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Tó Trips Thomas Mann Xeg Alastair Campbell Serralves Ricardo Menéndez Salmón www.ipsilon.pt Sexta-feira 29 Maio 2009 DANIEL ROCHAESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 6996 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Carminho Como é que uma garota pode ter tanto fado?

Como é que uma garota pode ter tanto fado? Carminhofonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/090529Ipsilon.pdfTó Trips Thomas Mann Xeg Alastair Campbell Serralves Ricardo

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Sexta-feira 29 Maio 2009

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Como é que uma garota pode ter tanto fado?

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Depois de a polémica londrina ter irradiado rapidamente para o resto do mundo (da arte), Daniel Bourriaud, um dos fundadores do conhecido Palais de Tokyo, de Paris, agora curador da Tate, vem ao “Próximo Futuro”, o novo programa de arte da Fundação Calouste Gulbenkian, falar sobre o que é a Altermodernidade. É a nova era em que ele acredita que entrámos na sequência da mais recente crise financeira, marcada por novos tipos de nomadismos e sucessora de um pós-modernismo eurocêntrico e há muito defunto, diz. Tese com mais detractores do que defensores, é uma conferência (23 de Junho às 18h30) a prometer debate. Mas nem só de conferências se faz “Próximo Futuro”, em 2010 e 2011 deverá começar a ter produções próprias nas várias áreas de criação mas, que, para já, se apresenta em versão

condensada, como plano de intenções. Num mês, entre finais de Junho e Julho, a nova ordem mundial, com protagonistas como África, a América do Sul e as Caraíbas, descobre-se via música - o Group Doueh, do Sara Ocidental (21 de Junho às 19h), Dema e a sua Orquestra Petitera, de Buenos Aires (28 de Junho às 19h)... - mas descobre-se sobretudo na tela, com cinema, cinema ao ar livre, no Anfiteatro dos jardins da fundação. A velocidade, que tem estado no centro das preocupações do filósofo e ensaísta francês Paul Virilio, está também no centro de “Penser La Vitesse”, documentário realizado no ano passado por Stéphane Paoli a convite do canal de televisão Arte (Virilio fala desta forma de ubiquidade, deste estar aqui ao mesmo tempo que ali, que a Internet veio permitir, levantando todo o tipo de

novos problemas - 8 de Julho, às 22h). Será o equivalente cinematográfico à conferência de Daniel Bourriaud, parte de um programa que tem ainda filmes da Argentina, do Brasil, do Uruguai e do Mali. “Este novo programa significa que continuaremos a dar particular atenção às mudanças culturais que acontecem no mundo contemporâneo”, escreve Emílio Rui Vilar, o presidente da fundação, no jornal do programa que será também plataforma de criação (no número 01 um projecto do artista plástico Lawrence Lemaoana). “Quando a conjuntura que vivemos nos obriga a repensar comportamentos na procura responsável de novos modelos de sustentabilidade, a vibrante vitalidade de experiências de sociedades emergentes pode ser a lufada de ar fresco ‘portadora de futuro’”, conclui.

Director José Manuel FernandesEditores Vasco Câmara, Joana Gorjão Henriques (adjunta)Conselho editorial Isabel Coutinho, Inês Nadais, Óscar Faria, Cristina Fernandes, Vítor Belanciano Design Mark Porter, Simon Esterson, Kuchar SwaraDirectora de arte Sónia MatosDesigners Ana Carvalho,Carla Noronha, Jorge Guimarães, Mariana SoaresE-mail: [email protected]

Ficha Técnica

SumárioCarminho 6Ouçam-na cantar: voz tremenda, pura força da natureza

Tó Trips 12Desta vez a solo

Xeg 14Cinco anos depois, o regresso de um dos bons MC portugueses

Serralves 18Passados 10 anos, a nova exposição da colecção

A Montanha Mágica 22Como se Thomas Mann tivesse escrito em português

Alastair Campbell 26O outro lado dos anos Blair

África, América do Sul e Caraíbas durante um mês na Gulbenkian

Piloto é o convidado de honra da Book Expo America 2009

O convidado de honra da Book Expo America 2009 (BEA), desde ontem a decorrer em Nova Iorque, é o capitão Sullenberger, o piloto que no dia 15 de Janeiro aterrou de emergência no rio Hudson salvando a vida das 115 pessoas que iam a bordo do voo 1549 da US Airways. O capitão Sullenberger irá fazer uma conferência no sábado à tarde e depois participar numa sessão de autógrafos na maior feira dedicada ao sector livreiro nos Estados Unidos. Nos anos anteriores os convidados especiais foram Jeff Bezos da Amazon (em 2008) e Alan Greenspan (em 2007). O capitão Sullenberger é convidado pela William Morrow, chancela da HarperCollins Publishers, onde irão ser publicados dois livros seus. O primeiro irá para as livrarias norte-americanas no final deste ano e conta a história da sua vida (desde a infância até agora). Nele o piloto falará das “lições” que apreendeu ao longo da vida e como estas o ajudaram a ser quem é hoje. Desde quinta-feira que os editores, livreiros, bibliotecários e autores têm estado a discutir novas soluções para o sector na feira, onde particioam vários autores. Com temas variados: desde o futuro do livro até ao modo como lidar com a crise ( “o impacto do gratuito e (da pirataria) nas vendas de livros”, “o que a campanha de Obama nos pode ensinar sobre marketing viral”, “quando é que os livros electrónicos grátis fazem sentido e quando não fazem” ou “ler livros no Kindle 2, no sony Reader e no iPhone”).

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A velocidade tem estado no centro das preocupações do fi lósofo e ensaísta francês Paul Virilio

O capitão Sullenberger vai lançar dois livros

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Já sabemos o que dançar no Med de LouléRokya Traoré esteve há dois dias na Casa da Música, no Porto, e ontem subiu ao palco do Lux, em Lisboa. Não se ficará por aqui. Dia 28 de Junho rumará a Sul, marcando presença no último dia do Festival Med, em Loulé, um dos mais importantes festivais de músicas do mundo realizados em Portugal.A actuação no Lux, de resto, surgiu incluída no evento de apresentação de um cartaz que, propondo-se celebrar a cultura mediterrânica, mas atento às músicas que se fazem noutras latitudes, anuncia para aquela que será a sexta edição, entre 24 e 28 de Junho, nomes como Ojos de Brujo, Rabih Abou Khalil,

Orquestra Buena Vista Social Club, Kimmo Pohjonen, Camané ou o baterista dos Police, Stewart Copeland, que encerrará o festival liderando a orquestra La Notte Della Taranta, projecto que trabalha a herança musical de Salento, uma região de influência grega da Câmpania italiana.Pelos dois palcos principais passarão, dia 24, o primeiro do festival, Rabih Abou Khalil, o músico líbio radicado em Berlim e reconhecido pela sua fusão da música tradicional árabe com a erudita ocidental, passando pelo jazz e pelo rock. Ao Med leva “Em Português”, celebrado álbum de 2008 que o reuniu ao fadista Ricardo Ribeiro. Completam o cartaz o melting-pot dos Moriarty (folk, blues, country, rock’n’roll) e os Bajofondo, banda uruguaia-argentina que cruza tango e electrónica e que é liderada por Gustavo Santaolla, compositor da banda sonora de “O Segredo de Brokeback Mountain”.Dia 25, o destaque vai para os

Ojos de Brujo, a banda catalã que revolucionou o flamenco, abrindo-o à modernidade das ruas e às culturas que se cruzam na cosmopolita Barcelona - rumbas, reggaes, tangos e hip hop, tudo cabe neste flamenco que transforma cada concerto numa celebração da música como espaço sem fronteiras e em mutação constante. A guineense Eneida Marta e a lenda do reggae Horace Handy, acompanhado pelos Dub Asante, a banda com quem tem colaborado recentemente, são os restantes actuações.Destaque ainda para a Orquestra Buena Vista Social Club, a banda de veteranos da música cubana revelada mundialmente pelo filme de Wim Wenders (dia 26), para os concertos de Camané, ainda em apresentação de “Sempre De Mim”, e de Lura a 27 (o mesmo em que actuarão Justin Adams & Juldeh Camara, autores de “Soul Science”, o primeiro guitarrista colaborador de Robert Plant, o segundo um griot gambiano).Para a despedida, além dos supracitados Rokya Traoré e La Notte Della Taranta, subirá a palco o finlandês Kimmo Pohjonen, acordeonista “demoníaco” que, fruto de uma visão pessoalíssima, revolucionou profundamente a forma de abordar o instrumento.

Uma escola em Angola com a memória de outra em Moçambique

No musseque de Capalanca, em Angola, poderá nascer uma escola desenhada por Paulo Moreira, arquitecto português nascido no Porto em 1980 e actualmente a estudar a Londres, no departamento de Arquitectura da London Metropolitan University. O projecto, intitulado “The

Survival of the School: Post-Colonial Transformations

in Angola e Mozambique”, recebeu o Noel Hill Travel Award 2009, do American Institute of Architects - UK Chapter (que distingue um estudante matriculado numa universidade do Reino Unido). Paulo Moreira inspirou-se noutra escola, criada há anos por portugueses no Xai-Xai, em Moçambique. No projecto há um muro de tijolos com aberturas entre eles que desenhará, quando a luz do sol as atravessar, a imagem de quatro crianças de mãos dadas. Trata-se da mesma imagem que está no pórtico da escola em Moçambique, que nasceu da iniciativa dos avós de Paulo Moreira quando aí viveram no final dos anos 50, início dos ano 60 do século XX.Esta ligação com a história familiar do arquitecto foi uma das razões que levou o júri a escolher Paulo Moreira para o prémio que lhe permitirá viajar até Capalanca e ao Xai-Xai e conhecer o local onde a sua escola irá ser construída, assim como a antiga escola, que a avó nunca teve oportunidade de ver em funcionamento. A viagem, em dois períodos de 15 dias, começa amanhã. Tudo começou com um convite da Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES), que propôs a Paulo Moreira (formado na Faculdade de Arquitectura do Porto e com dois anos de estágio na Suíça)

projectar um centro escolar que funcionasse também como motor para o desenvolvimento social e cultural da zona. Até agora o arquitecto trabalhou à distância: estudou as características do musseque, viu vídeos, fez entrevistas, depois localizou no Google Earth a antiga escola dos avós, encontrou duas antigas amigas da avó ligadas à escola, e foi assim que descobriu o desenho dos quatro meninos de mão dada. Muito do projecto para Capalanca tem que ser adaptado à actualidade e ao local. “A escola é composta por várias salas, cada uma com um volume diferente na forma e na altura, mimetizando um pouco o contexto envolvente”, explica o arquitecto, referindo-se às construções do musseque, feitas pelos próprios habitantes. A escola será construída pelas pessoas de Capalanca, com os materiais que habitualmente usam, desde o cimento às chapas de zinco. Um elemento muito importante é a água, “um bem precioso” no musseque. A proposta é que haja uma torre/depósito de água, e uma bomba de brincar, na qual as crianças, “ao brincarem na roda como se fosse um carrossel, estão, ao mesmo tempo, a puxar a água para o tanque”. Esta segue depois por uma espécie de aqueduto que percorre todos os volumes da escola e que estará à disposição da comunidade.

O projecto do português Paulo Moreira em Angola

Ojos de Brujo, a banda catalã que revolucionou o fl amenco, abrindo-o à modernidade das ruas no dia 25

Buena Vista Social Club, a banda de veteranos da música cubana revelada mundialmente pelo fi lme de Wim Wenders, actua dia 26

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Ca

pa Combinámos encontrar-nos nos

Pastéis de Belém e, claro, mal nos sentámos tivemos de provar a espe-cialidade da casa. De imediato Car-minho confessou que tinha de se controlar: que não resistia a um bom doce, que depois engordava e tinha de fazer dieta.

Disse tudo de rajada, a rir-se, com o desplante de uma garota de 24 anos. Mas ouçam-na cantar: uma voz tremenda, pura força da natureza, voz adulta, funda, segura, não parece ter a idade que tem. A Carminho que canta quase parece a antítese da Carminho garota.

Ouvimos falar dela pela primeira

vez há três anos, pela boca de Camané, que nos incitava a ir ouvi-la à Mesa de Frades às segundas ou às quartas. Era uma promessa e agora tornou-se uma certeza: um tremendo disco de estreia, “Fado”, que começou a nascer durante um ano que Carminho passou a viajar e a fazer trabalho de voluntariado - para só no regresso decidir a dedi-car-se exclusivamente ao canto.

A mãe de Carminho, Teresa Siqueira, é ela própria fadista, e a filha cresceu a ouvir os discos da mãe. Mas não cresceu em bairros fadistas: dos dois aos 12 anos a família viveu no Algarve e só há 12

anos a família voltou para cima, para abrir uma casa de fados, o Travessa do Embuçado, por onde passou, entre outros, Camané, e onde, a partir dos 15 anos, come-çou a cantar com regularidade. Talvez por isso “Fado” seja um disco de fado quase sempre tradi-cional: porque foi com isso que Carminho cresceu, com o bom e velho fado.

Como é que uma rapariga pode ser tão rapariga e já tão mulher, como é que uma mulher pode ser tão mundana e tão funda, como é que uma garota pode ter tanto fado? Como pode, como diz

Camané, uma garota destas “ter na voz a história toda do fado”?

Isso cabe a Carminho responder e ela fala de tudo com tremendo à vontade. Pergunta inevitável: ouvia-se muito fado em casa dos seus pais?Sim, e cantava-se imenso no carro, nas viagens, estávamos sempre a cantar. E lembro-me de assistir a noites de fado lá em casa, com cinco ou seis anos. Tenho umas fotografias, muito pequenina, de pijama, ao colo do meu pai, com quatro ou cinco anos, e os guitar-ristas e a minha mãe a cantar. Já era

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Carminhoa história do fado lá dentro

garota. Mas ouçam-na cantar: voz tremenda, pura força da uma garota pode ter tanto fado? “Fado” é mesmo o nome do disco. já arrasta fãs. João Bonifácio

um gosto enorme. Toda a influên-cia que tive de fado foi através da minha mãe e dos discos. Depois, quando vim para Lisboa já houve essa vivência de bairro, de casas de fado com fadistas.

Fomos viver para o Bairro Alto, na Rua da Esperança. Viemos por causa da Travessa do Embuçado, [casa de fados] que a minha mãe e o meu pai abriram. Depois fomos para Campo de Ourique, onde ainda vivo. É o meu bairro, mas con-vivi muito com Alfama e o Bairro Alto, onde a minha mãe me levava quando eu era mais pequena e onde agora vou pela minha perninha.

Com que idade é que começou a frequentar o meio fadista?

Aos 12 anos. Por causa de uma festa no Coliseu: perguntaram aos meus pais se tinham algum filho que queria cantar e os meus irmãos [que são três] disseram que não. Eu disse que queria e o meu pai disse que não, porque não queria passar vergonhas. Mas insisti e ele disse que eu podia ir se o Paquito, que tocava no Embuçado na altura, aprovasse. O Paquito [guitarrista da casa] disse que eu tinha tempo e era afinada: “Porque é que não hás-de deixar a miúda ir?”. Eu can-tava o “Fado do Embuçado” e mais

nada. Adoraram, porque era como uma mascote, ter uma menina de folhos a cantar o “Fado do Embu-çado”. A partir daí, sempre que havia algum dia especial, a minha mãe levava-me ao Embuçado.Nessa altura já apreciava aquela coisa de ter de se vestir e cantar com toda a gente a olhar?Nesse dia chorei baba e ranho, furiosa, exactamente por causa do vestido. Tinha 12 anos, aquela idade em que já não se é muito criança, mas ainda não se é adulto. E nesse dia apareceram as filhas dos fadistas e dos artistas, todas

Ouvimos falar dela há três anos, por Camané, que nos incitava a ir ouvi-la à Mesa de Frades. Erauma promessa e agora tornou-se umacerteza: um tremendodisco, “Fado”

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vestidas de tops e alcinhas e saltos altos e a minha mãe enfiou-me umas sabrinas, uns collants e uma saia de flanela e eu bati com os pés e fiz uma birra. Já queria ir de lantejoulas para cima do palco. Ainda bem que a minha mãe teve bom senso.Na adolescência passava muito tempo no restaurante dos seus pais?Tinha aulas de manhã e depois à tarde gostava de ir com a minha mãe dar as voltas, comprar as velas, aque-las coisas de quem gere. Ia ao Embu-çado naquela altura em que os empregados estavam a jantar, às seis da tarde, sete. Eles estavam sempre a empanturrar-me com petiscos. Se calhar foi daí que veio o meu gosto por comer. Em miúda tinha de comer às escondidas da minha mãe. Às vezes tinha de cantar e não conse-guia. Estava tão cheia que não saía nada. Então a minha mãe mandava-me fazer becos. Junto ao Embuçado há um beco e a minha mãe mandava-me correr para cima e para baixo para moer o jantar.Nunca teve uma paixoneta pelos fadistas ou pelos guitarristas?Não, nada.No liceu achava que a sua vida era diferente das dos outros miúdos?Sim. Uma vez perguntaram-me se eu tinha passado alguma fase de nega-ção em relação ao fado. Nunca che-guei a ter negação, mas escondia-o. Tinha vergonha, escondia-o dos meus colegas. Havia uns coleguinhas que gozavam comigo por eu cantar fado. Não sei se aquilo era gozar, mas eu sentia como gozo. Às vezes pediam-me para cantar - eu fazia um esforço para que isso não aconte-cesse, mas cheguei a ter de cantar em aulas e em festas de anos. Quando estava a crescer, tinha orgulho da sua mãe ser fadista?Tinha. Lembro-me quando ainda morava no Algarve e a minha mãe gravou um disco: fiquei de boca aberta quando ela deu uma entre-vista para um jornal e saiu uma foto-grafia dela. Achei que a minha mãe era uma estrela mundial, que toda a gente a conhecia. Gosta dos Queen, não é?Adoro os Queen. Chorei baba e ranho quando o Freddie Mercury morreu. Tinha sete anos e enfiei-me dentro de um carro, no lugar do morto, e chorei baba e ranho. Tive a sensação de uma imensa perda. Porque eu ouvia imenso, sozinha, com essa idade. Pegava nos discos e ouvia por livre e espontânea von-tade: Queen, Simon and Garfunkel, REM, Adamo. Até fundei um grupo de dança na minha escola: gravava as músicas para um leitor de cassetes e depois reunia umas amiguetas e fazíamos umas coreografias. Isto na

terceira classe. Só que depois houve uma que era muito

melhor que eu e expul-sou-me do grupo.

Indo ao disco: Diogo Clemente, produtor, é um miúdo novo, não é?É, tem menos um ano que eu. Mas já tem imenso currículo. É uma pes-soa que vive no fado desde sempre: nas casas de fado, nas colectivida-des. É daqueles que desde peque-nino já pegava na guitarra esponta-neamente. O pai dele começou a tocar guitarra ao mesmo tempo que o filho porque o Diogo queria muito tocar. Os pais puseram-no no Con-servatório muito cedo: chegou ao exame para ver se entrava e só sabia tocar fados. E entrou. Aos quinze anos já tinha sido convidado para tocar no Faia a ganhar dinheiro. Os pais é que fizeram questão que ele acabasse o liceu.Acabou um curso, também.Sim, de Marketing e Publicidade.Como é que conciliou? Também já canta profissionalmente há anos.O canto adaptou-se sempre aos estu-dos. Eu estudava, depois se podia cantava. Tinha aulas de noite, no IADE.E como é que conheceu o Diogo?Quando fui cantar para a Mesa de Frades. Ele tinha ido tocar para lá há pouco tempo. Desde aí tocamos e cantamos juntos há quatro anos. Foi falando com ele ao longo dos anos acerca do que seria o disco?Sim. Isto começou pouco tempo antes do disco se começar efectiva-mente a fazer. Mas eu já sabia o que queria: um disco que mostrasse a minha vida até ao dia de hoje ou até ao dia de hoje daqui a uma hora.Mas é uma garota de 24 anos...Não é muito e na experiência de fado menos ainda. Mas o que que queria era pegar nos fados que sempre can-tei desde pequena e que para mim cresceram comigo, que olho de maneira diferente porque tenho outro olhar. Também queria cantar alguns fados que antes nunca tinha cantado. Acaba por fazer o disco de forma familiar, com as pessoas que conhece. Para mim essa foi a opção óbvia, por-que quando pensava fazer as coisas de outra forma não me ocorria nada. Se calhar um produtor mais expe-riente e mais velho já teria um cariz muito próprio. E eu queria só retra-tar. E quem melhor do que o Diogo, que conhece a minha evolução, para retratar o que faço? Conhece a minha voz melhor que eu. Também queria transmitir a ideia de que o fado é um encontro de talentos mas também de conhecimentos. E isso acontece: chegamos a uma casa de fados onde nunca entrámos e podemos cantar os nossos fados à vontade, porque todos sabem e todos podem tocar para nós. E isso é fascinante.Sendo nova gosta de fado clássico. Não há violoncelos ou pianos.

Neste disco, não. Achei que era importante mostrar aquilo que gosto mesmo de fazer e que as pessoas me dizem que sei fazer. Agora, não me sinto presa a nenhum tradiciona-lismo, a nenhuma forma musical. Disse: “Aquilo que as pessoas me dizem que eu sei fazer”. Quem são as pessoas cujo conselho é importante?Os meus pais, os meus amigos - mesmo os que não têm nada a ver com o fado e não gostam de fado - e as minhas referências, como a Bea-triz da Conceição, o Camané, o Car-los do Carmo, mesmo pessoas da minha idade como o Ricardo Ribeiro e o Diogo. Tudo pessoas que me cri-ticam de forma que eu agradeço.A Beatriz da Conceição ainda cantou no Embuçado.Durante muitos anos. Por isso é que ainda é a minha referência. Não só por cantar como canta, mas por inte-ragir comigo, por me contar histó-rias, por me criticar, por me ensi-nar.Neste disco opta muito por poetas clássicos do fado...É importante recuperar. Acho que há coisas antigas, lindas, que podem ser actuais com novas roupagens e que podem ser apresentadas a pes-soas novas, que de outra forma nunca teriam acesso a elas.E como é que as suas palavras competem nesse universo? Usa dois poemas seus.Foi um atrevimento. Mostrei estes poemas ao Diogo, mas não tinha nada a ver com o disco. Era mais: “Olha, estou a escrever, que achas?”. Ele escreve, é sensível às palavras. Gostou e depois sugeriu pôr esses poemas no disco. Fiquei um bocado incomodada com isso, por isso com-binámos olhar para cada poema e para cada tema sem autores. Não fazer a obra sofrer por causa do obreiro nem vice-versa. E se os poe-mas não estivessem à altura dos outros iam embora. Apresentámos os poemas a pessoas que não faziam ideia de quem eram os autores e fizemo-los escolher 13 ou 14. Para experimentar. E pronto, acabaram por ficar. Claro que fez diferença serem escritos por mim, mas se fos-sem destoar do resto do disco tinham ficado de fora. Agora, em toda a forma de arte o que é bom fica e o que não é bom acaba por se diluir no tempo. Há quanto tempo é que andava a escrever e a quem é que mostrava?Desde que dei a volta ao mundo. Não mostrava a muita gente.Foi viajar só ou fazer trabalho humanitário?As duas coisas. Fui à Índia, à China, Malásia, Singapura, Vietname, Laos, Cambodja, Timor, Austrália, Nova Zelândia, Ilha de Páscoa, Peru, Bolí-via, Chile, Argentina, Uruguai, Bra-sil.Isso num ano?Sim.

“Ela tem o dom de ir buscar o

Havia uns coleguinhas

que gozavam comigo por eu cantar

fado. Não sei se aquilo era gozar, mas eu sentia como

gozo. Às vezes pediam-me para cantar - eu fazia um esforço para que isso não acontecesse,

mas cheguei a ter de cantar

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“Ela tem o dom de ir buscar o passado e trazê-lo para o futuro”. Não podia haver melhor elogiador: a frase é de Camané, fadista de eleição e, mais importante ainda, supremo conhecedor da história do fado. Foi Camané quem nos falou primeiro de Carminho, estava ela a dar os primeiros passos na casa de fados Mesa de Frades, há dois anos. Foi o primeiro de uma lista de fãs que engloba Carlos do Carmo, Tiago Bettencourt e o cineasta João Botelho, todos, entre outros, habituais clientes das noites de segunda e quarta na Mesa de Frades. O que é que eles vêm nela? Uma estranha mistura de seda com vísceras.

“Ela consegue misturar o fado aristocrático com o popular”, diz-nos Camané, e Carlos do Carmo não podia estar mais de acordo. Há meses, aquando das comemorações dos seus 45 anos de carreira, Carmo dizia-nos - ainda Carminho não estava a gravar o disco - que ela vinha “de uma linhagem aristocrática do fado”, que lhe lembrava Maria Teresa de Noronha. Isto não quer dizer que Carminho tenha sangue azul (não tem). É um elogio, que Carlos não só mantém como explica através de uma espécie de hagiografi a do novo fado feminino.

“A nova geração de fadistas trouxe muitas mulheres, mas esse espaço, grosso modo, é o do fado burguês, o que não tem problema nenhum”, caracteriza o autor de “Um Homem na Cidade”. No fado, se retiramos a burguesia, fi cam “a tradição e a aristocracia, que nunca teve problemas de relacionamento com o povo, ao contrário da burguesia”. Carminho, diz, “tem um ídolo de eleição que é a Beatriz da Conceição, que é completamente povo”. E a partir dessa fonte ela estabeleceu uma ligação única, “e ocupa agora esse espaço entre o popular e o aristocrático”. Camané diz que sim: Carminho “tem muito de Maria Teresa de Noronha” e “tem muito de Beatriz da Conceição”, no que será talvez a mais improvável genealogia de uma fadista em muitos anos.

Carminho não arrasta fãs apenas entre os fadistas: o

cineasta João Botelho descobriu-a há uns meses e desde então vai à Mesa de Frades “todas as segundas e quartas-feiras”, ou seja, aos dias em que ela canta. “Carminho é uma menina com características sociais elevadas” mas que “canta com as vísceras”. Cá está, de novo: aristocracia (“na atitude”, como diz Camané) e povo de mãos dadas. A paixão de Botelho vai ao ponto de ter acabado de realizar para ela quatro vídeos, sendo o primeiro de “O teu nome no vento”. Conhecedor da voz de Carminho sem os polimentos de estúdio, Botelho recusou usar nos vídeos as versões do disco, preferindo antes que ela cantasse de novo, “com som directo, com respirações, soluços, pequenos enganos”, porque, diz, do que gosta mesmo é “daquela coisa dura” que ouve quando está na Mesa de Frades. Depois resume tudo de forma muito simples: “Ela tem umas cordas vocais incríveis. E é uma menina, o que é engraçado”.

A aristocrata popularO que é que eles, os fãs, vêm? Uma

estranha mistura de seda com vísceras.

Há meses, aquando das comemorações dos seus 45 anos de carreira, Carmo dizia-nos que ela vinha “de uma linhagem aristocrática do fado”, que lhe lembrava Maria Teresa de Noronha

r o passado e trazê-lo para o futuro” Camané

Carlos do Carmo integra, com João Botelho ou Camané, a lista de fãs de Carminho

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10 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

E onde é que fez trabalho humanitário?Índia, Cambodja, Timor e Peru.Quanto tempo é que ficou nesses quatro países?Seis meses.E o que é que lhe deu para ir?Não queria ser “marketeer”, não sabia o que queria fazer. Estava quase a acabar o curso e precisava de me conhecer melhor e de relati-vizar-me em relação ao mundo, para dar às coisas a importância que as coisas têm. Sou muito dramática e às vezes perco-me nas personagens. É importante sabermos quem somos, sabermos em que país vivemos, qual a relação de Portugal com os outros países, quais as prioridades. Percebi que Portugal é um país mínimo, um país onde as pessoas são pequeni-nas, com pouco mundo. Mas ao mesmo tempo é o país onde quero viver.O que é que a impressionou mais?A pobreza e a miséria. E, claro, a grandeza do mundo. Chegamos à Índia e pensamos: “Foi o meu Deus que criou isto. Ele conhece estas pes-soas”. A Índia e a China mexeram comigo. A China é um país impres-sionante. De fora parece um exército de formigas a trabalhar para o mesmo fim e depois aproximamos-

nos e vemos que cada pessoa pensa que está sozinha e está sozinha.Em que sítios ficava?Pensões. Ou enfiava o saco-cama num lado qualquer.O que é que a levou a escrever? Algum desespero perante o que via?Não. Foi uma causa da contempla-ção. Um dos países onde escrevi muito foi em Timor. Estive um mês e meio numa comunidade que dava apoio às pessoas mais pobres e que dava formação aos jovens, coisas básicas, da higiene à costura. Fazía-mos imensas viagens de carrinha, de caixa aberta, para ir às aldeias. E assisti a momentos únicos de beleza. O que me fez escrever foi contem-plar a beleza. Um mar imenso, pai-sagens lindas, um pôr do sol brutal, pessoas ao meu lado a rir. Quanto mais simples é a envolvente mais vontade tenho de escrever.A viagem não foi também uma espécie de fuga do destino fadista?Não... Isso só a um nível superficial. Se eu quisesse dizer mesmo “Não, não quero” eu dizia.Na altura já havia muita gente a dizer que estava na altura de gravar o disco.Eu não fugi. Adiei. Sabia que não ia gravar o disco antes de fazer a via-gem... Não estava preparada. Não

sabia o que tinha para dar, por isso não podia dar nada. Tive de ir viajar para saber o que podia dar. Agora as pessoas podem gostar ou não gostar do disco, mas eu gosto muito dele e não duvido por um segundo daquilo que está dentro deste disco.Quando voltou já era para fazer o disco?Sim, já tinha a sensação plena que estava preparada. Tinha dito quer ia estar um ano fora e muita gente me dizia: “Olha que o comboio só passa uma vez” ou “É a última vez que vais ter esta oportunidade de cantar”. Mas eu não tinha coragem para o fazer na altura. Carlos do Carmo diz que faz parte de uma linhagem no fado que começa em Maria Teresa de Noronha. Isso faz sentido para si?Ouvi muito a Maria Teresa de Noro-nha e gosto muito dela... Identifico-me com ela como me identifico com a Beatriz da Conceição ou com a Amália. Em coisas diferentes.Chegou a conhecer a Amália?Cheguei. Uma vez só.Ela ouviu-a cantar?Ouviu, nesse dia.E pô-la ao colo e disse “Que linda menina”?Não. Ela não gostava de ouvir crian-ças a cantar.Na altura em que começaram a

chover elogios isso não foi uma pressão adicional?Os elogios são uma arma contra nós quando não nos conhecemos. As pessoas dizem-nos as coisas e das duas uma: ou somos muito pouco confiantes e não acreditamos em nada do que nos dizem ou somos uns deslumbrados e acreditamos em tudo o que nos dizem. Claro que é importante ter a aprovação dos outros mas acho que os meus pais foram fantásticos nisso: sempre tive-ram uma grande necessidade de me situar.Parece ter sido protegida.Sim. Quando comecei a ir aos fados com os meus pais, só conhecia o Embuçado. Não conhecia o meio do fado. Fui muito protegida, mas essa protecção não me prejudicou. Eles não me escondiam o que existia, apenas tentaram encaminhar-me para aquilo que eles acharam que era mais seguro e melhor para mim. Agora é uma esperança do fado. E depois?Não tenho medo, sabe? Agora estou a viver isto e a gozar isto. Se eu come-çar a preocupar-me com o que vem aí não gozo o que estou a viver agora. As coisas foram sempre aconte-cendo. Há-de vir aí qualquer coisa.

