Isso, por outro

lado, tornaria a cartilha um livro extremamente longo e

complicado para as finalidades a que se propõe.

Quando se lê, é preciso usar os conhecimentos de decifração.

O que o aluno não está sabendo é que não se podem enunciar

em voz alta os procedimentos usados para se chegar à leitura, os

quais devem ser processados na cabeça, em silêncio. Depois de

descoberto o que está escrito, procede-se à leitura, em voz alta,

<268>

respeitando o princípio da literalidade. Criança que lê a palavra

HORA dizendo "agora", está claramente revelando a

interpretação da decifração do primeiro som pelo nome da letra:

"agá + ora agora". Às vezes, as crianças dizem "kê" lendo

palavras que começam com C + E ou I, e o professor não percebe

o porquê do erro do aluno, corrigindo-o sem explicar.

Esse procedimento muitas vezes cria impasses insuperáveis

Page 454: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

para alguns alunos, que acabam desistindo de ler. Tentam ler

uma palavra como CASA ou BOLA e não conseguem chegar a

uma conclusão sobre o que está escrito, porque interpretam

errado as primeiras letras e chegam a uma palavra que não

existe, o que os faz desanimar. A criança pensa: "çê-á esse-a

çeaéça". Ou então: "bê-ô-lê-á beôlêa". Se o professor corrige

dizendo "beôleá", é pior ainda.

Diante de casos como esses, o professor precisa analisar a

conduta do aluno e descobrir quais são as hipó teses que ele está

levantando para decifrar a leitura, a fim de indicar ao aluno o

que ele deve fazer para mudar. Não basta dizer o certo e mandar

a criança repetir: isso não a ajuda em nada. Ela quer e precisa de

uma explicação técnica adequada. É impressionante como os

professores de alfabetização, em geral, não sabem sequer

perceber a real situação de alguns alunos que apresentam essas

dificuldades de leitura. Em vez de ajudar o aluno, alguns

professores já mandam estas pobres crianças para classes

especiais, quando não para psicólogos, dizendo (injustamente)

que estão cansados de ensinar e nem assim esses alunos

aprendem (sic!).

Mesmo um aluno que lê corretamente e com certa fluência, na

alfabetização, pode estar pensando do mesmo modo que o aluno

do caso acima. O aluno que lê bem também passa por um longo e

tortuoso processo de decifração da escrita, mas faz isso com

Page 455: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

certa rapidez. Por outro lado, o aluno que se apegar demais ao

processo de decifração nunca conseguirá a fluência necessária

na leitura. Acabará sendo um leitor lento, quer com relação à

quantidade de material que lê, quer com relação à assimilação

dos conteúdos. Isso é fruto do método com que lhe ensinaram a

ler.

10. Leitura silenciosa acompanhada de articulações

Alunos que ficam mimicando as articulações dos sons

enquanto lêem em silêncio; que têm de ler em voz alta

<269>

para entender; ou que só entendem o que lêem em silêncio;

alunos que demoram demais para ler apresentam problemas de

leitura, com os quais o professor deve se preocupar.

A leitura fluente pode também ser ensinada e treinada e não

ficar somente a cargo dos alunos. O professor pode mostrar

como se lê, ler em grupos, reduzir o número de participantes

desses grupos até chegar a um aluno. Depois de muitas

repetições, os alunos se sentem mais familiarizados com o texto

e acabam lendo melhor. A leitura de improviso, por outro lado, é

sempre problemática e deve ser evitada.

11. Velocidade de leitura

A velocidade ideal de leitura é a aquela com que as pessoas

falam normalmente. Como alguns falam mais depressa do que

Page 456: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

outros, existe uma certa variação. Quanto mais se acelera a

leitura, mais difícil a reflexão sobre o que se está lendo,

tendendo-se para uma leitura mais literal. Não faz sentido ler um

romance ou um livro de poesia a todo vapor (as chamadas

leituras dinâmicas), porque o objetivo de uma obra literária não

é apenas saber o que o autor diz literalmente, mas saborear a

arte dessas obras.

PROBLEMAS DE ESCRITA ORIUNDOS DE DIFICULDADES COM AS

LETRAS

Quando repete um modelo, a criança está testando sua

capacidade de responder ao que lhe foi perguntado

simplesmente imitando. Quando procura fazer uma atividade de

leitura ou de escrita por iniciativa própria, a criança usa de sua

reflexão, baseada em seus conhecimentos, para tomar as

decisões que julgar melhor.

No primeiro caso, típico do método das cartilhas, é difícil saber

exatamente as razões daquilo que as crianças fazem ou deixam

de fazer, pois as exigências do modelo são mais fortes do que a

reflexão pessoal da criança. Por isso, é costumeiro que os alunos

variem muito: um dia escrevem certo uma palavra, já no outro

dia, errado, depois voltam a escrever certo e mais uma vez,

errado. Conseqüentemente, torna-se difícil para o método das

cartilhas trabalhar com alunos que não se

Page 457: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<270>

mantêm integralmente dentro do modelo, cometendo erros,

porque o método não considera as razões do erro da criança

para poder corrigi-los.

No segundo caso, através da produção de escrita espontânea,

é possível saber com bastante segurança as razões (hipóteses)

que levaram o aluno a tomar as decisões acerca da sua escrita e

leitura. Conhecendo essas razões, o professor pode mostrar e

discutir isso com ele, indicando a saída, ou o passo seguinte,

para não errar e levar adiante, de maneira cada vez mais sólida,

o processo de aprendizagem.

Apresentam-se, a seguir, alguns casos de erros de escrita, com

os comentários a respeito das hipóteses que levaram os alunos a

esses resultados.

1. Escrever é fazer uma forma gráfica para ser lida

Algumas crianças tentam escrever pela primeira vez quando

ainda estão brincando em casa. Outras vão ter essa chance

somente quando entrarem na escola. Crianças muito novas

fazem rabiscos e dizem que escreveram uma história. Depois,

transformam os rabiscos caóticos em rabiscos senados

(mostrando a linearidade da linguagem oral e escrita).

Finalmente, misturam rabiscos com algumas letras ou tentativas

mais próximas a traçados de letras.

Page 458: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Essas crianças produzem esses textos e durante um certo

tempo são capazes de ler. Ao fazerem isso, estão reconhecendo

que a finalidade da escrita é permitir a leitura, ou seja, o texto

gráfico representa a linguagem oral que pode ser recuperada

através da leitura. Enquanto estão conscientes do que fizeram,

são capazes de ler, mas em pouco tempo já não se lembram mais

do que fizeram, e aquela forma de escrita já não permite mais a

leitura. Isso pode trazer uma certa frustração, que deve ser

compensada com o ensino de que escrevemos de outra forma,

permitindo uma leitura permanente para quem souber como o

sistema funciona.

2. Assinatura e escrita

Um caso um pouco diferente do anterior é o daquela criança

que faz um rabisco parar escrever o próprio nome. Na vida, é

muito comum as pessoas assinarem o próprio nome fazendo

rabiscos. Essa também é uma forma de escrita e funciona bem

para o caso das assinaturas

<271>

porque, além de ser uma marca individual, pode dificultar a

decifração das letras do nome do assinante. Em vez de se

assustar quando algum aluno faz coisas semelhantes, o

professor deveria brincar de fazer assinaturas. Esse tipo de

atividade pode ser dada logo no início do ano. Os alunos podem

Page 459: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

entender que, para assinar documentos e cheques, as pessoas

nem precisam saber ler e escrever. Isso quer dizer, ainda, que o

sistema de escrita que a escola ensina tem outra função.

3. Letras em vez de rabiscos

A partir de uma discussão a respeito do modo como o aluno

escreveu seu nome, fazendo rabiscos, um professor pode

convencê-lo a escrever com letras. A explicação insiste no fato

de o nosso sistema de escrita ser constituído de letras, ou seja,

escrevemos com letras e não fazendo rabiscos. Diante de tal

explicação, um aluno pode escrever NEAPTASMLA em vez de

ANTÔNIO. Dessa maneira, o aluno está seguindo a explicação do

professor, escrevendo com letras, uma vez que ainda não se deu

conta de que estas são empregadas seguindo regras específicas

e não aleatoriamente.

Diante disso, o professor constata o que o aluno fez, diz que o

uso aleatório das letras não permite a leitura por outras pessoas

(atentar para a convencionalidade da escrita e seu uso social).

Alguns alunos não conseguem se livrar facilmente da idéia de

que "escrever com letras significa escrever com qualquer letra..:'

Para resolver isso, um bom exercício é trabalhar com pares

mínimos (exemplos: MATA/PATA/NATA/BATA/CATA/ LATA,

etc.).

Page 460: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

4. A forma gráfica das letras

Um problema comum encontrado especialmente entre alunos

alfabetizados pelo método das cartilhas relaciona-se à

interpretação da forma gráfica das letras cursivas. Como o

método concentra-se na escrita, deixando a decifração da leitura

de lado, alguns alunos têm dificuldades em reconhecer na escrita

cursiva as letras que, de fato, ocorrem na grafia das palavras.

Por exemplo, o aluno pode até saber que a cartilha apresenta a

palavra OBA e oba, com as letras B e b (que estranhamente, para

ele, aparecem traçadas de formas diferentes). Agora, quando o

professor escreve com letras cursivas, a coisa piora, porque o

aluno vê escrito ( e pensa que, nessa forma de escrita, as letras

são:

<272>

O + i + v + a, o que vai levá-lo a separar as sílabas da palavra

da seguinte maneira: Oi-va. Algumas letras se prestam mais do

que outras a esse tipo de confusão, como se mostra a seguir:

Modelo apresentado pelo professor:

Pato Arca Objeto

Interpretação do aluno:

JSATO CERCA OGETO

Letras problemáticas:

P a j

Como o aluno interpretou:

Page 461: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

p=i+s

A=C+e

bj = G

Esse tipo de engano é muito comum. Algumas das coisas

aparentemente sem sentido que alguns alunos escrevem devem-

se a esse tipo de dificuldade. Uma palavra como Antonio escrito

em letra cursiva só com o "a" maiúsculo, pode ser interpretada

pelo aluno da seguinte forma: CENTIERRIUE. Uma das razões

pelas quais se deve começar pela leitura e usar apenas as letras

de fôrma maiúsculas é evitar que o aluno cometa enganos dessa

natureza. Um bom exercício, nesses casos, é fazer transliteração,

ou seja, pedir ao aluno que escreva um mesmo texto ou palavra

em diferentes tipos de letra, como letras cursivas e de fôrma,

para se familiarizarem com a categorização gráfica das letras.

5. Escrita espelhada

Alunos que se põem a escrever antes de aprender as noções

básicas de leitura começam copiando. Como não entendem bem

como a categorização gráfica e funcional operam no sistema de

escrita, podem cometer vários enganos. Um deles é o da escrita

espelhada, a que já tivemos oportunidade de nos referir em

outros capítulos deste livro. O professor ensina que se deve

Page 462: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escrever da esquerda para a direita, assim o aluno começa a

copiar a palavra SAPO, escrevendo primeiro a letra S e não a

letra 0. Com isso, o professor pensa que deu uma boa regrinha

para seus alunos. Porém nem todos os alunos estão atentos à

seqüência das letras,

<273>

mas ao modo com que se deve escrevê-las. Então, quando um

aluno vai escrever a letra S, lembra-se da regrinha e escreve o S

da esquerda para a direita; o resto acompanha, resultando na

palavra espelhada. Algumas letras arredondadas prestam-se

mais a esse tipo de erro, como C e S e outras letras como Z e N.

O professor precisa dar uma explicação mais detalhada sobre a

direção da escrita e sua distribuição espacial.

6. Segmentação

Outra regrinha muito comum que os professores dão para

seus alunos é a de que observem a própria fala para escrever.

Uma das primeiras dificuldades que o aluno encontra, levando

em conta essa regrinha, é como segmentar o fluxo da fala em

palavras, como a escrita exige.

No início, parece haver uma tendência para as crianças

segmentarem a fala principalmente a partir de uma análise dos

elementos prosódicos, como entoação e ritmo, e menos a partir

de uma análise semântica dos itens lexicais. Por essa razão,

Page 463: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

surgem escritas como:

ERAUMAVEZ UMABELAPISESA CEMORAVA NUCAS TELO. Aos

poucos, os alunos vão descobrindo os itens lexicais, a partir da

análise semântica. Mas ainda restam muitos casos que só se

aprendem através da ortografia, sobretudo quando ocorrem

palavras gramaticais, como preposições, conjunções e

expressões adverbiais.

Na prática, os alunos têm dificuldades reais em situações em

que são solicitados a separar ACASA em A CASA. Quando

encontram a palavra ABACAXI, separam A BACAXI, pensando

que é algo semelhante a A CASA. A leitura individual e freqüente

é uma boa solução para ajudar os alunos a segmentarem as

palavras na escrita.

Às vezes, os alunos se apegam a algum elemento semântico,

segmentando erroneamente palavras, como no caso de VISITA,

que o aluno escreveu VI SITA (verbo ver), ou NEI COM PARASÃO

em vez de NEM COMPARAÇÃO. Veja, ainda, o exemplo: SER

MANO em vez de SER HUMANO: como o R e o U formam uma

sílaba só na fala, "çe-ru-mã-nu", o aluno supôs que não podia

dividir a sílaba ao meio, colocando uma parte em cada palavra.

7. A letra representa o som de seu próprio nome

Outra regrinha que os alunos costumam ouvir é que, no

próprio nome das letras, encontra-se o som básico que a letra

Page 464: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

representa (princípio acrofônico). Invertendo

<274>

os alunos formulam a regrinha: para escrever um som, basta

achar a letra em cujo nome ocorre aquele som que se quer

escrever. Ao aplicar isso, acabam escrevendo o seguinte: HRA

em vez de AGORA, CAMLO em vez de CAMELO, APARECU em vez

de APARECEU, LFATE em vez de ELEFANTE, LC em vez de HELICE,

TAPTE em vez de TAPETE, etc. O professor deverá chamar a

atenção para o fato de as sílabas serem constituídas de

consoantes e vogais, O princípio acrofônico refere-se apenas ao

primeiro elemento da sílaba e não à sílaba toda.

8. Escrevendo só vogais ou consoantes

Um caso um pouco diferente do anterior ocorre quando o

aluno escreve apenas as vogais ou as consoantes das palavras,

como em AAO ou CVL para CAVALO, PTC ou EEA para PETECA,

etc. Aqui o aluno escreve apenas um dos elementos da sílaba, de

acordo com a maneira como analisa a fala. Se prolonga as

sílabas, como em "caaaa-vaaaa-loooo", acaba salientando e

escrevendo as vogais. Se repete as sílabas, como em "cacacaca-

vavavava-lolololo", identifica como mais notável os movimentos

articulatórios, o que é representado na escrita pelas consoantes.

É muito curioso o fato de alguns alunos escreverem as letras

certas, como se conhecessem a ortografia das palavras.

Page 465: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Obviamente, não estão produzindo uma escrita silábica para as

letras. Simplesmente escrevem observando na própria fala o que

é mais evidente.

Mais raramente, encontram-se alunos que escrevem apenas a

primeira letra ou a primeira sílaba das palavras. O aluno faz isso

porque aprendeu o modelo do bá-bé-bi-bó-bu como forma de

escrita das palavras-chave. Se BAR RIGA tem o "bê", LATA tem o

"lê", então, registra OPAFNOLA, querendo dizer O PATO FOI NO

LAGO

9.0 bá-bé-bi-bó-bu nos ditados

O fato de alguns alunos escreverem no ditado palavras como

CP para CAPA, LT para LATA, MCC para MACACO, e ao mesmo

tempo escreverem no caderno as lições corretamente,

demonstra que eles escrevem seguindo as famílias de letras, que

são interpretadas a partir da observação da fala. Por exemplo:

la-ta; la-le-li lo-lu; ta, ta-te-ti-to-tu. Ele se lembra da letra da

palavra chave: lá-lé-li-ló-lu = letra L de LARANJA (palavra-

chave). Então acaba concluindo que basta escrever a letra

<275>

da lição referente à família de letras da sílaba que ele observou

na fala. Em outras palavras, observando a palavra LATA, ele

encontrou a primeira sílaba la e a família de letras a que essa

sílaba pertence, que é o lá-lé-li ló-lu. Então, lembrou-se da

Page 466: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

lição da laranja e chegou à letra L, que era o objeto de estudo

dessa lição. Note que no método do bá-bé-bi-bó-bu, apresenta-

se uma letra que vem explicada através da palavra-chave e,

dessa forma, introduz-se o estudo da família de letras, que será

usada para ensinar o aluno a decifrar a escrita para ler e montar

palavras para escrever. Portanto, quando o aluno, no ditado,

escreve LT, está simplesmente seguindo o modelo que lhe foi

ensinado.

10. Formas morfológicas diferentes

Os alunos que falam dialetos muito diferentes da norma culta

lidam com dificuldades extras para acertar a grafia das palavras,

porque podem encontrar na própria fala formas morfológicas

diferentes para algumas palavras. É o caso de alunos que

escrevem TRABESSEIRO em vez de TRAVESSEIRO, BARBOLETA

em vez de BORBOLETA, DRENTO em vez de DENTRO, PRANTA em

vez de PLANTA, TONEAI em vez de ESTOU NEM AÍ, etc.

Aqui também a leitura individual e assídua irá ajudar mais do

que qualquer explicação do professor. Para ser objetivo, basta

dizer ao aluno a forma ortográfica dessas palavras.

11. Resultados pela metade

Ao escreverem, além das dificuldades para encontrar, a partir

de seu dialeto, a forma escrita das palavras, algumas crianças

Page 467: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

defrontam-se, principalmente no início, com a dificuldade de

isolar e caracterizar foneticamente as palavras. Isso se torna

ainda mais complicado quando, analisando a própria fala, têm de

fazer isso aos pedaços, o que resulta em palavras como BRIZA

em vez de PRINCESA, PIONHO em vez de PIOLHO, PISICRE em

vez de BICICLETA.

Esses alunos sabem algumas coisas importantes a respeito da

leitura e escrita, mas não sabem colocar em prática seus

conhecimentos. Eles precisam fazer exercícios de comparação

entre o que escrevem e o que deveriam escrever, com uma

análise detalhada, passo a passo, do começo ao fim. Outro

exercício importante é analisar a decifração de leitura, ou seja, o

aluno deve

<276>

explicitar todos os mecanismos envolvidos no processo de

decifração de palavras escritas. Aqui não basta que o aluno

simplesmente leia o que está escrito; ele precisa ter claros os

mecanismos envolvidos nessa tarefa. Esse procedimento deveria

abranger quer as palavras escritas corretamente, quer as que ele

costuma escrever.

CAGLIARI, 1985b. L

12. Escrevendo foneticamente

Talvez os erros mais comuns dos textos espontâneos dos

Page 468: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alunos na alfabetização refiram-se ao uso da escrita como se

fosse uma transcrição fonética. Os seguintes exemplos ilustram

bem como os alunos são hábeis na transcrição fonética, valendo-

se dos recursos da escrita alfabética:

PATIO PATINHO

IGO = ÍNDIO

RAPAIS = RAPAZ

BARDJE = BALDE

MECADIO MERCADINHO

CIEASIORA = QUEM É A SENHORA

JALICOTEI JÁ LHE CONTEI

CAMANH COM A MÃE

Esse tipo de erro corrige-se com o tempo e muita leitura. Aos

poucos, o professor chama a atenção dos alunos, sem insistir

muito. Se alguma forma errada tornar-se recorrente, o professor

deverá voltar a explicar o que é ortografia e transcrição fonética.

13. Troca de letras

Outro tipo de erro freqüente é o uso indevido de letras. Como

uma letra pode representar muitos sons, e um som pode ser

representado por letras diferentes, isso obriga o aluno a fazer

escolhas a todo instante. Acertará algumas e errará outras, até

que, confrontando o que fez com o estabelecido pela ortografia,

Page 469: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

comece a grafar as palavras corretamente. A sua dificuldade é

maior no início. Com o tempo restam apenas aquelas dúvidas

ortográficas mais comuns. Alguns exemplos:

SEBOLA = CEBOLA

CANORO = CACHORRO

QAXA = CASA

OGE = HOJE

EXTENDER = ESTENDER

ESTENÇÃO = EXTENSÃO

DICI = DISSE

LICHO LIXO

<277>

Um bom procedimento é fazer uma lista das palavras de uso

comum que os alunos estão errando mais, para que eles

decorem a ortografia ou consultem a lista enquanto não

memorizam.

14. Hipercorreção

Os casos de hipercorreção ocorrem quando o aluno exagera

na aplicação de uma regra, usando-a para contextos não

permitidos. Esses fatos são menos comuns, mas existem. Por

exemplo, o professor diz para o aluno que escreveu DICI que, às

vezes, o que se fala com "i" será escrito com E. Então, o aluno

escreve MEDECO em vez de MÉDICO. Outro exemplo: o aluno

Page 470: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

quer escrever TATU mas registra TATO, em analogia com

BATO/"batu" (o professor havia explicado que se falava "u",

mas se escrevia O).

15. Surdas ou sonoras?

Um caso que perturba os professores é o de alunos que

trocam consoantes oclusivas ou fricativas sonoras pelas

correspondentes surdas, na escrita. Assim, escrevem FACA,

PATATA, POLA, CORILA em vez de VACA, BATATA, BOLA,

GORILA.

Se o aluno fala como escreve, a saída mais imediata é ensinar

que a escrita que respeita a ortografia não é uma transcrição

fonética. Assim como há pessoas que falam "tchia" e escrevem

TIA, do mesmo modo quem fala "póla" pode aprender a escrever

BOLA. Em casos em que ocorrem ambigüidades na fala, como no

exemplo de "faka", além da explicação acima, o aluno pode,

ainda, guiar-se pela semântica: quando está pensando no

animal, a escrita é VACA; e quando está pensando na

ferramenta, utensílio, a escrita é FACA.

Se o aluno fala certo, mas escreve errado, pode ser um reflexo

de estar agindo de acordo com a orientação do professor:

escrever observando atentamente os sons da fala. Como escreve

sussurrando as palavras, percebe que, na sua fala (sussurrada),

o som que pretende escrever é surdo e não sonoro. Nesse caso,

Page 471: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o professor pode mostrar ao aluno que o que ele escreveu não

corresponde ao que ele fala e que as variações fonéticas das

palavras são neutralizadas pela ortografia.

Esses casos não revelam que o aluno tem deficiência

auditiva nem de atenção: é uma questão de como ele lida com as

informações lingüísticas. Tanto isso é verdade

<278>

que esses alunos não têm problemas de confusão entre sons

surdos e sonoros por razões de déficit nem ensurdecem todos os

sons das palavras que escrevem. A confusão se estabelece

apenas com as consoantes oclusivas e fricativas. Elas se prestam

mais a esse tipo de erro porque dispõem de pares mínimos cujo

traço distintivo é a sonoridade. Lembrar, porém, que outros

segmentos fonéticos são sonoros na fala, como as vogais, as

nasais, as laterais. Os RR podem ocorrer na fala de maneira

sonora ou surda, e ninguém erra a escrita dos RR por causa da

sonoridade. Essa oposição de sonoridade não cria pares

mínimos, mas apenas variantes.

A confusão que alguns alunos fazem envolve o sistema de

escrita e sua forma de representação, e não falha de

discriminação auditiva. Quando dou exemplos de palavras que se

falam com RR surdos e sonoros em português, solicitando dos

professores que identifiquem em quais delas ocorre RR sonoro

ou surdo, eles ficam perplexos porque nunca souberam que

Page 472: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

podia haver RR surdos e sonoros. Mas, nem por isso, se

consideram portadores de deficiências auditivas, incapazes de

discriminar sons surdos de sonoros. (Na pronúncia comum de

muitas pessoas, numa palavra como BARRIGA, encontramos RR

sonoro, e numa palavra como RATO, encontramos RR surdo...)

16. Um pouco por vez

Os alunos costumam levar à risca o que o professor diz. Na

alfabetização, por se tratar de crianças, é muito comum o

professor "enfeitar" o que diz, ou dizer por partes, dando uma

determinada informação técnica. Isso ajuda o aluno a progredir,

um pouco, mas pode levá-lo a cometer erros. O professor deve

levar em conta o progresso do aluno e não se desesperar quando

não escreve tudo correto da primeira vez. Por exemplo, o

professor explica que a letra H é um coringa que, no meio de

palavras, serve para modificar o valor fonético da letra que vem

imediatamente antes. Assim C com H dá "chê", L com H dá "lhê",

N com H dá "nhê". Por um lapso, o professor esqueceu-se de

dizer que o H ocorre somente com as letras C, L e N. Então, o

aluno, que já tinha errado, escrevendo ÍNDIO com IGO, porque

não tinha encontrado no alfabeto a letra que representa o som

"djê", passa a escrever com H depois do D: IDHO, seguindo a

última regra dada pelo professor.

<279>

Page 473: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

17. Mistura de informações

Nos primeiros ditados, alguns alunos se perdem entre o que o

professor fala, o que ouvem e o que conseguem escrever no

tempo devido, produzindo às vezes resultados surpreendentes.

Por exemplo, o professor diz: "Todos quietos? Pronto? Vou ditar.

Pa-paaaiii. Pa... Joãozinho, fique quieto no seu lugar! Pap... Se

vocês não ficarem quietos, vão errar. Assim. Papai. Paaa-iii.

Vamos lá, minha gente! Mais rápido! Papai... etc:' Um aluno

muito atento procura repetir o que o professor dita e tenta

escrever o que lhe parece mais fácil primeiro. Assim, escreve

AAI, depois acrescenta mais um pedaço — AAIPA. Em seguida,

para escrever a palavra ASSIM registra ACM. Volta à palavra

anterior repetida pelo professor e acrescenta: AAIPAI ACM. Com

a identificação de mais alguns sons, seu texto fica: AAIPAIPAPA

ACM e, após o último esforço, temos o seguinte: AAIPAIPAPAI

ACM. Como o aluno não tem tempo de rever o que fez,

precisando escrever logo a palavra seguinte que o professor

passou a ditar, o que sobra no seu trabalho é algo

surpreendente, não por causa do erro, mas em conseqüência do

método sob o qual ele trabalha.

Tais erros são tão mal aceitos pelos professores, que os

alunos que os cometem sofrem discriminação e não raramente

acabam em classes especiais ou em clínicas de fonoaudiólogos.

Page 474: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

18. Só o esforço não adianta

Quando algumas crianças estão escrevendo, nem sempre

sabem solucionar dúvidas e, como não podem resolvê-las com o

professor ou consultando livros ou outros recursos, acabam

escrevendo palavras somente com as letras que descobriram.

Assim, encontramos produções de escrita como as que se

seguem: SCOR, por SOCORRO, SATUX por SANDUÍCHE,

DONAIMEA por DONA ESMERALDA, etc. Esses alunos escrevem o

que conseguem no momento. Com o tempo e com um trabalho

assíduo de escrita e de leitura, acabam escrevendo tudo

corretamente.

19. Erros não corrigidos

Algumas crianças não corrigem uma letra escrita errada e

escrevem logo em seguida a letra certa, resultando daí uma

grafia estranha. Por exemplo, ao escrever IDADE, tendo feito o

"d", notou que ficou parecido

<280>

com "a" (cursivo). Então, faz um outro "d" com o traço vertical

bem longo e continua escrevendo, sem tirar o lápis do papel

(porque é uma escrita cursiva), resultando algo como i Outro

exemplo, o aluno quer escrever CASTELO e começa por CAT Em

vez de apagar o T para escrever antes o S, ele emenda tudo sem

Page 475: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

correção, resultando: CATSELO. Inversões desse tipo são muito

comuns. Por distração, até adultos cometem, às vezes, erros de

supressão ou de acréscimo de letras.

20. Medo de escrever

Mais raramente algum aluno, que sabe escrever umas poucas

palavras, de repente, tomado por um pânico muito grande,

começa a escrever coisas muito estranhas. O medo de errar faz o

aluno errar mais ainda e, nesses casos, seus erros têm pouca

lógica. Exemplificando: A TIA DO FABIO FIO UM APTAPTAMAM P

XJOQ E de estranhar que um aluno que escreva "A TIA DO

FÁBIO" registre ARANHA CARANGUEJEIRA usando as letras

APTAPTAMAM P XJOO. O que ele fez foi apenas preencher o

espaço com letras para mostrar que escreveu algo, que depois

leria corretamente para o professor, explicando que se tratava

de uma aranha preta.

21. Letras maiúsculas

O aparecimento de letras maiúsculas no meio de palavras às

vezes tem a ver com o conhecimento da grafia das letras que os

alunos têm. Como têm certeza do traçado da letra na forma

maiúscula, e têm dúvidas sobre como deve ser o traçado na

forma minúscula ou cursiva, acabam escrevendo: "cachorro",

"apachonada", etc.

Page 476: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

22. Sinais de pontuação

Além das letras, a escrita tem marcas e sinais de pontuação.

No começo, o professor não deve enfoca-los, chamando a

atenção dos alunos somente depois que tiverem uma certa

habilidade para ler e escrever e já estiverem produzindo textos

espontâneos. Erros dessa natureza não devem preocupar um

professor alfabetizador.

23. Letra feia

Alunos que têm uma letra muito feia, principalmente aqueles

que traçam de maneira a tornar a decifração extremamente

difícil, podem até achar que escreveram

<281>

corretamente certas palavras, mas quem lê (o professor) acaba

concluindo que o aluno escreveu errado. Cuidar da letra evita

muitos aborrecimentos aos usuários da escrita, e a escola

precisa ver na letra feia também um erro a ser corrigido.

ERROS NA ESTRUTURAÇÃO

DOS TEXTOS

1. Variação lingüística

Como as pessoas usam a linguagem oral todos os dias, estão

acostumadas a ouvir pessoas falando dos mais variados modos.

Page 477: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Por isso, os professores são mais complacentes com a linguagem

oral de seus alunos do que com a linguagem escrita. Na

alfabetização, costuma ser mais evidente a presença de dialetos

regionais e estigmatizados pela sociedade, na fala de muitos

alunos, obrigando o professor a tratar com mais atenção da

linguagem oral do que professores de outras séries.

De modo geral, o que mais chama a atenção na fala desses

alunos são exatamente as marcas estigmatizadas dos seus

dialetos. Nesse caso, incluem-se três tipos de erros mais

comuns. Erro causado pela forma lexical diferente que certas

palavras têm nesses dialetos, como:

"drentu", "fumu", "arriba", "pobrema", etc. Erro causa do pela

pronúncia estabelecida para certos elementos fonéticos, como:

"bardji", "çértu" (com R retroflexo), e erros oriundos da má

formação de concordância, como: "nóis vai", "uzómíveiu",

"askazakaiu".

É sempre necessária uma boa explicação sobre a questão da

variação lingüística e da norma culta.

2. Uso de pronomes

Um tipo de erro que muitos professores corrigem é o uso dos

pronomes retos em lugar dos oblíquos na função de objeto

direto. Assim: "eu vi ele", "ela viu eu", "Maria achou nós", etc. A

norma culta do português procura evitar esse tipo de construção.

Page 478: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Alguns escritores chegaram a usá-la em algumas circunstâncias

muito específicas, para dar um tom coloquial à fala de

personagens ou obter efeitos estilísticos, O professor

alfabetizador deve explicar o caso aos seus alunos e não se

preocupar se eles continuarem com esse modo de falar. De vez

em quando, entretanto, convém que o

<282>

professor volte a chamar a atenção dos alunos, fazendo ver que

na linguagem escrita, de modo especial, esse tipo de construção

precisa ser evitado.

3. Sintaxe

Do ponto de vista da norma culta, há alguns erros de

construção sintática muito comuns na fala de algumas crianças,

especialmente de falantes de dialetos estigmatizados. Por

exemplo, é freqüente o uso indevido do sujeito expresso por

pronome pessoal em repetição ao indicado já por um pronome

relativo, sujeito da oração, como em: "Era uma vez um gato que

ele saiu de casa e foi caçar ratos", "Eu fui na casa da minha vó

que ela mora em Cascadura".

Outra construção inadequada de acordo com a norma culta é o

uso de "onde", sobretudo em lugar de pronomes e de

conjunções, como por exemplo "que", "em que", etc., em frases

como: 'A notícia onde apareceu o crime", "Ele falou uma piada

Page 479: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

onde o papagaio morreu afogado", "Tudo estava perdido, onde

eu deduzo que havia muita corrupção". O professor alfabetizador

deve mostrar o certo, mas não insistir. Esse tipo de erro só se

corrige depois de muita leitura de bons autores. Por tanto, ele

deixará de se preocupar tanto com isso, esperando que os

professores das séries mais adiantadas tratem do problema de

maneira mais especifica.

4. Repetição

Alguns problemas aparecem tipicamente em textos orais e

escritos e devem ser objeto da atenção do professor, no sentido

de ajudar seus alunos, desde cedo, a melhorarem seus textos.

Mais uma vez, é preciso insistir em que alguns erros não serão

corrigidos na alfabetização e, por isso mesmo, o professor não

precisará se preocupar muito com eles. Mas é bom ir sempre

chamando a atenção do aluno quando o professor achar

conveniente.

Alguns alunos dizem "né?!" ao final de cada enunciado ou

apresentam cacoetes lingüísticos, como "ééé..:', marcando todas

as pausas que fazem. Os alunos em geral não transportam esse

tipo de problema para a escrita. Todavia, há algumas repetições

exageradas e desnecessárias que aparecem tanto nos textos

orais quanto nos escritos. Por exemplo, o aluno que escreve a

todo instante palavras como: "daí", "aí", "depois". O professor

Page 480: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pode pedir para o aluno melhorar seu texto, evitando a repetição

dessas palavras.

<283>

Alguns professores, sobretudo de séries mais adiantadas, têm

a mania de considerar errada toda repetição de palavras

(geralmente substantivos ou pronomes pessoais) que ocorra

proximamente. A repetição, às vezes, deixa o texto mais claro e

de mais fácil compreensão. A repetição pode também ser

desnecessária e, nesses casos, cabe ao professor analisar e

discutir a questão com seus alunos. Num texto em que aparece:

"O policial pegou o carro e ele saiu correndo na avenida", o uso

do pronome "ele" pode trazer mais ênfase à narrativa, e sua

supressão pode deixar o texto mais pasteurizado ou com menos

vida. Note que quem usa "ele", em frases como essa, costuma

colocar nessa palavra o foco semântico, representado pelo

acento frasal. Por outro lado, um texto como: "O mecânico

chegou em casa. O mecânico chama-se Toninho. Ele viu o carro.

Ele falou: o carro está com a bomba quebrada. O carro assim não

pega.. mostra que o aluno faz seu texto preocupado demais com

a boa formação da frase que a escola ensina, ou seja, que o

aluno deve começar sempre com o sujeito da oração. O professor

pode mostrar que há outros recursos para deixar o texto melhor,

variando a estratégia de construção das frases.

Page 481: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

5. Frases soltas — coerência

Alunos que aprendem que um texto é um conjunto de frases,

acabam produzindo textos semelhantes aos das cartilhas. Veja

este exemplo:

O xale é de Xaxá.

O pato nada no lago.

O pato é belo.

Xaxá é a vovó.

Esse tipo de texto precisa ser evitado, pedindo-se para o aluno

escrever histórias espontâneas. Desse modo, ele se vê preso à

necessidade de seguir uma idéia através de várias frases,

acabando por compor um texto mais próximo do seu modo de

falar com as pessoas. O texto acima só aparece como exercício

na escola, não na vida real, e reflete um modelo muito típico de

cartilha, no qual o aluno foi alfabetizado.

Os lingüistas dizem que um texto precisa ter "coerência", ou

seja, cada assunto precisa ser tratado de maneira "lógica" e

numa seqüência que acrescenta a cada instante uma informação

a mais, completando o que foi dito antes, como quem monta um

quebra-cabeça,

<284>

no qual todas as peças vão se encaixando naturalmente. No

exemplo acima, nem se sabe por que alguém diria aquele texto

Page 482: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

daquele jeito. Não tem propósito aparente. Explicar por que esse

tipo de texto não está correto requer um estudo maior da

coerência textual. Se o professor adotar outra estratégia,

levando seus alunos a produzirem textos espontâneos, esse tipo

de

problema quase não aparece e, quando vem, não requer

explicações mais detalhadas.

6. Coesão

Outro problema típico de textos é a coesão, que pode ser

exemplificada pelo uso de elementos anafóricos e dêiticos.

Elementos anafóricos são palavras que se referem a outras já

mencionadas antes num texto. Por exemplo, os pronomes

servem para fazer uma referência a um nome dito antes, por isso

não se pode come çar um texto dizendo: ELE COMPROU UM

CACHORRO. PEDRO FICOU FELIZ. Porém, se o texto fosse:

PEDRO COMPROU UM CACHORRO. ELE FICOU FELIZ, o elemento

anafórico ELE, agora, tem um antecedente claro e bem-definido

no texto. Alguns alunos fazem, às vezes, confusão com os

elementos anafóricos, desestruturando o texto. Veja o exemplo,

a seguir: O padeiro queria fazer um pão gigante e foi pedir ajuda

ao João Pão Doce Ele pegou um saco de farinha e fermento que

ele tinha e jogou água depois foi mostrar para o dono que a

massa estava pronta para fazer o pão gigante.

Page 483: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Na segunda linha, o sujeito de FOI é o PADEIRO. O pronome

ELE na terceira linha fica sem antecedente claro, podendo se

referir ao PADEIRO ou a JOÃO PÃO DOCE. Esse é um típico

problema de coesão. O pronome ELE da linha 4 continua com o

problema de indefinição, causado em parte pela indefinição do

ELE anterior e, assim, todos os verbos, cujos sujeitos estão

ocultos, como JOGOU e FOI MOSTRAR.

7. Caligrafia

Finalmente, o professor deve avaliar nos textos dos alunos a

caligrafia, o layout, a forma de apresentação estética, a limpeza

e o uso apropriado das letras maiúsculas e minúsculas. Esse

cuidado com os aspectos externos do texto devem ser apontados

logo no início.

<285>

Todavia, não se deve supervalorizar por se tratar de um texto de

um principiante. É importante que o professor deixe os alunos

produzirem seus primeiros textos sem essa preocupação.

Portanto, o professor não irá questionar esses aspectos, embora

fale sobre eles com os alunos. Depois, quando os alunos já

estiverem escrevendo com certa fluência, por exemplo, no início

do segundo semestre, esses aspectos do texto deverão começar

a ser exigidos pelo professor. Na maioria das vezes, tais

problemas se resolvem quando o aluno passa a limpo seu

Page 484: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

trabalho. Textos que vão ser expostos, enviados para alguém ler

ou integrar livrinhos precisam necessariamente de um cuidado

especial com a forma externa de apresentação.

No início do processo de alfabetização, as crianças vão

apresentar problemas de "clareza" na escrita por causa da

dificuldade em escrever traçando bem as letras. O professor

deve ficar muito atento aos possíveis obstáculos à aprendizagem

devidos ao fato de algumas crianças interpretarem

erroneamente o que elas próprias escreveram. Tem-se notado

que algumas crianças que não progridem apresentam um

traçado das letras muito "desfigurado". Treinar uma produção

gráfica melhorando o traçado das letras é importante para que

alguns desses alunos voltem a pensar corretamente a respeito

do processo de letramento.

<286>

11 – Ditado e copia

UMA ESTRATÉGIA LINGÜÍSTICA

CHAMADA DITADO

< CAGLIARI, 1990.

O ditado, na verdade, é uma atividade lingüística muito

comum em certas situações sociais, razão talvez pela qual se

tornou do agrado especial dos professores alfabetizadores. Tudo

Page 485: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

o que é ouvido é memorizado por certo tempo e depois

esquecido. Quando se quer guardar uma informação, escreve-se.

Quando se quer que outra pessoa guarde uma informação nossa,

ditamos o que ela precisa escrever. Quando se tomam notas

numa conversa de telefone, por exemplo, em grande parte trata-

se de um ditado: alguém passa informações que são ditadas, às

vezes, até à moda da escola, com a pessoa silabando o que diz

ou usando referências acrofônicas. Em algumas profissões,

obviamente, a prática do ditado é intensa, como nos escritórios.

Nessa prática, constata-se também que é muito comum as

pessoas se encontrarem em situações nas quais não sabem como

escrever determinadas palavras, ou até mesmo entender o que

foi dito, fazendo confusões fonéticas e semânticas. Nessas

circunstâncias, as pessoas checam seus conhecimentos e suas

habilidades lingüísticas, especialmente perceptivo-auditivas,

controlando o que escrevem.

Na escola, certas aulas expositivas são espécies de ditado, e

as anotações que os alunos fazem são uma espécie de cópia.

Ditado e cópia são atividades interdependentes. O ditado leva

quem escreve a fazer uma espécie de cópia do que ouve, e a

cópia exige que o copista faça um ditado para si próprio, antes

de escrever. O professor fala como quem dita aos alunos, e quem

não faz anotações dificilmente se lembra, no final do ano, do

conteúdo da matéria de todas as aulas.

