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220 ESTUDOS Écio Antônio Portes Algumas dimensões culturais da trajetória de estudantes pobres no ensino superior público: o caso da UFMG Resumo Estuda as trajetórias de estudantes pobres em cursos altamente seletivos da Universidade Federal de Minas Gerais, como Ciência da Computação, Comunicação Social, Direito, Engenharia Elétrica, Fisioterapia e Medicina. Explica o conjunto de circunstâncias que propi- ciaram esse sucesso escolar. Realiza esse intento investigando a história de estudantes pobres no ensino superior no século 20, nas Faculdades de Direito de Olinda/Recife e de São Paulo e a história do atendimento a estudantes pobres empreendido pela UFMG desde o momento de sua criação. Utiliza os trabalhos que lidam com trajetórias escolares, principalmente de soci- ólogos franceses, como Bourdieu, De Queiroz, Lahire, Laurens e Terrail, entre outros. Os resultados confirmam a existência de estudantes pobres no ensino superior desde a implan- tação deste, mesmo que pouco representativa; e, como conclusão, é afirmado que a inclusão e a permanência de estudantes pobres no ensino superior brasileiro são uma tarefa de difícil execução, que se deu sem a presença de ações desenvolvidas pelo Estado. No passado, esses estudantes desenvolveram estratégias próprias que se associariam, já no século 20, a estraté- gias filantrópicas e institucionais empreendidas no seio da própria instituição universitária, a exemplo do que vem fazendo a UFMG ao longo do tempo. Essas ações sustentaram um grupo de estudantes pobres no interior da universidade pública, mas não puseram fim às discrimi- nações sofridas nem minimizaram os constrangimentos econômicos perpetuados historicamente e pelos quais outros vêm passando no cotidiano universitário. Palavras-chave: sociologia da educação; trajetórias escolares; estudantes pobres; ensino superior. Abstract Some cultural dimensions in the trajectory of poor students in public higher education: the case of UFMG This work gives priority to the historic and theoretical search necessary to the understanding of the object of study, the social and school trajectories of poor students, in the past and in the present. The new data and the proposed analyses lead us to believe that the fact of poor students being included in the Brazilian higher education and remaining at the University is not an easy task and took place without any government policies. In former times, these students developed their own strategies, which became associated, in the twentieth century, to institutional strategies, organised inside the University itself, following the example of what UFMG has been doing all this time. These actions supported a group of poor students in the public University but did not hinder prejudice nor diminished economical embarrassments, which they historically have been going through in their university routine. Keywords: sociology of education; school trajectories; university life; poor students; higher education. R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 220-235, maio/ago. 2006.

Algumas Dimensões Culturais Da Trajetória de Estudantes Pobres

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ESTUDOS

Écio Antônio Portes

Algumas dimensões culturaisda trajetória de estudantes pobresno ensino superior público:o caso da UFMG

ResumoEstuda as trajetórias de estudantes pobres em cursos altamente seletivos da Universidade

Federal de Minas Gerais, como Ciência da Computação, Comunicação Social, Direito,Engenharia Elétrica, Fisioterapia e Medicina. Explica o conjunto de circunstâncias que propi-ciaram esse sucesso escolar. Realiza esse intento investigando a história de estudantes pobresno ensino superior no século 20, nas Faculdades de Direito de Olinda/Recife e de São Paulo ea história do atendimento a estudantes pobres empreendido pela UFMG desde o momento desua criação. Utiliza os trabalhos que lidam com trajetórias escolares, principalmente de soci-ólogos franceses, como Bourdieu, De Queiroz, Lahire, Laurens e Terrail, entre outros. Osresultados confirmam a existência de estudantes pobres no ensino superior desde a implan-tação deste, mesmo que pouco representativa; e, como conclusão, é afirmado que a inclusãoe a permanência de estudantes pobres no ensino superior brasileiro são uma tarefa de difícilexecução, que se deu sem a presença de ações desenvolvidas pelo Estado. No passado, essesestudantes desenvolveram estratégias próprias que se associariam, já no século 20, a estraté-gias filantrópicas e institucionais empreendidas no seio da própria instituição universitária, aexemplo do que vem fazendo a UFMG ao longo do tempo. Essas ações sustentaram um grupode estudantes pobres no interior da universidade pública, mas não puseram fim às discrimi-nações sofridas nem minimizaram os constrangimentos econômicos perpetuadoshistoricamente e pelos quais outros vêm passando no cotidiano universitário.

Palavras-chave: sociologia da educação; trajetórias escolares; estudantes pobres;ensino superior.

Abstract Some cultural dimensions in the trajectory ofpoor students in public higher education:the case of UFMG

This work gives priority to the historic and theoretical search necessary to theunderstanding of the object of study, the social and school trajectories of poor students, inthe past and in the present. The new data and the proposed analyses lead us to believe thatthe fact of poor students being included in the Brazilian higher education and remaining atthe University is not an easy task and took place without any government policies. In formertimes, these students developed their own strategies, which became associated, in thetwentieth century, to institutional strategies, organised inside the University itself, followingthe example of what UFMG has been doing all this time. These actions supported a group ofpoor students in the public University but did not hinder prejudice nor diminished economicalembarrassments, which they historically have been going through in their university routine.

Keywords: sociology of education; school trajectories; university life; poor students;higher education.

R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 87, n. 216, p. 220-235, maio/ago. 2006.

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Introdução: a buscada compreensão

trajetória de pobresno ensino superior

Este trabalho tem como tema centrala trajetória escolar e as vivências univer-sitárias de um grupo de estudantes pobresque tiveram acesso, através do vestibular,a cursos altamente seletivos da Universi-dade Federal de Minas Gerais (UFMG), asaber: Ciência da Computação, Comuni-cação Social, Direito, Engenharia Elétrica,Fisioterapia e Medicina. Trata-se de traje-tórias “estatisticamente improváveis”, poiselas desafiam as previsões acerca das re-ais possibilidades de esses jovens chega-rem aonde chegaram, como vêm mostran-do as pesquisas sobre o acesso ao ensinosuperior público.

Meu envolvimento com o tema vemde longa data e obedece a mais do que de-terminações individuais: trabalhei, comopedagogo, na Fundação UniversitáriaMendes Pimentel (Fump),1 de 1989 a 1996.Em 1993 apresentei uma dissertação demestrado (Portes, 1993) que cuidava deinvestigar as trajetórias e as estratégias es-colares de um grupo de 37 universitáriosatendidos pela Fump, até o momento quemarcava a sua passagem no exame vesti-bular da UFMG. Mas as diferentes ques-tões produzidas pelos universitários queprocuravam pela assistência na Fump (pe-dagógica, psicológica, psiquiátrica, social...)demandavam aprofundamento de estudose novas pesquisas para uma devida com-preensão, principalmente dos estudantesque freqüentavam aqueles cursos mais se-letivos. Os resultados dos trabalhos emequipe mostravam que aqueles poucosestudantes pobres desses cursos, mesmobeneficiados pela Fump, apresentavam umsofrimento mais acentuado nas suasvivências acadêmicas.

