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Alquimia em Thomas Mann Uma análise simbólica de A Montanha Mágica Roberto Nicolato 4 Introdução 4 Roberto Nicolato é professor do curso de Jornalismo do Uninter em Curitiba; mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.

Alquimia em thomas mann

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Alquimia em Thomas Mann

Uma análise simbólica de A Montanha Mágica

Roberto Nicolato4

Introdução

Não é novidade o fato de que a obra A Montanha Mágica1,

de Thomas Mann, comporta reflexões e diálogos com as mais

diferentes civilizações e pressupostos filosóficos. Trata-se

de uma narrativa que sob a perspectiva de acontecimentos do 4Roberto Nicolato é professor do curso de Jornalismo do Uninter em Curitiba; mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.1 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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presente volta o olhar para o passado, focalizando desde o

espírito das civilizações primitivas, passando pela visão

imagética e obscurantista da Idade Média até a concepção

humanista sustentada pelos ideais de progresso e democracia

que permeiam o século XIX e início do século XX.

As diferentes vozes acabam por formular uma espécie de

“caixa de ressonância” na figura do herói Hans Castorp, um

herói em formação que a exemplo de um neófito terá de

enfrentar vários obstáculos para atingir o conhecimento, a

experiência e a sabedoria, como ocorre nos rituais de

iniciação das sociedades primitivas e nas etapas da grande

obra alquímica.

O personagem-protagonista vai funcionar como um

catalizador de pensamentos antagônicos e difusos, que

permeiam a cultura ocidental nas vozes do humanista

Setembrini, em confronto com o obscurantismo medieval de

Nafta e o universo oriental e mítico, representado pelas

figuras de Peeperkorn e Clawdia Chauchat.

O tempo presente vai estar refletido nas imagens e

pensamentos de outras épocas e civilizações, nos quais nos

são oferecidos elementos para situá-lo à luz de novas

interpretações. As reflexões sobre corpo e espírito, oriente

e ocidente, ciência e religiões (primitivas, católica ou

protestante) estão presentes em toda a obra.

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São níveis de compreensão bastante amplos, complexos e

que exigem análises pontuais. De outro modo, nossa pretensão

é realizar uma leitura de A Montanha Mágica sob o ponto de

vista da alquimia e da ciência das religiões, numa abordagem

que se pretende não reducionista e que tampouco ofereça uma

visão abrangente que dê conta de abarcar o que está contido

no livro - esforço que se traduz humanamente impossível.

Por isso, fizemos a opção por um recorte que contemple

a análise de aspectos simbólicos - sem desprezar a certeza

de que a Montanha Mágica traz complexidades de outra monta

-, ciente de que é possível promover uma leitura um tanto

específica e pontual daqueles níveis de diálogo prontamente

identificáveis com os preceitos da tradição alquímica que

surgiu nos primórdios da civilização e, afora as

experiências no campo da química propriamente dita, se

constituiu num intrincado sistema filosófico, ricamente

ilustrado pela simbologia e iconografia quando de seu

ressurgimento entre os séculos XVI e XVII.

A nossa análise recairá sobre estratos que revelem

preceitos filosóficos de culturas arcaicas em contraponto

aos mitos modernos, em páginas determinadas de A Montanha

Mágica, de aparição difusa e um pouco mais constante no

final da obra, não se constituindo elemento de primeira

grandeza sob o ponto de vista de uma leitura mais

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totalizante. Mais do que um único tratado de conteúdos

específicos, A Montanha Mágica é uma obra excepcional

justamente por ser, como já foi dito, um caleidoscópio do

pensamento humano ocidental, perpassado por laivos de um

misticismo antigo, carregado de símbolos e mitos - muitos

dos quais recorrentes em sociedades arcaicas - visto a

partir de uma Europa esfacelada em suas instituições e

valores.

Se propusemos tal recorte, penso que não seria leviano

partir de uma das últimas premissas, um tanto explícita do

narrador e estampada na última página de A Montanha Mágica:

a de que a história de Hans Castorp é uma “história

hermética”. Nesta frase, estaria o narrador (em terceira

pessoa) usando apenas uma força de expressão para dar um

colorido despretensioso à experiência do protagonista? Até

que ponto esta história está contaminada pelos preceitos do

hermetismo?

Não é nenhuma novidade o fato de que alguns dos mais

importantes nomes da literatura universal mantiveram de

alguma forma diálogo explícito ou não com os mitos da

antiguidade e com a tradição ocultista e alquímica. O poeta

francês Jean-Arthur Rimbaud é um bom exemplo. Ele mantinha

contatos com um alquimista na sua cidade natal Charleville

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(interior da França), e a contaminação de tal universo o

inspirou na produção do poema “Alquimia do Verbo”2.

Charles Baudelaire se inspirou no primeiro mandamento

da Tábua Esmeraldina, escrita por Hermes Trismegisto (que é

citado numa poema destinado ao leitor na abertura do livro

As Fores do Mal)3, para compor o poema “Correspondências”,

numa clara visão de que entre o universo (macrocosmo) e o

homem (microcosmo) existe uma correspondência mútua. O que

existe num, está presente no outro. Ou então por que não

citar os poemas ocultistas de Fernando Pessoa, reunidos em

livro homônimo publicado pela editora Aquariana, ou o

diálogo de T.S Eliot com as lendas do Rei Pescador?

Com Thomas Mann não foi diferente. Mann é uma autor de

conhecimentos múltiplos, um humanista que tanto sabia lidar

com o pensamento cientificista e racional quanto com as

estruturas arquetípicas da mitologia antiga. Não é por acaso

que carrega a alcunha de “mago de chumbo” da literatura

universal.