Ver crítica de discos págs. 42 e segs

Os elogios são uma

arma contra nós quando

não nos conhecemos.

As pessoas dizem-nos as coisas e das duas uma: ou somos

muito pouco confi antes

e não acreditamos em nada do

que nos dizem ou somos uns deslumbrados e acreditamos em tudo o que

nos dizem

“Ela canta com as vísceras” João Botelho

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EndereçoCentro Cultural Vila FlorAv. D. Afonso Henriques, 7014810 431 GuimarãesTel / Fax 253 424 700 / [email protected]

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12 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

É mediterrânico, ibérico, com vista para o Atlântico, cruzando viagens pelo deserto africano, evocando bair-ros latinos nos Estados Unidos. Mas “Guitarra 66” é essencialmente Tó Trips e a sua guitarra, ondulando por emoções dedicadas a uma mulher, Raquel Castro. É o seu primeiro álbum a solo e, na forma despretensiosa como se insinua, revela-se objecto surpreendente.

Algumas das sombras que expõe já se descobriam noutros projectos pelo qual dá a cara, nomeadamente os Dead Combo e, mais recentemente, numa aventura com Tiago Gomes à volta de textos de Jack Kerouac. Mas ainda assim é outra coisa, temas ins-trumentais poéticos mas escorreitos, enxutos, mostrando alguém que pas-sou por colectivos rock eléctricos (dos Santa Maria Gasolina em Teu Ventre aos Lulu Blind) mas que se descobre por inteiro nos acordes de uma sim-ples guitarra acústica.

No contexto dos seus projectos qual o lugar deste álbum? Nunca me passou pela cabeça lançar discos em nome próprio. Sempre gos-tei de tocar em grupo. Como gravo quase todos os dias, tinha necessidade de por cá fora estas coisas. Os temas foram registados ao longo dos últimos anos?Sim, embora estivessem inacabados. Ao longo do tempo houve um pro-cesso de descoberta de cada um deles, em que fui acrescentando sempre coi-sas. A selecção natural acabou por surgir no interior desse processo de revelação. Depois, durante uma semana, em Esmoriz, terminei os que estavam inacabados. Nos Dead Combo, ou no projecto com Tiago Gomes à volta de textos do Jack Kerouac, está sempre implícita a ideia de viagem. Neste também. Mas é uma jornada introspectiva. Sim, é um disco muito mais pessoal. Desde puto que gosto da linha do hori-zonte. Olhar, ver, pesquisar. Gosto de planos abertos, de paisagens a perder de vista. Há dois anos fui pela primeira vez a Marrocos e confrontei-me com isso. O Alentejo puxa também por essa dimensão. É uma região que aprecio muito. Adoro também o mar. Quando estava lixado com a vida ia à praia ape-nas para olhar a linha do horizonte. Como se fosse uma linha de espe-rança. Depois daquela linha sabemos que estão outras gentes e essa ideia tem qualquer coisa de reconfortante. A praia é dos pouco sítios onde con-sigo estar sem fazer nada. Passo horas a olhar para o mar sem fazer nada. Só, ali. Equilibra-me, talvez. O céu tem também essa dimensão de infinitude. Sim. Adoro ver os aviões a fazer riscas no céu. Às vezes pergunto-me: “Aaquele pessoal irá para onde?”... [risos]. Existe um lado romântico nisto, claro. Há um filme que já vi para aí vinte e tal vezes, “A Revolta na Bounty”, que tem esse lado ideali-zado, presente na relação com o mar, na relação entre as personagens. Este é um disco que viaja por várias latitudes - África, Espanha, EUA - mas ao mesmo tempo parece não sair daqui.

Viagem ao interior da guitarra de Tó São temas instrumentais, mas é um álbum que passa o tempo a dialogar connosco. Em “Guitarra 6

à descoberta do Mediterrâneo, do Atlântico, de Portugal, de uma mulher. E encontra-se c

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Gosto de me sentir português. Temos coisas tão porreiras. No mundo glo-balizado, é bom sentir que podemos transportar qualquer coisa de nosso. Mas também me revejo em Espanha, no flamenco, naquele lado cigano. Hoje em dia irrita-me um pouco a cena do fado. Todos os dias nascem fadis-tas. No outro dia vi uma espanhola a cantar fado em castelhano e soou-me bem. Pensei: “Porque não?”O flamenco é, aparentemente, mais físico que o fado. Tenho apetite por essa dimensão física. Pode ser apenas um tipo a tocar piano, mas gosto de perceber essa extensão nele. Tem alguma nostalgia dos concertos rock?Tenho. É outro tipo de abordagem. É uma coisa mais virada para fora, para o exterior. Tem qualquer coisa de explosão, de purificador. Até aos Dead Combo a música para mim era des-carga, energia. Isso mudou. Este disco é uma coisa contida. Na banda rock há também o lado do grupo, da camaradagem. Este é um disco solitário. Tem piada porque, no passado, expressava-me no plural quando que-ria falar de mim. Utilizava a expressão “a malta” ou “o pessoal” quando, no fundo, queria dizer “eu”. O rock tem muito isso, o grupo, a malta.

Mesmo a falar com pessoas com quem vivi utilizava a expressão “a malta” para falar de mim. Às vezes perguntavam-me: mas quem é “a malta”? Respondia: “Sou eu.” O estar em grupo dava-lhe uma sensação de segurança?Sim. A partilha da responsabilidade. Mesmo nas fotos de grupo já sabia como me posicionar, qual a postura a adoptar. Como se soubesse que ima-gem projectar. Acontece isso com os Dead Combo também. Só é diferente. Estou mais desprotegido. Podia ter criado uma personagem para este disco. Não. Foi a primeira vez que utilizei fotos naturalistas, normalmente tenho a tentação de mexer nas imagens.Mas nesse movimento solitário, pressente-se que este é um disco que evidencia alguém que se reencontrou. Vamos arriscar: alguém mais feliz. É verdade [risos]. Sou um gajo feliz. É também o disco para a sua mulher.Sim. Tenho a certeza que a encontrei. Essa mulher. Este disco é também muito ela? É. Aprendo muito com ela. É alguém que também gosta muito de viajar e, a nível musical, possui uma grande curiosidade - muito mais até do que eu - em procurar coisas novas. Com ela descobri música a que antes não ligava nenhuma e aprendi a ligar mais

aos aspectos puramente sonoros. Como é que viajam? Com tudo preparado previamente? Não. Marcamos um sítio, mas não temos uma agenda para cumprir. Depende muito. Recordo-me de uma viagem ao País Basco em que arran-cámos sem nada arranjado. A fotografia da capa do disco foi tirada onde?No Cairo. É uma pensão, com terraço. É de um egípcio casado com uma fran-cesa. Dentro do CD estão fotos de S. Tomé, Nova Iorque, Marrocos. É o nosso imaginário romantizado. Conhe-cemo-nos em Lisboa, mas pouco tempo depois fomos a S. Tomé e Nova Iorque e deu para perceber que nos entendíamos. Acabamos por nos des-cobrir também em viagem. Em alguns temas pressente-se a influência de Carlos Paredes que é alguém que, para além de Ricardo Rocha ou de Norberto Lobo, não criou descendência. Como é sua relação com a música dele? Sempre gostei do Carlos Paredes. Tem um tempo a tocar muito próprio, de tal forma que era preciso alguém espe-cial para o acompanhar. O som dele passa muito pelo espaço. Ouve-se o mar nele. Há um tema neste disco, “Esmoriz”, onde gostava que se ouvisse também o mar. Gosto dos temas que têm essa capacidade de sugestionar. De criar ambiente. De propor imagens, talvez. O título do disco é também uma remissão ao ano em que nasceu. Por alguma razão? Não. É uma mistura de “Route 66” com o meu ano de nascimento. Gosto da malta que nasceu nesse ano... [risos]. O [actor] Miguel Borges ou a [coreógrafa] Vera Mantero, amigos, são também de 66. Não sou de signos, mas gosto dessas imagens. No seu passado rock identificavam-no com o punk. Se o punk é a exposição sem simulacros, este é provavelmente o seu álbum mais punk. Hoje ligo muito mais à técnica, mas é verdade que na música sempre me interessou mais a atitude e a persona-lidade. Se herdei alguma coisa do punk, foi essa vontade de ir para a frente com as coisas, independente-mente de ser ou não um dotado. Ter consciência dos seus limites e passar alguma coisa às pessoas pode ser um objectivo muito saudável. Este disco foi também um bocado purga, porque sempre fiz as coisas em colectivo. Há umas semanas, num debate, afirmou que nunca havia ganho dinheiro com a música, é mesmo verdade?Exagerei um pouco, claro. Ganho, mas não é significativo. Não consigo viver só disso. Mas gosto de estar relacio-nado com a música de todas as for-mas. De fazer posters. De trabalhar imagens para outros músicos. Gosto tanto de ir a concertos como de tocar. Já percebeu porque é que faz música?Faz-me muito bem à saúde! É inteira-mente verdade.

Ver crítica de discos pág. 42 e segs.

Tripsa 66” Tó Trips, dos Dead Combo, partee consigo próprio. Vítor Belanciano

“Nunca me passou pela cabeça lançar discos em nome próprio. Sempre gostei de bandas, de tocar em grupo”

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Xeg está debruçado sobre um monte de singles, estrategicamente colocado ao lado do gira-discos. Mostra-nos a capa de um, retira o vinil, passa a música, mostra-nos a parte “samplá-vel”, põe-no de lado. Aproxima-se do armário encostado à parede, também repleto de vinil, agora em formato LP. Mais preciosidades. Procura um em especial, o de Nilton César, figura da música brasileira dos anos 1970. Aí está. O bom do Nilton na capa, elegân-cia de gola bem aberta, típica do romântico da época. A música soa novamente. Orquestrações opulentas, o baixo concentrado no funk e aquele calor orgânico em que a década de 1970, brasileira e não só, era fértil.

“’De volta à actividade’ até foi dos últimos sons que fiz, mas pelo con-ceito, pelo refrão e pelo título, queria mesmo que fosse o primeiro tema”. Compreende-se. Estamos em casa de Xeg, numa pacata zona residencial de Porto Salvo, no concelho de Oei-ras. Conversamos no seu centro de operações, o escritório-estúdio de um homem que nos dirá “gostar de fazer as coisas sozinho”. É aí, micro-fone a um canto e preparado para ser usado, vinil espalhado em abundân-cia, prato montado e usado com pro-priedade, que o MC nos fala da pri-meira canção de “Outros Tempos”, o seu novo álbum. É o primeiro desde os “Instrumentais Vol. 1” que editou em 2004 e o sucessor de “Conheci-mento”, de 2002. “De volta à activi-dade”, o título, não podia portanto ser mais certeiro.

Entrada épica da orquestração, o piano a anunciar-se, o ritmo reque-brado. Ei-lo: “Eu faço a propagação / Propago a programação / E programo para este ano a minha proclamação”. “Esta já sabia que tinha de ser a pri-meira”, acentua Xeg. Entusiasma-se: “Tinha aquele ‘beat’. É Nilton César. O Nilton é o meu ‘nigga’. Fez mesmo cenas para um gajo samplar”. Xeg sabe-o bem. “Conhecimento” pode ter sido editado há sete anos, mas ele não nunca esteve parado. Mostra-nos no computador o material que foi acu-mulando - produções preparadas para lançar quando julgar apropriado. E sabemos, olhando para a sua disco-grafia, das participações nos últimos

XegOs novos

tempos do velho

“Outros Tempos” e é obra inspirada de um MC da velha guarda, um criador de olhar

abrangente. Mário Lopes

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O pessoal em Portugal nunca

ouve o funk. A geração anterior à

minha ouvia heavy-metal e passou logo

para o hip hop. A festa nunca foi

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anos em álbuns de NBC, Kacetado, MatoZoo ou Regula. No preciso momento em que o entrevistámos, tinha “Outros Tempos” a chegar às lojas (foi editado segunda-feira, dia 25 de Maio) e dois projectos em mãos. Um álbum de electro, onde quer explorar a vertente mais física, mais sensual desse som - material dançável para o qual falta ainda descobrir a voz feminina que dê personalidade defi-nitiva à música. Quanto ao outro pro-jecto, é a razão pela qual tem um monte de singles brasileiros das déca-das de 1960 e 1970, dos obscuros a Roberto Carlos, dos românticos à jovem guarda, empilhados ao lado do gira-discos: um álbum de instrumen-tais está a começar a ser preparado e ele tem perfeitamente definida a fonte para as suas produções.

Velha guardaXeg é um MC da velha guarda. Xeg é um tipo convicto. Com 31 anos e per-curso sólido no underground portu-guês, segue o seu ritmo. Fala quando tem que falar, fala apenas e só daquilo que lhe interessa falar: “Muita gente no hip hop cataloga-te em relação aos

americanos, [dizendo] que os ‘beats’ parecem mesmo Dr. Dre ou algo do género. Se digo que não tenho estilo é por isso. O meu estilo é o hip hop e posso brincar com o que quiser. Não tenho que ser interventivo por ser essa a imagem que as pessoas têm do hip hop”. Isto é importante. Porque a intervenção está presente em “Outros Tempos” - “Como é que eles querem?”, por exemplo, é um retrato do país em crise -, mas é apenas uma das suas componentes. Xeg quer música que sobreviva. Enche os cadernos de rimas, guardando as palavras certas, e procura beats que não sejam simplesmente “os que estão a bater agora” - porque esses são esquecidos rapidamente.

“’Outros Tempos”, diz-nos, pode referir-se a tudo o que mudou desde que o ouvimos em álbum pela última vez, mas é também uma forma de dizer que aquilo que pretende é pai-rar sobre a actualidade: “Não diria que é um álbum intemporal, diria que é um álbum sem tempo”. Por exemplo: “Alguns dos sons que fica-ram de fora tinham um cariz mais político, só que actualmente tudo

muda tão rápido que é difícil mantê-los actualizados. O Bush já foi e agora não podes falar da América [nos mes-mos termos], porque temos a cena da nova esperança com o Obama”. Isto conduz-nos a outro pormenor, algo que está evidente no cuidado posto por Xeg em cada um dos temas do novo álbum, na criação de música onde sobressai o calor dos ritmos e das produções. Confessa: “Acho que, em Portugal, faz falta esse lado mais lúdico”. E explica: “o pessoal em Por-tugal nunca ouve o funk. A geração anterior à minha ouvia heavy-metal e passou logo para o hip hop. A festa, a diversão, nunca foi muito bem vista. A herança que fica é a dos anos 1990, do ‘keep it real’ e do ‘real nigga’”.

Ele, que sempre viveu imerso na cultura hip hop - “tirando rap, só tive uma cassete dos Iron Maiden, o ‘Fear Of The Dark’” -, passou pelo break dance em finais da década de 1980 e apanhou os Technotronic ou MC Ham-mer, antes de chegar aos Public Enemy e Gang Starr e alargar definitivamente os horizontes. É isso, a total imersão nessa cultura e o conhecimento pro-fundo da sua história, que o define. E,

por isso, compreendemos perfeita-mente que, numa altura em o hip hop se desdobra nos mais diversos forma-tos, assuma sem rodeios a preferência pela sua estrutura clássica: o MC e o DJ. Dispara: “Agora tens que ter banda para te convidarem para os concertos, mas o hip hop não tem banda”. Repare-se, não há aqui fundamenta-lismo e Xeg até reconhece que, em alguns contextos - pensa em festivais, por exemplo -, “o espectáculo fica a ganhar”. Até confessa que pensou em reunir um grupo para promover o novo álbum. Infrutífero. “A coisa dos ensaios, o músico que afinal não pode vir... Faz-me muita confusão. Estou habituado a fazer as minhas cenas sozinho. Tenho o DJ que toca comigo ao vivo e é assim que vai”.

Naquilo que considera basilar, Xeg é um purista. Felizmente, dizemos nós. Porque, depois, revela um olhar abrangente, lúdico ou de rosto sério, de sabor vintage ou apontado à actu-alidade, que se manifesta, certeiro, neste inspirado regresso a que cha-mou “Outros Tempos”.

Ver crítica de discos págs. 42 e segs.

“Outros Tempos”, o novo álbum, é o primeiro desde os “Instru-mentais Vol. 1” que editou em 2004 e o sucessor de “Conhe-cimento”, de 2002

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Há um ano, Nathan Williams voltara a casa dos pais e só via tédio à sua volta. Sobrava ele. Ele, o seu aborrecimento e a transformação desse vazio em grito empolgante. Nasciam os Wavves,

reverso “no future” dos radiosos Beach Boys. Tocam hoje na Zé dos Bois, dia 1 de Junho no Porto-Rio. Mário Lopes

E do tédio os Wavves

“Oh I’m so bored”, repetida uma, duas, três vezes. “I’m so bored”: grito primordial do rock’n’roll. Grito contra o insuportável aborrecimento dos dias, uns atrás dos outros, uns iguais aos outros. É isso que nos diziam os Stoo-ges, entediados com a vidinha num subúrbio anódino de Detroit. Era o que dizia Kurt Cobain naquele “here we are now, entertain us” transmitido nos anos 1990, vezes sem conta, no comité central do entretenimento juvenil a que chamavam MTV. “I’m so bored” repetida uma, duas, três vezes. Eis o que ouvimos em “So bored”, canção que Nathan Williams, habitante de San Diego a caminho dos 23 anos de idade, gravou num estúdio caseiro.

Williams é os Wavves, banda de melodias pop e ruído garageiro que se vem tornando o “buzz” under-ground de 2009. A Nathan juntou-se entretanto o baterista RW Ulsh e, jun-tos, tocam esta noite na ZDB, em Lis-boa. Do cartaz fazem também parte a pop fantasmagórica de John Maus e os Youthless. Dois dias depois, a 1 de Junho, os Wavves sobem a norte, actuando no Porto Rio com os ALTO!, representantes de uma entusias-mante fornada rock’n’roll com epi-centro em Barcelos.

Ao ritmo da actualidadeHá apenas um ano, tudo isto soaria estranho a Williams. Tinha abando-nado a faculdade e o emprego numa loja de discos. Voltara a casa dos pais e nem a banda que tinha na altura, os Fantastic Magic, lhe parecia inte-ressante. Sobrava ele. Ele e o seu fas-cínio pela música dos anos 1990 de Breeders, Nirvana ou Sonic Youth.

Ele o seu interesse no surf-rock dos Ventures e no garage rock de 60. Ele, o seu aborrecimento e a transforma-ção desse vazio em grito empolgante - uma guitarra, uma bateria, um sin-tetizador: música intuitiva, um “do it yourself” ruidoso que ouvimos como reverso “no future” dos radiosos Beach Boys, música que exclama “no hope” enquanto lança uma piada sobre góticos na Califórnia e, nesse movimento, há-de inspirar vinte miú-dos a pegar em guitarras ou baterias, a pegar no que quer que seja e formar uma banda.

Nathan Williams atende-nos o tele-fone em San Diego, quarenta minutos após a hora marcada. Pede desculpa pelo atraso. Do outro lado da linha é uma da tarde e ele acabou de sair do banho: “É por esta hora que desperto e começo a pôr as coisas a andar para o resto do dia.” Pouco depois, ele que afirma que a sua música revela, acima de tudo, a forma como é afectado por aquilo que o rodeia, está a falar-nos de San Diego. Nós pensamos em surfistas e velhos hippies num retiro tardio e ele corrige-nos: “San Diego é uma cidade republicana com uma grande base militar, por isso está cheia de idio-tas musculados que pensam ter muita piada e que se comportam como tal. Mas, no que diz respeito à cidade ela mesma e à paisagem, é bonita e soa-lheira”. Aquela é então a cidade dos Wavves, não a sua música.

Nela, ouve-se alguém que capta um sentimento de alienação intemporal, mas que o reflecte de uma forma que só agora seria possível. Alguém que diz que já não faz sentido seguir um percurso musical tal como era enten-

dido há uma década e que, por isso, se multiplica numa série de edições, nos mais diversos formatos. O seu álbum de estreia conheceu primeira edição em cassete e Nathan lançou uma série de 7” antes de assinar pela Fat Possum, onde editou o último “Wavvves”.

Esta é música que se movimenta ao ritmo da actualidade. Canções de ares-tas expostas, rápidas e rugosas, mas onde se procura sempre a luminosi-dade de uma melodia contagiante - e ele diz-nos que os Beach Boys têm aquele “je ne sais quoi” soalheiro, e acrescenta que o “Goo” dos Sonic Youth e o “Cannonball” dos Breeders já são tão antigos que podem ser recu-perados sem constrangimentos. Isto, enquanto faz questão de acentuar que os Animal Collective têm uma influên-cia incrível na música da actualidade - lembramo-nos dos pequenos peda-ços de electrónica cósmica que pon-tuam os seus álbuns.

Acima de tudo, a música dos Wavves é tremendamente transparente. É o retrato de um dia a dia e de um estado de espírito, atravessado por uma urgência irreprimível: sentimo-la nos seus relatos de alienação adolescente, essa que tanto sobressai nas capas com miúdos skaters das décadas de 1970 e 1980, quanto no humor posto nos seus “Summer goths” ou nos “No hope kids” que não têm carro, nem dinheiro, nem namorada, que não têm nada, mesmo nada. Essa urgência é aquilo que torna esta música inescapável - porque joga com memórias musicais, mas trabalha-as para criar algo que é visceralmente do presente.

No momento em que falamos com

este Nathan Williams que, há um ano, era um miúdo de 21 anos, incógnito em San Diego, a gravar canções em casa dos pais, ele diz-nos que tudo mudou. Agora que percorre os EUA em digressão - os concertos em Por-tugal fazem parte da sua primeira incursão europeia -, San Diego já não o aborrece tanto: “Quando volto, é como estar de férias. Fico em casa a gravar e tenho a liberdade de me exprimir em roupa interior e sem t-shirt”. A sua música está também a mudar: “Tudo é intuição, espoletado por um som de bateria ou uma linha rítmica. Tenho trabalhado mais a elec-trónica e, como a minha vida mudou bastante, o conteúdo das canções mudou substancialmente”.

Não será rápido demais? Para quem, num repente, passou do MyS-pace para o burburinho under-ground, para quem saltou daí para artigos no “New York Times” ou na “Interview”, não, não é rápido demais. Para o bem e para o mal, é a velocidade a que tudo se move actu-almente. “Vivemos na era da internet e a forma como as pessoas ouvem e fazem música é diferente do que era quando o Kurt Cobain ou as Breeders andavam por aí. O tempo de vida de um músico tornou-se mais curto. As pessoas perdem o interesse e, em vez de quererem ouvir um novo bom álbum dos Wavves, querem ouvir o incrível novo álbum dos, imagine-mos, Billie Jean Loveburst”. Nada de preocupante: “Daqui a dois anos, o mais provável é que as pessoas se esqueçam de mim. Tudo ok. Nunca fiz isto para que se soubesse que exis-tia. No início, nem sequer pensei em mostrar estas canções a ninguém. Isto aconteceu-me e, agora, estou a caminhar segundo os impulsos”.

O primeiro impulso, esse que resul-tou na música de “Wavves”, o pri-meiro álbum, e em “Wavvves”, o segundo, parece desmenti-lo. Até pode ser que o tenhamos esquecido quando for um veterano de 25 anos, mas duvidamos que assim seja. Esta música, que só podia ter nascido hoje, carrega consigo algo de intemporal. Em 2011, decerto estaremos aborre-cidos o suficiente para que continue a fazer todo o sentido.

Ver crítica de discos págs. 42 e segs e agenda de espectáculos, págs. 45 e segs

“Daqui a dois anos, o mais provável é que as pessoas se esqueçam de mim. Tudo ok. Nunca fiz isto para que se soubesse que existia”Nathan Williams

luzfi zeram

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Ícone da energia física e fi gura camaleónica, D. Giovanni continua a seduzir-nos. A encenadora Maria Emília

Correira e o cantor Nicola Ulivieri na nova produção da ópera de Mozart no São Carlos. Cristina Fernandes

fogo

O “D. Giovanni”, de Mozart, último título da presente temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos, é o ter-ceiro desafio da actriz e encenadora Maria Emília Correira na ópera.

É um universo que a apaixona desde sempre e que gostaria de con-tinuar a explorar. Já encenou “As Bodas de Fígaro”, de Mozart, e “O Elixir de Amor”, de Donizetti, no Tea-tro da Trindade, e assina agora a nova produção da versão de Mozart e do seu libretista Lorenzo da Ponte das divertidas e, por vezes, trágicas aven-turas do libertino sedutor. Com estreia marcada para dia 30, o espec-táculo tem direcção musical de Johan-nes Stert e o cantor italiano Nicola Ulivieri no papel titular.

“Acho que D. Giovanni não pertence à nossa ordem de existência. É uma figura que contém elementos que são do nosso quotidiano mas é também uma figura que nos escapa sempre por tudo o que é sítio”, diz Maria Emília Correia. “Nunca saberemos quem ele é tal como ele quis.”

A sua encenação assenta na ideia de D. Giovanni como “um ícone da energia física”, imprimindo a todo o espectáculo uma dinâmica que parte da fisicalidade. “A energia e o movi-mento estendem-se inclusive à figu-ração, feita por jovens actores do teatro e da televisão, que represen-tam muito e não estão lá só para encher os espaços.”

Uma das primeiras coisas que a encenadora disse ao baixo-barítono Nicola Ulivieri foi que queria “um ita-liano de fogo” ao que ele respondeu: “Ok, é leve!”

O cantor italiano é um conceituado intérprete de Mozart e já personificou tantas vezes D. Giovanni como o seu criado Leporello, sob a direcção de maestros tão importantes como Clau-dio Abbado ou Harnoncourt. “É muito divertido fazer Leporello mas considero mais interessante cantar D. Giovanni porque é uma persona-gem muito complexa, onde se desco-brem sempre coisas novas”, diz. “D. Giovanni é também mais difícil pois no imaginário colectivo pode ser de muitas formas. Conseguir convencer todos os espectadores é uma missão quase impossível.”

A ópera de Mozart baseia-se na conhecida lenda de Don Juan, o sedu-tor insaciável, que acaba morto num desvio surreal da acção, pela estátua mortuária do Comendador, uma das suas vítimas anteriores. Esta narração ficcional, cuja origem remonta ao século XIV, serviu de base a inúmeras adaptações literárias, teatrais e ope-ráticas.

Em relação às suas múltiplas inter-pretações, Nicola Ulivieri prefere não ter ideias fixas. “Não quero colocar demasiado o problema pois preciso de ser maleável já que cada encena-dor tem uma ideia diferente.” Adianta, contudo, que não vê em D. Giovanni apenas o mal. “Ele é tam-bém alegre, jovial e carinhoso de modo a conseguir os seus objectivos. Tem também a sua pureza porque é verdadeiro. A sua extraordinária capacidade camaleónica é sincera, doutra forma não seria um mito assim tão grande.” Ulivieri refere que sem-pre gostou de trabalhar com encena-dores de teatro e por isso sente-se em sintonia com a encenação de Maria Emília Correia porque esta não pro-põe nada de extravagante. “Tenta pôr-se ao serviço do libreto para fazer um D. Giovanni teatralmente realista, ainda que moderno na cenografia.”