Uma compreensão do conceito depobreza, que vem sofrendo uma série dealterações desde o século 19, nos ajudavano atendimento a esses sujeitos. Naquelaépoca, pobre era todo aquele que vivia dotrabalho manual, geralmente negros emestiços; e uma mobilidade na hierarquiasocial, principalmente nos centros comer-ciais das províncias, onde os homens erammenos dependentes do que no campo, sóera possível mediante arranjos e negocia-ções: “Por maiores que fossem seu méritoe talento, o alforriado não podia transpor

determinado limiar, a menos que contassecom um bom número de cumplicidades,não apenas entre outros ex-escravos, mastambém no mundo dos brancos, ou no dosque assim se consideravam.” (Mattoso,1992, p. 590).

Em uma visão macro, já no século 20,para Abranches (1995), a pobreza é“destituição, marginalidade e desproteção”dos meios de sobrevivência física, dosbenefícios do progresso, do acesso àsoportunidades (de moradia, escolares,habitacionais, de saúde, de trabalho, etc.),produzidas pela inoperância das políticaspúblicas. Ela é fruto, nesse caso, de causas“compósitas”. Em uma visão mais antropo-lógica, Zaluar (1985, p. 41) afirma que apobreza “é um conceito comparativo, e suaqualidade relativa aos outros gira em tornoda desigualdade social”. Ela não é uma con-seqüência da cultura dos pobres. Aindanessa visão, Sarti (1996, p. 18), mesmoreconhecendo mudanças no eixo de inter-pretação da pobreza como ausência dedireito, quando se estabelece uma relaçãoentre pobreza e cidadania, afirma que o ris-co de se ver o pobre “como o avesso do quedeveria ser” acaba sendo a “desatenção paraa vida social e simbólica dos pobres no queela representa enquanto positividadeconcreta, a partir da qual se define o hori-zonte de sua atuação no mundo social e apossibilidade de transposição desta atuaçãopara o plano propriamente político”.

Mesmo se se verifica um enormeavanço com relação a inclusão de filhosde trabalhadores de baixa renda na uni-versidade pública brasileira, principalmen-te em alguns cursos como Biblioteconomia,Ciências Biológicas, Ciências Sociais,Enfermagem, Engenharia de Minas, Física,Geografia, Geologia, História, Letras,Matemática, Pedagogia, Química e TerapiaOcupacional, entre outros, como mostramos estudos produzidos por Schwartzman(1992), Paredes (1994), Mercuri, Moran eAzzi (1995), Braga, Pinto e Cardeal (1996),Bezzon (1997) e Whitaker e Fiamengue(1999), é verdade, também, que pouco seavançou naquelas carreiras tradicionais,como Direito, Engenharia Elétrica,Engenharia Química, Medicina, MedicinaVeterinária, Odontologia, e mesmo em car-reiras mais recentes, como Ciência daComputação, Comunicação Social eFisioterapia, tornando tão difícil o acessoa essas carreiras por alunos egressos dasescolas públicas que levam pesquisadores

1 A Fundação UniversitáriaMendes Pimentel é umainstituição encarregada deprestar assistência alimen-tar, médica, odontológica,pedagógica, psiquiátrica esocial aos estudantes pobresda Universidade Federal deMinas Gerais (UFMG), medi-ante um rigoroso estudosocioeconômico. Para maisdetalhes, ver Portes (2001).

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da questão a concluírem que “são poucosos candidatos que desafiam a hierarquianão escrita dos cursos e carreiras” (Braga,Peixoto, Bogutchi, s/d, p. 17). É que a en-trada nessas carreiras parece ser restritaàqueles que possuem um volume mais sig-nificativo de capital escolar e cultural.2

Nos anos 90, de acordo com o PerfilSocioeconômico e Cultural dos Alunos deGraduação da UFMG (1996), que utiliza aclassificação social da AssociaçãoBrasileira de Institutos de Pesquisa deMercado (Abipeme) nos dados sobre aUFMG, verifica-se a presença de 28,5% deestudantes situados na Classe C, isto é,aqueles que possuem renda familiar de até10 salários mínimos. Pode-se saber aindaque apenas 14% dos estudantes dessa uni-versidade possuem renda familiar de atécinco salários mínimos, sem maior preci-são quanto à origem social dospesquisados. E é nessa faixa de renda quese situam os sujeitos de minha pesquisa,filhos de motorista, aplicador de sinteco,auxiliar de topografia, carpinteiro.

Os estudos sociológicos que orientavamos trabalhos práticos e teóricos desenvolvi-dos por nós no interior da Fump e da UFMGevidenciavam que, para o filho do pobre, a“passagem” do mundo escolar de nível mé-dio para o mundo universitário é complexae afeta sobremaneira a subjetividade dessessujeitos.

Nossa compreensão sobre asmanifestações trazidas até nós pelosuniversitários pobres se ampliou diante dotrabalho de Terrail (1990),3 ao mostrar, apartir de 23 relatos biográficos de filhosde operários por ele pesquisados, que oacesso, graças a uma escolaridade prolon-gada, à erudição e, ao mesmo tempo , à“vida burguesa”, produziu um efeito dedescontinuidade nesses sujeitos.4 Dianteda constatação de que as determinaçõessociais são excessivamente complexas, oautor decide-se por passar do “porquê” ao“como”, necessário para explicar o sucessoescolar dos filhos de operários, colocan-do-se uma série de questionamentos: Comose operam os itinerários escolares mais lon-gos nas famílias operárias? O que se passanessas famílias, entre seus membros, nassuas relações com a escola, que torna pos-sível o sucesso? Quais as famílias que con-seguem mobilizar recursos suficientes(tempo, dinheiro), capacidade de energiae inteligência a serviço da causa escolar?Existem diferentes tipos de mobilização de

recursos? Qual a parte dos pais, de umlado, e dos filhos interessados, de outro?Como os filhos vivem essa história?

Dentre outras importantes conclusões,Terrail mostra o fim da ilusão do universitá-rio filho de operário, de que se poderia ne-gar indefinidamente a origem social ao sepenetrar no mundo acadêmico e vivê-locomo um universitário qualquer. Para Terrail(1990, p. 239), o sucesso escolar dos egres-sos das famílias operárias implica penetrarem um universo hostil, no qual a diferença“não pode ser vivida como justaposição, mascomo oposição, antagonismo, repressão daspalavras e das práticas familiares”.

Por sua vez, o trabalho de Laurens(1992) ampliava a nossa compreensãoquanto ao processo de investigação dastrajetórias escolares de filhos de operári-os. Os sujeitos de sua pesquisa são filhosde operários com sucesso escolar, inscri-tos ou que passaram por uma das trezeescolas de engenharia de Toulouse. Suapesquisa parte de uma série de questões,tais como: Quem são as exceções sociaisque materializam o sucesso social? Qual éo seu perfil? Quem são seus pais? Quemsão os rapazes do povo, símbolos de todoum ideal social, que se tornam as elitesfrancesas? Como é que eles chegam lá?

O que o autor tenta explicar com esseconjunto de questões é que o sucessoescolar e, em seguida, social de qualquerfilho de operário não é uma história dedons ou de disposições naturais ou de aca-sos e circunstâncias. Essa trajetória“extravagante” é também um processohistórico, familiar e social.

O autor combina uma pesquisaquantitativa efetuada através de questio-nários e uma pesquisa qualitativa, a par-tir da reconstrução biográfica de 31 casos.Segundo Laurens, seu objetivo é colocarem evidência o comportamento estratégi-co dos atores sociais, de observar comoeles utilizam a margem de ação que lhesdeixa a indeterminação social.