Este estudo pretende não apenas analisar o contraponto

que existe entre o pensamento racional/científico e as

reflexões acerca dos mitos primitivos e míticos, mas também

2 RIMBAUD, Jean-Arthur.Uma Temporada no Inferno & Iluminações. 2.ed.Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982, p63-65.3 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.99. A terceira estrofe do poema “Ao Leitor” é a seguinte: “Na almofada do mal é Satã Trismegisto/Quem docemente nosso espírito consola,/E o metal puro da vontade então se evola/Por obra desse sábio que age sem ser visto”.

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identificar os “espaços alquímicos”, a partir dos quais se

desenrolam veladamente ou de forma oculta algumas ações

presentes em A Montanha Mágica.

Neste cenário repleto de simbologias, inclusive

numérica, estará transitando o herói alemão Hans Castor, um

estudante de engenharia naval que sobe a montanha para

visitar o primo Joaquim no sanatório de Berghof, em Davos

(Suíça). A pretensão inicial de ali permanecer por apenas

três semanas acaba se transformando em sete anos de

profundas experiências existenciais e espirituais.

Durante os longos anos em que permanece na montanha

(símbolo da elevação espiritual e onde se dá o processo de

cura), Hans vai vivenciar a transformação de um jovem,

formado ao estilo burguês, para a de um homem que atinge um

grau maior de compreensão da vida.

A narrativa de A Montanha Mágica se encaminha para

formação da consciência do herói, após ter ele seguido uma

proposição que mais tarde - depois de o livro de Mann já ter

sido escrito - seria formulada por Mircea Eliade: a de que o

homem integral deve conhecer outras situações além de

condição histórica, como por exemplo “o estado de sonho, ou

de devaneio, ou o de melancolia o do desprendimento, ou da

contemplação estética, ou da evasão, etc.(…)4”.

4 ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos.São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 29.

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Além de identificar esses elementos ditos “alquímicos”

é também nossa intenção nesse trabalho realizar uma análise

do processo de iniciação de Hans Castorp a partir de

pressupostos da psicologia moderna, baseados na “teoria dos

arquéticos” e do “processo de individuação”, do psicólogo

sueco, Carl G. Jung.

Gostaríamos de esclarecer ainda que este trabalho tem a

pretensão de apenas identificar e fazer algumas reflexões e

associações com os principais conceitos da ciência

hermética, não se constituindo num estudo aprofundado em

razão da extrema complexidade que exige o presente tema a

ser analisado.

O espaço sacralizado

Um dos procedimentos narrativos utilizados por Thomas

Mann em suas obras é a antecipação. Da mesma forma que em A

Morte em Veneza4, o escritor lançará mão de tal recurso em A

Montanha Mágica para compor uma trama de inúmeras

referências simbólicas, também presentes nos sonhos e nos

diálogos entre os personagens.

4 MANN, Thomas.Tônio Kroeger. A morte em Veneza.São Paulo: Abril Cultural, 1982.

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Em O Homem e seus mitos, Carl Gustav Jung5 afirma que

os arquétipos e símbolos representam a linguagem do

inconsciente que se faz comunicar com o ser humano através

dos sonhos e, diríamos, por extensão dos devaneios. Na obra

de Mann, os sonhos são por si só fonte de grandes

revelações, como pretendemos abordar mais adiante neste

ensaio.

Por enquanto, nos é bastante lembrar que as

transformações existenciais e espirituais de Hans Castorp

são antecipadas logo no início de A Montanha Mágica num

diálogo que Setembrini (defensor do pensamento humanista e

racional) mantém com o estudante de engenharia naval no

primeiro encontro no sanatório de Berghof, em Davos.

Essa passagem nos remete aos rituais de iniciação das

sociedades arcaicas e da antiguidade clássica, ilustrada na

figura de Ulisses, herói e semi-Deus da Odisséia de Homero,

que terá de superar uma série de etapas, nas quais não

apenas a força física mas também a sabedoria serão um

passaporte de retorno à terra natal e à consequente

libertação de Penélope das mãos de indignos pretendentes.

Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, onde

5 JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira

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os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido…6.

O diálogo de Setembrini com seu interlocutor demonstra

que mais do que um ambiente de cura, a montanha se instaura

no universo da magia, no espaço do sagrado. Os homens que

viviam em sociedades arcaicas escolhiam as cidades ou se

agrupavam para construir ali um local sagrado, conforme

ensina Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano. “A Cidade

(Urbs) se situa no meio do orbis terrarum”7

A exemplo de Setembrini – que coloca a humanidade na

condição de criaturas “que caíram muito baixo”8 - Eliade vai

recuperar o mito da queda, pois que a busca do sagrado pelas

civilizações arcaicas seria uma das maneiras do homem

retornar ao paraíso perdido, com a expulsão de Adão e Eva.

De acordo com Mircea Eliade, em seu aspecto mítico, a

montanha, assim como um árvore ou um pilar, está situada no

centro do mundo, servindo de elemento de ligação entre o céu

e a terra.

Com efeito, numerosas culturas falam-nos dessas montanhas – míticas ou reais – situadas no centro do mundo: é o caso de Meru, na Índia, de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “Monte dos Países”, na

6 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.81.7 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.46.8 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.82.

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Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava aliás umbigo da terra9.

É lícito observar que o próprio título da obra de

Thomas Mann A Montanha Mágica contém em si algo além da

visão cientificista, moldada nos ideais de progresso e

personificada na figura do italiano Setembrini, um dos

responsáveis pelo “aprendizado” de Hans Castorp.

Diferentemente da planície, o sanatório de Berghof é um

espaço de “isolamento contemplativo” em relação à realidade

social que se passa lá embaixo, pois ali os personagens,

mais do que agentes do processo, acompanham o desenrolar da

história universal, sem participar dela ativamente. Como

espaço da magia, está situado além do tempo humano, pois se

anuncia e realiza à margem dos fatos, da historicidade.

