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Almanaques_especial114

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31/10 Texto: Bruno Hoffmann Arte: Guilherme Resende Ilustrações: Guazzelli 16 16 16 Outubro 2008 Agosto 2007 17 17 17 17 BO TO Dan ça com o ning uém , com um Toq ue mac io e sedu tor. A moç a Não reco nhe cime nto de pate rnid ade. O supo sto pai será noti fica do, e assu mirá a pate rnid ade ou cont esta rá a ação . Nes te caso será nece ssár io exam e DNA para confi rma ção. Caso não pag ue a pen são alim entí cia, pod e cum prir pen a de recl usão de até três mes es. 18 18

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ESPECIAL

DIA DO SACITexto: Bruno Hoffmann

Arte: Guilherme Resende Ilustrações: Guazzelli

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outros mitos que metem medoEm outubro de 2007, este ALMANAQUE levou a julgamento seis personagens muito suspeitos, acusados de toda sorte de crime: Saci, Mula-Sem-Cabeça, Mboitatá, Homem do Saco, Lobisomem e Cuca. Livraram-se todos. Dispostos a esclarecer as supostas atrocidades cometidas pelos mitos que ainda preservam seu cantinho na imaginação dos brasileiros, encaminhamos cinco outros meliantes ao recém-constituído Supremo Tribunal do Folclore, presidido pelo patrono deste ALMANAQUE, Luís da Câmara Cascudo. Que ele acompanhe as acusações e depoimentos e profira sua sentença.

m 31 de outubro, em várias partes do mundo, é comemo-rado o Halloween, ou Dia das Bruxas. Tradição norte-ame-

ricana que, pouco a pouco, vem sendo importada pelo nosso País. Mas por que se vestir de bruxinha, cortar abóbora e sair por aí falando “travessuras ou gostosuras” se temos lendas capazes de apavorar os mais destemidos cidadãos? Pra começo de conversa, há tempos defendemos a data como Dia do Saci, e nisso temos bons companheiros, infiltrados nos mais diversos campos de atuação: de músicos a intelectuais; de execu-tivos a profissionais liberais. Alguns reunidos em associações de criadores e observadores de sacis; outros agindo anonimamente a favor da causa. E quando se fala nessa criaturinha, podE experi-mentar, logo surge uma verdadeira organização criminosa de seres imaginários (ou serão reais?).

Pois então, se você quer mesmo entrar nessa, cativando estas fi-guras saídas das trevas da nossa memória coletiva, há que saber: eles são capazes de fazer você se perder pela floresta, provocam pesadelos, devoram órgãos internos e seduzem de marmanjos a donzelas. Há tempos atravessam fronteiras e séculos, botando me-do em quem se dá conta de sua existência. Índios e escravos; colo-nizadores e imigrantes; monarquistas e republicanos; parnasianos e modernistas; gente da roça e da cidade. Cada qual com um mito pra chamar de seu. Por isso, para que não pairem dúvidas sobre as intenções desses me-liantes, repetimos o julgamento realizado nestas mesmas páginas um ano atrás, agora com novos acusados. Que ocupem os seus lugares o Curupira, a Pisadeira, o Boto, a Alamoa e o Papa-Figo. Que se percam nas profundezas do esquecimento ou venham à tona na imaginação.

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rata-se de uma espécie de duende selvagem que vive nas

florestas brasileiras para proteger as matas e os animais.

É acusado de participar da mesma gangue de Mboitatá,

pois também faz justiça com as próprias mãos contra caçadores e

lenhadores. Testemunhas garantem tratar-se de um ser baixinho,

com o corpo coberto de pêlos, unhas azuis, olhos injetados de

sangue e, não fosse suficiente, com os pés virados para trás.

Suas investidas são cruéis. Ao flagrar alguém maltratando animais

ou cortando árvores, não pensa duas vezes. Atrai o dito-cujo para

lugares inóspitos, de tal maneira que se perca e morra de fome,

sede ou cansaço. Pode também permitir que um caçador abata

com facilidade um aNimal, mas quando o sujeito vai buscar a

presa, encontra em seu lugar a mulher e os filhos mortos.

Como artifício para ludibriar a Justiça, aproveita que seus pés são

virados para trás para confundir os investigadores na hora da fuga.

Aos checar as pegadas, sempre acham que foi para o lado contrá-

rio do que realmente está. Se vale também de outras identidades,

como Caapora, Zumbi e Caiçara.

Há quem diga que ele não persegue quem caça para sobreviver.

Pelo contrário, até ajuda. Em troca, claro, de algumas prendas,

como fumo, comida e cachaça.

curupirA

t

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uer evitar pesadelos? Então não durma de barriga para cima. Este é o conselho de quem garante ter sido ata-cado pela Pisadeira. A meliante costuma agir em São Paulo e Minas Gerais. Suas vítimas preferidas são aquelas que comeram demais antes de dormir. Desce do telhado – seu esconderijo mais usual – e pisa com muita força no peito e na barriga do incauto adormecido, provocando os pesadelos.Há controvérsias sobre a sua aparência. De acordo com alguns, é uma mulher bem gorda. Já o escritor Cornélio Pires forneceu a seguinte descrição da malfeitora: “Essa é ua muié muito ma-gra, que tem os dedos cumprido e seco cum cada unhão! Tem as perna curta, cabelo desgadeiado, quexo revirado pra riba e nari magro munto arcado; sombranceia cerrado e zóio aceso... Quando a gente caba de ciá e vai durmi logo, deitado de costa, ele desce do teiado e senta no peito da gente, arcano... arcano... a boca do estámo... Purisso nunca se deve dexá as criança durmi de costa”. Pelo sim, pelo não, caro amigo... Barriga pra baixo e bons sonhos.

q

pisAdeirA

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m verdadeiro Don Juan brasileiro. Canalha, boêmio e

extremamente sedutor, costuma aparecer em festas de

vilarejos ribeirinhos. Basta começar a música e eis que

surge o cidadão, não mais com aparência de boto, mas

de homem. Sua roupa é alinhada e está sempre de chapéu (com

um buraco na parte de cima para respirar melhor). É miste-

rioso, com olhar profundo e desafiador. Tem um bom humor

irresistível e um ar de malandro na medida certa. Bebe muito,

mas nunca fica bêbado. Sempre sabe o que falar, na ocasião

certa e no momento exato.