Estudos iniciais (Portes, 1993; Portes,Carneiro, 1997) levaram-me a importan-tes indagações para a contextualização dapresente pesquisa: Existiram estudantespobres nos cursos superiores, desde osseus primórdios? Se existiram, como é queos estudantes pobres viveram a experiên-cia acadêmica no passado? Qual foi atrajetória de acesso dos universitários po-bres, no passado e no presente, aos cursosaltamente seletivos? No interior destes

2 Utilizamos aqui o conceitode capital cultural princi-palmente naquele sentidode “capital culturalinstitucionalizado”, onde odiploma confere a seu por-tador uma “certidão decompetência cultural” e re-conhecimento institucional.Ainda assim, nas páginasque seguem pode apareceruma utilização que contem-ple o capital cultural no es-tado incorporado ouobjetivado, conformeBourdieu, In: Nogueira,Catani (1998).

3 Outros importantes traba-lhos, tais como o de DeQueiroz (1981), Sirota(1994), Zeroulou (1988) eZago (1990, 1991), tambémorientavam as nossas práti-cas na Fump; mesmo quenão tratassem de estudantesuniversitários, eles foramfundamentais para se conhe-cer a relação família/escolanos meios populares. Temosainda o trabalho de Willis(1991), importante para seconhecer as atitudes de jo-vens filhos de trabalhadoresante o processo deescolarização.

4 É importante ressaltar queessa “descontinuidade” étambém percebida, no casode estudantes brasileiros,por Viana (1998).

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cursos, como é que se processa a vidacotidiana desses sujeitos? Como as condi-ções materiais de existência afetam essessujeitos no decorrer da aventurauniversitária?

Para respondê-las, este trabalho cuidade pesquisar, descrever e analisar o estu-dante pobre no ensino superior, maisespecificamente na UFMG, procurandooferecer uma compreensão mais específi-ca da aventura escolar empreendida poreste tipo de sujeito, compreensão que pos-sa desvelar aspectos ignorados ouacobertados por práticas investigativas quecuidaram de estudar o ensino superior deforma estrutural, abrangente. Enfim, o meuobjetivo é dar visibilidade ao estudantepobre no brutal e desigual jogo de acessoe permanência no ensino superior públi-co, lá onde ele é mais difícil de ser jogado,nos cursos muito seletivos.

Ter o estudante pobre como objetode estudo na perspectiva acima coloca-da se justifica quando observamos queesse tipo de estudante não tem se cons-tituído, ao longo do tempo, objeto privi-legiado de pesquisa. É o que nos mostraum levantamento efetuado em publica-ções reconhecidas na área da educação,como a Revista Brasileira de EstudosPedagógicos, os Cadernos de Pesquisa daFundação Carlos Chagas , a RevistaBrasileira de Educação, a Educação emRevista da Faculdade de Educação daUFMG, e mesmo resumos de Teses emEducação publicados pela ANPEd –Associação Nacional de Pós-Graduaçãoe Pesquisa em Educação. Essas observa-ções valem também para o Núcleo dePesquisas sobre Ensino Superior daUniversidade de São Paulo (Nupes).

Ao contrário, em outros países, comoa França, por exemplo, existe ummapeamento sobre os estudantesuniversitários, que compreende: a manei-ra de estudar (Lahire, 1997b); suascondições de vida (Grignon et al., 1996);as formas de aprendizado do “ofício de es-tudante” (Coulon, 1995); como é o mundovivido pelos estudantes (Galland et al.,1995); as desigualdades observadasquando da seleção às carreiras universitá-rias (Bisseret, 1974); e, ainda, a tentativade compreender a experiência, oscomportamentos dos estudantes e suasformas de viver os estudos e sua vidapessoal, dentro e fora da universidadefrancesa (Lapeyronni, Marie, 1992).

Existem ainda estudos que cuidam deexplicar, prioritariamente, as trajetórias eas estratégias de universitários pertencen-tes aos meios populares, como os de Terrail(1990) e Laurens (1992). No contexto in-glês, é importante ressaltar o trabalho deHoggart (1975) sobre os processosvivenciados por filhos de trabalhadoresque ascendem aos mais elevados níveis deensino daquele sistema escolar.

Inspirados nos trabalhos que seocupam com as trajetórias e as estratégiasdos sujeitos provenientes das camadas po-pulares, em meados dos anos 90, é quealguns olhares se voltaram para o univer-sitário pobre enquanto objeto de estudo,colocando em cena alguns trabalhos, comoos de Portes (1993), Muzzeti (1997), Viana(1998) e Souza e Silva (1999). Todos essestrabalhos tomam como ponto de partida osujeito já no interior do curso superior, ouseja, observam uma trajetória de “suces-so”.5 Ressalte-se ainda que boa parte dessesestudos nasceu e vem se frutificando nointerior do Grupo de Trabalho Sociologiada Educação da ANPEd. Fora desse espaçoapareceu o artigo de Maris, Fernandes eBatista (1998), sobre os universitáriosfavelados da cidade do Rio de Janeiro.

Portanto, ter como objeto de estudo aexperiência vivida pelo estudante univer-sitário pobre nos cursos altamente seleti-vos é uma opção de pesquisa que só seviabiliza quando o olhar do pesquisadorse desvia das questões macroestruturaispara mergulhar no interior de determina-das instituições escolares à procura decompreender, descrever e analisar o fun-cionamento dessas instituições, mediantenovos questionamentos que procuramprivilegiar as ações dos sujeitos.

A investigação de trajetórias “espe-taculares” encontra apoio em pesquisas quese ocupam com casos “paradigmáticos”(Elias, 1994), ou mesmo os casos onde “osproblemas de certas pessoas são particular-mente elucidativos para a análise da evolu-ção cultural”, conforme Hoggart (1975, p.162), pois a atenção a fenômenos como aentrada e a permanência de estudantes po-bres em cursos altamente seletivos da UFMGsuscitam a reflexão não só sobre esses, mastambém sobre o conjunto dos estudantes.

Não é sem razão que Laurens (1992,p. 30), ao justificar por que escolheu asescolas francesas de engenharia paraobservar os filhos de operários queadentravam seus cursos, afirma:

5 É sempre necessário utilizarcuidadosamente o termosucesso, pois raramente obser-vamos a trajetória universitáriacompleta. A entrada na univer-sidade, por mais que indique“longevidade escolar”, naexpressão de Viana (1998), porsi só não garante o sucesso,como mostrei na minhadissertação de mestrado(Portes, 1993). O processo depermanência é difícil e com-porta uma série de surpresasdesagradáveis para o universi-tário pobre, entre elas, a pior,a necessidade de abandonar osestudos.

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Nós quisemos observar as trajetórias desucesso escolar no meio operário lá ondeelas são as mais espetaculares, a fim defazer ressaltar fortemente a estratégiaeducativa familiar que elas encerram. Foi,portanto, nas escolas superiores que nóscontactamos os estudantes de origem ope-rária, naquelas fileiras onde as represen-tações de filhos de operários são as maisfracas: aproximadamente 5%.

No caso da UFMG, a origem socialjoga, fundamentalmente, na seleção e clas-sificação daqueles que buscam os cursosque se situam no topo da hierarquia uni-versitária.6 Dessa forma, não se pode es-quecer, como bem nos mostra Lahire(1997b), em seu trabalho sobre a maneirade estudar dos estudantes franceses, que aorigem social

[...] joga fundamentalmente: 1) sobre apossibilidade bastante desigual de acessoao ensino superior; 2) sobre a probabili-dade bastante desigual de acesso aos di-ferentes estabelecimentos e tipos de es-tudos no ensino superior; e 3) sobre a pro-babilidade de forte desigualdade deefetuar os estudos longos.

