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Resenha: PÊCHEUX, Michel. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político
francês: início de uma retificação.
In: ____________. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4ª ed.
Campinas: Unicamp, 2009.
O FOGO DE UM TRABALHO CRÍTICO
ALLAN KERN
Metodologia de Pesquisa
Programa de Mestrado em Ciências da Linguagem Universidade do Vale do Sapucaí
“Intervir filosoficamente obriga a tomar partido: eu tomo partido pelo fogo de um trabalho crítico (...) contra o fogo incinerador que só produz fumaça.” (Michel Pêcheux, 1978).
No percurso teórico de Michel Pêcheux, o final da década de 1970 aparece como
um momento de inquietações teóricas e políticas. Motivados por "crises existenciais"
identificadas nos campos da Linguística e do Marxismo, Pêcheux e seu grupo
direcionaram esforços em duas vias: por um lado, questionavam as limitações teórico-
filosóficas do logicismo e do sociologismo na Linguística (GADET & PÊCHEUX,
1977); por outro, Pêcheux se via obrigado a reconhecer e corrigir algumas imprecisões
sobre os mecanismos de assujeitamento e dominação ideológica, tal como foram
abordados em sua obra “Semântica e Discurso” (1975).
Em dois textos (1977a e 1977b), Pêcheux deixa entrever um descontentamento
com as tendências dispersas que se apresentavam sob o que se havia convencionado
chamar de "A Escola Francesa de Análise do Discurso". Como lembra Orlandi (2011),
Pêcheux pensava politicamente. Na prática, a dispersão teórica verificada tanto na
linguística quanto no marxismo significavam, para ele, um entrave político num
momento crítico para o pensamento de esquerda na França, quando os partidos
Comunista e Socialista se lançavam em uma fusão que tendia para a “entrada no jogo”
do Estado liberal-democrático francês.
O momento de reformulações é anunciado no texto que aqui resenhamos (1978),
onde Pêcheux reconhece que o grande equívoco de “Semântica e Discurso” era a
concepção de um assujeitamento sem falhas: as ideologias dominadas eram reduzidas a
inversões quase simétricas das ideologias dominantes, o que gerava um impasse para se
pensar teoricamente as possibilidades de resistência. Segundo conta Maldidier (2003),
intelectuais de diferentes áreas se confrontavam em um cenário tomado pelo “desespero
político” (op. cit., p. 66). Daí a necessidade de intervir filosoficamente.
Pêcheux inicia sua intervenção apontando que a “tríplice aliança” construída em
torno do Materialismo Histórico, da Linguística e da Psicanálise era, naquele momento,
“objeto de um verdadeiro bate-boca teórico e político” ([1978], 2009, p. 269), e que a
visada política deste movimento intelectual falhava na medida em que
os desvios, erros “equívocos” etc., que se instalaram no coração da Tríplice Aliança para desempenhar nela um papel teórico, às vezes mortal, designavam a presença não-reconhecida do adversário no próprio interior da cidadela teórica, que se organizava para resistir aos ataques exteriores desse adversário. (PÊCHEUX, op. cit., p. 270).
Assim, Pêcheux afirma que o inimigo político não estava além das fronteiras da
“tríplice aliança”, mas se apresentava nesse mesmo espaço de organização da resistência
intelectual. Era necessário pensar em como o discurso da dominação encontrava meios
de se reproduzir no discurso da resistência. Na metáfora utilizada pelo autor, a fumaça
teórica era o efeito sintomático de uma causa política que possibilitava a falha na
resistência intelectual: “não há fumaça sem fogo” (op. cit., p. 269-270). É aí que
Pêcheux esclarece seu posicionamento diante da polêmica, defendendo o fogo de um
trabalho crítico contra o fogo incinerador que só produz fumaça.
Assim, o “fogo crítico” a que o autor se refere não é a crítica dirigida ao outro
(inimigo exterior), mas o exercício de autocrítica (crítica ao adversário interior não
reconhecido). Pêcheux, quando afirma que “a luta filosófica (luta de classes na teoria) é
um processo sem fim de retificações coordenadas” (op. cit., p. 270), delineia um traço
marcante de sua obra: o constante movimento reflexivo de um trabalho em processo.
O autor aborda o conflito teórico a partir de um paradoxo identificado em
“Semântica e Discurso”: a concepção de uma forma-sujeito “tomada na História como
processo sem sujeito nem fim(s)” (op. cit., p. 271). Para endereçar o problema, Pêcheux
remonta a Althusser e seu trabalho sobre os aparelhos ideológicos de Estado, cujo
efeito teórico-político havia se dispersado em interpretações funcionalistas.