Page 486: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Pela experiência de cada um, podemos ver que há vários tipos

de ditado: alguns apegam-se mais ao literal, como as

informações passadas por telefone, outros reproduzem apenas

as idéias principais, como as anotações feitas numa aula.

A apresentação de modelos de fala e a reprodução desses

modelos no processo de aquisição da linguagem também são

estratégias lingüísticas à semelhança de ditado e cópia,

realizados apenas no plano da oralidade. A mãe ou o adulto dita

palavras, expressões ou frases para a criança repetir, e à medida

que o resultado

<288>

se torna mais satisfatório, a mãe vai constatando que a criança

está aprendendo a falar cada vez mais e melhor.

Esse quadro geral, certamente, é o que tem levado muitos

professores alfabetizadores a apostar no ditado como forma de

aprendizagem. Os professores acreditam que o ditado serve para

transmitir informações úteis, testar as dificuldades de realização

de escrita, avaliar o desempenho, revelando os conhecimentos já

dominados a respeito da escrita, além de ser uma prática que

constrange os alunos, obrigando-os a estudar. Nesse último

sentido, o ditado é uma prática que envolve mistério — não se

sabe o que o professor vai ditar —, gerando ansiedade. Embora

pouco recomendado, esse sentimento é, de fato, largamente

manipulado pela escola. Portanto, vê-se que o ditado é uma

Page 487: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

prática que possui todos os ingredientes de que a escola gosta.

Tipos de ditado

Quanto aos objetivos que se pretende alcançar, os ditados

podem servir para avaliar o aluno ou para que seja cumprida

uma tarefa de cópia de anotações ou de informações úteis.

Do ponto de vista da maneira como são feitos, os ditados

podem ser fonéticos ou semânticos, se a preocupação de quem

dita é fazer com que seu interlocutor anote as letras das

palavras ou simplesmente as idéias.

Muitas vezes, algumas formas de ditado servem apenas para

avaliar se o aluno sabe ou não escrever certas palavras. Quando

o ditado envolve o conhecimento ortográfico, em geral,

enquadra-se nesse caso. Esse é o tipo mais comum de ditado na

alfabetização. O professor ensina uma lição do bá-bé-bi-bó-bu,

na qual o aluno aprende a desmontar e a montar palavras e,

depois, o professor vai testar se o aluno já dominou o que foi

ensinado, ditando-lhe as palavras já vistas. Se o aluno já

estudou o tá-té-ti-tó-tu e o lá-lé-li-ló-lu, certamente deverá

saber escrever palavras como LATA, LOTA, LUTO, TOLO, TELA,

etc.

Esse método não leva em conta que o aluno pode ter outras

estratégias para escrever e lidar com a ortografia. Para esse

método, os alunos simplesmente seguem o modelo apresentado,

Page 488: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

desmontando e montando palavras em sílabas (estudadas como

famílias de letras). Se o aluno erra, é porque não se concentra,

não presta

<289>

atenção no que o professor diz, não estuda, não aprende ou, até

mesmo, porque tem dificuldades mentais, neurológicas ou

fonoaudiológicas.

Entretanto, as crianças estão acostumadas a usar a

linguagem priorizando a semântica das palavras e a usar

palavras em frases e não a segmentar a fala em sílabas e a

representar as palavras por letras (sem nenhum sentido lexical).

Essa é uma das razões pelas quais alguns alunos estranham

enormemente a prática de ditados (e de ensino através do bá-

bé-bi-bó-bu). O fato de o professor avaliar justamente essas

letrinhas das palavras incomoda ainda mais algumas crianças.

Quando se comparam os resultados obtidos na escrita livre das

crianças com os dos ditados tradicionais, percebem-se logo as

diferentes atitudes que as crianças têm diante da linguagem

nessas duas atividades. Os próprios erros são outros. Nos

ditados, não é raro encontrar erros absurdos sem razão

aparente; ao passo que, nos textos livres, quase todos os erros

têm explicações muito convincentes relacionadas ao processo de

reflexão que levou o aluno a escrever de determinado jeito.

Page 489: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Ditados para acertar a ortografia

A maioria dos professores está muito convencida da eficácia

dos ditados. Acham que além de avaliar, servem de reforço para

a aprendizagem. Curiosamente, esses mesmos professores

consideram que o aluno não deve escrever nada errado, para não

fixar o erro (sic!).

Para conciliar a avaliação com o ensino no ditado, esses

professores desenvolveram técnicas especiais de ditar, de modo

a dar todas as pistas fonéticas para o aluno saber que letra deve

escrever. É o caso do professor que dita a palavra BALDE

pronunciando o L como se fosse o som L de LATA, quando

deveria pronunciar U, pensando que se ele pronunciasse

naturalmente o U, o aluno não escreveria da maneira correta.

Ora, se o objetivo do professor é esse, seria melhor que

ensinasse os nomes das letras e fizesse os ditados dizendo os

nomes das letras. Mas, nesse caso, onde ficariam a ansiedade e o

mistério? Os alunos precisam acertar, mas precisam dar margem

para o professor não dar sempre e para todos unicamente a nota

máxima...

Tais ditados são realizados foneticamente, ou seja, o

professor fala e o aluno escreve. O modo como o professor fala,

como vimos, pode variar. Uns falam um dialeto

<290>

que a escola inventou para essa ocasião: o professor ensina aos

Page 490: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alunos como associar certas letras a certas articulações e

"mímicas fonéticas" e, na hora do ditado, serve-se dessas regras

para ditar. Outros professores procuram ditar as palavras

falando mais naturalmente, embora quase silabando as palavras.

Quando os alunos estão escrevendo, não é raro o professor

ficar repetindo palavras ou mesmo pedaços de palavras, supondo

que assim facilita o trabalho dos alunos. Em alguns casos, dado o

esforço de concentração do aluno para analisar o que ouve e

associar ao que já sabe, como o ditado ocorre com bases

fonéticas, certos alunos se confundem e escrevem coisas

absurdas. Por exemplo, o professor quer ditar a palavra

CASINHA. Começa falando-a normalmente. Depois, dita

pronunciando as sílabas isoladas. O aluno escreve CASI e pára,

porque fica pensando: CASA se escreve com S. FLORZINHA se

escreve com Z. E CASINHA... é com S ou Z? Nesse momento, o

professor já está repetindo sílabas: CA, CA. O aluno pensa que

está atrasado e escreve de novo CA. Quando presta atenção de

novo no professor, este já está silabando NHA, NHA, e o aluno

escreve o NHA junto com o CA. O resultado é: CASIZICANHA.

Finalmente, o professor volta a ditar a palavra inteira CASINHA e

o aluno constata que fez tudo errado e começa a apagar. Porém,

o professor passa para a palavra seguinte, e o aluno já não sabe

se corrige a palavra anterior ou se começa a escrever a palavra

nova.

Page 491: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Ditados no dia-a-dia

A sociedade reflete em sua cultura procedimentos escolares.

Assim, nota-se hoje que, quando alguém fala algo que o

interlocutor não entendeu, é comum as pessoas ditarem as

palavras silabando. Por exemplo: MARECHAL DE-O-DO-RO, com

DÊ, para que o interlocutor não confunda com TEODORO. Esse

procedimento, sem dúvida, vem do método do bá-bé-bi-bó-bu,

próprio das cartilhas.

Outro modo ainda vigente na sociedade é dizer as letras

acompanhadas de palavras-chave, aplicando-se, nesses casos, o

princípio acrofônico (melhor seria dizer acrográfico). Resumindo,

a primeira letra da palavra-chave, que se supõe de conhecimento

fácil, é a letra que se pretende salientar na palavra em dúvida.

Assim: DEODORO com D de DADO, e não TEODORO com T de

TATU. Outros procedimentos podem ser observados,

<291>

provenientes de outras estratégias de alfabetização, como:

DEODORO com DEEDÊ, Ó, DEODÓ, REORU. No Brasil, é raro as

pessoas soletrarem, dizendo o nome das letras das palavras. Na

cultura inglesa, isso é muito comum, e os falantes de inglês

estranham que estrangeiros encontrem dificuldade em saber de

que palavra se trata, quando eles os ajudam, soletrando. Todas

essas estratégias para lidar com as palavras vêm dos métodos

Page 492: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de alfabetização e, sobretudo, da maneira como as escolas fazem

ditados.

Ditado mudo

Alguns professores chamam de ditado mudo uma atividade

que consiste em pedir para o aluno escrever o nome do que vê

numa figura ou desenho. Por exemplo, desenha-se um pato, uma

galinha, uma laranja, etc. e o aluno tem de escrever os

respectivos nomes. Na verdade, essa atividade não é um ditado,

mas uma forma de induzir o aluno a escrever determinada

palavra (daí a semelhança com os ditados fonéticos). Poder-se

já, talvez, chamar esses ditados de ditados semânticos, uma vez

que se apresenta ao aluno uma idéia para que ele encontre a

palavra correspondente.

O tipo de erro que costuma ocorrer aqui também é diferente.

Além dos tradicionais erros de ortografia, podem ocorrer erros

de interpretação das figuras. O professor desenhou uma laranja,

e o aluno escreve BOLA. O professor diz que é fruta e o aluno

escreve MELÃO. O professor desenha uma unha (com dedo

cortado) e o aluno escreve MAXUQATO, com uma caligrafia que

leva o professor a achar que ele escreve qualquer letra para

qualquer palavra.

Anotações

Page 493: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Finalmente, existe toda uma arte na maneira de fazer

anotações quando se ouve alguém falando, por exemplo, numa

aula ou numa palestra. A escola deixa que cada um se vire como

pode, e é o que os alunos acabam fazendo. Seria interessante

que a escola orientasse os alunos nesse sentido também. O

professor pode passar sua experiência aos alunos, discutindo

com eles como se fazem essas anotações, que são na verdade

tipos de ditado sem o compromisso da cópia literal de tudo o que

se ouve. Alguns alunos chegam à universidade e não sabem

tomar notas: uns escrevem demais, outros de menos; uns

copiam só questões secundárias,

<292>

outros anotam modificando o que ouvem e interpretando

erroneamente o que foi dito. Esses alunos ainda têm a coragem

de dizer que o professor ditou a matéria errada. Seria

interessante que o professor, desde a alfabetização, fosse

ensinando como fazer anotações. O professor pode fazer uma

breve palestra que os alunos deverão acompanhar e anotar.

Feito isso, passa-se a discutir o que cada um anotou, o que está

a mais ou está faltando, o que é mais importante, o que é

secundário, etc. A escola precisa cuidar não só do conteúdo,

como da maneira como se estuda, das coisas que os alunos

precisam fazer para estudar na escola e sozinhos em casa.

Alguns alunos têm como único modelo da tarefa de estudar o

Page 494: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que acontece nas salas de aula, e o que encontram aí, algumas

vezes, não é um bom exemplo.

Ditado e ortografia

Existe uma falsa idéia segundo a qual as letras das palavras

representam uma transcrição fonética e que a ortografia

estabelecida representa a pronúncia do dialeto padrão (ou

norma culta). Assim, quando o aluno escreve certo, o professor

pensa que ele está dominando a norma culta e aprendendo

corretamente as relações entre letras e sons. Como se viu

anteriormente, esse tipo de asserção é um equivoco. A

complexidade das relações entre letras e sons advém do fato de

as palavras terem uma forma gráfica fixa e os falantes terem

pronúncias diferentes nos diferentes dialetos. Escrever

respeitando a ortografia pode ser uma maneira de o aluno ficar

atento a formas típicas do dialeto padrão, mas não é uma

garantia disso. Pode servir para o aluno desconfiar que sua

pronúncia com R retroflexo em palavras como BALDE está longe

da pronúncia da norma culta, uma vez que se escreve com L. Mas

o que dizer de uma palavra como PORTA? O uso do R retroflexo

aqui não é detectado pela ortografia. A confusão aumenta

quando o aluno percebe que BALDE fica "baudji", mas PORTA

não pode ser dita "póuta". A partir daí, ele não sabe mais quando

escrever L e quando escrever R.

Page 495: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

É muito difícil sustentar a afirmação de que os alunos aprendem

a escrever fazendo ditados. Os ditados tradicionais fonéticos não

ensinam nada e servem simplesmente como uma brincadeira (de

mau gosto). Esses ditados exigem que o aluno escreva

corretamente as palavras. Ora, se o aluno não souber a

ortografia de uma palavra, ou tiver dúvidas, como irá resolver

isso

<293>

num ditado? O aluno que tem dúvida se CASA se escreve com S

ou com Z está num beco sem saída. Ele pode tentar escrever e

ver qual das formas lhe agrada mais... Todavia, será que essa é a

melhor maneira de resolver uma dúvida ortográfica? Isso faz

com que os alunos "chutem" a resposta, escrevendo do jeito que

acham mais provável. Em questão de ortografia, ou se está certo

ou errado. Não há o que discutir. A maneira correta de resolver é

perguntando a quem sabe ou procurando num dicionário ou

livro.

Ditado e transcrição fonética

Os foneticistas costumam fazer ditados para treinar as

pessoas nas transcrições fonéticas. Esses ditados são, de fato,

formas de ensinar a fazer transcrição fonética, porque o aprendiz

precisa pôr em prática o exercício de análise perceptual do que

ouve. Servem, ainda, para aplicação das normas dos alfabetos

Page 496: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fonéticos de transcrição de pronúncias. Não envolvem nada de

ortografia; são formas predeterminadas para pronúncia e grafia

das palavras. Os foneticistas gostam de trabalhar com palavras

inventadas ou com palavras de línguas desconhecidas do

aprendiz, para tirar toda influência da escrita (leia-se ortografia)

sobre o exercício. Quando se faz esse tipo de exercício com

dados da língua materna, as dificuldades geralmente crescem,

porque os alunos estão acostumados a lidar somente com a

ortografia tradicionalmente ensinada na escola.

Uma utilidade interessante dos ditados fonéticos na escola

seria ensinar a transcrição fonética. Os alunos poderiam

estabelecer um valor fonético único para as letras (e dígrafos) e

passariam a escrever ditados para registrar o mais fielmente

possível a fala do professor ou a dos colegas escolhidos para

ditar, usando diferentes dialetos. Nesse caso, todo som de "i"

seria representado por i e somente por i, todo som de "çê" seria

representado por Ç e somente por Ç — em vez de S ou SS. Seriam

escritos somente os sons realmente falados, do modo como

fossem pronunciados, sem qualquer preocupação com a

ortografia. Feito esse tipo de exercício, o professor pode pedir

para os alunos escreverem logo abaixo uma versão do ditado,

agora passando todas as palavras para suas formas ortográficas

correspondentes. Exercícios assim têm a vantagem de ensinar ao

aluno que transcrição fonética não é ortografia, que ele pode

Page 497: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

observar os sons da fala independentemente da forma

ortográfica das palavras. Essa consciência ajuda

<294>

o aluno a lidar melhor com as dúvidas ortográficas e mostra que

não adianta a simples observação da fala, por mais cuidadosa

que seja, para saber ortografia.

Ditado e avaliação

Na escola, algumas vezes, são feitos ditados apenas para

controlar a disciplina, castigar a classe ou simplesmente ocupar

um tempo ocioso, que o professor não sabe como aproveitar. Tal

atitude é tão absurda que nem merece comentários.

Na alfabetização, a prática comum de ditados tem como

finalidade real avaliar o desempenho dos alunos para constatar

se já dominaram o que foi ensinado. Dados os problemas e as

dificuldades apresentados acima, fica claro que o ditado não é

uma boa forma de avaliação, mesmo para alunos que são

alfabetizados através do bá-bé-bi-b&bu. Na verdade, os ditados

são usados para dar notas. É sempre um item indispensável nas

provas e testes. Alguns professores contam os erros e calculam a

nota ou o conceito. Como a escola não consegue se livrar da

nota, tampouco consegue se livrar dos ditados.

Um professor mais bem-humorado pode usar os ditados como

uma forma de jogo: os meninos ditam para as meninas e vice-

Page 498: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

versa, para saber quem escreve mais palavras corretamente.

Pode-se até fazer um campeonato. Nesses casos, como o

enfoque muda, o significado da atividade também muda. Aquele

ditado fonético que só serve para avaliar se o aluno já dominou a

lição é lamentável, inútil e deveria ser totalmente abolido da

prática escolar. Entretanto, brincar de fazer ditado pode ser uma

atividade interessante. Nesse caso, o objetivo não é ensinar

ortografia, nem avaliar a lição anterior, ou dar uma nota num

teste, mas despertar nos alunos o interesse pelas atividades da

escola, pelos estudos e tornar a aula mais alegre e animada.

O ditado e o método das cartilhas

Como vimos anteriormente, o ditado não é necessariamente

uma estratégia do método das cartilhas, mas sem dúvida

representa bem como funciona na prática o ensino do bá-bé-bi-

bó-bu.

Não é preciso lembrar aqui como acontece um ditado numa

sala de alfabetização. O mínimo que se pode dizer é que se trata

de uma cena patética e em grande parte ridícula. Pelas razões

expostas, conclui-se que o

<295>

melhor a fazer com relação aos ditados fonéticos na

alfabetização é aboli-los. Não só não fazem falta, como isso

ajudaria a eliminar vícios pedagógicos e comportamentos

Page 499: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

inadequados perante a linguagem.

Na prática, alguns professores acham que conseguem, através

dos ditados, saber se um aluno aprendeu ou não, se está

progredindo ou não. Por exemplo, se um aluno escreve LT, CPA,

MACC, em vez de LATA, CAPA, MACACO, isso mostra que ele não

aprendeu direito a lição, que não sabe desmontar e montar

palavras com as famílias das letras, guiando-se pela palavra-

chave. Ora, pode estar acontecendo justamente o contrário: o

aluno entendeu do seu jeito o que o professor ensinou do jeito

dele. Essa questão é tão óbvia que o professor, diante desses

casos, não sabe como tirar o aluno do impasse. Volta a explicar

tudo de novo, direitinho, e o aluno volta a fazer tudo de novo, do

mesmo jeito.

O resultado do ditado demonstra o que o método produz: o

aluno acha que a escrita, em vez de ter um alfabeto (que se

esqueceram de lhe ensinar), é composta de famílias de letras,

cujos chefes são as letras comandadas pela explicação da

palavra-chave (ou seja, o B de BARRIGA ou BEBÊ). Pega-se uma

palavra, que é analisada em seus componentes (sílabas), e acha-

se a letra correspondente. Assim, "lata" se decompõe em LA +

TA; LA pertence ao lá-lé-li-ló-lu da família do L e TA pertence ao

tá-té-ti-tó-tu da família do T. E agora, como se escreve "lata"?

Conhecendo as famílias de letras, o aluno pensa que está aí o

contexto onde vai achar a letra para escrever. E escreve LT Mas,

Page 500: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

então, por que o aluno escreve MACC para MACACO e não apenas

MCC? Isso mostra como o aluno, de fato, não está interessado

(não é uma hipótese guia) em escrever só pelas consoantes ou

pelas vogais. Ele escreve as consoantes porque o método do bá-

bé-bi-bó-bu, como vimos, o induz a isso. Por outro lado, através

de exercícios de montar e desmontar palavras, já viu que, além

das consoantes, existem as vogais, sobretudo sílabas terminadas

com a vogal A e, aos poucos, vai arriscando escrever também as

vogais, principalmente o A.

Os professores acostumados com ditados detectam os erros

dos alunos, porém raramente sabem interpretá-los. Quando o

fazem, comumente atêm-se a receitas preestabelecidas. Não são

capazes de fazer um trabalho atento de análise de todos os

fatores envolvidos. Para o método das cartilhas, o ditado é uma

das poucas ocasiões em que o aluno pode revelar seu erro...

Outros processos

<296>

de alfabetização deixam o aluno agir mais livremente e lidar

mais conscientemente com o erro, para se autocorrigir. Nesses

casos, o ditado não faz sentido, e o acompanhamento do

desenvolvimento do aluno é feito através de outras atividades,

especialmente da produção de textos espontâneos e livres.

Conseqüências dos ditados na alfabetização

Page 501: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Os ditados a que nos referimos anteriormente ocorrem como

atividades quase exclusivas da alfabetização. Outras formas de

ditado acompanham a vida lingüística das pessoas, mas

infelizmente têm recebido pouca atenção da escola. Entretanto,

o ditado tradicional é uma prática que deixa marcas dentro e

fora da escola, não só do ponto de vista do que se faz na escola,

como das conseqüências da avaliação. Alunos que erram nos

ditados são considerados menos inteligentes, mais levianos, e

classificados como deficientes mentais, neurológicos,

psicológicos, auditivos e articulatórios, recebendo a conseqüente

reprovação no final do ano pelo acúmulo de notas baixas obtidas

nos ditados. Isso mostra que, na prática, os professores não

lidam com os ditados apenas para avaliar se os alunos já

dominaram ou não a lição em estudo, mas também para reprova-

los, fazer remanejamentos, punir com cópias alunos

indisciplinados, etc.

Alguns alunos se acostumam tanto com ditados que

estranham quando o professor deixa de fazê-los em séries mais

adiantadas. Outros não suportam de jeito nenhum que um

professor dite alguma coisa para eles copiarem, porque pensam

que ditado é sempre uma forma de puni-los. De todas as

atividades da escola na alfabetização, o ditado é a mais

problemática e de conseqüências indesejáveis, porque realizada

de maneira inadequada e inconveniente.

Page 502: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Além dos aspectos negativos já apontados, pedagogicamente

falando, os ditados, juntamente com outras atividades muito do

gosto do método das cartilhas, induzem os alunos a concepções

estranhas a respeito do funcionamento da linguagem oral e

escrita. O dialeto inventado pelo professor na esperança (vã) de

tornar a ortografia um espelho do dialeto padrão, a fala silabada,

a destruição da semântica das palavras, a redução da linguagem

a listas de palavras desconexas, etc. são algumas das

conseqüências indesejáveis dos ditados. A linguagem vive nos

textos, e os ditados vão justamente

<297>

contra essa noção básica da linguagem. É claro que seria

possível fazer ditados de textos. Mesmo assim, a maneira como o

ditado lida com a linguagem reduz o texto a um amontoado de

palavras.

Quando e como fazer ditados

Os comentários anteriores já provaram que de modo geral é

preferível abolir os ditados da prática da alfabetização. Vimos

também que se pode fazer um campeonato com ditados, quer

com equipes de alunos, quer com indivíduos. Alguns professores

fazem ditados dizendo palavras que querem ver escritas e,

então, eles mesmos as escrevem na lousa. Os alunos, nesse

caso, apenas copiam do quadro-negro.

Page 503: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Escrever o que se dita com a intenção de avaliar o

desempenho dos alunos é sempre indesejável, mas fazer ditados

de textos interessantes para os alunos guardarem pode ser uma

prática saudável. Na alfabetização, essa prática tem o

inconveniente de apresentar muitas dificuldades com relação à

ortografia. Os alunos acabam errando demais, e o professor e o

aluno terão um trabalho a mais corrigindo. Nesses casos, a

melhor solução é a simples cópia.

Os ditados mudos e outras formas semelhantes de induzir os

alunos a escreverem são aconselháveis. Devem ser apenas

ocasionais para não limitar a escrita a palavras ou frases

extraídas de figuras apenas.

Uma prática que deve começar desde a alfabetização é o

ensino de formas de anotar o que se ouve. O professor pode

brincar de jornalista: alguns alunos irão dar entrevistas e outros

vão tomar nota. Depois, invertem-se os papéis. Feita a atividade,

procede-se a uma discussão geral e, depois, à análise com

comentários sobre cada caso.

Além das finalidades, o professor deve ficar atento à forma

como devem ser realizados os ditados. Se o ditado se insere num

contexto natural de uso da linguagem, como no ato de fazer

anotações ou cópia de informações, as pessoas que falam e que

escrevem devem usar a linguagem oral e escrita de maneira

natural. Modificar a pronúncia para ditar é justamente o que não

Page 504: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

se deve fazer. Para esclarecer como se escreve uma palavra, o

melhor é dizer quais as letras corretas que devem aparecer no

contexto que gerou a dúvida ou, se for uma simples falta de

compreensão, repetir o que se disse de maneira mais lenta. Ditar

<298>

silabando todas as palavras é ridículo e, de certo modo, um

procedimento que ofende a quem escreve.

Em suma, nem toda atividade de ditado é ruim: depende de

como é feita, sobretudo das finalidades de sua realização e de

um uso natural da linguagem.

CÓPIA

A cópia na Antiguidade

A cópia é o método mais antigo de aprendizagem da escrita e

da leitura. Inúmeros documentos mostram que, na Antiguidade,

as pessoas aprendiam a ler e a escrever fazendo cópias de textos

de obras famosas. Assim, além de aprender como o sistema de

escrita funcionava, os aprendizes tomavam contato direto com

os textos mais importantes. No Museu do Louvre, no Museu

Britânico e em outros, encontram-se trabalhos de cópia, como

exercícios típicos para aprendizes da atividade de escriba, quer

na Mesopotâmia, quer no Egito ou mesmo na Grécia e em Roma.

Essa prática permaneceu por muito tempo até que, com o

advento dos estudos de alfabetização nas escolas, a

Page 505: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprendizagem da leitura e da escrita tomou novos rumos.

Já dizia um provérbio latino: "Quem escreve lê duas vezes". O

aprendiz que faz uma cópia precisa refletir sobre o texto escrito

que ele reproduz, precisa tomar algumas decisões sobre como

vai proceder para copiar e, finalmente, comparar o que fez com o

original.

A cópia funciona como uma estratégia da aprendizagem da

leitura e da escrita, mas não é a única nem a principal. A cópia é

útil quando associada às demais explicações que o aprendiz

precisa receber de quem conhece como o sistema de escrita

funciona. Na Antiguidade, o aprendiz recebia a tarefa de copiar

uma frase de Homero, por exemplo. Ele tinha diante de si, numa

tábua, o alfabeto grego. Sabia que as letras tinham nomes que

permitiam decifrar a leitura. Como falante de grego, ia copiando

letra por letra e procurando os sons correspondentes até montar

as palavras, que podia reconhecer quer a partir das relações

entre letras e sons, quer pelo contexto, ou simplesmente porque

tinha memorizado a frase que lhe fora dada como exercício.

<299>

À medida que ia fazendo mais e mais exercícios, aprendia

como decifrar o que copiava e, portanto, desenvolvia a

habilidade da leitura, objetivo principal da tarefa de cópia. O ato

mecânico de reprodução do texto do exercício era considerado

secundário, ou seja, não se copiava, nesses casos, para guardar

Page 506: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

um documento, como iria acontecer mais tarde com muita

freqüência com os escribas.

Cópia e aprendizagem do sistema de escrita

Pelo envolvimento com a escrita que a cópia promove, muitos

professores pensam que é um bom começo deixar as crianças

copiarem as palavras que encontram nas situações cotidianas.

Ao proceder assim, a criança toma iniciativas, faz perguntas para

si própria e propõe soluções para seus problemas.

Os resultados alcançados são evidências muito preciosas para

indicar ao professor o que o aluno sabe e o que não sabe a

respeito da leitura e escrita. Esse tipo de atividade, usada logo

no início, induz o aluno a comparar coisas iguais e coisas

diferentes, a juntar informações, a deduzir, pelo contexto,

porque ocorre uma letra assim ou de outro modo. Embora a

criança, por si só, não consiga decifrar o sistema de escrita, pode

aprender a refletir sobre ele e certamente aprenderá coisas.

Portanto, o simples ato de se copiar um rótulo, uma palavra que

encontrou escrita em objetos, paredes, livros, etc. traz

informações sobre o sistema de escrita e obriga a criança a

refletir e a levantar hipóteses enquanto vê, copia e avalia o

resultado obtido. Isso é importante, e o professor deve

aproveitar esse tipo de atividade como estratégia de ensino.

Alguns professores consideram que a cópia é um simples

Page 507: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

exercício mecânico e que o aluno pode ficar copiando durante

muito tempo sem se alfabetizar. Isso é verdade e pode

acontecer, se o professor transformar a cópia numa tarefa que

se realiza mecanicamente. Escrever uma palavra ou frases, e

mandar o aluno copiar pura e simplesmente, ocasiona esse tipo

de problema. O professor precisa conversar com os alunos e

dizer a eles que, na tarefa de copiar, vão procurar descobrir que

letras copiaram, vão precisar saber o que está escrito, com que

letra começa a palavra, que letra vem depois, que som tem

determinada letra naquela palavra, etc., ou seja, a cópia

precisará despertar a curiosidade do aluno e predispô-lo a uma

análise de como as letras são e de quais sons existem nas

palavras copiadas.

<300>

Se o professor começar dando oportunidade para os seus

alunos copiarem palavras que encontram nos ambientes onde

vivem e perguntarem tudo o que quiserem saber sobre o que

estão fazendo, a cópia é uma ótima estratégia de ensino. Se o

professor manda o aluno copiar algo como tarefa de escola para

reproduzir um modelo, poderá ter como reação um ato mecânico,

que não ajuda em nada no processo de alfabetização. Por isso, é

preciso compreender bem a natureza da atividade de cópia e

tomar cuidados especiais na sua realização.

Page 508: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A cópia e a descoberta do mundo da escrita

Algumas crianças, muito antes de se encontrarem em

situação de aprendizagem na sala de aula, brincam não só de

imitar os adultos que escrevem, como também de copiar

material escrito. Ao fazer isso, explicitam as idéias que têm a

respeito do mundo da escrita, apesar de suas limitações para

usar o lápis. Em geral, fazem o que chamamos de rabiscos.

Algumas crianças vão mais longe e reproduzem com bastante

semelhança formas gráficas da escrita, letras e até palavras.

Seria bom que essas crianças recebessem, desde então, algumas

explicações básicas sobre o sistema de escrita. Uma das tarefas

iniciais da alfabetização pode ser esta: pedir aos alunos que

tentem escrever (mesmo sem saber), copiando ou não, para

sentir um pouco o que é escrever e ler.

O professor pode solicitar aos alunos que tragam para a aula

embalagens pequenas nas quais apareçam coisas escritas. Numa

folha de papel, irão colocar apenas material escrito, separando

assim desenhos de letras, e constatando como se dá a escrita

acompanhada de figura e feita apenas de letras. Copiar a

embalagem toda é outra atividade possível.

O professor irá falar sobre o mundo da escrita que existe no

meio em que o aluno vive e irá pedir para que eles observem,

fazendo comentários orais, e copiem algumas coisas para

mostrar aos colegas.

Page 509: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Ainda bem no início, os alunos podem copiar, juntamente com

os desenhos, nomes de colegas, animais e objetos, usados, por

exemplo, para compor etiquetas e formas de identificação de

pessoas e lugares na escola. Essa atividade pode ser feita não só

com lápis e papel, como também através de letras soltas, que

são escolhidas e montadas em lugares próprios, acompanhadas

<301>

da colagem de figuras. Essa também é uma forma de

identificação entre um modelo e o resultado de uma tarefa,

sendo, pois, uma espécie de cópia.

No mundo da escrita em que vivemos, além de letras, há

muitos pictogramas, sinais, marcas, etc., que constituem

excelente material para os alunos refletirem sobre o sistema de

escrita. Copiar, recortar e colecionar esse tipo de material é um

exercício interessante, útil e mesmo necessário no início da

alfabetização.

Colecionando letras e palavras

Depois que os alunos já souberem que se escreve com letras e

que o alfabeto é um conjunto limitado de caracteres que podem

ter formas gráficas diferentes, eles podem confeccionar um

álbum de letras. O professor irá solicitar que usem, por

exemplo, uma folha para cada alfabeto (conjunto completo de

letras de um determinado tipo). Cada página pode ter um título:

Page 510: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

letras de fôrma maiúsculas, letras cursivas, minúsculas, etc. Os

títulos podem ser obtidos de outro modo, usando a imaginação:

letra do jornal X, letra da propaganda Y, letra florida, listrada.

Às vezes, não se encontram todas as letras do alfabeto para

copiar, porque elas não aparecem no texto consultado. Nesse

caso, o professor pode pedir para os alunos copiarem só o que

acharem e, mais tarde, quando estiverem mais adiantados,

voltarão a essa atividade e tentarão completar os alfabetos,

seguindo o padrão gráfico das letras já feitas. O professor pode

desenhar um quadro na folha de papel para os alunos fazerem as

letras nos respectivos quadradinhos, os quais, por sua vez,

podem estar marcados sempre com letras de fôrma maiúsculas

num dos cantos, para mostrar onde deverá ser colocada cada

letra. Esse tipo de atividade pode se estender para as séries

posteriores, de tal forma que os alunos passem a ter uma

espécie de manual de letras ou álbum de alfabetos. Em vez de

copiar graficamente, os alunos podem também recortar letras e

colar nos respectivos quadradinhos do álbum, como se fossem

figurinhas. O professor deve ficar atento para ajudar os alunos a

não misturarem alfabetos diferentes, baseando-se nas

características gráficas das inúmeras formas que as letras

podem tomar.

Quando os alunos já estiverem lendo e escrevendo palavras

isoladas, o professor pode propor o dicionário da classe. Cada

Page 511: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aluno irá enriquecer o dicionário

<302>

preparando uma ficha, na qual irá escrever uma palavra,

seguindo as instruções do professor quanto a layout, ilustração,

etc. Podem-se fazer duas caixas: uma com fichas de palavras

escritas pelos alunos e outra com fichas de palavras recortadas

por eles.

Ligado às atividades de ensino, o professor pode pedir para os

alunos copiarem em colunas cinco palavras que comecem ou

acabem com determinadas letras. Essas palavras servirão para

esclarecer aos alunos as relações entre letras e sons. Às vezes é

preciso dar uma orientação mais detalhada. Por exemplo, se o

professor estiver estudando a letra C, certamente irá pedir para

os alunos copiarem palavras que comecem com a letra C

acompanhada de E ou de I, numa coluna, e acompanhada de A, O

ou U, em outra coluna, para deixar claro o valor fonético da letra

C nesses dois contextos. Esse trabalho de cópia exige do aluno

muita concentração, e, ao mesmo tempo, propicia as primeiras

reflexões sobre o funcionamento do sistema de escrita e de

leitura.

Além dessas coleções que podem ser sempre aumentadas, o

professor pode formar com os alunos conjuntos fechados de

palavras. As crianças fazem uma lista com os nomes dos colegas,

colocando-os em quadradinhos que correspondam aos lugares

Page 512: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

próprios de cada um na sala de aula, quando todos estão

sentados. Esse tipo de trabalho pode ser feito de forma coletiva

sob o comando do professor, que confecciona um pôster que os

alunos copiarão depois em uma folha de papel. Atividades como

essa, que misturam escrita com desenho (quadradinhos),

apresentam desafios e são excelentes para ensinar os alunos a

se organizarem nos estudos.

Copiar não é apenas repetir um modelo

Os professores que seguem o método das cartilhas usam a

cópia como reforço da aprendizagem e como um exercício típico

de tarefa para ser feita em casa. Cópia não é um reforço da

aprendizagem, a não ser num processo de alfabetização no qual

o aluno decora e repete um modelo, como faz o método das

cartilhas.

Melhor seria, então, dizer que a cópia é uma técnica para

decorar algo escrito, e que, uma vez realizada, pode servir como

reforço da aprendizagem. Nesse caso, o aluno pode

aparentemente apresentar um resultado correto na sua cópia,

memorizar informações sobre o que fez e, na hora do ditado,

recuperá-las e escrever

<303>

palavras corretamente, dando a impressão de que as aprendeu.

Esse aluno, porém, pode esconder o fato de não saber ler.

Page 513: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Chegará o dia em que terá de ler ou escrever algo que não foi

dominado, e ele não saberá o que fazer.

Essa constatação tem levado vários professores a abandonar a

cópia por considerar que ela não passa de um exercício

mecânico, e a manter o ditado como um exercício revelador dos

conhecimentos adquiridos ou não pelos alunos. O problema

apresentado aqui, na verdade, não está nas atividades em si,

mas no método das cartilhas. Simplesmente não se fixa a

aprendizagem de algo que não se aprendeu. Por outro lado, o

ditado pode ser muito enganador como instrumento para

verificar se o aluno aprendeu ou não, principalmente se ele fizer

muitas cópias como reforço da aprendizagem. O método das

cartilhas tira a chance de o aluno refletir, sendo ele obrigado a

fazer tudo segundo o modelo apresentado pelo professor e,

desse modo, apenas decora o que lhe apresentam, sem entender

verdadeiramente.

Copiar para memorizar

Copiar para decorar algo escrito pode ser uma armadilha para

o aluno que não sabe decifrar a escrita, transformando-a em

leitura. No entanto, esse tipo de cópia é útil para ensinar os

alunos a decorarem textos. Muitas pessoas acham

equivocadamente que decorar é algo indesejável no processo de

aprendizagem, quando, na verdade, é essencial. Já dizia Dante

Page 514: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que depois de entender é preciso decorar para que haja

conhecimento e ciência. Algumas pessoas dizem que não são

capazes de decorar uma poesia longa, um texto em prosa, um

diálogo, ou mesmo uma peça literária para um jogral ou um

teatrinho. Essas pessoas estão acostumadas a ler somente

textos literários. Decorar é uma atividade diferente: exige outro

tipo de análise do texto, o que se consegue melhor fazendo

cópias mecânicas. Copia-se um pequeno trecho umas duas ou

três vezes e, depois, procura-se reproduzir o que se quer

decorar, escrevendo. Faz- se isso em círculos cada vez maiores,

até que um texto relativamente longo esteja sob domínio da

memória. Decorar apenas com a repetição do texto é uma

estratégia que exige mais tempo, mas é muito usada por

artistas.

Desde a alfabetização, a escola deveria cultivar a

memorização, incluindo não apenas obras literárias, mas

também científicas. Citar um autor ipsis litteris,

<304>

de cabeça, faz parte de uma certa erudição que a escola deve

cultivar em seus alunos, desde as primeiras séries. Infelizmente,

esse é um aspecto muito mal compreendido por vários

profissionais ligados à educação, o que acarreta sérias

deficiências na formação dos alunos. Como acontece com muitos

fatos escolares, a escola usa uma estratégia de maneira

Page 515: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

inadequada num determinado momento e, depois, quando

deveria empregá-la, por ser seu contexto correto, não o faz,

concluindo que não serve aos seus propósitos.

A cópia como punição

A escola tem consciência de que alguns exercícios de cópia

não passam de pura repetição mecânica. Por essa razão, utiliza-

se dela, às vezes, para punir alunos indisciplinados. A punição

consiste em copiar inúmeras vezes uma frase de cunho moral, se

o problema for de indisciplina, ou algo específico de uma lição,

se o aluno não presta atenção às explicações do professor. Um

professor deve ser também um educador e há maneiras mais

inteligentes e eficazes de educar uma criança que não punindo.

Na escola, uma das atividades mais comuns de escrita

consiste em copiar informações do quadro-negro, de livros, de

apontamentos, etc. Copiar informações, textos, passar a limpo

acaba parecendo para alguns alunos uma forma de punição e,

por isso, eles demonstram relutância em executar esse tipo de

tarefa, prejudicando-se muito nos estudos. A própria escola tem

muito pouco senso crítico para sair de sua incompetência e ver o

mal que causa aos alunos com certos comportamentos punitivos.

A cópia interpretativa com transliteração

Como vimos acima, fazer cópia pode ser uma boa atividade

Page 516: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de iniciação ao mundo da leitura e escrita, quando a criança,

além de copiar, põe em jogo uma análise do sistema de escrita e

usa de sua reflexão para descobrir os mecanismos da escrita e

leitura.

Há outros usos da cópia que ajudam os alunos a progredir

nos estudos. Um aluno pode copiar para aprender a forma

gráfica das letras, o traçado das letras maiúsculas, minúsculas,

das letras cursivas ou mesmo de letras enfeitadas. O uso de

gabaritos ou grades para orientação do traçado das letras é

sempre uma técnica aconselhável, seguindo o exemplo dos

desenhistas e artistas.

<305>

Outra atividade importante na alfabetização, ligada à cópia, é

a transliteração, que consiste em copiar um texto escrito com

um tipo de alfabeto, passando-o para outro tipo de alfabeto.

Assim, o texto vem com letras de fôrma e o aluno o passa para

letra cursiva ou vice- versa. Para os professores que obrigam os

alunos a escreverem em letra cursiva desde o início, é

importante que peçam cópias, passando da letra cursiva para a

de fôrma. Esse tipo de exercício costuma revelar surpresas,

mostrando que alguns alunos podem interpretar a forma gráfica

das letras de maneira curiosa. Por exemplo, um aluno pode

supor que a letra de fôrma maiúscula M, por ter somente "dois

morrinhos", corresponde à letra n cursiva.

Page 517: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Erros de cópia, nesses exemplos, não são apenas casos de

distração: o aluno pode estar usando um raciocínio errado,

fornecido pelo próprio professor. Por outro lado, um aluno pode

achar que a letra cursiva maiúscula A é formada de traços

semelhantes aos das letras C + e, que a letra P minúscula tem

traçado igual a j + s, etc.