Ao escolher o estudante pobre,poderia, na expressão de Laurens (1992,p. 241), “retirar o véu que recobre os itine-rários sociais atípicos e o sucesso escolarno meio popular”. Mas poderia tambémcompreender por que, mesmo beneficiadospela assistência oferecida pela Fump, elesmanifestam um acentuado sofrimento nassuas vivências acadêmicas, ao cursar car-reiras altamente seletivas, à semelhança deestudantes ingleses bolsistas, “bem dota-dos” escolarmente, pesquisados porHoggart (1975, p. 169):

O seu treino de “passador de exames” depouco ou nada lhe serve agora. Tem difi-culdade em orientar-se num mundo ondejá não há um professor a quem é necessárioagradar, um rebuçado no fim de cada eta-pa, um diploma, um lugar certo no degraude cima. Sente-se infeliz numa sociedadeimensa e confusa, ilimitada, desordenada,sem aquecimento central, na qual não sãonem os mais trabalhadores, nem os maisespertos, que recebem os rebuçados; na qualfactores imponderáveis, como a “persona-lidade”, a “sorte”, a “sociabilidade”, a“ousadia”, pesam muito na balança.

Aspectos metodológicos

A proposta de pesquisa, desencadeadapelos trabalhos desenvolvidos na Fump eorientada pelos estudos empreendidos, in-dicava que, para se conhecerem aquelesaspectos mais atinentes à vida universitáriado estudante pobre no interior de cursosmuito seletivos, era necessário efetuar umacompanhamento dos jovens, evitando-se,assim, observar a sua vida universitária emum só momento.

Todavia, acreditava também que seriainteressante examinar as condições histó-ricas que foram lentamente possibilitan-do que estudantes pobres freqüentassemensino superior em espaços privilegiados.Queria buscar na história a justificativa ea compreensão de elementos para amanutenção, no presente, de estudantespobres no ensino superior público.

Como ponto de partida para ainvestigação das condições históricas,optei por estudar as academias jurídicasde Olinda/Recife e de São Paulo e, maisrecentemente, a Universidade Federal deMinas Gerais. Aquelas, por abrigaremum dos cursos que fundam o ensinosuperior no Brasil; e esta, por sua reco-nhecida história de atendimento douniversitário pobre.

Acreditava ainda que, no presente, umprocesso de monitoramento das circuns-tâncias sociais e escolares presentes econstitutivas da trajetória acadêmica,vivenciadas pelo universitário egresso dascamadas populares no espaço da univer-sidade, pudesse ser realizado através dosarquivos da Fump, do histórico escolarproduzido pelos entrevistados na UFMGe pelas entrevistas e relatos coletados nodecorrer de quatro semestres. Ele poderiapropiciar a reconstrução do clima em quese estabeleceu o jogo pela permanência nosistema escolar, seja na educação básica,seja no ensino superior. Diante desse pro-pósito, escolhemos seis universitários, umpara cada um dos seguintes cursos:Ciências da Computação, ComunicaçãoSocial, Direito, Engenharia Elétrica,Fisioterapia e Medicina.

Determinaram a escolha desses cursosas notas de aprovação no vestibular, vis-tas aqui mediante o percentual mínimo deacerto necessário para se entrar em cadaramo de ensino da UFMG – esse foi o cri-tério por mim escolhido para a definiçãode cursos altamente seletivos.7 No meu

6 Para Braga, Peixoto e Bogutchi(s/d, p. 11), “em apenas cincocarreiras – Medicina, Odonto-logia, Veterinária, Fisioterapiae Comunicação Social – veri-ficou-se um decréscimo dopercentual de candidatosoriundos da escola pública.Em todas elas, a fração de con-correntes da escola pública jáera pequena em 1992, confir-mando que a seletividade so-cial na escolha da carreira estáse tornando mais intensa.[...]Estamos tratando aqui de pro-cesso seletivo intrínseco a es-tudantes que reconhecem nãoter condições de concorrênciaem cursos de maior prestígiosocial. Aqueles que desconhe-cem essa realidade pagam umcusto elevado por suadesinformação. A título deexemplo, mencionamos que,para o período 1992-1999, nocurso de Direito, de cada oitocandidatos com FSE (fatorsocioeconômico) maior doque 7 (a escala varia de 0 a 10),um foi aprovado, enquantoque, entre os candidatos comFSE menor do que 3, apenasum em cada cem é bemsucedido”.

7 Não é sem razão queAlmeida (1999, p. 51) afirmaque “Se o vestibular pode, defato, ser considerado comoum indicador de excelência,o vestibular para os cursosque atraem os candidatosmais preparados seria o in-dicador mais eficaz dessaexcelência”.

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entendimento, se o vestibular é umaforma reconhecida de seleção dos dife-rentes candidatos às diferentes carreiras,a análise de uma série histórica de re-sultados do vestibular pode indicar comsegurança uma hierarquia nas carreirasuniversitárias. Esse critério identificouuma hierarquia existente entre as carrei-ras e mostrou ainda que variações nodecorrer dos sete anos pesquisados sãobastante sutis. Por exemplo, no períodoprivilegiado por mim (1990-1996), oCurso de Ciências da Computação apa-rece como o curso que mais demandacapital escolar.

O acesso aos estudantes se deu atravésda Fump. De posse do “perfil” do estudante

de interesse da pesquisa, as assistentessociais separavam os questionáriossocioeconômicos por eles preenchidos,para que, após a sua leitura, o pesquisadorpudesse selecionar os jovens a serem en-trevistados. Diante disso, escolhi doisestudantes por curso para iniciar os conta-tos. Do curso de Comunicação Social sóencontrei uma jovem que atendia aoscritérios da pesquisa, o que se revelou pro-blemático, pois a estudante, após o iníciodo acompanhamento, recusou-se a conti-nuar participando da pesquisa, sendoimpossível, portanto, substituí-la.

O Quadro 1 fornece dados sobre ascaracterísticas e a origem social dossujeitos entrevistados:

Quadro 1 – Características e origem social

A expectativa era de que as entrevistasefetuadas no decorrer do acompanhamen-to permitissem reconstituir as trajetóriassociais e escolares dos estudantes e dei-xassem à mostra a vida de estudanteuniversitário, permitindo assim traçar aspossibilidades e os limites da experiênciaacadêmica. O número de entrevistas va-riou conforme a disponibilidade dossujeitos investigados. Mas efetuei, no mí-nimo, três entrevistas com cada um, comduração média de duas horas, sempre apóso término do semestre acadêmico.Queríamos captar as mudanças ocorridasna vida (acadêmica e social) dos sujeitos.

Os temas que orientaram as entrevistasforam a condição econômica do universi-tário, a vida de estudante dentro e fora docampus e a vida acadêmica propriamentedita, principalmente naqueles aspectosatinentes à relação com os professores, comos colegas, a atuação na sala de aula e odesempenho acadêmico.