EnigmasA encenadora confirma que não teve “ousadias pós-modernas”. “Já se ence-nou o D. Giovanni de mil maneiras, algumas das quais eu não posso estar de acordo porque atraiçoam o espírito da obra. Não queria inventar uma coisa diferente da que lá está. Nesse ponto fui convencional, a visualização

“D. Giovanni é também alegre, jovial e carinhoso de modo a conseguir os seus objectivos. A sua extraordinária capacidade camaleónica é sincera, doutra forma não seria um mito assim tão grande”Maria Emília Correia

Óp

era

do espectáculo é que é nova pois ten-tei fugir a tudo o que conhecia.”

Localizou a acção em Sevilha - “uma Sevilha conceptual e de hoje” - e pro-curou um compromisso entre a actu-alidade e a época setecentista. “Alguns figurinos remetem para o século XVIII, mas de repente somos transportados para actualidade. Recorri também à influência asiática na decoração, que estava na moda nesse tempo, e inspi-rei-me, por outro lado, em pintores como Watteau e Fragonard, que tem um quadro com a Zerlina, D. Juan e D. Elvira”, explica. “Vi filmes dos anos 20 como o ‘Casanova’ e li muito, mas nem todo este trabalho prévio é evi-dente no espectáculo.”

Não é apenas D. Giovanni que é enigmático, as restantes personagens também são. “Todas transportam um segredo, ninguém é totalmente trans-parente”, diz a encenadora. “D. Ana mente a D. Otávio e vai adiando o casamento, a Zerlina não diz ao seu noivo Masetto que esteve com D. Gio-vanni, o passado de D. Elvira não é claro, assim como a personalidade de D. Otávio. As questões são inter-mináveis.”

A encenadora revela que a estátua falante do Comendador vai ser algo mais imaginativo e sinistro do que é costume e remete quase para um filme de terror, tendo recorrido à ins-piração de “Inferno”, de Dante, que Lorenzo da Ponte também leu enquanto escrevia o libreto. Quanto aos camponeses, Zerlina e Masetto, são “o exemplo da alegria pura”. “O casamento, por exemplo, situa-se visualmente numa festa que vi em Janes, em Sintra. As roupas foram compradas nas feiras e são multico-loridas”, conta.

Como contraste, as personagens aristocráticas de D. Ana e D. Otávio são colocadas num outro século. “São convencionais e têm uma represen-tação diferenciada das restantes.” A D. Elvira deu coordenadas de alguma masculinidade no sentido de ser alguém muito firme, fugindo a “dese-nhá-la como a maluca perturbada” mas foi D. Giovanni quem lhe colocou o maior desafio pelo carácter fugidio e pela sua personalidade enleante. “É o papel mais difícil, mas é o papel que todos os cantores querem fazer”, concorda Nicola Ulivieri. “A D. Gio-vanni ninguém resiste!”

Ver agenda de concertos pág. 45 e 46

D. Giovanni, um italiano de

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18 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

No dia em que são comemorados os dez anos do Museu de Serralves é hoje inaugurada, no Porto, “Serralves 2009”, uma exposição que revela o ponto da situação de uma colecção reunida ao longo de uma década.

Com poucas excepções, as obras agora reveladas pertencem ao espólio da instituição, permitindo assim enten-der um projecto iniciado com “Circa 1968”.

Que compras têm sido feitas? Quais os critérios das aquisições? E ainda, por que razão não foi possível conser-var no acervo trabalhos então dispo-níveis para compra como “Steel chan-nel piece” (1968), de Bruce Nauman, “Il n’y a pas de structures primaires” (1968), de Marcel Broodthaers, ou o “Igloo com albero” (1969), uma obra emblemática de Mario Merz, agora propriedade do Castello di Rivoli, em Turim?

Em dia de “vernissage”, é também revelada ao público a nova peça da artista brasileira Fernanda Gomes, que passa a integrar em permanência o parque de Serralves.

Há dez anos, o Museu de Arte Con-temporânea de Serralves (MACS) inau-gurava com a exposição monumental “Circa 1968”. Na altura, os comissá-rios, Vicente Todolí e João Fernandes,

apresentaram um projecto para o núcleo histórico da colecção através de obras disponíveis para aquisição. A ideia para a constituição do espólio centrava-se num período com início em meados dos anos 1960, momento em que se alteram alguns dos paradig-mas da arte do século XX, nomeada-mente com o emergir de uma série de práticas artísticas através das quais se punham em causa as disciplinas tradi-cionais da pintura e da escultura - da Earth Art à Arte Conceptual, de Fluxus à Arte Povera, do Minimalismo à Per-formance, esta é a época de todas as revoluções.

Nos anos seguintes à “Circa 1968” a instituição procurou incorporar no seu espólio o maior número de traba-lhos nessa colectiva e, segundo João Fernandes, actual director do MACS, esse objectivo foi conseguido em 80 por cento: “Logo de imediato coloca-ram-se outros desafios; um deles era como continuar a coleccionar para além deste contexto histórico que era o nosso ponto de partida para a colec-ção”, nota.

É também por essa altura, há dez anos, que o mercado da arte, sobre-tudo através das leiloeiras, define esse período, com início nos anos 1960, como sendo o de uma mudança de

paradigma. Esse facto faz com que algumas obras emblemáticas apresentadas na “Circa 1968”, como as esculturas “Steel channel piece” (1968), de Bruce Nauman, e “Igloo com albero” (1969), de Mario Merz, ou a pintura “Il n’y a pas de structures primaires” (1968), de Marcel Broodtha-ers passassem rapidamente ao estatuto de objectos de desejo de instituições e coleccionadores privados (a obra de Mario Merz, por exemplo, foi adquirida para o espólio do Castello di

Rivoli, espaço sediado nos arre-dores de Turim, Itália.

“Comprámos outras peças des-ses autores, mas acontece que a ‘Circa 1968’ aconteceu no último momento em que era possí-vel criar uma colecção que integrasse esses anos dentro dos orçamentos que nós tínhamos dis-poníveis”, subli-nha João Fernan-des. “O mercado da arte, nessa altura, dinamiza-se e entra num período de espe-culação crescente [que durou] até

há pouco tempo; as casas leiloeiras internacionais abrem departamentos especializados em arte contemporâ-nea que, precisamente, vão fazer aumentar muito o valor dos artistas desta época.”

Para o director do MACS, foi a expe-riência do seu antecessor, Vicente Todolí - actual responsável pela Tate Modern, em Londres -, em fazer colec-ções, a sua credibilidade junto de gale-rias e junto de artistas, que permitiu obter condições favoráveis para a com-pra de algumas das obras, hoje parte integrante do espólio de Serralves.

Por vezes, esses trabalhos foram

Exp

osiç

ões

Dez anos depois da exposição “Circa 1968”, Serralves revela a sua colecção numa exposição em que se propõem confrontos inesperados entre as obras. A inauguração é hoje. Óscar Faria

Serralves uma arte de coleccionar

“Interessa-nos adquirir obras que representam um questionamento da condição do objecto de arte. Não estamos a correr atrás do mercado”

Serralves teria de gastar um quarto do seu orçamento para comprar uma das pinturas de Christopher Wool expostas recentemente no museu. “Untitled” foi doada pelo próprio em 2008

Vídeo “The True Artist is an Amazing Luminous Fountain”, de Bruce Nauman, obra adquirida em 1999

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009 • 19

pagos ao longo de vários anos e, é um facto, se a instituição tivesse optado por outra via, hoje seria impossível reunir esse acervo, não só porque as obras teriam sido entretanto vendi-das a outras entidades, mas também devido ao orçamento disponível para aquisições: “O ‘igloo’ do Mario Merz, uma obra que gostaríamos de ter na colecção, foi vendida por um valor elevado”, refere João Fernandes, apontando de seguida a forma como se tornou evidente, após a solidifica-ção do núcleo histórico do espólio, a necessidade de colmatar as lacunas do acervo relativamente aos anos de 1980 e de 1990, um trabalho em pro-gresso.

Sem correr atrás do mercadoAs novas aquisições não são ,con-tudo, realizadas sem o necessário recuo relativamente ao mercado: “Acho que os museus têm uma dis-tância maior do que o coleccionismo particular em relação àquilo que acontece; raríssimas vezes um museu começa a comprar de imediato a última novidade”, esclarece João Fer-nandes. “Interessa-nos adquirir obras que representam sempre um ques-tionamento da condição do objecto de arte, da sua relação com a vida e, nessa medida, não estamos a correr atrás do mercado.”

O director do MACS tem a consci-ência de estar a competir num con-texto agressivo, com um número crescente de coleccionadores, insti-tucionais e privados. Por isso, uma das políticas de aquisição de Serral-ves é a tentativa de incorporar na colecção trabalhos de artistas a quem o museu tem dedicado exposições: “Luc Tuymans não só falou com a sua galeria para termos condições muito especiais de aquisição de obras, como nos ofereceu, como Miroslaw Balka, o trabalho conjunto ‘The Fence’ [apresentado pela primeira vez na exposição ‘Privacy’, Casa de Serral-ves, 1998], e que nós vamos agora voltar apresentar.”

Com o orçamento que actualmente dispõe para aquisições, um milhão e duzentos e trinta mil euros - 700 mil euros do Estado, 350 mil euros da própria Fundação e 180 mil euros da Câmara Municipal do Porto -, Serral-ves teria de gastar um quarto do seu orçamento para comprar uma das pinturas de Christopher Wool expos-tas recentemente no museu, na expo-sição “Porto-Köln”. Contudo, há o desejo de integrar uma dessas obras no acervo, estando em curso negocia-ções com o artista e com as galerias que o representam, de modo a ser possível obter as condições mais favo-ráveis para o negócio entre as partes - isto acontece após Wool ter doado à instituição uma das suas monotipias, com um valor de mercado elevado, igualmente visível na mostra que é hoje inaugurada. “Quando falamos em valores, eles ficam sempre aquém daquilo que são as ambições de qual-quer museu”, explica João Fernandes.

É que nos últimos anos, em Portugal, “e em função da especulação do mer-cado da arte, houve obras que aumen-taram mais de 100 por cento o seu valor desde que nós as adquirimos; há vários casos assim”.

Confrontos Um dos novos dados a ter em conta é a actual crise económica internacio-nal, um factor que certamente irá aju-dar a repensar muitos dos critérios e parâmetros do coleccionismo particu-lar e institucional. “Um museu tem um programa de trabalho, critérios de escolha e, portanto, dentro desses cri-térios vai procurar as obras, não vai apenas absorver aquilo que está mais disponível à sua volta”, afirma João Fernandes. “Por exemplo, nós temos comprado relativamente pouco em feiras de arte; quando pensamos que vamos representar a obra de um artista na colecção, começamos por trabalhar com ele, não começamos por traba-lhar com a galeria.”

É que, segundo diz, o museu reflecte a segurança de uma obra ser guardada, apresentada, investigada: “Apesar do coleccionismo privado ter evoluído imenso e ter também criado os seus próprios museus, há, no entanto, sem-pre uma incerteza - e hoje sabemos isso mais duramente quando vemos muitas colecções particulares a come-çarem e a dispersarem-se.”

“Serralves 2009”, comissariada por João Fernandes e por Ulrich Loock, director adjunto do museu, surge assim como resposta ao desafio de projectar aquilo que acontecerá no futuro na instituição: “Foi para nós importante colocar as obras em con-fronto de forma a criar novas pistas de leitura que não fossem os modelos mais tradicionais que poderíamos esperar ao nível da cronologia das obras, ao nível da sua indexação a movimentos, a grupos, a linguagens

artísticas, a períodos, etc”, refere João Fernandes. E acrescenta: “Interessou-nos interrogar a natureza e a condição da obra de arte nos confrontos ines-perados que propomos com esta expo-sição; essa é uma linha de trabalho que não impede outras, porque algo que esta mostra inaugura é uma presença regular da colecção de Serralves nos espaços do museu”.

Dez anos depois de “Circa 1968”, a fundação dispõe de um acervo de 1500 obras, encontrando-se também cerca de 2500 obras em depósito em Serralves, sendo de salientar as da galeria Sonnabend, do Ministério da Cultura e da Fundação Luso-Ameri-cana.

E quem entrar hoje nas salas do MACS será desde logo confrontado com um desses trabalhos, neste caso o vídeo “Amazing Fountain” (1998), de Bruce Nauman, que nos diz: “O ver-dadeiro artista é uma maravilhosa fonte luminosa”...

Ver agenda pág. 40

“Possession”, de Paula Rego, uma aquisição de 2006, assim como “Bending”, de Juan Muñoz, em baixo

“Interessou-nos interrogar a naturezae a condição da obra de arte nos confrontos inesperados que propomos com esta exposição; essa é uma linha de trabalho que não impede outras, porque algo que esta mostra inaugura é uma presença regular da colecção de Serralves nos espaços do museu”

“The Fence”, que Luc Tuymans ofereceu a Serralves em 1998

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20 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

Há detalhes significativos: em 1997, o Partido do Centro, de Anne Enger, ficou em segundo lugar nas eleições norueguesas e integrou a coligação governamental. Enger podia ter esco-lhido praticamente qualquer pasta no Governo. Escolheu a da Cultura.

O que é que isto tem a ver com a exposição de Arquitectura Norue-guesa Contemporânea 2000-2005, que está actualmente na Faculdade de Arquitectura de Lisboa? Tudo. Enger foi uma das mais entusiásticas defensoras da construção de uma ópera em Oslo - e hoje, o edifício pro-jectado pelo atelier Snøhetta e ven-cedor do Prémio Mies van der Rohe, tornou-se um dos principais símbolos da cidade.

Quando visitamos Oslo vamos reparando noutros “detalhes”: por exemplo, que o Museu Nacional se chama de Arte, Arquitectura e Design. Que a Escola de Arquitectura e Design de Oslo tem condições magníficas, com enormes oficinas equipadas para fazer maquetes em diferentes tipos de material. Que existe uma institui-ção chamada Norskform, criada para incentivar o debate e estabelecer pontes nas áreas do design, arquitec-tura e planeamento urbano. E que esta tem um serviço educativo com a missão de “abrir caminho para uma aprendizagem da arquitectura e design, através da experiência directa”.

E depois disso começamos a não nos surpreender quando vemos gru-pos de escolas com crianças entusias-madas a visitar o edifício da ópera ou a exposição sobre os 20 anos dos Snøhetta. Ou quando nos apresentam o projecto (no valor de cem milhões de euros) para uma série de interven-ções arquitectónicas, desde miradou-ros a edifícios de apoio a 18 estradas

turísticas, pelos sítios mais bonitos do país.

Mas os Snøhetta - autores também da Biblioteca de Alexandria, no Cairo, e com um ambicioso projecto em curso para uma nova cidade no deserto nos Emirados Árabes Unidos - não são o único atelier de arquitec-tura da Noruega. E é isso que a expo-sição em Lisboa, sobretudo feita de fotografias, quer mostrar.

Gelo e escuridãoA arquitectura norueguesa parte de “uma grande preocupação em obser-var o local” e de uma “experiência de construir muito próximo da natu-reza”, explica Børre Skodvin, res-ponsável pelo Instituto de Arquitec-tura da Escola de Arquitectura de Oslo. Ele próprio é autor (com Jan Jensen) de um dos projectos da expo-sição, uma igreja nos arredores de Oslo, com a parte de baixo das pare-des em vidro e a parte superior feita de lâminas de pedra colocadas de forma incerta, deixando passar pon-tos de luz. Dentro da igreja os arqui-tectos optaram por deixar no local as grandes pedras que rompem do chão como se estivessem a invadir o edifício.

Mas se aqui a relação com a natu-reza era relativamente pacífica, há exemplos de situações mais extre-mas. Outro dos edifícios incluídos na exposição é um projecto dos arqui-tectos Jarmund/Vigsnaes para um centro universitário em Svalbard, uma região onde há três meses por ano de completa escuridão - uma fotografia mostra em primeiro plano veados deitados na neve, ao longe uma montanha também coberta de neve, e entre uns e a outra um edifí-cio cor-de-fogo.

“Num sítio assim tem que se reagir à natureza, porque ela é muito forte”, afirma Anne Marit Lunde, curadora do Museu Nacional. Num terreno gelado, e onde há muitas tempesta-des, o edifício teve que ser construído sobre pilares, de forma a que o vento possa varrer a neve por baixo dele. O exterior é forrado a folha de cobre, um material que se pode trabalhar bem, mesmo a temperaturas muito baixas. E o interior é em madeira, com a qual os arquitectos criam uma espécie de caminhos como os que vão sendo escavados nas minas (que exis-tem em grande quantidade na região).

Arquitectura da madeiraA madeira é, aqui, um dos elementos mais constantes nos edifícios, a par do cimento, do aço e do vidro (o már-more, base da construção do edifício da ópera, é um material bastante menos utilizado). Todos eles foram usados pelo “pai” e referência maior da arquitectura norueguesa, Sverre Fehn (1924-2009), vencedor do Pri-ztker em 1997, e continuam a ser usados pela nova geração, que termi-nou os estudos nos anos 90 e que tem beneficiado de um “boom” da cons-trução a partir de 1995.

Actualmente, Oslo, sobretudo a zona em torno da ópera, está trans-formada num estaleiro, com uma série de projectos novos em vias de serem construídos. Isto não significa, no entanto, que a crise não tenha chegado aqui. O petróleo, descoberto no final dos anos 60, é um seguro de vida para a Noruega mas não a torna imune, e ateliers como os de Jensen e Skodvin e os Snøhetta já se viram

obrigados a reduzir o número de fun-cionários. Mas há algo de mais estru-tural no papel dos arquitectos na Escandinávia, explica Karl Otto Elle-fsen, director da Escola de Arquitec-tura, num texto incluído no catálogo: “[...] uma proporção excepcional-mente grande do que é construído [...] foi, de uma forma ou outra, pen-sado por arquitectos.” E desde o período do pós-guerra, quando foi

necessário reconstruir o país, que “os arquitectos puderam posicionar a arquitectura como uma peça neces-sária para pôr a política em prá-tica”.

Afinal, se calhar os detalhes não são detalhes.

O Ípsilon viajou a convite do Ministé-rio dos Negócios Estrangeiros da Noruega

Na Noruega a arquitectura está nos detalhes

A Ópera de Oslo, prémio Mies van der Rohe, deu grande visibilidade à arquitectura norueguesa - e o país quer aproveitar isso para mostrar mais, numa exposição que está agora

em Lisboa. Para os noruegueses, a arquitectura é uma aposta estratégica. Alexandra Prado

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A arquitectura norueguesa parte de “uma grande preocupação em observar o local” e de uma “experiência de construir muito próximo da natureza”Børre Skodvin

Projecto dos arquitectos Jarmund/Vigsnaes para um centro universitário em Svalbard, uma região onde há três meses por ano de completa escuridão

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Não sabemos se o calhamaço que é “A Montanha Mágica” (mil páginas no original alemão e, a partir de agora, 816 páginas no melhor portu-guês - e algum francês, quando as paixões têm rédea solta) terá pare-cido mais digerível a um leitor de 1924 do que a um leitor da era do Twitter (capacidade máxima: 140 caracteres). Já em 1934, no diário que fez da sua primeira viagem aos EUA, a bordo de um vapor, e durante a qual leu o “Dom Quixote” de Cer-vantes, Thomas Mann (1875-1955) constatava que “a chamada literatura de entretenimento” era “sem dúvida a mais aborrecida do mundo” e que “tudo o que é bom requer o seu tempo”, o que soa a advertência con-tra o espírito generalizado da época. “Encontra-se largamente divulgada a opinião de que o que se lê em via-gens tem de ser do mais leve e super-ficial, balelas que ajudam a ‘passar o tempo’. Eu nunca entendi seme-lhante atitude”, escreve em “Viagem Marítima com Dom Quixote” (editado em 2008 pela Dom Quixote).

“A Montanha Mágica” é um desses clássicos mais conhecidos que lidos, título obrigatório no “ranking” da fic-ção insuperável do século XX, sendo provável que mesmo o leitor que nunca o leu esteja familiarizado com o seu enredo, que, aliás, se pode resu-mir em 140 caracteres: o jovem Hans Castorp chega a um sanatório para uma curta visita de três semanas e ali permanece sete anos, até ao início da Primeira Guerra. É só isto, e isto requer mil páginas - ou, em moeda portuguesa, 816 páginas? Sim (a acção importa menos que a narração). E não (este é um romance caleidoscópico, que suscita, porventura, tantas inter-pretações diferentes quanto o número de leituras, e leitores que tiver).

Uma tripO mais seguro é dizer aquilo que “A Montanha Mágica” não é: um livro para ajudar a “passar o tempo”. Num breve prólogo, Thomas Mann propõe-se narrar “com profundidade, rigor e minúcia”, preparando o leitor para uma experiência singular do tempo. “Não será, pois, num abrir e fechar de olhos que o narrador conseguirá con-tar a história de Hans. (...) O melhor que ele tem a fazer é não tentar prever quanto tempo se manterá envolvido em tal projecto”, escreve. Resumindo (em menos de 140 caracteres): “A Montanha Mágica” é uma voluptuosa máquina do tempo. Hermann Kurzke, biógrafo de Mann (“Life as a Work of Art”, Princeton University Press, 2002), descreve o romance como um triângulo invertido, “assente na sua cabeça”, chamando a atenção para a extravagância da sua estrutura - cada capítulo é maior do que o anterior (na versão portuguesa, o primeiro tem 17 páginas, o sétimo e último tem 215). Ao mesmo tempo, nas secções iniciais do livro, correspondentes à chegada

de Hans e as suas primeiras três sema-nas no sanatório, o tempo parece pas-sar muito devagar. Episódios de pou-cos minutos ou horas podem ocupar páginas e páginas e, à medida que se encaminha para o final, a passagem dos anos pode suceder em breves fra-ses. O que corresponde à experiência que o protagonista, Hans Castorp, tem do tempo no sanatório suíço: ali, nas montanhas, retirado do mundo, “o tempo das pessoas não interessa para nada” e a “unidade mínima é o mês”. Mas o que Mann deixa implícito e explicita, por fim, nas páginas 612-613, é que a sua intenção é “narrar acerca do tempo”, que “A Montanha Mágica” é “um romance sobre o tempo”. Uma “trip”, como se insinua: não é por acaso que nessas mesmas páginas Mann se refere a experi-ências com drogas e respectivos efeitos na dilatação do tempo. O sanatório é um mundo paralelo, um idílio (doentio, mas um idílio), com regras próprias e um tempo espe-cífico, que nada têm a ver com o mundo normal, “lá de baixo”, que é como os hóspedes da montanha se referem à vida prática e activa, à rea-lidade fora dali. A experiência da leitura tem o mesmo efeito que o sanatório tem em Hans Castorp. “É uma realidade paralela”, como sugere Gonçalo M. Tavares, talvez o escritor português que mais tem cultivado um parentesco com a literatura germânica da primeira metade do século XX (Musil, Walser, Mann, só para citar alguns autores). “A dimensão física (número de páginas) é tão importante que nos obriga a sair da rea-lidade. E é tão significativo o tempo que levamos a ler o livro que depois nos lembramos bem dos sítios

Uma máquinÉ um título obrigatório no “ranking” da fi cção insuperável do século XX. Um romance sobre o t

tradução feita directamente a partir do alemão. Valeu a pena esperar: podemos ler “A M

O mais seguro é dizer aquilo que “A Montanha Mágica” não é: um livro para ajudar a “passar o tempo”. Num breve prólogo, Thomas Mann propõe-se narrar “com profundidade, rigor e minúcia”, preparando o leitor para uma experiência singular do tempo

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Guilherme d’Oliveira Martins refere que “este homem comum que é Hans Castorp [anti-herói do romance] se pode assemelhar ao ‘homem sem qualidades’ de Robert Musil”, que também assiste à derrocada “do tempo das grandes causas”

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Publicado em 1924, “A Montanha Mágica” remonta a 1912, quando a mulher de Mann, Katja, contrai doença pulmonar que conduz ao seu internamento num sanatório nos Alpes suíços R

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onde os lemos. É um paradoxo: puxa-nos tanto tempo e com tanta intensi-dade para fora da nossa vida que acaba por interferir nela. E por per-turbar a natureza normal das coi-sas.”

Não é só o tamanho, mas a natu-reza omnívora da obra, o seu desejo de totalidade. Mann revela um poder de apropriação quase enciclopédico: “A Montanha Mágica” é um íman do caldo cultural e científico que domi-nava a Europa antes da I Guerra Mun-dial, um retrato do “status quo” da medicina, da psicanálise, da filosofia e da política à época (sem esquecer uma deriva por experiências de ocul-tismo). Como se Mann quisesse dizer ao leitor: deixe o mundo real para trás, tem aqui tudo o que precisa. O carácter fabuloso da obra fará o resto. Não sabemos se “A Montanha Mágica” não será, ao fim e ao cabo, um sonho de Hans Castorp. Afinal, o narrador refere-se a ele como um “sonhador”, e é um ruído estrondoso - a “explo-são” da guerra - que o faz despertar da sua longa hibernação no sanató-rio. E, chegado aqui, é provável que o leitor tenha esquecido o que Mann anunciara no prólogo: “é bem possí-vel que a nossa história tenha algo a ver com o mundo fabuloso”.

Publicado em 1924, “A Montanha Mágica” remonta a 1912, quando a mulher de Thomas Mann, Katja, con-trai uma doença pulmonar que con-duz ao seu internamento durante meio ano num sanatório nos Alpes suíços, na região de Davos (tal como o sanatório Berghof do romance). Mann visita-a durante três semanas, período em que o médico do sanató-rio lhe diagnostica “um catarro nas vias respiratórias superiores” e reco-menda uma estadia mais prolongada, à semelhança do que acontece com Hans Castorp. Mann relatou que o ambiente do sanatório descrito nas secções iniciais do seu romance cor-responde à sua própria experiência e às impressões que lhe causaram a referida passagem pelo estabeleci-mento onde se encontrava a mulher. Mann começa a escrever “A Monta-nha Mágica” em 1913, ano da publi-cação de “Morte em Veneza”. O plano é conceber uma novela que sirva de contraponto satírico a “Morte em Veneza” - depois da trágica destrui-ção da vida ordeira de um grande escritor, a cómica perdição de uma existência banal (Hans Castorp) pelas mesmas vias do amor e da doença.

Mas a escalada da guerra interfere na escrita, que é interrompida devido ao crescente envolvimento político de Mann, que durante este período e até à publicação do livro vai sofrer convulsões ideológicas que o levam a mudar de flanco - o conservador nacio-nalista e anti-republicano con-verte-se num defensor da via democrática. Quando retoma a escrita do romance, em 1919,

na do tempochamada “Montanha Mágica”

tempo. Uma “trip”. Não tarda nada faz 100 anos, mas só agora surge em Portugal na primeiraMontanha Mágica” como se Thomas Mann tivesse escrito em português. Kathleen Gomes

Como se Thomas Mann escrevesse

em portuguêsGilda Lopes Encarnação demorou ano e meio a traduzir.

Não tarda nada, “A Montanha Mágica” faz 100 anos e só agora surge pela primeira vez em Portugal numa tradução directa do alemão, sem passar por nenhum intermediário. A versão disponível desde os anos 50 era a tradução feita para o Brasil por Herbert Caro, judeu alemão exilado em Porto Alegre, publicada pela Livros de Brasil. Uma tradução “meritória” e “competente”, avalia o escritor e ensaísta Frederico Lourenço. “Mas não é de forma alguma uma obra de arte em língua portuguesa. Isso é que fazia falta.” Gilda Lopes Encarnação, tradutora da nova edição, com selo da Dom Quixote, diz que a versão que já existia “não é má porque não é errónea”. Aponta-lhe “omissões, pequenos esquecimentos”, mas “o principal problema é estilístico, talvez pela proximidade que o tradutor tentou manter em relação à língua alemã. Quase que reconhece a língua de partida, mas é preciso fazer um esforço para se perceber o que quer dizer em português”. A nova tradução tomou-lhe ano e meio, e Gilda está actualmente a traduzir, para a mesma editora, “Os Buddenbrook”. Sobre “A Montanha Mágica”, diz: “O meu objectivo foi que a obra se lesse com a mesma naturalidade e fl uência com que o leitor de expressão alemã lê a obra.” Missão cumprida: o que uma não-leitora de alemão pode dizer é que nunca lhe ocorreu que estava a ler uma tradução.

Frederico Lourenço considera que “o humor requintadíssimo” de “A Montanha Mágica” é

“intraduzível” (o que não o impediu de, em 2005, propor a sua tradução à Cotovia, antes de descobrir

que os direitos já tinham

sido comprados pela Dom Quixote). Gilda

Lopes Encarnação garante que o original alemão “não resiste de forma nenhuma à tradução”. O que não quer

dizer que não tenha enfrentado

desafi os: a escrita de Mann “é muito

idiossincrática” - “há até dicionários da terminologia” específi ca do escritor -, para além da descrição minuciosa que faz de personagens e paisagens. Tradutora de Hoff manstahl e Celan, além de fi losofi a alemã, faz parte da equipa liderada por João Barrento que trabalha na tradução de Robert Musil. Leitora de português na Universidade de Salzburgo entre 1997 e 2003, convidou José Saramago em 1999 para dar ali uma conferência, viagem que acabou por inspirar o último romance do escritor, “A Viagem do Elefante”.