Exercícios de cópia com transliteração ajudam a evidenciar

esse tipo de problema. Para isso, é claro que o professor precisa

estar atento ao que o aluno faz, analisar cuidadosamente os

erros e interpretar corretamente as razões que levaram esses

alunos a cometê-los. Quando aparecem erros como os apontados

acima, isso mostra que o aluno está com sérias dificuldades de

leitura e que não aprendeu corretamente a decifrar a escrita. Se

o erro for apenas circunstancial (um caso apenas), revela

unicamente uma interpretação idiossincrática por parte daquele

aluno, como aconteceu com uma criança que sabia ler e

escrever, mas que achava que a letra B cursiva minúscula era

uma "letra dupla" (como o lh, o nh, o sc, etc.), composta de i +

v. Essa idéia estranha a respeito da letra só foi detectada quando

o aluno fez cópia passando da cursiva para a escrita de fôrma.

Um exercício muito salutar para explicar aos alunos as

dificuldades que a escrita cursiva oferece para a leitura é

apresentar a eles um texto manuscrito em outra língua. Como

eles não sabem que palavras estão escritas, deverão passar da

Page 518: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escrita cursiva para a escrita de fôrma, interpretando apenas os

aspectos gráficos das letras e os modismos de quem escreveu.

Depois, podem comparar com o modelo feito pelo professor e ver

que tipos de dificuldade encontraram. Uma variação dessa

atividade consiste em usar como material

<306>

texto manuscrito feito em português arcaico. Outra maneira de

realizar essa atividade é usar letras de alunos da segunda série

(textos espontâneos) escritos cursivamente, para os alunos da

primeira série passarem para a versão com letras de fôrma.

De acordo com a tradição educacional de cada país, as pessoas

costumam usar diferentes formas gráficas para traçar as letras.

Os franceses e os americanos, por exemplo, escrevem algumas

letras ou juntam letras na escrita cursiva diferentemente dos

brasileiros. Essas coisas não passam despercebidas a um bom

professor e, ao encontrar material que exemplifique, ele deve

guardar para enriquecer seu arquivo de material pedagógico e

sua atividade profissional. Depender só de livros didáticos não é

uma boa estratégia. Alguns professores vivem tão fechados

dentro dos métodos que aprenderam nas escolas de formação e

nos livros que usam que nem sequer se dão conta de outras

questões.

Exercícios de transliteração não devem ser feitos e guardados.

O professor deve promover uma discussão com seus alunos para

Page 519: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

analisar os erros e as dificuldades encontradas. A reflexão

coletiva motivada por essa atividade é tão importante quanto a

realização da própria transliteração. A escola precisa aproveitar

mais o que faz, para discutir com seus alunos o processo de

execução e os resultados obtidos.

Reescrevendo com cópia

Outro tipo de cópia interpretativa que ocorre mais adiante nos

estudos é a que propicia ler um texto e escrevê-lo com suas

palavras sem se afastar do modo como o autor fez seu texto. O

aluno troca palavras, usa outra construção sintática, mas seu

texto permanece um reflexo próximo do texto original. Esse tipo

de cópia é muito bom para o aluno refletir sobre a maneira como

o texto original foi feito, sua organização e desenvolvimento.

Ajuda a observar estilos e formas culturalmente marcados de

tratar certos textos ou assuntos. É claro que a escola vai tratar

desse assunto delicado com cuidado, para que o aluno não se

torne apenas um simples imitador. O objetivo aqui é

experimentar, andando junto com o autor na elaboração de um

texto. Por isso mesmo, exercícios dessa natureza precisam ter

como modelo um autor excelente e um texto exemplar, caso

contrário, em vez de ensinar o melhor, passa-se ao aluno um

exemplo menos interessante.

<307>

Page 520: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Um exercício semelhante ao mencionado anteriormente pode

ser feito no início da alfabetização, dando ao aluno uma frase

para ele copiar, substituindo uma ou mais palavras que ele

queira, ou substituindo progressivamente todas as palavras, até

ele constatar que a sintaxe de base é a mesma, mas a semântica

é outra.

Interpretação de texto através de cópia

Uma forma sutil de cópia interpretativa é, às vezes, praticada

em atividades de interpretação de texto. Existe um tipo de

interpretação de texto que é muito útil para analisar o conteúdo

de certos textos, como problemas (de matemática, de fïsica),

enigmas, textos de reflexão filosófica, religiosa, etc. Éo que se

chama de exegese de um texto. Toma-se uma frase do texto e

procura-se fazer o comentário mais apropriado para explicar em

detalhes o que o trecho do texto original significa, agregando à

interpretação todas as informações que o explicam e que são

decorrentes dele. Professores de matemática que ensinam seus

alunos a fazerem uma "exegese" dos problemas, conseguem que

seus alunos lidem com mais naturalidade e competência com a

solução dos casos apresentados. Em geral, é mais difícil

entender o problema em toda a sua extensão e complexidade do

que saber fazer as contas para chegar ao resultado correto.

Através do exercício de exegese, as várias etapas que o

Page 521: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

problema exige vão se apresentando mais claramente, inclusive

a ligação de uma parte com outra.

A cópia como forma de colecionar informações

O tipo de cópia mais freqüente na vida escolar é a que serve

para colecionar informações. Copia-se o que se ouve do

professor, uma idéia de um livro, um conteúdo qualquer, um

texto e, até mesmo, um pensamento, uma piada ou um simples

nome, por razões sentimentais. Às vezes, copiar reproduzindo a

forma gráfica original tem um poder mágico que a simples

escrita não tem. Copia-se a linguagem pelo conteúdo e pela

forma gráfica. Só isso basta para mostrar que a cópia é uma

atividade muito importante na escola e que não deve ser tratada

de maneira equivocada pelos professores e pelos educadores em

geral.

Copiar grande quantidade de material exige uma atividade de

catalogação e de organização de arquivos que a escola deve

desenvolver nos alunos desde a

<308>

alfabetização. A organização da informação é essencial para

que ela seja usada quando necessário. Hoje, com o uso comum

de computadores, aprender a organizar arquivos de informação é

algo muito importante. Isso se aprende também na escola.

Essas atividades de cópia estão ligadas à organização da

Page 522: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

informação em arquivos. O professor deve, em primeiro lugar,

aprender ele próprio a manter organizado seu arquivo de

material e, também, ensinar seus alunos a realizar essa tarefa de

modo eficiente. A prática, nesses casos, sempre ensina mais e

melhor do que a teoria.

Através de cópias, podem-se montar coleções de tudo o que

existe de escrito, desde formas gráficas de letras e alfabetos, até

poesias, crônicas e informações curiosas ou úteis a respeito de

qualquer assunto. A escola deveria incentivar seus alunos a

formar esses arquivos e a manter um banco de dados pessoal ao

longo de seus estudos. A medida que o tempo passa, esse banco

de dados vai se enriquecendo, e os alunos vão tendo melhores

condições de estudo em casa, dependendo menos da escola. As

crianças adoram colecionar, e se a escola souber aproveitar isso,

além de colecionar objetos, as crianças colecionarão material útil

aos seus estudos e até à vida profissional futura. Assim como um

aluno coleciona selos, pode colecionar informações sobre

passarinhos, árvores, flores, mantendo um arquivo com recortes,

fichas com anotações, fotos, desenhos, etc. A escola muitas

vezes não sabe ensinar os alunos a utilizar os conhecimentos

escolares para fazerem coisas úteis para a vida. Há estudantes

que infelizmente acham que tudo o que está relacionado à

cultura é tarefa escolar e que não faz sentido além das quatro

paredes da sala de aula.

Page 523: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Classificar, rotular, dispor em espaço adequado são aspectos

importantes da organização dos arquivos, das coleções e dos

álbuns. A distribuição espacial do material nas fichas, folhas,

caixas, etc. também merece cuidado especial. Como se vê, por

trás da atividade de estudar, há muito trabalho de cópia e,

envolvendo isso tudo, além do conteúdo das matérias, há um

trabalho de organização que é essencial no processo educativo.

A educação não germina em meio à desorganização mental e

material. A organização material é prova da organização mental.

Essa é uma atitude que ajuda os alunos a entenderem a

disciplina como uma forma de organização social.

<309>

Uma atividade especial de cópia é a tarefa de passar a limpo a

lição. A escola deve cultuar o hábito de o aluno fazer um

planejamento do trabalho que vai escrever, executar uma versão

preliminar num rascunho, corrigir e melhorar e, finalmente,

passar a limpo. Muitos alunos detestam passar a limpo uma

lição, porque associam essa tarefa à de cópia punitiva.

Como se viu neste capítulo, uma atividade como a cópia pode

ser bem aproveitada na escola ou pode ser usada como uma

forma equivocada de ensino ou mesmo de punição. Depende do

professor fazer um tipo de uso ou outro.

<310>

Page 524: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

12

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

LEITURA

Ler é decifrar e buscar informações

Já se sabe que o segredo da alfabetização é a leitura.

Alfabetizar é, na sua essência, ensinar alguém a ler, ou seja, a

decifrar a escrita. Escrever é uma decorrência desse

conhecimento, e não o inverso. Na prática escolar, parte-se

sempre do pressuposto de que o aluno já sabe decifrar a escrita,

por isso o termo "leitura" adquire outro sentido. Trata-se, então,

da leitura para conhecer um texto escrito. Na alfabetização, a

leitura como decifração é o objetivo maior a ser atingido. Os

próprios textos escritos são, na maioria das vezes, pretexto para

trabalhar a leitura como decifração. O uso da leitura como forma

de pesquisar adquire uma importância secundária. Depois que o

aluno se tornou fluente na leitura, ou seja, sabe decifrar a

escrita com facilidade, o uso da leitura como busca de

informação torna-se o objetivo mais importante na escola, e a

simples decifração deixa de ser uma preocupação constante nos

estudos.

É preciso distinguir bem esses dois usos da leitura, a partir da

compreensão da própria natureza e funçãoda leitura, vista sob

esses dois aspectos.

Page 525: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Ao longo deste livro, muito se disse para mostrar o que uma

pessoa precisa saber para ler a diversidade do nosso mundo de

escrita. Para quem já sabe ler, parece muito fácil e natural.

Entretanto, para chegar a esse ponto, é preciso adquirir certos

conhecimentos. Uma simples reflexão sobre isso nos leva a

concluir, entre outras coisas, que essa pessoa precisa saber a

língua portuguesa, a diferença entre desenho e escrita, o que

são letras e como as diferentes formas de letra dão origem aos

diferentes alfabetos que usamos. Deve saber por que uma forma

gráfica pode ser interpretada como a letra A, e não de outra

maneira, e até que ponto pode variar a forma gráfica de um

caractere e, apesar disso, continuar reconhecendo nele a mesma

letra — em poucas palavras, ser capaz de identificar a

categorização gráfica e funcional das letras, o que se consegue

somente com o reconhecimento da natureza, função e usos da

ortografia.

Além da decifração

Quando lê, uma pessoa precisa, em primeiro lugar, arranjar

as idéias na mente para montar a estrutura lingüística do que vai

dizer em voz alta ou simplesmente

<312>

passar para sua reflexão pessoal ou pensamento. Em ambos os

casos, a passagem pela estrutura lingüística é essencial. Sem

Page 526: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

isso, não existe linguagem e, portanto, não pode existir fala nem

leitura de nenhum tipo.

A decifração, porém, pode ser feita por etapas. Os

conhecimentos da escrita podem ser poucos, permitindo ao leitor

descobrir inicialmente apenas os nomes dos caracteres. Outros

conhecimentos podem ajudá-lo a pronunciar as letras e talvez

até as palavras, sem contudo revelar o significado do que está

sendo dito. Este último caso acontece, por exemplo, quando um

lingüista lê a transcrição fonética de uma língua totalmente

desconhecida para ele.

Somente o conhecimento pleno da língua que a escrita

representa é capaz de dar ao leitor condições adequadas para

uma leitura que englobe a decifração e a compreensão. As vezes,

a isto é preciso acrescentar conhecimentos mais amplos exigidos

pelo próprio texto.

Para que um leitor leia um texto e compreenda o que está

escrito, não basta decifrar os sons da escrita nem é suficiente

descobrir os significados individuais das palavras. Um texto vive

das relações entre as palavras e as frases em todos os níveis

lingüísticos. Quando uma pessoa fala espontaneamente, constrói

o que vai dizer integrando todos esses elementos de tal modo

que seu pensamento seja expresso numa determinada língua,

segundo as regras dessa língua, e de forma coesa e coerente.

Tudo isso é processado antes de o falante abrir a boca para

Page 527: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pronunciar as palavras. Portanto, não basta a simples

articulação de sons da fala para que uma pessoa entenda o que

está sendo dito. Contudo, toda pessoa, além de falante, é

também ouvinte — ouvinte não só das outras pessoas, mas

também de si próprio. Assim, uma pessoa pode falar e ouvir a si

própria e, a partir dessa audição, processar a compreensão da

linguagem. Isso, obviamente, acontece apenas como um

processo de feedback, ou seja, do controle sobre aquilo que se

diz. O processo de produção da fala tem sua origem muito antes

de o falante dizer algo.

No entanto, como a linguagem tem todos esses aspectos, é

possível uma pessoa decifrar os sons das letras, pronunciá-los

em forma de palavras, uma depois da outra e chegar ao

conhecimento do conteúdo semântico do texto escrito. Essa

maneira de ler é freqüentemente encontrada nas aulas de

alfabetização, devido ao modo como os professores obrigam

seus alunos a ler.

<313>

Perdurando essa prática, o aluno acaba entendendo que é desse

jeito que se deve ler, e acaba sendo um mau leitor, um leitor que

acompanha o que se lê unicamente como ouvinte de si próprio.

O correto é uma leitura na qual o leitor decifra o que está

escrito, se apropria das idéias que descobriu no texto, elabora

Page 528: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

todos esses conhecimentos como se fossem seus e, seguindo a

lei da fidelidade ao literal do texto, passa a dizer o que leu, numa

fala que traduz o texto e revela seu modo de interpretá-lo.

Nas explicações dadas acima, nota-se como se pode ler de

várias maneiras, dependendo do que se encontra pela frente. Se

o leitor encontrar uma letra escrita de forma não-usual, pode

enfrentar uma tarefa de decifração gráfica. Se encontrar uma

palavra escrita numa grafia errada, terá de avaliar o que lê em

função das possibilidades de escrita que a própria ortografia da

língua gerou no sistema de escrita. Se se deparar com uma

palavra desconhecida, pode ter dúvidas sobre o valor fonético de

alguma letra (por exemplo, X), e lerá essa palavra sem detectar

o seu significado. Talvez isso seja irrelevante, talvez não. Talvez

ele descubra o significado ou o campo semântico dessa palavra

em função do contexto em que essa palavra se insere. Além

disso, o leitor pode conhecer todas as palavras, saber como

pronunciá-las e não entender o texto, porque é de certa forma

hermético ou incompreensível para o leitor, tendo em vista a

história dos conhecimentos que possui e o que o texto revela.

Esse tipo de leitura todos nós fazemos no dia-a-dia.

Dependendo do texto e do leitor, algumas dessas dificuldades

aparecem com maior ou menor freqüência. Quanto mais se lê,

mais fácil torna-se ler novos textos. Por outro lado, uma criança

que está aprendendo a ler encontrará grandes dificuldades logo

Page 529: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de saída, a começar pelo simples reconhecimento das letras.

Leitura e planejamento lingüístico

A leitura em voz alta ou a leitura em silêncio tem de passar

por todas as etapas descritas acima. A única diferença entre elas

acontece no momento em que, depois de processada a produção

da fala com os elementos extraídos da decifração e

complementados com o que a língua exige, o leitor decide se irá

dizer em voz alta o que leu ou simplesmente passar aquela

estrutura lingüística para seu intelecto. Em ambos os casos, o

planejamento lingüístico deve ser completo, inclusive

<314>

com relação à escolha da variedade dialetal e à determinação

fonológica e fonética do que está para ser dito.

É por essas razões que se pode afirmar que a melhor

velocidade de leitura é a velocidade normal de fala, que varia de

falante para falante. Querer ler mais depressa ou mais devagar

do que a velocidade com que se fala pode trazer dificuldades

para a compreensão do que se diz e mesmo para a própria

pronúncia, quando a leitura se realiza em voz alta.

Muitas pessoas nunca se deram conta de que, quando lêem

para si próprias, não estranham em nada o fato de dizerem o que

lêem no próprio dialeto, mesmo que seja uma variedade da

língua estigmatizada pela sociedade. Certamente, as leituras

Page 530: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

feitas em silêncio são assim, pois, mesmo em silêncio, pode-se

ler em outros dialetos.

Uma pessoa que estuda uma língua estrangeira e que passa a

ter certa fluência facilmente lê textos (em silêncio) nessa língua,

recuperando uma pronúncia padrão cujo conhecimento lhe é

familiar. Assim, essa pessoa acelera seus conhecimentos e

aumenta sua habilidade de falar a língua estrangeira, através da

leitura. Por outro lado, se não dispõe de conhecimentos

adequados da língua estrangeira e se põe a ler com forte

sotaque ou de maneira errada, acaba tendo, futuramente,

dificuldades para falar a língua estrangeira corretamente. Isso

se dá ao ler, não ocorre apenas uma decifração fonética e uma

identificação semântica, mas todo um processo de produção de

fala. É por essa razão que se costuma dizer também que os

alunos aprendem mais e melhor a norma culta à medida que se

tornam leitores assíduos.

Assim como se diz que na alfabetização o professor deve

ajudar os alunos a passarem da habilidade de produzir textos

falados para a produção de textos escritos, do mesmo modo, ao

aprender a ler, o aluno tem de produzir uma fala que esteja

plenamente de acordo com o processo que usa para falar

espontaneamente.

Um texto escrito não corresponde exatamente a um texto oral

que queira dizer mais ou menos a mesma coisa, mas a base dos

Page 531: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

dois é a língua, que, na sua essência, é oral. Assim sendo, ler não

é falar, mas deve chegar o mais próximo possível disso. Esses

são dois pontos de suma importância na escola e, dependendo

de como o professor lida com eles, revela concepções diferentes

de linguagem e de ensino, tornando seu trabalho algo fascinante

ou desastroso.

<315>

Foi dito acima que um leitor pode escolher o dialeto em que

quiser ler. A escrita tem como objetivo essencial permitir a

leitura. Somente as transcrições fonéticas obrigam os leitores a

fazerem uma leitura, reproduzindo fielmente os sons

representados, na língua e no dialeto retratado. Nosso sistema

de escrita permite que um texto qualquer em português possa

ser igualmente lido por falantes de dialetos diferentes. Assim,

leio um texto escrito por um autor português como se tivesse

sido escrito por mim, no meu dialeto. E os portugueses lerão

meus textos com sotaque português. Quando leio Vinicius de

Moraes, Castro Alves ou Érico Veríssimo, não me esforço para

dar uma pronúncia carioca, baiana ou gaúcha ao texto. Leio no

dialeto que desejo. Ler num dialeto diferente do habitual requer

prática e atenção especial.

Quanto mais se distancia do controle semântico do texto em

direção ao fonético, tanto mais difícil fica acompanhar na leitura

a mensagem que o texto traz. Ao contrário, quanto menos

Page 532: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

alguém se preocupar com a parte fonética, mais fácil fica

acompanhar a parte semântica e, dessa forma, entender o que se

lê. Esse fato encontra um paralelo na fala: as pessoas que se

preocupam com a fonética acabam produzindo uma fala artificial,

truncada e, muitas vezes, perdem o fio do raciocínio. A fala deve

ser monitorada pela semântica. A leitura, também.

O leitor interfere no literal do texto

Na leitura, como o leitor está diante de um texto pensado e

produzido por outra pessoa, é preciso respeitar os elementos

básicos desse texto. Como vimos acima, a variação de pronúncia

não afeta a estrutura do texto. Não é porque não leio um texto

de Vinicius de Moraes com sotaque carioca que o texto perde sua

razão de ser. Continua sendo o texto de Vinicius de Moraes —

como se diz, ipsis litteris. Por outro lado, vimos que o leitor não

interpreta apenas a parte fonética de um texto, mas também a

semântica. Aqui também o leitor pode apropriar-se das idéias

que descobriu, ao decifrar o texto, e acrescentar suas próprias

idéias às do autor. Quando se lê uma poesia ou um romance, o

pensamento não se atém apenas às idéias expressas pelo autor,

mas o leitor fica divagando, voando nas asas da imaginação e da

fantasia. Afinal de contas, a literatura sobrevive por causa desse

mundo imaginário que cria na cabeça das pessoas e no qual os

leitores podem viver a aventura do fantástico.

Page 533: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

<316>

A leitura em voz alta, todavia, implica algumas restrições. Na

nossa cultura, existe a lei da fidelidade ao literal do texto, que

consiste em exigir do leitor que diga todas e somente as

palavras que o texto transcreve. Outras idéias que o leitor tenha

ao ler um texto devem ficar guardadas para si e não podem ser

reveladas numa leitura em voz alta.

No início da alfabetização, as crianças ainda não sabem disso

e, por essa razão, ao lerem os primeiros textos, ficam

misturando o literal do texto com a interpretação que fazem

dele, dizendo tudo em palavras e em voz alta. Por exemplo, o

professor mostra uma frase como: "Maria comeu o bolo". A

criança lê: "Era uma vez uma menina que fazia aniversário e

queria comer um bolo. Ela se chamava Maria e o bolo estava

muito gostoso". Um aluno que lê desse modo é um excelente

leitor: sabe decifrar o que está escrito, sabe se apropriar da

mensagem do texto e acrescentar o seu mundo mental ao que o

texto representa para ele.

Diante de tais fatos, alguns professores pensam que esses

alunos estão "chutando", que não sabem ler porque ficam

inventando coisas que não estão escritas. Esse tipo de

interpretação está equivocado, como se pode perceber pelos

comentários feitos anteriormente. O único problema desse aluno

relaciona-se à lei da fidelidade ao literal do texto, conforme

Page 534: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

exigência da nossa cultura. Em vez de a escola explicar aos

alunos o que fizeram e o que devem fazer, ela em geral pune

esse tipo de leitor, obrigando-o a ler apenas o literal, sem se

preocupar com os outros aspectos da leitura. O aluno passa a

incorporar esse tipo de concepção de leitura e torna-se um leitor

literal, para quem um texto tem de ser lido literalmente. É

preciso que o professor alfabetizador, desde o início, trate de

maneira muito cuidadosa da produção de leitura em silêncio e

em voz alta. Os alunos devem seguir a lei da fidelidade ao literal

do texto sem deixar de lado a própria reflexão que corre em

paralelo à mensagem do autor no texto.

Foi mencionado acima que os leitores podem ler em qualquer

dialeto. Porém, a leitura em voz alta sofre das mesmas pressões

sociais que a faia. Assim, diante de um público, nossa cultura

não aceita que um texto seja lido num dialeto estigmatizado,

mas no dialeto padrão, pelas mesmas razões segundo as quais a

sociedade não aceitaria que alguém falasse daquele modo,

naquelas circunstâncias.

<317>

Alguns alunos perdem-se nessa floresta e acabam tomando

caminhos errados. Sobretudo em casos de leitura silenciosa

(para estudo), alguns alunos querem refletir tanto sobre o texto

que lêem que acabam misturando a própria opinião com a do

autor e atribuindo a ele idéias que não são dele. A lei da

Page 535: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fidelidade ao literal do texto obriga também o aluno que lê em

silêncio a distinguir o que faz parte do texto escrito e o que faz

parte de sua interpretação.

Esse problema é semelhante ao de quem ouve, O falante diz

um enunciado a seu modo, mas o ouvinte lida não apenas com o

que ouve, mas também com a sua própria interpretação.

Contudo, deve ficar bem claro que o texto do falante precisa ser

interpretado de acordo com o que o autor quis dizer e não pode

ser misturado com fantasias e imaginações que todo ouvinte

sempre acrescenta ao que ouve. A sociedade impõe restrições

culturais para que quem fala e quem ouve consigam usar a

linguagem adequadamente e, da mesma forma, para quem

escreve e quem lê. Sem o princípio da literalidade, a linguagem

se perderia num mundo de fantasias. Porém, esse princípio não

destrói nem impede a existência do mundo interpretativo do

ouvinte ou do leitor. Simplesmente pede para que esse mundo

fique guardado dentro das pessoas. Somente quando isso passa

a ser verbalizado num contexto específico, tornando-se por sua

vez uma realização literal, pode-se usá-lo fora do sujeito que

ouve ou lê.

Leitura silenciosa e em voz alta

Como vimos a leitura pode ser feita sem que o leitor

pronuncie o texto foneticamente (leitura silenciosa) ou através

Page 536: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

da fala do leitor (leitura em voz alta).

A leitura silenciosa tem um valor enorme na escola, desde os

primeiros contatos das crianças com a escrita e a leitura. Os

professores devem incentivá-la o mais possível. Na nossa

cultura, muito raramente os leitores são obrigados a ler um texto

em voz alta. Ler em voz alta para um público é tarefa comum da

escola, mas não em outras situações. Na vida real, a leitura em

voz alta está restrita a umas poucas profissões, como por

exemplo locutores de rádio e de televisão. Note que os atores

costumam ler em silêncio os textos que apresentam, mas depois

ensaiam como declamá-los ou representá-los foneticamente,

através de uma leitura especial em voz alta. Algumas vezes,

<318>

chegam mesmo a memorizar o texto ou partes dele, para um

melhor desempenho. A escola deveria seguir esse procedimento.

Muitas crianças gostam de ler em voz alta e até de misturar

leitura com fala. O professor não deve se preocupar com isso,

porque, se a leitura estiver sendo feita individualmente, esta

poderia até mesmo ser considerada um tipo de leitura silenciosa

especial.

O que se costuma chamar de leitura em voz alta na verdade

deveria chamar-se, mais propriamente, de leitura para um

público ouvinte. O objetivo é que ele participe do literal do texto

como ouvinte da fala de um leitor.

Page 537: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

As leituras em voz alta têm sido uma grande preocupação da

escola, embora na verdade não haja motivo para se dar tanta

importância a essa atividade nem mesmo com relação ao que os

alunos precisam fazer na vida escolar em geral. Da mesma forma

que o ditado e as notas, alguns professores gostam que os

alunos leiam em voz alta porque a escola sempre fez isso... e

nunca pararam para pensar nas reais vantagens e desvantagens

dessas atividades. Os alunos podem passar perfeitamente sem

ditados, como podem passar perfeitamente sem ter de ler em

voz alta, mesmo na alfabetização. Os professores gostam do

ditado e da leitura em voz alta por que, através do desempenho

dos alunos, podem avaliar melhor se eles já dominaram o que foi

ensinado ou não. Consideram importante saber através da

leitura em voz alta se os alunos aprenderam a decifrar a escrita.

Por outro lado, esse tipo de leitura é uma atividade muito

solicitada pelos alunos que trazem para a sala de aula uma

expectativa que a própria escola criou em gerações anteriores.

Nesses casos, o professor precisa tomar cuidados especiais para

que seus alunos não se tomem maus leitores, simplesmente

porque querem se exibir lendo de qualquer jeito.

Decorar antes de ler

Um procedimento aconselhável logo no início é usar textos

que os alunos já sabem de cor para que eles leiam, por exemplo,

Page 538: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

letras de música ou poesias. Nesse caso, como em qualquer

atividade de leitura em voz alta, o professor deverá insistir para

que seus alunos leiam o texto como se estivessem falando, para

não criar uma pronúncia artificial. Já que eles sabem o texto de

cor, basta estudar um pouco e, depois, ler acompanhando as

palavras (não as letras). Alguns professores

<319>

antigos recomendavam que, durante a leitura de um texto, se

percorresse com a vista algumas palavras à frente daquelas que

a boca estava pronunciando... o que era um bom exercício para

quem já tinha certa fluência na leitura. Isso ajuda a lidar melhor

com os elementos supra-segmentais e prosódicos.

Os exercícios de leitura podem continuar aplicando a mesma

estratégia: pede-se para o aluno decifrar um pequeno texto,

depois decorá-lo e, somente então, lê-lo em voz alta. Decorar um

texto de poucas frases é uma atividade banal para qualquer

criança. Se eu disser a uma criança "Maria fez uma festa muito

bonita e todos comeram um bolo delicioso", ela repete sem

dificuldade. O mesmo pode ser feito com relação à decifração de

um texto escrito.

Preparar a leitura

Com o desenvolvimento dos estudos, já não será mais

possível que os alunos decorem todos os textos que irão ler em

Page 539: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

público. Mas, ao chegar nesse ponto, procedendo daquela forma,

já adquiriram tudo o que precisam saber para se tornarem bons

leitores, dominando inclusive certa fluência na leitura. A medida

que os estudos avançam, em vez de decorar o texto, o aluno

deverá preparar a sua leitura. Isso requer um certo estudo

prévio. Depois que o aluno estiver seguro de que irá ler sem

dificuldades, o professor permitirá que ele leia para a classe. Se

o aluno não ler o texto pronunciando-o naturalmente, o

professor deverá solicitar que volte a preparar seu texto para

uma leitura posterior, explicando que ler como se deve é

também uma forma de respeitar os ouvintes.

Um aluno que é solicitado a ler individualmente e em silêncio,

num primeiro momento, e somente depois que adquiriu certa

fluência lê em voz alta, não apresenta problemas de leitura.

Simplesmente precisa rá praticá-la e, com o tempo, tudo estará

em ordem. A escola, porém, tem alunos que aprendem a ler de

outras formas e, se não estiverem lendo de maneira correta, o

professor precisará analisar as dificuldades desses alunos,

explicar-lhes o que fazer e treiná-los a se tornarem bons

leitores.

Tipos de leitura

No fundo, todos os tipos de leitura são da mesma natureza,

embora, externamente, assumam características diferentes em

Page 540: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

diversas circunstâncias. Já foram

<320>

mencionados dois tipos de leitura: a leitura em voz alta e a

silenciosa. Um terceiro tipo de leitura, que também já foi

apresentado anteriormente, refere-se ao fato de um texto

provocar nos leitores diferentes reflexões, segundo o modo como

cada um o interpreta. Temos, pois, uma leitura literal e outra na

qual ao literal vem associada a reflexão do leitor, ou seja, uma

leitura interpretativa.

A leitura pode ter uma tipologia ramificada a partir de outros

parâmetros, como a natureza dos textos e a finalidade do próprio

ato de ler. Neste último caso, a leitura pode ser informativa, para

divertir, etc. Com relação à natureza dos textos, uma leitura

pode ser do tipo a ser declamado, representado, estudado, etc.

Um estudo mais aprofundado levaria, ainda, a outros tipos de

leitura. De interesse particular é o tipo de leitura que se tem,

dependendo do tipo de sistema de escrita que se lê.

Cada sistema de escrita tem um tipo próprio de leitura.

Quando se lê num sistema ideográfico, parte-se do significado e

procuram-se depois os valores fonéticos associados. Quando se

lê num sistema fonográfico, parte-se da identificação dos sons

das letras e procura-se a palavra associada a esses sons para se

chegar ao significado. Como vivemos num mundo caótico de

escrita, onde esses dois sistemas básicos estão representados de

Page 541: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

muitas maneiras, os leitores comumente passam de um tipo de

leitura para outro. Os números e os pictogramas pertencem ao

sistema ideográfico; as letras, ao sistema fonográfico; a

ortografia, ao sistema ideográfico; o uso de rébus, ao sistema

fonográfico. Um passar de olhos num jornal ou numa revista

mostra logo como nosso mundo de escrita exige dos leitores

habilidades muito diferentes a todo instante. Ler apenas letras é

uma tarefa típica da escola. No mundo fora da sala de aula, a

escrita apresenta-se de muitas formas. Os símbolos, os sinais, as

grifes, as marcas e até os sinais de trânsito e informações gerais

que se encontram nas ruas mostram bem que as letras

representam apenas um tipo de escrita e de leitura. Para muita

gente, até mesmo os números (os algarismos) são o tipo de

escrita com o qual lidam mais no dia-a-dia. Infelizmente, com

freqüência, a escola treina seus alunos apenas para lerem letras

e, não raramente, somente para o aspecto literal do texto. É

preciso abrir os horizontes e incorporar às atividades escolares

todas as formas de leitura que o mundo moderno da escrita põe

diante dos olhos de todos.

<321>

A leitura e o mundo

A palavra "leitura" tem sido

usada para representar metaforicamente toda atividade que

envolve produzir fala ou pensamento, refletindo-se sobre um

Page 542: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

determinado objeto. Assim, ouve-se que alguém precisa "ler o

mundo", "ler as mãos", "ler as estrelas", etc. Isso tudo é um uso

da linguagem, e não de um processo de leitura, no sentido

técnico. Esse uso metafórico da leitura, no entanto, tem

propiciado uma certa confusão com relação ao próprio processo

de alfabetização. Para um aluno ler o que está escrito, por

exemplo, a palavra POTE, não precisa pegar um pote, apalpá-lo,

estudá-lo fisicamente, para entender melhor o que a atividade

lingüistica de ler representa. Basta que ele conheça a palavra

POTE e tenha os conhecimentos lingüísticos de um usuário da

língua portuguesa.

Em decorrência de idéias como essa, algumas pessoas pensam

que não podem usar palavras que não são do mundo do

alfabetizando. Assim, um professor não poderia usar a palavra

ZEBRA, a não ser no Quênia e em outros países africanos... Esse

professor se pergunta: "Como pode uma criança entender a

palavra ELEFANTE de maneira completa, se ele nunca viu um

elefante na vida?" Ora, a linguagem representa o mundo no

pensamento e, por essa razão, saber o que uma palavra significa

não é uma abstração derivada do objeto no processo de

aquisição da linguagem para cada falante. Alguém, um dia, fez

isto: viu um elefante e trocou a expressão "aquela coisa" por

"elefante". A partir da incorporação dessa nova palavra à língua,

os usuários dessa língua não precisam mais "daquela coisa para

Page 543: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aprender a palavra "elefante". Basta alguém explicar o que

significa. A literatura, a ficção e até a ciência vivem

lingüisticamente assim. O testemunho é algo de importância

essencial na vida humana. Não é preciso ir ao Japão para

acreditar e saber que tal país existe e vive de um determinado

modo.

A leitura tem outros aspectos interessantes e importantes.

Dissemos que o leitor precisa começar decifrando a escrita e

descobrindo que palavras estão escritas (descoberta do

significado literal). Porém, como a palavra geralmente está

inserida num contexto de uso da linguagem, ou, mais

tipicamente, a leitura abrange um texto em que há muitas

palavras e frases, a questão da descoberta do significado torna-

se mais complicada. Isso se deve à própria natureza da

linguagem e não da escrita. Num texto, as palavras estabelecem

uma relação

<322>

umas com as outras, tanto quanto as frases. Por isso,

geralmente, não basta detectar apenas os significados literais

das palavras. Será preciso ir além e buscar as relações entre

palavras, frases e demais elementos envolvidos na produção

daquele texto, OS quais permitam ao leitor reconhecer os

subentendidos, os pressupostos, as conotações e tudo o mais

que popularmente se costuma dizer que está nas entrelinhas de

Page 544: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

um texto escrito (na verdade, seria nas entrelinhas da própria

fala... e não apenas da escrita).

Dificuldades na aprendizagem da leitura

As dificuldades mais comuns que os alunos apresentam

referem-se a problemas de decifração, de concatenação ou de

compreensão.

O problema mais sério de decifração é o daquele aluno que,

não sabendo decifrar a escrita, põe-se a ler imitando os adultos e

inventando uma fala. Alguns alunos chegam mesmo a escrever

várias palavras seguin do a cartilha, mas, como não sabem

exatamente o que estão fazendo, quando são solicitados a ler,

não con seguem ou lêem apenas as palavras já dominadas, O

professor deve, portanto, ensinar esses alunos a decifrarem a

escrita.

Uma dificuldade comum no princípio ocorre com os alunos

que acabam lendo palavras que não existem ou que não se

encaixam no contexto. Por exemplo, ao ver a palavra CASA, o

aluno diz "kaça" ou "çeaça". Seu esforço para decifrar ainda não

foi suficiente para reconhecer outros valores fonéticos das

letras. Uma boa estratégia é o professor dizer para o aluno que,

quando ele for ler e descobrir uma palavra que não conhece,

deve procurar observar se alguma das letras não pode ter outro

som e formar, desse modo, outra palavra.

Page 545: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Esse caso é semelhante à leitura incidental. Assim como

atribuímos palavras às coisas, de modo semelhante pode-se

aprender a reconhecer certas palavras atra vés de formas

gráficas específicas, como logotipos ou marcas de produtos,

linhas de ônibus, etc. Mesmo uma pessoa analfabeta pode fazer

esse tipo de leitura. Porém, como ela não sabe decifrar a escrita,

a leitura incidental não vai além da identificação do próprio

objeto, não sendo um conhecimento produtivo.

Um problema um pouco diferente é o caso dos alunos que no

início da alfabetização têm dificuldade para decifrar. Isso é

natural e o tempo necessário para cada

<323>

um resolver as suas dúvidas varia de aluno para aluno e de

contexto para contexto. O professor deve ter paciência e dar

todo o tempo necessário para que os alunos realizem a tarefa.

Ajudá-los é sempre uma boa estratégia, mas não se deve

resolver todas as suas dificuldades, do contrário eles se

acomodam.

Alunos que aprendem a ler pelo bá-bé-bi-bó-bu, às vezes

costumam enunciar em voz alta os mecanismos de decifração

que usam para ler, o que resulta, por exemplo, no seguinte: "lê-

a-lá, tê-a-tá, la-ta Esse aluno sabe ler, mas precisa aprender que

deve guardar para si os procedimentos de decifração,

pronunciando em voz alta apenas o resultado final daquilo que

Page 546: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

descobriu.

O ensino da leitura

Alunos que foram incentivados a ler acompanhando com os

olhos letra por letra e sem fluência têm enorme dificuldade para

desvendar o conteúdo semântico do texto. Antes de o aluno

reconhecer pelo menos uma palavra inteira, não pode sequer

começar a dizer o que está lendo. Como no texto escrito já está

evidente em grande parte uma estrutura lingüística definida, é

possível passar da simples constatação do valor fonético das

letras para uma emissão oral dos sons. Isso se faz sem

problemas com as transcrições fonéticas de línguas

desconhecidas. O mesmo pode acontecer para um falante nativo

com sua própria língua. O leitor é, então, um simples

decodificador fonético da escrita. Alguns alunos lêem desse jeito

e chegam até a ter certa fluência, o que impressiona bem o

professor, porém, tal aluno não aproveita o que lê, porque sua

leitura não lhe traz significados, apenas sons da fala. Corrigir

esses alunos já é uma tarefa mais complicada, porque

incorporaram esse tipo de leitura como a forma correta escolar.

O professor, nesses casos, precisa discutir com esses alunos os

mecanismos de produção da leitura e fazer com que leiam

através da memorização de textos, mesmo curtos.

Alunos que apresentam problemas de naturalidade, de

Page 547: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fluência, de concatenação, enfim, dificuldades com a realização

fonética dos elementos prosódicos, precisam de uma

comparação entre o que seria uma leitura exemplar e o que eles

fazem.

Ler textos com muita, pouca ou nenhuma ilustração é

irrelevante para a leitura, desde que os alunos saibam

exatamente o que têm diante de si. Criança gosta de ler textos

com ilustrações. Os desenhos não atrapalham

<324>

a leitura, pelo contrário, podem ajudá-la. Porém, ficar ensinando

a criança somente com listas de palavras acompanhadas de

desenhos, de tal modo que o aluno possa ler as letras ou

simplesmente adivinhar o que os desenhos representam, não é

uma boa estratégia. Pode-se fazer isso de vez em quando, mas

não se deve propor somente esse tipo de exercício de leitura.

Alguns professores gostam de promover leituras coletivas.

Isso ajuda a afastar o medo da leitura individual. Essa prática é

muito interessante, especialmente quando a classe não gosta de

ler.

Outra atividade atraente de leitura é fazer jogral, ou seja, a

leitura de um texto por várias pessoas, sendo que, em alguns

trechos, há apenas um leitor e, em outros, vários leitores em

coro. Algumas poesias se prestam bem a esse tipo de atividade,

como certos poemas de Manuel Bandeira — "Evocação ao

Page 548: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Recife", "Sinos de Belém".

INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

Três práticas escolares tradicionais

Ao lado do ditado e da cópia, a interpretação de texto tem

sido uma das atividades mais tradicionais da alfabetização com

cartilhas. Muitos professores pensam que se trata de uma

atividade fundamental e imprescindível. Assim como o ditado e a

cópia, a interpretação de texto passou a ser feita de inúmeras

formas, e os professores raramente param para refletir mais

profundamente sobre sua natureza. Há vários pontos

importantes que é preciso considerar, inclusive uma revisão

histórica, para entender a atividade de interpretação de texto

como um exercício de alfabetização.

A visão histórica apresentada a seguir tem como objetivo

introduzir uma reflexão geral sobre o assunto, sem entrar em

considerações específicas.

