56
Sexta-feira 29 Abril 2011 www.ipsilon.pt MichelangeloFrammartino LeonardoPaduraOliveiraJPSimões AfonsoPais TiagoSousa RUI GAUDÊNCIO ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7684 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE David Machado e a sua geração O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?

O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Sexta-feira 29 Abril 2011www.ipsilon.pt

Michelangelo Frammartino Leonardo Padura Oliveira JP Simões Afonso Pais Tiago Sousa

RU

I GA

UD

ÊN

CIO

EST

E S

UP

LEM

EN

TO

FA

Z P

AR

TE

INT

EG

RA

NT

E D

A E

DIÇ

ÃO

7684

DO

BLI

CO

, E N

ÃO

PO

DE

SE

R V

EN

DID

O S

EPA

RA

DA

ME

NT

E

David Machado e a sua geração

O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?

Page 2: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

www.cnb.ptM/6Apoios à divulgação:

facebook.com/cnbportugal

DIRECÇÃO ARTÍSTICALUÍSA TAVEIRA

TEATRO CAMÕES DIAS DE ESPECTÁCULO // 21 892 34 77

TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS SEGUNDA A SEXTA DAS 13H ÀS 19H // 21 325 30 45 / 6

TICKETLINE WWW.TICKETLINE.PT // 707 234 234

LOJAS ABREU, FNAC, WORTEN, EL CORTE INGLÉS, C.C.DOLCE VITA

BILHETES €5 A €20

LISBOA,TEATRO CAMÕES

ABRIL 2011dias 28, 29 e 30 às 21h

dia 30 às 16h (Tarde Família)

MAIO 2011dias 06 e 07 às 21h

dia 08 às 16h (Tarde Família)

ESCOLAS dia 05 de Maio às 15h

UMA COISAEM FORMA DEASSIM Estreia Absoluta

COREOGRAFIA

CLARA ANDERMATT, FRANCISCO CAMACHO,

BENVINDO FONSECA, RUI LOPES GRAÇA,

RUI HORTA, PAULO RIBEIRO, OLGA RORIZ,

MADALENA VICTORINO, VASCO WELLENKAMP

MÚSICA E INTERPRETAÇÃO

BERNARDO SASSETTI (PIANO)

DESENHO DE LUZ CELESTINO VERDADES

DIA MUNDIALDA DANÇA29 ABRIL

Foto

grafi

a ©

Clá

udia

Var

ejão

Page 3: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 3

Fla

sh

Directora Bárbara ReisEditor Vasco Câmara, Inês Nadais (adjunta)Conselho editorial Isabel Coutinho, Nuno Crespo, Cristina Fernandes, Vítor Belanciano Design Mark Porter, Simon Esterson, Kuchar SwaraDirectora de arte Sónia MatosDesigners Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana SoaresEditor de fotografi a Miguel MadeiraE-mail: [email protected]

Ficha Técnica

SumárioDavid Machado 6À frente de uma geração de narradores?

Leonardo Padura 12Detective atrás de Tróstki, e de Ramón Mercader

Pedro Mexia 16O poeta invisível

Michelangelo Frammartino 20O cinema reencarna em “As Quatro Voltas”

Manoel de Oliveira 24Ao espelho em “O Estranho Caso de Angélica”

Julião Sarmento 32Ensaio sobre o desejo

Afonso Pais e JP Simões 36Juntos em “Onde Mora o Mundo”

Peter Brook 39Um teatro encantado

Tânia Machado 41Multiplicada por 20

Johnny Rogan tentou e Morrissey passou a odiá-lo. “Pessoalmente, espero que Johnny Rogan acabe os seus dias muito em breve num acidente em cadeia na M3 [uma auto-estrada inglesa]”, disse o vocalista dos Smiths, a propósito da biografia não autorizada publicada em 1993. Outros tentaram e continua a saber-se pouco, muito pouco, sobre este aglutinador de contrários: figura frágil em contramão na pop triunfante dos anos 1980; tímido venerado por milhares; figura nem masculina, nem feminina, nem abertamente gay, autoproclamado “profeta do quarto sexo”; livro em branco para ser preenchido.O mistério sempre circundou a vida e as múltiplas e contraditórias “personas” de Steven Patrick Morrissey (o vegetariano furioso, o desbocado que às vezes soa como um racista declarado, o rei de todas as ambiguidades). E eis que Morrissey anuncia que está

quase a acabar a autobiografia que começou a escrever há três anos – virá daí luz para desfazer a bruma? À BBC Radio 4, o cantor explicou em que ponto vai: “Atingi o segundo rascunho, estou na fase dos melhoramentos”. No próximo ano o livro já poderá estar nas bancas. À sua maneira, já afirmou que – suprema lata de um gigante – quer que o livro seja lançado na série “Classics” da Penguin (onde está publicada gente como James Joyce, Platão, Mark Twain, Émile Zola, Charles Dickens e muitos outros nomes consensuais). Mas avisa, também, miserabilista, que o texto – que já vai em 660 páginas – pode não ser assim tão brilhante (isto quando há milhares de fãs a contar os dias até porem as mãos no livro). “Eu não sou assim tão interessante, por isso não sei por que é que escrevi tanto”, disse à BBC. “Abordei toda a minha vida. Questiono-me se 660 páginas não serão

demasiadas para as pessoas suportarem. E, depois, sento-me e penso se seis páginas não serão já demasiadas. Não sei. Confuso”.Em 2008, também à BBC, quando anunciou que ia pôr as suas memórias em livro, enunciou os seus objectivos. “Há tanta porcaria a ser escrita sobre mim e, às vezes, é difícil viver com isso porque tudo se funde e se transforma no que és, no teu legado”, disse, como se não tivesse a mínima responsabilidade pela nuvem de mistério em seu torno.A batalha pela edição da obra já está em curso há algum tempo. No ano passado, um editor da Faber disse que lançar o livro preencheria o seu “sonho de editor mais persistente”. Mas o coração de Morrissey está na Penguin: “Gostaria que fosse lançado pela Penguin, mas só se eles o publicarem como Clássico. (…) Não vejo porque não – um clássico contemporâneo”. Pedro Rios