A “sua” “Montanha Mágica” é uma tradução para acabar com as traduções daquele romance? “Nenhuma tradução é defi nitiva”, responde, e diz que “a situação desejável” para a edição de Mann em Portugal “seria aquela que acontece com Musil: uma equipa e uma coesão no trabalho dessa equipa, que debate e esclarece dúvidas entre si”. K. G.

“O meu objectivo foi que a obra se lesse com a naturalidade e fluência com que o leitor de expressão alemã lê a obra”Gilda Lopes Encarnação

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Para Frederico Lourenço, escritor e ensaísta, fazia falta mais do que uma tradução “competente”; fazia falta a obra de arte em língua portuguesa

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a superfície narrativa mantém-se - um sanatório na montanha, a deso-rientação educativa do herói por via da paixão e da doença, o confronto de argumentos entre um liberal e um conservador (Settembrini e Naphta), a irrupção da guerra como desfecho - mas a moral da história mudou ine-vitavelmente. “A Montanha Mágica” teria sido outra coisa se tivesse sido publicada antes de 1924. Dois germa-nistas, António Sousa Ribeiro, da Uni-versidade de Coimbra, tradutor de Karl Kraus e Brecht, e Teresa Seruya, professora de literatura e cultura alemã na Faculdade de Letras de Lis-boa, confluem neste ponto: o romance traduz a “procura interior” de Mann em termos do seu pensamento polí-tico, o “choque de ideias” - fratricida, até, porque o escritor se incompatibi-lizou com o irmão, Heinrich, cujas opiniões eram contrárias à sua - que foi a sua cabeça durante a produção do livro. “A Montanha Mágica” é “uma súmula do estado da civilização e das linhas de pensamento da cultura euro-peia nos anos 20, mas já vista à luz da evolução ideológica” de Mann, nota Teresa Seruya. É por isso que, dos dois rivais que disputam a alma de Castorp, o racional e humanista Settembrini e o autoritário e repressivo Naphta, Mann “consegue dar alguns traços simpáticos” ao primeiro (e tor-

nar o segundo repulsivo). “Isso teria sido impossível se Thomas Mann tivesse terminado ‘A Montanha Mágica’ antes da guerra”, explica Seruya.

O homem sem qualidadesHans Castorp, tal como é descrito em “A Montanha Mágica” é um “burgue-sinho de boas famílias”, “singelo” - “o nosso herói insignificante”, como o narrador não se cansa de referir. Que tipo de herói é este? “Hans é um nome vulgaríssimo na Alemanha, como João”, nota António Sousa Ribeiro. “Até o nome remete para a mediania do zé-ninguém. É um anti-herói, mais do que um herói.”

Guilherme d’Oliveira Martins, pre-sidente do Centro Nacional de Cul-tura, refere que “este homem comum que é Hans Castorp é alguém que se pode assemelhar ao ‘homem sem qualidades’ de Robert Musil e aos protagonistas de ‘Os Sonâmbulos’ de Hermann Broch”, que também assis-tem à derrocada “do tempo das gran-des causas”. Castorp é um espectador das discussões exaltadas entre Set-tembrini e Naphta que quase sempre estão acima do seu entendimento, mas até na sua simplicidade ele detecta as inconsistências intrínsecas à argumentação de um e outro. “Com o tempo, ele vai perceber que Settem-brini e Naphta são incapazes de viver um sem o outro, que são almas

gémeas”, resume Oliveira Martins. Naphta e Settembrini seriam meras caricaturas se não fosse o facto de representarem ideologias que domi-naram o século XX.

Hans Castorp é um homem comum, em suma, porque, como o leitor con-temporâneo de Mann, ele é um espec-tador do “absolutismo das ideias” que “acaba no campo de batalha”, conclui Oliveira Martins.

Castorp “é um jovenzinho à procura de caminho”, descreve Sousa Ribeiro, e “A Montanha Mágica”, fiel a uma tradição da literatura alemã, é o seu “bildungsroman”, o romance da sua aprendizagem. Mas o desfecho abrupto do livro, com o herói enter-rando os pés na lama das trincheiras e cantando sobre a morte quando jul-gávamos que tinha escolhido a vida, é inconclusivo. Ele fica entregue ao seu destino enquanto o leitor fica entregue a uma obra aberta - e à ambi-guidade da “mensagem” de Mann. As interpretações divergem. O livro “não aponta um caminho, não dá uma solu-ção, tem como programa equacio-nar”, refere Sousa Ribeiro. “Nesse sentido, é um romance experimental - permite ensaiar um conjunto de posi-ções, pô-las em confronto, mas acaba por não tirar uma lição. Inscrevendo-se na tradição do romance de apren-dizagem, é o anti-romance de apren-dizagem, quase uma paródia.” Teresa Seruya: “Todo e qualquer ponto de vista é desmontado e confrontado com outro. Nunca há um ponto de vista estável, e isso é muito moderno.” Moral da história, para Guilherme d’Oliveira Martins: Castorp aprendeu que “o valor das ideias é relativo” e o leitor pode vislumbrar nessa obra aberta que “há uma superioridade ética na liberdade de espírito”. Maria Teresa Delgado Mingocho, especialista em Mann, completa: quando volta para a planície, Hans Castorp não é o mesmo que a tinha deixado, porque entretanto “teve uma preparação” para a vida, experimentou “esse mis-tério e essa aventura do que é ser-se humano”. Agora, “tem de saber gerir o que aprendeu”.

Assim como o leitor, no fim de “A Montanha Mágica”.

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“É tão significativo otempo que levamos a ler o livro que depois nos lembramos bem dos sítios onde os lemos. É um paradoxo: puxa-nos tanto tempo e com tanta intensidade para fora da nossa vida que acaba por interferir nela”Gonçalo M. Tavares

“É bem possível que a nossa história tenha algo a ver com o mundo fabuloso”, escreve Mann no prólogo de “A Montanha Mágica”

Cartaz do fi lme, de 1982, de Hans W. Geissendörfer que adapta o romance; com Christoph Eichhorn como Hans Castrop e ainda com interpretações de Rod Steiger e Marie France Pisier

“Todo e qualquer ponto de vista é desmontado e confrontado com outro. Nunca há um ponto de vista estável, e isso é muito moderno” Teresa Seruya, professora de literatura e cultura alemã na Faculdade de Letras de Lisboa

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Gonçalo M. Tavares, talvez o escritor português que maistem cultivado um parentesco com a literatura germânica da

primeira metade do século XX (Musil, Walser, Mann...)

“The Wanderer Above the Mists”

Pintura de Caspar David Friedrich

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ORQUESTRA NACIONAL DO PORTOChristoph König direcção musicalAlban Gerhardt violonceloPedro Frias actor/narrador (Prokofieff)

P.I. Tchaikovski Abertura - Fantasia Romeu e JulietaDmitri Chostakovitch Concerto nº 1 para violoncelo e orquestraSergei Prokofieff Suitede Romeu e Julieta

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Duas versões da mais trágica história de amor de sempre encontram-se num mesmo programa sob o signo da música russa - Tchaikovski e Prokofieff retrataram o drama de Shakespeare sobre um amor condenado. Destaque ainda para o regresso de Alban Gerhardt, especialista em concertos para violoncelo do período Romântico.

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BIO

É perigoso julgar alguém pela sua reputação. Alastair Campbell, o todo-poderoso assessor de Tony Blair entre 1994 e 2003, chegou a Lisboa prece-dido da fama de conselheiro implacá-vel e não necessariamente polido.

Veio promover o livro em que des-creve os nove anos que passou ao lado de Blair, “Os Anos Blair”, e parecia interessado em dar uma imagem mais suave do que a que lhe ficou colada nesse período. Conhecido como um dos homens que construiu a máscara pública de Tony Blair, falou sobre o modo como a política é vivida por detrás das máscaras. Escreve no livro que Tony Blair o escolheu quando ainda estava na oposição, porque precisava de um estratega e havia poucos. Como é que um assessor de imprensa tem este grau de importância?Era o que ele queria que fizesse. Que-ria que fosse um porta-voz mas tam-bém queria que fizesse estratégia polí-tica. Isso tornou-se mais difícil por causa da pressão dos media moder-nos, que reduzem tudo ao curto prazo. Ele conhecia-me suficientemente bem para saber que compreendia os media e sabia como era possível superar o fosso que historicamente existia entre eles e o Partido Trabalhista. Nessa altura havia uma discussão sobre se o líder trabalhista devia ser Tony Blair ou Gordon Brown. E dizia-se que o que separava os dois era a diferença entre o estilo [Blair] e a substância [Brown]. Acho que isso é errado. Dizia-se isso porque Blair é um grande comunica-dor e era isso que as pessoas viam. Mas

a sua verdadeira força era ser uma pes-soa capaz de tomar decisões. Ambos têm pontos fortes em áreas diferentes e houve tempos em que a relação entre os dois foi muito difícil. Mas qual é a qualidade que fazia dele um líder? O estilo, a capacidade de comunicar, ou a capacidade política?Não se podem separar as coisas. O mais importante num líder moderno é que o escrutínio é tão intenso que é preciso ter todas as qualidades.

Quando Blair vence as eleições pela primeira vez, em 1997, a imprensa está toda com os trabalhistas. A partir de certa altura isso começa a mudar e o Governo passa a ter muito má imprensa. O seu trabalho não era precisamente evitar que isso acontecesse?Em parte creio que sim. Mas não sei se poderíamos ter feito uma coisa dife-rente. Os trabalhistas sempre tinham tido uma má imprensa e boa parte dos jornais eram de direita. Nós libertáva-mos mais informação, havia mais declarações “on the record”, o pri-meiro-ministro falava mais do que os anteriores. Tudo isso eram tentativas de nos abrirmos, mas isso foi lido pela imprensa como uma tentativa de a manipular. Não sei o que se passou. A partir de certa altura decidiram que não gostavam de nós e exageravam a importância do que fazíamos. Quando foi a questão do Iraque foi terrível...Já vamos ao Iraque. Esta situação começou muito antes disso.Em parte creio que - e não quero ser muito conspirativo ao dizer isto - o media achavam que, com os conser-

vadores, eram eles que faziam a agenda. Agora, era o Governo a fazê-lo e a oposição não servia para nada. Então, decidiram que iam ser eles a oposição.Os media tornaram-se a oposição? Não havia outra oposição?Nós enfraquecemos a oposição, ocu-pando o centro e ficando lá. Mas não foi essa capacidade de ocupar o centro que levou os media a apoiar-vos?Ao princípio sim. Mas, com o passar do tempo, a imprensa de esquerda começou a achar que não éramos sufi-cientemente de esquerda e a imprensa de direita começou a achar que nós não éramos suficientemente de direita. Para o público isso não interessava muito. Não se esqueça que, mesmo depois do Iraque, ganhámos uma ter-ceira eleição. As pessoas apoiavam-nos muito mais do que os media. E eles ficaram ressentidos com o facto de nós dizermos que não eram tão importan-tes como pensavam. Também come-çaram a ficar obcecados comigo de uma forma estranha. Lendo o livro, percebe-se que não tinha os jornalistas em grande consideração. Não é exactamente amável com eles...Desagradava-me a forma como a cul-tura dos jornalistas se desenvolveu e eu desafiei-a. Posso dar-lhe dezenas de exemplos de histórias que sabia serem falsas. Quem escreve acha que não vai ter resposta. Eu nunca tive pro-blemas em fazê-lo e era muito directo. Se aparecia alguém num briefing meu que tinha escrito uma coisa que eu achava uma porcaria, eu dizia-lhe isso. E às vezes dizia que achava que tinham

inventado a história e que se tivessem investigado teriam percebido que era falsa. E chegámos à questão do Iraque. Em 2003 você sai de Downing Street acusado de ter tornado “mais picante” (“sexed up”) um relatório dos serviços secretos sobre a alegada ameaça das armas de destruição maciça de Saddam Hussein. Alterou esse relatório?Não. E fui completamente ilibado dessa acusação.O que se passou então? A afirmação de que havia uma ameaça em 45 minutos não era real?O primeiro-ministro decidiu que que-ria partilhar tanto quanto era possível com o público a informação que tinha dos serviços secretos e apresentou-a ao Parlamento. A acusação foi de que tínhamos “sexed up” o relatório, que tínhamos tornado [a ameaça] maior do que era, mas o que emergiu durante a investigação é que tínhamos sido cautelosos e meticulosos. Ainda defende que a invasão foi uma decisão correcta?Penso que o resultado final não foi o que devia ter sido. Mas onde havia uma ditadura brutal agora há um princípio de uma democracia, começa a ser possível levar uma vida normal. Demorou mais tempo do que esperávamos? Sim. Demasia-das pessoas morreram? Sim, obvia-mente. Foi uma decisão muito difícil mas o que quis explicar no livro é que cada novo dado que chegava dos ser-viços secretos nos preocupava ainda mais. E que era preciso tomar uma decisão.

Durante anos, Alastair Campbell fez a ponte entre Tony Blair e os jornalistas britânicos. Estratega psombra em boa parte por causa da má relação que tinha com os media. No seu livro de memórias “

anos que em que o New Labour transformou o Reino Unido. M

Alastair Campbell O homem que foi

“Desagradava-me a forma como a cultura dos jornalistas se desenvolveu e eu desafiei-a”

Campbel, que passou nove anos ao lado de Blair, elogia Bush. “Tony Blair também acreditava que era preciso atacar o Iraque”, diz

a sombra de Tony Blair

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Mas o que escreve é que logo a seguir ao 11 de Setembro a invasão do Iraque já era um dado adquirido pelos americanos.Sim. E Tony Blair também acreditava que era preciso atacar o Iraque.Então para que serviam relatórios como o que conduziu à sua saída se a decisão já estava tomada?A decisão não estava tomada. Mas ele [Blair] estava cada vez mais preocu-pado e achávamos que tínhamos de enfrentar o problema. Por isso quise-mos ser mais transparentes. Normal-mente não apresentamos publica-mente relatórios dos serviços secretos. Era uma coisa absolutamente legítima. Não era a causa para a guerra, era a causa para ele estar cada vez mais pre-ocupado.Mas a razão era a mudança de regime e não as armas de destruição maciça?Até Bill Clinton tinha essa política, nós não. A questão é o modo como a situ-ação do Iraque evoluiu.Acusa a BBC de ter conspirado para você sair. Porque é que a relação era particularmente má com eles?Não digo bem isso. Penso, quanto ao Iraque, que muitos dos seus principais jornalistas eram pessoalmente contra a guerra. Quanto à questão do relató-rio, isso foi um nível diferente de acu-sação. A BBC nem sequer verificou a história. Mas é o momento em que decide sair?Não, já tinha tomado essa decisão e acabei por ficar mais tempo por causa desse inquérito. O dia em que Kelly

[David Kelly, cientista que terá infor-mado a BBC sobre as mudanças intro-duzidas no relatório e que se suicidou a seguir à divulgação deste] morreu foi um dos piores da minha vida. Sabia que ia ser acusado pelos media e sabia que já tinha aguentado o sufi-ciente. Tratava-se de alguém que eu não conhecia, que não me conhecia, que pode ou não ter-me censurado. É obviamente alguém que disse alguma coisa a um repórter, mas nin-guém podia imaginar que ele se ia matar.Elogia George W. Bush afirmando que as pessoas passam a vida à espera que apareça um político que diga o que realmente pensa e que quando isso acontece já não o querem. Provavelmente, ele absorveu a ima-gem que as pessoas tinham dele. Tinha uma compreensão muito maior do mundo do que se pensa. E era muito irónico, fazia muitas piadas sobre si próprio. A minha política não é a dele. Mas se ele fosse um imbecil, como teria chegado ali? Hoje vemos Obama quase como um Deus e Bush como um demó-nio. Não é verdade. São ambos seres humanos com pontos fortes e pontos fracos. No meu diário talvez haja pes-soas que eu trato demasiado mal e pessoas com quem sou complacente. Mas são as minhas impressões, em momentos específicos.Tony Blair disse que se você fosse religioso seria um fundamentalista islâmico.Sei o que ele quer dizer. Acha que eu sou excessivo a fazer as coisas.

Ver crítica pág. 32 e segs.

Liv

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a político e porta-voz, foi saindo da s “Os Anos Blair” dá-nos o seu relato dos . Miguel Gaspar

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Quando o escritor espanhol Ricardo Menéndez Salmón foi a Auschwitz fez uma visita guiada com um polaco, um homem cujos avós tinham morrido ali. Durante a visita ao campo de con-centração, o guia não emitiu nenhum juízo moral. “Mostrava-nos as coisas simplesmente”, conta agora Ricardo Menéndez Salmón, o autor do romance “A Ofensa” (Porto Editora) que participou no LEV- Encontro de Literatura em Viagem, em Matosi-nhos.

“O único juízo moral que se permi-tiu fazer foi quando nos mostrou umas fotos aéreas, tiradas pelos aliados. E disse: ‘Estas fotos foram feitas nos anos 42 e 43.’ Nelas via-se perfeita-mente o funcionamento dos fornos crematórios. Como se nos estivesse a dizer: ‘Sabiam perfeitamente o que estava a acontecer aqui e ninguém moveu um dedo’.”

Em “A Ofensa” - considerado por

alguns media espanhóis como “o melhor romance publicado em Espa-nha em 2007” -, Kurt Cruwell é um jovem alfaiate alemão destacado para a II Guerra Mundial. Antes de partir, o pai diz-lhe estas palavras: “Procura manter-te sempre na retaguarda. O heroísmo foi inventado para os que carecem de futuro.”

No livro, Kurt Cruwell acaba por não suportar a realidade da guerra. A determinada altura, aquilo que vê e que faz entra em conflito com a sua sensibilidade e a personagem rompe as amarras com a realidade. Para Ricardo Menéndez Salmón, Kurt pode ser visto como “uma metáfora”. Desde que Hitler chegou ao poder e o início da II Guerra Mundial passaram-se seis anos. “Nesses anos, Hitler foi dando provas do que era realmente e na Europa ninguém moveu um dedo para evitar que o seu poder aumen-tasse. Isto é uma constante na Histó-

Liv

ros

Ricardo Menéndez Salmón ainda não tem 40 anos e já é uma

referência da nova literatura espanhola. Os seus últimos três

livros são sobre o mal. “A Ofensa” foi editado pela Porto Editora.

Isabel Coutinho

“O mal é um tema

inesgotável”

Ricardo Menéndez Salmón

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O livro passa-se durante a II Guerra Mundial

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ria. Gerámos monstros, deixámo-los crescer e quando esses monstros se começam a movimentar, muitas vezes, viramos a cara para olharmos para outro lado.”

Ricardo Menéndez Salmón publi-cou o seu primeiro livro aos 27 anos. Nasceu em 1971, pertence à primeira geração que em Espanha escreve em liberdade. A sua grande influência são os romances do século XIX. E Dos-toievski, Herman Melville, a literatura de vanguarda, Juan Carlos Onetti, Kafka, Conrad estão entre os seus autores preferidos.

Um dos avós era republicano e esteve no exílio. Costumava dizer-lhe que o mais dramático para os espa-nhóis no exílio não foi perder a guerra. “Claro que isso foi dramático mas, quando a II Guerra Mundial aca-bou, o que mais custou aos exilados espanhóis foi pensarem que as potên-cias democráticas iam tirar Franco do poder e devolver o Governo à República. No entanto, elas não fize-ram nada.”

Para este escritor espanhol o mal é um tema inesgotável, independen-temente do momento histórico esco-lhido. “Kurt podia ser um soldado norte-americano no Iraque”, diz.

Optou por situar a sua história durante a II Guerra Mundial porque é um tema que sempre o interessou. Foi o último grande conflito em que praticamente o mundo inteiro se viu envolvido e o fenómeno do nazismo tem uma pergunta a que é impossível responder. “Licenciei-me em filosofia e todos os grandes nomes da filosofia moderna são alemães. De Kant até aqui, a Alemanha construiu as gran-des formas de pensamento do mundo europeu. A música clássica é alemã, têm artistas maravilhosos... E surge então a pergunta óbvia: como é pos-sível que o país que deu frutos inte-lectuais extraordinários tenha sido, ao mesmo tempo, aquele onde se incubou ‘o ovo da serpente’ (citando o filme de Bergman)? Essa pergunta continua sem resposta porque certa-mente é impossível responder. É a pergunta da modernidade. E é nela que a minha literatura se move.”

Quase um fi lme de LynchQuando Ricardo Menéndez Salmón começa um livro acontece-lhe como aos poetas: a sua primeira impressão é sempre uma imagem e é essa pri-meira imagem que se torna central. No início da escrita do romance “A Ofensa”, Ricardo Menéndez Salmón via um homem que “sofria muito” em frente a um incêndio. “Naquele momento eu não sabia nem quem era aquele homem, nem o que estava a ver”, explica. “ Eu tinha um homem em conflito com o mundo por culpa de algo terrível e era necessário cons-truir uma história para contar essa imagem.” Todo o romance é “uma tentativa de vestir essa imagem, de lhe dar um antes e um depois. É para contar uma história que explique essa imagem.”

“A Ofensa” foi um romance de “escrita lenta”, foram precisos quase três anos de trabalho para que o escri-tor terminasse um “livro muito pequeno”. Foi escrito sequencial-mente, apesar das três partes do romance terem um estilo muito dife-rente. “A primeira parte começa com tom quase realista de reportagem de guerra e a última termina com um tom simbolista, surrealista, quase de filme de David Lynch. A segunda parte é mais filosófica, mais concep-tual, quase um tratado do amor, um tratado do corpo. Cada parte, embora o narrador seja omnisciente, exigia um tom e uma aproximação distinta”, conta.

No trabalho de um escritor há zonas de obscuridade. Ricardo não sabe muito bem por que é que toma

certas decisões. Diz que há muito de intuição na literatura. “Do ponto de vista da escrita o mais difícil foi o final de ‘A Ofensa’. Para mim era claro desde o início que Kurt devia morrer para recuperar a sua humanidade. Como se houvesse uma espécie de paradoxo em que só no momento da morte Kurt voltasse a recuperar essa unidade perdida. Como se só a morte lhe devolvesse o sentido.”

É curioso porque foi precisamente essa última parte que foi lida de maneiras muito diferentes. Há quem diga ao escritor que a última parte deste livro é “um romance de fantas-mas”. Outros dizem-lhe que tem um tom de Grand Guignol, quase de “mascarada”, como se fosse um jogo de máscaras. Outros insistem nos aspectos oníricos.

A história foi levando o escritor nessa direcção e o romance foi ganhando simbolismo porque, acre-dita Ricardo, a personagem já se tinha convertido num símbolo. “Kurt no centro do romance converte-se numa metáfora, já não é só ele, representa muitas outras coisas”, diz, e é uma personagem cuja história nos acom-panha depois de encerrado o livro.

Trilogia sobre o malQuando começou a escrever “A Ofensa” Ricardo Menéndez Salmón não pensava necessariamente em fazer uma trilogia sobre o mal. Mas o que aconteceu é que houve um momento em que estava a trabalhar em três livros ao mesmo tempo e deu-se conta de que os livros estavam a dialogar entre si. Não porque um livro remetesse para um outro, são histó-rias distintas.

O segundo romance “Derrumbe” (que vai ser traduzido pela Porto Edi-tora) é uma espécie de “thriller” em que um grupo de jovens atacam um parque temático. Há um assassino em série, um polícia que o persegue e um grupo de jovens terroristas. O escritor espanhol quis reflectir sobre os diver-sos medos da sociedade contempo-rânea (a incomunicabilidade, a soli-dão e a morte). E o romance que fecha a trilogia, “El Corrector” passa-se num só dia, 11 de Março de 2004, o dia dos atentados de Madrid. Começa às 7h da manhã, hora do primeiro comboio e termina à meia-noite. “É escrito na primeira pessoa, quase uma crónica jornalística. O protago-nista sou praticamente eu, tem mui-tos elementos autobiográficos. Per-mitiu-me construir um discurso sobre a manipulação política como outra das formas do mal contemporâ-neo.”

Enquanto escrevia, Ricardo Menén-dez Salmón apercebeu-se de que havia um diálogo temático entre os três romances. O tema da maldade, da dor, do medo, do terror aparecia como um vínculo possível dos três livros. “É um tema que me interessa tanto que fui incapaz de o esgotar num único romance!”

“Gerámos monstros, deixámo-los crescer e quando esses monstros se começam a movimentar, muitas vezes, viramos a cara para olharmos para outro lado”

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A vertigem de Else

Aos 33 anos Rita Durão conserva a aparente fragilidade, mas tem também a segurança para subir à cena como Elsa. Vanessa Rato

A Menina ElseDe Arthur Schnitzler. Encenação: Christine Laurent. Com Rita Durão.

Lisboa. Teatro da Cornucópia - Bairro Alto. R. Tenente Raúl Cascais 1A. Até 21/06. 3ª, 4ª, 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Dom. às 16h00. Tel.: 213961515. 15€

Christine Laurent chama-lhe “Ritinha”, com um acento vago na última sílaba, à francesa. Rita Durão tem esse lado de mulher-criança em que uma fragilidade aparente se torna força. O desamparo e a segurança na medida certa para, aos 33 anos, poder subir ao palco como a adolescente ao centro de “Menina Else”, o segundo monólogo interior de Arthur Schnitzler - depois de “O Tenente Gustel” - e uma das primeiras obras de sempre a expor um drama psicológico na primeira pessoa.

Em 1900, com “O Tenente Gustel” - a história de um oficial do exército que se recusa a confrontar um padeiro em duelo e vê o suicídio como única saída - Schnitzler, então com 38 anos, vê-se destituído do seu posto de oficial superior por ter escrito e publicado uma novela cujos

conteúdos se considerou comprometerem “a honra e o renome do exército austro-húngaro”. Vinte e cinco anos depois volta a trabalhar o mesmo tipo de vertigem individual.

A medida clássica para a tragédia: um dia e uma noite, neste caso um dia e uma noite num hotel de charme perdido entre as montanhas italianas. Else, filha de um conhecido mas endividado advogado amante da bolsa e do jogo, está a passar férias com uma tia e um primo; a parente pobre, a tentar esconder a malha nas meias de seda abaixo do joelho, que é lançada no abismo quando recebe um telegrama de casa explicando que a única maneira de salvar o pai da prisão é falar com um amigo dele, um tal de Dorsday, pedindo-lhe um empréstimo de 30 mil florins.

Else - ou seja, Rita Durão - tem lágrimas nos olhos quando se senta à boca de cena, pernas a baloiçar para

fora do palco, como quem se encolhe num banco de jardim, e nos faz imaginar esse homem mais velho, um negociante de arte, a encostar os joelhos nos dela. Else - ou seja, Rita Durão - volta a ter lágrimas nos olhos quando pondera deixar que o pai se suicide para não ter que se vender àquele homem mais velho que, em troca, lhe pede para a ver nua.

Freud, que considerava Schnitzler o seu duplo na literatura, escreveria em carta: “A preocupação que você tem com as verdades do inconsciente e com os impulsos e instintos do homem, a dissecação que faz das convenções culturais da nossa sociedade, a atenção que o seu pensamento presta à polaridade do amor e da morte; tudo isso me comove com um estranho sentimento de familiaridade. Sempre que me deixo absorver por uma das suas belas criações, encontro invariavelmente sob a

superfície poética que elas apresentam as minhas próprias suposições, interesses e conclusões... Fico com a impressão de que você conhece intuitivamente tudo o que eu descobri com laborioso estudo sobre os outros.”

O inconsciente, pois: é a terrível vertigem mental de Else - a angústia e a dúvida, sim, mas também o escape para o humor, a leveza, a auto-derrisão - que acompanhamos ao longo de duas horas.

Duas horas é muito tempo sozinha em palco. Sobretudo para alguém, como Rita Durão, que nunca antes tinha feito num monólogo. Acaba por se entrar numa espécie de “hipnose”, diz ela. A hipnose de uma dupla solidão - a solidão da personagem, mas também essa solidão literal de um corpo a quem cabe todo um palco. “A percepção das coisas parece alterada, ampliada, tudo ganha uma nova dimensão.”

Projecto antigo este: depois de “Dois Homens” (1998), Jorge Silva Melo sugeriu a José Maria Vieira Mendes que traduzisse “Menina Else” para português e que talvez fosse um bom projecto para Rita Durão; ele ofereceu à actriz um primeiro esboço do texto algum tempo depois. “Há projectos assim, que ficam guardados na gaveta”, diz ela.

Foi Christine Laurent quem se ofereceu pessoalmente para a encenação e Luís Miguel Cintra quem sugeriu que a encenação fizesse parte da programação da Cornucópia. Há projectos assim, que acabam por definir o seu próprio momento - a sua altura certa.

Agenda

Teatro

EstreiamCrucifi cadoDe Natália Correia. Encenação: Miguel Moreira, João Brites. Com Adelaide João, Guilherme Noronha/Miguel Moreira, Paula Só, Sílvia Almeida, Filipe Luz. Palmela. Teatro O Bando. Vale de Barris. De 04 a 28/06. 5ª, 6ª, Sáb. e Dom. às 22h00. Tel.: 212336850. 8€ a 12€. Espectáculo ao ar livre. Aconselha-se o uso de roupas quentes.