Ideografia e leitura

Pela própria natureza, os sistemas de escrita ideográfica

propiciam os leitores a refletir mais detalhadamente sobre os

valores semânticos das mensagens escritas. Isso é mais óbvio

quando se levam em conta os símbolos religiosos e os usados

para ajudar as pessoas a pensar, meditar, reviver sentimentos

Page 549: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

fortes de patriotismo, etc.

<325>

Esse tipo de escrita, dos mais antigos, persiste até hoje. Poder-

se-ia dizer mesmo que sua finalidade é despertar a meditação e

a emoção (religiosa ou não). Portanto, a leitura que se faz desse

tipo de texto é basicamente interpretativa: quando, por exemplo,

uma pessoa apanha uma fotografia e tenta se lembrar, falando

ou simplesmente pensando a respeito de pessoas, coisas ou

fatos que a fotografia evoca. Uma leitura literal, nesse caso,

seria algo fora de propósito ou pertinente apenas em caso de

uma investigação científica.

Desde os tempos mais antigos, as pessoas cultas discutem o

significado das palavras, procurando recuperar formas e

significados antigos. Assim, podem compreender melhor o uso

das palavras na sua época. Por exemplo, para explicar a palavra

"pluviométrico", lembram que, em latim, "chuva" se dizia pluvia

e, portanto, "pluviométrico" tem a ver com "chuva". Outros

exemplos: "televisão" e "telefone" contêm a palavra grega tele,

que significa "longe". Portanto, "televisão" significa "algo que se

vê longe". "Telefone", que inclui outra palavra grega - fone, que

significa "som" -, tem o significado de "som longe". Logo se vê

que, no caso da palavra "pluviométrico", a referência

etimológica ajuda a entender o significado atual da palavra,

embora, em "televisão" e "telefone", a revelação etimológica

Page 550: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ensina mais grego do que português, porque "televisão" e

"telefone" são coisas que não podem ser descritas apenas com o

critério dos significados etimológicos, embora façam parte do

significado total dessas palavras as idéias de "algo que se vê

longe" e "som longe".

Essa prática de querer explicar o significado das palavras pela

origem histórica tem valor para pesquisas de lingüística

histórica, mas não ajuda muito, nem é conveniente, para estudar

o uso atual das palavras na língua. A própria ciência é vítima do

fascínio das palavras e, muitas vezes, fica divagando e sonhando

nesse caminho etimológico.

Esse tipo de procedimento é extremamente comum nas

escolas, mesmo quando faz pouco sentido, como no caso de

"televisão" e "telefone". Porém, estamos tão acostumados a isso

que nem sequer questionamos o que fazemos. Fora do mundo

escolar, esse jogo interpretativo faz menos sentido ainda.

Explicar para uma pessoa sem vivência escolar o que é

"televisão" ou "telefone", dizendo a origem das palavras que as

compõem, parece realmente ridículo. Se alguém, por um lapso

de memória, esquecesse a palavra exata "televisão"

<326>

e tivesse de comprar uma por telefone, e dissesse apenas "algo

que se vê longe", dificilmente se faria entender. Imaginar

situações como essa é um bom exercício para testar o que hoje

Page 551: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

definimos como "televisão" ou qualquer outra palavra da língua.

O que se disse acima não significa que os estudos de

lingüística histórica não têm valor. Pelo contrário, são muito

importantes, mas devem ser entendidos corretamente. A língua

que falamos hoje é resultado de uma evolução histórica, mas não

deve ser confundida com o que existia antes: português não é

latim, menos ainda grego. O português tem vínculos com essas

línguas, mas existe de maneira própria.

A exegese em textos literários

Outra atividade ligada de certa forma ao que se disse antes é

a exegese, ou seja, comentários sobre o significado de palavras

para esclarecer com precisão como devem ser interpretadas. A

exegese se faz com base em etimologia e numa tradição ou

conjunto de normas (no caso das leis). Uma pessoa pode

cometer um acidente de trânsito doloso, mas não culposo. No

primeiro caso, não há crime, mas no segundo sim. Isso é assim

porque a lei distingue "doloso" de "culposo". Essas palavras

devem ser entendidas, portanto, dentro do contexto legal em

que se inserem. Obras antigas são estudadas através de

minuciosas pesquisas para as quais a exegese é fundamental.

O trabalho de exegese dos textos antigos gerou a

interpretação de texto, que passou a ser feita, posteriormente,

não mais com textos necessariamente antigos. Qualquer texto

Page 552: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

passou a servir para um trabalho de análise exegética. No caso

das obras literárias, os comentários (exegese) abrangem. não só

a especificação de palavras, como também de formas de

produção de diferentes textos literários (gêneros e estilos).

Posteriormente, algumas ciências orientaram a própria

interpretação literária, sobretudo a filosofia, a sociologia e a

psicologia.

Quando a exegese contribui para esclarecer significados que

já não são mais transparentes para o leitor numa dada época, a

interpretação de texto enriquece-se. Porém, mesmo na

interpretação literária moderna, encontram-se, por vezes,

pessoas que nada mais fazem do que dizer com as próprias

palavras o que o autor disse com as palavras dele. Aqui já não há

mais exegese,

<327>

mas simplesmente uma reprodução individualizada de uma obra

escrita, uma espécie de reescritura (sem a arte do autor). Essa

atividade é tão comum nas aulas de português, envolvendo

textos literários, que até algumas editoras fazem acompanhar os

livros de literatura escolar de formulários e questionários para o

aluno dizer com as próprias palavras o que o autor escreveu, ou

preencher as lacunas dizendo do que trata determinada obra

literária.

Page 553: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Interpretação de base filosófica

Os comentários oriundos de estudos filosóficos são muito

diferentes porque envolvem não só um trabalho de exegese,

como também costumam vir acompanha dos de reflexões

pessoais de quem faz os comentários. Nota-se, necessariamente,

a comparação entre idéias de diferentes correntes filosóficas ou

filósofos. Um filósofo pode escrever um livro sobre as idéias de

Aristóteles, por exemplo, dizendo com as próprias palavras o que

o autor disse de mais importante e de interesse para o livro.

Porém, escrever um comentário sobre Aristóteles é totalmente

diferente. Exige um longo e árduo trabalho de pesquisa e de

estudo. No primeiro caso, dizemos que houve apenas uma

reprodução das idéias de Aristóteles; mas, no segundo caso,

houve de fato uma interpretação. A interpretação de texto deve

ser, sempre, necessariamente criativa e individualizada.

Questionário para interpretação de texto

Matérias como matemática, física, química, geografia, bem

como história e português, passaram a ter a partir da década de

60 um esquema diferente de tratamento de compreensão de

texto. Naquela época, a escola começou a pedir que os alunos

respondessem a questionários, cujos objetivos eram reproduzir

algo segundo as expectativas do professor ou do livro didático.

As respostas, portanto, podiam até vir dadas de antemão no

Page 554: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Manual do Professor, e todos os alunos acertariam se

conseguissem dar a mesma resposta. Nada de interpretação,

nada de pesquisa individual sobre o assunto, e, principalmente,

nada de opinião pessoal, fruto de pesquisas sérias ou não.

Bastava reproduzir o modelo dado pelo professor ou pelo livro

didático.

Esse tipo de tratamento também passou a ser dado a obras

literárias, nos livros didáticos e nas aulas de português.

Obviamente, tal atividade deveria ser abolida

<328>

da escola, em todas as matérias. Simplesmente reproduzir um

modelo não é um procedimento pedagógico recomendável

quando os alunos podem e devem usar da reflexão para

aprenderem.

Análise do discurso

Há, ainda, um tipo de interpretação de texto com o qual as

pessoas são levadas a deduzir do texto implicações de diversas

ordens, como reflexões filosóficas, psicológicas, ideológicas,

etc., que são explicitadas pelo leitor que interpreta, mas que não

foram objeto de preocupação direta do escritor. Certas análises

do discurso, por exemplo, desenvolvem todo o seu trabalho

nessa linha. Já não se pode dizer que esse tipo de trabalho seja

uma interpretação de texto propriamente dita, mas uma análise

do conteúdo lingüístico, psicológico, filosófico, ideológico,

Page 555: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

psicanalítico, etc., inerente a alguns aspectos do conteúdo do

próprio texto. É por essa razão que os lingüistas chamam essa

tarefa de análise do discurso.

Outro tipo de análise do discurso está voltado para o estudo

dos mecanismos lingüísticos que possibilitam a um texto ter

determinadas características e não outras. Aqui a base do estudo

são as estruturas lingüísticas, não as noções filosóficas,

psicológicas, ideológicas, etc.

Mais semelhante ao estilo apresentado logo acima são os

estudos de lingüística textual e de análise da conversação. A

lingüística textual está mais preocupada com os mecanismos de

coerência e coesão, que fazem com que o texto seja uma

unidade e tenha uma

estrutura bem montada. A análise da conversação preocupa-se

especialmente com o estudo dos mecanismos lingüísticos que

permitem que duas ou mais pessoas construam conjuntamente

um texto, como acontece nos diálogos, conversas, debates, etc.

Lingüisticamente, estudar as estruturas que dão forma a um

texto é a melhor maneira de fazer uma interpretação de texto.

Um texto tem estruturas semânticas e gramaticais (sintaxe,

morfologia, fonologia, etc.), além de estar inserido num contexto

(pragmática,

sociolingüística, etc.).

Page 556: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Os pretextos da interpretação de texto

Pode-se, pois, ver que o que se chama interpretação de texto

apresenta diversas formas e significados. Em resumo, podemos

juntar tudo nos seguintes tipos: análise

<329>

literal de palavras, frases, temas ou assuntos tratados; estudos

etimológicos; análise exegética; comentários pessoais dos mais

diversos tipos, extrapolações de natureza filosófica, psicológica,

ideológica, etc.; análise do discurso de base ideológica,

argumentativa ou simplesmente estrutural, envolvendo apenas

os elementos lingüísticos determinados pela gramática;

lingüística textual e análise da conversação.

Essas diferentes abordagens de um texto são interessantes e

têm seu valor. Porém, quando uma delas predomina, isso revela

uma concepção de linguagem fortemente marcada. Por exemplo,

quem estuda apenas o significado literal de palavras de um

texto, ou procura entendê-lo pela etimologia das palavras-chave,

revela uma concepção de linguagem muito ingênua,

desconsiderando as complexas relações que as unidades

lingüísticas estabelecem entre si e com o mundo em que se

inserem. Por outro lado, uma pessoa que só sabe ver

interpretações psicanalíticas, ideológicas, etc. mostra uma

concepção de linguagem em que os elementos lingüísticos são

apenas pretextos para considerações de outra ordem.

Page 557: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Lingüística e interpretação de texto

Lidar com o texto, portanto, tem envolvido tradicionalmente a

própria maneira de ser da linguagem, dos lingüistas, da

gramática de uma determinada língua e de elementos não-

lingüísticos, formando um contexto no qual o texto assume seu

valor e significado pleno. Em outras palavras, para se ter uma

compreensão ampla de um texto (oral ou escrito), é preciso

saber tudo sobre a linguagem e sobre o mundo a que essa

linguagem se refere. Estudar essa questão e explicitar todos os

fatos e fenômenos envolvidos, em última análise é tarefa da

lingüística. Esse estudo é tão complexo que leva os lingüistas a

acharem que estão apenas no começo de uma compreensão da

linguagem humana no seu todo. Mais difícil ainda é formular em

palavras os resultados das pesquisas sobre a linguagem. Por

essa razão, a lingüística tem se mostrado uma ciência um tanto

enigmática para quem estava acostumado apenas com a

gramática normativa tradicional.

Se, por um lado, é difícil entender e descrever a linguagem na

sua globalidade, por outro lado, o uso da linguagem no dia-a-dia

é algo muito familiar e até banal para os falantes. No mundo

todo, as pessoas falam e ouvem como se isso fosse algo tão

familiar, fácil e óbvio

<330>

Page 558: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

como andar e comer. Isso traz uma nova dimensão ao assunto.

Os falantes dizem seus textos ou escrevem-nos. Os ouvintes

ouvem textos e os leitores lêem textos escritos e fazem isso com

perfeição, sem precisar enunciar explicitamente todas as regras

de tudo o que está envolvido nessas atividades. Somente quando

surge uma dúvida específica, por exemplo, com relação a uma

palavra desconhecida ou usada de modo incomum, ou quando

surge uma curiosidade a respeito dos conhecimentos

relacionados com o texto, os usuários da língua necessitam de

uma reflexão particular para ajuda-los a entender melhor um

texto. Caso contrário, os textos são assumidos e consumidos

como auto-suficientes. Aliás, essa é uma das funções da

linguagem: achar que o interlocutor é capaz de entender o que

ouve ou lê. Sem esse pressuposto, não faz sentido sequer abrir a

boca para falar ou se pôr a escrever. O simples ato de pensar é

falar consigo próprio, supondo que o indivíduo é capaz de

entender o que ele formula lingüisticamente. Na verdade, toda

descoberta feita pelo homem nas ciências, nas artes e na

tecnologia só passou a existir no momento em que foi possível

pensar aquilo que se fez, isto é, colocar as idéias em palavras, e

essa é uma atividade tipicamente lingüística. Na Bíblia, se lê que

o próprio Deus usou a palavra para criar o mundo...

É preciso interpretar um texto?

Page 559: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Ao observar os usos da linguagem, notamos que uma pessoa

conversa com outra e, agindo assim, não precisa ficar fazendo

perguntas de vez em quando para saber se seu interlocutor está

entendendo ou não. Quando o interlocutor não entende algo, ou

pensa que está entendendo errado, ele simplesmente faz

perguntas para resolver suas dúvidas. Porém, certo tipo de

pergunta, ou mesmo uma quantidade grande delas, denota que

está acontecendo algo de errado. Perguntas que procuram

interpretar o texto são diferentes daquelas que aparecem

naturalmente numa conversa, conduzindo um assunto. Nesse

último caso, as perguntas têm uma função de construção do

próprio texto que está sendo produzido; no caso anterior, não.

Em outras situações da vida, como, por exemplo, quando

alguém está assistindo a um filme, a um programa de televisão,

ou visitando um museu, seria ridículo entregar aos

telespectadores ou visitantes um questionário de interpretação

de texto para saber se eles entenderam corretamente o que

viram. Isso não se faz

<331>

nem com os programas infantis. Seria interpretado como uma

forma de aviltamento do espectador, um modo de dizer que ele

não é capaz de entender as coisas e que sua capacidade

intelectual precisa ser monitorada. No fundo, seria uma forma de

negar a racionalidade do homem. Por mais pobre, miserável e

Page 560: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

estúpido que alguém seja, ainda assim é um ser dotado de

racionalidade e infinitamente mais complexo do que qualquer

outro animal ou máquina. É justamente porque o homem possui

a racionalidade que ele pode ofender, desprezar, menosprezar e

humilhar seu semelhante. Por isso, perguntar às vezes pode

ofender. Se alguém leu ou ouviu um texto em que está dito

"Maria comeu bolo de aniversário" e encontra um exercício de

interpretação de texto, que pede para ela dizer quem comeu o

bolo, que tipo de bolo ela comeu, se comeu o bolo inteiro ou

apenas um pedaço, isso pode até ser respondido, mas o fato de

se apresentar tais perguntas é, sem dúvida, uma ofensa. O

objetivo de perguntar é a busca de uma informação nova, e,

nesse caso, as perguntas servem simplesmente para averiguar

se o leitor é capaz de responder, e nenhuma informação nova é

solicitada. Mudando um pouco o contexto, isso seria semelhante

a um professor de ginástica que perguntasse aos seus alunos se

eles sabem o que é andar, se movimentar, parar, ou ainda,

depois dos exercícios, perguntar a eles se estiveram parados ou

se movimentando.

Entender o texto no seu contexto

Chegamos, assim, a um ponto importante: como se entende

um texto e o que se entende dele? Há diferenças, se o texto for

oral ou escrito?

Page 561: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Pelas considerações feitas acima, vimos que a resposta a

essas perguntas implica um conhecimento global da linguagem e

do mundo. Vimos também que, apesar disso, as pessoas utilizam

perfeitamente a linguagem, inserida no mundo, sem saber

explicitar as regras que a regem. Portanto, cada um entende um

texto, seja ele oral ou escrito, pelo simples fato de ser um

usuário de uma determinada língua. Se alguém diz para um

falante de português "Maria comeu bolo de aniversário", a

comunicação ocorre porque o falante sabe dizer dessa forma e

sabe que, agindo assim, seu ouvinte, um falante de português

como ele, entende o que foi dito, e esse conhecimento é da

dimensão exata que os falantes atribuem ao que se disse e ao

que foi ouvido.

<332>

Questionar o processo de produção da fala ou de recepção da

mesma é questionar a própria capacidade de quem fala ou de

quem escuta.

No entanto, alguém pode observar que também se constata

que há casos em que pessoas (até muito inteligentes), que

entendem errado o que ouvem, come tem enganos com a

linguagem, e assim por diante. Na verdade, esse tipo de objeção

nada tem a ver com o que foi dito acima; refere-se ao fato de a

linguagem se prestar não só a comunicar de forma correta, mas

também a carrear informações que têm por objetivo induzir o

Page 562: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

interlocutor a erro ou desafiá-lo a escolher a interpretação

necessária em meio a várias opções. Em outras palavras, a

linguagem pode trazer consigo muitas armadilhas para quem

fala e para quem ouve, porque isso também faz parte das

funções da linguagem. A linguagem não é apenas lógica,

inequívoca e completa, como alguns gostariam que fosse. Seu

emprego é um jogo que põe em desafio constante a natureza

racional de seus usuários.

O princípio da literalidade

Como a linguagem não é um exercício lógico e completo de

informações, falantes e ouvintes têm sempre mil opções de dizer

o que pretendem e de tirar de um texto toda sorte de

interpretações. Os usos sociais da linguagem, todavia,

encarregam-se de estabelecer certos limites, para que esta seja

um instrumento útil aos homens. Um desses limites é a

interpretação literal. O princípio da literalidade exige que todo

falante e ouvinte tenham, no sentido literal do que dizem ou

ouvem, o ponto de partida e a referência básica para toda e

qualquer interpretação complementar que se queira atribuir ao

texto. Por interpretação literal, entenda-se o uso comum que se

faz das palavras. Portanto, se alguém disser: "O pé da cadeira

quebrou", a palavra "pé", aqui, tem como sentido literal "o pé da

cadeira" e não o significado de uma parte do corpo humano.

Page 563: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Tanto assim é verdade que ninguém pensa em parte do corpo

humano quando encontra a expressão "pé da cadeira". Somente

as pessoas interessadas nos estudos etimológicos pensam

nessas hipóteses. Literal, portanto, significa o que está dito, do

jeito que está dito. Pensar em parte do corpo, nesse caso, é levar

em conta algo que não foi dito, nem pensado, mas simplesmente

associado à palavra "pé", uma vez que ela possui esse significa

do, mas em contexto muito diferente.

<333>

Quando ocorrem interpretações diferentes sobre um mesmo

fato ou enunciado é porque todo texto precisa ser entendido

dentro de um contexto lingüístico, de coesão, coerência e,

depois, referencial, ou seja, do mundo em que o texto se insere.

Quando o contexto lingüístico não é favorável, ou quando não

se dispõem das informações referenciais adequadas, interpretar

um texto pode ser uma tarefa inútil ou, no máximo, de solução

duvidosa, sem a possibilidade de se chegar a um resultado

seguro.

Para entender o que se lê, o que se ouve ou, mesmo, para

produzir um texto que está sendo lido ou ouvido, o falante e o

ouvinte/leitor utilizam-se de todos os conhecimentos já

adquiridos, quer com relação aos usos da linguagem, quer com

relação à interpretação de uma cosmovisão que cada um tem

para si. Em outras palavras, cada um usa a linguagem segundo

Page 564: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

seu próprio metabolismo intelectual. Ora, se isso é assim, por

que se preocupar com o que as pessoas dizem ou entendem? É

por essa razão que a sociedade não faz roteiro para as pessoas

falarem nem questionários de interpretação de texto após uma

conversa qualquer. Essas atividades de produção e de

compreensão da linguagem são totalmente individuais e cada um

responde por si. Se fosse diferente, a linguagem seria algo

inconcebível na sociedade. Do jeito que ela se apresenta, é algo

fascinante, desafiador e maravilhoso.

Interpretação de texto e estudo escolar

Como a escola é um lugar onde as pessoas aprendem, é

natural que os professores se preocupem com o progresso dos

alunos. Isso inclui, entre outras coisas, avaliar a aprendizagem.

É por essa razão que os professores acham que precisam fazer

interpretação de texto, para checar se os alunos entendem o que

lêem. Essa avaliação, sem dúvida alguma, faz parte das

preocupações da escola. Porém, é preciso entendê-la

corretamente. Não só faz sentido, como é necessário que o

professor faça interpretação de texto, quando se trata de textos

científicos, como os de matemática, geografia, história, etc. Até

mesmo uma interpretação literária pode e deve ser feita. Pode-

se e deve-se fazer análise lingüística dos textos.

Porém, não é isso o que se encontra nos exercícios tradicionais

Page 565: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de interpretação de texto. Perguntar qual é o tema de um

romance não é fazer análise literária. Mandar o aluno preencher

as lacunas com palavras ou

<334>

citações de um texto não tem nada a ver com o tipo de

interpretação de texto mencionada acima; é simplesmente um

exercício idiota ou, quando muito, um passatempo. Um aluno

pode e deve memorizar os procedimentos científicos, a

cronologia histórica, as características geográficas, mas não são

os exercícios de preencher lacunas que vão lhe dar as condições

para isso:

estudar envolve estratégias mais inteligentes.

Uma delas é fazer com que uma leitura puxe outra, e um texto

puxe outro, um trabalho leve a outro e assim por diante. Um

aluno que interpreta bem um texto deve ser capaz de aplicar o

que estudou, e o fato de fazer corretamente algo relacionado

com o conteúdo do texto é prova mais do que suficiente de que

ele leu e entendeu corretamente. Se errar, pode-se voltar ao

texto e ver qual ponto não ficou claro, razão pela qual o aluno

não conseguiu fazer o que lhe foi pedido.

Por trás dessa discussão, mais uma vez, está a idéia de que a

escola não deve ensinar apenas um determinado conteúdo aos

seus alunos, mas deve, principalmente, ensinar como estudar

esse conteúdo. Em outras palavras, ela precisa cuidar muito

Page 566: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

atentamente do modo como os alunos estudam. Fazer

interpretação de texto pode ser uma catástrofe para a vida

escolar do aluno se ele chegar à conclusão de que só pode

aprender algo respondendo a perguntas ou, pior ainda, se passar

de ano pensando que aprendeu, ao ver que respondeu

corretamente às perguntas que lhe foram feitas, de acordo com

o livro ou com a matéria que o professor passou na lousa.

Nesse tipo de atividade, falta a reflexão criadora do aluno,

falta a iniciativa para construir a própria aprendizagem, falta a

imaginação dedutiva que o leva a propor para si coisas novas, a

partir de coisas velhas que aprende. Isso tudo mostra que o

professor que estimula seus alunos a trabalhar tem todas as

condições de que precisa para avaliá-los. Por isso, não necessita

fazer uma lista de perguntas, no fundo geralmente descabidas.

A mania de a escola querer controlar a vida intelectual das

pessoas cria raízes na sociedade e dá frutos na nossa cultura.

Muitos intelectuais ficam cheios de pruridos quando falam,

porque estão sempre supondo que serão mal entendidos e,

conseqüentemente, outras pessoas irão achar que eles são

imbecis. Quando se fala e se ouve, há sempre a possibilidade de

enganos. Isso faz parte dos usos da linguagem, bem como

discutir e rever o que foi dito ou entendido. Esse é o jogo da

linguagem, e nenhum texto ou falante está imune a esse risco.

<335>

Page 567: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O tormento em que vivem certas pessoas tem sua origem nesse

medo de serem mal entendidas quando usam a linguagem

porque a escola sempre teve essa atitude com elas.

Portanto, como vimos, fazer interpretação de texto faz sentido

quando se procede a uma análise científica do mesmo, quer para

aprender conteúdos específicos das ciências e das artes, quer

para aprender sua natureza lingüística. Não faz sentido fazer

interpretação de texto com o simples pretexto de ver se o aluno

entendeu ou não o que leu, através de perguntas de identificação

de palavras ou de idéias.

Vale a pena fazer interpretação de texto?

A escola precisa se perguntar se vale ou não a pena fazer

interpretação de texto. O que acontece se não fizer? A resposta a

essas perguntas fica mais clara quando se leva em conta que

uma verdadeira interpretação de texto tem mais a ver com as

estruturas lingüísticas textuais do que com seu conteúdo.

Discutir o conteúdo de um texto é discutir as idéias do autor.

Nesse caso, é imperativo que outros conhecimentos, além dos

detectados no texto, sejam evocados para que a discussão seja

bem feita.

Além disso, a escola precisa se questionar sobre os textos que

ela usa para fazer interpretação de texto. Os professores fazem

interpretação somente de textos literários (ou

Page 568: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

presumivelmente). Ora, esse tipo de texto é o menos

recomendável, uma vez que os exercícios de interpretação visam

apenas a detectar a identificação de palavras e idéias. Pior ainda,

os textos usados nas primeiras séries são escritos de tal modo

que permitem às crianças uma leitura tranqüila. Textos

científicos, que eu saiba, não são usados para fazer

interpretação de texto e são justamente os mais indicados para

isso. A formulação de problemas de matemática tem

características próprias, como a poesia, o conto, a piada, etc.

Estudar as características estruturais que fazem com que esses

textos sejam do jeito que são consiste num exercício de

interpretação de texto que a escola precisaria fazer.

A outra afirmação clássica apresentada pelos professores

para o uso das tradicionais interpretações de texto é o fato de

alguns alunos virem de famílias pouco acostumadas com textos

escritos e com o uso escolar desse material nos estudos.

Resumindo, os professores acham que passando os tradicionais

exercícios de

<336>

interpretação de texto, esses alunos irão aprender a fazer o que

a escola espera deles ou seja, resolver seus problemas

escolares. Alguns professores estão profundamente convencidos

disso uma vez que sempre fizeram assim e obtiveram resultados

muito satisfatórios. Mais uma vez, deve se dizer que esses

Page 569: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

professores estão satisfeitos com esse tipo de trabalho e

resultado por que não conhecem outro modo de trabalhar nem

os resultados que poderiam ter, se optassem por um tipo de

trabalho diferente Em segundo lugar, exercícios de interpretação

de texto não dão a base cultural necessária para o que alegam.

As crianças pobres conseguem isso à medida que tomam cada

vez mais contato com a leitura e se põem a ler mais e mais.

Então, é a leitura que propicia os bons resultados apontados

pelos professores e não os exercícios de interpretação. Esses

professores devem ver as coisas também a longo prazo e levar

em consideração o mal que os exercícios tradicionais de

interpretação de texto trazem para os alunos, fazendo deles

pessoas que não cortam o cordão umbilical da alfabetização e,

conseqüentemente, não adquirem a liberdade de ler um texto e

refletir sobre ele com autonomia.

Quando uma pessoa está lendo um texto e encontra uma

palavra cujo significado desconhece, é natural que pergunte. O

mesmo acontece quando o conteúdo do que está lendo não é

compreendido. Por essa razão, o professor deve dizer para os

alunos que busquem a solução para essas dúvidas perguntando,

procurando no dicionário ou de outras formas. Como o professor

não pode saber de antemão quais são as dúvidas de seus alunos,

não pode tomar a iniciativa antes deles. Isso não tem nada a ver

com interpretação de texto propriamente dita. E uma prática

Page 570: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

saudável que deve acompanhar toda leitura.

Estamos, pois, diante da seguinte situação: deixar de lado os

exercícios tradicionais de interpretação de texto, que procuram

apenas a identificação de palavras ou de idéias. Em lugar disso, o

professor irá promover estudos específicos sobre os mais

variados textos, levando em consideração os diversos interesses

suscitados pelos textos. Assim, um texto literário pode servir

para discutir literatura; uma poesia pode servir para estudar o

que é poesia.

Obviamente, um professor não vai estudar o que é poesia após

a leitura de cada poesia. Interpretação de texto como essa se faz

quando é necessário ou conveniente,

<337>

e não com todo texto que se lê. O professor pode estudar a

estrutura de uma piada, de um problema de matemática ou de

qualquer tipo de texto. Pode comparar um texto de jornal com

um texto de livro e ver as diferenças. Determinados assuntos

podem ser analisados, observando-se como vêm expressos em

tipos diferentes de textos, como cartas, notícias de jornal,

estudo técnico sobre o assunto, etc.

Interpretar um texto ou debater uma idéia?

Uma atividade importante, que a escola deve cultivar com

carinho, é o debate. Nesse caso, o texto representa apenas uma

Page 571: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

das idéias em discussão. Os alunos não vão simplesmente

responder a perguntas de identificação, mas irão, pelo contrário,

apoiar ou rejeitar o que o autor disse, tendo em vista os

argumentos que entram na discussão que estão fazendo. Essa é

uma das melhores maneiras de avaliar se os alunos

aproveitaram muito ou pouco do que leram. Assuntos mais

técnicos permitem discussões mais fáceis, assuntos mais

polêmicos suscitam opiniões diferentes, e histórias de fantasia

permitem reelaborações críticas da história e de sua forma de

apresentação que também representam atividades muito úteis

na escola.

A grande vantagem do debate sobre a interpretação de texto é

que permite que as pessoas possam responder, levando em

conta o que ouvem e, dessa forma, elaborar por etapas um

comentário mais completo a respeito do que pensam. Um grande

problema das interpretações de texto é a falta de possibilidade

de estender a exposição de uma idéia, o que causa

freqüentemente confusões, estranhas conceituações e

conclusões falsas.

Atividades alternativas à interpretação de texto

A atividade de leitura não deve implicar necessariamente a

interpretação de texto. A leitura deve servir para o aluno buscar

informações, instruções, para estudar, como também, para se

Page 572: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

distrair, se divertir, descansar, etc. A melhor maneira de perder

um leitor é pedir para ele preencher uma ficha de avaliação ou

de interpretação de texto. Essas fichas de leitura só servem para

destruir o prazer de ler. Em lugar disso, a escola deve ensinar os

alunos a tomarem notas de coisas bonitas e interessantes que

leram, colecionando

<338>

esses excertos, versos, pensamentos, etc. em cadernos de

anotações pessoais. É claro que cada um vai escolher a atividade

que achar mais interessante. Seria ridículo obrigar uma classe a

colecionar as mesmas coisas.

Fazer resumos de lições é uma boa prática escolar. Aqui

também, cada um faz de seu modo. Esses esquemas devem ser

personalizados, e, portanto, o professor promove a atividade,

pode discutir o que cada um fez e ensinar o que for necessário.

Esse tipo de trabalho com texto deveria ser a grande

preocupação dos professores de todas as matérias, e não só dos

de português e de alfabetização.

Uma prática muito usada por alguns professores, e que pode

substituir com vantagens os exercícios tradicionais de

interpretação de texto, é partir de um texto para fazer outro,

seja recontando uma história, seja adaptando o conteúdo a outra

forma de texto. Um aluno lê uma história sobre o trânsito ou a

vida de alguém famoso e, depois, escreve com as próprias

Page 573: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

palavras o que se lembrar do que leu. Ou então, o aluno lê uma

poesia e transforma-a numa carta ou vice-versa. Esse tipo de

trabalho é muito recomendável, pois ensina as características

dos textos.

Muito do que foi dito acima serve para a prática do professor

em séries mais adiantadas. Na alfabetização, o mais importante

é dar chance aos alunos de ler e escrever o máximo possível,

como atividade individual. Um professor alfabetizador não

precisa, na verdade, se preocupar em trabalhar os textos de

maneira mais técnica: o melhor é produzi-los e ler.

Outra questão vinculada à interpretação de texto é o ensino da

gramática. Reduzir o ensino de português à análise de textos é

absurdo. Querer tirar todo o ensino gramatical de textos é

catastrófico. Se os textos forem os de leitura comum, há ainda o

inconveniente de despertar nos alunos aversão à leitura e aos

estudos em geral, porque acham que texto só serve como

pretexto para o estudo da gramática.

Os textos da interpretação de texto

Finalmente, e preciso dizer alguma coisa a respeito dos textos

que os professores dão para seus alunos lerem. De modo geral,

especialmente na alfabetização, a impressão que se tem é que a

grande maioria dos professores usa os piores textos como

exemplo para os alunos. Alguns escolhem os textos semelhantes

Page 574: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

aos

<339>

encontrados nas cartilhas, que são os piores textos já

produzidos por alguém. Outros adaptam letras a canções

conhecidas para ensinar determinados conteúdos, e o resultado

literário apresentado é simplesmente horroroso. As escolas têm

recebido um grande número de livros de história de fantasia, à

moda dos contos de fada modernos. Destes, uns poucos livrinhos

são bem-feitos e têm valor. Não é raro encontrar livrinhos com

histórias sem pé nem cabeça, ridículas ou, quando muito,

histórias para boi dormir, como se costuma dizer. Alguns autores

pensam que o conteúdo de livros infantis deve ser inverossímil,

porque as crianças vivem no mundo da fantasia. Todo o mundo,

mesmo os adultos, vive no mundo da fantasia. Todo o mundo,

mesmo as crianças, tem senso da realidade. Um excesso de

leitura que navega em fantasias absurdas não pode ser uma boa

prática escolar.

Além desse tipo de livros, a escola deve incentivar os alunos a

lerem livros sérios, que tratem de coisas sérias. Tudo o que se

diz para um adulto pode ser dito para uma criança, bastando

escrever de maneira adequada para um ou para outro. Alunos

que só lêem livros de histórias de fantasia dificilmente depois

vão ler um livro de matemática ou de história diferente do livro-

texto adotado pelo professor nas séries mais adiantadas.

Page 575: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A partir de 1964, com a falsa alegação de proteger o mercado

editorial nacional, os editores praticamente pararam de publicar

traduções das grandes obras literárias estrangeiras. Nos últimos

anos, porém, essas obras voltaram às prateleiras das livrarias.

Felizmente, hoje é possível comprar muitas obras-primas da

literatura universal até em bancas de jornal. Apesar dessas

facilidades atuais, ainda raramente se vê um grande escritor

entre os textos que os alunos lêem, sobretudo nas primeiras

séries, porque os professores acham que seus alunos são

incapazes de entender. Com isso, ficam privados do que existe

de melhor em termos de texto e de leitura, simplesmente porque

seus professores são preconceituosos com relação à capacidade

de entender de seus alunos.

A salvação não é fazer interpretação de textos, mas dar aos

alunos o que há de melhor: a leitura dos grandes escritores. Os

frutos que cada um vai colher irão depender do modo como cada

um vai cultivar a própria vida como leitor. Para a escola, já seria

muito se convencesse os alunos a se tornarem leitores.

<340>

13

Ortografia da língua portuguesa

BREVE HISTÓRIA DA ORTOGRAFIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Page 576: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A influência do sistema latino

A língua portuguesa veio do latim. Os romanos estabeleceram

colônias na península Ibérica, implantando a cultura latina entre

os povos da região. Os árabes vieram depois e dominaram a

península do século V ao século IX. Durante essa época, Portugal

não passava de uma província dominada pela Espanha. Logo

depois da expulsão dos árabes, Portugal tornou-se um país

independente da Espanha.

Não se sabe quais línguas eram faladas ali, antes da chegada

dos romanos. Em Portugal, certamente era falada alguma língua

celta e, na Espanha, uma ou mais línguas iberas, além do basco.

O latim foi se fixando nessa colônia, adquirindo seu sotaque

próprio, firmando-se inicialmente como dialeto e, depois, como

língua. No século X já se podia distinguir claramente o espanhol

do português. Havia também o galego, falado na Galícia, ao norte

de Portugal, hoje território espanhol. O basco e o catalão

sobreviveram como línguas de minorias no território espanhol.

Em Portugal, no final da Idade Média, o latim era usado nos

documentos oficiais, entre as pessoas cultas, nas escolas, nos

livros e nos documentos religiosos. O povo, sempre pobre e

ignorante, compreendia cada vez menos o latim e usava quase

exclusivamente o português, no dia-a-dia. As pessoas que

sabiam latim escreviam de acordo com as normas estabelecidas,

embora se possa encontrar nessa época um latim bem diferente

Page 577: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

do latim clássico. A ortografia, como sempre, resiste mais às

variações dialetais, dando a impressão de que a fala não mudou

muito. Erros de grafia têm sido usados por estudiosos para

levantar hipóteses a respeito das variações da fala do latim em

diferentes regiões. Esse é um método não muito seguro, mas que

permite um começo de pesquisa, que demonstrará depois se as

hipóteses se sustentam ou se são mero fruto de erros de escrita.

Por outro lado, as pessoas sabiam que, se o latim podia ser

escrito, por que não usar o mesmo sistema com adaptações para

escrever também o português, o espanhol, o francês? A primeira

resistência à escrita veio do fato, que se tornava notório na

escrita, de que essas línguas ainda pareciam dialetos do latim,

uma espécie

<342>

de latim estropiado. Com o aumento do sentimento de

nacionalismo e de independência desses povos, a língua

vernácula passou a ocupar o lugar da norma culta, que antes era

o latim clássico. Por volta do século X o latim era usado apenas

em livros e em circunstâncias muito específicas e não mais no

dia-a-dia. Naquela época, o latim já não era mais a língua do

povo nem mesmo em Roma; lá falava-se o romanesco.

Com o surgimento das primeiras obras literárias nas línguas

vernáculas, tornou-se imperativo que a literatura continuasse a

ser escrita nessas línguas, deixando o latim para algumas obras

Page 578: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

científicas.

Como as pessoas estavam acostumadas com o alfabeto latino,

passaram a usar esse sistema para escrever. No princípio, a

adaptação das línguas apresentou muitas variações, revelando

uma espécie de transcrição fonética, misturada com

representações ortográficas próprias do latim. Esbarrando na

variação dialetal, as palavras foram adquirindo uma forma

padronizada pelo uso mais constante, fixando-se a ortografia

que deveria valer para todos os usuários e ser um modelo para o

ensino.

No nosso caso, como o português não era latim, algumas

modificações no sistema de escrita eram inevitáveis, sobretudo

nas relações entre letras e sons. Somente a ortografia iria,

depois, definir com precisão o valor das letras no sistema de

escrita da nova língua. A influência árabe deixaria sua marca

com o uso dos acentos gráficos para marcar diferentes

qualidades vocálicas. A escrita em Portugal também sofreu

influência da escrita praticada na Itália, na França e sobretudo

na Espanha, onde havia centros culturais de grande importância

na época.

Documentos antigos

Um grande estudioso da língua portuguesa, José Lei te de

Vasconcellos, tem dito que o documento mais antigo em língua

Page 579: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

portuguesa, misturada com o latim da época, data de 1161.

Trata-se de um título de venda. Nesse documento, que é bem

curto, lê-se: "deslo rriuolo ate no rego que uai por a uila"... (a

letra u é igual à letra V). O segundo documento mais antigo data

de 1193 e é o seguinte:

IN NOMINE CHRISTI NOMINE. AMEN. Eu Eluira Sanchiz offeyro

o meu corpo áás virtudes de Sam Salvador do moensteyro de

Vayram, e offeyro co' no meu

<343>

corpo todo o herdamento que eu ey en Centegãus e as três

quartas do padroadigo d'essa eygleyga e todo hu herdamento de

Crexemil, assi us das sestas como todo u outro herdamento: que

u aia u moensteyro de Vayram por en SAECULA SAECULORUM.

ÁMEN.

Fecta karta mense Septembri era MCCXXIX!.

Menendus Sanchiz testes. Stephanus Suariz testes. Vermúú

Ordoniz testes. Sancho Diaz testes. Gonsaluus Diaz testes.

Ego Gonsaluus Petri presbyter notauit.

Um documento interessante sob vários pontos de vista é a

famosa carta de Pero Vaz de Caminha, contando o

descobrimento do Brasil. A ortografia que se vê no texto pode

Page 580: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ser sentida no pequeno trecho abaixo:

afeiçam deles he seerem pardos maneira dauerme lhados de

boõs rrostros e boos narizes bem feitos. amdam nuus sem nhuua

cubertura. nem estimam n huua coussa cobrir nem mostrar suas

vergonhas, e estam açerqua disso com tamta jnocençia como

teem em mostrar orrostro. traziam ambos os beiços de baixo

furados e metidos por eles senhos osos doso bramcos de

compridam dhuua maão travessa e de grosura dhuu fuso

dalgodam e agudo na põta coma furador, mete nos pela parte de

dentro do bei ço e oque lhe fica antre obeiço eos demtes he feito

como rroque denxadrez e em tal maneira o trazem aly emcaxado

que lhes nom da paixã nem lhes tor ua afala nem comer nem

beber, os cabelos seus sam coredios e andauã trosqujados de

trosquya alta mais que de sobre pemtem deboa gramdura e

rrapados ataa per cima das orelhas...