O tipo de entrevista efetuada, mesmoque orientada por alguns pressupostos jáenunciados, comportava uma larga mar-gem de posicionamento dos entrevistados,revelado na sua disposição para falar desua vida (escolar ou não). Essa disposiçãoofereceu elementos que não foram privile-giados nas perguntas do entrevistador, masque se associam, completam e dão sentidoàqueles. Para Kaufmann (1996, p. 63) tra-ta-se da “vontade de falar” do entrevistado.

As pesquisas que investigam astrajetórias escolares do estudante pobre, noBrasil, são muito recentes, como mostramos trabalhos de Portes (1993, 1998, 2000),Viana (1998, 2000), Mariz, Fernandes eBatista (1998) e Souza e Silva (1999). Decerta forma isso nos leva a pensar a ques-tão do universitário pobre a partir de umamatriz teórica proveniente de estudosinternacionais. Esses aparecem vincadospor uma forma de pensar construída noutroespaço, noutras circunstâncias, que

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guardam algumas similaridades com o casobrasileiro. Ainda não temos como escapardas dificuldades metodológicas e teóricascolocadas pelos problemas que os estudossobre o universitário pobre vêm suscitan-do, mesmo que pesquisadora como Viana(2000, p. 58) aponte, acertadamente, queos estudos nesse campo não podem se res-tringir à descrição formal das trajetórias,pois correm o risco de ocultar “dimensõesfundamentais das biografias – facilitadorasou dificultadoras da sobrevivência no sis-tema escolar –, e que ao mesmo tempo asdiferenciam”.

Uma saída apontada pelo meutrabalho é investir mais esforços na recons-trução da dimensão histórica da questão.Os dados que colocamos em tela nos levama crer que existem fontes importantes, pou-co pesquisadas, que podem dar umcontorno diferente do até então oferecidoà compreensão da educação dos pobres noensino superior brasileiro, fontes que po-dem desvelar dados até aqui ocultados pelaopção de trabalho do pesquisador, peloesquecimento histórico da questão poraqueles que investigam o ensino superiorou mesmo pela ideologia, que ditou por umbom tempo os rumos do que deveria ounão ser pesquisado em educação.

A presença de estudantespobres no ensino superior:

da pobreza negada àassistência institucionalizada

As minhas investigações provam queexistiram estudantes reconhecidamentepobres nos cursos de Direito desde o mo-mento de sua criação. É verdade, também,que se trata de uma ínfima minoria, “esta-tisticamente improvável”, que pouca visi-bilidade tem no conjunto dos dados e dedifícil caracterização, o que exige do pes-quisador, no sentido de evitar a seduçãocolocada pelos dados, não tomar de imedi-ato o “falso” como “verdadeiro”. É queexistem, nos registros, estudantes que sãoclassificados como pobres, mas que, na ver-dade, constituem casos de “falsos pobres”.Em todo caso, está presente um sinal de di-versidade cultural no interior das academi-as jurídicas no século 19. Elas não eramcompletamente refratárias ao estudantepobre, sem que com isso pudessem ser en-quadradas como instâncias democráticas doponto de vista do acesso e da permanência.

A forma como esses estudantes pobresaparecem na literatura, nas diversascrônicas produzidas em diferentes perío-dos, guardam algumas características im-portantes (Bevilaqua, 1927; Nogueira,1907-1912 (nove volumes) e Vampré,1977). A primeira delas refere-se ao fatode o estudante ser “brilhante”, ter venci-do as adversidades e ter galgado postos im-portantes na República. Essa forma restau-ra, redime e encobre a pobreza, ocultandoas condições reais nas quais esses sujeitosconseguiram construir uma carreira aca-dêmica no interior de um espaço quediscriminava o pobre. Muitos deles foramser, posteriormente, catedráticos nos cur-sos jurídicos, reforçando mais ainda o si-lêncio dos cronistas sobre as misérias poreles vividas, que, nos dizeres de Vampré,são relembradas somente para realçar osméritos. Mas essa forma de ver o sucessode uns reforçava também a discriminaçãode outros: aqueles pobres que tiveramacesso ao ensino superior e não “vence-ram” é porque eram uns “fracos”, “vis” e“pusilânimes” que pereceram às primeirasadversidades.

Outras características merecedoras deregistros e que denunciam a presença depobres no interior dos cursos jurídicos, en-contradas na literatura consultada, são core idade, utilizadas para reforçar os feitosdaqueles estudantes que destoavam doconjunto dominante. A essas característi-cas se somam os aspectos anedótico e fol-clórico que envolvem os registros obtidossobre os estudantes. As minhas análisesmostram que o fato de ser uma figura fol-clórica ou pertencer ao anedotárioinstitucional parece ser a razão de mere-cer registro, o que se dá de forma cômica,engraçada, disfarça os preconceitos e en-cobre as discriminações observadas naprática pedagógica de diferentes professo-res. Nesse caso, o anedótico e o folclórico,encerrados em si mesmos, podem masca-rar uma série de circunstâncias sociais vi-vidas pelos atores, aqui caricaturados, emum cotidiano de penúrias, para se mante-rem no interior das academias. Cabe ain-da ressaltar, mais uma vez, que esses ca-sos folclóricos surgem de um tipo de po-breza particular, e não da pobreza em geral,que é a pobreza de determinados estudan-tes que tiveram acesso às academias, ondeas regras eram determinadas pela sobra dariqueza material e cultural daqueles queas dominavam.

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A trajetória escolar desses estudantesera marcada pela ausência de um sistemade educação organizado, característicamais geral do Império, que os obrigava,após aquisição das “primeiras lições”, aperegrinar de cidade em cidade, sempremerecendo favores de padres, correligio-nários políticos e parentes, em busca daaquisição dos saberes necessários para en-frentar os “preparatórios”, como ilustra abiografia de Tobias Barreto, que freqüen-tou para mais de sete espaços escolarespelo interior de Sergipe e Bahia até seradmitido na Faculdade de Direito deOlinda/Recife (Romero, 1903). Havia tam-bém aqueles que ingressavam na carreiraeclesiástica como meio de obter a prote-ção da Igreja, na figura de clérigos e insti-tuições a ela ligadas, como via de acessoao conhecimento e à construção de umcerto capital cultural.

Efetuados os preparatórios, em todosos casos investigados, os estudantes lan-çaram mão, como estratégia de sobrevivên-cia no interior (e fora) das academias, dotrabalho remunerado, desempenhandomodestas funções, como fiscal, porteiro,escrevente, seleiro, caixeiro de livraria,amanuense e arquivista. Mas, como acu-mularam os conhecimentos necessáriospara ingresso nas academias (e eram bonsescolares), foram, sobretudo, mestres par-ticulares ou mesmo professores do CursoAnexo às Academias. Ainda existiram tam-bém aqueles que mereceram a ajuda deterceiros, na figura de instituições escola-res, por intermédio de seus diretores emesmo de amigos.

É importante acrescentar que aestratégia do trabalho remunerado, a estra-tégia de ingresso na carreira eclesiástica ea ajuda de outrem, presentes na trajetóriado estudante pobre, podem aparecer asso-ciadas. Esses fatores são interdependentes,completam-se na estruturação das açõesdos sujeitos, no sentido de multiplicar es-forços para garantir uma trajetória com ummínimo de sobressaltos e um futuro maispromissor.