Mas se os habitantes de Berghof estão pouco sujeitos ao

tempo histórico como os moradores da planície, de outro modo

eles permanecem mais vuneráveis ao desenrolar do tempo

psicológico e sobretudo místico que, na opinião de Eliade,

“é a verdadeira fonte de todo o ser e de todo acontecimento

cósmico”10.

9 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 39.10 _.Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.58.

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O personagem Hans Castor, por exemplo, vai se

conscientizar de que a montanha é um espaço sagrado no final

do quarto capítulo de A Montanha Mágica:

(…)Começara a adquirir a seus próprios olhos um quê de intangibilidade sagrada e natural, tanto assim que a vida lá de baixo, na baixada, vista assim de cima, se lhe afigurava quase anormal e errada11.

Se a imagem do mundo tem um centro – toda região

habitada pelo ser humano conforme nos ensinam os mitos mais

antigos - o sagrado também se manifesta em vários outros

centros não menos significativos no Sanatório de Berghof,

caracterizados como espaços sagrados ou alquímicos, e que

também podem ser plenamente identificáveis no romance de

Thomas Mann. A começar pelo restaurante do sanatório, onde a

numerologia estabelece estreita relação entre o espaço do

cotidiano e dos afazeres domésticos com aquele que adquire

um sentido mítico e alquímico.

Durante toda a sua estada no Sanatório de Berghof,

Castorp tomará assento nas sete mesas do restaurante. A

descrição de uma das cenas sobre a relação entre os hóspedes

e o restaurante, de pronto já confere um sentido secular de

imobilidade, com a impressão do protagonista se dando no

nível da irracionalidade:

11 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2000, p.203.

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Os hóspedes vinham afluindo por ambas as entradas. Entravam também pelas portas do avarandado, que estavam abertas. Dentro de pouco tempo, todos se encontravam sentados em torno das sete mesas, como se nunca se tivessem levantado. Tal era, pelo menos, a impressão de Hans Castorp – impressão puramente fantástica e irracional(…)12.

Na realidade, o número 7 é bastante recorrente em toda

A Montanha Mágica a exemplo do número 3. Logo no início da

obra, já nos damos conta de que Hans Castorp tem a

pretensão de permanecer por três semanas em Berghof, tempo

em que estará visitando o seu primo Joaquim. No final,

acabará permanecendo sete anos no local. Também não é

gratuito o fato de A Montanha Mágica ser estruturada em sete

capítulos (Hermes Trismegisto, considerado o pai espiritual

da alquimia, teria escrito uma obra intitulada o Livro dos

Sete Capítulos).

Na obra de Thomas Mann, não é possível dissociar o

espaço do tempo e da numerologia que podem ser explicados à

luz de alguns pressupostos da alquimia, “arte” que sempre

existiu em lugares tão distantes quanto o Próximo e o

Extremo Oriente (especialmente na China) como no Ocidente,

desde meados do último milênio a.C.

O que se sabe é que a origem da alquimia remonta ao

tempo do Egito antigo, onde era praticada pelos sacerdotes,

12 Idem, p. 105. Grifos são meus.

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e que tem como fundador reconhecido Hermes Trismegisto, “o

três vezes grande Hermes”. Esse deus do antigo Egito também

é chamado pelos gregos de Thot. Trata-se de um deus que

regia as artes e as ciências sagradas.

Segundo os estudiosos dessa tradição, não existem

documentos referentes à primeira civilização egípcia,

levando nos a crer que os conhecimentos alquímicos se

sobreviveram graças à transmissão oral.

“Assim sendo, é perfeitamente natural que o chamado Corpus

Hermeticum, o qual abarca todos os textos atribuídos a

Hermes-Thot, tenha chegado até nós em língua grega e

redigido num estilo mais ou menos platônico”12.

Um dos textos mais representantivos do chamado Corpus

Hermeticum é a Tábua Esmeraldina composta de 12 mandamentos,

dos quais o primeiro instaura a teoria das correspondências:

“Na verdade, decerto e sem dúvida: Quando se pretende obrar

os milagres de uma coisa, o debaixo é igual ao de cima e o

de cima é igual ao de baixo”13.

O principal propósito da alquimia era a produção da

Pedra Filosofal, também conhecida como elixir ou tintura,

utilizada para transformar um metal inferior em ouro. Para

Carl Jung, - teórico que recuperou os pressupostos

12 BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p.21.13 Idem, p.201.

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filosóficos alquímicos para promover uma análise exaustiva e

associativa dos conteúdos simbólicos dos sonhos – jamais foi

produzida “uma tintura ou ouro artificial durante todos

esses séculos de intenso labor”14.

Aliás, Jung julgou encontrar nas imagens alquímicas a

confirmação da sua tese do “inconsciente coletivo”, assim

como nas representações míticas e arquetípicas que

constituíram o legado das civilizações antigas à humanidade.

A alquimia entrou em declínio no quinto e sexto séculos

depois de Cristo, ficando restrita ao mundo árabe. No

entanto, essa “arte” ressurgiu com grande intensidade nos

séculos XVI e XVII nos países europeus. “Com a adoção da

ideologia grega pelo Renascimento, irrompeu no Ocidente uma

nova vaga de alquimia Bizantina”15. De acordo com Titus

Burckhardt, as obras passaram a circular na forma de

manuscritos mais ou menos secretos.

Além disso, inspirou a produção de uma rica

iconografia, demonstrada no livro Alquimia e Psicologia de

Carl Jung. Mas na medida em que o pensamento ocidental

tendia a tornar-se mais racionalista e humanista, a

alquimia entrou em decadência, contribuindo também nesse

sentido o advento da química moderna.