Observe, entre outras coisas, a palavra "cubertura" escrita

com U, "coussa" escrita com SS, "grosura" e ' escritas com

apenas um S. Perceba o uso do Ç em "açerqua" e "jnocemçia" e

o uso de M em vez de N em muitas palavras como "tamta",

"bramcos". Compare "demtes" com "dentro". Veja ainda o não-

registro do ditongo AI em "emcaxado". Há ainda fatos de

segmentação, como "os beiços" e "obeiço". A questão da carta

Page 581: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

não se refere apenas à ortografia em uso na época, mas é

evidente que o autor variava bastante a forma de grafar por

iniciativa própria.

<344>

Tentativas de reforma e unificação

O que não tem faltado, na história da língua portuguesa, é

gente interessada em mudar a ortografia. Quanto mais se fazia

nesse sentido, percebia-se logo que piorava, até que chegamos

ao final do século passado com uma situação tão caótica que se

tornava imperativo tomar uma providência drástica. Certamente,

veio agravar em muito a enorme quantidade de livros e de

material impresso que começava a ser produzida. Ainda hoje, é

fácil entrar numa biblioteca e encontrar livros antigos, nos quais

podem ser vistas as mais diversas formas de grafar as palavras.

Primeira unificação das ortografias

Começou em Portugal, no final do século passado, um

movimento de reforma ortográfica que passou a contar com o

apoio da Academia das Ciências de Lisboa e do governo.

Gonçalves Viana publicou sua famosa Ortografia Nacional em

1904, com o subtítulo: Simplificação e un sistemática das

ortografias portuguesas. Uma comissão foi formada com a

presença de Cândido de Figueiredo, Gonçalves Viana, Carolina de

Michaelis, Leite de VasconceLlos e Adolfo Coelho. A comissão

Page 582: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

encontrou dificuldades para contentar a todos e o projeto de

reforma foi se arrastando no tempo.

A proposta de Gonçalves Viana procurava aproximar a

ortografia da fonética no que fosse possível, sugerindo formas

"mais simples" e "seguindo regras". Sua proposta foi em grande

parte incorporada à Ortografia que usamos hoje. Mas ele

propunha coisas mais audaciosas, como escrever FICSO (fixo),

PROSSIMO (próximo), ELEJER (eleger), PAJINA (página), ou

ainda: TAM (tão), EMQUANTO (enquanto), ÇAPATO (sapato), etc.

Primeira reforma ortográfica oficial no Brasil

No Brasil, a recém-criada Academia Brasileira de Letras, sob a

presidência de Machado de Assis, recebeu em 25 de abril de

1907 um projeto de reforma ortográfica proposto pelo

acadêmico Medeiros e Albuquerque. O projeto objetivava

simplificar ao máximo a grafia das palavras, aproximando-se do

modelo de Gonçalves Viana e de Cândido de Figueiredo. A

discussão foi calorosa e mesmo naquela sessão já apareceu

quem quisesse reformar a reforma. Carlos de Laet manifestou-se

revoltado

345

contra a reforma, declarando em seu discurso:

"Assim — vou concluir — sou infenso à miseranda reforma,

julgando-a, como tenho demonstrado, — contraproducente,

Page 583: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

selvagem, anti-patriotaa, inoportuna, descriteriosa, anti-

philosophica, mal-fundamentada e ridícula:" Apesar da

discussão, a reforma acabou aprovada com emendas. A

regulamentação do disposto em 1907 aconteceu somente em

1912.

As reformas da reforma ortográfica

Em 1915, Silva Ramos, da Academia Brasileira de Letras,

propôs ajustar o sistema ortográfico brasileiro ao português de

1911. A proposta chegou até o Congresso Nacional e foi

rejeitada. Em 1919, por iniciativa do acadêmico Estrada, a

Academia Brasileira de Letras rompe as negociações com a

Academia das Ciências de Lisboa, no sentido de procurar uma

unificação das ortografias oficiais. Em 1929, a Academia

Brasileira de Letras propõe um novo sistema ortográfico.

Um novo esforço de unificação dá-se em 1931, com a

participação das duas Academias, chegando-se a um acordo em

30/04, e ficando como base (regras) o estabelecido na

ortografia portuguesa de 1911. O governo brasileiro aprova o

acordo com o decreto 20/08 de 05/06.

O decreto 20 028 de 02/08 de Getúlio Vargas torna

obrigatório o uso da ortografia oficial em documentos e nas

escolas. Curiosamente, apesar de tudo estabelecido, o ministro

Gustavo Capanema solicitou de uma comissão especial um novo

Page 584: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

projeto de reforma ortográfica, entregue em 21/12/1937, que

foi, porém, ar quivado. Em 1938, no entanto, Capanema faz

aprovar o decreto-lei 292, de 23/02, introduzindo novas nor mas

de acentuação extraídas do projeto de 1937, e forma uma

comissão presidida por José de Sá Nunes, soli citando da

Academia Brasileira de Letras um novo Vocabulário ortográfico.

Portugal lançou outro Vocabulário ortográfico em 1940,

elaborado pela Academia das Ciências de Lisboa, que,

curiosamente, também foi adotado pelo governo brasileiro em

1940. Em 29/01 de 1942, a própria Aca demia Brasileira de

Letras sugere o uso do Vocabulário ortográfico português.

Dada a nova situação, nada mais previsível do que fazer um

novo acordo de unificação das ortografias oficiais. Em 29 de

dezembro de 1943, a Convenção Ortográfica Luso-Brasileira,

reunid em Lisboa, fez o Acordo

<346>

de Unificação das Ortografias. Aprovadas as Instruções (bases

ou regras), recomeçaram as discussões nos dois países,

mostrando que a situação não era tranqüila fora da comissão e

das Academias.

O ano de 1945 foi de muita luta pela reforma ortográfica. Uma

nova Conferência Interacadêmica para a Unificação da Ortografia

Luso-Brasileira reuniu-se em Lisboa. O decreto 35228 de 08/12

do governo português ratificou as decisões da conferência. O

Page 585: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

decreto-lei 8 286 do governo brasileiro aprovou a conferência e

seus resultados. O decreto 35 228 de 08/12 determinou um novo

Vocabulário ortográfico. Portugal também se propôs a fazer um

novo Vocabulário ortográfico, em comum acordo com a

Academia Brasileira de Letras. Os portugueses publicaram logo

seu Vocabulário, mas o Brasil somente em 1947

O Acordo de 1943 tinha incorporado mais "o jeito de escrever"

do Brasil, modificando bastante o de Portugal. A Conferência

Interacadêmica voltou ao "jeito de escrever" mais típico de

Portugal, modificando o uso mais comum no Brasil. A briga

continuava forte fora das Academias, com muitos intelectuais

brasileiros inconformados com as decisões tomadas. Por isso,

em 1955, a lei 2 623 de 21/10 restabeleceu para o Brasil o

sistema ortográfico do Pequeno vocabulário ortográfico da

língua portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras

em 1943, revogando o decreto-lei 8 285.

O desentendimento entre Portugal e Brasil era evidente e

intenso. Desse modo, Portugal ficou com o sistema ortográfico

de 1945 e o Brasil, com o de 1943.

Em 1971 um parecer conjunto das duas Academias introduziu

pequenas modificações na ortografia de ambos os países, como a

queda do acento diferencial (mêdo/medo). No Brasil tal

modificação tornou-se oficial com a lei 5 765 de 18/12.

Em i986 começou uma nova tentativa de unificação das

Page 586: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ortografias vigentes por proposta do acadêmico Antonio Houaiss.

Depois de tantas reformas, sobraram poucos detalhes para

unificar as duas ortografias. A questão mais problemática

continuou sendo aquela que caracteriza de modo mais

significativo o 'jeito de escrever" de Portugal e do Brasil, ou seja,

as "consoantes mudas". Em Portugal, escrevem-se algumas

consoantes que não são pronunciadas, como em FACTO, ACTO,

RECEPÇÃO ou que são pronunciadas em outras palavras como

CARÁCTER, APTO, não ocorrendo uma correspondência no Brasil.

<347>

Como vimos, a grafia dos vocábulos da língua portuguesa foi

fixada através de regras estabelecidas no projeto de reforma

ortográfica, que recebeu aprovação do governo e acabou se

transformando numa lei ou decreto. Dessa forma, a ortografia

tornou-se oficial e obrigatória. Infelizmente esse assunto não

deveria ser objeto de lei, pelo menos do jeito como aconteceu.

Deveria ser objeto da educação, mas como, num país como o

Brasil, a cultura e os assuntos culturais não têm vez e estão

ausentes da vida das pessoas, mesmo dos políticos, a única saída

que as pessoas têm para implantar a ortografia reformada é

através das leis. E quem escreve errado, como fica perante a lei?

Comete uma contravenção?

As regras referem-se também aos nomes das pessoas. Na

prática, cada pessoa recebe um nome com a grafia que os pais

Page 587: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

decidiram (ou que o cartório registrou). Assim, em muitos

nomes, aparecem as letras K, Y e que, de acordo com as normas

vigentes, não deveriam ser usadas. Nomes próprios de lugares,

cidades, etc. também têm problemas ortográficos: será MOGI ou

MOJI, PIRASSUNUNGA ou PIRAÇUNUNGA? Quem decide, nesses

casos, são os decretos que atribuíram um nome a esses

logradouros públicos.

REFORMA ORTOGRÁFICA E ALFABETIZAÇÃO

Alguns professores acham que uma reforma ortográfica iria

facilitar a vida das crianças que estão se alfabetizando. Muitas

pessoas na sociedade e até nas universidades pensam assim.

Elas acham que seria mais fácil escrever MEZA como BELEZA, por

exemplo. Argumenta-se que seria bom que se escrevesse Z

quando tivéssemos o som de "zê" e que o S fosse usado apenas

para representar o som de "çê". Do mesmo modo, haveria outras

regras semelhantes.

Fazer reforma ortográfica não resolve problemas de

alfabetização. Na verdade, as reformas ortográficas atrapalham

mais do que ajudam. Uma vez feita uma mudança, as novas

gerações aprenderão do mesmo jeito que as gerações anteriores

aprenderam a velha ortografia, de tal modo que na prática nada

muda. Todavia, os que já aprenderam de um jeito terão de

mudar seus hábitos.

Page 588: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Indo contra a tradição da língua portuguesa, os estudiosos das

culturas indígenas brasileiras passaram a chamar os índios das

diversas tribos sem acrescentar o s de plural, dizendo, por

exemplo, 'bs bororó' ' tupinambá' etc. Na história das escritas (e

sobretudo das ortografias), os nomes oriundos de outras línguas

sempre criaram grandes problemas.

<348>

Voltando à regra anterior, analisemos o seguinte exemplo:

CASAS AMARELAS. Como deveria ser a grafia reformada? Se a

regra fosse escrever Z onde se fala "zê", para um paulista a nova

grafia seria CAZAZ AMARELAS. Porém, se tiver de escrever

CASAS FEIAS, a nova grafia ficaria: CAZAS FEIAS, mostrando

que, agora, em vez de se escrever apenas CASAS, teremos de

escrever CAZAS ou CAZAZ, dependendo do contexto. Se fosse um

carioca, as coisas seriam diferentes. Teríamos CAZAZ

AMARELAIX e CAZAIX FEIAIX. Os adeptos da reforma respondem

dizendo que basta escrever CAZAS com Z. Ora, se for para mudar

uma letra simplesmente sem mexer com a pronúncia, é muito

mais vantajoso deixar tudo como está. Se for para seguir a

pronúncia.., as coisas são diferentes. Na verdade, quem quer

mudar o S pelo Z expressa apenas uma dificuldade individual,

não um problema geral da língua.

Pequenas reformas poderiam ser feitas e de fato acontecem

em espaços de tempo longos em todas as línguas. Porém, não há

Page 589: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

vantagens nas modificações, em geral, o que equivale a dizer

que a melhor atitude é sempre não alterar a ortografia.

Os professores que acreditam que reformas ortográficas

ajudariam as crianças precisam analisar a questão mais

profundamente. Para quem não sabe, a dificuldade não está em

grafar CAZA ou CASA, mas em escrever QAXA, QUAZA, etc. como

alguns fazem. Como alguém pode sugerir uma reforma

ortográfica se o aluno fala:

"Nóis fumu dispoiz andá dj psicréta"? Ensinar a norma culta para

o aluno acertar a ortografia é um equívoco muito grande. O

melhor é explicar todos esses problemas de maneira clara, de tal

modo que ele vá aprendendo as diferenças entre fala e escrita, e

as formas de escrever as palavras, seguindo ou não a ortografia.

Como ela foi inventada para neutralizar a variação lingüística,

voltar a usar o alfabeto como um código para fazer transcrição

fonética é destruir a essência da ortografia.

ORTOGRAFIA E ESCOLA

CAGLIARI, 1994b. > Nas aulas de português, a ortografia tem

sempre um papel muito importante. Algumas pessoas acham que

e na alfabetização que os alunos devem aprender a ortografia de

todas as palavras Alias, o critério mais comum de aprovação ou

reprovação na alfabetização é estudiosos

<349>

Page 590: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

um julgamento sobre o conhecimento que o aluno tem da

ortografia das palavras. Alguns professores chegam mesmo a

estabelecer uma porcentagem para essa decisão. Obviamente,

esse critério estatístico não faz sentido dentro de uma pedagogia

saudável, mas infelizmente existe em muitas escolas. Às vezes, a

decisão do professor baseia-se na aversão que tem a certos

erros. Se o aluno escrever PEÇOA (pessoa) ou BRICPZA

(princesa) deverá ser reprovado sem mais discussão. São erros

insuportáveis, que denotam um analfabeto (sic!).

Essa questão tem muito a ver com o que dizem os professores

das séries mais avançadas. Se o aluno errar a grafia de uma

palavra de uso mais comum, logo se ouve comentário de que foi

mal alfabetizado, que a culpa daquele erro foi descuido do

professor alfabetizador. Alguns professores e até diretores de

escola chegam a reclamar dos professores alfabetizadores, por

causa dos transtornos que esses alunos causam no

desenvolvimento das atividades das séries mais avançadas. Em

situação pior estão os próprios alunos, uma vez que não

encontram nas séries avançadas o auxílio necessário para

superar as dificuldades que têm com a grafia das palavras. Os

colegas zombam, o professor se irrita e eles não sabem como

sair da armadilha em que caíram.

A escola e as pessoas devem se perguntar um dia se, de fato,

vale a pena reprovar um aluno simplesmente porque escreveu

Page 591: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

PEÇOA ou BRICPZA. Responder a essa pergunta de maneira

negativa não significa diminuir a importância da ortografia. A

questão é outra: qual o peso das coisas na vida escolar? Além

disso, é mais do que certo que se um aluno souber escrever é

porque sabe ler e, se souber essas duas coisas, pode muito bem

pesquisar num dicionário e corrigir o texto que escreveu. Por

que os alunos não podem fazer suas redações com um dicionário

ao lado? Sem dúvida alguma é conveniente que os alunos

decorem a ortografia da maioria das palavras mais comuns, mas

isso se consegue muito mais facilmente quando eles têm a

chance de consultar freqüentemente o dicionário, o que deveria

acontecer sempre, em todas as aulas, quando tivessem urna

dúvida ortográfica.

As pessoas gostam de dar pontos para a ortografia porque é

uma questão que exige memorização, e é do gosto delas exigir

dos alunos que mostrem que decoraram o que foi ensinado.

Seria mais lógico e natural que as pessoas tivessem sempre à

mão um dicionário para

<350>

poderem escrever melhor, inclusive para resolver dúvidas

ortográficas. Porém, o dicionário até parece um livro proibido,

sobretudo nas provas. Na verdade, a ortografia nunca deveria

ser objeto de avaliação, uma vez que é natural que mesmo

pessoas acostumadas a escrever por vezes tenham dúvidas a

Page 592: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

respeito de palavras que já escreveram antes sem titubear.

Essas atitudes da escola com relação à ortografia têm

provocado nas pessoas uma reação muito negativa com relação

a quem escreve errado. Assim como a sociedade cultiva um

desprezo preconceituoso contra quem fala uma variedade da

língua muito diferente da norma culta, do mesmo modo trata

quem escreve sem seguir a ortografia. Nesses casos, é mais

comum as pessoas estranharem uma grafia errada de uma

palavra do que um texto mal-estruturado ou uma idéia mal-

apresentada.

A situação de algumas escolas tem piorado recentemente por

causa da ação de alguns professores e pedagogos que passaram

de um extremo a outro. Antigamente exigiam a ortografia com

todo o rigor: se o aluno não soubesse tudo o que a cartilha

apresentava, não saía da primeira série. Depois, com as novas

idéias pedagógicas, passaram a entender que a ortografia não

era mais tão importante assim, ou melhor, que o aluno podia

escrever do jeito que quisesse, desde que escrevesse. A

ortografia seria aprendida depois, como parte do

desenvolvimento escolar.

Certamente, era preciso rever a maneira como a antiga escola

encarava a ortografia na alfabetização. Mas abandonar os alunos

à sua sorte futura, sem nenhuma explicação e, sobretudo, sem

que os professores das séries avançadas assumissem a tarefa de

Page 593: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

cuidar da ortografia, criou uma situação de frustração para

muitos alunos, que passaram a não entender mais o que a escola

queria deles.

Explicar aos alunos o que é ortografia e como resolver dúvidas

ortográficas é uma atividade imprescindível na alfabetização.

Tendo ouvido todas essas explicações, um aluno pode

desenvolver tranqüilamente seu processo de alfabetização,

sabendo o que e como está aprendendo, de onde saiu e aonde

vai chegar. Sabe que está aprendendo a decifrar a escrita nos

seus aspectos fonéticos, sintáticos, semânticos e textuais. Sabe

que seus conhecimentos básicos de leitura já lhe permitem

tentar escrever, tendo plena consciência de que essa escrita é

uma tentativa de expressar a fala por escrito, de forma a

permitir a leitura dentro do sistema alfabético

<351>

que usamos, mas sabendo também que nossa escrita se

preocupa com a ortografia. Para aprender a escrever certo é

preciso checar a grafia de cada palavra.

No inicio, o objetivo é apenas escrever. Então, o professor não

precisa preocupar-se com a ortografia (nem o aluno). Depois que

o aluno conseguir escrever com certa fluência, está na hora de

começar a preocupar-se com o segundo aspecto do nosso

sistema de escrita, que é a grafia das palavras de acordo com o

modelo ortográfico estabelecido. Assim, um aluno pode apren

Page 594: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

der a ler e a escrever tranqüilamente sem o tormento da

ortografia, e o professor não precisa se preocupar, imaginando

se determinado aluno vai ou não aprender a escrever certo.

Superada a primeira fase, que é decisiva, ou seja, o aprendizado

da leitura, aprender a ortografia vem como conseqüência do

trabalho de autocorreção dos textos.

Esse procedimento mostra que não é preciso começar com a

ortografia, mas também não se pode abandoná-la. O aluno tem

um tempo inicial para aprender a ler e a escrever, e um tempo

posterior para cuidar da ortografia e de outros aspectos da

escrita. Procedendo assim, é fácil ver como, no primeiro ano

escolar, o aluno não só aprende a escrever livremente,

produzindo textos espontâneos dos mais variados tipos, como

também corrige a ortografia desses textos e começa a decorar a

grafia das palavras mais comuns. Por outro lado, isso não

significa que um aluno irá sair da primeira série dominando

perfeitamente a ortografia de todas as palavras. Ele precisa

saber como se virar. Dominar a ortografia é algo que vem com o

tempo. Às vezes, vai esquecer o que já sabia e irá precisar

perguntar coisas banais e, se tiver respostas respeitosas para

suas dúvidas, acabará lidando muito bem com a ortografia no

futuro.

O que fazer, porém, com os alunos que infelizmente não

tiveram a chance de se alfabetizar dessa forma? O que fazer com

Page 595: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

os alunos que não escrevem as palavras seguindo a ortografia

nas séries mais avançadas?

Em primeiro lugar, é preciso relembrar que não é só o

professor alfabetizador que deve partir da realidade de seus

alunos para estabelecer um processo de ensino e de

aprendizagem adequados; os professores das demais séries têm

a mesma obrigação. Portanto, se um professor da quinta série

percebe que um aluno tem dificuldades sérias com a ortografia,

cometendo erros intoleráveis, sua obrigação é ensinar a esse

aluno tudo aquilo que ele precisa saber. Entre outras coisas, o

professor

<352>

deverá falar, como se mencionou acima, a respeito do processo

de aquisição da linguagem, da variação lingüística, da natureza,

função e usos dos sistemas de escrita, em particular do nosso.

Deve explicar detalhadamente o que é ortografia e quais as

regras. Precisa ensinar o aluno a ter dúvidas ortográficas e como

resolvê-las. Precisa comparar a escrita ortográfica com outros

usos da escrita alfabética (por exemplo, para fazer transcrição

fonética), O professor deve apresentar uma lista de palavras

escritas erroneamente e analisar as hipóteses que o aluno

levantou para escreve-las. Será preciso discutir a necessidade de

escrever respeitando a ortografia e em que circunstâncias isso

tem uma importância maior, exigindo um trabalho preliminar de

Page 596: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

revisão do aluno. Finalmente, pode-se pedir para o aluno

procurar no dicionário todas as palavras de seus textos, para

descobrir quais estão com a grafia errada. Como é óbvio em

educação, em qualquer momento da escolarização, o professor

precisa ensinar aos alunos (que ainda não aprenderam) todas

aquelas informações que deveriam ter sido aprendidas antes.

Lamentar o fato não resolve o problema do aluno nem deve

tranqüilizar o professor. Quando um aluno não sabe alguma

coisa, a obrigação dc) professor é ensiná-lo, seja o que for, em

que série da escola isso estiver acontecendo.

No caso de alunos preguiçosos, o professor pode analisar o

texto e dizer a ele que apresenta determinado número de erros

de grafia, por exemplo, 38. O aluno corrige e o professor vê se

sobraram erros. Por exemplo, podem ter sobrado três erros. O

aluno deverá procurar no dicionário todas as palavras de seu

texto até que não haja mais erros de grafia. Esse tipo de

atividade obriga os alunos a prestar mais atenção à ortografia.

Com o tempo vão achar mais fácil decorar a grafia das palavras

mais comuns do que ficar consultando o dicionário a cada novo

texto que escreverem.

IDÉIAS ERRADAS A RESPEITO

DA ORTOGRAFIA

Contribui muito para a dificuldade que alguns alunos têm

Page 597: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

para escrever as palavras na forma ortográfica correta uma série

de informações erradas que recebem desde a alfabetização a

respeito da ortografia.

<353>

Desde os primeiros contatos com a escrita, o aluno ouve o

professor dizer que o nosso sistema de escrita é alfabético e que

isso significa que escrevemos uma letra para cada som falado

nas palavras. Nosso sistema usa letras, às quais são atribuídos

valores fonéticos. Mas o uso prático desse sistema não se reduz

a uma transcrição fonética. Portanto, o professor não pode dizer

simplesmente para o aluno observar os sons da fala, as vogais e

consoantes, e representá-los na escrita por letras. Esse é o

primeiro passo, mas não é tudo. Feito isso, o aluno precisa

aprender que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria o

caos. Para neutralizar a variação dialetal, a escrita inventou a

ortografia, fazendo com que todas as palavras tenham apenas

uma forma escrita. Assim, perdeu-se em grande parte o caráter

alfabético da escrita, que passou a ter um caráter ideográfico

muito forte. Por essa razão, podemos dizer que o objetivo

funcional da escrita é a leitura. A partir da ortografia, cada leitor

irá decifrar uma palavra escrita na forma ortográfica, dizendo-a

de acordo com seu dialeto. Portanto, cada um lê conforme fala.

Fazendo o caminho inverso, percebe-se logo que, dado o fato de

as pessoas falarem dialetos diferentes, as palavras terão

Page 598: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pronúncias diferentes. Como a ortografia decidiu que apenas

uma forma é a estabelecida, as pessoas precisam saber qual foi a

forma escolhida, independentemente da maneira como

pronunciam as palavras. Como se vê, muitas das explicações que

são dadas aos alunos, desde a alfabetização, não correspondem

a essas idéias básicas a respeito da natureza da ortografia.

O uso de ditados passa aos alunos a idéia de que podem

escrever corretamente as palavras desde que pensem para

escrever. A verdade, porém, é outra. Somente pensando

ninguém pode ter certeza a respeito da ortografia de nenhuma

palavra. Às vezes, é possível elaborar algumas regrinhas, como a

que diz que as palavras abstratas terminadas em -EZA são

escritas com Z (BELEZA, POBREZA) e as que formam um plural

feminino, com S (FRANCESA, PORTUGUESA). Mas essas

regrinhas são poucas e resolvem uma porcentagem muito

pequena de casos. Não é uma boa estratégia pedagógica mandar

o aluno simplesmente pensar para escrever. Isso se faz quando

não se quer levar em conta a ortografia, caso das primeiras

atividades de escrita das crianças. Depois, é preciso ensinar o

aluno a ter dúvidas ortográficas e a resolvê-las.

<354>

A prática de muitos professores de apagar uma palavra

escrita errada pelo aluno e de colocar o certo acaba gerando a

famosa preguiça intelectual. Depois de certo tempo, ele já não se

Page 599: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

preocupa com a ortografia, porque o professor corrige mesmo. O

ideal seria desenvolver nos alunos o hábito de rever o que

escrevem, passar a limpo, fazendo uma autocorreção da

ortografia dos seus textos, seja em que matéria for, não só nas

redações escolares da aula de português.

Alguns professores costumam passar muitas e longas cópias

para que certos alunos decorem a ortografia. Para que essa

prática desse certo, seria preciso que o aluno fizesse cópias não

só de meia dúzia de palavras, mas de todas as palavras, o que

tomaria todo o seu tempo de escola durante décadas. Esse tipo

de cópia serve apenas para castigar. Então, como eles irão

aprender a ortografia de todas as palavras? Na verdade, isso não

deve ser um objetivo a ser alcançado. O objetivo real é que o

aluno aprenda a ortografia das palavras mais importantes e de

uso mais freqüente e que tenha o hábito de resolver suas

dúvidas ortográficas, quando necessário. Fazer cópias para

decorar a ortografia auxilia pouco e não garante que o aluno não

esqueça no futuro. A melhor estratégia para se conseguir que os

alunos estejam sempre em dia com a ortografia é a prática

constante da escrita (com dicionário) e muita leitura. Esse

contato com a escrita e com a leitura é que faz com que os

alunos resolvam seus problemas de ortografia, decorando a

grafia das palavras.

Page 600: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A DÚVIDA ORTOGRÁFICA

FERREIRA, 1963. >

Um ponto importante que os professores, principalmente de

alfabetização, precisam tratar com seus alunos é a dúvida

ortográfica. Tão importante quanto ensinar o que é ortografia e

quais os mecanismos de nosso sistema de escrita, em geral, é

ensinar como ter uma dúvida ortográfica e como resolvê-la.

Dúvidas ortográficas todas as pessoas têm. Na introdução do

Pequeno dicionário da língua portuguesa, Aurélio Buarque de

Holanda apresenta uma lista de palavras com relação às quais

ele tem dúvidas a respeito de qual seria a melhor forma de

grafá-las. Além disso, analisando seu dicionário, percebemos que

algumas

<355>

vezes ele traz uma forma arcaica de escrita ou uma forma

retratando regionalismo (pronúncia dialetal), criando, desse

modo, formas ortográficas paralelas de algumas palavras. Por

exemplo, ele acha que deveria ser DESINTUMESCER e não

DESENTUMESCER, como manda a Academia Brasileira de Letras

(Vocabulário ortográfico), uma vez que é INTUMESCER e não

ENTUMESCER. Traz pares de palavras como CAMINHÃO e

CAMIÃO, FLECHA e FRECHA, BALSA e BALÇA, ENGOLIMOS e

ENGULIMOS, SOLUÇO e SALUÇO, SEMANA e SOMANA (forma

arcaica), etc.

Page 601: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Qualquer usuário do nosso sistema de escrita tem dúvidas

ortográficas ocasionais. Às vezes, diante de uma palavra comum,

surge a dúvida: é DANÇA ou DANSA, TIGELA ou TIJELA? Quem

aprendeu a lidar com esse tipo de problema não se envergonha

de perguntar ou de consultar o dicionário.

A dúvida ortográfica surge de maneira típica em alguns casos,

sendo praticamente inexistente em outros. Um levantamento

desse tipo de dificuldades vai mostrar que, quando uma letra

representa vários sons ou um som é representado por várias

letras, a dúvida ortográfica tem mais chance de se instalar e será

sempre uma dificuldade para quem se alfabetiza. À medida que

uma palavra se torna mais familiar, menos dúvida causará.

Assim, para uma criança que se alfabetiza é um problema difícil

saber se deve escrever MESA ou MEZA, mas não para um aluno

já alfabetizado. Para um aluno nas primeiras séries, pode ser

difícil saber se deverá escrever BELEZA ou BELESA, PRINCESA ou

PRINCEZA. Para um professor alfabetizador, as dúvidas são de

outro tipo: será CONSTITUI ou CONSTITUE? Será ESTENDER ou

EXTENDER, EXTENSÃO ou ESTENSÃO ou ainda EXTENÇÃO ou

ESTENÇÃO? A memória visual adquirida através de muita leitura,

às vezes ajuda a decidir, mostrando que algumas grafias são

realmente estranhas e provavelmente inexistentes. Aliás, muitas

pessoas quando têm dúvidas ortográficas, escrevem as formas

alternadas para decidir depois qual a correta, a partir da

Page 602: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

memória visual.

As cartilhas costumam colocar as lições em graus de

dificuldade crescente, tendo em vista as possíveis dúvidas

ortográficas. É por essa razão que a letra X vem por último.

Entretanto, nem sempre é difícil ler a letra X. Saber se uma

palavra se escreve com a letra X ou não é que é o problema. A

ortografia, pois, causa problemas diferentes para a leitura e para

a escrita.

<356>

Para muitos alunos, a grande dificuldade com a ortografia das

palavras não está no uso do X ou se a palavra BELEZA se escreve

com Z ou S. Para quem é falante de dialetos muito diferentes da

norma culta, o uso da ortografia e apresenta com dificuldades

muito maiores do que essas. Para um aluno que fala "bardji"

(balde), "brabuleta" (borboleta), "psicreta" (bicicleta), "nóis

fumo dispois" (nós fomos depois), ter uma dúvida ortográfica

não é simplesmente uma questão de saber se uma palavra se

escreve com S ou com Z ou ainda com X. Para ele, é preciso ter

bem clara, antes de tudo, a questão da variação dialetal e,

sobretudo, como funcionam, no seu caso, as relações entre

linguagem oral e linguagem escrita.

O professor deve incentivar seus alunos a terem dúvidas

ortográficas, explicando os vários tipos de dificuldade que nosso

sistema de escrita apresenta com relação a isso e levando em

Page 603: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

conta também as dificuldades próprias de cada aluno.

Como já se disse, ter dúvidas ortográficas é muito natural e

comum. Por essa razão, o professor deve fazer ver aos seus

alunos que vale mais a pena resolver direito essas dúvidas do

que ficar imaginando como seria a forma ortográfica das

palavras ou escrever de qualquer jeito. Para que o aluno aprenda

a lidar direito com isso, é preciso que o professor tenha uma

atitude saudável, respeitando as dificuldades e dúvidas dos

alunos, não dando maior importância do que esse assunto

merece e, principalmente, deixando sempre à disposição do

aluno dicionários, vocabulários ou outros meios para que o aluno

possa resolver suas dúvidas ortográficas. Toda sala de aula

deveria ter um dicionário e todos os alunos deveriam ter acesso

a ele em todas as aulas, quando tivessem de escrever. Esse

exemplo da escola deveria ser levado para a vida. Todo aluno

deveria ter um dicionário em casa. Consultar o dicionário é uma

questão de hábito, que deve começar desde a alfabetização.

Outra prática importante é a autocorreção dos trabalhos. Todo

trabalho escrito deveria ser feito primeiro numa forma de

rascunho e depois passado a limpo. E antes de passar a limpo, o

aluno deveria, entre outras coisas, checar a forma ortográfica

das palavras, fazer um levantamento das dúvidas e resolver caso

por caso. A escola não deve apenas ensinar conteúdos

programáticos, mas também bons hábitos nos estudos, como se

Page 604: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tem enfatizado ao longo deste livro.

<357>

Apêndice

A categorização gráfica das letras

Apresenta-se neste apêndice um estudo detalhado das

relações entre letras e sons — que permitem a decifração da

escrita e a leitura —, bem como das relações entre sons e letras

— que fazem com que o aluno parta da observação de sua fala e

chegue a escrever de acordo com a ortografia.

Este estudo serve também para o professor refletir sobre a

categorização funcional das letras, ou seja, sobre como o

alfabeto e a ortografia comandam as relações entre letras e sons

em nosso sistema de escrita. Um exercício exaustivo nesse

sentido revela também como o processo de alfabetização é

complexo e exige uma quantidade considerável de

conhecimentos. Por outro lado, este material pode servir de

subsídio para o professor organizar aulas específicas em que irá

tratar de aspectos da categorização funcional das letras, por

exemplo, explicando como o conhecimento necessário à leitura

pode se fundamentar em regras, através da descoberta das

relações entre letras e sons (ou das relações entre sons e

letras).

As considerações a seguir estão organizadas, sempre que

Page 605: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

possível, segundo a ordem do abecedário. O professor,

entretanto, não precisa seguir essa ordem. Talvez, na maioria

das vezes, terá de se deixar levar pelas sugestões dos alunos e

pelo desenvolvimento natural das aulas. Nos quadros aparecem

o nome das letras, seu valor fonético no alfabeto (princípio

acrofônico) e algumas explicações que serão desenvolvidas

adiante. Em seguida, são apresentados sucintamente os

comentários mais relevantes sobre como ler e traçar a letra,

mostrando como levantar dados e formular regras.

ESTUDO DA LETRA A

O nome da letra A é a e representa o som básico de "a". Como

qualquer letra, pode ter outros sons, que se verão a seguir

Portanto, quando urna palavra tiver o som de "a", esse som será

escrito com a letra A. E vice-versa: se for encontrada a letra A na

escrita, ela representa o som de "a".

O professor poderá escrever algumas palavras na lousa, dizer

o que está escrito e mostrar aos alunos onde ocorre a letra A,

identificando-a com o som "a" na fala. Como exemplo, pode

escrever AMIGA. Essa palavra começa e acaba com a letra A

tanto na escrita como na fala. A seguir, um exemplo de palavra

que começa com o som de "a" e que se escreve, portanto, com a

letra A, no início e no meio: ASSADO. Depois, uma palavra que só

tem o som de "a" no final:

MINHOCA.

Page 606: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O professor poderá pedir para os alunos irem ditando

palavras para ele escrever na lousa,

• fazendo colunas de acordo com os casos apresentados (início,

final, início-e-final, outros casos). Se por acaso algum aluno ditar

uma palavra que comece por H, o professor a escreve numa

outra coluna e explica por que aquela palavra tem H (razões

ortográficas), e como se lê o H em início de palavras: começando

pela letra seguinte, ou seja, pela vogal, como se pode ver em

palavras como HABITAÇÃO, HOJE, HINO, HUMILDE, HELICE, etc.

Quase todas as letras têm outros sons, além do som básico,

dependendo das letras que a antecedem ou a sucedem

(contexto). São os casos particulares. Por exemplo, a letra A, em

sílaba final de palavra oxítona, seguida de S ou Z (ou dos sons

"s" ou "ch", na fala, de acordo com o dialeto), tem o som de "ai"

ou apenas "a": no primeiro caso, tem-se uma fala mais "natural"

e no segundo, uma fala mais "artificial" (dependendo sempre do

dialeto). Exemplos: RAPAZ, PAZ, ATRÁS, TOMÁS, etc.

A mesma regra vale para as vogais U, E e O (com os sons de

"ê", "é", "ô" e "ó"), como mostram os seguintes exemplos: LUZ

("lúis" ou "lúich"), VEZ ("vêis"), PÉS ("péis"), ARROZ ("arrôis")

e NÓS ( "nóis").

Outro caso particular da letra A ocorre quando, na fala, ela

vem antes do som da vogal "u" (representada na escrita por U

ou por L no final da sílaba). Neste caso, a letra A tem um som

Page 607: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

"posterior" (de "garganta"). Compare o som da letra A nas

palavras MAIS e MAUS e anote a diferença. Outros exemplos:

SAL, MAL, CALDO, BALDE, ALTO e AUTO, LAURA, etc. Note que o

som do "a" precisa formar ditongo com o som do "u". Se não

houver a formação de ditongo, a letra A possui o som básico de

"a", como se pode observar em palavras como SAÚDE (compare

com SAUDADE), BAÚ, RAUI SAUL, etc.

Às vezes, é preciso escrever uma letra A que não aparece

comumente na fala. Repare nos seguintes exemplos: CASA

AMARELA — numa fala fluente, o A final da palavra CASA não é

pronunciado: "kazamaréla". Para testar e conferir qual a vogal

que cai, se o A final de CASA ou o A inicial de AMARELA, podemos

ver outros exemplos, variando a vogal: CASA ESQUISITA, que se

torna "kaziskizita", ou ainda MURO AMARELO, que é dito

"muramarélu". Esses exemplos mostram que foi a vogal final da

primeira palavra que deixou de ser pronunciada e não a vogal

inicial da palavra seguinte.

Por razões semelhantes, às vezes é necessário escrever A ou

O que não ocorrem na fala ou "separar" palavras. Veja, por

exemplo: TODA A FAMILIA ("todafamília"), TODO O MUNDO

("todumúndu"), É O CASO DE ELE DIZER A VERDADE

("éukazudelidizeraverdadi"), ELA FOI PARA A CIDADE

("élafoiprasidadi"), etc.

A vogal A pode ser nasalizada, ficando com uma qualidade

Page 608: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

vocálica diferente, caso da palavra ANA — compare com ASA,

cujo som do primeiro A é oral. Portanto, quando se tiver de

escrever o som nasalizado igual ao do início da palavra ANA,

sabe-se que deverá ser escrito com a letra A.

Na leitura, a letra A tem o som de A nasalizado ("ã") quando

ocorre antes das consoantes nasais M e N, e a vogal é tônica. Se

for átona, a letra A pode ter o som nasalizado ou não, como

mostram os seguintes exemplos. Som nasalizado: ANA, AMA,

CANA, CAMA. Som nasalizado ou não: ANÃO, AMADEU, AMOR,

CANAVIAL, CAMADA. Se depois das nasais M ou N houver uma

outra consoante, a letra A será sempre nasalizada, como em:

ANTÔNIO, CAMPO, CANTIGA, CÂNFORA, etc.

Quando a letra A vem antes de NH, tem sempre um som

nasalizado, embora nesse caso possa variar com o ditongo

nasalizado "ãi", como se vê em: BANHA ("bãnha" ou "bãinha").

Na verdade, toda vogal que vier antes de NH pode variar com um

ditongo nasalizado terminado em "i"; por exemplo: UNHA

("ünha" ou "üinha"), SONHO ("sõnhu" ou "sõinhu"), TENHO

("tenhu" ou "teinhu") e até VINHO pode ser pronunciado

"vinhu" ou "viinhu".

Quando uma palavra termina em -RAM, caso dos verbos, a

pronúncia é "rãu", no dialeto padrão, mas, em muitos dialetos,

ou numa fala bem informal, a pronúncia pode ser "ru": FIZERAM

("fizérãu" ou "fizéru"), ACHARAM ("acharãu" ou "acham"),

Page 609: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

VIERAM ("viérãu" ou "viéru"). Note que, na escrita, há uma

distinção entre palavras que acabam em -RAM e palavras que

acabam em -RÃO. No primeiro caso, a sílaba final é átona (a

palavra é paroxítona), e, no segundo caso, a sílaba final é tônica

(a palavra é oxítona). Compare: ACHARAM e ACHARÃO,

ENCONTRARAM e ENCONTRARÃO; ou, ainda, VIRAM e VIRÃO,

SABÃO, LIMÃO, IRMÃO, etc.

Os exemplos apresentados anteriormente revelam, em

grande parte, os valores fonéticos letra A, nos casos em que

existe uma espécie de regrinha que orienta a interpretação.

Essas regras podem ser feitas porque os valores fonéticos da

letra estão ligados a determinados contextos.

Esses casos podem ser explicados e, uma vez aprendidos, são de

grande utilidade no ,trabalho de decifração. Porém, há

ocorrências em que o valor fonético da letra A só pode ser

;derminado pelo conhecimento da variação lingüística e da

ortografia das palavras. Quando um aluno é falante de um

dialeto muito diferente da norma culta, diz muitas palavras com

uma pronúncia peculiar, estabelecendo relações novas e

particulares entre as letras e os sons. Geralmente, nesses casos,

ele fala de um jeito e precisa aprender que a escrita é bem

diferente. Além disso, tem de saber a ortografia de palavra por

palavra, pois não é possível estabelecer regras dependentes de

contextos. Por exemplo, um aluno que fale um tipo de variação

Page 610: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

lingüística que tenha palavras como: BARBOLETA (borboleta),

SEJE (seja),

;CANFUSO (confuso), ADESPOIS (depois), terá de fazer um uso

mais ideográfico do que

fonográfico, ao buscar as formas ortográficas. Para esses casos,

não basta ensinar as regras que relacionam letras e sons, mas

também como são formadas as palavras e como rege a

ortografia.