Entretanto, a aventura do estudantepobre que freqüentou o curso jurídico nasacademias foi uma aventura solitária, doponto de vista institucional; nada se encon-trou nos documentos investigados que per-mitisse alimentar hipótese de uma preocu-pação institucional – qualquer que fosse –para com aqueles poucos estudantes po-bres. Havia, sim, uma solidariedade e, por

vezes, uma caridade do grupo circundantepara com aqueles mais miseráveis, mas não“resignados” com sua situação escolar e so-cial. Nesse período a pobreza não era admi-tida, nem pela instituição e, tampouco, peloestudante. Trata-se do período da pobrezanegada.

Já no século 20, quando voltamos osnossos olhares para os estudantes daUFMG, as minhas pesquisas, efetuadas apartir das atas do Conselho Universitário,de uma documentação atinente aos cursosque deram origem a essa instituição e dadescoberta dos inéditos documentos daCaixa dos Estudantes Pobres EdelweissBarcellos (Cepeb), mostram que a perma-nência, no ensino superior, de um conjun-to significativo de estudantes só foi possí-vel porque estes se “beneficiaram” de umasérie de iniciativas do reitor MendesPimentel,8 do trabalho efetuado pela Cepebe das iniciativas do professor Baêta Vianana estruturação da Fump (Portes, 2003). Éque essas iniciativas admitiam a presençade pobres no interior da instituição uni-versitária e, assim, desenvolveram açõesno sentido de tornar possível a permanên-cia desses sujeitos na universidade. A fun-dação da UFMG marca o momento em quea pobreza é institucionalmente admitida.As ações institucionais irão sobrepor aque-las ações individuais, filantrópicas, mes-mo que fundamentais para a manutençãodo estudante pobre, em um determinadomomento, estruturando de tal forma aFump que, nos nossos dias, suas açõescontribuem para modificar a visão dapobreza: hoje ela é assumida pelo própriouniversitário. Agora, a ajuda é reivin-dicada. Neste caso, receber ajuda é umdireito fundamental.

Ainda assim, um forte elo existenteentre os estudantes pobres, nos diferentesperíodos, é o constrangimento econômicoao qual eles vêm sendo submetidos histo-ricamente. Os dados do passado e do pre-sente permitem que eu fale de um efeitode durabilidade e permanência desse fe-nômeno no tempo. Se a condição econô-mica não é determinante das ações e práti-cas do estudante pobre – em um passado eem um presente –, ela é um componentereal, atuante, mobilizador de sentimentosque comumente produzem sofrimento nes-te tipo de estudante e ameaçam suapermanência na instituição.

Denomino efeito de durabilidade epermanência ao poder que determinados

8 Trata-se do primeiro reitorda UFMG (1927-1930), pro-fessor que vinha apoiandoações assistenciais de ajudaaos pobres desde 1912,quando era diretor da Facul-dade de Direito desta mesmauniversidade. O professor deQuímica Fisiológica BaêtaViana seguiu de perto os pas-sos de Mendes Pimentel,depois dos anos 30.

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fenômenos sociais têm de se prolongar notempo, mesmo em espaços diferentes, mo-dificados, produzindo efeitos, no presen-te, que guardam similaridades possíveis deser identificadas em um passado mais dis-tante, efeitos que tendem a fazer crer queesses fenômenos são “normais” e ineren-tes aos sujeitos, independentemente de suacondição ou origem social. Por exemplo, adiferença da idade de formatura observa-da entre os estudantes pobres e aquelesmais favorecidos permanece, seja em umpassado mais distante, seja em um presen-te, como constataram as pesquisas dePortes (1993); Viana (1998) e Souza e Silva(1999).

Outra forte ligação entre os estudantespobres que também apresenta efeito dedurabilidade e permanência é o bom de-sempenho escolar observado no decorrerdas trajetórias escolares e, principalmen-te, no transcorrer do curso superior. A com-petência na aquisição do conhecimentopossibilita ao estudante pobre (embora elanão garanta) uma possibilidade de filiaçãoao grupo que domina a cena acadêmica, àinstituição à qual se liga e à sociedade, deforma mais ampla. Entrar para o mundoacadêmico e não construir conhecimentode forma a se diferenciar dos colegas (ouquando nada a eles se igualar) é setransformar em um caso “folclórico”,“anedótico” ou mesmo ser uma “fraude”.Ser portador de conhecimento viabiliza apermanência no espaço acadêmico. Aqui,o conhecimento significa muito mais doque manipulação e aquisição dos conteú-dos escolares: a aquisição de um conjuntode códigos de decifração que possibilitamúltiplas leituras do mundo.

Os tempos atuais: novasestratégias para fazer frente

a necessidades antigas

Se em um passado mais distante nãopudemos, ainda, acessar o trabalho escolarda família, que propiciou a trajetória de “su-cesso” daqueles estudantes que romperamas barreiras (geográficas, econômicas, cul-turais, políticas...) colocadas para se teracesso ao curso superior, em um presente,o trabalho escolar da família se faz notar deforma marcante na vida dos investigados,sem que, contudo, possamos falar em “in-vestimento” ou mesmo “mobilização”, ouseja, em atitudes racionais com objetivos de

escolarização do filho. Denomino trabalhoescolar das famílias a todas aquelas ações– ocasionais ou precariamente organizadas– empreendidas pela família, no sentido deassegurar a entrada e a permanência do fi-lho no interior do sistema escolar, de modoa influenciar a sua trajetória escolar, possi-bilitando-lhe alcançar gradativamente osníveis mais altos de escolaridade, como, porexemplo, o acesso ao curso superior. Essasações não me parecem completamente au-tônomas; às vezes elas se sustentam e ad-quirem clareza mediante a interferência deoutros sujeitos e mesmo instituições quedetêm um conhecimento mais completodas possibilidades escolares e materiais dosujeito pertencente aos meios populares.

Como venho mostrando na recons-trução da trajetória escolar de sujeitosinvestigados, o horizonte temporal dasfamílias por vezes se revela muito estreito,não propiciando a elas projeções futuras deescolarização dos filhos, dando às ações dasfamílias um caráter de praticidade necessá-ria para auxiliar o filho no sentido depermanencer no interior do sistema escolar(Portes, 2000, 2001). No nosso caso, a pre-sença da família na escolarização dos filhospode ser notada no trabalho escolar que eladesenvolve no sentido de assegurar a pre-sença da ordem moral doméstica, ofereceratenção para com o trabalho escolar do fi-lho, desenvolver esforços para compreendere apoiar o filho, permitir a presença do ou-tro na vida do filho e na (re)orientação daspráticas escolares da família, incentivar aeterna aproximação dos professores, efetu-ar a busca da ajuda material e incentivar afiliação do filho a grupo de apoio construídono interior do estabelecimento escolar.

Observa-se em todas as entrevistasefetuadas o esforço contínuo parainculcação de uma ordem moral domésticano filho, desde tenra idade, suficientemen-te forte para balizar os procedimentos so-ciais como disposição. A ordem moraldoméstica parece funcionar como um las-tro para o conjunto de ações a serem em-preendidas pelas famílias e pelos filhos.Trata-se de um esforço contínuo que nãotem como alvo específico o “sucesso” es-colar, mas, sim, uma educação maisabrangente, uma educação para a vida euma conformação dos procedimentos. Oconjunto de entrevistas efetuadas comesses sujeitos revela que não só seus pro-cedimentos sociais, mas também os esco-lares, possuem a marca distintiva dessa

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formação adquirida de forma lenta eprocessual no interior da família.