14 JUNG. Carl G. Psicologia e Alquimia.2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p.253.15 BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p. 24.

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Retornando à composição do espaço mítico e simbólico em

A Montanha Mágica, a certa altura da narrativa o sanatório é

apresentado ao leitor sob o signo de uma bandeira que

tremula no jardim, adornada com um caduceu16, símbolo que

foi apropriado pelas ciências médicas e que para a alquimia

significava o bastão de Hermes (Mercúrio), composto por duas

serpentes enroladas em torno de um eixo, o eixo do mundo.

Quanto à riqueza simbólica da numerologia de A Montanha

Mágica, vale ressaltar que é bastante representativo o

número 34 do quarto do protagonista Hans Castorp. O próprio

autor evidencia isso ao escolher a expressão “Número 34”17

como um dos subtítulos do primeiro capítulo do livro.

À luz da ciência hermética, o 3 tanto pode representar

a trindade alquímica – composta por Mercúrio, sob a forma do

deus da revelação e que corresponde a Hermes Trismegisto,

juntamente com o rei e o filho do rei – como as três etapas

principais da obra: o enegrecimento, embranquecimento e

enrubescimento, embora na sua origem o processo alquímico

compreendesse quatro etapas.

Em Psicologia e Alquimia, Jung diz que nas cores

mencionadas por Heráclito também era citado o amarelo

(amarelecimento),formando assim a “tetrametria da

16 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 110.17 Idem, p.17.

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filosofia”. Mais tarde, nos séculos XV e XVI, as cores

teriam sido reduzidas a três com o amarelo caindo em

desuso18.

De outra forma, os sete signos planetários (Sol, Lua,

Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno) são formados por

três figuras básicas: o círculo, o semicírculo e a cruz.

“Uma vez que o círculo é também o signo do Sol e o

semicírculo o da Lua, ambas as figuras podem ser

consideradas quanto imagens do disco solar e da meia-lua,

respectivamente”19.

Por sua vez, o número 4 corresponde aos quatro

elementos (terra, água, fogo e ar), que formam todas as

substâncias do universo, e mencionados pela primeira vez

pelo filósofo grego Empédocles, cerca de 450 anos antes de

cristo. Essa teoria, segundo Cherry Gilchrist em A Alquimia

e seus mistérios, também teria sido formulada por

Aristóteles (350 a.C), tendo influência na Europa até surgir

a nova era da ciência, no século XVII. “Aristóteles

sustentava que cada elemento era composto de duas

qualidades, existindo ao todo quatro qualidades: quente,

seco, úmido e frio”20. O éter, no qual os quatro elementos

18 JUNG, Carl G. Psicologia e Alquimia.2.ed.Petrópolis:Vozes, 1994, p.241.19BURCKHARDT, Titus.Alquimia.Lisboa:Publicações Dom Quixote, 1991, p. 77.20 GILCHRIST, Cherry. A alquimia e seus mistérios.2.ed.São Paulo: IBRASA, 1993, p.32.

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(terra, água, fogo e ar) se acham presentes, representa a

quintessência.

É interessante observar que o somatório de 3 e 4

resulta no número 7, e que os sete planetas são

correspondentes aos seguintes metais no universo da

alquimia: Sol/ouro, Lua/prata, Mercúrio/mercúrio,

Vênus/cobre, Marte/ferro, Júpiter/estanho e Saturno/chumbo.

A simbologia do sete (total de integrantes do grupo liderado

por Peeperkorn que faz uma excursão à cachoeira) também nos

remete aos sete andares que representavam os sete céus

planetários – nos Mistérios de Mitra cada degrau é feito de

um metal diferente -, através dos quais o sacerdote ascendia

ao cume do universo.

No livro Psicologia e Alquimia, uma das ilustrações21

nos revela a “Montanha dos Adeptos”, ou o templo dos sábios,

iluminado pelo sol e pela lua e que se ergue sobre os sete

patamares. O templo fica oculto na montanha, alusão ao fato

de a pedra do filósofo encontrar-se dentro da terra, de onde

deve ser extraída e purificada.

Em A Montanha Mágica, o espaço alquímico ainda pode ser

identificado na “caverna analítica” do dr. Krokowski que

aparece nos sonhos de Castorp como o “dissecador de

21 JUNG, Carl. G. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p.207.

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almas”22, ou aquele que celebra a iluminação do inconsciente

e, cujas palestras proferidas para os internos do sanatório,

vão ganhar contornos cada vez mais “misteriosos” no decorrer

da história.

A certa altura da narrativa, as conversas reservadas

entre o herói Hans Castorp e o dr. Krokowski vão atrair a

curiosidade de Joaquim. O narrador traça algumas conjecturas

a respeito dos assuntos tratados, que tanto pode ser a

doença como forma desonrosa da vida, como de degeneração

desonrosa do imaterial, como entendia Hans, ou sobre o amor

como fator patogênico, então um dos temas da conferência do

médico.

Entretanto, mais do que esclarecer o leitor, a

narrativa encobre com uma cortina de mistério outra

descoberta feita por Joachim da relação um tanto estranha de

Hans para com Krokowski: “Em compensação, porém, fizera

Joachim outra descoberta, justamente a que ele julgava uma

traição da parte de Hans Castrop”. Neste caso específico,

Joachim tratava justamente das visitas, também

desconhecidas, que o primo fazia ao médico:

E quando ressoou do calabouço o barítono do dono do gabinete, dizendo “Entre!”, com um estalo exótico do “r” e com um som desfigurado das vogais, Joachim viu

22 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.127

Page 19: Alquimia em thomas mann

como primo desaparecia na penumbra da caverna analítica do dr. Krokowski23.