XXXII FITEI

Mona Lisa ShowDe Pedro Gil. Encenação: Pedro Gil. Com Ainhoa Vidal, António Fonseca, David Almeida, Mónica Garnel, Raquel Castro, Ricardo Gageiro, Romeu Costa. Matosinhos. Cine-Teatro Constantino Nery. Avenida Serpa Pinto. Dia 01/06. 2ª às 21h30. Tel.: 229392320.

TraiçõesDe Harold Pinter. Companhia: Teatro do Bolhão. Encenação: João Paulo Costa. Porto. Teatro do Bolhão. Pç. Coronel Pacheco, 1. De 30/05 a 31/05. Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 222089007.

BusinessclassEncenação: Antón Valén.

Porto. Rua de Santa Catarina. R. Santa Catarina. Dia 29/05. 6ª às 16h.

Onde Vamos MorarDe José Maria Vieira Mendes. Companhia: Artistas Unidos. Encenação: Jorge Silva Melo. Com Andreia Bento, Cecília Henriques, Pedro Carmo, Pedro Gil, Pedro Lacerda, Sérgio Godinho, Sílvia Filipe. Porto. Teatro Nacional São João. Pç. Batalha.Dia 03/06. 4ª às 21h30. Tel.: 223401910.Almada. Fórum Municipal Romeu Correia. Pç. Liberdade. De 30/05 a 31/05. Sáb. às 21h30. Dom. às 17h. Tel.: 212724928.Guarda. Teatro Municipal da Guarda. Rua Batalha Reis, 12. Dia 29/05. 6ª às 21h30. Tel.: 271205241. 5€.

FIMFA

VampyrDe Jan Veldman. Companhia: Stuffed Puppet Theatre. Encenação: Allan Zipson. Com Neville Tranter. Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II. Pç. D. Pedro IV. De 30/05 a 31/05. Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 213250835. 7,5€ a 16€

Hotel ParadisoDe Anna Kistel, Sebastian Kautz, Thomas Rascher, Hajo Schüler, Frederik Rohn, Michael Vogel. Encenação: Michael Vogel. Com Anna Kistel, Sebastian Kautz, Thomas Rascher, Frederik Rohn. Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II. Pç. D. Pedro IV. Até 29/05. 5ª e 6ª às 21h30. Tel.: 213250835.7,5€ a 16€

Serralves em Festa 2009

Um Mundo Muito Próprio - Tributo a Buster KeatonDe e enc. Alan Richardson. Com Daniel Pinto. Porto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. De 30/05 a 31/05. Sáb. e Dom. às 19h. Tel.: 226156500.

HalfaouïnePorto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. De 30/05 a 31/05. Sáb. e Dom. às 21h30. Tel.: 226156500.

Imaginarius 2009

Meu Coração ViagemCompanhia: Odin Teatret. Santa Maria da Feira. Santa Maria da Feira. .Até 30/05. 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30.

ImperiumPelos Fura dels Baus.Santa Maria da Feira. Pavilhão Desportivo da Lavandeira. Lugar da lavandeira. Até 30/05. 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 256378508. 5€.

Boris GodunovDe Alejandro Ollé. Companhia: La Fura dels Baus. Encenação: Alejandro Ollé, David Plana. Porto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137. Até 29/05. 5ª e 6ª às 21h30. Tel.: 223394947.

Casa-AbrigoCompanhia: Circolando. Santa Maria da Feira. Castelo de Santa Maria da Feira. Vila da Feira. Até 30/05. 5ª, 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 256372248.

DançaSaju George: O Jesuíta BailarinoBailarino:Saju George Moolamthuruthil. Lisboa. Museu do Oriente. Av. Brasília - Edifício Pedro Álvares Cabral - Doca de Alcântara Norte. Dia 29/05. 6ª às 21h30. Tel.: 213585200. 15€.

Boots and Breath + Stone-washed + The Revenge of the Blondes: Camping ViolenceCompanhia: Companhia Instável. Coreografia: António Júlio, Pavlos Kountouriotis, Marianne Baillot. Porto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. De 30/05 a 31/05. Sáb. e Dom. às 22h. Tel.: 226156500. Entrada livre.

AshesCompanhia: les ballets C de la B. Coreografia: Koen Augustijnen. Guimarães. Centro Cultural Vila Flor. Avenida D. Afonso Henriques, 701. Dia 30/05. Sáb. às 22h. Tel.: 253424700. 10€ a 12,50€

Leitura de ListasCoreografia: Filipa Francisco. Bailarino:Filipa Francisco. Porto. Palácio da Bolsa. R. Ferreira Borges. De 02/06 a 03/06. 3ª e 4ª às 21h30. Tel.: 223399000. 10€.

“Onde Vamos Morar”

“Traições”

“Saju George: O Jesuíta Bailarino”

“Ashes”

“A Menina Else” é um projecto antigo

“Crucifi cado”

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32 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

um tiro bem sucedido. Porém, a partir do momento em que o corpo desamparado se afunda no soalho “como num poço sem fundo”, a sua vida em “plano incorpóreo” ganha uma inesperada vivacidade. Começa por trabalhar como vendedor na livraria de Weinstock e, em pouco tempo, participa nas sessões de Mesa de Pé de Galo que convocam César, Maomé, Púchkin, Lenine e outros. É especialmente divertido o diálogo com Lenine, que protesta saudades de Baden-Baden, embora recuse falar da vida além-túmulo sem autorização do plenário...

O carácter simbólico da história não inibe as questões identitárias, Leitmotiv que atravessa as duas fases da obra de Nabokov: a russa (os dez livros que escreveu entre 1926 e 1939), e a americana (tudo o que escreveu a partir de 1941). Smurov é um dos alvos. A seu respeito, Bogdanovitch, classificando Smurov como “canhoto sexual”, escreve: “É notável como estes indivíduos [...] ao mesmo tempo que anseiam fisicamente por um qualquer espécime belo da virilidade madura [...] escolhem para objecto da sua (perfeitamente platónica) admiração uma mulher...”. Um juízo arriscado, como o desenvolvimento da intriga demonstra.

É de sublinhar a irrepreensível tradução de Telma Costa, que também traduziu, entre outras obras, os “Contos Completos”, de Nabokov.

O coração repleto de históriasTodo o livro se desenvolve em espirais, construídas como meditações soltas em torno de identidades difusas. Helena Vasconcelos

DivisaderoMichael Ondaatje(Tradução de Cristina Correia)Porto Editora, €14,85

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“Temos a Arte para não morrermos da Verdade”. Anna, personagem central desta obra de Michael Ondaatje, cita Nietzsche na nota

Ficção

O vigilante de si mesmoSem o fôlego dos romances mais famosos, a noveleta de Berlim ilustra bem a eloquência dos recursos discursivos do autor. Eduardo Pitta

O OlhoVladimir Nabokov(tradução Telma Costa)Teorema, €10

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Em russo, “Sogliadatai” quer dizer espião, ou vigilante. Foi com esse título que Vladimir Nabovov (1899-1977) publicou, em 1938, a novela que em 1965 passou a

chamar-se “The Eye”. Escrita em 1930, recupera, por interposto

Smurov, a memória dos desapossados da revolução bolchevique. “O Olho” vem agora juntar-se à já extensa bibliografia do autor em português.

Nabokov deixou a Rússia em 1919. Seu pai, um proeminente advogado de causas liberais, membro do Parlamento e fundador do Partido Democrata e

Constitucional (Kadet), chegou a ministro da Justiça no governo de

transição. A experiência durou pouco, e a família viu-se obrigada a fugir para Inglaterra, onde Nabokov frequentou o Trinity College. A família mudou-se para Berlim em 1920, mas ele continuou os estudos em Cambridge. Partiu em 1923, depois do assassinato do pai por lealistas monárquicos. Não admira que o tema dos emigrados russos de Berlim lhe seja caro. Afinal, foi na capital alemã que viveu até 1937, quando, para fugir aos nazis, se mudou para Paris e dali para os Estados Unidos.

A novela cabe toda em menos de 90 páginas. Mas seria um erro supor que essa brevidade prejudica o seu lugar na hierarquia da obra. O facto de dispensar o largo fôlego dos romances que fizeram de Nabokov um nome de referência do século XX, casos de “Lolita” (1955), “Fogo Pálido” (1962) e “Ada ou Ardor” (1969), não traduz menor eloquência de recursos discursivos. Pelo contrário. Se, como parece consensual, o virtuosismo do autor atinge a sua melhor forma nos contos (sirva de exemplo, entre todos, “As Irmãs Vane”, de 1959), não é de admirar que “O Olho” faça a síntese dessas qualidades.

“O Olho” põe em cena um conjunto de personagens arquetípicas: um homem de negócios expatriado (Kasmarine), um coronel que combateu no Exército Branco (Mukhine), um diarista bonacheirão (Bogdanovitch), um judeu excêntrico que tem uma livraria e sonha com a Índia (Weinstock), uma médica que conheceu os horrores da Guerra Civil russa (Mariana), etc. Tudo se passa em Berlim.

No centro da intriga está Matilde, “senhora nutrida, desinibida, com um olhar manso”, casada com Kasmarine e amante de Smurov. Smurov trabalha como preceptor de uma família russa “que ainda não tivera tempo de empobrecer”. Ali conheceu Matilde, visita da casa. Matilde é o tipo de mulher que, ao surgir, dá a sensação “de que alguém [subiu] o aquecimento da sala”; a tal ponto que, quando a perdia de vista, Smurov “sentia frio, frio até à náusea”. Ao mesmo tempo que potencia o efeito alusivo, a economia narrativa não elide a minúcia descritiva. Como notou Harold Bloom, Nabokov é mais tchekoviano do que gostaria (ele preferia Gogol), e mesmo aqui isso se nota de forma indelével.

Por razões que o leitor a seu tempo descobrirá, Smurov suicida-se com

inicial, marcando o tom desta história sombria, plena de traumas que nunca saram, de memórias que não se apagam e de almas perdidas que se (re)inventam.

A narrativa começa nos anos 70 numa Califórnia rural e primitiva, um território que ainda conserva a marca da grande Corrida ao Ouro, com vales cheios de neblina, vinhas, cumes suaves e ribeiros de água fresca. Magistralmente recriados nos romances de outro grande escritor, Cormac McCarthy, estes lugares melancólicos – quintas isoladas, povoações com ruas direitas ladeadas de casas de comércio e bares – são o espaço de uma América antiga com a marca exótica e ancestral das línguas índias e do espanhol.

A mãe de Anna morre a dar à luz e o pai recolhe uma outra criança, Claire, que fica órfã ao mesmo tempo. Coop, o rapaz descoberto num esconderijo depois de a família ter sido massacrada, torna-se o quarto elemento deste clã, construído a partir de pedaços desconexos mas unido pela necessidade de criar uma identidade. As três crianças crescem juntas em intensa intimidade, numa atmosfera paradisíaca: o pai trata as duas raparigas como filhas gémeas e ensina a Coop os segredos do trabalho na quinta, enquanto este é, por sua vez, o mentor das “ irmãs “, levando-as a nadar no rio, a montar a cavalo e a guiar. As tragédias que irão emergir desta paz frágil parecem ainda longínquas, mas um passado de derramamento de sangue aponta para um destino funesto.

Anna é escoiceada por um cavalo e fica tão desfigurada que Coop pensa que ela é Claire (uma das várias confusões de identidade do romance). À medida que crescem competem inconscientemente pelo amor de Coop mas o pior chega quando, aos 16 anos, ele e Anna, consumidos por um arrebatador desejo juvenil, se tornam amantes. Quando o pai os surpreende ataca Coop selvaticamente e Anna defende-o apunhalando o pai com um pedaço de vidro. Esta cena feita de brutalidade, ruído, estilhaços e sangue – na realidade um infanticídio e um parricídio falhados – será o ponto de partida para os acontecimentos subsequentes. No mesmo dia cada um

“O Olho” vem agora juntar-se à já extensa bibliografi a de Nabokov em português

Michael Ondaatje é mais um poeta que um romancista

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parte para destinos diferentes: Coop deambula até ao Nevada e torna-se um jogador profissional em lugares como Santa Maria e Tahoe (onde, mais tarde, revê brevemente Claire que, de novo, cuida dele depois de uma luta, embora seja confundida com Anna) e ao acompanhá-lo o leitor mergulha num sub-mundo crepuscular, marginal e brutal; arranja trabalho como investigadora para um advogado de São Francisco e é a única que, de tempos a tempos, regressa para ver o pai, acompanhando-o em refeições silenciosas e carregadas de tristeza; Anna vai para São Francisco onde mora na rua Divisadero, um nome que, para ela, tem uma conotação de “divisão”. Aí dedica-se ao estudo de um famoso poeta, Lucien Segura, que desapareceu um dia sem deixar rasto.

Esta história ocupa a segunda parte do livro e Ondaatje aproveita-a para desenvolver a sua estranha obsessão pela cegueira que já tinha surgido com Alamasy em “O Paciente Inglês“ e com Ananda em “O Fantasma de Anil”. Segura é meio cego desde criança e a sua paixão por Marie-Neige – casada quase criança com um homem muito mais velho – é também fracturada e confusa. Paralelamente, a relação que Anna desenvolve com Rafael – um homem rústico e uma espécie de filho adoptivo do escritor francês – funciona como um espelho (imagem recorrente, sempre quebrado em mil estilhaços) das outras ligações amorosas.

Todo o livro se desenvolve em espirais, construídas como meditações soltas em torno de identidades difusas, num exercício que remete o leitor para os mistérios da própria criação literária. A maior atracção de Ondaatje reside na Natureza, no que esta tem de belo e de violento, e na sua ligação com o desejo sexual e a ânsia erótica.

Tanto a cena da união de Anna e Coop no início do livro, como o fantasmagórico encontro de Segura e Marie-Neige quando ele regressa da guerra, são descritos com uma minúcia e uma estranha calma que remetem para a liberdade poética utilizada por um autor que bebe as suas fontes em Thoreau, Dickinson, Emerson e Anne Dillard (expressamente citada neste livro).

Michael Ondaatje – além da influência budista que o faz utilizar o conceito de “gotraskhalana“, termo em sânscrito que tem a ver com o acto

de chamar os seres amados por um nome “errado” – é mais um poeta do que um romancista. Este “Divisadero” quebra resolutamente a estrutura novelística com a sua linguagem fluida, cadenciada e encantatória, sem fio narrativo e construída sobre momentos que são como epifanias num universo movediço, em que as personagens estão unidas por fios invisíveis e ténues, encontrando o seu caminho na travessia do tempo.

O paraíso nunca chegaDepois do romance “Falconer” e dos geniais contos, sai em português a última e elegíaca obra de John Cheever. Pedro Mexia

Parece Mesmo o ParaísoJohn Cheever(tradução Maria Carlota Pracana)Relógio D’Água, €12

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“Esta é uma história para se ler na cama, numa velha casa, numa noite de chuva”, assim começa este curto romance publicado em 1982, que cem páginas depois termina: “Mas isso é outra história e, como disse no começo, está é uma história para ser lida na cama, numa velha casa, numa noite de chuva.” Talvez este principio e fim mostrem que aqui a narrativa é menos importante do que o tom, elegíaco e algo hermético, e com algumas e inesperadas epifanias.

Num escritor tão pessimista como John Cheever (1912-1982), tendemos a entender a palavra “paraíso”, ainda por cima na sua forma exclamativa (“Oh What a Paradise It Seems”, no original), como uma amarga ironia. Essa ideia não é exacta. O romance apresenta várias figurações possíveis do paraíso, embora de facto nunca seja um paraíso metafísico nem mental. Esse paraíso que Cheever convoca faz-se da banalidade do quotidiano, às vezes muito pouco paradisíaca na superfície mas que, em dados momentos, permite uma felicidade sem motivo: compras em supermercados, idas à praia em família, viagens na auto-estrada, gente a fazer “jogging” para esquecer os seus males, estranhas reuniões paroquiais. Brilhante cronista dos “subúrbios” (que no contexto americano designam os locais de residência da classe média e média-alta), Cheever quase abdica da concepção tradicional de “felicidade”, concentrando-se em sensações e evocações que mantém as personagens à tona de água.

Amor propriamente dito é um sentimento quase ausente. Os casais continuam juntos por comodismo, o sexo é uma compulsão ou um divertimento, e até os laços familiares não contam pouco. Assim, um pai mantém com a filha “uma relação altamente prática, caracterizada

FicçãoO Planalto e a EstepePepetelaDom Quixote, € 14,00O mais recente romance de Pepetela, Prémio Camões em 1997, é um regresso ao

tempo e aos modos da “geração da utopia”. É a história de um amor proibido entre um estudante angolano e uma jovem mongol que se encontram em Moscovo nos anos 1960. “A estória aconteceu”, garante o autor, mas as personagens são ficção, “mesmo aquelas que fazem lembrar alguém”.

As Aventuras de Robinson CrusoeDaniel Defoe(tradução de Maria João Freire de Andrade)Nelson de MatosAs Edições Nelson de Matos inauguram a sua

“Biblioteca Juvenil” com uma nova tradução de um dos mais populares clássicos do romance de aventuras, desde a sua primeira publicação há trezentos anos. É o relato de como Crusoe viajou, naufragou e aportou à célebre ilha deserta, de como sobreviveu sozinho e de como encontrou depois um homem chamado Sexta-Feira.

Os Passos da CruzNuno JúdiceDom QuixoteNovela ou romance, o livro mais recente do poeta Nuno Júdice é a história de um homem que tenta refazer

a história de uma mulher que viveu três séculos antes: “Há em todas estas coisas um halo melancólico, o que tem a ver com mundos que desapareceram, vidas que não sei até que ponto se terão chegado a realizar, pessoas que esperam, ainda, que alguém se interrogue sobre o mistério da sua existência.”

Noite Dentro, Moçambique e Outras NarrativasLaurent Gaudé(tradução de Isabel St. Aubin)ASADepois de “Eldorado”, “A Morte do Rei

Tsongor” e “O Sol dos Scorta” (Prémio Goncourt 2004), publica-se agora esta colectânea de quatro narrativas de Laurent Gaudé, romancista e dramaturgo nascido em Paris em 1972. Disse a crítica francesa que estes contos “perfeitos” revelam “uma qualidade que falta à maior parte dos romancistas, a imaginação e a beleza da escrita”.

Saídas

¬Mau ☆Medíocre ☆☆Razoável ☆☆☆Bom ☆☆☆☆Muito Bom ☆☆☆☆☆Excelente

Num escritor tão pessimista como John Cheever tendemos a entender a palavra “paraíso” como uma amarga ironia

PepetelaNuno Júdice

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Também Ferdinand comprou um Kindle na sua primeira versão e agora não resistiu a adquirir o novo modelo

Isabel Coutinho

Ciberescritas

“Compro gadgets, logo existo”

É cada vez mais frequente encontrar pessoas que vivem fora dos Estados Unidos e que têm um Kindle, o leitor de livros electrónicos da Amazon. O Kindle só é vendido nos EUA e tem características que só funcionam quando se está

em território americano. Uma delas é a capacidade de a partir do próprio aparelho, com um número de cartão de crédito norte-americano, se comprarem e descarregarem livros electrónicos em 60 segundos, sem ser preciso ligar o “e-reader” a um computador (apesar disso, o Kindle funciona também com PC e com Mac através de USB).

No entanto, há quem tenha arriscado a compra como o brasileiro António Carlos Silveira, que numa viagem aos EUA adquiriu o modelo Kindle 2. No seu blogue, que tem o seu nome, colocou um vídeo que fi lmou quando a caixa do Kindle 2 lhe chegou às mãos. “Desembalando Amazon Kindle 2” é o título do vídeo e enquanto vai abrindo a caixa de cartão António vai explicando que esta caixa é menor e menos requintada do que a antiga (a do Kindle original), que o teclado é melhor, etc. António trabalha na Yahoo! Brazil e no seu “post” vai analisando ponto por ponto. Escreve ele: “No novo Kindle2 foram removidos o ‘click-wheel’ e a barra lateral de navegação, que era um certo diferencial do Kindle1. Agora há um direccional de 4 direcções mais o ‘click’. Fiquei um pouco pessimista quando vi a primeira vez esta opção, mas ao usar o novo direccional posso concordar que é um avanço, principalmente com a função de consulta rápida ao dicionário (em inglês obviamente).”

António também considera que o teclado fi cou muito melhor e gosta dos atalhos que se podem activar para aceder rapidamente a comandos sem ter que ir ao menu do aparelho. Mas o que ele acha que melhorou mesmo é “o tempo de resposta da nova tela”, já que no antigo modelo “ao pressionar uma tecla o Kindle demorava uns segundos

para responder o que tornava seu uso muito irritante”. “Agora estou usando muito mais o teclado enquanto uso o Kindle2”, explica.

Apesar destas melhorias António ainda considera o aparelho muito caro e acha que pelo preço que custa devia ter “ tela sensível ao toque: com a introdução do iPhone

todos acabam esperando uma tela com resposta ao toque”, ecrã colorido (“por favor: 16 tons de cinza é sacanagem”), ligação WiFi (“chega de rede sem fi o via celular, habilitando Wifi no Kindle tornaria possível utilizar seus recursos sem fi o em qualquer lugar do mundo”).

Num outro “post”, intitulado “Amazon Kindle - como usar no Brasil” confessa que “usar o aparelho com a rede sem fi o é outra coisa, é possível comprar livros em questão de segundos, ainda bem que não funciona no Brasil, senão estaria falido :-). Também é legal a opção de assinatura de jornal, com a rede sem fi o o jornal é entregue todo dia de madrugada e quando você acorda a versão digital já está no seu Kindle, muito legal.”

Na Irlanda, Ferdinand von Prondzynski também comprou um e colocou as suas impressões no A University Blog. Primeiro só lia clássicos (sem direitos de autor) e os livros que já vinham com o aparelho, mas depois aproveitou uma ida aos EUA para, com um cartão de crédito norte-americano e uma morada nos EUA, encher o aparelho com livros novos. Também ele comprou um Kindle na sua primeira versão e agora, tal como António, não resistiu a adquirir o novo modelo. Explica tudo no seu blogue e acrescenta: “ I acquire gadgets, therefore I am.” (“Compro gadgets, logo existo”, uma variante de “Penso, logo existo”, de Descartes).

[email protected]

(Ciberescritas já é um blogue http://blogs.publico.pt/ciberescritas)

António Carlos Silveirahttp://www.acarlos.com.br/blog/

University Bloghttp://universitydiary.wordpress.com/

principalmente pelo cepticismo”, o protagonista tem experiências bissexuais que incomodam a sua identidade mas não a sua ética, e no enlevo apaixonado temos, por exemplo, uma amante que “uma vez tirou o meu pénis da boca só para me dizer que eu não percebia nada de mulheres”. Até uma descrição anatómica, quase burlesca, é tudo menos sensual: “Sears era um homem amável e não havia aqui descaramento nem arrogância. Parecia, no entanto, desfrutar de uma espécie de autoridade, como se este órgão tão comum, possuído por todos os homens do planeta, fosse um tesouro especial; como a caneta com que se assinou o Tratado de Versailles, roubando a Macedónia à Bulgária, dando à Grécia a sua costa do Egeu, criando várias novas nações conflituosas nos Balcãs, expatriando e deixando sem abrigo populações, oferecendo à Polónia um corredor para o Báltico e espalhando as sementes para discórdias futuras e para a guerra. Ao pôr os órgãos genitais nas calças, Sears parecia pensar que estava a manipular a história” (págs. 45-46).

Tudo então é triste, tudo incoerente, envelhecido, neurótico. Mesmo quando aparece um psicanalista (aqui chamado “alienista”), ele pouco mais oferece como conselho do que: “Se tem assim tantos amigos mande-me alguns para eu tratar.” As personagens têm o que se chama densidade psicológica, mas é uma densidade fragmentada, estão perdidas, vivem vidas irreais. A técnica narrativa, herdeira do conto, não é sequencial mas faz-se por lampejos e elipses, intensidades.

O “paraíso” propriamente dito é um lago, o Lago Beasley, que agora está a ser usado como lixeira, entulho em vez de águas calmas e patinagem no gelo. Impossível fugir à metáfora: “Sears falava com o entusiasmo nascido do facto de ter encontrado semelhança na busca do amor e na busca da água potável. A pureza do Lago de Beasley parecia ter libertado a sua consciência da crença de que a sua própria libidinosidade era uma profunda contaminação” (pág. 102). É dessa contaminação que Cheever fala, tal como Yates ou Brodkey, outros escritores notáveis já traduzidos em português.

Haverá paraíso que escape a essa contaminação, ou seja, é possível que o lago se salve, apesar dos cidadãos preocupados? Aparentemente não, porque os dirigentes locais têm outras prioridades, são outra gente: “Pareciam nomes daquele passado rural em que as famílias partilhavam o nome com ruas, lagos, pauis e às vezes montanhas. O presidente da junta, que segundo Chisholm era um fantoche da oposição, chamava-se Chaunchey Upjohn e os seus lugar-tenentes eram Copley Townsend e Harrison Porter” (pág. 88). Toda esta gente é corrupta, contaminada, ninguém tem a “luminosidade” que Sears procura nas pessoas, só existem castas, crápulas, homens que mentem enquanto olham para as unhas. Toda

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7 DE MAIO A 7 DE JUNHO

A não perder:

CENTRO CULTURAL DE BELÉMTof Théâtre (BE) 29 a 31 de Maio

Les Ateliers Denino (FR) 29 a 31 de Maio

Cie Planet Pas Net (FR) 31 de Maio

CAMA – CENTRO DE ARTES DA MARIONETA

Caroline Bergeron (BE) 29 e 30 de Maio R. AUGUSTA | ROSSIO

Cie Planet Pas Net (FR) 29 de Maio

TEATRO NACIONAL D. MARIA IIFamilie Flöz (DE) 29 de Maio

Clair de Lune Théâtre (BE) 29 e 30 de Maio

Stuffed Puppet Theatre (NL) 30 e 31 de Maio

MUSEU DA MARIONETALa Tête dans le Sac (CH) 29 e 30 de MaioThalias Kompagnons (DE) 31 de Maio e 1 de Junho Madalena Victorino (PT) 5 e 6 de Junho Taiyuan Puppet Theatre Company (TW) 5 a 7 de Junho

M/4

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009 • 35

a gente, como se diz, vive nuns “Balcãs do Espírito”, uma terra desolada.

Em “Parece Mesmo o Paraíso”, o futuro parece não ter futuro, por mais premonições e linguagem esperançosamente técnica que enxameiem o texto. Há tragédias pequenas (um cão abatido), rádios com música atroz, tragédias enormes (um bebé perdido), casas de sereno isolamento e a chuva em algerozes defeituosos. Há um falso final feliz e um paraíso que nunca chega. No seu último texto, John Cheever refere-se várias vezes à “época sobre a qual escrevo”. Que época é essa? É agora.

Memórias

A política também se faz no ginásioRelato a partir de dentro de uma parte da história recente do Reino Unido. Miguel Gaspar

Os Anos BlairAlastair CampbellBertrand

mmmnn

Antigo jornalista e conselheiro político de Tony Blair durante nove anos, de 1994 a 2003, Alastair Campbell foi a principal eminência parda da ascensão e domínio

do New Labour na política britânica. Entrou para a equipa de Blair no

Verão de 1994, quando este assumiu a liderança do Partido Trabalhista e acompanhou-o quando chegou ao poder, em Maio de 1997, pondo fim ao ciclo de 18 anos de governos conservadores, iniciado por Margaret Thatcher.

Saiu em 2003, após um escândalo em que foi acusado de ter falsificado dados de um relatório da espionagem britânica sobre a alegada existência de armas de destruição maciça no Iraque. David Kelly, um especialista do Ministério da Defesa que teria contado a história à BBC, suicidou-se na sequência deste caso, tornando a posição de Campbell insustentável. Blair ficou ainda mais quatro anos em Downing Street, antes de passar a pasta ao actual primeiro-ministro, Gordon Brown, em 2007.

“Os Anos Blair” é o registo das memórias que o antigo jornalista do “Daily Mail” foi escrevendo ao longo desses anos de mudança na política britânica. Primeiro com a viragem do Partido Trabalhista no sentido da “terceira vida”, rompendo com o

isolamento do partido em relação ao centro político, que se acentuou durante os anos em que esteve na oposição ao thatcherismo. Depois com a transformação do Labour no partido dominante da Grã-Bretanha, um período em que o número de 10 de Downing Street se torna o epicentro de inúmeras tempestades, internas e externas. Blair começou os seus anos no poder querendo construir uma “New Britain”, acabou-os a tentar evitar que a invasão do Iraque ficasse como a marca do seu legado histórico.

O livro de Campbell é, portanto, um relato a partir do interior dos salões do poder de um dos períodos mais fascinantes da história política recente da Grã-Bretanha. Mas é também interessante por ser escrito por uma personagem que deu corpo à lenda do assessor de imagem omnipotente como poucos – Karl Rove, o homem que fez as campanhas de George W. Bush, que Campbell identifica como uma espécie de alma gémea, é dos poucos cuja reputação é comparável à do antigo jornalista.

Depois, por Campbell ser, ele próprio, uma personagem. Teve problemas de alcoolismo que superou (era um dos seus temas de conversa com George W. Bush) e que começaram quando estava na redacção do Daily Mail. Segundo contou há tempos ao “Financial Times”, havia um carrinho com bebidas que circulava no jornal logo de manhã, à hora a que em outras redacções é costume venderem-se sandes e sumos. As bebidas destinavam-se aos editores mas Campbell, que ainda não era editor de política, não viu nisso um obstáculo. Não se sabe se foi aí que começou a visceral antipatia do futuro assessor de imprensa contra os seus antigos colegas de profissão, outro dos traços do carácter desta pouca ortodoxa personagem.