Nota-se todo um cuidado, um rol depreocupações, pequenas intervenções dasmães (principalmente) naquilo que se re-fere ao trabalho escolar ou indiretamentea ele ligado. Nos nossos casos, o que pare-ce ser rentável é a presença possível, a dis-ponibilidade em escutar, ouvir e dar aten-ção ao filho, permitir que ele dê conta desuas tarefas e necessidades escolares,indagá-lo sobre seu dia escolar. Essas açõessão perceptíveis na busca do estabeleci-mento escolar e na escolha do estabeleci-mento (sempre público) quando viável, naluta pela matrícula, nos possíveis conta-tos com outras mães (na porta da escola),nas aproximações (mesmo esporádicas)com os professores, nas reuniões escola-res (quando convidadas), na manutençãofísica da criança e dos equipamentosnecessários à freqüência da escola, naatenção para as companhias dos filhos, noato de levar à escola e buscar, na vigilân-cia da rua. Essas situações revelam todoum cuidado dessas mães para com a esco-laridade dos filhos, mesmo que elas nãopensem nisso como um projeto, mesmoque não se trate de uma ação racional vi-sando a um fim futuro, distante (por exem-plo, a chegada à universidade). Para elas,trata-se de uma obrigação cotidiana quetem de ser feita, necessária para a formaçãodo filho, para seguir em frente.9

Aparece, no conjunto das entrevistas,um trabalho de persuasão afetiva (que setorna efetivo), no sentido de se continuara escolaridade, diante de complexos mo-mentos vivenciados no decorrer da traje-tória escolar e universitária: trabalhoexecutado pelas famílias no interior do lar,para que o filho não se renda diante daescola em função de situações pessoaisdifíceis de serem vividas e de necessida-des materiais de difícil controle, que de-nominamos de questões paralelas. Essasquestões não marcam hora nem dia paraacontecer. Por exemplo, a ausência do pai,por morte ou abandono do lar – situaçãovivida por três entrevistados – , coloca afamília em situação de instabilidade,diante da falta de recursos materiais oupensão significativa, o que jogará inevita-velmente a mãe ou o filho mais velho nomercado de trabalho.

Nota-se aqui todo um esforço da mãepara que o filho não exerça o trabalho re-munerado antes de terminar o ensino

médio (horizonte que se vai vislumbrandopara algumas dessas famílias). Para essasmães, a entrada no mundo do trabalhoparece significar um desvio de rota quaseirrecuperável, danoso, no futuro, quanto àesperança de se conseguir algo mais levecomo ocupação. Essa resistência da mãeirá chocar-se com as necessidades materi-ais da família e do próprio jovem, que,criado sob a ética do trabalho e exposto atoda uma mídia que incentiva o consumo,vê-se na obrigação moral de produzir a suaprópria existência, adquirir uma autono-mia mínima. Esse conflito perpassa boaparte da trajetória e, com a entrada na uni-versidade, parece não ter fim, o que pro-duz um enorme desgaste nas relaçõesintrafamiliares. A atuação afetiva da famí-lia se opera no sentido de se superar essafase, para que o filho possa seguir adiante.Esse trabalho é difícil de ser percebido, masperpassa toda a trajetória escolar dessesestudantes. É efetuado na solidão do lar epouco compartilhado com terceiros, mastão-somente com aqueles mais compreen-sivos. Não se admite que o filho esteja do-ente ou preocupado e incerto quanto aoprojeto universitário (que pode ser tambémum projeto de vida) que se iniciou. Apos-ta-se, aqui, na capacidade do filho de pro-cessar os conselhos, as ajudas afetivas dafamília, e na ação do tempo: “é tudo umaquestão de tempo”. Aposta-se, também, nacapacidade moral do filho de superar-sediante da família, que vê nele um sujeitomerecedor das preocupações e dasolidariedade a ele dispensadas.

A busca da ajuda material é umfantasma constante na vida dessas famíli-as, principalmente com a entrada do filhona universidade. Colocar e manter um filhonos cursos de Medicina, Fisioterapia,Direito, Comunicação Social, EngenhariaElétrica ou Ciências da Computação, mes-mo numa universidade pública como aUFMG, são atos que retiram a tranqüilida-de da família, pois, nos meus casos, trata-se de um ensino que, mesmo sendo públi-co, é economicamente dispendioso.Exigências próprias do acadêmico e exigên-cias características de cada curso exercemaí uma forte influência – aquelas dizem res-peito a transporte, compra de livros, xerox,material escolar, roupa, calçado, aluguel,alimentação e lazer, etc., enquanto que asúltimas se configuram por necessidadescomo, por exemplo: para quem fazComunicação Social, coloca-se a exigência

9 Ao contrário das nossas aná-lises, D’Ávila (1998, p. 47)acredita que se trata de uma“equação entre custo/risco/benefício-mais-útil com queoperam os familiares emsuas estratégias de investi-mento educacional”.

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de se assinar revistas e jornais diversos;para quem faz Ciência da Computação,exige-se ter em casa um computador; paraquem faz Direito, desde muito cedo, exi-ge-se usar paletó, gravata, sapatos (e nãotênis), etc. Tudo isso irá propiciar uma ins-tabilidade econômica familiar capaz derefletir-se de forma preocupante naquiloque ao longo da trajetória escolar (e social)mais parecia alicerçar esse estudante: suasegurança nas questões atinentes ao esco-lar. Mesmo contando com a importante aju-da da Fump, observa-se uma submissão ehumilhação ao pedir de forma recorrenteou aceitar ajuda material de terceiros(geralmente parentes com situação econô-mica mais favorável ou amigos íntimos, oumesmo agiotas). Ajuda frágil, inconstante,mas que remedeia circunstâncias materi-ais e assegura condições psicológicasbásicas para a continuidade dos estudosacadêmicos do filho.

O trabalho escolar das famílias podenos ajudar a compreender que as ações dedeterminadas famílias pertencentes às ca-madas populares são diversas e recobremsignificados próprios que podem ser ocul-tados, dependendo do olhar que se dirigea elas. Por exemplo, acredito que há umaarmadilha na forma de se analisar o possí-vel trabalho escolar de famílias popularesatravés de regularidades típicas observa-das em frações das classes médias – queconfigurariam investimento escolar –,como a série apontada por Nogueira (1998):acompanhamento estrito da escolaridade(tanto na escola como fora dela); estratégi-as de escolha do estabelecimento; relaçõesfreqüentes com os professores; ajuda regu-lar nos deveres de casa; reforço e maxi-mização das aprendizagens escolares;assiduidade às reuniões convocadas pelaescola; utilização do tempo de exposição àtelevisão, etc. As famílias populares nãopodem se espelhar nas ações escolaresmais conhecidas e identificadas das famí-lias de diferentes frações das classesmédias. Empreender essas ações supõe ca-pital cultural e mesmo uma disposição eco-nômica de que as famílias populares nãodispõem. Essas famílias lidam em um es-paço onde a privação, a instabilidade, ainsegurança e a angústia impulsionam eorientam as ações.

No nosso caso, não se pode analisar atrajetória escolar dos jovens e a conseqüentechegada e permanência no ensino superior,considerando aqui as carreiras escolhidas,

sem falar do trabalho escolar das famílias.Ele está presente em todas as trajetóriasreconstruídas.