No próprio dicionário, encontramos registro desse tipo de

dificuldade, como em: BÊBEDO e BÊBADO, ou LEMBRAR-SE e

ALEMBRAR-SE, ILUMINAR e ALUMIAR, etc. Saber que existe a

dificuldade é introduzir uma dúvida ortográfica, e isso é muito

importante para que o aluno escreva sempre "desconfiando" da

grafia.

Entre as considerações a respeito de como se lê a letra A,

foram vistos também alguns

casos de como partir da fala para escrever a letra A. Todos os

exemplos anteriores podem ser estudados a partir da fala,

chegando-se às mesmas regras. Quando o problema se resolve

com uma regrinha contextual, fica tudo mais fácil; quando se

trata de variação dialetal,único jeito é o aluno desconfiar e

perguntar pelo certo a quem sabe ou consultar o

dicionário.

Partindo da observação da fala das pessoas e tendo em mira o

Page 611: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

que se escreve com a letra i, podemos estabelecer relações entre

sons e a letra A, fazendo as seguintes afirmações:

1. Para representar o som de "a" ou de "ã", deve-se escrever a

letra A. Exemplos: "batata"

BATATA; "kãneta" = CANETA; "ãmbulãçia"' = AMBULÂNCIA.

2. Se ocorrer "ã" e a letra A não for seguida de M ou N, recebe

til.

3. Se a última sílaba de urna palavra terminar em "a", é possível

que a seguinte também comece por "a". Para saber como

escrever, é preciso analisar as palavras isoladamente, por

exemplo, intercalando outra palavra entre essas duas. Assim: em

"minhamiga", a primeira palavra é "minha" e termina em "a".

Posso dizer também: "minhacõnténtiamiga", o que mos a que a

segunda palavra também começa com "a". então, sei que devo

escrever um A a mais: MINHA AMIGA. Às vezes, há dificuldades

em saber se deve ou não escrever o artigo definido A, em

exemplos como: "élalavôtodakaza". Nesses casos, é preciso

fazer uma averiguação para saber se, numa faia pausada,

pronunciando as palavras isoladamente, cabe ou tão o artigo:

ELA LAVOU TODA CASA ou ELA LAVOU TODA A CASA. Embora

haja significa ':5 diferentes com ou sem o artigo, esse é um

problema para quem escreve em português.

o significado é "lavou a casa inteira", na escrita haverá o artigo.

Se o significado for "lavou casas que existem", não haverá

Page 612: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

artigo. Num outro caso, como: "istuçérvipratodacriãça", a forma

escrita não registra o A (porque não ocorre o artigo): ISTO

SERVE PARA TODA CRIANÇA. Se essa frase não se referisse às

crianças em geral, mas a uma criança em particular (cada

criança), a frase teria artigo: ISTO SERVE PARA TODA A

CRIANÇA.

Com já foi dito, neste livro o som (s) da fricativa alveodental

surda vem transcrito com o cê-cedilha, "çê" Note que no caso de

consoante, sua representação oral aparece transcrita com a

vogal "ê", a qual, porém, precisa ser ignora da na fala contínua

em que aparece a consoante. Assim "çê", zê", "kê", etc, são, de

fato, apenas "ç", "a", "k", etc.

<361>

4. Em algumas palavras, mas não em todas, quando se encontra

o som de "a" diante do som de "chê", deve-se escrever AI e não

apenas A. Nas outras palavras, escreve-se apenas A. Facilita um

pouco mais saber que o som de "chê" se escreve com X, porque

nesse caso o "a" vai ser escrito com Ai e não apenas com A. Há

raras exceções, como MAXIXE (que na verdade é palavra de

origem estrangeira, introduzida na língua portuguesa). Palavras

como "machu" (MA CHO), "kachu" (CACHO), etc. não são

escritas com AI, mas, para saber isso, é preciso saber antes se o

som de "chê" vai ser escrito com CH ou com X.

5. O som "ãu" só ocorre na sílaba final de uma palavra (exceto

Page 613: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

em casos de diminutivos, como CÃOZINHO, etc.). Há duas

formas de escrever esse ditongo: com AM, como acontece em

terminações verbais (exceto as do futuro do presente e algumas

formas de verbos irregulares como ESTÃO, SÃO); ou com ÃO, nos

demais casos, sobretudo se a palavra não for verbo:

ENTÃO, LATÃO, CORAÇÃO, etc.

6. Encontrando a escrita NH, é preciso verificar se ocorre o som

de "ã" ou de "ãi" imediatamente antes. Em qualquer dos dois

casos, escreve-se apenas a letra A. Não confundir o díagrafo NH

com o som de "nh". Em palavras como "mãinh "alemãinhs", a

escrita assinala o ditongo com A + E: MÃE, ALEMÃES, etc.

7. Diante do som de "u", ocorre um "a" posterior e não anterior

— como acontece nos demais casos. Essas diferentes pronúncias

(MAIS — MAUS) não são notadas na escrita, mas representadas

apenas pela letra A.

8. Nas formas verbais do tempo passado, podemos encontrar as

seguintes pronúncias:

"fizérãõ", "fizérú" e "fizéru". Estudando essas variações, pode-

se saber que na escrita teremos

-RAM. Essa regra aplica-se só a verbos e não a nomes. Portanto,

"zéru" não vai ser escrito ZERAM, mas apenas ZERO, porque não

existe variação de pronúncia como "zérãu" e "zéru" (nasal).

9. Algumas palavras têm uma pronúncia num determinado

dialeto (BARBULETA, ADISPOIS, MECADTO, BÃÜ, CHEGUEMO) e

Page 614: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

outra, em outros dialetos (BORBOLETA, DEPOIS, MERCADJNHO,

BOM, CHEGAMOS). Às vezes, o conhecimento de que uma

determinada forma pertence à norma culta pode ajudar na

escrita, mas nem sempre. Pior ainda é o fato de as crianças, no

início da alfabetização, ainda não terem condições de saber se

uma forma pertence à norma culta ou não. Nesses casos,

somente através da questão ortográfica os alunos podem

desconfiar e resolver suas dúvidas.

A análise acima mostra como a letra A, que as cartilhas e os

professores em geral consideram fácil de aprender, envolve

várias dificuldades, quando se levam em conta seus usos nos

diferentes contextos e dialetos. Esse tipo de análise revela,

ainda, parte dos conhecimentos que uma pessoa precisa ter para

saber decifrar nossa escrita e escrever. Exemplifica como o uso

de uma escrita ortográfica neutraliza a variação lingüística na

escrita. Mostra, ainda, que o preço pago por essa medida traz,

como conseqüência, uma enorme complexidade nas relações

entre letras e sons e vice-versa.

O que dissemos deixa claro que a questão das relações entre

letras e sons — ou seja, a categorização funcional das letras — é

muito mais complexa e difícil do que pode parecer numa análise

superficial do fenômeno. Os alunos, quando estão aprendendo,

estão defrontando todas essas dificuldades, e o professor precisa

saber disso.

Page 615: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Insistindo mais uma vez num ponto delicado, é preciso

esclarecer que o exposto sobre a letra A serve de guia para o

professor. Certamente, ele não irá ensinar tudo isso, ponto por

ponto, um depois de outro e exigir que o aluno repita a lição de

cor ou resolva questões em prova. O professor irá abordar essas

questões à medida que for necessário e quando tiver

oportunidade. Na verdade, ele pode ensinar a seus alunos como

ler, decifrar a escrita e analisar a fala, para achar a letra

correspondente à escrita. Essa é uma maneira de alfabetizar sem

precisar das cartilhas e sobretudo do método do bá-bé-bi-bó-bu.

<362>

ESTUDO DA LETRA B

A letra B tem o nome de bê, e o primeiro som do "bê" é o som

básico que a letra representa. Exemplos: BOLA, CABELO, BARCO,

etc.

Quando a letra B vem escrita antes de uma letra que

representa uma consoante que não seja

nem R nem L, ela é pronunciada "bi", na fala comum e informal,

como em: OBJETO ("obijétu"), ABSOLUTO ("abiçolutu"),

SUBMARINO ("çubimarinu"), etc.

Esse fenômeno acontece também com outras consoantes como P

T, D, F, C, G, M, como se vê nos seguintes exemplos: OPTEI

("opitei"), RITMO ("ritimu"), ADVOGADO ("adivo gadu"), AFTA

("áfita"), TÉCNICA ("tékinica"), IGNORAR ("iguinorar")

Page 616: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

MNEMÔNICO ("minemônicu"). Esse fato mostra como a leitura

pode ser feita. Escrever a partir da fala torna as coisas muito

complicadas, e o aluno precisa aprender palavra por palavra. Por

exemplo, escreve-se RÁPIDO e não RAPDO, MENINO e não

MNINO, ADIVINHAR e não ADVINHAR, etc.

Em certos dialetos, fala-se "trabeçêru", "pçicréta", mas a forma

ortográfica dessas palavras é:

TRAVESSEIRO e BICICLETA. Só se sabe quando colocar B ou não,

quando se aprende a ortografia dessas palavras. Nos dicionários,

encontram-se exemplos — ASSOBIAR e ASSOVIAR — de

variantes também na ortografia oficial.

Alguns alunos sussurram as palavras quando escrevem,

pronunciando somente sons surdos (vogais e consoantes). Por

essa razão, têm dificuldades em achar a letra certa na escrita

quando se têm pares de consoantes que se distinguem pelo traço

de sonoridade (P/B, T/D, C/G, F/\ S/Z, CH/J). Nesses casos, o

aluno é levado a escrever POLA (bola), CAPELO (cabelo), PATATA

(batata), etc. Exercícios com pares mínimos (tais como,

BULA/PULA, FACA! VACA), como vimos antes, podem ser úteis

para mostrar aos alunos essas distinções.

Quando um aluno lê a letra B pronunciando "p", o professor

precisa descobrir se se trata de um problema de decifração (o

aluno fala a palavra corretamente, mas lê errado) ou de uma

pronúncia diferente, própria do dialeto do aluno (diz-se "patata",

Page 617: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

"faca" e não "batata", "vaca", etc.). No primeiro caso, é preciso

estudar como se decifra a letra B. No segundo, discutir a questão

da variação lingüística dos dialetos e como a ortografia registra

as palavras. Note que o aluno pode continuar falando segundo

seu dialeto e não ter problemas para escrever, bastando para

isso que esteja bem-informado a respeito do assunto: ele fala de

um jeito, mas deve escrever de outro. O aluno que ouve essas

explicações freqüentemente, acaba aprendendo ou pelo menos

desconfiando, e isso o ajuda em muito a aprender, de fato, com o

tempo.

ESTUDO DA LETRA C

O nome da letra C é cê, e o seu som básico é "çê' Essa letra

participa de um esquema complicado de relações entre letras e

sons, como se verá a seguir

No trabalho em sala de aula, o professor pode partir de uma lista

de palavras que ele escreve na lousa e estudar os casos,

formulando as regras com os alunos, ou pode partir de exemplos

2 exceção é a palavra PNEU, que admite 'pineu" ou "peneu".

3 O som da consoante oclusiva velar sonora [g] vem

representado pelo dígrafo "gu", quando precede I ou E, e por "g"

nos demais casos.

<363>

dados pelos próprios alunos, com base em sugestões

orientadas por ele. O que vale é a bagagem de informação que se

Page 618: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

revela através do raciocínio que a classe faz juntamente com o

professor. Os procedimentos a seguir mostram essas

duas maneiras de organizar o ensine a aprendizagem em sala de

aula.

O professor pode começar dando algumas informações a

respeito de como se lê a letra C, observando o que acontece no

início de palavra. Nota-se que a letra C tem o som de "çê"

quando ocorre diante das vogais E e I, como em CEBOLA,

CÉLEBRE e CIDADE. Diante das outras três vogais, A, O e U, a

letra C tem o som de "kê", caso de CARA, COLAR e CUIDADO.

Portanto, dependendo da vogal que vier depois, a letra C terá o

som de "cê" ou "kê".

Para explicar o que são vogais e consoantes, o professor

poderá mostrar um cartaz do 1 alfabeto, com as letras dispostas

de tal modo que a primeira delas em cada linha seja uma vogal.

Quando o professor ensina uma coisa, um aluno pode estar

pensando em outra. Assim, algum aluno poderá lembrar (dando

exemplos) que na fala também existe o som de "kê' com vogais

E e 1. Se a letra C só tem o som de "kê" diante de A, O e U, que

letra se usa para escrever o som de "kê" diante de E e de 1?

Respondendo a essa pergunta, o professor explicará que usamos

as letras QU. Exemplos: QUERO, QUILO, AQUELE, etc.

Resumindo, pode-se formar uma coluna com todas as vogais e a

respectiva escrita com o som de "kê".

Page 619: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A

o

U

E

I

Som "kê"

CASA

COISA

CUECA

Escrita C

QUE

AQUI

Escrita QU

Ocasiões como essa são boas para que os alunos percebam que

ler é mais fácil do que escrever, uma vez que, partindo da

escrita, é fácil ler essas letras. Se alguém, no entanto, tiver de

escrever uma palavra que tem o som de "kê" mais uma vogal

como A, O ou U, terá duas opções: usar a letra C ou as letras QU

(lembrando que QU nunca aparece diante de U).

Como uma coisa puxa outra, algum aluno poderá querer saber

como se escrevem palavras que começam com os sons de "ça",

"ço" e "çu", como SAPO, SOBRADO e SUBIDA. A resposta do

professor irá introduzir a discussão da letra S. Essa letra, que

aparece diante de qualquer vogal, quando em início de palavras,

Page 620: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tem sempre o som de "çê" (mais vogal).

A seguir, apresenta-se uma lista de palavras para orientar os

comentários sobre o assunto.

Ortografia

CIDADE

CEBOLA

CABELO

COLA

CUECA

NASCER

MÁSCARA

EXCEÇÃO

EXCURSÃO

Pronúncia

"çidadi"

"çebola"

"kabelu"

"kola"

"kuéka"

"naçer"

"máskara"

"eçeçau"

"eçkurçãu"

Letra/Som

Page 621: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

C = "çê"

C = "çê"

C = "kê"

C = "kê"

C = "kê"

SC = "çê"

SC = "çê" + "kê"

XC = "çê"

XC = "çê" + "kê"

364

Ortografia Pronúncia Letra/Som

COMPACT "kõumpaktu" ou C = "kê"

"koumpakitu" C = "ke" + "i"

ACNE "akni" ou C = "kê"

"akini" C = "kê" + "i"

CLARO "klaru" C = "kê"

CRAVO "kravu" C = "kê"

CHAVE "chavi" C = "chê"

TOC-TOC "tók-tók" ou C "kê"

"tóki-tóki" C = "kê" + "i"

Como se pode notar, a letra C tem basicamente os seguintes

sons: "çê", "kê", "kê" + "i" ou

"chê". Analisando detalhadamente os dados apresentados acima,

chegamos às seguintes regras:

Page 622: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

1. A letra C tem o som de "çê" quando ocorre diante de E ou de

1, independentemente da letra que vier antes.

2. A letra C tem o som de "kê" quando diante de A, O ou U, de

uma outra consoante ou no final de palavra.

3. Quando a letra C tem o som de "kê", pode também ter o som

de "kê" + "i", ou seja, "ki", quando não seguida por vogal na

escrita, desde que a consoante não seja R ou L. No último caso,

só pode ocorrer o som de "kê" (sem o "ê") e nunca de "ki" (com

o "i"): "cravo" e "claro".

4. A função da letra H no meio de palavras é modificar o som da

letra anterior. No caso de C, passa a ter o som de "chê".

5. Em alguns dialetos, se diz "naiç-çer" ou mesmo "naich-çer". A

razão disso pode ter vindo do processo de alfabetização em que

as pessoas ficam silabando para aprender a ler. A leitura de NAS-

, em final de enunciado diante de pausa, pode ser "naç", "naiç"

ou "naich". Isso acabou gerando uma nova pronúncia para

palavras como NASCER. O SC tinha apenas o som de "çê", no

inicio da sílaba seguinte: "na-çer". Com a nova pronúncia, o SC

passou a ter dois sons fricativos "ch" + "ç" —, além de

influenciar na leitura da vogal anterior, que se tornou um

ditongo ("ai", em vez de "a"). O mesmo tipo de fenômeno ocorre

com seqüências com XC (ou XÇ). Esses grupos de letras

representam apenas o som de "çê" em alguns dialetos e, em

outros, os sons de "çê+çê" ou "chê+çê", com ou sem a

Page 623: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ditongação da vogal anterior: "e-çe çãu", "eç-çe-çãu", "eich-çe-

çãu".

Os sons da fala representados pela letra C

O estudo acima demonstra que é relativamente simples ler a

letra C. A questão da escrita, no entanto, apresenta dificuldades,

principalmente porque há outras letras que têm os mesmos sons

do C, obrigando o escritor a procurar a forma ortográfica

estabelecida. Por essa razão, além da letra C, deveremos

mostrar as outras letras que geram confusão em contextos

específicos. A seguir as regras que podem ser estabelecidas

sobre isso:

1. Tendo em vista os conhecimentos sobre a leitura da letra C,

podemos dizer que o som de "çê" pode ser escrito com C, desde

que venha antes das letras E ou I. Desse modo, palavras como

"çebola" e "çidadi" se escrevem CEBOLA e CIDADE.

Uma palavra como "çapu", "çopa", "çubir", que começa com o

som de "çê" seguido da vogal

"a "o" ou "u" (que serão escritas com as letras A, O ou U), não

pode ser escrita com a letra C. Nesses casos,' o sistema manda

usar a letra 5. Portanto, a letra S também representa o som, de

<365>

"çê". Isso pode gerar confusões. Na verdade, palavras como

CEBOLA e CIDADE, em princípio também poderiam ser escritas

com S: SEBOLA e SIDADE, porque a letra S também pode ser

Page 624: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

usada diante da vogal I e E, como em SINO e SELO. Somente

conhecendo ortografia, uma pessoa pode saber que diante de 1

ou de E vamos ter a letra C ou S em início de palavras.

2. Ocorre também o som de "çê" no meio da palavra, em início

ou final de sílaba. Veja as seguintes palavras: "na-çer" NASCER,

"e-çe-çãu" EXCEÇÃO, "pa-çu" PASSO ou PAÇO, "pró-çi mu"

PRÓXIMO, "na-ça" NASÇA. Constatamos que o som de "çê" em

início de sílaba não-inicial de palavra pode ser representado

pelas seguintes letras: SC, XC, SS, Ç, X, SÇ e XÇ. Saber quando

usar uma letra e quando usar outra depende do conhecimento da

ortografia.

A única vantagem que ocorre aqui é saber que as palavras

derivadas são escritas com as mesmas letras. Assim, se NASCER

é com SC, NASCIMENTO também será com SC. Em NASÇA, como

não pode ocorrer a letra C com som de "çê" diante de "a", a

opção foi usar a letra cê cedilha (Ç). Esse é um procedimento

comum. Se existe a grafia EXCEÇÃO, pode-se desconfiar que

EXCETO se escreve do mesmo jeito. Se escrevemos PRÓXIMO

com X, iremos escrever PROXIMIDADE também com X.

Às vezes temos uma palavra homófona, mas que tem

ortografias diferentes para cada significado. I o caso de "paçu",

que se escreve com SS quando significa 'o movimento dos pés ao

andar' (PASSO), e com Ç quando significa 'palácio' (PAÇO). O

critério semântico, em casos semelhantes, pode ajudar a

Page 625: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

encontrar mais facilmente a grafia estabelecida.

3. O som de "çê" ainda é encontrado em final de sílabas,

podendo ocorrer também em final de palavras, como se pode ver

nos seguintes exemplos: "baç-ta" BASTA, "biç-pu" BISPO,

"atraiç" ATRÁS, "rrapaiç" RAPAZ, "fiç" FIZ, "tauveiç" TALVEZ.

Nesses exemplos, o som de "çê" aparece representado pelas

letras 5 no meio de palavra e por 5 ou Z, em final de palavra.

4. Como a letra C também pode ter o som de "kê", vamos

estudar esse caso agora. Como vimos antes, o som de "kê" pode

ser escrito com a letra C, quando vem antes de A, O ou U, ou

seja, diante de vogais que não sejam 1 nem E. Exemplos: "kãma"

CAMA, "koiza" COISA, "kuçtumi" COSTUME.

Outra letra que pode representar o som de "kê" é a letra Q. A

letra Q tem o som de "kê" sempre, em qualquer caso. Porém,

para escrever os sons de "ki", "kê" e "ké", como não se pode

usar a letra C, a única saída é o Q. Ela tem duas particularidades:

vem sempre seguida da letra U e não ocorre QUU. Essa letra U

não é pronunciada, como nos exemplos: "kis" QUIS, "kê" QUE e

"kéru" QUERO. Nas seqüências de sons "kê" + "u" + "i" ("é" ou

"ê"), quando se pronuncia o U, podem-se ter duas formas de

escrita: com C ou com Q, como nas palavras:

"kuidado" CUIDADO, "kuéka" CUECA, "likuidifikador"

LIQÜIDIFICADOR "çekuêçia" SEQÜÊN CIA, "çekuéla" SEQÜELA,

etc. Aqui também, só o conhecimento da ortografia pode dizer se

Page 626: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ocorre uma letra ou outra.

5. O som de "kê" ocorre também em final de sílaba, caso em

que pode haver uma variação, e no qual o "kê" forma uma sílaba

nova com o acréscimo de "i", como em: "akni" ou "akini" ACNE,

"kõumpaktu" ou "kõumpakitu" COMPACTO, etc. Nesses

exemplos, só se pode escre ver a letra C, nunca a letra Q. Essa

variação entre "k" (sem a vogal) e "ki" (com a vogal) pode

ocorrer também em final de palavras, como em: "tik-tak" ou

"tiki-taki", que pode ser escrita TIQUE-TAQUE ou TIC-TAC Note

as duas formas de escrita, usando C sem a vogal e QU com a

vogal E (que se pronuncia "i" ou "é").

6. O som de "kê" ocorre também conjugado com o de "lê" ou de

"rê". Nesse caso, há uma vogal em seguida, completando assim

a estrutura silábica (que pode ter alguma consoante no final da

sílaba). Essas formas só podem ser escritas com a letra C e

nunca com a letra Q. Exemplos: "klareza" CLAREZA, "krônika"

CRÔNICA, etc.

Nas formas QUE e QUI, quando a letra U deve ser pronunciada,

ela é escrita com trema (Ü).

Nas histórias em quadrinhos, algumas palavras que denotam

ruído são representadas de forma especial, dependendo do

artista, mesmo quando existe uma grafia já dicionarizada. É o

caso de tic-tac e tique-taque. Ver CAGLIARI, 1993ª.

<366>

Page 627: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

7. O som de "kê" pode ser representado pela letra K. Essa letra

não tem outro som a não ser esse. A letra K tem uso muito

restrito na língua portuguesa, servindo apenas para os nomes

próprios, algumas palavras de origem estrangeira e

abreviaturas. De modo geral, não se deve pensar que uma

palavra se escreve com K, sobretudo se não for nome próprio.

8. O som de "chê" pode estar ligado tanto à letra C, como à letra

X. A decisão aqui vai depender de consulta ao dicionário. Uma

pequena regra dentro dessa regra maior é aquela segundo a

qual, quando se tem a variação "ai» ou "a" antes do "chê", este

último será escrito com X (exceto em alguns casos de uns

poucos dialetos como o carioca, em que se pode ouvir

pronúncias como "kaichorru" ou "kachorru" para CACHORRO).

9. Uma palavra pode ter o som de "çê" quando pronunciada

isoladamente ou em final de enunciado, diante de pausa ou

silêncio. Porém, junto com outra palavra que começa com o som

de vogal, esse som de "çê" desprende-se da sílaba anterior e

passa a formar uma sílaba nova com a vogal do início da palavra

seguinte, ficando com o valor fonético de "zê". Veja os

exemplos: "ka-zaç a-ma-ré-las" e "ka-za-za-ma-ré-las" (CASAS

AMARELAS); "treiç i-ni-mi-gus" e "trei-zi-ni-mi-gus" (TRÊS

INIMIGOS)

10. Como vimos no estudo da letra A, aqui também os

problemas de variação lingüística podem complicar

Page 628: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

enormemente a escolha das letras que deverão ser usadas na

escrita, quando se parte da observa ç cia fala. Quem não fala o

"çê" do plural de algumas palavras, vai ter de aprender primeiro

as regras de concordância da norma culta, para depois descobrir

onde devem ocorrer esses "çês", que serão indicados por S na

escrita. Mas não há apenas problemas de concordância. Quem

fala "kalidadji" tem menos chances de acertar a ortografia,

observando a própria fala, do que quem fala "kualidadji"

11. Uma das dificuldades do aluno antes de conhecer a forma

ortográfica certa ocorrerá com palavras que têm o som de "kê"

em final de sílaba, mas podem formar uma sílaba própria, sendo

seguido de "i". Como esta última é mais comum na fala, e a outra

é mais própria da leitura, o aluno muitas vezes escolhe escrever

com QU, como nos seguintes exemplos: TEQUINICA (em vez de

TECNICA — "té-ki-ni-ka"), COMPAQUITO (em vez de COMPACTO

— "kõum-pa-ki-tu"), etc. Outra dificuldade é a troca de QU por C,

quando o aluno ainda não aprendeu que diante de E e de 1, a

letra C não tem o som de "kê". Aparecem, então, estas grafias:

ACELI (AQUELE), CERIDO (QUERIDO), CI (QUE). Mais raras de

encontrar são palavras que deveriam ser escritas com C e o

aluno escreve com QU, como, por exemplo: QUOMANDANTI

(COMANDANTE),

QUOCISTA (CONQUISTA) e assim por diante. O próprio

dicionário registra umas poucas formas variantes desse tipo,

Page 629: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

como QUATORZE e CATORZE, QUOTA e COTA.

12. Uma questão relacionada com os últimos exemplos, mas um

pouco diferente, é a ocorrência de formas alternadas de C e QU

na escrita, em palavras derivadas, quando se acrescentam

sufixos que começam por 1 ou E. Nesses casos, se a escrita

mantivesse a letra C, a palavra perderia o som de "kê" e passaria

a ter o som de "çê". Para manter o som de "kê", a única

alternativa do sistema ortográfico é usar QU. Veja os seguintes

exemplos: VACA, VAQUEIRO; COLOCO, COLOCA, mas

COLOQUEMOS, COLOQUEM; FICAR, mas FIQUEM; TOCO, mas

TOQUINHO, etc.

13. A partir da observação da fala, ainda há uma dificuldade

envolvendo a escrita do som "kê", em palavras como: "ta-kçi" ou

"ta;ki-çi", "fi-.kçi" ou "fi-ki-çi", "tó-ra-kçi" ou "tó-ra-ki-çi", etc.

Nesses casos, escreve-se com X: TAXI, FIXE, TORAX. Mas, no

caso da segunda palavra, seria igualmente possível a forma

FIQUE-SE e, no caso da primeira, TAQUE-SE, embora pouco

usuais. Nesses dois exemplos, o usuário da escrita pode

aprender a guiar-se pela semântica para distinguir uma forma de

escrita de outra. Todavia, isso é para quem já tem muita fluência

na escrita, o que não é o caso na alfabetização. Por isso, muitos

alunos são levados a escrever: TAQUESE em vez de TÁXI,

FIQUEÇO em vez de FIXO, etc.

Pronúncias como "pró-kçi-mu" (PRÓXIMO), "çin-ta-kçi"

Page 630: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

(SINTAXE), etc., em vez de "pró-çi mu", "çin-ta-çi", etc., revelam

uma tendência escolar de ensinar a identificar a letra X com o

som de "kçi", em vez de outras alternativas.

<367>

Resumindo os principais pontos, nota-se que é relativamente

fácil ler a letra C; basta ver que vogal vem depois, se é do grupo

do E e I ou se é do grupo do A, O e U. Mas, quando se trata de

passar da fala para a escrita, a questão é bem complicada. O som

de "çê", em início de palavras, pode ser escrito com a letra C (se

em seguida vier a letra E ou 1) ou, então, com a letra S (seguida

de qualquer vogal). Quem decide se vai ser C ou 5, nesses casos,

é a ortografia. Não adianta ficar observando a fala.

No meio de palavra, o som "çê" pode ser escrito com as letras

SS, como em PASSO, com Ç, como em MOÇA, com X, como em

PRÓXIMO, EXTRA, com S, como em BASTA. Note que se usa SS

somente quando as letras precedente e seguinte são vogais, e se

usa S somente quando a letra precedente é uma vogal e a

seguinte é uma consoante.

Em final de palavras, o som "çê" (ou "chê" — dependendo do

dialeto) pode ser escrito com 5 ou com Z, como atestam os

seguintes exemplos: CASAS, MÊS, FEZ, RAPAZ. Sempre que o

som representar o plural de uma palavra, a escrita será com 5 e

não Z. Além disso, quando a palavra não for oxítona, não poderá

ocorrer a escrita da letra Z. Portanto, a dificuldade real fica

Page 631: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

restrita às palavras oxítonas e singulares. Nos demais casos, a

escrita será sempre com S.

Com relação ao som de "kê" da letra C, o caso é menos

complicado: se na fala ocorrerem os sons "ka", "ko" e "ku", tem-

se na escrita a letra C (ca, co, cu). Se na fala aparecerem os sons

"ki" e "kê", a escrita usará as letras QU (que, qui). Quando

aparecer, na escrita, QU seguido de A ou O, a letra U se

pronuncia (nesses casos, não tem trema), como se nota nos

seguintes exem plos: QUATRO ( "cuatru"), LONGÍNQUO

("lõjirjkuo") etc. E vice-versa, quando na fala ocorrer o som de

"kê", seguido do som "u" e depois o som "a", "ô", "ó", a escrita

quase sempre será feita com QU.

Vê-se que ler a letra C é muito mais simples do que perceber

como será escrito o som ou mesmo "kê". A confusão mais

comum ocorre em início de palavras com C e S (diante de E e I)

ou com C e SS ou mais raramente com Ç, em meio de palavras.

Alguns alunos, no início,

escrevem CE em vez de QUE. A confusão é esperada e, com o

tempo, a criança vai assimilando a ortografia. É preciso ter um

pouco de paciência: não é possível aprender tudo num dia só.

ESTUDO DA LETRA Ç

A letra Ç tem o nome de cê-cedilha. É a letra C com uma

curvinha voltada para a esquerdae colocada embaixo da letra. A

letra Ç representa apenas o som de 'çê', e ocorre diante do grupo

Page 632: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

das vogais A, O e U e nunca diante de E e I.

A letra Ç ocorre somente no meio de palavras, nunca no início

ou no fim. Poucas palavras, na língua portuguesa, são escritas

com essa letra, mas algumas delas têm uso muito freqüente.

Portanto, a melhor estratégia para aprender a empregar a letra ç

é aprendendo caso por caso. Por exemplo, as seguintes palavras

se escrevem com Ç: MOÇA, MOÇO, CALÇADA, CAÇA, MAÇÃ, ONÇA,

AÇO, AÇUCAR, AÇUDE, FAÇO, PEÇO, POÇO, etc.

Note a variação ortográfica em palavras como: NASCER,

NASCIMENTO e NASÇO; ACONTE CE e ACONTEÇA. Isso mostra

que a letra Ç é usada quando uma palavra com C + E ou C + I

adquire a terminação A, O ou U. Nesse caso, como não se pode

escrever C e manter o valor fonético de "çê", a ortografia

recorreu à letra Ç. Observe, ainda, o seguinte exemplo: FAZER,

FAZEMOS, FAÇO, FAÇA.

6 nasal velar vem representada pelo símbolo fonético Fiji.

Corresponde à nasal da língua inglesa empregada no final de

palavras tais como shopping, king, song, etc. Em português

aparece entre uma vogal nasalizada e uma oclusiva velar, ou em

final de sílabas, depois das vogais "u", "õ" e 'à", sobretudo em

final de palavras: "bãnku" (BANCO), "lãn" (LÃ), "oünça" (ONÇA),

etc.

<368>

ESTUDO DA LETRA D

Page 633: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A letra D tem o nome de dê, e o som básico que representa é

o som inicial de seu nome. Exemplos: DATA, DEDO, DIZER, DOCE,

DÚZIA.

Os dialetos da língua portuguesa podem ser divididos em

dois grupos: aqueles que dizem "ti" e "di" e aqueles que dizem

"tchi" e "dji". Portanto, sempre que se encontrar a letra D, em

alguns dialetos, o aluno lerá com o som de "dê": DIA ( "dia"),

PODE ( "pódi"), DEDO ( "dêdu"), DOCE ( "dôci") e assim por

diante. Em outros dialetos, há uma regrinha que diz que diante

do som de "i", a letra D passa a ter o som de "dj". Diante de

outras vogais, a letra D permanece com o som de "dê". Confira

os exemplos: DIA ("djia"), PODE ("pódji"); mas DEDO ("dêdu"),

DOCE ("dôçi"), DIJVIDA ("dúvida"), etc.

Fato semelhante ocorre com a letra T, que, num tipo de

dialeto, sempre é dito como "tê" — TIA ("tia"), POTE ("póti"),

PATO ("patu") POÇO ("pôçu"), etc. — e, em outro tipo,

representa o som de "tchi", quando ocorre antes da vogal "i",

continuando com o som de "tê", nos demais casos — TIA

("tchia"), POTE ("pótchi"); mas PATO ("patu"), POÇO ("pôçu"),

etc. Note que o que vale é sempre a pronúncia e não a escrita:

ADVOGADO ("adjivogadu"), RITMO ("ritchimu"), POTE

("pótchi"), etc.

Apesar da aparência complicada, esse caso na verdade é

muito simples, e não causa problemas aos alunos. Para ler o D,

Page 634: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

tanto faz o aluno dizer "d" ou "dj", porque essa variação dialetal

não é estigmatizada pela sociedade.

A passagem da fala para a escrita também não costuma

causar maiores embaraços do que aqueles típicos do comecinho

da aprendizagem. E o caso daquele aluno que queria escrever a

palavra "índio", que pronunciava "idjo", e não achava, no

alfabeto, a letra "djê". Pensou bastante qual seria a letra mais

apropriada e acabou escrevendo IGO, uma vez que a letra G era

a que apresentava o som foneticamente mais próximo de "djê".

ESTUDO DA LETRA E

A letra E tem dois nomes: quando se dizem as letras do

alfabeto, tem o nome de ê e, quando se dizem os nomes das

vogais, tem o nome de é. Esses dois nomes mostram os dois

sons básicos dessa letra. "ê" e "é". Exemplos: DELE ("dêli"),

DELA ("dela"), MESA ("mesa"), PERTO ("pértu").

Para saber quando a letra E tem o som de "ê" ou "é", é

preciso conhecer a palavra. Quando se decifra uma palavra,

descobre-se aos poucos sua pronúncia, e o resultado final é dado

pelos conhecimentos que a pessoa tem da língua, como falante

nativo. Assim, se o aluno estiver decifrando a palavra MESA, tem

duas possibilidades: uma é ler "mêza" e outra é ler "méza".

Como falante nativo, ele sabe que "mêza" existe e tem um

determinado significado, mas ele nunca ouviu falar em "méza" e,

Page 635: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

portanto, desconfia que essa palavra não existe na língua

portuguesa.

Às vezes, o problema requer um exame mais detalhado do

contexto em que a palavra vem inserida. Por exemplo, quando a

palavra ERRO vem escrita isoladamente, não se sabe se é "êrru"

ou "érru". Mas, dentro de uma frase, é sempre fácil saber: O

ERRO FOI CORRIGIDO ("êrru"); EU ERRO NOS ACENTOS

("érru").

Quando se escreve, tanto o som de "ê" quanto o de "é" será

registrado com a letra E. Às vezes, para facilitar a leitura, a

ortografia coloca os acentos agudo e circunflexo para indicar

uma

<369>

pronúncia ou outra. Por exemplo: VÊ, ACADÊMICO ("ê"); ATÉ,

INTRÉPIDO ("ê"), etc. Nesses casos, o aluno tem uma vantagem

para decifrar o valor fonético da letra E. Ao escrever, porém,

precisará saber quando colocar os acentos.

O professor deverá tratar desse assunto como fala dos

assuntos gerais de ortografia: o aluno precisa aprender que

algumas palavras têm acento e outras não. No primeiro

semestre, o professor pode ignorar o assunto. Explicará o que

for necessário, se algum aluno perguntar, ou por alguma razão

especial que surja durante o trabalho de leitura ou de escrita.

Na verdade, a língua portuguesa poderia não ter nenhuma

Page 636: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

marca de acento na escrita, que as coisas ficariam exatamente

da mesma maneira. Hoje, as marcas de acento complicam a

escrita e quase não trazem vantagens para a leitura.

A distinção mais notável entre "ê" e "é" ocorre nas sílabas

tônicas. Em sílabas átonas, encontramos "é" somente em

palavras derivadas (por exemplo: PÉ — PEZINHO). Todavia, em

alguns dialetos (por exemplo, no baiano), é muito freqüente a

distinção entre a vogal aberta "é" e a fechada "ê", também em

sílabas átonas. Eles dizem, por exemplo, "méninu" (MENINO), ao

passo que, em outros dialetos, a pronúncia é "mêninu".

Nas sílabas átonas, em geral, há uma tendência para a letra E

assumir o som de 1. Veja os exemplos: SEGUINTES EXEMPLOS

("siguintizizêmplus"), ENFEITE ("ifeiti"), etc. Porém, diz- se

"êrói" e não "irói" para HERÓI.

De modo geral, na fala, em posição pós-tônica, encontram-se

apenas as vogais orais "i", "u" e "a". Pronúncias com os sons de

"ê" e de "ô" representam variantes dialetais que tendem a ser

excluídas da norma culta da língua. Em posição pré-tônica,

aparecem as vogais orais "i", "ê", "a", "ô" e "u", exceto em

alguns dialetos do Nordeste em que se encontram ainda os sons

de "é" e de "ó". Como não há uma regra que defina em que

ambiente de palavras ocorrerá uma vogal aberta ("é", "ó"),

fechada ("ê", "ô") ou reduzida ("i", "u"), a única saída é

conhecer a palavra e as diferenças dialetais de pronúncia. Para a

Page 637: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

leitura, essa questão traz pouca dificuldade, mas, para a escrita,

o problema é sério.

Essa última questão torna-se mais clara quando constatamos,

por exemplo, que o som de "i" (fora de ditongo) pode ser

representado por I ou E. Compare EMPRESTAR ("imprêstar")

com IMPOSTO ("impôstu"); ENFERRUJAR ("iferrujar") com

INFELIZ ("ifelis"), etc. Veja ain da PARÊNTESES ou PARÊNTESIS.

Nesses casos, somente a ortografia pode dizer se a palavra se

escreve com E ou I.

Saber como proceder pode significar errar de vez em quando.

Por exemplo, um aluno escreve DICI e o professor explica que,

às vezes, a gente fala "i", mas deve escrever E: DISSE. Em

seguida, o aluno, que aprendeu a lição (até aí), escreve MÉDECO

em vez de MÉDICO. O professor não precisa ficar preocupado: é

assim mesmo que se aprende. O aluno não está aprendendo

errado, ele simplesmente não tem condições de operar com

todas as informações a todo instante. O importante é refletir

sobre o funcionamento do sistema de escrita. E isso ele fez muito

bem.

Quando a letra E antecede a consoante nasal M ou N

(sobretudo se em seguida vier outra consoante ou o final da

palavra), ela adquire um som nasalizado, como se pode

constatar nos seguintes exemplos: VEM, TEM, EMBORA,

ENCONTRO, ENTRA, ENTRADA, TENHO, HÍFEN, etc. Conforme as

Page 638: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

regras vistas anteriormente, mesmo nasalizada, a letra E terá o

som de "e" ou de "i" (se estiver em sílaba átona). Exemplo:

EMBORA ("êmbóra" ou "imbóra"). Poderá também ter o som de

um ditongo nasalizado "êi", como em ITEM ("itêi"), DESDÉM

("dezdêi"), EMBORA ("êimbóra"), PENTE ("pêinti"). A ocorrência

da forma com ditongo nasalizado é mais comum em final de

palavras.

Tal qual a letra A, seguida de I, também a letra E, quando

seguida de I, pode ser pronunciada sem o I, quando essas letras

estão diante de R ou de X (representando o som de "chê").

Exemplos: CADEIRA ("kadeira" ou "kadêra"), PEIXE ("peichi" ou

"pêchi").