O resultado final é um texto rico em episódios e pequenas histórias, algumas particularmente interessantes, como as do período da ascensão de Tony Blair no Partido Trabalhista, outras politicamente reveladoras, como as do período que separa o 11 de Setembro da invasão do Iraque. Os momentos da génese da liderança de Blair e do modo como desenha a ruptura com as tradições trabalhistas (a invenção do slogan New Labour, por exemplo, que Campbell reivindica para si) são fascinantes. A evidência de como a invasão do Iraque estava politicamente pensada muito antes de 2003 é um relato interessante de seguir, bem como o relato dos vários encontros de Blair com George W. Bush. E há todo um ambiente destas e

de outras cimeiras (as europeias, por exemplo) que Campbell relata muito bem. Ficamos a saber até que ponto os ginásios podem ser um espaço de negociação política neste tempo de domínio da imagem em que os decisores políticos não escapam à obsessão pela forma física.

Mas o ponto em que o relato de Os Anos Blair se torna mais fugidio é claramente o do relatório sobre as armas de destruição maciça iraquianas. Tanto no momento em que o relatório aparece e é usado, no período imediatamente anterior à guerra, como durante à investigação da fuga de informação sobre as mudanças ao documento (que Campbell sempre negou) e a morte do cientista David Kelly. Quem tenha seguido o caso, em 2003, não encontra as respostas que esperaria e depara-se com uma narrativa onde vários episódios decisivos parecem ter ficado diluídos num relato onde o leitor tem dificuldade em distinguir o essencial do acessório.

Essa é, aliás, uma característica comum a todo o texto de Campbell. O livro é um relato extensíssimo onde os episódios se sucedem numa ordem quase cronológica e aos quais falta essa distinção entre o que é e não é importante. Os casos e as situações multiplicam-se, com vários juízos pessoais à mistura (a ministra trabalhista Clare Short é um dos ódios de estimação de Campbell). Ou passagens curiosas sobre a difícil relação que um assessor responsável pela imagem de um político pode ter com a mulher de um político, como acontecia entre Campbell e Chérie Blair. Entre todas, a história mais curiosa relatada em “Os Anos Blair” é a de uma conferência trabalhista em que Bill Clinton, já depois de ter deixado a Casa Branca, é a estrela convidada. Clinton arranja maneira de quebrar o protocolo e anda a passear na rua até encontrar um McDonalds onde se instala, para espanto dos seus companheiros de passeio, dos clientes e de toda a gente nas redondezas.

O lado bom do livro é sem dúvida essa viagem ao interior de um período político muito significativo da história recente e ao retrato interno de como funcionavam Blair e a sua

entourage. O lado menos bom é o modo como as histórias se encavalitam umas nas outras, escritas quase como notas do dia transpostas para o texto.

Falta esse “gate keeping” e falta alguma reflexão e distanciamento em relação a tudo o que é descrito. O resultado é um livro que é

possível ler como se fosse uma série televisiva, um episódio aqui, outro ali, ligados por uma trama difusa que é sempre possível recuperar. Funciona como um documento que ajuda a situar uma parte da história tal como ela foi vivida, mas que deixa mais pontas a descoberto do que histórias encerradas. A fragilidade do livro acaba também por ser a sua força.

Alastair Campbell: a principal eminência parda da ascensão e domínio do New Labour na política britânica

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InternetEstamos online. Entre em www.ipsilon.pt. É o mesmo suplemento, é outro desafi o. Venha construir este site connosco.

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Cin

ema

36 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

Morde aqui que eu deixo

A história de uma vampira adolescente e do seu único amigo é um dos mais espantosos filmes sobre a adolescência que vemos em muito tempo. Jorge Mourinha

Deixa-me EntrarLåt den rätte komma in / Let the Right One InDe Tomas Alfredson, com Kåre Hedebrant, Lina Leandersson, Per Ragnar. M/16

MMMMn

Lisboa: Medeia Monumental: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h20, 16h50, 19h20, 21h45, 00h30

Porto: Arrábida 20: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 14h15, 16h50, 19h30, 22h10, 00h50 3ª 4ª 16h50, 19h30, 22h10, 00h50

E se a nova vizinha do lado só sair à noite, não tiver frio mesmo quando está a nevar, irritar os gatos, não for à escola e só entrar em sua casa depois de ter sido convidada, isso quer dizer que... é uma vampira — mesmo que só tenha 12 anos. Ou, melhor, mesmo que só fisicamente tenha 12 anos.

Mas a mais recente revisão do mito dos vampiros não usa o vampirismo como metáfora para o sexo ou para a luxúria (ou mesmo, como “Crepúsculo”, para a abstinência adolescente). “Deixa-me Entrar” é uma história de iniciação à idade adulta que é, ao mesmo tempo, mais inocente do que qualquer história de vampiros alguma vez foi, mas também mais perturbante. Por tudo aquilo que

deixa por dizer — e deixa muito, porque o sueco Tomas Alfredson prefere sugerir mais do que explicar. Toda a componente sobrenatural é elidida, as cenas de violência gráfica contam-se pelos dedos: há qualquer coisa de fábula nesta história de dois adolescentes sozinhos que encontram conforto nos braços um do outro, mas é uma fábula glacial e selvagem, que segue os cânones vampíricos no seu onirismo inquieto ao mesmo tempo que os subverte com a banalidade do subúrbio desenrascado de Estocolmo onde tudo se passa, e que explora o lado animal, instintivo do vampirismo por oposição à fantasia civilizada da sedução romântica.

Oskar é um miúdo de doze anos, filho de pais separados, entregue a si próprio a maior parte do dia e perseguido por um colega de escola que tira especial prazer de o humilhar; as suas fantasias de vingança encontram libertação na faca que mantém escondida debaixo da cama e nas notícias de crimes sórdidos que recorta dos jornais, entre os quais uma vítima que foi sangrada até à morte num subúrbio próximo. A nova vizinha de patamar intriga-o — sobretudo depois de ela se cruzar com ele no pátio do prédio e dizer-lhe que nunca poderão ser amigos.

É o princípio de uma viagem que equaciona o estatuto de “outsider” do vampiro com a alienação adolescente dos miúdos em busca de aceitação por parte dos colegas, mas que também joga de modos extremamente inteligentes com a própria reputação “glacial”, Bergmaniana, do cinema escandinavo. Por trás de um formalismo preciso e extremamente estruturado, Tomas Alfredson injecta sabiamente doses homeopáticas de emoções arrebatadas (amor, ódio, raiva) como só na adolescência conseguimos sentir — e fá-lo sem precisar de carregar no traço,

deixando que um olhar, um gesto, um sorriso digam tudo o que é preciso. Mas também não recua perante o negrume imenso do abismo em que Eli, a menina-vampira, vive — e que não é assim tão diferente do desespero surdo que percorre o quotidiano de Oskar.

O impacto emocional de “Deixa-me Entrar” é tão visceral como a erupção súbita da violência animal que o habita a espaços. E reduzi-lo a mero filme de género é injusto para o que é não apenas uma grandíssima surpresa como um dos filmes mais atentos ao que é ser adolescente que vimos em muito tempo.

TraidorTraitorDe Jeffrey Nachmanoff, com Don Cheadle, Guy Pearce, Saïd Taghmaoui. M/12

MMMnn

Lisboa: CinemaCity Beloura Shopping: Sala 3: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 13h55, 16h20, 18h35, 21h50, 24h Sábado Domingo 11h40, 13h55, 16h20, 18h35, 21h50, 24h; Medeia Saldanha Residence: Sala 7: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h10, 16h30, 19h, 21h30, 24h; UCI Dolce Vita Tejo: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h, 16h20, 19h, 21h30, 24h; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 16h30, 19h10, 21h50, 00h25; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h30, 18h10, 21h30, 24h; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h55, 18h40, 21h20, 00h05

Porto: Arrábida 20: Sala 2: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 14h10, 16h55, 19h35 3ª 4ª 16h55, 19h35; Arrábida 20: Sala 1: 5ª 21h55, 00h30 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 19h05, 21h55, 00h30; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h15, 19h, 21h50, 00h35

Ponhamos a coisa assim: “Traidor” é um “Syriana” que tivesse feito trabalho de ginásio e apresentasse um físico ao nível da inteligência. À superfície, é sobre a perseguição movida pelo FBI a um ex-comando americano, especialista em explosivos e muçulmano devoto, que está agora ligado a uma célula terrorista. Mas o verdadeiro tema de “Traidor” é a manipulação: toda a

gente nesta história está a manipular todos os outros, nada é o que parece, e filme joga a esse nível (mesmo que de modo leal) com o espectador. A chave está numa citação de uma das personagens — e uma citação que não anda nada longe do que Don de Lillo disse em tempos: “o terrorismo é como o teatro, e o teatro é sempre representado para uma audiência”. Isso é, depois, dobrado por Jeffrey Nachmanoff de comentários velados ao mundo em que vivemos, mas o que torna o seu filme tão digno de nota é o modo como tudo isso é integrado de modo inteligente e fluido na forma convencional do “thriller” “globe-trotter” contemporâneo (ritmo nervoso, câmara à mão, fotografia saturada, acção a decorrer em múltiplos países), sem a trair nem a sobrecarregar com declamações desnecessárias. Pelo meio do “refugo” e dos “monos” que as distribuidoras têm passado as últimas semanas a despejar nas salas, há ainda espaço para surpresas como esta, que correm o risco de se perder pelo caminho. J. M.

Os ResistentesFlammen & CitronenDe Ole Christian Madsen, com Thure Lindhardt, Mads Mikkelsen, Stine Stengade. M/12

MMnnn

Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 11: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h, 16h35, 19h10, 21h45, 00h20 Domingo 11h30, 14h, 16h35, 19h10, 21h45, 00h20; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h45, 15h30, 18h30, 21h20, 00h05

É curioso que a manipulação dos ideais patrióticos (embora, forçosamente, de modos diferentes...) esteja no centro de duas estreias da semana. Mas onde “Traidor” se ambienta no pântano moral da “guerra contra o terrorismo”, “Flame e Citron” transporta-nos para a ocupação nazi da Dinamarca durante a II Guerra e para a história verdadeira de dois resistentes dinamarqueses encarregues de eliminar os colaboracionistas locais — sem por isso deixar de passar pelo pântano moral. O filme de Ole Christian Madsen corresponde ao “caderno de encargos” do que imaginaríamos ser um “thriller” de espionagem escandinavo — cuidado formal glacial e existencialismo moral por baixo de uma fachada de género — ao mesmo tempo que transcende essa definição redutora através do elaboradíssimo jogo de espelhos que lhe está no centro. Flame e Citron não passam de peões num tabuleiro do qual nunca

Jorge Mourinha

Luís M. Oliveira

Mário J. Torres

Vasco Câmara

Anjos e Demónios mmnnn nnnnn nnnnn nnnnn

Amazing Grace mmnnn nnnnn nnnnn nnnnn

Deixa-nos Entrar mmmmn nnnnn nnnnn nnnnn

À Noite no Museu mmnnn nnnnn nnnnn nnnnn

Cada um o seu Cinema nnnnn mmmnn mmmnn mmmnn

Um Conto de Natal mmmmn mmmnn nnnnn mmnnn

Os Resistentes mmnnn nnnnn nnnnn nnnnn

Traidor mmnnn nnnnn nnnnn nnnnn

O Último Condenado à Morte a nnnnn nnnnn nnnnn

Zack e Miri Fazem um Porno mnnnn nnnnn nnnnn nnnnn

As estrelas do público

Pelo meio do “refugo” que as distribuidoras têm

despejado nas salas, há espaço para surpresas como

“Traidor”

“Deixa-me Entrar” é uma história de iniciação à idade adulta que é mais inocente e mais perturbante do que qualquer história de vampiros

“Os Resistentes”

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¬Mau ☆Medíocre ☆☆Razoável ☆☆☆Bom ☆☆☆☆Muito Bom ☆☆☆☆☆Excelente

Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009 • 37

apreenderão a dimensão e onde a sua qualidade principal — o seu desejo de manter a Dinamarca livre, a qualquer custo — é sistematicamente usada contra eles por amigos e inimigos, tornando a sua luta numa manifestação de um idealismo quixotesco, condenado desde o primeiro instante mas que brilha como uma espécie de “farol” no meio da moralidade equívoca dos que os rodeiam. Thure Lindhardt (o detective da Guarda Suíça de “Anjos e Demónios”) e Mads Mikkelsen (o vilão de “007 Casino Royale”) traduzem na perfeição a complexidade destes homens que pegam em armas sem compreenderem inteiramente as suas razões, Madsen filma tudo com atenção às ínfimas modulações dos actores; faltaria apenas um pouco mais de ritmo e nervo para “Flame e Citron” se erguer acima da lição de história inteligente mas pesada e descolar como filme de guerra moderno, mas o que aqui temos não é nada mau. J. M.

Zack e Miri Fazem um PornoZack and Miri Make a Porno

De Kevin Smith, com Seth Rogen, Elizabeth Banks, Craig Robinson. M/16

Mnnnn

Lisboa: Castello Lopes - Loures Shopping: Sala 4: 5ª 6ª Sábado

Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 15h20, 18h40, 21h30, 00h10; CinemaCity Alegro Alfragide: Sala 6: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 13h45, 15h50, 17h55, 19h55, 21h55, 24h Sábado Domingo 11h40, 13h45,

15h50, 17h55, 19h55, 21h55, 24h; CinemaCity Campo Pequeno Praça de Touros: Sala 8: 5ª 6ª 2ª

3ª 4ª 14h, 16h05, 18h10, 21h25, 23h35 Sábado

Domingo 11h50, 14h, 16h05, 18h10, 21h25, 23h35; Medeia Saldanha Residence: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª

13h30, 15h35, 17h40, 19h45, 21h50, 00h30; UCI Dolce Vita Tejo: Sala 11: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h55, 18h45, 21h25, 23h55; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 15h45, 18h20, 21h40, 00h20; ZON Lusomundo CascaiShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 15h30, 18h, 21h30, 24h; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h50, 15h20, 18h, 21h15, 23h55; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h40, 18h20, 21h35, 00h15; ZON Lusomundo Vasco da Gama: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 15h50, 18h45, 21h40, 00h15; Castello Lopes - Rio Sul Shopping: Sala 3: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 16h10, 18h40, 21h40, 24h Sábado Domingo 13h40, 16h10, 18h40, 21h40, 24h; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h35, 18h15, 21h05, 23h40

Porto: Arrábida 20: Sala 12: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 14h10, 16h35, 19h10, 21h45, 00h25 3ª 4ª 16h35, 19h10, 21h45, 00h25; ZON Lusomundo NorteShopping: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 16h10, 19h10, 22h, 00h30; ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h40, 18h30, 21h30, 00h20

Há uma ideia genial a funcionar aqui — e, não se duvide, é mesmo genial: como teria sido “Um Amor Inevitável”, a seminal comédia de Rob Reiner com Billy Crystal e Meg Ryan como dois melhores amigos que se descobrem apaixonados um pelo outro, se todo o filme fosse centrado a partir da infame cena do orgasmo na cafetaria? Trocando por miúdos: Smith, o autor “faça-você-mesmo” de clássicos de culto como “Clerks” e “Dogma”, conta a história de Zack e Miri, dois melhores amigos que moram juntos desde que acabaram o liceu mas que nunca pensaram sequer em namorar, até que o estado desastroso das suas finanças os obriga a procurar dinheiro rápido, e a melhor solução parece ser um filme porno rodado lá em casa com a

Cinemateca portuguesa

Sexta, 29Atrás do EspelhoBigger Than LifeDe Nicholas Ray. Com James Mason, Barbara Rush, Walter Matthau. 95 min. M12. 15h30 - Sala Félix Ribeiro

AcidenteAccidentDe Joseph Losey. Com Dirk Bogarde, Stanley Baker, Jacqueline Sassard. 105 min. 19h - Sala Félix Ribeiro

AnzukkoDe Mikio Naruse. Com Sô Yamamura, Kyôko Kagawa, Isao Kimura. 108 min. 19h30 - Sala Luís de Pina

Lake TahoeDe Fernando Eimbcke. Com Diego Cataño, Hector Herrera, Daniela Va-lentine. 85 min. 21h30 - Sala Félix Ribeiro

Hideko, Revisora de AutocarroHideko no Shasho-sanDe Mikio Naruse. Com Hideko Taka-mine, Kamatari Fujiwara, Daijirô Natsukawa. 54 min. 22h - Sala Luís de Pina

Sábado, 30O CarniceiroLe BoucherDe Claude Chabrol. Com Stéphane Audran, Jean Yanne, Antonio Passalia. 93 min. 15h30 - Sala Félix Ribeiro

O Romance de TillieTillie’s Punctured RomanceDe Mack Sennett. Com Marie Dressler, Charles Chaplin, Mabel Normand. 82 min. 19h - Sala Félix Ribeiro

O Testamento do Dr. MabuseDas Testament des Dr. MabuseDe Fritz Lang. Com Rudolf Klein-Rogge, Oskar Beregi, Otto Wernicke. 120 min. 19h30 - Sala Luís de Pina

O RostoAnsiktet De Ingmar Bergman . Com Max von Sydow, Ingrid Thulin, Gunnar Björnstrand. 100 min. M16.21h30 -

Sala Félix Ribeiro

Vencer ou MorrerFort DobbsDe Gordon Douglas. Com Clint Walker, Virginia Mayo, Brian Keith. 93 min. 22h - Sala Luís de Pina

Segunda, 01O Crime Não CompensaKnock on Any DoorDe Nicholas Ray. Com Humphrey Bogart, John Derek, George Macrea-dy. 100 min. 15h30 - Sala Félix Ribeiro

Os Incorruptíveis Contra a DrogaThe French Connection De William Friedkin. Com Gene Hackman, Fernando Rey, Roy Scheider. 104 min. 19h - Sala Félix Ribeiro

SantiagoDe João Moreira Salles. 80 min. 19h30 - Sala Luís de Pina

Batalla en el CieloDe Carlos Reygadas. Com Marcos Hernández, Anapola Mushkadiz, Ber-tha Ruiz. 95 min. 21h30 - Sala Félix Ribeiro

QuaresmaQuaresmaDe José Alvaro Morais. Com Beatriz Batarda, Filipe Cary, Rita Durão. 95 min. 22h - Sala Luís de Pina

Terça, 02Revolta Na BountyMutiny on the BountyDe Lewis Milestone. Com Hugh Griffith, Marlon Brando, Richard Harris, Trevor Howard. 169 min. 15h30 - Sala Félix Ribeiro

Emboscada Na SombraThe Stalking MoonDe Robert Mulligan. Com Gregory Peck, Eva Marie Saint, Robert Forster. 109 min. 19h - Sala Félix Ribeiro

O PântanoLa CiénagaDe Lucrecia Martel. Com Graciela Borges, Martín Adjemián, Mercedes Morán. 103 min. 19h30 - Sala Luís de Pina

LiverpoolDe Lisandro Alonso. Com Nieves Cabrera, Giselle Irrazabal. 85 min. 21h30 - Sala Félix Ribeiro

A Ave NocturnaLady of the NightDe Monta Bell. Com Norma Shearer, Malcolm McGregor, Dale Fuller. 70 min. 22h - Sala Luís de Pina

Quarta, 03Bola de FogoBall of FireDe Howard Hawks. Com Barbara Stanwyck, Gary Cooper. 111 min. 15h30 - Sala Félix Ribeiro

Alice Já Não Mora Aqui Alice Doesn’t Live Here AnymoreDe Martin Scorsese. Com Alfred Lutter, Diane Ladd, Ellen Burstyn, Kris Kristofferson. 112 min. 19h -

Sala Félix Ribeiro

A Mosca NegraPretty LadiesDe Monta Bell. Com Zasu Pitts, Tom Moore, Ann Pennington. 65 min. 19h30 - Sala Luís de Pina

Desierto AdentroDe Rodrigo Plá. Com Diego Cataño, Guillermo Dorantes, Katia Xanat Espino. 110 min. 21h30 - Sala Félix Ribeiro

Toda a Família TrabalhaHataraku ikkaDe Mikio Naruse. Com Musei Tokugawa, Noriko Honma, Akira Ubukata. 65 min. 22h - Sala Luís de Pina

R. Barata Salgueiro, 39 Lisboa. B213596200

“Liverpool”, de Lisandro Allonso

“Os Incorruptiveis contra a Droga”: os anos 70 na Cinemateca

Nas últimas sextas-feiras de cada mês há Encontros de Cinema na Malaposta, um encontro que aposta na divulgação de fi lmes portugueses. Hoje, todas

as curtas-metragens

de Miguel Gomes: “Entretanto”, “Inventário

de Natal” (19h30), “Cân-tico das Criaturas”, “Pre-Evolution Soccer’s One Minute After a Golden Goal in the Master League” e “Kalkitos” (21h30). Sessões apre-sentadas pelo realizador, por Rui Poças, director de fotografi a, e por Fran-cisco Ferreira, crítico do “Expresso”.

Ciclo

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Cin

ema

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ajuda de amigos. A tal ideia genial, contudo, tropeça no primeiro obstáculo — uma “overdose” infantil, inconsequente de humor de casa de banho e palavrões por dá cá aquela palha que se torna cansativa e não parece ter outra justificação que não o “porque sim”. Essa “verborreia” liceal atravessa todo o filme “non-stop” e afoga o bom coração da história, a comédia do desconforto a que Smith parece querer aspirar, a entrega dos seus actores. E, sobretudo, afoga os pontuais momentos inspiradíssimos (e, se arriscarem ir vê-lo, não saiam antes do genérico final acabar senão perdem o melhor gague do filme) — ao ponto de rapidamente darmos por nós a lamentar o desperdício de uma ideia tão boa. J. M.

O Último Condenado à MorteO Último Condenado à MorteDe Francisco Manso, com Ivo Canelas, Maria João Bastos, Nicolau Breyner. M/16

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Lisboa: CinemaCity Classic Alvalade: Sala 2: 5ª 2ª 3ª 4ª 14h, 16h10, 18h30, 21h20 6ª 14h, 16h10, 18h30, 21h20, 23h40 Sábado 11h45, 14h, 16h10, 18h30, 21h20, 23h40 Domingo 11h45, 14h, 16h10, 18h30, 21h20; ZON Lusomundo Alvaláxia: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h05, 15h40, 18h10, 21h10, 23h50; ZON Lusomundo Colombo: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 15h50, 18h15, 21h, 23h30; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h10, 16h, 18h40, 21h40, 00h25; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h15, 16h05, 18h45, 21h25, 24h

Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 3ª 4ª 13h30, 16h20, 19h30, 22h20 2ª 16h20, 19h30, 22h20

É a história verídica de Francisco de Mattos Lobo, pequeno burguês de província que foi o último português condenado a morrer enforcado, ex-seminarista perdido pela sua paixão cega pela tia viúva francesa. E é uma boa história, deitada fora por inépcia pura e simples. Enumere-se: a incapacidade de estruturar minimamente uma narrativa que nunca se decide se quer ser tragédia romântica, filme de tribunal, painel social ou fresco histórico (mas sem meios para ser nenhum deles); a introdução constante de personagens cuja relevância para a narrativa é inexistente (todo o episódio do criado miguelista é perfeitamente supérfluo); a banalidade desajeitada de uma encenação perfeitamente televisiva (apesar da pretensão cinematográfica do écrã panorâmico); e, sobretudo, a sugestão constante de um mistério desfeita por um final abrupto que explica que, afinal, não há segredo nenhum por trás deste crime de amor, apenas um truque barato e espertalhão que serve de engodo. Um equívoco. J. M.

Continuam

Um Conto de NatalUn conte de NoëlDe Arnaud Desplechin, com Catherine Deneuve, Jean-Paul

Roussillon, Anne Consigny. M/12

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Lisboa: Medeia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª 15h, 18h15, 21h30 6ª Sábado 2ª 15h, 18h15, 21h30, 00h30; Medeia Monumental: Sala 1: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h55, 19h10, 22h

É o primeiro momento em que sentimos que o cinema do francês Desplechin, até aqui demasiado seco, estéril, distante, cerebral, se abre à espontaneidade, à emoção, ao humor — “Um Conto de Natal” é uma espécie de “improvisação” imprevisível em tom de jazz moderno, que invoca ao mesmo tempo a energia da Nouvelle Vague e a densidade das experiências mais autorais do cinema francês na sua desconstrução lúdica do dispositivo clássico da reunião festiva de família.

Aqui, tudo gira à volta da

doença da matriarca (uma Catherine Deneuve imperial) e da tensão nunca resolvida entre os dois filhos mais velhos (Anne Consigny e um notável Mathieu Amalric) — mas

Desplechin fala destas coisas muito sérias com

um inesperado tom de irrisão fantasiosa e uma

disponibilidade quase infantil para fintar as expectativas do

espectador sem o enfurecer. Não esperávamos esta elegância quase chaplinesca do autor de “Esther Kahn” e “Reis e Rainha” — e gostamos muito de a encontrar... J. M.

Cada um o seu CinemaChacun son CinémaDe Manoel de Oliveira, Theo Angelopoulos, Olivier Assayas, David Cronenberg, Raúl Ruiz, Walter Salles, David Lynch, Lars Von Trier, Wim Wenders, etc, com . M/12

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Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 10: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h40, 19h05, 21h35, 00h05 Domingo 11h30, 14h15, 16h40, 19h05, 21h35, 00h05

Um filme de “sketches” tão curtos arrisca, desde logo, a dispersão e a irregularidade das múltiplas contribuições. Que existe de comum entre Nanni Moretti e Claude Lelouch, por exemplo? Dito isto, “À Chacun son Cinéma” possui a pujança de um olhar de época, o valor de um retrato de família compósito e, até, irónico, mais ainda do que um “presente de aniversário” para o Festival de Cannes. Que destacar do conjunto? O inteligente exercício de contenção de Oliveira, com um Piccoli fabuloso; a capacidade para reflectir sobre a ficção e a função do cinema de Cronenberg; a oportunidade política do romeno Mungiu; a beleza do olhar de Chahine; ou o onirismo de Tsai Ming-liang. Muito e pouco ao mesmo tempo, que o objectivo era “participar”, como se diria das competições desportivas. O pior de todos? Talvez o de Jane Campion. Mário Jorge Torres

La Fura dels Baus (Espanha)Boris GodunovDE ALEJANDRO OLLÉENCENAÇÃO E DRAMATURGIA DE ALEJANDRO OLLÉ E DAVID PLANA

Sex 29/05 – 21h30Coliseu do Porto

Nacho Vilar Producciones(Espanha)BusinessclassENCENAÇÃO DE ANTÓN VALÉN

Sex 29/05 - 16h00Rua Stª Catarina / BatalhaSáb 30/05 - 12h30Fundação de SerralvesDom 31/05 - 18h00Fundação de Serralves

Pedro Gil (Portugal)Mona Lisa ShowCRIAÇÃO E DIRECÇÃO ARTÍSTICADE PEDRO GIL

Seg 01/06 - 21h30Cine-Teatro Constantino Nery

Filipa Francisco (Portugal)Leitura de ListasDE FILIPA FRANCISCO(EM COLABORAÇÃO COM ANDRÉ LEPECKI)

Ter 02/06 - 21h30Palácio da BolsaQua 03/06 - 21h30Palácio da Bolsa

Artistas Unidos (Portugal)Onde Vamos MorarDE JOSÉ MARIA VIEIRA MENDESENCENAÇÃO DE JORGE SILVA MELO

Qua 03/06 - 21h30Teatro Nacional São João

Familie Flöz (Alemanha)Co-Produção Arena Berlin, Theaterhaus Stuttgart

Teatro DelusioDE PACO GONZALEZ,BJÖRN LEESE, HAJO SCHÜLER,MICHAEL VOGELENCENAÇÃO E CENOGRAFIADE MICHAEL VOGEL

Qui 04/06 - 21h30Cine-Teatro Constantino Nery

Teatro do Bolhão (Portugal)TraiçõesDE HAROLD PINTER COM TRADUÇÃO DE BERTACORREIA RIBEIROENCENAÇÃO JOÃO PAULO COSTA

Sáb 30/05 - 21h30Teatro do BolhãoDom 31/05 - 16h00Teatro do Bolhão

Célia Ramos (Portugal)Filhas da MãeFantasiasEróticas das MulheresPortuguesasDE ISABEL FREIRECRIAÇÃO DE CÉLIA RAMOSE CATARINA ASCENÇÃO

Dom 31/05 - 21h30Biblioteca Municipal Almeida Garrett

26 MAIO - 10 JUNHO2009

WWW.FITEI.COM

32º FESTIVAL INTERNACIONALDE TEATRO DE EXPRESSÃO IBÉRICA

Aqueles que foram os fi lmes mais bem colocados no Palmarés de Cannes - “The White Ribbon”, de Michael Haneke, Palma de Ouro, e “Un Prophète”, de Jacques Audiard, prémio do júri - têm exibição assegurada, em Portugal,

pela Atalanta Filmes. Como, aliás, “Les Herbes Folles”, de Alain Resnais, outro dos destaques da 62ª edição do Festival. Ou “Tetro”, de Francis Ford Coppola e a estreia cinematográfi ca de Fanny Ardant, “Cinzas e Sangue”

Cannes

O episódio de Cronenberg em “Cada um o seu cinema”

Desplechin fala de coisas muito sérias com um tom de irrisão fantasiosa e uma disponibilidade infantil para fi ntar as expectativas do espectador sem o enfurecer

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Cinema

Depois da tormenta Duas raridades cinematográficas, de Peter Lorre e Pabst, produzidas na década de 50, na ressaca da guerra, ambas ambientadas na Alemanha Nazi. Mário Jorge Torres

O Homem PerdidoDer Verlorenede Peter LorreDivisa Editores

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Sem extras

Aconteceu a 20 de JulhoEs geschah am 20. Julide Georg Wilhelm PabstDivisa Editores

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Sem extras

Do ecléctico catálogo da editora espanhola Divisa fazem parte duas raridades cinematográficas, muito

diferentes entre si, mas com dois pontos em comum: ambas são alemãs, produzidas na década de 50, em tempo de ressaca da guerra e ambas decorrem na Alemanha Nazi, com um olhar negro sobre a História recente.