Pêcheux (op. cit., p. 274-275) conta que, na tentativa de dar (con)sequência ao
trabalho de Althusser, a conclusão de “Semântica e discurso” trazia uma concepção
equivocada sobre as possibilidades de resistência ao assujeitamento, concebidas como
inversões simétricas dos mecanismos de dominação em uma espécie de “interpelação às
avessas”. Ou seja, o equívoco de “Semântica e discurso”, segundo o próprio Pêcheux,
foi conceber que o sujeito seria capaz de reverter o mecanismo de assujeitamento a
partir de bases teóricas, neutralizando seus efeitos práticos. O teor da autocrítica é forte:
“o que está inadequado, aqui, em referência ao marxismo-leninismo é o retorno idealista
de um primado da teoria sobre a prática” (op. cit., p. 276). Esse idealismo se mostrava
na medida em que a teorização sobre a resistência negligenciava o fato de que a
interpelação ideológica é um mecanismo que atravessa o inconsciente: “levar
demasiadamente a sério a ilusão de um ego-sujeito-pleno em que nada falha, eis
precisamente algo que falha em ‘Semântica e discurso’” (op. cit., p. 276).
A retificação de Pêcheux, portanto, implica um reexame do trabalho teórico
sobre o assujeitamento ideológico tendo em vista o funcionamento do inconsciente. É
interessante, neste momento, retomar um ponto de “Semântica e discurso” (op. cit., p.
139), quando o autor afirma que “o caráter comum das estruturas-funcionamentos
designadas, respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua
própria existência no interior mesmo de seu funcionamento”. Nesse enunciado do texto
de 1975, Pêcheux se limita a apontar que tanto a ideologia como o inconsciente se
caracterizam por apagar as marcas de seu funcionamento. Já na retificação de 1978, o
autor parece deter-se na ideia de que, se o inconsciente deixa vestígios no sujeito ego da
consciência, abre-se aí uma via para se pensar a falha na “dissimulação” da ideologia:
(No texto de 1975) ficava contornado, com toda a obstinação filosófica possível, o fato de que o non-sens do inconsciente, em que a interpelação encontra onde se agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu produto, porque o tempo da produção e o do produto (...) estão inscritos na simultaneidade de um batimento, de uma “pulsação” pela qual o non-sens inconsciente não para de voltar no sujeito e no sentido que nele pretende se instalar. (PÊCHEUX, [1978], 2009, p. 276).
Ou seja, a possibilidade de resistência ao assujeitamento ideológico não consiste
em uma tomada de consciência que possa reverter o movimento da interpelação, mas
reside na possibilidade de falha desse mecanismo através da irrupção do inconsciente,
que faz emergir o non-sens no próprio interior do sentido que é tomado como evidente.
É possível fazer a leitura de que, neste momento de sua trajetória, o pensamento
de Pêcheux já parece se alinhavar com o de J. C. Milner, cuja obra “O amor da língua”,
também publicada em 1978, traz uma (re)leitura dos fundamentos da linguística a partir
da concepção lacaniana de que o inconsciente é estruturado como linguagem. Assim, a
afirmação de que o non-sens irrompe no sujeito sob a evidência do sentido ao qual ele
se apega vai ao encontro da tese de Milner1, segundo a qual “a língua é o que sustenta
lalíngua na qualidade de não toda” ([1978], 2012, p. 28). Em suas trajetórias distintas,
tanto Pêcheux quanto Milner foram levados a pensar o funcionamento da incompletude
na língua enquanto objeto teórico e, para tanto, ambos recorreram a J. Lacan.
Para endereçar o problema apontado em “Semântica e discurso”, Pêcheux traz
uma citação de Lacan – só há causa daquilo que falha – para atribuir ao inconsciente a
“causa que determina o sujeito exatamente onde o efeito de interpelação o captura”
([1978], 2009, p. 277). Essa causa, conforme Pêcheux, se manifesta sob diversas formas
– o lapso, o ato falho, o chiste, etc. – no sujeito, que é dividido no movimento pendular
entre o sentido e o non-sens. Partindo dessas observações, o autor busca consequências
teóricas sobre o funcionamento do inconsciente no mecanismo de interpelação :
Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual supõe reconhecer que não há ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas, “uma palavra por outra” é a definição da metáfora, mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso. (...) Por esse viés, não estaria a série analítica sonho-lapso-ato falho-Witz encontrando obliquamente aqui algo que infecta constantemente a ideologia dominante, do próprio interior das práticas em que ela tende a se realizar? (PÊCHEUX, [1978], 2009, p. 277-278).
A referência aos lapsos e atos falhos, porém, é acompanhada de uma importante
ressalva: pensar essas manifestações do inconsciente como formas de resistência não
implica considerá-las como se fossem a “fonte” das ideologias dominadas: “a condição
real de sua disjunção em relação à ideologia dominante se encontra na luta de classes
como contradição histórica motriz (um se divide em dois) e não em um mundo
unificado pelo poder de um mestre” (op. cit., p. 278-279). Ou seja, a constituição das
ideologias dominadas não se reduz à desestabilização de sentidos pelas manifestações
do inconsciente: trata-se, antes, do modo como a luta de classes potencializa esses
pontos de resistência em focos de revolta, abalando as relações de poder.
1 A relevância da obra de Milner (que transita entre a Linguística e a Psicanálise) para o trabalho de
Pêcheux sobre o discurso aparecerá de forma marcada em trabalhos posteriores, sobretudo “A língua
inatingível”, publicado em coautoria com F. Gadet ([1981] 2010).