Na narrativa de Thomas Mann não há alusão de que esses

encontros entre Hans e o médico tenham algum carácter de

conhecimento alquímico ou místico, embora simbolicamente a

iniciação consista na morte e ressurreição do neófito, ou em

outras palavras, na descida aos infernos (caverna), seguida

da ascensão ao ceú. É importante notar que dali em diante as

palestras do dr. Krokowski vão rumar para o hiponotismo,

sonambolismo e para as coisas ocultas, culminando com as

sessões com Ellen Brand no calabouço analítico.

De outra forma, após esses contatos com o dr. Krokowski

Hans passará a se ocupar de estudos científicos e a se

interessar de maneira mais explícita por astrologia e

rituais de antigas civilizações, como a dos caldeus. “Aquele

velho povo de magos, de origem árabe e semítica, sumamente

versado em astrologia e profecias”24. A experiências e a

busca de desses conhecimentos por parte de Hans, no entanto,

vão contar com a reprovação do primo Joaquim.

Ainda nesse diálogo com Joachim, Hans diz ao seu

interlocutor que todo seu aprendizado poderia lhe ser útil

durante a guerra, sem perceber que ele próprio (Hans)

estaria destinado a lutar no campo de batalha após receber

23 Idem p. 501.24 Ibidem p.505.

Page 20: Alquimia em thomas mann

alta do sanatório25. Vale ressaltar que o alquimista

necessita aspirar as alturas, de onde contempla o céu e o

mar e as criaturas, para depois voltar a terra e realizar a

grande obra26.

Ritos de passagem

O psicólogo sueco Carl Jung confere aos sonhos e às

imagens simbólicas do inconsciente grande relevância no

sentido de conhecer e entender a organização psíquica da

personalidade global de um indivíduo. Para ele, o

inconsciente não é um “quarto de despejo” dos desejos

recalcados (conforme a tese freudiana), mas um mundo de

conteúdos arquetípicos comuns a toda a humanidade e que

utilizam os sonhos como meios de comunicação.

Na sua concepção, apesar da evolução psíquica do homem

moderno, os conteúdos do inconsciente ainda se parecem com

os produtos da mente do homem primitivo. Daí a formulação da

teoria dos arquétipos - imagens psíquicas do chamado

inconsciente coletivo - que muitas vezes se relacionam com

o universo da alquimia, através da manifestação de símbolos

25 Ibidem, idem p.507.26 GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus mistérios. 2.ed. São Paulo: IBRASA, 1993, p.113.

Page 21: Alquimia em thomas mann

como o círculo, o rei e a rainha, a águia e a cruz, entre

outros.

Em sua atividade como psicólogo, Jung chegou a analisar

cerca de 80 mil sonhos, os quais, na sua concepção, obedecem

uma determinada configuração ou esquema devido à recorrência

de seus conteúdos. É o que ele chama de processo de

individuação, “pelo qual o consciente e inconsciente do

indivíduo aprendem a conhecer, respeitar e acomodar um ao

outro”27.

A grosso modo, Carl Jung entende que o sistema psíquico

comporta “um centro organizador” da psique do indivíduo que

atua como fonte das imagens oníricas – também responsável

pelo amadurecimento da personalidade - e que ele chamou de

self:

Mas este aspecto mais rico e mais total da psique aparece, de início, apenas como uma possibilidade inata. Pode emergir de maneira insuficiente ou então desenvolver-se de modo quase completo ao longo da nossa existência; o quanto vai evoluir depende do desejo do ego de ouvir ou não suas mensagens28.

É o ego que ilumina o sistema inteiro, e ajuda a

realizar a totalidade da psique. Na realidade, o

amadurecimento da psique pode ser comparado, no universo da

27 JUNG. Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.28 Idem p.162.

Page 22: Alquimia em thomas mann

ciência hermética, à passagem do estado bruto da primeira

matéria ao da perfeição (o ouro). Os símbolos da alquimia e

os mitos primitivos vão povoar os sonhos, muitas vezes

recorrentes, durante todo o processo de desenvolvimento

psíquico do personagem Hans Castorp em A Montanha Mágica.

Logo nos primeiros dias no sanatório, Hans terá um

sonho, recorrente em outros capítulos, e que se traduz numa

das passagens mais significativas de A Montanha Mágica. A

manifestação é uma espécie de chave para compreender o

processo de individuação e de “iniciação” do protagonista na

“arte” da alquimia.

No sonho, o herói pede emprestado um lápis para a russa Mme

Chauchat. Diz o narrador: “Ela deu-lhe uma lapiseira de

prata, que continha um lápis pintado de vermelho, gasto até

a metade, e recomendou a Hans Castorp, numa voz

agradavelmente velada que o devolvesse sem falta após a

aula”29.

Cena semelhante é descrita pelo narrador mais adiante,

num dos passeios do protagonista pelos arredores sanatório e

durante o qual a doença já começa a se manifestar. Hans é

transportado de súbito, numa espécie de devaneio, para uma

fase remota de sua vida, quando tinha apenas 13 anos de

idade, e a exemplo de Chauchat e ele vai pedir um lápis

29 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 126. Grifo meu.

Page 23: Alquimia em thomas mann

emprestado ao companheiro de colégio, Pribslav Hippe, um

garoto estranho que entre os colegas, tem o apelido de

“Quirguiz” (povo de origem turca que habita a Rússia

asiática: “(…) tirou do bolso uma lapiseira prateada, com um

anel que se devia empurrar para cima, para que o lápis

vermelho apontasse do tubo metálico”30.