Dança como ninguém, com um Toque macio e sedutor. A moça

escolhida fica maluca, pronta para se deixar levar a uma noite

de tórrida paixão. E é o que costuma acontecer. Como todo bom

cafajeste, porém, o Boto não liga no dia seguinte. Nem manda

e-mail. Ainda mais quando a donzela engravida.

Um alerta, porém, precisa ser feito. Não se deve confiar em

demasia nas supostas vítimas. Há quem garanta que o tal Boto

nunca existiu, que é só uma desculpa para justificar a gravidez

de moças solteiras. “Juro que não foi o Jurandir, mamãe. Só

pode ter sido o Boto!”

BOTO

u

Não reconhecimento de paternidade. O suposto pai

será notificado, e assumirá a paternidade ou contestará

a ação. Neste caso será necessário exame DNA para

confirmação. Caso não pague a pensão alimentícia, pode

cumprir pena de reclusão de até três meses.

AlAmoA

a bandidagem está à solta pelo País. Até regiões distantes e pacatas andam envolvidas em crimes misteriosos. É o caso do arquipélago de Fernando de Noronha, conhe-cido por suas praias maravilhosas e quase desabitadas. Porém, entre os poucos moradores, há alguns marginais. A mais famosa é a Alamoa, ou Alemoa, uma mulher que vive no alto do morro do Pico, a mil metros de altura.Ela surge como uma loiraça de parar o trânsito, completamente sem roupa. Seduz os moradores locais e viajantes. Quando o cidadão já está com corações de desenho animado nos olhos, ela se transforma numa horripilante caveira, capaz de matar (literalmente, em alguns casos) o cidadão de susto. Outra tática da acusada é convencer a vítima a acompanhá-la até sua casa, em cima da montanha. No caminho, joga uma conversinha que induz o acompanhante ao suicídio. De acordo com historiadores, ela não tem nada de alemã, como sugere o nome. É, sim, holandesa, vinda nas embarcações que rumaram a Pernambuco com Maurício de Nassau.

Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Reclusão de dois a seis anos, caso o suicídio se consume. A pena é duplicada se o crime é praticado por motivo egoístico. Morte devido a aplicação de um susto se enquadra em homicídio culposo. Detenção de um a três anos. Como estrangeira, pode cumprir pena no País ou sofrer extradição sumária.

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le age do Amapá ao Rio Grande do Sul – do Oiapo-

que ao Chuí, como se diz. Não há um rincão bra-

sileiro onde se esteja livre de seus ataques. É um

velhinho comum, sem nenhuma característica que o faça

ser reconhecido facilmente. Mas sempre carrega um saco

às costas (dizem que é o avô do Homem do Saco, mas não

garantimos). O ancião sofre de uma rara e incurável mo-

léstia. Rapta crianças (pra variar, as desobedientes) com a

intenção de devorar o fígado e assim aplacar sUa doença.

Por sua idade avançada, costuma contratar parceiros para

ajudá-lo na missão. Os capangas agem próximo a escolas

e distribuem brinquedos, doces e comidas gostosas para

atrair a criançada. Então levam as vítimas para o Papa-

Figo, que, depois da experiência antropofágica, abandona

o corpo junto a uma grande soma de dinheiro, que é para

compensar financeiramente a família.

pApA-Figo

e

Homicídio qualificado (execução cruel). Pena de

12 a 30 anos. Ainda pode responder por formação

de quadrilha ou bando. A pena é agravada se a

vítima tem a confiança do criminoso. Brecha na lei:

canibalismo não é considerado crime em caso de

extrema sobrevivência.

juiz do Supremo Tribunal do Folclore, Câmara Cas-cudo, entra na corte e pede que todos os acusados

fiquem de pé. Ele é o maior conhecedor das crenças e costumes brasileiros, e passou as últimas horas ouvindo promotores, testemunhas e réus. Após analisar o caso, está pronto para proferir a sentença. Todos estão apre-ensivos. “Quando comecei meu trabalho de catalogar esses seres, não havia no Brasil qualquer associação que reunisse malucos que amassem o folclore. Fiz o possível para incomodar intensamente amigos e desconhecidos. Mendiguei histórias de bichos e homens assombrosos em todos os Estados”, justifica, para, em seguida, declarar que o trabalhão valeu a pena. “Reuni uma bicharia fan-

tástica. Prendi todos nos meus livros.” A palavra “prendi” faz os cinco acusados tremerem. Mas, com um leve sorriso, Cascudo encerra o sus-pense: “Estão todos absolvidos. Essas figuras fantásticas devem estar sempre livres no imagi-

nário popular”. Comemoração no tribunal. A bi-charada respira aliviada, certa de ter ganhado

sobrevida na memória dos brasileiros. Ou, ao menos, na dos leitores deste ALMANAQUE.

19A SENTENÇA

• Geografia dos Mitos Brasileiros,de Luís da Câmara Cascudo (Global, 2002).

• Site da Sociedade dos Observadores de Saci:www.sosaci.org

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