370

ESTUDO DA LETRA F

A letra F tem o nome de efe e representa o som que existe entre

o "é" e o "i" de seu nome. Em certos dialetos, algumas letras

como o F têm o som básico da letra no início do nome (fê mê, nê,

etc.), o que facilita a aplicação do princípio acrofônico visto

antes. Exemplos: FACA, FIQUE, FOCA, FUMAÇA, FEITO, CONFIAR,

etc. Encontrando-se esse som na fala, usa-se a letra E

A dificuldade de alguns alunos não está em reconhecer o som

"fé», ou mesmo em distingui-lo do "vê", mas em saber em que

palavra escreve-se F ou V porque às vezes falam "fê" e, às

Page 639: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

zes, "vê". Quando sussurram, em vez de falar em voz alta, o

resultado fonético é um som do tipo fê e não vê Por isso ao

escrever o aluno pode chegar aos seguintes resultados A

FACA CHIFROU O CACHORRO, MARIA COMPROU UMA VIFELA,

ELE FEIO AQUI, ANDRE MORA NA FAFELA; (FACA = VACA; VIFELA

= FIVELA; FEIO = VEIO; FAFELA = FAVELA). Essas

confusões se corrigem com a prática, prestando atenção no

significado das palavras (faca:

ferramenta; vaca: animal) e na ortografia e não com inúteis

exercícios fonéticos de discriminação auditiva e intermináveis

repetições da pronúncia certa. A questão não é fonética, mas

dialetal e ortográfica.

ESTUDO DA LETRA G

O nome da letra G é gê e representa tipicamente o som inicial de

seu nome. A letra G, contudo,

tem também outro som muito comum, que é o de "guê" Existe

um paralelismo entre a letra C

e a letra G (a letra G foi derivada da letra C com um traço na

parte final inferior para

distinguir o som de "kê" do som de"guê",no latim).

A letra G, quando diante do grupo de vogais E e I,tem o som de

"jê" e,quando diante do grupo de vogais A, O e U, tem o som de

"guê", como se constata nos seguintes exemplos:

Page 640: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

GENTE ('jênti"), GIRASSOL ("jiraçóu"); mas, GATO, GOTA, GULA

(com som de "guê").

Para escrever o som de "guê", seguido de E ou de I, basta

acrescentar um U entre o G e a vogal. A letra U, nesses casos,

não é pronunciada. Ela simplesmente modifica o valor da letra G.

Exemplos: GUERRA, GUIAR, FOGUEIRA, ÁGUIA, etc. (todos com

som de "guê" ou de "gui").

Porém, se depois do G + U ocorrerem as letras A ou O,

pronuncia-se também oU, como se percebe nos seguintes

exemplos: GUARANA, AGUA, CONTIGUO, EXÍGUO. Note que há

casos em que ocorre G + U, seguidos das vogais E ou I, e a letra

G tem o valor fonético de "guê" e o U também é pronunciado,

como em SAGÜI ("sagui"), AGÜENTAR ("aguéntar"). Compare

CONTÍGUO com CONTIGO

Como se pode ver, o caso acima é semelhante ao da letra Q, visto

no estudo da letra C.

Também já foi mencionado antes numa regra mais abrangente,

que, quando se têm duas consoantes diferentes em seqüência,

ou no final de palavra (exceto com S, Z, R, M e X em alguns casos

em meio de palavra), a primeira consoante poderá ser

pronunciada com um "i". No caso da letra G, veja os seguintes

exemplos: GNOMO ("guinomu" ou "gnomu"), IGNORAR

("iguinorar" ou "ignorar"). Quando se pronuncia o "i", tem-se

uma sílaba a mais na palavra. Quando não se pronuncia o "i", o

Page 641: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

som "g" fica no final da sílaba que o precede.

7Ouso do trema na escrita facilita a leitura, mostrando ao aluno

que o U deve ser pronunciado. Se não aparecer trema nas

escritas GUE, GUI (ou QUE, QUI), o U não será pronunciado.

371

Quando se passa dos sons da fala para a escrita, descobrimos

que o som de 'lê" tanto pode ser escrito com a letra G (somente

seguido de E ou de I), como pela letra J (diante de qualquer

vogal): GELO, GIRAR, JANELA, HOJE, JILÓ, JOVEM, JUIZ. Isso

traz uma dificuldade ortográfica que só se resolve com a prática

constante da escrita.

"Como é que se escreve tal palavra, com G ou com J?" é uma

pergunta que os usuários da

escrita do português freqüentemente fazem.

Uma dificuldade mais fácil de resolver (semelhante ao caso da

letra C) acontece quando, por causa das regras estabelecidas em

palavras derivadas, ora se tem G, ora GU, para manter o valor

fonético original da palavra ("guê"), como nos exemplos a

seguir: CEGO/CEGUEIRA, FOGO/FOGUEIRA, AFOGO/AFOGUEI e

assim por diante.

Alguns alunos trocam GU por QU (ou vice-versa), não por

dificuldades auditivas, mas pela dificuldade gráfica que essas

escritas apresentam. Mais raramente, cometem esses enganos

Page 642: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

por dificuldades de reconhecimento fonético, sobretudo em

certos contextos (no meio de palavras), e acabam escrevendo,

por exemplo: FREGÜENTE em vez de FREQÜENTE, AQÜENTAR em

vez de AGÜENTAR, ou mesmo ANTIQUO em vez de ANTIGO.

Outro tipo de confusão muito comum é a troca de G por C, como

em AMICO em vez de AMIGO. Esses são erros que se corrigem

pela ortografia e não através de exercícios de contraste de

sonoridade.

Quase sempre, o professor deverá ensinar aos alunos não só o

que se pode fazer, como também o que não se pode fazer, já que

desse modo os limites ficam mais bem determinados e os alunos

aprendem melhor e mais rapidamente. Por exemplo, há uma

regrinha que diz que em palavras derivadas mantém-se a letra

usada na grafia da palavra primitiva, como mostram os

exemplos: LARANJA e LARANJEIRA, MANGA e MANGUEIRA.

ESTUDO DA LETRA H

A letra H tem o nome de agá. Na língua portuguesa, essa letra

não representa nenhum som particular Portanto, seu nome não

tem serventia para a decifração da escrita. Exemplos: HOMEM,

HERA, HORA No entanto, essa letra serve para formar dígrafos.

Nesses casos, a letra H modifica o som da letra anterior

Exemplos. CHAVE, UNHA, ILHA.

A letra H, no nosso sistema de escrita, funciona como uma

espécie de curinga, servindo para modificar o valor fonético da

Page 643: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

letra que a precede. Na escrita da língua portuguesa, a letra H

pode vir precedida por C, N e L, produzindo os dígrafos (duas

letras com um único som), como CH, NH e LH.

O alfabeto latino não tinha letras para representar esses sons

palatais porque não havia esse tipo de som em latim. Como o

português escolheu o alfabeto latino para sua escrita e como não

podia inventar letras, a solução encontrada foi criar dígrafos. A

letra H, e mais raramente a letra X, são usadas para modificar o

valor do som anterior, como uma estratégia para não inventar

letras novas. Esse emprego do curinga H, formando dígrafos,

alterou o princípio acrofônico de uma maneira inteligente,

abrindo possibilidades de novos empregos para as letras, sem

alterar o alfabeto.

O professor pode mostrar o valor dos dígrafos, comparando-os

com os das letras simples, através de pares mínimos:

MALA/MALHA, SONO/SONHO, FICA/FICHA, etc.

Quando a letra H vem no início de palavras, não forma dígrafos e

não apresenta, pois, som algum. Em conseqüência, a leitura

começará na letra imediatamente seguinte, como se vê em:

HABITAÇÃO, HELENA, HINO, HORA, HUMILDE, etc. Repare que a

letra seguinte é sempre uma vogal.

372

Em palavras de origem estrangeira, sobretudo em nomes

Page 644: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

próprios, a letra H tem o som de "R inicial de palavras", como se

observa nos nomes HONDA ("rõnda"), YAMAHA ("iamarra"),

HOTEL HILTON ("otéurriutõu"), etc.

Como não é possível estabelecer regras para a ocorrência ou não

da letra H (a não ser no caso dos dígrafos), é muito difícil saber

se uma palavra começa com a letra H ou não. Somente o

conhecimento prévio da ortografia pode dizer. Em alguns poucos

casos, dá até para saber se haverá H ou não, dependendo do

significado da palavra, como ocorre em HORA e ORA, HAJA e

AJA. Note, por exemplo, que escrevemos ESPANHA, mas temos

de escrever HISPÂNICO, ou, ainda, escrevemos ERVA e

HERBICIDA, etc. Esta é uma grande dificuldade para o usuário do

sistema: por que HUMILDE se escreve com H e UMIDO não? O

professor não deve se preocupar com essas dificuldades, mas

deve explicá-las aos alunos. Com o tempo, irão fixando a grafia

das palavras mais comuns.

Alguns alunos, que aprenderam a decifrar usando o nome das

letras e o princípio acrofônico, pensam que a letra H funciona

como as demais e, quando vão escrever (e mais raramente ler),

fazem coisas como: HRA (AGORA), HLÏA (GALINHA), etc.

Outro tipo de dificuldade maior e mais comum vamos encontrar

na forma lexical de certas palavras que apresentam pronúncias

diferentes em alguns dialetos. Para ilustrar esse fato,

encontramos um aluno que fala por exemplo miu (MILHO) fia

Page 645: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

(FILHA) bãia (BANHA) e sim por diante. Há, ainda, aqueles

falantes (mesmo da norma culta) que variam a pronúncia de

"Ih" com a de "li", como em BATALHA ("batalha" ou "batalia"),

FAMÍLIA ("família" ou "familha"), etc.

O aluno precisará aprender não só a reconhecer os sons da sua

própria fala, mas saber ainda que na norma culta há uma forma

lexical diferente, na qual a ortografia se baseia. Nesses casos,

saber escrever respeitando a ortografia exige uma longa

aprendizagem, e o professor não pode cobrar esse conhecimento

muito cedo. Pode e deve despertar a dúvida ortográfica nos seus

alunos, e pedir a eles que corrijam o material que escreverem.

Ler os dígrafos com H é tarefa fácil: o H está presente para

alertar o leitor. Escrever o NH e o LH não apresenta grande

dificuldade. As maiores encontram-se nos casos de variação

dialetal.

Com relação ao CH, existe uma dificuldade extra na escrita,

criada pelo uso da letra X com o valor de "chê". Portanto,

partindo da fala, o aluno terá duas formas de representar um

mesmo som, e a escolha de uma ou de outra não é facultativa,

mas controlada pela ortografia. Esse tipo de dificuldade os

alunos superam à medida que forem praticando a leitura e

produzindo textos. Trata-se de um conhecimento que não se

adquire em pouco tempo. O professor deverá, pois, ter paciência

com os erros dos alunos.

Page 646: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Nos dialetos em que o S se palatiza em final de sílaba ou diante

de outra consoante, o som de "chê" será escrito com S ou Z:

"ichkóla" (ESCOLA), "rrapaich" (RAPAZ), "pichta" (PISTA), etc.

Esse problema, na verdade, representa pouco para os alunos.

Eles o resolvem facilmente, da mesma maneira como resolvem

as pronúncias de "ti" e "tchi", escrevendo T e não TX ou TCH.

ESTUDO DA LETRA I

A letra 1 tem o nome dei e "i" é o som que ela representa. Como

acontece com as demais vogais, quando a letra I vem diante de

uma consoante nasal M ou I podera apresentar som nasalizado

ou não. Veja os exemplos: VI, CIDADE, CINTO, VINHO, VIM,

CINEMA.

A letra I não apresenta dificuldades para leitura, mas o mesmo

não acontece com a escrita. Essa variação pode, às vezes,

atrapalhar o aluno e criar problemas sérios de escrita e até de

leitura, por causa do medo de errar.

373

Nem todo som de "i" será escrito com a letra I, podendo, por

exemplo, ser escrito com a letra E, como nas palavras: "iskóla"

ESCOLA, "ifiar" ENFIAR. Como a língua portuguesa tem muitas

palavras com o som de "i", que ora se escrevem com E, ora com

I, fica difícil saber a ortografia, e os usuários têm comumente

dúvidas ortográficas a respeito dessas grafias. Não há como

Page 647: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ensinar a resolver esse problema a não ser criando o bom hábito

de ter dúvidas ortográficas e de buscar resolvê-las, procurando

num dicionário ou perguntando a quem sabe.

Como já foi visto, em palavras como "opitei" OPTEI, "obijétu"

OBJETO, etc., pode existir

uma vogal "i" na fala, porém não na escrita. O mesmo acontece

em palavras como "üinha"

UNHA, "bãinha" BANHA, etc.

Algumas palavras apresentam uma variação entre 01 e OU, como

LOIRO e LOURO, COISA e

COUSA, DOURADO e DOIRADO. Essa variação acontece tanto na

fala quanto na escrita e não

traz, portanto, nenhum problema.

Vimos anteriormente que algumas palavras têm duas

pronúncias, uma com um ditongo (M,

• El) e outra sem o ditongo (A, E), quando esses sons se

encontram diante de R ou X (com o som de "chê"), como em:

CAIXA ("kaicha" ou "kacha"), BANDEIRA ("bãndeira" ou

"bãndera"). Essas diferenças de pronúncia costumam atrapalhar

o aluno na hora de escrever. Além da dificuldade específica

dessas palavras, o fenômeno pode criar dificuldades com outras

palavras que apresentem contextos semelhantes, fazendo com

que o aluno use uma forma com hipercorreção. Por exemplo, em

vez de escrever PÊRA, o aluno escreve PEIRA, etc.

Page 648: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ESTUDO DA LETRA J

A letra J tem o nome de jota e seu som básico é o que aparece no

início de seu próprio nome.

Sempre que a letra J aparecei; o som correspondente na

decifração será o

Exemplos: JAMAIS, JEITO, JIBÓIA, JOGADOR, JUVENTUDE, etc.

Note que o som de "jê" pode ocorrer diante de todas as vogais. A

letra J pode ser usada diante de qualquer vogal, mas a letra G

tem o som de "jê" apenas diante das vogais E e I. Portanto, para

escrever o som de "jê" seguido de "a", "ó", "ô" e "u", o único

jeito permitido pelo sistema é o uso do J. Saber isso, ajuda muito

o aluno na hora de escrever.

Diante dos sons de "ê", "é" e "i", pode-se ter a letra J ou G,

dependendo da ortografia. Esse

fato, aparentemente simples, na verdade causa grandes

confusões e é uma permanente fonte de dúvidas ortográficas.

O aluno deve aprender ainda que o som de "jê" seguido do de

"dê", formando o "djê", deve rá ser escrito com a letra D apenas,

como em DIA ("djia"), BODE ("bódji"), etc.

ESTUDO DA LETRA K

A letra K tem o nome de cá e representa o som inicial de seu

nome: "kê". Essa letra caiu em desuso já no latim. Como

algumas línguas usam essa letra, palavras de origem

estrangeira, sobretudo nomes próprios, podem ser escritas com

Page 649: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ela. Pode aparecer também em abreviaturas cientificas. Alguns

exemplos: Kwait, km, kg.

A letra K mantém seu valor fonético diante de qualquer vogal. O

ensino, do K deve restringir-se à grafia de nomes próprios.

374

ESTUDO DA LETRA L

O nome da letra L é ele e o seu som básico é o que se encontra

no meio do nome entre o som ' e o "i' Em final de sílabas, tem

também o som de "u' Exemplos: LATA, LIVRO, MAL, SOL, CLARO.

Há três casos típicos de ocorrência da letra L: a) em início de

sílaba, sempre antes de vogal; ) entre uma consoante e uma

vogal na sílaba; e c) em final de sílaba, sempre entre uma vogal

e uma consoante ou em final de palavra. No primeiro caso, a

letra L tem o som básico de "lê», como, por exemplo: LATA

("lata"), LETRA ("letra"), LOGO ("lógu"), LIGA ("liga"). No

segundo caso, tem o mesmo tipo de articulação e o mesmo tipo

de som como em BLUSA ("bluza"), PIANO ("plãnu"), CLASSE

("klaçi"). A letra L (juntamente com a letra R) pode formar um

grupo consonantal com P, B, T, D, C (com o som de "kê"), G (com

o som de "guê"),F e V .Nesses casos, a letra L vem em segundo

lugar e tem o som de "lê" (segundo o caso menciona do acima).

Veja os exemplos: PLANTA, PROBLEMA, ATLÂNTICO, CLARO,

GLORIA, FLECHA (na língua portuguesa poderiam ocorrer D e V

seguidos de L, seguindo o mesmo padrão das outras consoantes,

Page 650: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

porém, não existem palavras com essas ocorrências, a não ser

DLIN-DLON, VLADIMIR e pouquíssimas outras).

No terceiro caso, tem o som de "u", como parte final de um

ditongo formado com a vogal precedente, como mostram os

exemplos: SALTO ("çautu"), SAL ("çau"), FUNIL ("funiu"), MEL

("méu"), SUL ("çuu"). Em alguns dialetos do Sul do Brasil, o L

em final de sílaba mantém o valor fonético que apresentanos

outros contextos, não ocorrendo, pois, a formação de ditongo.

Nesses dialetos, as pronúncias são: "çaltu" (SALTO), "çal" (SAL

),"funil" (FUNIL) "mél" (MEL), "çul" (SUL)

A letra L apresenta pouca dificuldade de leitura. Uma vez que o

aluno identificou as letras e formou sílabas, as palavras

emergem automaticamente, e assim o aluno consegue dizer o

que está escrito.

Partindo da fala para a escrita, encontramos um problema sério

para os alunos. Pelo valor fonético de "u" que a letra L tem, e

como, no mesmo contexto do L, pode ocorrer a letra U, também

com o som de "u", é fácil ler, mas é difícil saber quando escrever

uma ou outra letra. Compare as seguintes palavras: CALDA,

CAUSA, MEL, CÉU, VÉU, TERRÍVEL, PAPEL, CHAPÉU, SAL,

SAUDADE, POUPA, POLPA.

A ortografia distingue poucas palavras pelo significado e com

grafias diferentes, usando L ou U São palavras homófonas, como

ALTO (que diz respeito à altura) e AUTO (que significa 'por si

Page 651: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

próprio'). O que permite saber que PLANALTO se escreve com L e

não com U e AUTOMÓVEL se escreve com U e não com L é a

composição dessas palavras, uma formada por ALTO e outra, por

AUTO

A dificuldade maior com relação ao uso correto da letra L, como

em outros casos, reside no fato de alguns alunos falarem um

dialeto em que as palavras têm pronúncias diferentes,

acrescentando novos valores fonéticos à letra L e dificultando

em muito o acerto da grafia das palavras a partir da observação

da fala. Por exemplo, alguns alunos falam: "prãnta" (PLANTA),

"bardji" (BALDE), "pobrema" (PROBLEMA), etc., ao lado de

palavras como "prato" (PRATO), "barcu" (BARCO), "pobri"

(POBRE) e assim por diante. Só a ortografia pode resolver esse

tipo de problema, o que mostra que ela tem um poder enorme no

nosso sistema de escrita.

O professor não deve incentivar esses alunos a observarem

detalhadamente a própria fala para escrever. É melhor ir

pensando com quais letras se escrevem as palavras, fazendo,

aliás, o mesmo que fazem os usuários veteranos da escrita. Ao

escrever, estes se guiam mais pelo significado do que por uma

análise detalhada dos sons da fala. Os alunos, na alfabetização,

podem ir escrevendo do mesmo modo, sobretudo quando são

falantes de dialetos que têm

Page 652: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

375

uma pronúncia muito diferente da pronúncia da norma culta ou,

como dizem alguns professo. res, quando "falam errado"

ESTUDO DA LETRAM

A letra M tem o nome de eme. O som que aparece no meio, entre

"e" e "i", representa o som básico da letra. Nos dialetos em que

o nome da letra é mê, o princípio acrofônico fica mais evidente.

1

A letra M tem duas funções distintas, uma quando ocorre em

início de sílaba e outra quando ocorre em final de sílaba (ou de

palavra). No primeiro caso, a letra M tem o som básico de "mê",

como, por exemplo, em: MAR, MURO, CAMELO, MORAR, COMIDA,

etc. No segundo caso, a letra M representa a nasalização da

vogal precedente, e pode ter ainda um som consonantal palatal

("nh"), depois da vogal nasalizada "i", ou um som consonantal

velar ("13 »)8, depois da vogal nasalizada "ii". Veja os

exemplos, a seguir: VEM ("vêi" ou "vêinh"), EMBORA ("ibóra" ou

"ïnhbóra"), BOM ("bõu" ou "bõuij"), ALGUM ("augú" ou

"augürJ"). Além disso, observe o fenômeno de juntura

intervocabular, em que essas consoantes nasais ficam mais

evidentes, uma vez que passam de final de sílaba para início de

sílaba, como se mostra nos seguintes exemplos: VEM AQUI

Page 653: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

("véi-nha-qui"), ALGUM AMIGO ("au-gü-rja-mi-gu").

Quando a nasal M ocorre no interior de palavras, em fmal de

sílaba, diante de consoante no início da sílaba seguinte, além dos

casos contemplados acima, a letra M pode ter o som de "mê".

Nesse caso, quando ocorre o som do "mê", a vogal precedente

pode ser nasalizada ou não (se for a vogal A, haverá sempre a

mudança de qualidade, com ou sem a sobreposição da

nasalização). Outra possibilidade é a pronúncia da vogal

nasalizada, sem a ocorrência da con soante nasal M. Exemplos:

CAMPO ("kãmpu" ou "kãpu"), TEMPO ("témpu" ou "têpu"),

LIMPO ("limpu" ou "lipu"), etc. As consoantes nasais

apresentam dificuldades de leitura e de escrita, diante das quais

os alunos costumam se atrapalhar. Às vezes, algumas

considerações gerais ajudam a resolver pequenas dificuldades.

Nos verbos, as terminações nasalizadas são escritas com M:

FIZERAM, CONTAM — com exceção do futuro em -ÃO: ACHARÃO,

VENDERÃO e de alguns verbos irregulares, como SÃO e ESTÃQ

Nos substantivos e adjetivos, as terminações nasais costumam

acabar em vogal com til e

não em vogal com nasal: CORAÇÃO, ÓRFÃ, ANÕES. Os

aumentativos e os plurais também não têm consoante nasal:

LIVRÃO, CORAÇÕES, etc.

Raras palavras serão escritas com N em vez de M, como HÍFEN,

PÓLEN, SÊMEN, etc.

Page 654: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Estudar a estrutura de contextos, ou seja, os sons ou letras que

vêm antes e depois de uma determinada unidade fonética ou

caractere, é importante para ajudar o aluno a refletir sobre os

segmentos. Um bom motivo para tratar desse assunto é ensinar

quando se usa M ou N em final de sílaba, antes de consoante, no

meio de palavras. A regra é fácil: usa-se M diante de P e B, e N

diante das demais consoantes. Como não se escreve til no meio

de palavras (com raríssimas exceções, como CÃIBRA e os

aumentativos e diminutivos), toda vogal com som nasalizado

que ocorre diante de consoante seguirá essa regra. Exemplos:

CAMPO, BOMBA, CANTO, INFELIZ, ENVELOPE, CONSUMIR, etc.

Ler a letra M é muito mais fácil do que usá-la na escrita. Quando

aparecer o som de "mê", usa-

se a letra M. Isso é evidente no início de sílaba — mais ainda no

início de palavra. As regrinhas de decifração apresentadas acima

também ajudam, em muitos casos, o aluno a decidir sobre a

escrita.

8 o som Fiji, ver explicaçáo na página 368.

1

376

Quando a letra M (ou a letra N) indica a nasalização da vogal

precedente, o que se sabe distinguindo se a sílaba acaba em som

nasal, seguido ou não do S do plural, a vogal nasalizada pode ser

pronunciada com um ditongo formado por 1" ou "ti". Essa

Page 655: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pronúncia é muito evidente, mas a escrita não registra a vogal 1

nem o U. Mostrar esse fato aos alunos com exemplos ajuda a

esclarecer um tipo de dúvida ortográfica freqüente. Exemplos:

"ómëinh" (HOMEM), "tãmbëinh" (TAMBÉM), "sõurj" (SOM), etc.

Note, porém, que essa regra serve apenas para algumas

palavras, não para todas. Veja, por exemplo, as grafias de MÃE,

PÕE, ANÕES, etc.

Deve ficar claro para o aluno que, sempre que houver uma vogal

nasalizada, deverá ocorrer uma consoante nasal depois (M, N,

NH) ou a vogal deverá vir com o diacrítico da nasalização, que é

o til. O til ocorre somente sobre a vogal A ("ã") ou sobre a vogal

O ("õ"). O segundo caso acontece somente nas terminações de

plural ou no caso do verbo PÔR. Exem plos: IRMÃ, IRMÃS,

BALÃO, BALÕES, MÃE, MAES, CIDADÃO, CIDADÃOS, PÕES, PÕEM.

Por fim, lembre que a palavra "muitu", apesar da nasalização do

ditongo "ui", é escrita sem consoante nasal ou til, porque assim

foi fixada sua grafia.

ESTUDO DA LETRA N

A letra N tem o nome de ene. Seu som básico é o que está

intercalado, no seu nome, entre o "é" e o "i", como acontece com

algumas letras no nosso alfabeto. Nos dialetos em que o nome

da letra é nê, aplica-se mais facilmente o princípio acrofônico..

A letra N tem uma distribuição na fala e na escrita semelhante à

da letra M, ocorrendo um paralelismo entre as duas letras.

Page 656: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Sua ocorrência com o valor fonético básico encontra-se

tipicamente em início de sílaba, como em: NIVEL, NADA, NETO,

NOTA, NUCA. Esse som básico pode ocorrer também diante da

consoante oclusiva T ou D, no interior de palavra, em final de

sílaba, como nos seguintes exemplos: CANTO, REDONDO, SINTO,

ANDO, etc. Diante das consoantes oclusivas velares,

representadas pelas letras C (com o som de "kê"), G (com o som

de "guê") ou QU, a letra N pode representar, na fala, uma

consoante nasal velar (rj) como, por exemplo, em: BANCO

("bãrjku"), MANGA ("mãrjga"), ENQUADRAR ("irjkuadrar").

Diante de outras consoantes, como F, V S, Z, Ç, R, L, só ocorre a

nasalização da vogal precedente, sem a presença da consoante

nasal. Em falas muito enfáticas, vale a regra segundo a qual,

depois de "i" ou de "e" nasalizados, pode ocorrer uma consoante

nasal palatal do tipo "nh"; e depois de "ã", "õ"

e "á ", pode ocorrer uma consoante nasal velar do tipo "ij ".

Exemplos: ENLATADO ("éilatadu"

ou "êinhlatadu"), ENFORCAR ("iforcar" ou "inhforcar"), ONÇA

("õuça" ou "ourJça"), JUNTA ("jüta" ou "j€írjta"), etc.

Lembre que, no interior de palavra, no final de sílaba, a letra N

pode representar apenas a nasalização da vogal precedente, não

tendo outro som, como mostram os últimos exemplos.

Quando se parte da fala para a escrita, sempre que for detectado

o som de "nê", será usada a letra N. A letra N será raramente

Page 657: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

usada em final de palavra. No meio de palavra, quando

ocorrerem vogais nasalizadas (monotongos ou ditongos), o

aluno vai ter de decidir entre o uso da letra M ou da letra N, para

colocar no final da sílaba (em início de sílaba, a decisão é fácil,

bastando observar se na fala ocorre o som de "mê" ou de "nê").

Como já foi visto, a letra M só será escrita diante das letras P e

B, e a letra N diante de qualquer outra letra (representando uma

consoante), ou seja, diante de T, D, C, Q, G, F, \' 5, Z, Ç, R, L, X.

Exemplos: SANTO, INDO, CINCO, CONQUISTA, FRANGO,

CONFIAR, ENVIAR, TRANSPORTAR, ENZIMA, TRANÇA, HON RA,

ENLAMEAR, ENXADA.

377

A letra N será escrita na forma do dígrafo NH quando tiver esse

som palatal em início de sílaba. Tal som não ocorre em início de

palavra, exceto em palavras estrangeiras (NHOQUE), em nomes

próprios oriundos de línguas indígenas (NHEENGATU) e na

palavra NHÔ, uma forma abreviada antiga para SENHOR

(SINHÔ).

ESTUDO DA LETRA O

A letra O tem dois nomes: chama-se ô quando está entre as

demais letras do alfabeto, e tem

o nome de ó quando faz parte da série das vogais: A, E, I, O, U

Page 658: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Existe um paralelismo entre

as funções da letra O e da letra E no sistema de escrita e na fala.

Às vezes, a escrita exige o acento circunflexo ou agudo para

indicar se a qualidade fonética da letra O será fechada "ô" ou

aberta "ó". Exemplos: AVÔ, AVÓ, ANTÔNIO, CÓLICA, etc.

Entretanto, nem sempre a escrita faz uso desses diacríticos.

Quando eles não estão marcados, se for a sílaba tônica da

palavra, pode ocorrer o som "ó" ou "ô", e o aluno precisará

descobrir que palavra está escrita, para, depois, saber se se trata

de um som ou de outro. Como se disse acima, trata-se de um

problema semelhante ao encontrado no estudo da letra E. Veja

os seguintes exemplos: BOLO ("bôlu"), BOLA ("bóla"), PORTO

("pôrtu"), PORTA ("pórta"). Somente o conhecimento que o

aluno tem da língua portuguesa, como falante nativo, pode

mostrar a ele como se pronuncia.

Em alguns casos particulares, pode-se saber um pouco mais. Por

exemplo, algumas palavras têm o som "ô" no masculino

singular, mas no plural ou no feminino (singular ou plural) têm o

som "ó", como em: PORCO ("pôrku"), mas PORCOS ("pórkuç),

PORCA ("pórka"), PORCAS ("pórkaç") e assim por diante. Às

vezes, a semântica ou a sintaxe (o significado ou a função das

palavras na frase) podem ajudar a mostrar as diferenças, como

em ROLA ("rôla" passarinho e "róla" do verbo 'rolar'). Veja

ainda, como exemplos, SOCO ("çôku" e "çóku") e CONFORTO

Page 659: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

("kõfôrtu" e "kõfórtu").

A letra O, em sílaba átona, tende a ser pronunciada "u", ficando

a pronúncia do O fechado para uma fala mais formal ou própria

de certos dialetos (do Sul do país e no dialeto caipira).

Exemplos: TODO ("todu"), MUNDO ("múndu"), CAPÍTULO

("kapítulu") e assim por diante. Quando a vogal é nasalizada

(diante de M ou N seguidos de consoante), a tendência é mais

para "õ" do que para "u" nasalizados: CONFIANÇA ("kõfiãça"),

COMBATE ("kõmbati"). Porém, se a nasalização da vogal for

optativa (a nasal começa a sílaba), a tendência é a vogal "u" ser

nasalizada, como em COMIDA ("kumida"). Há sempre alguns

casos que não se enquadram bem, como COMPRIDO, que

praticamente é homófono de CUMPRIDO, ou COLOCAR, cuja

pronúncia com "u" na primeira sílaba não representa a fala

comum da norma culta.

Quando se parte da observação da fala para a escrita, sempre

que se encontrar um "ô" ou um "ó", a letra a ser usada será o O

(em alguns casos cõm a marca do acento agudo ou circun flexo).

Entretanto, quando se encontrar o som de "u" em sílaba átona, é

preciso conhecer a ortografia da palavra, para saber se deverá

ser escrita com a letra O ou U.

Algumas vezes, o som de "ô" precisa ser escrito com duàs letras:

O e U. Isso ocorre com algumas palavras que podem ter a

pronúncia com "ô" ou com "ou" como, por exemplo, TOU RO

Page 660: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

("tôru" ou "tôuru"), POUCO ("pôku" ou "pôuku"). Ocaso não é

tão simples, porque palavras como "poupa" e "çoudádu" serão

escritas com L: POLPA e SOLDADO (confira ainda a palavra

POUPA, de 'poupar').

A regra apresentada acima mostra por que alguns alunos

decidem escrever BOUA em vez

de BOA, ou PROFESSOURA em vez de PROFESSORA, revelando a

dificuldade de chegar à ortografia observando somente a fala e

as relações possíveis entre letras e sons.

378

ESTUDO DA LETRA P

A letra P tem o nome de pê e seu som básico é o que se encontra

no início de seu nome.

Quando a letra P vem escrita em final de sílaba, ou seja, diante

de outra consoante que não seja R nem L, pode ter o som de

"pi", ou apenas de "p". No segundo caso, a pronúncia é mais

formal do que no primeiro caso. Exemplos: APTO ("ápitu"),

RAPSÓDIA ("rrapiçódia"), ADAP TAR ("adapitar"), OPÇÃO

("opição"), etc.

Somente observando a fala, é impossível saber quando escrever

P com ou sem 1. A variação é controlada apenas pela forma

ortográfica e não pela pronúncia ou por alguma regra contextual

da escrita. Confira, por exemplo, "rrápitu" (RAPTO) e "rrápidu"

(RÁPIDO).

Page 661: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Uma dificuldade semelhante a essa acontece com os sons de

"pç" (representado pelas letras P5, PISI, PIS mais consoante ou

PICI) em início de sílaba. A ortografia tem vários modos de

escrever, como se pode constatar nos seguintes exemplos:

"piçikolojia" ou "pçikolojia" PSI COLOGIA; "piçina" ou "pçina"

PISCINA.

Essas várias formas ortográficas não causam grandes embaraços

na decifração e na leitura, mas são terríveis na escrita para o

aluno que está começando a aprender. O professor não deve dar

muita atenção a erros oriundos desse tipo de dificuldade, porque

eles se resolvem com o tempo.

ESTUDO DA LETRA Q

A letra Q tem o nome de quê e seu som básico está logo no início

do seu nome: 'kê' A letra Q

vem sempre seguida da letra (4 na escrita, porém o Unem

sempre é pronunciado.

Como foi dito nos comentários à letra C, o dígrafo QU substitui a

letra C para representar o som de "kê" quando este precisa

associar-se aos sons "ê", "é" ou "i", como em: QUERIDA

("kerida"), QUERO ("kéru"), QUINTAL ("kintau").

Em palavras derivadas, pode ocorrer a troca de C pelo QU

quando o sufixo começar pela vogal E ou 1, para preservar o som

original de "kê" da letra C na palavra primitiva. Por exemplo:

VACA/VAQUEIRO, FICO/FIQUEI, TOCARJTOQUE,

Page 662: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

BARCO/BARQUINHO, etc.

Como em português existem palavras que apresentam os sons

"kui", "kuê", "kué", e a ortografia tem dois modos de escrever

esses sons: QUI, QUE ou CUI, CUE, é preciso mostrar como se

escrevem as palavras mais comuns para que o aluno se

acostume com a ortografia correta. Observe os seguintes

exemplos: LÍQUIDO ("líkuidu"), FREQÜENTE ("frekuénti"),

SEQÜÊNCIA ("çekuéçia"); porém, CUIDAR, CUECA, RECUE, etc.

Esse tipo de problema, o professor resolve à medida que for

aparecendo nos textos dos alunos, sem insistir muito.

Essa dificuldade atrapalha a escrita. Quanto à leitura, basta o

aluno identificar QU com o som de "kê", para descobrir que

palavra está escrita (identificação semântica) e assim recuperar

a pronúncia completa e correta da palavra como um todo.

Quando a letra A vem depois das letras QU, a letra U do dígrafo

tem o som de "ti": QUATRO ("kuatru"), TAQUARA ("takuara"),

AQUARELA ("akuaréla"). Observe, todavia, que há duas formas

diferentes para o número 14: QUATORZE ("kuatôrzi") e CATORZE

("katôrzi"). O mesmo, porém, não acontece com os exemplos

anteriores.

379

Quando as letras QU aparecem diante de O, têm-se duas

pronúncias e duas formas ortográficas. A vogal U do digrafo

pode ser pronunciada ou não. Quando não é pronunciada, a

Page 663: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

ortografia admite a forma com a letra C, em vez do dígrafo QU,

como mostram os seguintes exemplos: QUOTA/COTA,

QUOTISTA/COTISTA, QUOTIDIANO/COTIDIANO.

Dadas as dificuldades de escrita, alguns alunos acabam fazendo

opções ortográficas diferentes, mas nem por isso estranhas. Pelo

contrário, revelam usos que poderiam ser empregados pela

ortografia (e no passado não é difícil encontrar exemplos disso,

como VACA escrito VAQUA, CINCO escrito CINQUO, etc.). É

somente por razões das regras da ortografia atual que não se

pode escrever MAQUA (maca), QUIDADO (cuidado), QUAXA

(casa), etc.

Quando os alunos cometem esses erros, não revelam distração

nem incapacidade para perceber e aprender, mas estabelecem

relações possíveis entre sons e letras, embora descartadas pela

ortografia atual. Um bom exercício para o professor fazer no

início, quando está explicando as relações entre letras e sons e a

escrita ortográfica, é escolher palavras e tentar escreve-las de

todas as maneiras possíveis e depois mostrar para os alunos

qual é a forma escolhida pela ortografia. Por exemplo, uma

palavra como "casa", em princípio, poderia ser escrita das

seguintes formas: CAZA, CASA, KAZA, KASA, QUAZA, QUASA,

CAXA, QUAXA. Entretanto, a for ma ortográfica atual é apenas

CASA.

ESTUDO DA LETRA R

Page 664: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A letra R tem o nome de erre e o som básico que a representa é o

que ocorre entre "é" e "i" do seu nome. O sistema de escrita,

porém, distingue o uso de um R do uso de dois RR, formando um

dígrafo. Dessa maneira, em alguns casos é possível distinguir

dois sons diferentes, um chamado de R fraco e outro de R forte

(ou vibrante simples e vibrante múltipla

Foneticamente, a vibrante simples representa um tepe', mas a

vibrante múltipla pode representar uma variedade de sons. Para

ilustrar a diferença entre uma vibrante simples e uma múltipla,

basta observar os seguintes pares mínimos: CARO/CARRO,

MURO/MURRO, FERA/FERRA. Portanto, entre duas vogais, pode

ocorrer apenas um R ou dois RR, representando dois sons

diferentes. A vibrante simples "r" tem apenas um valor fonético:

o tepe (ARARA, SERA, TIRO, FURO, etc.).

A vibrante múltipla "rr", por sua vez, dependendo do dialeto,

pode representar vários valores fonéticos. Um dos mais comuns

é um som fricativo velar surdo, como ocorre tipicamente em

CARRO, ROUPA (dialeto paulista e carioca) e em MAR, CERTO (no

dialeto carioca). No dialeto mineiro e em alguns dialetos do

Nordeste, a vibrante múltipla tem o valor fonético de uma

fricativa glotal surda (ou seja, uma "aspiração"), como em

CARRO, ROUPA, MAR, CERTO. Em alguns dialetos do Sul do país,

a vibrante múltipla pode ter o valor fonético de uma consoante

vibrante (um tepe com vários movimentos rápidos da língua),

Page 665: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

como em CARRO, ROUPA, MAR, CERTO. Nos chamados dialetos

"caipiras", quer a vibrante simples, quer a vibrante múltipla

podem ter o valor fonético de uma consoante retroflexa

(articulada com a ponta da língua levantada em direção do céu

da boca), produzindo um dos sons mais típicos do dialeto caipira.

Exemplos: ROÇA, PORTEIRA, BRASIL, ARARA, TIRO, MAR, VIR.

Dependendo da palavra, os falantes de todos os dialetos ora

dizem as vibrantes surdas, ora sonoras, bastando observar o

comportamento das cordas vocais na produção da fala.

9 Tepe:som alveolodental produzido com um toque rápido da

ponta da língua contra os alvéolos dos dentes incisivos

superiores.

380

Por exemplo, é comum que as pessoas digam palavras como

CARRO, RODA, MURRO, com uma vibrante surda; mas também é

comum que digam as seguintes palavras com uma vibrante

sonora: BARRIGA, TORRADA, TERRA. Em alguns casos, às vezes,

o falante usa a vibrante surda, outras vezes usa a vibrante

sonora, como em RITA, RETA, ERRO, etc.

O mesmo som "r" (vibrante simples), que aparece em CARO,

MURO, FERA, ocorre também quando a letra R vem escrita entre

uma consoante e uma vogal, dentro de sílabas. Os grupos

consonantais que se podem formar desse modo são: PR, BR, TR,

Page 666: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

DR, CR, GR, FR, VR, por exemplo: PRATO, BRASIL, TRABALHO,

PADRE, CRIANÇA, GRATIDÃO, FRACO, LIVRO.

Se, porém, houver uma divisão silábica entre o R e uma

consoante anterior (que será S ou N), a letra R terá o som da

vibrante múltipla "rr" (igual ao que há em MURRO, CARRO),

como se constata nas palavras HONRA ("õurra?'), ISRAEL

("izrraéu").

Quando a letra R ocorre no final de uma sílaba, com a sílaba

seguinte começando por consoante, ela pode ter o som da

vibrante simples ou múltipla, dependendo do dialeto: POR TA

("pórta" ou "pórrta"), CARPA ("karpa" ou "karrpa").

O mesmo fenômeno ocorre com o R que aparece no final de

palavras: MAR ("mar" ou "marr"), FINGIR ("fijir" ou "fijirr").