Mesmo assim, a parte que cabe aosjovens nesta empreitada não é pequena.Eles demonstram ter introjetado, no decor-rer da trajetória escolar, um conjunto dedisposições – dedicação, atenção aotrabalho escolar, “gosto” pela escola, obe-diência, solidariedade, segurança e auto-determinação –, presentes na construçãode um habitus favorecedor de uma perma-nência prolongada no interior do sistemaescolar, que “dispensa” pouco a pouco apresença da família naquilo que diz res-peito à escola. Esse conjunto de disposi-ções transfere às famílias a sensação deque seus filhos “que chegaram lá” (na uni-versidade pública) são auto-suficientes,escolarmente falando.

Entretanto, entrar para a universidadeé entrar para um “mundo novo”, “desco-nhecido”. A inclusão neste novo mundodesencadeia o sentimento de que se é di-ferente, socialmente falando, dos colegas,a partir da percepção de um conjunto dedemonstrações e das condições de vida dooutro (formas de morar, roupas e acessóri-os utilizados, uso do carro, formas de fa-lar, intervenções efetuadas na sala de aula,tipos de lazeres, maiores disponibilidadeseconômicas e desenvoltura acadêmica,entre outras). Mas entrar para a universi-dade é também abrir uma porta bastantelarga que propicia a interação com práti-cas culturais mais legítimas, como teatro,cinema, literatura, artes e concertos, quenão constam da formação do estudantepobre investigado, ainda que eles mani-festem outras formas de envolvimento so-cial e de práticas cotidianas, tais como au-dição de rádio, assistir TV, ida a barzinho,ao shopping, à feira e à casa de amigos dobairro (ou da cidade de origem), às festase churrascos da turma de faculdade, aoCentro Esportivo Universitário e explora-ção das possibilidades da cidade.

Mas viver a vida universitária requerdo estudante pobre manipulação eficientede algumas circunstâncias básicas, comodar respostas às necessidades econômicas,estabelecer uma vida de estudante (dentroe fora do campus), aceitar e se fazer aceitopelos colegas, estabelecer uma relação in-teressada com os professores, desenvolveruma atuação na sala de aula e não se des-cuidar jamais do rendimento acadêmico.Mas essas circunstâncias, fundamentais

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para um processo de filiação, esbarramrotineiramente nos limites impostos pelascondições ligadas à origem social dosestudantes pobres.

Mesmo que reafirmem com seudesempenho acadêmico a construção deuma escolaridade voltada para a vida pro-fissional futura e dela esperem uma certaredenção social, eles reafirmam também emsuas representações um pessimismo origi-nado da angústia cotidiana não só de lidarcom as dificuldades da aquisição dos sabe-res necessários para a consecução dosestudos, que é inerente a todos os estudantes,mas originado ainda das dificuldades colo-cadas pelo constrangimento econômico queameaça o sonho universitário e os aflige demodo particular.

Algumas consideraçõesfinais

Procuro mostrar neste trabalho,inicialmente, as referências que propicia-ram a compreensão do problema propos-to, que é entender e explicar a trajetóriaexcepcional de um conjunto de estudan-tes provenientes dos meios populares eque tiveram acesso à UFMG, através dovestibular, principalmente naqueles cur-sos altamente seletivos, que exigem umcapital escolar significativo, onde o jogo aser jogado para a entrada, permanência esaída, com sucesso, demanda o controlede uma série de circunstâncias que pas-sam pelo econômico, pelo cultural e pelasdisposições psicológicas desenvolvidas nointerior da universidade, quando docontato com diferentes sujeitos sociais.

Em busca de uma compreensãohistórica, mostramos que existiram estu-dantes pobres nos cursos de Direito, desdeo momento de sua fundação, em 1827,mesmo que esses estudantes não fossemrepresentativos daqueles que pertenciamàs camadas mais necessitadas da popula-ção. A análise da vida escolar desses estu-dantes pobres identificados mostra queeles passaram pelas academias jurídicassem merecer qualquer ajuda institucional:trata-se de um momento histórico onde apobreza tinha de ser negada. Assim, osestudantes pobres desenvolveram estraté-gias próprias de sobrevivência material esimbólica, interdependentes, que se con-sorciavam, para que pudessem permane-cer no interior dos cursos jurídicos com

sucesso. Essas estratégias giravam em tornodo trabalho remunerado, do pertencimentoaos quadros da igreja, do auxílio recebidode terceiros e das formas de convivência,de um mimetismo estratégico, desenvolvi-das no interior dos cursos jurídicos, e, prin-cipalmente, a estratégia de ser um “bomaluno”. O bom desempenho acadêmico na-quele período tinha o poder de amenizardiferenças sociais, assim como hoje.

Por outro lado, mostro também que,com a fundação da Universidade Federalde Minas Gerais em 1927, a compreensãoque se tinha dos “necessitados”, dos“desprovidos de fortuna”, dos “moços po-bres” era outra, de que os moços providosde talento tinham de merecer ajuda paraque pudessem ter sucesso nos estudos. As-sim, essa universidade apoiou, inicialmen-te, de forma pioneira, propostas filantró-picas e, posteriormente, criou uma série demecanismos institucionais que propicia-ram a permanência dos moços pobres noensino superior em condições bastantefavoráveis, para o período.

Nos dias atuais, aqueles poucosestudantes pobres que tiveram acesso aoensino superior na UFMG, nos cursos al-tamente seletivos, podem ser considerados“superselecionados”, pois habitam espaçosacadêmicos, como mostram as estatísticas,destinados aos herdeiros culturais, ondeas chances de um jovem proveniente des-se meio ter acesso a tais cursos sãomínimas.

Entretanto, a justificativa para que eleschegassem aonde chegaram passa, neces-sariamente, pelo trabalho escolar das famí-lias, às vezes efetuado intergeracionalmente,e por uma autodeterminação, desenvolvidosno decorrer da trajetória escolar dessesjovens. Mas chegar à universidade e, prin-cipalmente, em seus espaços mais valori-zados socialmente não significa garantia depermanência e saída, diplomado. Para isso,a ajuda institucional oferecida pela UFMGse faz presente de forma determinante, o tra-balho da família permanece ainda como ne-cessário, cabendo ao estudante uma eternavigilância de todas as circunstâncias que ocercam, que giram em torno do acadêmico,do pedagógico, das disposições psicológicase, sobretudo, das econômicas.

Por mais que o aparato institucionalnessa universidade tenha evoluído, os es-tudantes pobres ainda não se livraram dosconstrangimentos econômicos aos quaissão submetidos nesses espaços altamente

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privilegiados de formação profissional ecultural. A sociedade brasileira vemevoluindo em todos os sentidos, principal-mente no que diz respeito à acumulaçãomaterial e quanto ao entendimento da ne-cessária ampliação da educação para to-dos, com a construção de um sistema deeducação que se amplia mais e mais, e, noentanto, o aparato montado para atendi-mento assistencial dos jovens pobres emcursos altamente seletivos guarda, ainda,

traços e formas de atendimento próprios deum país que se industrializava no início doséculo 20. A vida cotidiana levada por es-ses jovens no interior da UFMG demonstraque o aparato criado para dar sustentaçãoà aventura escolar que eles empreenderamestá obsoleto e necessita ser recriado, sob orisco de transformar uma trajetória de su-cesso, vista aqui na entrada desses estudan-tes em espaços culturais privilegiados, emuma permanência fracassada.

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Écio Antônio Portes, doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG), é professor adjunto da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).

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Recebido em 23 de março de 2005.Aprovado em 11 de agosto de 2006.

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