“O Homem Perdido” (1951) aparece assinado por um dos grandes actores secundários (e não só) da história do cinema, Peter Lorre, e constitui a sua única obra como realizador: pequena obra-prima de contenção e de denúncia, esta tragédia moderna narra a experiência de um cientista que mata a noiva, quando se apercebe que ela vendeu os seus segredos aos aliados inimigos, no contexto complexo da II Guerra. Levado pela volúpia do crime, a personagem de Lorre, o Dr. Karl Rothe, continua na sua senda de “serial killer”, incapaz de parar, revisitando um dos papéis paradigmáticos do actor, em “M” (1930) de Fritz Lang.

Filme estranho, muito marcado pela herança expressionista, “Der Verlorene” consegue transmitir o ambiente de neurose colectiva do regime e descreve, de forma terrífica, o assassínio como impulso, sem que se vislumbrem configurações de psicopatia individual e ignorando o remorso e a culpa: em pano de fundo, a sinistra figuração da Gestapo, a facilidade de mudança de nome e de personalidade, conferindo a tenebrosa dimensão de uma lavagem ao cérebro, que parece justificar a violência aleatória e indiscriminada. O trauma da guerra impediu que o público, mais predisposto ao escapismo de fantasias imperiais, melodramas ou musicais, entendesse o alcance da metáfora da culpa colectiva, a manchar a identidade germânica. Por outro lado, a narrativa caótica fez com que se perdesse a essência desta investigação ética, sem tornar claro o modo inteligente como se organizam a acção principal e as digressões, num mosaico de grande beleza. O final, com o “suicídio” debaixo do comboio, possui uma invulgar força.

“Aconteceu a 20 de Julho” (1955), sobre o atentado falhado a Adolf Hitler, por altas patentes das forças armadas, pouco antes da queda de Berlim, tem toda uma outra integração histórica: enquanto Lorre emigrou e fez grande parte da sua carreira nos EUA, o realizador Georg Wilhelm Pabst, um dos nomes maiores do cinema alemão pré-nazi - “A Boceta de Pandora” (1929), “O Diário de uma Mulher Perdida” (1929), ambos com a presença perturbante de Louise Brooks, ou “A Ópera dos Três Vinténs (1931), adaptando Brecht, são obras-primas indiscutíveis - regressou, depois de um interregno francês, à Alemanha durante a guerra e sofria da suspeição de ter “colaborado” com o regime, embora em obras históricas (Paracelsus, 1943) ou de evasão, e não de propaganda explícita.

E nem o relativo sucesso de prestígio de “O Processo” (1948), adaptado de Kafka e com evidentes críticas ao antisemitismo, para aliviar

a consciência, chegou para restaurar a antiga aura perdida, imerso numa produção incaracterística e inglória. Por isso, “Aconteceu a 20

de Julho”, o seu antepenúltimo filme, um ano antes do final definitivo da sua carreira, deve ler-se, sobretudo, como tentativa de exorcizar fantasmas e segue-se, imediatamente a “Der Letzte Akt, versão, ao mesmo tempo trágica e irrisória do fim do ditador. À semelhança do recente “Valquíria”, com Tom Cruise a encarnar a personagem do coronel Von Stauffenberg, mais interessante como cinema, o filme de Pabst tem como objectivo descrever a História e, embora sem grande interesse cinematográfico, falhando a criação de fortes atmosferas ficcionais, é rigoroso e informado pelo cuidado documental, na vizinhança do docudrama, com diálogos transcritos dos registos existentes e cingindo-se às personagens factuais, sem a tentação alegórica revelada no seu filme anterior. Bernhard Wicki constrói brilhantemente um herói verosímil e houve a preocupação de procurar um actor, Willi Krause, que se parecesse fisicamente com Goebbels. Onde o filme falha é na captação da psicose colectiva da Alemanha Nazi, comprazendo-se numa narrativa monótona e sem picos de acção, logo inexistente do ponto de vista dramático.

O que resta de interessante nesta fita datada prende-se, pois, como dissemos com o seu carácter de catarse, muito próxima ainda dos eventos encenados, e com a curiosa hipótese de comparação com “Valquíria”. As cópias são correctíssimas, mas apenas com extras escritos e em castelhano.

Eu não sou daquiUm filme sincero mas desequilibrado sobre a identidade. Jorge Mourinha

Vai e ViveVa, Vis et Deviensde Radu MihaileanuAtalanta Filmes

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Sem extras

Exactamente o que raio é este filme que passou ao lado do público na sua

estreia portuguesa em 2006, que acompanha o percurso de um órfão etíope pela religião judaica e pelo Israel contemporâneo? O realizador Radu Mihaileanu é romeno, mas, radicado em França há longos anos, nada tem a ver com a actual nova vaga romena. “Vai e Vive” passa-se no Israel de hoje, debate as questões de identidade, memória e território que percorrem a actual renascença do cinema israelita, mas apesar do seu estatuto de co-produção e da presença de muitos actores locais, dificilmente podemos olhar para ele como filme israelita. E o que aqui se joga é tanto uma história de passagem à idade adulta como um melodrama socialmente interventivo sobre o destino dos judeus etíopes conhecidos como “falashas” e uma saga familiar que se desenrola ao longo de vinte anos, transpirando boas intenções à distância, desde o seu início de puxar à lágrima num campo de refugiados no Sudão.

O título, “vai e vive”, são as últimas palavras de uma refugiada ao seu filho antes de o mandar embora em direcção a uma vida melhor - o que só mais tarde perceberemos é que Salomon, depois Schlomo, é filho de cristãos, que a mãe que o levou consigo é uma judia etíope, e que toda a sua nova vida, como filho adoptivo de uma família judia sefardita em Jerusalém, é baseada numa mentira primordial com a qual tem de lidar diariamente, pelo meio de todos os obstáculos que tem de navegar num país que não é o seu e onde tem de lutar para ser aceite. Schlomo não é judeu - mas até que ponto é que isso é a essência da sua situação ou apenas mais um factor?

É isso que é interessante no filme de Mihaileanu: o modo como os rituais de passagem de adolescente a adulto (e que a cultura judaica sinaliza significativamente) são dobrados de um questionamento permanente sobre a própria identidade, num país que foi construído precisamente a partir de uma identidade cultural comum. Só que, depois, tudo tomba num esquematismo narrativo previsível, sublinhado a traço grosso pela partitura grandiloquente de Armand Amar e pela câmara sem rei nem roque de Mihaileanu; a força dos lugares-comuns que percorrem toda a história, a banalidade das opções de “mise en scène”, o pontual escorregão para a telenovela (particularmente visível no último terço do filme e no final que roça o inacreditável) sufoca as excelentes prestações dos actores e as boas ideias que surgem a espaços. Não se pode negar a sinceridade de “Vai e Vive” - mas era preciso mais para que este filme disperso e inconstante igualasse essa sinceridade.

“O Homem Perdido”, de Peter Lorre

“Aconteceu a 20 de Julho”, de Pabst

InternetEstamos online. Entre em www.ipsilon.pt. É o mesmo suplemento, é outro desafi o. Venha construir este site connosco.

Uma história de passagem à idade adulta e um melodrama socialmente interventivo sobre o destino dos judeus etíopes

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Sombras que vibram

No edifício Avenida uma das mais sóbrias exposições de Francisco Tropa. Óscar Faria

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Francisco Tropa Lisboa. Espaço Avenida. Av. da Liberdade, 211, 1º. Até 31/5. Sáb. e dom. das 17h às 19h.

Escultura.

No início uma corrente de ar e uma pena de pássaro. Uma sombra projectada sobre a parede, que vibra subtilmente. O início de um voo. A história secreta da aviação, protagonizada por uma semente de plátano e uma mosca.

Há também objectos pousados no chão, esculturas móveis, cubos minimais, garrafas de cerveja atravessadas por uma esponja. E ainda uma linha do horizonte, naturezas paradas ou mortas, conforme a língua - “still nature”, “nature morte”. Uma persistente dualidade, uma aspiração comum, entre o tecto e o chão.

No edifício Avenida encontra-se uma das mais sóbrias exposições de Francisco Tropa (Lisboa, 1968). Um exercício de silêncio que prolonga os projectos “A Assembleia de Euclides”, iniciado em 2005, e “Tesouros Submersos do Antigo Egipto” (2008). A mostra pode ser lida como uma frase, porque se desenvolve num contínuo, no qual se detectam variações formais. Ela é composta por panos e projecções - faltam as mesas, terceiro grupo de peças produzidas no âmbito destes corpos de trabalho. Existe uma tonalidade comum às obras, que aparecem no percurso expositivo como uma progressão na qual é possível vislumbrar uma série de ecos, espelhamentos e heranças de várias tradições - escultura, desenho, fotografia, literatura, etc.

Os trabalhos apresentados pertencem assim a uma linhagem. As sombras projectadas podem ser lidas não só como um desenvolvimento das obras criadas por Lourdes Castro desde 1962, mas também como uma homenagem a Manuel Zimbro, sobretudo no caso da imagem da semente de plátano, que também vibra com o sopro de uma máquina de slides. Numa das peças de chão, composta por placas de ferro recortado sobre juta - na superfície observam-se marcas de uma sola de sapato, fixadas -, é possível encontrar a referência a uma intervenção de Pedro Morais numa das Bienais Internacionais da Estampa, realizada em Paris, no início dos anos 1970 (a proposta deste artista, uma série de bandeiras de vários países da Europa impressas sobre “chiffon” e pousadas no pavimento de diferentes espaços da mostra, acabou por ser retirada

depois de pressões exercidas pelas embaixadas da União Soviética e da Suécia).

Há ainda um subtil envio para os desenhos de João Queiroz e Thierry Simões que, muitas vezes, se servem de um carvão vegetal idêntico ao que se encontra numa escultura.

Ao contrário do que acontecia em anteriores individuais de Francisco Tropa, nesta não existe uma narrativa linear. A mostra faz-se, desfaz-se e volta a fazer-se. As peças têm movimento, exigem uma acção ou afirmam a sua imobilidade. Há um cuidado muito particular na montagem. A sucessão das obras toma em conta a luz e as sombras. Uma espécie de teatro feito de objectos, por vezes delirantes, por vezes minimais - como dois cubos em calcário colocados no chão e separados por uma parede, sendo que um concentra a luminosidade sobre si, enquanto o outro, com o dobro do tamanho, a difunde para o espaço envolvente; ou ainda uma lona com dois tons de preto, pronta a ser dobrada várias vezes até formar um centro quadrado.

Tudo termina, ou começa, com a sombra de uma mosca morta, projectada numa parede. A figura do insecto, uma presença em muitas vanitas, como a “Sculpture-Morte” (1959), de Marcel Duchamp, surge com a cabeça voltada para baixo - há um par deste trabalho do artista francês, a escultura intitulada “Torture-Morte”, na qual uma série de moscas se encontram pousadas sobre a planta de um pé em gesso.

É que, olhando bem, esta mosca, espalmada numa lamela, ampliada por uma lente, é apenas a sombra de uma morte: um ready-made que nos faz meditar acerca da impermanência não só da arte, mas também da vida. Humor negro, sem dúvida.

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009 • 41

“entre”, testemunham um acontecer; nem antes, nem depois. Sublinham igualmente uma paragem. Ali, aqueles textos, transcritos em diferentes tipografias, são sobrepesados, pensados a partir de bronzes, que se curvam de modo a acompanhar as páginas e o vinco que as divide. Como se a escultura nascesse das palavras e estas tivessem origem numa fundição.

Nesse acontecer, entre o texto e a sua sombra, os bronzes que prendem as páginas, sobrevive a leitura, o fazer da memória. Lêem-se as esculturas como se fossem frases de uma comédia ou de um ensaio filosófico - e pode mesmo atravessar-se cada livro na horizontal, sem necessidade de passar à próxima linha, de forma a inventar um novo discurso, sem obstáculos. Há essa ligação íntima entre a pátina dos pesos e o tempo de cada livro, como se estes estivessem a devir arte, porque eles são metade da escultura, a matéria que lhes deu origem. O verbo ganha corpo e deixa-se elevar, um pouco acima da sua habitual superfície, de forma a alcançar novos territórios, outras vidas. As palavras são de Samuel Beckett, Bento de Espinosa e Gilles Deleuze. Quatro esculturas, quatro livros. Uma ética, esta exposição.

O.F.

Saltos no vazio

Desenhos do SolDe Mauro Cerqueira. Lisboa. Espaço Round The Corner - Porta 9F/9G. R. Nova da Trindade - Teatro da Trindade. Tel.: 213420000. Até 28/05. 2ª a Dom. das 17h às 19h.

Instalação.

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Nos anos 1970 um longo período de seca obrigou ao esvaziamento das piscinas de uma vasta área de Los Angeles. O facto foi aproveitado pelos Z-Boys, o mais importante grupo de skaters da história, para inventar novas transições - foi na “Dogbowl”, em Santa Monica, que o mítico Tony Alva

criou a “frontside air”, uma das principais manobras da modalidade vertical. O uso deste género de arquitecturas para a prática do skate voltou a surgir recentemente devido à crise no mercado imobiliário norte-americano - não é raro ver-se os praticantes deste desporto a limparem o lodo entretanto acumulado no fundo de um tanque de água para ali aperfeiçoarem o seu estilo.

Os Z-Boys são igualmente apontados como uma das origens da subcultura punk/skater, sendo hoje famosas as pranchas criadas por

Stacy Peralta e o construtor George Powell, as Powell-Peralta. Um destes skates é usado num dos vídeos que Mauro Cerqueira (Guimarães, 1982) apresenta no Espaço Campanhã - o mais recente espaço independente do Porto, gerido por Miguel Pinho e José Maia.

O filme, caseiro, sem edição e com cerca de 30 minutos, é composto por manobras realizadas por dois skaters de Bristol, Serin e Rich, que tomaram como ponto de partida uma série de desenhos publicados pelo autor no fanzine “Sem Rumo”. A interpretação vai dando lugar a um progressivo afastamento da “pauta”, dando lugar à invenção de novos desafios - o registo, feito no ateliê do artista, documenta assim um processo criativo, feito de um permanente experimentar.

Na parede oposta à apresentação deste trabalho é projectado um outro vídeo, protagonizado pelos mesmos skaters. Contudo, neste caso, Serin e Rich misturam-se com a população local no acto de saltar das margens da Ribeira e do tabuleiro inferior da ponte D. Luís, para o rio Douro.

A performance tem agora lugar no espaço público, num crescendo que leva o estrangeiro a ser o protagonista do mergulho mais corajoso, porque feito de um ponto mais elevado. A grelha da arquitectura do ferro é, assim, o cenário de uma coreografia informal, popular, mas nem por isso menos equivalente conceptual em “Le saut dans le vide” (1960), protagonizado por Yves Klein.

Projectados sobre duas estruturas em madeira - uma peça intitulada “As paredes de um grande tanque”, que faz de cenário e de elemento estruturante da exposição, porque a confina a um território nómada, no

qual acontece a deriva de Serin e Rich -, os vídeos são acompanhados por uma legenda inscrita na parede, um grafitti onde se lê a frase: “Uma das coisas mais bonitas que eu já vi foi

skaters a usar piscinas vazias.” Mauro Cerqueira fabrica obras de

arte com ideias simples e de uma eficácia desarmante. Talvez seja possível um dia ver o seu trabalho ao lado de outros nomes e criações que participam da mesma energia: Bruno Peinado, Shaun Gladwell, Raphaël Zarka, a arquitectura “Free Basin” (2000-2002), instalada pelos Simparch na Documenta XI, em Kassel, ou ainda as fotografias de Craig R. Stecyk III. O.F.

Uma ética

Peso para livro abertoDe Sérgio Taborda. Lisboa. Instituto Franco-Português. Av. Luís Bívar, 91. T. 213111400. Até 5/6. 2ª a 6ª das 08h30 às 21h. Sáb. das 08h30 às 13h.

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As esculturas de Sérgio Taborda (Vila Nova de Poiares, Coimbra, 1958) encontraram o seu repouso ideal na estante de poesia da Nouvelle Librairie Française. Ali instauraram o seu vazio, a sua presença, o seu peso, em livros abertos. Elas funcionam como uma marca no tempo: um intervalo na leitura, a espera de um recomeçar. A sua duração depende de um início e de um fim, por isso surgem

Agenda

InauguramSerralves 2009 - a ColecçãoDe vários autores. Porto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. Tel.: 226156500. Até 27/09. 3ª a 6ª das 10h às 17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 20h.

Inaugura 29/5 às 18h30.

Ver texto pág. 18 e 19

Daniel BurenPorto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. Tel.: 226156500. Até 30/08. 2ª a Sáb. das 10h às 19h. Na Biblioteca. Inaugura 29/5 às 18h30.

Objectos, Publicações.

Sediment IIDe Jakub Nepras. Lisboa. Galeria Arthobler - Lisboa. R. Rodrigues Faria, 13 - Lx Factory (Edifício G. 03). Até 28/06. 4ª a Dom. das 12h às 20h. Inaugura 29/5 às 16h.

Vídeo, Outros.

Contrapontos VisuaisDe Pedro Sottomayor, Susana Neves. Porto. Centro Português de Fotografia - Cadeia da

Relação do Porto. Campo Mártires da Pátria. Tel.: 222076310. Até 10/06. 3ª a 6ª das 10h às 18h. Sáb., Dom. e Feriados das 15h às 19h. FITEI 2009 - Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica. Inaugura 29/05 às 18h30.

Fotografia.

System Project/System (Re)ActiveDe Miguel Rios Design. Porto. Galeria Fernando Santos (Espaço Oficina). R. Miguel Bombarda, 276/282. Tel.: 226061090. Até 29/05. 6ª das 22h às 0h. Apresentação única.

Design.

ResortDe Pedro Valdez Cardoso. Faro. Galeria Artadentro. R. Rasquinho, 7. Tel.: 289802754. Até 18/07. 3ª a Sáb. das 15h às 19h. Inaugura 30/5 às 18h30.

Escultura.

Happy DaysDe Vasco Araújo. Almada. Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea. R. Cerca, 2 / Pç. Camões. Tel.: 212724950. Até 13/09. 3ª a 6ª das 10h às 18h. Sáb. e

Dom. das 13h às 18h. Inaugura 30/5 às 18h30.

Instalação.

ReligioDe Inês Pais. Lisboa. Museu Nacional de História Natural. Rua da Escola Politécnica, 58. Tel.: 213921800. Até 28/06. 3ª a 6ª das 10h às 17h. Sáb. e Dom. das 11h às 18h. Na Sala do Veado. Inaugura 4/6 às 18h30.

Fotografia.

TransparênciasDe Leonor Brilha, Vanessa Chrystie. Porto. Galeria Arthobler. R. Miguel Bombarda, 624. Tel.: 226084448. Até 02/07. 3ª a Sáb. das 15h às 19h30. Inaugura 4/6 às 16h.

Fotografia, Pintura.

ContinuamArquitectura Norueguesa Contemporânea 2000-2005Lisboa. Universidade Técnica de Lisboa. Faculdade de Arquitectura. Espaço Rainha Sonja da Noruega. Rua Sá Nogueira/Alto da Ajuda. Tel. 213 615 000. Até 23 Junho. De 2ª a 6ª das 9h às 18h

Ver texto pág. 20

Photoespaña 2009De Mabel Palacín, Cristóbal Hara. Lisboa. Museu Colecção Berardo. Praça do Império - Centro Cultural de Belém. Tel.: 213612878. Até 26/07. 6ª das 10h às 22h (última admissão às 21h30). 2ª a 5ª, Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 19h (última admissão às 18h30).

Fotografia.

PinocchioDe Jorge Molder. Lisboa. Chiado 8 - Arte Contemporânea. Largo do Chiado, 8 - Edifício Sede da Mundial-Confiança. Tel.: 213237335. Até 10/07. 2ª a 6ª das 12h às 20h.

Fotografia.

As escultura funcionam como uma marca no tempo: um intervalo na leitura, a espera de um recomeçar

Tudo termina, ou começa, com a sombra de uma mosca morta, projectada numa parede

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“Happy Days”

“Pinocchio”,de Jorge Molder

Obra de Tatiana Doll em “Serralves 2009 - a Colecção”

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Pop

O bebé continua a chorar Demente compositor pop, bebé chorão em formato ampliado, Dan Deacon apresentará o seu novo álbum, amanhã, em Serralves. Vítor Belanciano

Dan Deacon Bromst Carpark, distri. Flur

mmmmn

Há dois anos não foram muitos os que deram por ele, mas no álbum de estreia, “Spiderman Of the Rings”, já eram

visíveis as características que poderiam vir a afirmar definitivamente a música do americano Dan Deacon. Na altura, dizíamos que ele descrevera a sua

música da seguinte forma: “é como

ter por perto um bebé chorão que berra por

atenção.” Dois anos depois,

felizmente, o bebé dentro dele

ainda continua a berrar.

E,

desta feita, parece ter resultado, porque muitos mais lhe estão a prestar atenção. O novo álbum não está muito distante do anterior, sintonizando-o com tudo o que fica à margem das convenções pop, mastigando-as, revolvendo-as, fazendo-as suas. É uma sucessão de correrias digitais, de fanfarras exageradas e de informação desconexa aquilo que tem para propor. O método como organiza a informação continua o mesmo, mas a paleta de comunicações está mais densa e o espaço que a acolhe alargou-se.

Às vezes é como se alguém desvairado - um bebé? - pegasse num montão de coisas caóticas e as enviasse pelo ar, para de seguida refazer tudo de forma pormenorizada. No seu caso não interessa tanto perceber o tipo de música que pratica, até porque entraremos num infindável território de utopias (dança jubilatória? Pop sideral? Folk digital heróica?), mas sim reter que Dan Deacon é alguém que consegue transformar o caos num local perceptível, impondo uma organização libertária e uma energia adolescente.

Como os conterrâneos - de Baltimore - Animal Collective, também ele pertence à estirpe de músicos que consegue passar com exactidão para a música aquilo que lhe passa pela cabeça. Cada uma das canções parecem indícios, apontamentos, rascunhos em forma de melodias, mas tudo coincide para um lugar coerente. Amanhã, em Serralves, apresentará este álbum num concerto orquestral. Oportunidade para constatar que um músico também chora.

O tédio inspira

WavvesWavvvesFat Possum

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Isto são canções pop contagiantes: melodias para cantarolar e harmonias ideais para libertar falsetes pouco

afinados. Mas isto também é rock’n’roll desafiante, matéria visceral alimentada por alienação adolescente e

espoletada pela razão mais antiga de todas: o aborrecimento

do quotidiano. E é punk em regime lo-fi, um “menos é mais” feito com o material que está à mão porque, na realidade, não é preciso nada mais. Isto são os Wavves, ou seja, o californiano Nathan Williams.

“Wavvves” é o seu último álbum, sucessor da estreia homónima, editada em cassete - o “v” a mais marca a diferença. Por trabalhar o ruído num contexto pop, a música dos Wavves foi comparada à dos também californianos No Age. Sendo inevitável o paralelismo, os Wavves

são uma outra coisa. Enquanto aqueles são um levantamento comunal concentrado em dois tipos apostados em fazer as coisas acontecer, os Wavves são o miúdo que, simplesmente, se está nas tintas. Sobra-lhe o humor para sobreviver ao tédio do dia que corre, sobra-lhe uma guitarra, uma bateria, um sintetizador e uma evidente capacidade para extrair dali canções - estão soterradas em ferrugem mas agraciadas por um sol retemperador.

“You see me, I don’t care”, frase repetida insistentemente em “To the dregs”, resume a atitude - e vem embrulhada em melodia de inocência Beach Boys e interpretação corrosiva. Já o “when I die” visceral que é a base de “California goths”, seguido do “na-na na na na” de girl-group que se lhe segue, seguido de explosão garageira irresistível, serve tanto para revelar o humor da empreitada quanto o talento intuitivo de Williams.

Estes Wavves que intercalam as descargas eléctricas com “suites” cósmicas danificadas - quais Animal Collective de antigamente, ainda mais primitivos -, que inventaram um hino pop para o século XXI nos três minutos de “So bored”, que investem sobre o lo-fi dos Beat Happening com a ferocidade do solo de “In bloom”, dos Nirvana, estes Wavves que fazem pop para cantarolar e o seu exacto contrário - na mesma canção, o que é obra -, conseguiram um feito raro. Capturaram um estado de espírito, uma sensação de impotência perante o correr dos dias. Mas fizeram-no em música que, simplesmente por existir, é uma vitória sobre essa apatia. Entusiasmante e inspirador. Mário Lopes

A ressaca de Eminem

EminemRelapseAftermath Records; distri. Universal Music

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Cinco anos depois, Eminem regressou do purgatório dos últimos cinco anos, que passou, qual Howard Hughes do hip

hop, fechado na sua mansão de Detroit a emborcar todos os comprimidos a que conseguiu deitar mão. De resto, não era necessário ter lido todas as reportagens publicadas há meses sobre o então iminente “Relapse”, o agora editado sucessor de “Encore” (2004), para saber desse dia-a-dia. Ritalin, Klonopin, Xanax, Percodan, Paxils: estão todos nas primeiras canções. “Relapse” é o álbum da ressaca.

Marhall Mathers a pôr tudo cá fora, Marshall Mathers a vestir a pele de Slim Shady e utilizar as tácticas de choque habituais: em “3 A.M.” é o serial killer que acorda no sofá com corpos desmembrados espalhados pela sala, em “Insane” descreve em perverso pormenor um abuso sexual pedófilo, em “Same song & dance” sequestra e assassina Lindsay Lohan e Britney Spears. Pouco depois, ali a meio do álbum, dispara: “I guess it’s time for you to hate me again”. É isto, Eminem está de volta e devidamente sôfrego.

Sendo um óptimo rapper, de “flow” expressivo e de lírica torrencial, entusiasma a início. O trabalho de produção de Dr. Dre, de uma sábia discrição, concentra-se na criação do ambiente sonoro e entrega todo o protagonismo às palavras. Eminem, cujos versos surgem disparados, aqui e ali, em sotaque que, de forma bizarra, localizaríamos entre as Antilhas e a velha Albion, fala da mãe - tema recorrente em todo o seu percurso - e, acto contínuo, pergunta-nos se não estamos fartos que fale da mãe. Estamos no início. Concedemos que não e acenamos que continue. O problema é o discurso autobiográfico e os cenários choque se esgotarem rapidamente. Há por aqui uma “Bagpipes from Bagdad” equipada com melodia arábica em órgão de feira, mas não é do Iraque que se fala: Marshall Mathers na cama com duas gémeas lésbicas siamesas - e há o momento dissonante que não queríamos conhecer, “Beautiful”, com espírito de balada rock FM e construída sobre sample de “Reaching out”, dos Queen & Paul Rodgers.

Recapitulemos. “3 A.M.”, logo a abrir, capta a atenção - grande entrada. “Stay wide awake”, mais à frente, tem a linha “soon as my flow starts / I compose out like the ghost

Dan Deacon pertence à estirpe de músicos que consegue passarcom exactidão para a música aquilo que lhe passa pela cabeça

Os Wavves capturaram um estado de espírito, uma sensação de impotência perante o correr dos dias

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¬Mau ☆Medíocre ☆☆Razoável ☆☆☆Bom ☆☆☆☆Muito Bom ☆☆☆☆☆Excelente

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of Mozart”, e a tensão do piano a criar novo (bom) cenário de crime cinematográfico. Contudo, são fogachos. “Relapse” é um contínuo.

A produção de Dr. Dre, cadência inquebrável e ambiente soturno impecável, é a ideal para a paranóia, a esquizofrenia e a catarse de Eminem, mas isso não suporta um álbum inteiro de cenários idênticos, das mesmas histórias com personagens diferentes - a mãe, Britney, Mariah Carey e até um Christopher Reeves que Eminem ergue da tumba e encarna para dizer: “I hate you and I still do”.

Não é um regresso glorioso, não tem singles memoráveis que se autonomizem dele. Diz-nos que Eminem está de volta, conta porque esteve ausente e mostra que, na sua

forma de olhar o mundo, tudo se mantém inalterável. Aguardemos pela continuação. “Relapse 2”, a

sequela, já foi anunciada e terá edição ainda durante este ano.