Porém, quando na fala corrente, uma palavra terminada por R

junta-se a outra, que começa por vogal, a letra R só apresenta o

som da vibrante simples "r". Além disso, forma o início da sílaba

da palavra seguinte, como se pode ver nos exemplos a seguir:

CALAR A BOCA ("ka-la-ra-bo-ka"), VIR AQUI ("vi-ra-ki").

Em início de palavra, a letra R representa somente o som da

vibrante múltipla "rr", como

em RATO, RITA, RODA, ROLO, RUA.

A leitura da letra R apresenta dificuldades reais se o aluno

perder de vista a palavra como um todo. É mais fácil decidir que

som o R tem descobrindo que palavra está escrita do que ficar

Page 667: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

lembrando todas as regras associadas a essa letra. Algumas

idéias, porém, ajudam bastante, mesmo quando não são muito

elaboradas.

No contexto intervocálico, a escrita distingue a vibrante simples

da múltipla, escrevendo um R no primeiro caso e dois RR no

segundo. O dígrafo só será usado para fazer a distinção exigida

nesse contexto.

Em início de palavras, a escrita usa apenas um R e nunca dois, e

o som será sempre de uma vibrante múltipla. Nos demais

contextos, sabemos com segurança que haverá sempre uma

vibrante simples se o R vier entre uma consoante e uma vogal,

no meio de sílaba, Sabe-se, ainda, com segurança, que se o R

vier depois de uma consoante N ou S, no meio de palavra, terá o

som de uma vibrante múltipla. Em final de sílaba, pode ter o som

de uma vibrante múltipla ou simples, dependendo do dialeto.

A maior dificuldade está na especificação do valor fonético de

uma vibrante múltipla. Como vimos, dependendo do dialeto,

tem-se um som diferente, sem contar a dificuldade de ser surdo

ou sonoro, conforme o modo como cada falante pronuncia certas

palavras.

Essa dificuldade não é do falante, obviamente, mas depende de

como o professor irá tratar a questão. O melhor é estar atento às

diferentes maneiras de falar dos alunos e ajudá-los a ir direto ao

reconhecimento da palavra — falada ou escrita — sem discutir

Page 668: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

muito as variações de pronúncia.

A complexidade apontada acima explica por que alguns alunos

têm tanta dificuldade com a letra R na escrita. Os professores

não se dão conta de que os alunos falam de muitas maneiras

diferentes, mas devem usar apenas a letra R. No começo, como

ainda não chegaram a essa conclusão, os alunos têm sérias

dúvidas para escrever certas diferenças fonéticas que eles

reconhecem na própria fala, mas que não correspondem aos

sons que o professor costuma ensinar como representados pela

letra R. Por isso, é bom discutir o assunto na sua amplitude com

os alunos; assim eles já irão desconfiar que aqueles vários sons

fonéticos, vindos de diferentes dialetos, são todos escritos com R

ou RR.

381

Para um aluno que fala uma fricativa glotal surda (como no

dialeto mineiro) correspondente à vibrante múltipla (como no

dialeto carioca), a ocorrência de R em final de sílaba pode soar

como uma vogal sussurrada, igual à vogal precedente, isto é,

como uma vogal "longa", ou seja, um som único. É por essa

razão que aparecem formas na escrita desses alunos coisas

como:

Page 669: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

MECADIO ("mercadinho"), POTA ("porta"), CADENO

("caderno"), etc. Em outras palavras, o aluno escreve E sem R

em MERCADINHO porque pronuncia "mehkadïu" e a seqüência

"eh", como ensinam os foneticistas, é uma forma diferente de

escrever "ê sonoro" + "ê surdo", já que o som aspirado é sempre

uma vogal surda.

Outra dificuldade advém do próprio fato de a criança ter de

soletrar às vezes para analisar os sons da fala e procurar as

letras correspondentes para escrever. Nesse caso, quando

encontra grupos consonantais como BR, PR, GR, etc., em que há

mais de um som consonantal numa única sílaba, o aluno começa

a identificar cada um através dos movimentos articulatórios e vai

atribuindo a cada uma dessas articulações uma sílaba à parte.

Depois, esquece-se do todo e acaba escrevendo coisas como:

PARATO (PRATO), AGARADECE (AGRADECE), ou ainda ATALAS

(ATLAS), PICICOLOGIA (PSICOLOGIA) e assim por diante.

Como em muitos outros casos, o mais importante não é chamar a

atenção para os erros e tentar corrigi-los a cada vez que

aparecem, mas explicar o que for necessário e possível e indicar

a ortografia como mestra para escrever corretamente as

palavras. Muitas formas de escrita serão aprendidas depois de

muita leitura e escrita, de pouco adiantando a precipitação na

aprendizagem. Vale lembrar mais uma vez o que já se discutiu

antes: não é porque se deu uma explicação uma vez, que o aluno

Page 670: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

automaticamente aprende. E também é verdade que não é

porque não se explicou, que o aluno não irá aprender. Equilibrar

o ensino e a aprendizagem é o que compete ao professor.

ESTUDO DA LETRA S

A letra S tem o nome de ESSE e o som básico representado por

ela encontra-se entre o "é" e o "i" de seu nome.

Assim como existe uma letra R e um dígrafo, o RR, há uma letra

5 e um dígrafo SS. Do mesmo modo que as letras R e RR, as

letras 5 e SS são usadas no contexto intervocálico para distinguir

sons diferentes: a letra S representa o som de "zê" e as letras SS

representam o som de "çê", como se pode observar nos

seguintes pares mínimos: ASA/ASSA, POSA/POSSA; ou ainda os

exemplos: USO, MESA, ROSA, VASO, INGLESA/ESSA, OSSO,

ISSO, POSSÍVEL. O dígrafo SS só aparece entre duas vogais; a

letra 5, nos demais casos.

Em início de palavra, a letra 5 tem sempre o som de "çê" e pode

ocorrer diante de qualquer vogal, como em SACOLA, SOCO,

SUCO, SINO, SEMANA, etc. Em final de sílaba, a letra S tem o

som de "çê" ou de "chê", dependendo do dialeto. No dialeto

carioca (e em alguns outros) ocorre o som de "chê". Exemplos:

BASTA ("bachta"), ATRÁS ("atraich"), NÓS ("nóich"). Nos

demais dialetos, ocorre o som de "çê". Exemplos: BASTA

("basta"), ATRÁS ("atrais"), NÓS ("nóis").

Ocorre também com a letra S o fenômeno da juntura

Page 671: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

intervocabular. Quando uma palavra termina em 5 e a que vem

imediatamente depois começa com vogal, a letra 5 tem o som de

"zê" e se desloca para o início da palavra seguinte, como se vê

nos exemplos a seguir: CASAS AMARELAS ("ka-za-za-ma-ré-

las"), OS HOMENS ("u-zó-mêis"). Isso vale para todos os

dialetos.

Quando a letra 5 vem depois de consoante, no meio de palavra,

tem o valor fonético

de "çê", como em PSICOLOGIA ("pçikolojia" ou "piçikolojia"),

ABSOLUTO ("abçolutu" ou "abiçolutu").

382

No meio de palavra, quando a letra S (em final de sílaba)

antecede uma consoante sonora (B, D, G, L, M, R), tem o som de

"zê". Diante de consoante surda, tem o som de "çê". Então, há

nesses casos uma concordância, com relação à sonoridade — que

os lingüistas chamam de assimilação do traço de sonoridade.

Veja os exemplos: ESBANJAR ("izbãjar"), DESDE ("dezdi"),

DESGRAÇA ("dizgraça"), DESLIGAR ("dizligar"), MESMO

("mezmu"), ISRAEL ("izrraéu"); ou DESTE ("deçti" ou

"dechtchi"), CASCO ("kaçku"), CASPA ("kaçpa"), etc.

Algumas letras, como S e R, correspondem a muitos sons

diferentes na fala. Isso atrapalha o aluno na hora de escrever.

Saber que há várias possibilidades de escrita não resolve suas

dúvidas ortográficas. Apesar disso, saber que há várias

Page 672: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

possibilidades de escolha de letras para esses sons ajuda o aluno

a ter dúvidas ortográficas, o que é fundamental para o

desenvolvi mento da habilidade de escrever.

O som de "çê" também pode ser representado pelas seguintes

letras: Ç, X, SC, SÇ, XC, XÇ. Por outro lado, para confundir mais

as coisas, o aluno depara-se com o fato de a letra 5 ter outros

sons além de "çê", como "zê" e "chê". O 5 pode ainda formar

ditongo com uma vogal que venha imediatamente antes ou

acrescentar um "i" diante de uma consoante que venha depois.

Confira os seguintes exemplos: SAPO, ASSO, AÇO, RAPAZ,

ATRÁS, TRAZ, PROXIMO, NASCER ("naiççêr"), CRESÇO, EXCEÇÃO

("eiççeçãu"), ou ainda em certos dialetos, como o carioca: CESTA

ou SEXTA ("çêchta"), RAPAZ ("rrapaich"), CHUVA ("chuva"),

DESDE ("dejdji"), HOJE ("ôji"), etc.

Para quem sabe como se grafa essas palavras, parece fácil e

simples, mas se alguém tiver de observar a própria fala para

estabelecer as relações possíveis entre sons e letras envolvendo

os casos apresentados acima, fica muito difícil saber qual será a

ortografia da palavra e como se lêem essas letras.

Somando esses dois tipos de informação, os alunos têm diante

de si um problema bastante complexo. Juntando as letras que

estão de um certo modo relacionadas, como vimos, temos:

S, SS, Ç, X, SC, SÇ, XC, XÇ, Z, CH, J e G. Mostrar a complexidade

do problema aos alunos de verá servir para chamar a atenção

Page 673: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

para o fato e alertá-los a ter dúvidas ortográficas e a resolve-las

perguntando a quem sabe ou consultando um dicionário.

Na fala de muitos dialetos diferentes da norma culta, nem todos

os elementos fazem a concordância nominal com a marca do

plural. Essa marca aparece apenas no artigo (ou na primeira

palavra que aparecer no sintagma). Esses falantes nem sequer

têm na fala uma dica para poder escrever o S de plural que a

ortografia exige. Exemplos: OS HOMEM ALTO FICA AQUI (OS

HOMENS ALTOS FICAM AQUI), AQUELAS MENINA NUM CHEGÔ

AINDA (AQUE LAS MENINAS NÃO CHEGARAM AINDA).

Como dissemos, a melhor atitude do professor diante de

dificuldades tão grandes como essa é dar tempo ao tempo, ir

ensinando aos poucos e deixar os alunos aprenderem por si

quando estiverem lendo e escrevendo bastante. Na maioria das

vezes, as explicações impressionam os alunos, mas eles não

conseguem operar com essas informações de imediato. Então, o

melhor conselho é mostrar que, através da ortografia, esses

problemas se resolverão com relativa facilidade.

ESTUDO DA LETRA T

A letra T tem o nome de tê, e o som inicial de seu nome,

seguindo o princípio acrofôníco, representa o valor fonético

básico da letra.

A letra T é semelhante à letra D, .só que uma é surda (1) e outra

é sonora (D). Em muitos dialetos, diante da vogal "i" (na fala), a

Page 674: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

letra T temo som de "tchê", permanecendo com o som de "tê"

nos demais casos. Na grafia das palavras, o som "i" vem escrito

com a letra 1 ou E.

383

O último caso ocorre sempre em sílaba átona. Às vezes, o som

"i" não aparece na escrita, mas ocorrem duas consoantes em

fronteira interna de sílaba. Por exemplo: TIA ("tchia"), POTE

("pótchi"), ÓTIMO ("ótchimu"), RITMO ("rritchimu"); porém:

TATU ("tatu"), TESTA ("téchta" ou "téçta"), TERRÍVEL

("terríveu").

Em alguns dialetos, sobretudo do Sul do país, nunca se fala

"tchê", mas apenas "tê", mesmo diante de "i": TIA ("tia"), POTE

("póti"), etc. Em alguns dialetos do Nordeste, ocorre o som de

"tchê", não antes de "i", mas depois dessa vogal, como se pode

notar nos seguintes exemplos: MUITO ("míhtchu"), LEITE

("leitchi"), MITO ("mitchu"); porém: TIA ("tia POTE ("póti").

Algo semelhante ocorre com D: DOIDO ("doidju"), FERIDO

("feridju").

Há dialetos do Brasil central que usam o som de "tchê" em

contextos de palavras nos quais outros dialetos têm o som de

"chê", como, por exemplo, em: CHUVA ("tchuva"), XAROPE

("tcharópi"), FECHAR ("fetchar"), etc. Aqui também ocorre algo

semelhante com "jê": GELO ("djelu"), JOVEM ("djóvêi").

Como se disse em relação à letra D, apesar das variações

Page 675: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

encontradas, a letra T também não causa grandes dificuldades,

nem para decifração na leitura, nem para a escrita. Às vezes,

alguns alunos fazem confusão entre o T e o D, na escrita.

Escrevem T em vez de D. A causa mais comum desse erro está no

fato de os alunos sussurrarem as palavras ao escrever. Fazendo

isso, a sonoridade do D perde-se, e o resultado fonético é um

som mais parecido com T do que com D. É o caso do aluno que

escreve: TOTO MUNTO (TODO O MUNDO), ELE POTEÍ (ELE PODE

IR), etc. Esses erros corrigem-se à medida que os alunos forem

fazendo mais e mais leitura e produzindo textos escritos,

preocupados com a ortografia.

ESTUDO DA LETRA U

A letra U tem o nome de U, e em seu nome está o som básico que

a letra representa.

Como acontece com todas as letras que representam vogais,

como o alfabeto dispõe apenas de cinco caracteres (A, E, 1, O,

U), todos os sons vocálicos da fala deverão estar basicamente

representados por essas cinco letras na escrita e vice-versa.

Exemplos de palavras com a letra U representando o som de "u":

TU ("tu"), SUJO ("çuju"), CÉU ("çéu").

Quando ocorre diante da letra M ou N que, por sua vez, ocorre

imediatamente antes de uma consoante, a letra U representa

uma vogal nasalizada "u", como se pode observar em:

JUNTO ( "jútu"), CHUMBO ("chúbu"), UM ("iirj"), FUNÇÃO

Page 676: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

("f€íçãu"). Se depois da letra M ou N ocorrer uma vogal, a letra U

pode ter um som nasalizado ou não, como nos seguintes

exemplos: ÚMIDO ("timidu" ou "umidu"), UNIDO ("tinidu" ou

"unidu").

Porém, se a letra U estiver diante de NH, pode-se ter o som oral

ou nasalizado de "u" ou

de "ui", como em: UNHA ("ünha", "unha", "flinha" ou "uinha"),

PUNHO ("p "punhu", "püinhu" ou "puinhu").

Quando ocorre OU na escrita, pode-se ter uma pronúncia do

ditongo "ou" ou uma pronúncia monotongada de apenas "ô",

como nos exemplos a seguir: TOURO ("touru" ou "tôru"), POUCO

("pouku" ou "pôku"), etc. Entretanto, quando se parte da fala,

nem todo som de "ô" será escrito com OU, podendo ficar apenas

com a grafia de O, como se vê nas seguintes palavras: BOA

("bôa"), PROFESSORA ("profeçôra"), etc. Como os alunos

acabam inevitavelmente comparando com palavras como

VASSOURA ("vaçôra"), VOU ("vô"), etc., não raramente acabam

escrevendo também PROFESSOURA, BOUA, SOURO (SORO),

CHOURO (CHORO), etc. Na verdade, na fala atual, há muita

variação entre "ô" e "ou", em um número muito grande de

palavras, o que vem a confundir ainda mais na hora de escrever.

384

Em muitas palavras (não em todas) a letra U que acompanha a

letra Q não é pronunciada quando precede a letra E ou 1. Veja os

Page 677: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

casos: QUERO ("kéru"), QUILO ("kilu"), LIQUIDO ("likido");

porém: FREQÜENTE ("frekuênti"), EQÜINO ("ekuinu"), etc.

Quando se escreve partindo da observação da fala, há outra

dificuldade grande. Trata-se de saber se o som de "u" será

escrito com a letra U ou com a letra L. Aqui, somente a ortografia

pode dizer qual letra deverá ser usada, uma vez que a pura

observação da fala não leva a nenhuma conclusão. Compare os

seguintes exemplos e veja a dificuldade que eles apresen tam:

"çuu" SUL, "uutchimu" ULTIMO, "autu" ALTO ou AUTO, "çau"

SAL, "çaudadji" SAUDA DE, "papéu" PAPEL, "chapéu" CHAPÉU,

"méu" MEL, "çéu" CEU, e assim por diante.

Há ainda a dificuldade oriunda da maneira como algumas

palavras são pronunciadas em certos dialetos, sobretudo em

dialetos estigmatizados pela sociedade (diferentes da norma

culta). É o caso do aluno que fala "tudu miidu" e tem de escrever

TODO O MUNDO. Enquanto o aluno não avançar um pouco nos

estudos, nem vale a pena ficar insistindo na correção de erros

como esse. O aluno precisa, no começo, ter a chance de escrever

e ler com certa liber dade e tranqüilidade e não ficar apavorado

desde o começo, com uma enorme quantidade de erros que o

professor faz questão de corrigir. No final do ano, mesmo sem

ter se preocupado muito com certos erros que os alunos

cometiam, o professor irá constatar que eles aprenderam

bastante, com certeza mais do que parecia. Quando os processos

Page 678: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

de leitura e escrita se aceleram, muitos erros desaparecem.

ESTUDO DA LETRA V

A letra t tem o nome de vê e seu som basico e encontrado no

inicio de seu nome Exemplos

VACA ("vaka"), VELHO ("vélhu"), AVULSO ("avuuçu"), VIZINHO

("viztnhu").

A letra V não apresenta dificuldades de decifração. Alguns

alunos, porém, sentem dificuldade em decifrar grupos

consonantais formados por uma consoante seguida de L ou R.

Tendem a intercalar o som de uma vogal "ê", ou da vogal que

ocorre depois do L ou do R, como se estivessem silabando o bá-

bé-bi-bó-bu para ler. Por exemplo, dizem "li-vê-rô" ou "li-vô-rô"

para LIVRO Obviamente, esses procedimentos revelam bem o

tipo de ensino a que são submetidos.

É sempre importante lembrar aos alunos que decifrar letras é

apenas o começo do trabalho de leitura. Depois de reconhecer as

letras e de atribuir a elas um valor fonético, o aluno precisa

necessariamente descobrir que palavra está escrita (juntando os

sons até chegar ao significado) Uma vez descoberta uma

palavra (possível, pelo menos) ele devera pronuncia la como se

falasse espontaneamente. Nesse momento, percebe-se

claramente que algo como "li-vô-rô" é artificial e não ocorre na

fala, uma vez que a pronúncia comum dessa palavra é "livru".

Dentro das dificuldades já comentadas várias vezes

Page 679: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

anteriormente, a confusão que alguns alunos podem fazer ao

escrever, observando a própria fala, pode levá-los a trocar a

escrita de V por F, produzindo formas gráficas como FELA

(VELA), FELHO (VELHO), FERDE (VERDE), etc. Mais uma vez, é

preciso lembrar que essas "trocas de letras" serão corrigidas

através da ortografia e não de exercícios de percepção de

sonoridade.

ESTUDO DA LETRA W

A letra W tem o nome de dáblio e representa o som "u" ou o som

"vê", dependendo da palavra em que ocorre. Em Portugal,

essa letra tem o nome de duplo vê. Exemplos: WILSON

("uiuçõu'i), WILMA ("viuma"), WC ('dabliu-çê'), etc.

385

ESTUDO DA LETRA X

A letra X tem o nome de xis e o som inicial thê" de seu nome

mostra o valor fonético básico dessa letra. Esse é o valor da letra

X em início de palavra, como em: XAROPE ("charópi'), XÍCARA (

XERETA ("cheréta'9, XUCRO ("chukru").

A letra X pode ocorrer também no meio de palavra, depois de N.

Nesse caso, também tem o valor fonético de "chê", como em

ENXADA ("ichada"), ENXERGAR ("ichergar"), ENXAME

("ichãmi"), etc.

Quando a letra X está no final de uma sílaba e precede uma

Page 680: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

consoante no início da sílaba seguinte, tem o som de "çê" ou

"zê", dependendo de a consoante ser surda ou sonora. Em

alguns dialetos (por exemplo, o carioca), o som correspondente,

que ocorre nesse contexto, é "chê" ou ' Veja os exemplos: EXTRA

("éçtra" ou "échtra"), SEXTA ("çeçta" ou "çechta"), EX-

DIRETOR ("eizdiretor" ou "eijdjiretorr"). Note que praticamente

não há palavras com o X di ante de consoante sonora (exceto

diante de N), a não ser quando se tem o sufixo -EX.

Quando o X se encontra diante de uma consoante que representa

o som de "çê" (como XC, XÇ, XS), ocorre uma assimilação,

ficando apenas uma ocorrência do som "ç", como se consta ta

em: EXCETO ("eçétu"), NASÇA ("naça"), EXCELENTE

("eçelêfiti"), EXSURGIR ("eçurjir"), etc.

Quando a letra X aparece no fmal de palavra, tem o som de "ks"

ou "kis". A primeira ocorrên cia é considerada mais formal e a

segunda, maiS informal. Exemplos: TÓRAX ("tórakç" ou

"tórakiç"), XEROX ("cherókç" ou "cherókiç"), SÍLEX ("çilékç" ou

"çilékiç"). Em alguns diale tos, como no carioca, em vez do som

final "ç" ocorre o som "ch": TÓRAX ("tórakch" ou "tórakich").

Na posição intervocálica, a letra X apresenta várias

possibilidades de representação fonéti ca, podendo ter os

seguintes sons: "çê", "chê", "zê", "kç" (ou "kiç", "kch" e "kich").

Exemplos:

PRÓXIMO ("próçimu"), AUXÍLIO ("auçíliu"), LIXO ("lichu"),

Page 681: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

BAIXO ("baichu"), EXAME ("izámi"), EXIGIR ("izijir"), FIXO

("fikçu"), TÁXI ("tákçi") e assim por diante.

Quando se parte da fala para a escrita, palavras como as

mostradas acima não permitem ao aluno saber se serão escritas

com a letra X ou com outra letra possível. Compare os seguintes

exemplos: ENXAII)A/INCHADA, SEXTA/CESTA. O aluno

prncipiante tem ainda uma dificuldade a mais, se for falante de

um dialeto no qual ocorre o som de "chê" que precisa ser escrito

com S e não com X (ou C como acontece em palavras tais como:

"rapaich" RAPAZ, "néchta" NESTA, etc.

ESTUDO DA LETRA Y

A letra Y tem o nome de ípsiion e representa sempre o som de "i'

Exemplos: YARA ("iara'9,

ESTUDO DA LETRA Z

H;rnmsse

Sempre que a letra Z ocorrerem início de sílaba, terá o som de

"zê". Exemplos: ZEBRA ("ze bra"), ZERO ("zéru"), ZANGADO

("zãgadu"), ZOMBARIA ("zõubaria?'), ZUMBIDO ("zümbidu").

386

Note que, quando o som de "zê" ocorre em início de palavra, só

pode ser escrito com a letra Z (nunca com S).

Quando uma palavra recebe um sufixo -IZAR ou -EZA, a escrita

será com Z e não 5. É por isso que se escreve INFERNIZAR,

BELEZA, RIQUEZA, etc. Note que há diferença entre

Page 682: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

StCO o sufixo ..EZA, que se acrescenta a uma palavra para

formar um substantivo abstrato a partir de um adjetivo, caso de

BELO/BELEZA, RICO/RIQUEZA, e palavras que terminam com o

som de "êza", mas receberam apenas um A do feminino, como

INGLES/INGLESA, MARQUÊS/MARQUESA, FREGUÊS/FREGUESA.

Regrinhas como essas, os alunos podem ir

tem aprendendo desde a alfabetização.

XAME Quando a letra Z ocorre no final de palavra, tem o som de

"çê" (ou "chê", conforme o dialeto). Veja, por exemplo: PAZ

("paiç" ou "paich"), FEZ ("feiç" ou "feich"), LUZ ("luiç" ou

k sílaba "luich"), etc. Se a palavra que termina com a letra Z,

na fala contínua, vier antes de outra que

1I começa com vogal, ocorre o fenômeno da juntura

intervocabular. Isso acontece em todos

itexto, os dialetos. Veja os exemplos: LUZ AMARELA ("lu-za-

ma-ré-la"), FEZ A LIÇÃO ("fei-za-li-çãu").

EX- Para quem parte da observação dos sons da fala para a

escrita ortográfica, a dificuldade da

, X di- letra Z acontece em palavras que têm o som de "zê"

ou de "chê", mas que poderiam ser escritas

com S ou X intervocálicos ou com 5 em posição final de palavra,

como mostram os

XC exemplos: BELEZA, INGLESA, EXAME, RAPAZ, AZAR, ASA,

etc. Porém, em início de palavra, ocor

Page 683: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

onsta rerá somente a letra Z, como já se disse acima. Além disso,

ainda no meio de palavra, só ocorre

r) etc. a letra S com o som de "zê" quando ele ocupa o final

de sílaba, e a sílaba seguinte começa por

consoante sonora como em: MESMO ("mezmu"), VISGO

("vizgu"), DESDE ("dezdi"), etc.

orren Lórakç"

is diale

Jdch"). AS LETRAS K, W E Y

fQnéti mplos: Essas letras só são usadas em palavras

estrangeiras, em siglas, abreviaturas, em nomes pró- EXAME

prios e para representar cálculos lógicos e matemáticos. As

palavras comuns da língua portu guesa não as empregam. Como,

porém, elas aparecem em alguns casos, o professor de alfabe em

ao tização deve levá-las em consideração e ensiná-las aos

alunos. Elas estão nos dicionários e, uirtes portanto, também

fazem parte do nosso alfabeto, embora tenham um uso muito

reduzido. ddade a Exemplos de palavras em que se encontram

essas letras: KAREN, KARINA, km, kg, kHz, Senao WILSON,

WILMA, WC, YARA, YVONE, YAMAHA. , etc.

ORTOGRAFIA DE NOMES PRÓPRIOS E

DE PALAVRAS ESTRANGEIRAS

É bom lembrar que os nomes próprios não têm uma forma

gráfica estabelecida pela orto grafia oficial, a não ser quando

Page 684: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

usados como um apelativo comum. A ortografia dos nomes

próprios das pessoas é dada pelo documento de registro de

nascimento, conforme consta do cartório. Essa forma ortográfica

deve ser usada em documentos. Fora disso, se a pessoa tem seu

nome escrito de maneira diferente da fixada pela ortografia de

uso comum, pode escrevê lo seguindo as normas ortográficas.

Assim, alguém assinará em documentos o próprio nome como:

LUIZ, THEREZA, DORACY, KARMEN, JOACHIN, MANOEL, NErFO,

VICTOR, mas pode rá escrever, em outros casos, seguindo a

forma ortográfica geral dos apelativos, ficando portanto: LUIS,

TERESA, DORACI, CARMEM, JOAQUIM, MANUEL, NETO, VÍTOR.

O uso de nomes e até de palavras estrangeiras costuma trazer

novidades para o sistema de («ze- escrita, surgindo novas

relações entre letras e sons. Por exemplo, a letra H passou a ter

tam bidu"). bém o som de RR em nomes como HONDA, YAMAHA,

HOBBY.

387

1

Em geral quando uma palavra estrangeira passa a integrar o

sistema acaba recebendo uma forma de escrita à moda das

palavras vernáculas. Por exemplo, a palavra hobby ficaria com a

forma ortográfica ROBE (ou talvez RÓBI), assim como club ficou

CLUBE, abat-jour ficou ABAJUR, New York ficou NOVA IORQUE,

etc. Veja, ainda, o caso da palavra PIZZA que conti nua com sua

Page 685: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

pronúncia italiana "pítça", embora, em português, seja estranho

o som "tçê", e mais estranho ainda atribuir esse som ao dígrafo

ZZ. Outra palavra italiana de uso muito co mum foi

aportuguesada: TCHAU (do italiano ciao), acompanhando o nome

de um país que se escreve REPÚBLICA TCHECA. O conjunto de

letras TCH forma um trígrafo.

Outras vezes, surgem palavras com sons em certos contextos em

que normalmente não ocorrem. Por exemplo, em início de

palavra não ocorrem os sons "lhê" e "nhê" (exceto na palavra

LHE e na forma abreviada de senhor: NHÔ), que aparecem em

palavras de origem estrangeira, como LHAMA e NHOQUE (que

alguns escrevem INHOQUE ou ENHOQUE). Ou tro exemplo desse

fenômeno pode ser visto no nome VLADIMIR, em que aparece a

seqüência de V + L, que é possível no sistema da língua

portuguesa, mas não tinha nenhum exemplo.

388

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396

ÍNDICE DE TÓPICOS POR CAPÍTULO

1. História da alfabetizaçdo

A leitura e a escrita na Antiguidade 13

O aparecimento das cartilhas 19

Cartilhas da língua portuguesa 22

As cartilhas e a alfabetização 26

A cartilha dá ênfase à escrita 26

O manual do professor 27

O período preparatório 28

Alfabetização hoje 31

Alfabetização e escola 32

2 O ensino e a aprendizagenL os dois métodos

O que é ensinar, o que é aprender 36

O professor como educador 38

Dois métodos 40

Duas concepções de linguagem 41

Page 704: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O método 1 — voltado para o ensino 42

A situação inicial 42

A técnica 43

A base: o já dominado 45

O uso da memória 46

A hierarquia: do fácil ao dificil 46

Controle rígido e avaliação 49

A fixação da aprendizagem 50

O que fazer com o erro 50

Aprender pelos efeitos 51

Um bom método de adestramento 51

O método 2 — voltado para a aprendizagem 52

A base: a reflexão na aprendizagem 52

A situação inicial 52

A técnica: explicações adequadas 54

O professor como mediador 55

O que fazer com o erro 55

A concepção de aprendizagem 56

Avaliação: tudo serve 57

Caos e caminhos tortos 58

Como fixar a aprendizagem 59

Os dois métodos na alfabetização 59

3. Avaliaçâ promoç planejamento

Notas e conceitos 62

Page 705: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Promoção automática 65

Avaliação e rendimento escolar 65

Qualidade de ensino e motivação 66

Avaliação e castigo escolar 67

O valor dos cálculos na avaliação 68

Avaliação sem nota 69

O trabalho substitui a nota 70

Auto-avaliação e autocorreção 70

O aluno na série seguinte 71

O círculo vicioso de quem não aprende 72

Uma nova visão da avaliação e da promoção 72

O planejamento escolar 74

Avaliação na alfabetização 76

A lição de casa 77

4 O método das cartilhas

A cartilha na escola e na vida 80

A cartilha e a fala 83

A variação lingüística 83

O idioleto do professor 83

A silabação 85

Observando a fala para escrever 85

Confusão entre fala e escrita 86

A cartilha e a escrita 87

A escrita prevalece sobre a fala 87

Page 706: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A palavra 88

Muitos alfabetos 89

A escrita cursiva 89

Equívocos a partir da escrita cursiva 91

Escrita sem sistema 91

Cópias e ditados 92

O que falta no estudo da escrita 92

A cartilha e a leitura 94

Como a cartilha ensina a ler 94

A interpretação de textos segundo a cartilha 95

Outros problemas das cartilhas 96 -

Aprender em ordem 96

O entulho gramatical 96

Metáfora e fantasia 97

Remanejamento para evitar problemas 98

O erro não tem vez 98

O fascínio pelo já pronto 99

Substitutos das cartilhas 99

A cartilha e os professores 101

5. Panorama do processo de alfabetizaØro

Valorizar o que é prioritário 104

Os alunos são falantes nativos 105

A idade para se alfabetizar 106

Querer ser alfabetizado 107

Page 707: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Um método sem métodos 108

Em quanto tempo se alfabetiza? 109

Quem comanda é o professor 111

Remanejamentos são aviltantes 111

Condições materiais 112

Leitura e escrita 113

A reprodução de modelos 114

A descoberta do mundo da escrita 115

6 A dec(fraçJo da escrita

Regras para a decifração da escrita 120

1. Conhecer a língua na qual foram escritas as

palavras 120

2. Conhecer o sistema de escrita 121

3. Conhecer o alfabeto 121

4. Conhecer as letras 121

5. Conhecer a categorização gráfica das letras

121

6. Conhecer a categorização funcional das le tras 122

7. Conhecer a ortografia 123

8. Conhecer o princípio acrofônico 124

9. Conhecer os nomes das letras 125

10. Conhecer as relações entre letras e sons (prin cípios de

leitura) 125

11. Conhecer as relações entre sons e letras (prin cípios de

Page 708: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

escrita) 126

12. Conhecer a ordem das letras na escrita 126

13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita 127

397

14. Reconhecer uma palavra 128

15. Nem tudo o que se escreve são letras 128

16. Nem tudo que aparece na fala tem represen tação gráfica na

escrita 128

17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas 129

A competência técnica do professor 130 A autonomia do

professor 131

7 Procedimentos para o estudo das letras

1. Fornecer as explicações básicas ao aluno 134

2. Explicar o que é uma letra 135

3. Explicar como segmentar a fala em palavras

136

4. Explicar como descobrir as regras de decifra ção 137

Juntando e generalizando 138

O que é mais fácil de decifrar 139

O que é mais difícil de decifrar 142

O que é mais fácil de escrever 147

O que é mais difícil de escrever 151

A difícil arte de ler e de escrever 155

A ação do professor 157

Page 709: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Aprendendo a estudar 160

& Sugestões de atividades na alfabetiza çdo

O trabalho com a leitura 164

Primeiras leiturâs 164

Inventando um código 165

A palavra como unidade dc escrita 167

Letras e sons 167

O alfabeto 170

Primeiros problemas com a decifração 172

Pares mínimos 173

Rimas 173

Categorização gráfica das letras 174

Primeiras leituras de textos 174

Interpretar ou discutir o que leu 175

O que ler 175

O trabalho com a escrita 176

Primeiras descobertas sobre a escrita 176

Descobrindo que a escrita representa a fala 177

Sistema ideográfico e fonográfico 177

Contar a história da escrita 178

Traçar as letras com gabaritos 179

Localização da escrita no espaço 180

Copiar para aprender 181

Escrita espelhada 181

Page 710: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Explicar o que é ortografia 182

Texto não é só ortografia 183

A correção da escrita 184

Diacríticos, marcas e arte na escrita 185

Letras cursivas 185

Caligrafia 186

Layout e pontuação 187

As primeiras escritas da criança 189

Aprender fazendo 190

Entendendo como se fala 191

Os alunos são falantes nativos 191

A variação lingüística 191

O dialeto padrão na escola 192

Falar sobre corno se fala 193

A aquisição da linguagem oral 193

Linguagem e lógica 195

A discriminação pela linguagem 195 Sobre o trabalho alternativo

196

9. A produçdo de textos espontdneos

Um texto não é um amontoado de palavras 198

Textos ou palavras isoladas? 200

Textos orais e escritos 201

O texto na vida e na escola 202

O professor e o texto do aluno 204

Page 711: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

O planejamento dos textos 206

A produção de textos na alfabetização 209

A correção de textos 210

Textos significativos para os alunos 212

A cartilha e a produção de textos 214

A opção pelos textos espontâneos 217

Exemplos de textos de cartilhas e Outros 219

Textos espontâneos de crianças 225

Questões perturbadoras 237

Julgar pelos erros e pelos acertos 238

10. As hipóteses por trés dos erros

O homem é um animal racional 242

A criança e a racionalidade 243

Conhecer os alunos 244

Explicações para os erros 245

A reflexão do aluno na escola 247

O método, o professor, o aluno e a escola 248

O certo, o errado e o diferente 251

Patologiàs da fala 253

O erro e a reflexão do aluno 257

Problemas de aprendizagem de leitura e escrita 257

Os testes revelam o que as crianças pensam da

escrita? 258

1. interpretação semântica da palavra 258

Page 712: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

2. a figura como interpretador de texto es crito 259

3. adivinhando palavras na leitura 260

4. quantas letras formam uma palavra? 261

5. identificação de palavras 261

6. inventando palavras onde elas não existem 262

Outras formas de descobrir o que as crianças acham da escrita

262

7. cachorro começa com FU 262

8. aprendendo sozinho por níveis ou por incorporação de

ensinamentos? 264

9. explicitação da decifração na leitura 267

10. leitura silenciosa acompanhada de articulações 269

11. velocidade de leitura 270

Problemas de escrita oriundos de dificuldades com as letras 270

1. escrever é fazer uma forma gráfica para ser lida 271

2. assinatura e escrita 271

3. letras em vez de rabiscos 272

4. a forma gráfica das letras 272

5. escrita espelhada 273

6. segmentação 274

7. a letra representa o som de seu próprio nome

274

8. escrevendo só vogais ou consoantes 275

9. o bá-bé-bi-bó-bu nos ditados 275

Page 713: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

398

10. formas morfológicas diferentes 276

11. resultados pela metade 276

12. escrevendo foneticamente 277

13. troca de letras 277

14. hipercorreção 278

15. surdas ou sonoras? 278

16. um pouco por vez 279

17. mistura de informações 280

18. só o esforço não adianta

<399>

19. erros não corrigidos 280

20. medo de escrever 281

21. letras maiúsculas 281

22. sinais de pontuação 281

23. letra feia 281

Erros na estruturação dos textos 282

1. variação lingüística 282

2. uso de pronomes 282

3. sintaxe 283

4. repetição 283

5. frases soltas — coerência 284

6. coesão 285

7. caligrafia 285

Page 714: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

11. Ditado e cópia

Uma estratégia lingüística chamada ditado 288

Tipos de ditado 289

Ditados para acertar a ortografia 290

Ditados no dia-a-dia 291

Ditado mudo 292

Anotações 292

Ditado e ortografia 293

Ditado e transcrição fonética 294

Ditado e avaliação 295

O ditado e o método das cartilhas 295

Conseqüências dos ditados na alfabetização 297

Quando e como fazer ditados 298

Cópia 299

A cópia na Antiguidade 299

Cópia e aprendizagem do Sistema de escrita 300

A cópia e a descoberta do mundo da escrita 301

Colecionando letras e palavras 302

Copiar não é apenas repetir um modelo 303

Copiar para memorizar 304

A cópia como punição 305

A cópia interpretativa com transliteração 305

Reescrevendo com cópia 307

Interpretação de texto através de cópia 308

Page 715: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

A cópia como forma de colecionar informações

308

12 Leitura e interpretação texto

Leitura 312

Ler é decifrar e buscar informações 312

Além da decifração 312

Leitura e planejamento lingüístico 314

O leitor interfere no literal do texto 316

Leitura silenciosa e em voz alta 318

Decorar antes de ler 319

Preparar a leitura 320

Tipos de leitura 320

A leitura e o mundo 322

Dificuldades na aprendizagem da leitura 323

O ensino da leitura 324

Interpretação de texto 325

Três práticas escolares tradicionais 325

Ideografia e leitura 325

A exegese em textos literários 327

Interpretação de base filosófica 328

Questionário para interpretação de texto 328

Análise do discurso 329

Os pretextos da interpretação de texto 329

Lingüística e interpretação de texto 330

Page 716: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

É preciso interpretar um texto? 331

Entender o texto no seu contexto 332

O. princípio da literalidade 333

Interpretação de texto e estudo escolar 334

Vaie a pena fazer interpretação de texto? 336

Interpretar um texto ou debater uma idéia? 338

Atividades alternativas à interpretação de texto 338

Os textos da interpretação de texto 339

13. Ortografia da língua portuguesa

Breve história da ortografia da língua portuguesa 342

A influência do sistema latino 342

Documentos antigos 343

Tentativas de reforma e unificação 345

Primeira unificação das ortografias 345

Primeira reforma ortográfica oficial no Bra sil 345

As reformas da reforma ortográfica 346

Reforma ortográfica e alfabetização 348

Ortografia e escola 349

Idéias erradas a respeito da ortografia 353

A dúvida ortográfica 355

Apêndice — A categorização gráfica das letras

Estudo da letra A 359

Estudo da letra B 363

Estudo da letra C 363

Page 717: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Os sons da fala representados pela letra C 365

Estudo da letra Ç 368

Estudo da letra D 369

Estudo da letra E 369

Estudo da letra F 371

Estudo da letra G 371

Estudo da letra H 372

Estudo da letra 1 373

Estudo da letra J 374

Estudo da letra K 374

Estudo da letra L 375

Estudo da letra M 376

Estudo da letra N 377

Estudo da letra O 378

Estudo da letra P 379

Estudo da letra Q 379

Estudo da letra R 380

Estudo da letra S 382

Estudo da letra T 383

Estudo da letra U 384

Estudo da letra V 385

Estudo da letra W 385

Estudo da letra X 386

Estudo da letra Y 386

Page 718: ALFABETIZANDO SEM O BÁ Be

Estudo da letra Z 386

As letras K, W e Y 387

Ortografia de nomes próprios e de palavras estrangeiras 387