No que toca as relações de poder, Pêcheux afirma que o trabalho de M. Foucault
pode ajudar a retificar a distinção althusseriana entre interpelação ideológica e
violência repressiva, colocando em evidência “o processo de individualização-
normativização2 no qual diferentes formas de violência do Estado assujeitam os corpos
e asseguram materialmente a submissão dos dominados” (op. cit., p. 279). No entanto,
Pêcheux sublinha que essa articulação teórica exige uma modalização: “Foucault traz
uma contribuição importante para as lutas revolucionárias de nosso tempo, mas,
simultaneamente, ele a torna obscura, ficando inapreensíveis os pontos de resistência e
as bases da revolta de classe” (idem). Para Pêcheux, o “embaraço” de Foucault com a
psicanálise e com o marxismo conduz a uma dispersão em torno das noções de
resistência e revolta, o que constitui um obstáculo para se pensar politicamente as
ideologias dominadas:
Há, talvez, no estudo histórico das práticas repressivas ideológicas um fio interessante a seguir, para que se comece, enfim, a compreender o processo de resistência-revolta-revolução da luta ideológica e política de classes, evitando fazer da ideologia dominada, seja a repetição eternitária da ideologia dominante, seja a autopedagogia de uma experiência que descobre progressivamente o verdadeiro atrás-das-cortinas das ilusões mantidas pela classe dominante, seja a irrupção teoricista de um saber exterior, o único capaz de romper o círculo encantado da ideologia dominante. (PÊCHEUX, [1978], 2009, p. 280 – grifos nossos).
Essas considerações nos fazem remeter ao comentário de E. Orlandi que citamos
no início desta resenha: Pêcheux pensava politicamente. Sua inflexão sobre as
ideologias dominadas implicava relacionar os gestos de resistência às possibilidades de
revolta e revolução, de modo a sublinhar que as questões de poder são, em última
instância, questões de classe.
O autor afirma ainda que, em “Semântica e discurso”, o uso excessivo de chistes
apontava para o fato de que “o momento de uma descoberta tem fundamentalmente a
ver com o desequilíbrio de uma certeza” (op. cit., p. 280) e que o chiste, na medida em
que representa um dos possíveis pontos de encontro do pensamento teórico com o
inconsciente, dá a aparência de “domesticar os efeitos” desse encontro (idem). No texto
de 1978, por outro lado, ele já parece aceitar o desconforto da não domesticação.
2 Em nossa leitura, compreendemos que essa articulação do trabalho de Foucault com a perspectiva
pecheutiana foi realizada no trabalho de Orlandi (2001), que propõe o conceito de individuação para
designar, dentro do processo de assujeitamento ideológico, o mecanismo de individualização-
normativização do sujeito pelas instituições.
Pêcheux afirma que o trabalho de Althusser sobre os aparelhos ideológicos de
Estado já apontava para a direção do chiste, por mais que evitasse sistematicamente
abordar as manifestações do inconsciente. É assim que o autor coloca o efeito
Münchhausen como um desdobramento legítimo das colocações de Althusser sobre o
funcionamento da interpelação ideológica, embora reconheça que em “Semântica e
discurso” houvesse ainda, de sua parte, demasiada hesitação em adentrar questões do
inconsciente para levar adiante a reflexão sobre a ideologia.
Deste modo, Pêcheux conclui sua retificação levantando “dois pontos
incontornáveis” no desenvolvimento teórico proposto – e inacabado – em “Semântica e
discurso”: o primado prático da luta de classes, diante do qual “é preciso ousar se
revoltar”; e o primado prático do inconsciente, diante do qual “é preciso suportar o que
venha a ser pensado, isto é, é preciso ousar pensar por si mesmo” (op. cit., p. 281). Na
confluência dessas duas formas de ousadia residiria, portanto, aquilo que o autor
denomina o fogo de um trabalho crítico, que possibilitaria compreender o
funcionamento das ideologias dominadas no movimento resistência-revolta-revolução.
Referências:
GADET, F. & PÊCHEUX, M. Há uma via para a Linguística fora do Logicismo e do Sociologismo? [1977]. In: ORLANDI, E. P. (org.). Análise de Discurso: Michel
Pêcheux. Campinas: Pontes, 2011.
MALDIDIER, D. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Campinas:
Pontes, 2003.
ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
ORLANDI, E. P. Ler Michel Pêcheux hoje. In: _______________ (org.). Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas: Pontes, 2011.
PÊCHEUX, M. As massas populares são um objeto inanimado? [1977a]. In: ORLANDI, E. P. (org.). Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas: Pontes, 2011.
________________. Remontemos de Foucault a Spinoza [1977b]. Tradução brasileira
por Maria do Rosário Valencise Gregolin. Mimeo, 2000.
________________. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio [1975].
Campinas: Unicamp, 1988.
________________. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação [1978]. In: ________________. Semântica e Discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio. Campinas: Unicamp, 1988.