É importante notar que além da situação semelhante,

algumas características físicas de Hippe são idênticas à de

Mme Chauchat como a voz velada e rouca, as maçãs salientes

do rosto e os olhos que se perdiam “trevas misteriosas”31. A

descrição da amada de Hans, na verdade, é também a de uma

figura masculina e na própria concepção do protagonista

Hippe e Chauchat são no fundo uma mesma pessoa (como

poderemos ver um pouco mais adiante).

Conforme Jung, na alquimia, Hermes-Mercúrio, enquanto

deus ctônico da manifestação espírito de mercúrio, possuía

uma natureza dupla e era considerado um hermafrodita. Tanto

podia trazer a boa sorte como a perdição dos alquimistas:

Enquanto planeta Mercúrio ele é o mais próximo do sol,

o que indica também sua maior afinidade com o ouro.

Enquanto metal, o mercúrio dissolve o ouro e apaga o

seu brilho solar. Durante toda a Idade Média constituiu

o objeto misterioso da especulação dos filósofos da

30 Idem p.166.31 Ibidem p.167.

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natureza: ora era um espírito serviçal e útil (paredos:

literalmente, o assistente e o companheiro) ou

“familiaris” (espírito familiar); ora era o `servus` ou

o `cervus fugitivus`(o escravo ou o cervo fugitivo), um

duende que leva os alquimistas ao desespero, evasivo,

enganador e trocista, multiplicidade de atributos que

tinha em comum com o diabo; citemos dentre eles, o

dragão, o leão, a águia, o corvo, que são os

principais. Na hierarquia alquímica dos deuses, ele é o

mais baixo, como `prima materia`, e o mais alto, como

`lapis philosophorum`32.

O processo de iniciação de Hans Castorp em busca do

conhecimento supremo passa necessariamente por uma busca

interior, pelo processo de reconhecimento do verdadeiro eu,

cujos pegadas encontram-se nas imagens simbólicas que o

levam de volta à infância durante o passeio acima citado:

“(…) ao passo que o verdadeiro Hans Castorp se encontrava

longe dali, num ambiente e numa época muito distantes

(…)”33.

Como no processo de individuação, as imagens simbólicas

do inconsciente de Hans comunicadas através dos sonhos vão

ganhar “forma”, tornar-se palpável, real, durante os

festejos de Carnaval e quando do seu primeiro encontro

propriamente dito com Mme Chauchat. O Carnaval não só

32 JUNG, Carl. G. Psicologia e Alquimia.2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 75.33 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 165.

Page 25: Alquimia em thomas mann

recupera de alguma maneira os antigos rituais de renovação

como também coloca em suspensão as convenções no tempo e

espaço permitindo o encontro de Hans e Chauchat.

Agora, e não mais em sonho, o protogonista vai pedir-

lhe de fato um lápis emprestado para realizar um desenho

como parte de uma brincadeira que envolve os hóspedes do

Sanatório. Apesar de real, o lápis não será tão verdadeiro

quanto aquele que aparece nas imagens do inconsciente, mas é

suficiente para fechar um ciclo e provocar grande

transformações na vida de Hans Castorp:

Enquanto isso, remexia a bolsinha de couro vendo se descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma minúscula lapiseira de prata, frágil e fininha, artigo de fantasia inútil para o trabalho sério. O lápis de outrora, o primeiro, fora diferente, mais prático e mais autêntico34.

Metaforicamente, o lápis, a exemplo do opus (obra) no

processo alquímico, possibilitará uma “nova criação”, qual

seja o desenho. O objetivo do alquimista é ativar um

processo de transformação de uma primeira substância ou

prima materia (conhecida por todos, mas reconhecida apenas

pelos sábios) numa outra substância, desta vez mais de

grande valor, qual seja a pedra filosofal, tida como a chave

de todo o conhecimento.

34 Idem p. 456.

Page 26: Alquimia em thomas mann

Essa transformação também se assemelha à criação do

mundo e pode ser observada pelo alquimista no vaso

(cadinho), que se traduz numa espécie de universo em

miniatura.

Conforme observa Carl Jung em Psicologia e Alquimia,

Zózimo (que pertence ao século III) cita em seu trabalho Da

arte da interpretação uma das mais antigas autoridades da

alquimia: Ostanes, que viveu no limiar da história e já era

conhecido por Plínio. Segundo Jung, Ostanes teria dito o

seguinte:

Vai até as correnteza do Nilo e lá encontrarás uma

pedra que tem espírito. Toma-a, dividia-a e enfia tua

mão dentro dela para extrair-lhe o coração, pois sua

alma reside em seu coração35.

Segundo Jung, esta matéria-espírito é como o mercúrio

que deve se encontrar invisivelmente dentro dos minérios e

que deve em primeiro lugar ser expulso a fim de ser

recuperado “in substantia”. “Mas assim que se possui esse

mercúrio penetrante é possível `projetá-lo` em outros

corpos, fazendo-os passar de um estado imperfeito para o

estado perfeito”36

35 JUNG Carl. G. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 305.36 Ibidem p. 307.

Page 27: Alquimia em thomas mann

Ainda de acordo com Jung, o opus provém de uma só

coisa, devendo retornar ao uno, sendo uma espécie de

movimento circular, a do dragão que morde a própria cauda

(Uróboro). Por isso, muitas vezes, o opus é chamado de

circulare, ou roda. Mercúrio como símbolo unificador dos

opostos é o início e o fim da obra. “É a `prima materia`, o

´caput corvi`, a `nigredo´. Como dragão, devora-se a si

mesmo e como dragão morre para ressuscitar sob a forma do

lapis”37.

De qualquer forma, a prima materia, que não é

totalmente explicitada pelos teóricos da alqumia, é

submetida a um tratamento químico e sua forma exterior

precisa ser destruída pelo fogo (morte) para que sejam

liberados os princípios masculinos e femininos e que serão

reunidos num estágio simbolicamente chamado de casamento do

Rei(ouro) e da Rainha (prata). Essa etapa é conhecida como

“nigredo” ou enegrecimento.