Mário Lopes

Carminho, a grande ilusão

CarminhoFadoEMI

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Como é que se elogia uma fadista? Nove em dez vezes fala-se em alma, definição incorpórea e

simplista para o que é uma equação com inúmeras variáveis: o timbre, a precisão, a dicção imaculada, a intensidade de cada arroubo. Mas ninguém é apenas uma coisa, pelo que sabemos que estamos na presença de uma grande fadista quando ela encerra contradições e ambiguidades. Carminho tem uma característica única: consegue ser simultaneamente popular e contida, tão visceral quanto lúdica. Ouçam com atenção a sequência que a leva de “Palavras dadas” a “Espelho quebrado”. Em “Palavras dadas” não há rédeas na voz, ela dá todas as notas que quer, põe-se a estilar - basta ver o que faz a cada roubado, ou como canta palavras como “verdade” ou “amor”, prolongando aquele “ó”. É popular, é quase popularucha, mas é extraordinária, cheia de cor, com um prazer danado em pôr os pulmões cá para fora.

Esse é um dos segredos: o prazer que retiramos de a ouvir cantar é muito lúdico, mas não no sentido de encenação, antes no sentido de um prazer primário, quase gutural, algo que afecta o corpo. É o puro prazer de ouvir uma grande voz, com inatas qualidades fadistas, voz satisfeita que satisfaz. Mas reparem o que ela faz a um dificílimo tema como “Espelho quebrado”, que Amália cantou: sentimos-lhe a respiração, mas a voz é muito mais contida. Quando sobe não sobe porque sim mas porque é

impossível não subir, e quando desce (em “depois de o murmurar, deixou-me”) nota uma grande sensibilidade ao valor das palavras, ocupando apenas o espaço que o contra-baixo e a guitarra acústica deixam, com grande respeito pelo silêncio que o tema precisa. Este é um dos poucos momentos em que se foge à santa trindade (guitarra portuguesa, viola baixo e guitarra de fado) que ocupa um disco próximo da tradição, mas sem purismos. Ela é magnífica quando pode ser gaiteira, como na “Marcha de Alfama” (controlo exímio do vibrato), e sabe dar calor à voz num fado melancólico e lindíssimo como “O Tejo corre no Tejo”, ou dar peso e fundura a uma coisa magnífica como “A voz”.

Carminho tem apenas 24 anos e canta como se nunca tivesse feito outra coisa. Tem a capacidade de nos fazer crer que o tempo parou e o fado está a nascer hoje, mesmo à nossa frente, como se não houvesse história. É uma ilusão - e a essa ilusão chamamos Arte. João Bonifácio

Tó Trips Guitarra 66Edit. e distri. Mbari Música

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É bonito, não o bonito que o cinismo contemporâneo se habitou a desvalorizar,

bonito mesmo. “Guitarra 66”, primeiro álbum a solo de Tó Trips, nos últimos anos conectado com os Dead Combo, é isso: simples, despojado, parecendo saído do nada. Há discos assim, como se a sua função fosse estar a um canto, murmurando, mas prontos a conduzir-nos à intimidade,

partilhando um lamento, um momento de felicidade, um soslaio de nostalgia, uma viagem, Espanha, Marrocos, EUA, desertos, mares, céus, chuva, Portugal, sempre Portugal. Mas um Portugal que não tem necessidade de se exibir para o ser. É-o simplesmente. São temas instrumentais para guitarra clássica, mareando intuitiva e serpenteante, que a cada nova audição se transformam num momento de descoberta da realidade. De Tó

Trips. Da nossa. Das pessoas de todo o mundo, porque as suas emoções

são iguais em todas as latitudes. É também o disco que aproxima mais o músico do

silêncio e da tradução da existência através de uma forma poética. No seu caso não são precisos grandes artifícios. Basta uma guitarra, algumas ideias, uma respiração introspectiva, deixar fluir o tempo, um imaginário para partilhar, contemplar o mundo, o exterior e o interior, sem a ânsia de descobrir um propósito final nesse seu gesto errante. Vítor Belanciano

JP SimõesBoatoCompact Records

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Depois de dois discos com os Belle Chase Hotel e um com o Quinteto Tati, J.P. Simões lançou-se

a solo com “1970”, extraordinário disco de homenagem à canção Chico Buarqueana, que colheu os moderados encómios que um país pequeno, medíocre e mesquinho pode dispensar aos seus génios (desde que eles não incomodem). “1970” trazia um Simões menos atreito à ironia amarga e mais adulto no sentido em que deixou de esconder a tristeza em que as suas canções sempre se fundaram. Alguma “inteligentsia blasé” perguntou-se, com certo temor existencial, se depois de disco tão honesto este moço pouco confiável voltaria ao porto seguro do bom cinismo. Mas o famoso problema do difícil segundo disco foi resolvido de maneira inóspita: “Boato” é a gravação de dois concertos ao vivo no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz (Lisboa), e do seu alinhamento contam canções do segundo disco dos Belle Chase (“Toillete des Étoiles”), do Quinteto Tati, de “1970” e uma data de canções nunca gravadas, que pertenciam à “Ópera do Falhado” (que JP escreveu e levou à cena) e outras que estavam esquecidas na gaveta - todas traduzidas para piano,

guitarra e a ocasional trompete. Há duas excepções: as canções

que abrem e fecham o disco vêm de um concerto a solo de há muitos anos e nelas JP é acompanhado por uma orquestra. Deus, como o luxo, fica bem a

este vagabundo da melancolia: em “Canção do jovem cão” (em que é acompanhado por Manuel João

Vieira) a linha melódica dos violinos tem flautas em contra-ponto capazes de pôr meninas coquetes a chocalhar ombros desnudos, em fundo há uma deliciosa linha

de baixo, as vozes assentam na perfeição e na ponte há metais e sopros com cheiro a cabaret. É uma tremenda canção e, presume-se, reside aqui o futuro de JP. No resto do disco temos um desfilar de preciosas melodias que vestem tristes sinas e anónimas tragédias. As canções vindas da “Ópera do Falhado” distinguem-se pelas suas longas frases melódicas em ascensão, trespassadas por uma angústia seca. Entre os inéditos domina uma doce e sedutora melancolia, seja quando a canção se veste de tango ou de vaudeville ou de bossa: não há uma melodia fraca, não há dicção que não seja imaculada. JP Simões tornou-se o grande escritor de canções de um país que gostaria imenso que os grandes escritores de canções não tivessem a desconfortável mania de desvelar as pequenas hipocrisias e misérias que nos fundam. Talvez JP devesse escrever umas coisas positivas.. Como a Madonna. Ou assim. João Bonifácio

The FieldYesterday And Today Kompact, distri. Flur

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Há dois anos o sueco Axel Willner surpreendeu o universo demasiado

saturado das linguagens electrónicas de vocação dançante com o extraordinário álbum “From Here We Go To Sublime”. Regressa, agora, com outro óptimo disco que, em relação ao seu antecessor, peca apenas por já não transportar consigo o efeito de surpresa. Não que “Yesterday And Today” faça papel químico do anterior. As propriedades são as mesmas (cadências tecno repetitivas, alusões de ruído estático produzido por guitarras que não estão lá e mantras sonoras que parecem não findar), organizadas de forma diferente. É uma sonoridade tecnológica de montagens ambientais a que o produtor sueco tem para propor, clarões de luz que entram por entre sedimentos digitalizados. A maior parte dos temas parece induzir ao entorpecimento, narrativas circulares que parecem fixar-se numa certa monotonia. Mas existe sempre um motivo que nos tira dessa zona, guiando-nos para planos imperceptíveis. Desta vez há várias participações, com destaque para John Stanier dos Battles, e uma versão - “Everybody’s got to learn

Eminem: não é um regresso glorioso...

JP Simões tornou-se o grande escritor de canções de um país que gostaria que os

grandes escritores de canções não tivessem a desconfortável mania de desvelar as pequenas

hipocrisias e misérias que nos fundam

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Carminho tem apenas 24 anos e canta como se nunca tivesse feito outra coisa

“Guitarra 66”, primeiro álbum a solo de Tó Trips: é simples, despojado; é bonito

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44 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

sometime” dos Korgis. Mas tudo o resto são instrumentais que partem em direcção ao infinito. É um disco que atravessa os limites de muitos idiomas - tecno, house, trance, ambientalismo, rock -, isolando partículas de cada um, transformando-as em momentos onde a música para dançar também contempla o horizonte. V.B.

Xeg Outros TemposFootmovin’ Records / SóHipHop; distri. Universal Records

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Eis que surge finalmente um novo álbum de Xeg, cinco anos depois de “Remisturas Vol.1”, sete desde

“Conhecimento”, o seu segundo longa duração. Tendo isso em perspectiva, fará todo o sentido intitulá-lo “Outros Tempos”. Tal “actualização”, porém, fica-se pelo título. Xeg é um MC da velha guarda e o seu álbum não procura inovações que justifiquem a ausência prolongada. Não, Xeg investe nas canções. Investe, sobretudo, numa visão coerente e abrangente daquilo que é, hoje, o seu hip hop. Manda mensagens à comunidade, arranca episódios ao dia a dia e romantiza-os, atira-se à classe política em “Como é que eles querem”. Mas, acima de tudo, “Outros Tempos” faz-se do calor orgânico das produções, que combinam elegância “retro” com a precisão dos “beats”. “Liberdade”, single com cara de single, é “groove” descontraído (flauta de bisel incluída) partilhado com a voz de Milton Gulli. “Ausência” tem alma de balada soul e o calor de órgão Rodhes e baixo funk. Depois, há o sabor nostálgico (e africano) de “Primeira vez” (com a presença de luxo de Sagas e Valete), um balanço jamaicano entrando ritmo dentro em “Hoje eu sou” (com Virgul) e a qualidade vintage da empolgante “Na posse das rimas” - Short Size, Sam Kid e Sir Scratch a partilhar com Xeg a melhor canção do álbum: percussões, guitarra e beat compassado a criar o ambiente, metais a anunciarem-se e as rimas a libertando-se em cadência crescente. “Outros Tempos” não é o álbum de alguém que regressa transformado. É o álbum de alguém que aprimorou a sua linguagem e, concentrado naquilo que melhor poderia servir cada tema, criou uma óptima colecção de canções hip hop. Recorte clássico. M.L.

Clássica

Bach gourmetA versão “gourmet” do “Cravo bem-temperado”. Rui Pereira

BachCravo bem-temperadoAngela Hewitt, piano4 CD Hyperion CDA67741/4

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Angela Hewitt tem actualmente 50 anos de idade. Toca piano desde os três e Bach foi sempre um

compositor presente, não fosse o seu pai organista. Na década de 70 venceu diversos concursos internacionais de grande prestígio, nomeadamente os Concursos Bach de Toronto e de Leipzig. A partir da década de 80 a sua carreira ganhou dimensão internacional e no início da década de 90 a pianista lançou-se numa maratona discográfica pela obra completa para “piano” de Bach, projecto que selou com a editora Hyperion e que recebeu os maiores elogios da crítica. A primeira integral do Cravo bem-temperado decorreu entre 1997 e 1999, foi acolhida entusiasticamente, sendo que a pianista apenas apresentou esta mesma integral em concerto após a gravação. Depois seguiram-se outros discos para

completar o projecto que se estendeu até 2005.

Em 2006, depois de breve pausa, a canadiana retomou esta obra capital no seu repertório apresentando-a numa primeira fase em blocos separados (Livros I e II) numa série de concertos que a trouxeram também a Portugal, onde actuou na Casa da Música. Entre 2007 e 2008 abalançou-se a uma digressão mundial levando a integral do Cravo bem-temperado (os dois volumes) a 58 cidades de 21 países, incluindo Lisboa, onde tocou na Fundação Gulbenkian. Quando a terminou disse ao seu produtor da Hyperion que queria gravar novamente o Cravo bem-temperado, pedido que causa alguma surpresa no mercado pois ainda recentemente foi reeditada a antiga integral.

A pergunta que nos cabe fazer é se vale a pena ouvir esta nova versão e a resposta é: definitivamente sim. Hewitt está mais madura e assertiva no campo emocional, demonstra maior liberdade, as suas sonoridades são mais variadas e luminosas, aspecto para o qual também pode contribuir o seu piano Fazioli que a pianista conhece em detalhe e que tem uns agudos sonoros e muito cristalinos, assim como uns graves bem definidos. Não vou salientar nenhum prelúdio ou fuga em particular, mas posso garantir que vale a pena ouvir esta integral de fio a pavio pela naturalidade com que cada nota jorra em todo o esplendor polifónico que a obra proporciona. Uma versão que transpira musicalidade reflectida por todos os poros. Em comparação com a versão anterior representa um degrau bem acima pois continuando a versão antiga a ser muito boa, passamos da sensação de uma interpretação muito correcta e lógica para uma versão igualmente exemplar mas emocionalmente mais profunda e imaginativa onde usufruímos

harmonias e outros “sabores” desconhecidos.

Rui Pereira

De 28 de MAIO a 21 de JUNHOTradução: José Maria Vieira Mendes; Adaptação e Encenação: Christine Laurent; Cenário e figurinos: Cristina Reis; Desenho de luz: José Álvaro Correia.

Interpretação: Rita Durão

De 3ª a Sábado às 21.30h. Domingo às 16.00h TEATRO DO BAIRRO ALTOR.Tenente Raul Cascais, 1A. 1250 Lisboa Telef: 213961515 / Fax 213954508e-mail: [email protected] http://www.teatro-cornucopia.pt

Bilhetes à venda nas lojas Worten, Fnac, Viagens Abreu, El Corte Ingl s e www.ticketline.sapo.pt

Estrutura financiada pelo 2009 M/12ApoioApoio

[email protected]

Xeg criou uma óptima colecção de canções de hip hop; recorte clássicoR

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A pergunta que nos cabe fazer é se vale a pena ouviresta nova versão e a resposta é: defi nitivamente sim

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Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009 • 45

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Pop

Os Wilco, fi nalmenteA estreia em Portugal de uma banda ( já) histórica. Mário Lopes

WilcoLisboa. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96. Dom. às 21h00. Tel.: 213240580. 25€ a 45€.

Braga. Theatro Circo. Av. Liberdade, 697. Sáb. às 21h30. Tel.: 253203800.25€ a 40€.

Para uma banda que documentou as suas convulsões internas em “I Am Trying To Break Your Heart”, o filme de 2002 que os acompanhou durante o turbulento processo de gravação de “Yankee Hotel Foxtrot” (e que era mais jogo freudiano que excesso rock’n’roll), a estreia em Portugal terá enquadramento tragicamente adequado.

Jay Bennett, teclista e guitarrista da banda entre 1994 e 2002, presente naquele que é considerado o período mais criativo dos Wilco, morreu durante o sono na terça-feira, dia 25 de Maio - recentemente, tinha processado a banda por dívidas relativas a direitos autorais. No sítio do grupo liderado por Jeff

Tweedy lê-se uma mensagem, curta e lacónica, enaltecendo as suas contribuições para as canções e para a evolução dos Wilco.

Golpe inesperado aquele. Principalmente numa altura em que a banda parecia definitivamente pacificada. De facto, desde “A Ghost Is Born”, álbum de 2004, cujo lançamento sofreu adiamento quando Tweedy deu entrada numa clínica para curar uma dependência de analgésicos, que os Wilco serenaram. Estabilizaram a sua formação em 1994, que sofrera mudanças constantes desde o seu nascimento, a partir das cinzas dos Uncle Tupelo, precursores do chamado “alt-country”. Estabilizaram a sua própria música.

Depois do anseio experimentalista ter atingido o auge no seminal “Yankee Hotel Foxtrot”, “A Ghost is Born” foi álbum classicista com um delírio kraut de 15 minutos pelo meio. “Sky Blue Sky”, de 2007, acentuou o apego pelas raízes da música popular anglo-saxónica.

A Portugal, onde se estreiam com concertos marcados em Braga (Theatro Circo, sábado) e Lisboa (Coliseu, domingo), chega uma banda histórica em trânsito. Trazem “Sky Blue Sky” na bagagem, mas a curiosidade maior reside no novo álbum que se propõem apresentar, com edição marcada para o final de Junho. Intitula-se simplesmente “Wilco (The Album)”, mas o título não aponta qualquer “reinício”.

Nele, a banda que, na última década e meia, respeitadíssima, se revelou uma das mais interessantes aventuras da música americana, joga em terreno seguro. Melodias beatlescas, desvios pelo folk rock britânico de uns Fairport Convention (em “You and I”, que

conta com a participação de Feist), os jogos sónicos de uns Television (Tweedy adora-os), as manchas sonoras cuidadosamente elaboradas e

aquele equilíbrio entre o tom confessional de Tweedy,

descarnado, e um virtuosismo instrumental sempre posto ao serviço da canção. São 11 novas músicas clássicas dos Wilco e isso é de saudar. Ainda para mais, tendo a

oportunidade de as ouvir, em primeira mão, no concerto da banda que demorou tempo demais a chegar a Portugal. Ainda vem a tempo.

Canções alienígenas

Deerhunter + Ariel Pink Lisboa. Lux. 2ª feira, 1 Junho. Às 22h. Bilhetes 15 euros.

Foi protagonista em dois dos melhores álbuns de canções rock de 2008, mas como não pára acabou de lançar mais um - “Rainwater Cassete Exchance”.

Falamos de Bradford Cox, líder dos Deerhunter, que em 2008, além de ter lançado um álbum com o seu grupo - “Microcastle” - teve ainda tempo para editar “Let The Blind Lead Those Who Can See But Cannot Feel” com a designação Atlas Sound. Foi nesta última qualidade que esteve no Lux, no ano passado, na primeira parte dos Animal Collective.

Essa foi uma noite memorável. Segunda-feira há condições para que se volte a repetir algo de semelhante. Os Deerhunter não serão tão fantasistas quanto os Animal Collective, mas possuem o mesmo faro para a criação de canções rock transparentes a partir de melodias, ruídos, estruturas clássicas e ambientes alienígenas. Muitos outros grupos das linhagens mais alternativas têm procurado inspiração nas mesmas memórias - numa vasta linha narrativa que parte dos Velvet Underground e passa pelos My Bloody Valentine - mas poucos têm revelado ideias tão precisas, pondo-as ao serviço de um som convulsivo mas contemplativo.

Aparentemente, o americano Ariel Pink, que actua na primeira parte, tem-se movimentado na direcção oposta. Enquanto os Deerhunter parecem, cada vez mais, interessados em clarificar a sua sonoridade, Ariel Pink continua a querer danificar a história da pop, desconstruindo-a, de forma sempre delirante e excessiva. São formas diferentes de comunicar essa coisa chamada canção, mas ambas profundamente estimulantes. Vítor Belanciano

Clássica

O regresso do ilustre Thomas HampsonO premiado barítono norte-americano encerra o Ciclo de Canto da Gulbenkian. Cristina Fernandes

Thomas Hampson e Wolfram RiegerCom Wolfram Rieger (piano), Thomas Hampson (barítono). Lisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Avenida de Berna, 45A. Sáb. às 19h00. Tel.: 217823700. 15€ a 30€.

Muitos melómanos terão ainda na memória algumas das inesquecíveis passagens de Thomas Hampson pela Gulbenkian, sobretudo as suas notáveis interpretações da música de Mahler.

No encerramento do Ciclo de Canto desta temporada, o barítono norte-americano regressa a Lisboa para um recital com o pianista Wolfram Rieger. O programa percorre alguns dos grandes pilares da história do Lied germânico com obras de Schubert, Liszt, Mahler e Wolf, terminando com uma homenagem à canção americana com alguns trechos de Samuel Barber.

Apesar de ser um requisitado cantor de ópera, solicitado pelos mais prestigiados teatros do mundo, e um refinado intérprete da canção de câmara de várias tradições, Hampson nunca esqueceu as suas raízes.

Há poucos anos fez com o pianista Wolfram Rieger uma digressão por várias cidades dos Estados Unidos intitulada “Song of America”,

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Thomas Hampson

No ano passado Bradford Cox, líder dos Deerhunter, esteve no Lux numa noite memorável: agora regressa

A Portugal chega uma banda histórica em trânsito com “Sky Blue Sky” na bagagem

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46 • Ípsilon • Sexta-feira 29 Maio 2009

apresentada em colaboração com a Biblioteca do Congresso.

Dedica-se também ao ensino, à pesquisa de repertório e ao desenvolvimento de projectos multimédia como “Voices from the Heart” - um documentário sobre a música de Stephen Foster para o Canal Arte - ou “I Hear America Singing”, antologia sobre o contexto cultural da canção americana.

Continuador de uma ilustríssima linhagem de barítonos americanos onde se incluem Lawrence Tibett, Leonard Warren, Robert Merril ou Sherril Milnes, Hampson possui um repertório operático extenso - de Monteverdi a Britten e Henze, passando por Mozart, Gluck, Rossini, Verdi, Puccini, Tchaikovsky, Wagner e Richard Strauss - e uma importante discografia distinguida com numerosos prémios da crítica, incluindo seis nomeações para os Grammy, a Medalha de Ouro da International Gustav Mahler Society, várias nomeações como “Artista do Ano” (Classical Music Awards, Musical America e EMI), bem como o Prémio Toblacher pelas suas notáveis gravações de Mahler.

Quarteto Psophos toca Haydn e Mendelssohn

Quarteto PsophosCastelo Branco. Edifício do Governo Civil. Pç. Município. Sáb. às 19h30. Tel.: 272339400. 10€. Passe: 25€.

Quarteto PsophosCom Lisa Schatzmaz (violino), Le Maitre (violino), Cécile Grassi (violeta), Eve-Marie Caravassilis (violoncelo). Alcobaça. Mosteiro de Alcobaça. Abadia de Santa Maria de Alcobaça. Dom. às 18h00. Tel.: 262505120. 5€.

Com uma composição inteiramente feminina, o Quarteto Psophos (palavra grega que significa acontecimento musical) surgiu em 1997 no Conservatório de Música e Dança de Lyon. Pouco tempo depois, começou a receber importantes prémios e tocar nos mais prestigiados festivais internacionais.

Em 2001, o agrupamento obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional de Bordéus (antigo Concurso de Evian) e em 2005 foi

nomeado na categoria de “Melhor Ensemble do Ano” nos “Victoires de la Musique” e foi seleccionado pela BBC para se juntar aos 12 vencedores do “New Generation Program” de 2006 e 2007.

O seu diversificado repertório inclui várias obras do século XX e tem sido registado em várias gravações, incluindo CDs dedicados a Mendelssohn, Berg, Webern, Schoenberg, Nicolas Bacri e Maurice Ohana.

Nas últimas edições da Festa da Música, no Centro Cultural de Belém, o Quarteto Psophos foi acolhido com enorme entusiasmo do público. Regressa agora a Portugal com um interessante programa em torno de Haydn e Mendelssohn, que será apresentado amanhã (dia 30), no Festival Primavera Musical, em Castelo Branco, e no dia 31 no Festival Cistermúsica, em Alcobaça. Serão interpretadas duas Fugas da “Arte da Fuga”, de Bach; o Quarteto op. 20, nº5, de Haydn; o Capricho e Fuga op. 81, nº3, e o Quarteto op. 80, de Mendelssohn, mostrando assim como a herança do contraponto de

Bach foi reciclada com mestria pelo classicismo e pelo romantismo na refinada obra de câmara de dois dos compositores que marcam as efemérides deste ano (respectivamente, os 200 anos do nascimento Mendelssohn e da morte de Haydn, ocorrida precisamente a 31 de Maio). C.F.

Jazz

Bica revisitado

João Paulo toca Carlos BicaCom João Paulo (piano). Compositor: Carlos Bica. Lisboa. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da CGD. 5ª às 21h30. Tel.: 217905155. 18€. -30 anos: 5€.

Estão aqui envolvidos dois dos mais importantes vultos do jazz português contemporâneo. O contrabaixista Carlos Bica é, além de notável instrumentista, um dos mais activos compositores jazz da nossa terra. O trio Azul é principalmente alimentado com temas seus e esse será sem dúvida um dos motivos do seu sucesso (nacional e

internacional). João Paulo é um magnífico pianista, que se tem desvendado ao público nas gravações para a Clean Feed - o disco “Scape Grace”, em duo com o trompetista americano Dennis Gonzales, é o mais recente exemplo do seu concentrado lirismo. Na Culturgest o pianista vai atacar e transformar as composições de Bica: para lhes extrair o sumo, para lhes juntar novas cores, para lhes dar nova vida. No disco solo “Single” (Bor Land, 2005) Bica já havia exposto as músicas na sua essência, despindo-as. Agora é a vez de as vermos vestidas com novas roupas. Nuno Catarino

João Paulo

Agenda

Sexta 29OrchestrUtopica: Via LatinaMaestro: Joan Cerveró. Lisboa. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da CGD. 6ª às 21h30. Tel.: 217905155. 10€. -30 anos: 5€.

Rick Astley + Kim Wilde + Belinda Carlisle + ABC + Nik Kershaw + Curiosity Killed The CatLisboa. Pavilhão Atlântico. Parque das Nações. 6ª às 21h00 (abertura de portas às 19h30).. Tel.: 218918409. 41€ a 61€.

O melhor dos anos 80 ao vivo

Manecas CostaEstarreja. Cine-Teatro Municipal de Estarreja. Rua do Visconde de Valdemouro. 6ª às 22h00. Tel.:

234811300. 5€

Wavves + Youthless + John MausLisboa. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 - Bairro Alto. 6ª às 23h00. Tel.: 213430205. 10€.

Ver texto pág. 16

FrangoBarreiro. Escola de Jazz do Barreiro. Rua Doutor Eusébio Leão, 11. 6ª às 21h30. Informações: 962372878. Entrada livre.

Out.Fest 2009

Drumming - Grupo de PercussãoLisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. 6ª às 14h30 (2º e 3º ciclos). Tel.: 213612400. 2€.

Music Around CirclesDirecção Musical: Bernardo Sassetti. Com Bernardo Sassetti, João Paulo Esteves, Mário Laginha, Filipe Quaresma. Lisboa. Teatro Municipal Maria Matos. Av. Frei Miguel Contreiras, 52. 6ª e Sáb. às 21h00. Tel.: 218438801. 10€ a 20€

Blasted Mechanism

Gala. Gala. . 6ª às 23h00. 15€. Figueira Racing Festival. Informações: 917186584.

Sábado 30Buraka Som SistemaAzambuja. Azambuja. . Sáb. às 00h00. Entrada livre.

Don GiovanniEncenação: Maria Emília Correia. Cenografia: António Lagarto. Direcção Musical: Johannes Stert. Com Coro do Teatro Nacional de São Carlos. Lisboa. Teatro Nacional de São Carlos. Lg. S. Carlos, 17. Tel.: 213253045. 25€ a 65€.

Ver texto pág. 17

Kunihiko KomoriCom Kunihiko Komori (marimba), Pedro Carneiro (comentário). Lisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. Sáb. às 16h00. Tel.: 213612400. 6€.

Miquel Bernat + Nuno Aroso Lisboa. Centro Cultural de Belém. Praça do Império. Sáb. às 19h00. Tel.: 213612400. 6€.

Kátia Guerreiro + MafaldaArnauth + Hélder Moutinho + Joana Amendoeira + Joana CostaPorto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137. Sáb. às 21h30. Tel.: 223394947. 5€ a 20€.

Serralves em Festa 2009Porto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. Sáb. e Dom. das 08h00 às 00h00. Tel.: 226156500. Entrada livre.

Com A Certain Ratio, Dan Deacon Ensemble, Gravy Train!!!, Metro Area Dj’s, Orquestra de Jazz de Matosinhos, Real Combo Lisbonense, Haswell & Hecker, Uma Avenida, Drumming - Grupo de Percussão, Mauro Benavidez, Maggie Nicols & Steve Boyland, Quarteto Remix, entre outros.

Domingo 31A Criação: Orquestra Nacional do PortoDirecção Musical: Joana Carneiro. Com Liliana Coelho (soprano), Finnur Bjarnasson (tenor), Job Tomé (barítono). Com Coral de Letras da Universidade do Porto. Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho de

Albuquerque. Dom. às 18h00. Tel.: 220120220. 17€.

Obras de Haydn - A Criação

Segunda 1Wavves + Alto!Porto. Passos Manuel. Rua Passos Manuel, 137. 2ª às 22h00. Tel.:

222058351. 8€ a 10€.

Ver texto pág.16

Quarta 3AC/DC

Lisboa. Estádio Alvalade XXI. Ed. Visconde de Alvalade - R. Prof. Fernando da Fonseca. 4ª às 19h30. Tel.: 707204444. 55€ a 60€.

Joe McPheePorto. Culturgest. Avenida dos Aliados, 104 - Edifício da CGD. 4ª às 22h00. Tel.: 222098116. 5€.

Daniel Levin QuartetCom Nate Wooley (trompete), Daniel Levin (violoncelo), Mat Moran (vibrafone), Peter Bitec (contrabaixo). Viseu. Teatro Viriato. Lg. Mouzinho Albuquerque. 4ª às 22h00. Tel.: 232480110. Consumo mínimo: 2,5€.

Quinta 4Mayra AndradePorto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137. 5ª às 21h30. Tel.: 223394947. 20€ a 25€.

Baby DeeLisboa. Galeria Zé dos Bois. Rua da Barroca, 59 - Bairro Alto. 5ª às 23h00. Tel.: 213430205. 8€.

Buraka

Blasted Mechanism

Miquel Bernart

Dan Deacon no Serralves em Festa

Quarteto Psophos: só mulheres

AC/ DC

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