Depois desse processo, a “alma” da matéria ainda

continuará no vaso e vai passar por um processo de

ressurreição, de cores iridescentes chamado de Calda do

Pavão. “A criança oriunda da união (…) se desenvolve até

“embranquecer”, indicando que o Elixir está prefeito em seu

37 Ibidem, idem p. 305.

Page 28: Alquimia em thomas mann

primeiro grau”38. Trata-se de uma fase capaz de transmutar

metais em prata. A fase seguinte e final é o enrubescimento,

ou seja o avermelhar-se do elixir e a sua transformação em

ouro.

Após o encontro com Claudia Chauchat durante o Carnaval

(logo após ela deixa o sanatório), Hans Castorp passará a se

interessar por leituras científicas (botânica, química e

física) e pelos assuntos de natureza mítica. Propositalmente

ou não, o sexto capítulo começa com o título

“Transformações”39 e é justamente nele que Joachim vai

constatar as visitas de Hans à caverna analítica do dr.

Krokowski.

Além disso, um termo estranho, segundo o narrador, vai

ser utilizado para designar essa nova ocupação do seu

intelecto, e que nos remete a Mercúrio ou alquimista de

pensamentos, o deus que rege:

Chamava-a “reger”, servia-se dessa denominação de um brinquedo pueril, palavra da sua infância, para aplicá-la a uma distração que lhe era cara, ainda que andasse acompanhada de terror, de vertigens, de toda espécie de tumultos do seu coração e aumentasse o calor que lhe abrasava o rosto40.

38 CILCHRIST, Cherry. A alquimia e seus mistérios. 2.ed.São Paulo: IBRASA, 1993, p. 19.39 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 470.40 Idem p.532.Grifo meu.

Page 29: Alquimia em thomas mann

Com a chegada do solstício de verão (termo místico),

também é introduzido na narrativa o personagem Nafta, um

judeu jesuíta, que segundo Castorp “tem qualquer coisa de

ocultista”41. Hans passa a se interessar pelo esquisito

Nafta, que também vai funcionar como “educador” na

pedagogia-hermética vivenciada pelo protagonista, embora não

tão representativo quanto Setembrini, responsável pela

formação humanística e “racional” do herói.

Na verdade, o que está em jogo na formação de Hans são

os princípios da razão e do progresso em contraponto ao

mundo dos símbolos, mitos arcaicos e do irracionalismo.

Setembrini acredita na “confraternização geral dos povos sob

o signo da razão, da ciência e do direito”42 e chega

inclusive a pensar guerra como uma maneira de livrar a

humanidade da superstição, do sensualismo e do misticismo,

representados por Chauchat e Peeperkorn, e da misantropia

medieval de Nafta.

No decorrer da narrativa, Setembrini e Nafta vão travar

violentas discussões filosóficas, algumas delas pontuadas

por assuntos referentes ao ocultismo e a alquimia, temas em

que Nafta vai demonstrar grande conhecimento.

A pedagogia hermética de Hans se completa com a chegada

e a partida (morte) de Peeperkorn, companheiro de viagem de

41 Ibidem p.526.42 Ibidem, idem p.216.

Page 30: Alquimia em thomas mann

Mme Chauchat, no sétimo e último capítulo de A Montanha

Mágica. A figura de Peeperkorn se assemelha a um deus pagão

dionísio/baco e é descrito como “(…)um sacerdote idoso de um

culto estranho, que dançasse diante do altar de sacrifícios,

arregaçando a vestimenta com uma graça esquisita”43.

Como um profeta e com uma certa ascendência sobre os

demais “educadores” do protagonista, Peeperkorn vai

profetizar em termos símbólicos a ocorrência da guerra

pronta para explodir:

Chamo a sua atenção – prosseguia o holandês – para as

alturas, essas grandes alturas, onde gira aquele ponto

negro, no meio desse esquisito azul que puxa para

preto… É uma ave de rapina, uma enorme ave de rapina.

(…)A águia, senhores, a ave de Júpiter, o rei da sua

estirpe, o leão dos ares! Usa calças de plumas e um

bico de ferro (…) Desce! Crava o bico de aço na cabeça

e nos olhos do homem, dilacera-lhe o ventre, àquela

criatura que Deus te…44

Como já vimos anteriormente, a figura do leão e da

águia na alquimia podem representar o lado negro de

Mercúrio, o diabo trocista e enganador.

Ao final de sua permanência no sanatório de Banghof,

Hans Castorp manterá um diálogo com Mme Chauchat que muito

43 Ibidem, idem p.783.44 Ibidem, idem p.812.

Page 31: Alquimia em thomas mann

bem demonstra seus “pensamentos alquimicamente

desenvolvidos”45 e o amadurecimento de sua psique por conta

de ter atingido o processo de individuação concebido pelo

psicólogo Carl Jung:

Numa palavra, talvez não saibas que existe uma coisa que se chama pedagogia alquimístico-hermética, a transubstanciação, rumo aos mais sublimes, e por conseguinte uma ascensão, se bem me compreendes. Mas é óbvio que a matéria susceptível de ser impelida e empurrada, por influências exteriores, em direção a uma esfera mais elevada, necessita para isso ter certas qualidades próprias. E quanto às qualidades que eu possuía, sei muito bem que eram as seguintes: desde muito tempo estava familiarizado com a doença e com a morte, e já nos meus tempos de menino cometi o disparate de ti pedir emprestado um lápis, tal como se deu aqui naquela noite de Carnaval. Mas o amor disparatado é genial, pois a morte – sabes? – é o princípio genial, a res bina, o lapis philosophorum e é também o princípio pedagógico, uma vez que o amor a ela conduz o amor à vida e ao homem. (…) Há dois caminhos que conduzem à vida: um é o caminho ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e esse é o caminho genial46.

Nota-se que neste texto ao usar a expressão “ti pedir

emprestado”, o próprio herói acaba revelando que Chauchat e

Hippe, no fundo, simbolizam a mesma pessoa. Para Mircea

Eliade47, a iniciação comporta uma tripla revelação: a do

sagrado, a da morte e da sexualidade. Esta última

45 Ibidem, idem p.899.46 Ibidem, idem p.819.47 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.153.

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representada pela amor/desejo de Hans Castorp por Mme

Chauchat.

Resumindo, num nível simbólico, o herói vai cumprir as

três etapas da obra nas aventuras alquimísticas da matéria e

do espírito. A fase do enegrecimento se dá no início quando

o herói vai se deparar com a morte física, tanto na dos

hóspedes quanto na da sua própria pessoa, durante os exames

na sala escura de Behrens:

Terminada a radioscopia, teve ainda a amabilidade de permitir que o paciente, a seus rogos insistentes, contemplasse a própria mão através do anteparo luminoso. (…) viu a carne em que vivia, solubilizada, aniquilada, reduzida a uma névoa inconsistente… (…) e pela primeira vez na vida compreendeu que estava destinado a morrer48.

A decomposição e putrefação da matéria e a morte do

espírito é necessária para atingir um grau maior de

consciência e sabedoria..A etapa do embranquecimento da obra

pode ser expressa simbolicamente na tempestade de neve49 que

o herói precisará enfrentar ao se perder nos arredores de

Berghof. E por fim, a última etapa, a do enrubescimento, é

representada pela “animada sala de partos, banhada de luz

48 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 300.49 Idem 638.

Page 33: Alquimia em thomas mann

vermelha”50, onde é realizada a sessão espiritual com Ellen

Brand no calabouço analítico do dr. Krokowski.

A médium é descrita como uma parturiente, tendo Hans ao

seu lado como marido. O objetivo da sessão é o

reaparecimento do falecido Joachim. No momento em que o

primo vai “surgir” das trevas vermelhas, Hans se

conscientiza de que o seu processo de iniciação havia

chegado ao seu limite e que estava indo longe demais no seu

aprendizado. Pediu desculpas ao primo, em murmúrio, e numa

manobra rápida acendeu a luz do lustre51.

A atitude de acender a luz lembra uma outra passagem de

A Montanha Mágica em que Setembrini também acende a luz do

quarto de Hans. Seria a luz da razão tão necessária no

momento em que a humanidade parecia estar completamente

submersa no mundo das trevas e caminhando para uma grande

guerra?. Ou então seria mais compreensível recorrermos ao

próprio Thomas Mann, para quem há determinados aspectos da

vida em que devemos manter um distanciamento respeitoso…

Conclusão

50 Ibidem p. 932.51 Ibidem, idem p. 939.

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No romance A Montanha Mágica, o conhecimento alquímico

é um agente transformador, uma porta que se abre para que o

herói Hans Castorp possa encarar a vida em suas múltiplas

experiências e em todas as direções. Na base desse despertar

da consciência suprema, o protagonista vai trilhar o caminho

da liberdade e dos pressupostos éticos.

Ele terá que passar por uma série de provas, reiteradas

pela morte e ressurreição, tanto da matéria como do

espírito. O processo de “racionalização” das imagens mais

remotas do insconsciente assume neste espaço sacralizado,

que é a montanha (sanatório de Davos), uma espécie de “cura”

ou de concretude das diferentes etapa da iniciação.

A exemplo de Friedrich Nietzsche e Carl G. Jung, o

escritor alemão Thomas Mann vai trazer para o início da

modernidade, marcado pelos ideais do progresso e da ciência,

a necessidade premente de se dialogar com os mitos arcaicos

que não somente constituem um patrimônio da humanidade como

também um espelho oculto, de algum lugar a nos refletir.

Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche vai evocar as

origens dionisíacas da tragédia grega em contraponto à

metafísica de Socrátes e Carl Jung vai propor a “iluminação”

do insconciente coletivo como uma das metas para alcançar o

desenvolvimento psiquíco do indivíduo.

Page 35: Alquimia em thomas mann

Por mais que a sociedade moderna acredite no homem

radicalmente desmitificado, ele ainda carrega “ uma

mitologia camuflada” e repleta de “ritualismos degradados”,

conforme a concepção do estudioso das religiões Mircea

Eliade: “os festejos que acompanham o Ano Novo ou a

instalação numa casa nova apresentam, ainda que laicizada, a

estrutura de um ritual de renovação”52.

Para Eliade, o cosmo totalmente dessacralizado é uma

descoberta recente na história do espírito humano. Mas se a

maior parte das situações simbólicas assumidas pelo homem

religioso das sociedades primitivas e civilizações arcaicas

foram ultrapassadas pelo racionalismo dos tempos modernos,

elas não desapareceram sem deixar vestígios: “contribuíram

para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte,

portanto, da nossa própria história”53.

Referências Bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1985.

52 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 166.53 Idem p.164.

Page 36: Alquimia em thomas mann

BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom

Quixote, 1991.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins

Fontes, 1996.

_.O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus Mistérios. São Paulo:

IBRASA, 1993.

JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira.

_. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994.

MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2000.

_.Tônio Kroeger; A Morte em Veneza. São Paulo: Abril

Cultural, 1992.

RIMBAUD, Jean-Arthur. Uma Temporada no Inferno &

Iluminações. Rio de Janeiro: Franciso Alves, 1982.