A sua identidade continua por revelar, mas isso não o impede de ser um dos mais conhecidos artistas britânicos. Em “Banksy – Pinta a Parede!”, o documentário que estreia em Portugal a 26 de Maio, este activista político que tem lutado para que os “graffiti” não sejam vistos como actos de vandalismo, mas como formas de expressão artística e de participação cívica, segue vários artistas para contar parte da história da “street culture”. Banksy começa por focar a câmara em Thierry Guetta, um imigrante francês que ganha a vida em Los Angeles com uma pequena loja de roupa “vintage” e que se deixa fascinar pelos “graffiters” e o seu mundo nocturno ao descobrir que o seu primo é Invader, um famoso “street artist”, através do qual virá a conhecer um vasto grupo de que fazem parte Monsieur André, Zevs, Shepard Fairey, Neck Face, Swoon e Borf.Habituado a criticar a exclusão social, a perseguição aos imigrantes ou a violência israelita na Faixa de Gaza, por vezes com um incrível sentido de humor, Banksy fez de “Exit Through the Gift Shop” (título original) mais um manifesto em que se reflecte sobre o valor da arte e o seu papel. Em Portugal, a estreia deste filme, premiado no festival de cinema independente de Sundance em 2010 e nomeado para o Oscar de Melhor Documentário já este ano, vai estar associada a um ciclo de debates nas livrarias Fnac de Lisboa e do Porto e contará ainda com a proximidade da exposição “A Rua Continua” (Galeria de Arte Urbana da Câmara Municipal de Lisboa), paralelamente à qual será lançado o “site” www.galeriaurbana.pt, que propõe um roteiro da arte urbana de Lisboa desde o 25 de Abril até à actualidade.

Filme de Banksy vem com debates, exposição e “site”

A autobiografi a de Morrissey vem a caminho.

Vamos saber mais sobre ele?

Figura frágil em contramão na pop dos anos 80, autoproclamado profeta do quarto sexo, vegetariano furioso, rei de todas as ambiguidades: Morrissey é um livro em branco que ele próprio irá preencher

O documentário de Banksy chega a 26 de Maio

Page 4: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

4 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Fla

sh

João Tabarra continua o seu périplo por terras orientais. Depois do Japão, é a vez da Coreia do Sul. O artista português vai participar com o filme “SEA ©” no 12º Festival Internacional de Cinema de Jeonju, integrado na secção “Focus on Portuguese Cinema”, que também inclui obras de António Reis e Margarida Cordeiro, António da Cunha Telles, Fernando Lopes, António Campos, Manoel de Oliveira, João César Monteiro, entre outros cineastas nacionais. O festival, que começou ontem e encerra a 5 de Maio, é um dos mais importantes do Extremo Oriente na divulgação de cinema independente e de autor (Apichatpong Weerasethakul, Suwa Nobuhiro ou Denis Coté foram alguns dos vencedores da competição internacional).Mas Tabarra não se fica pela sala do cinema. Na mesma cidade, na JIFFtheque, um espaço de arte e cinema, mostra vídeo e fotografia, no âmbito das

comemorações dos 50 anos das relações diplomáticas entre Portugal e a Coreia do Sul. A exposição chama-se “I could live here” e é partilhada com o artista coreano Park Chang-Kyong, que venceu um Urso de Ouro no Festival de Berlim com a curta-metragem “Night Fishing”, assinada a meias com o irmão, Park Chan-Wook, o realizador de “Oldboy” (2003) e “Thirst” (2009).O autor de “O encantador de Serpentes” (2007) vai conduzir, ainda, uma conferência e um “workshop”, a 13 de Maio, na Universidade de Artes da Coreia, em Seul, com o professor japonês Atsushi Sugita, da Universidade de Arte e Design

de Joshibi. Este convite surgiu no seguimento de

“The age of micro-voyage”, a colectiva em que participou em 2010 ao lado de Pedro Costa, Miguel Palma e Maria Lusitano, no Museu de Arte de Joshibi, no Japão. José

Marmeleira

João Tabarra “big in” Coreia

cinema independente e de autor (Apichatpong Weerasethakul, Suwa Nobuhiro ou Denis Coté foram algunsdos vencedores dacompetiçãointernacional).Mas Tabarra não sefica pela sala do cinema. Na mesma cidade, na JIFFtheque, umespaço de arte e cinema, mostra vídeoe fotografia, no âmbito das

Atsushi Sugita, daUniversidade de Arte e Design

de Joshibi. Este convite surgiu no seguimento de

“The age of micro-voyage”, a colectiva em que participou em2010 ao lado de PedroCosta, Miguel Palma e Maria Lusitano, noMuseu de Arte de Joshibi, no Japão. José

Marmeleira

João Tabarra leva um fl me, vídeo e fotografi a ao Extremo Oriente

PE

DR

O C

UN

HA

Senhoras e senhores, meninos e meninas, os National estão a preparar um regresso em grande - e não, não se trata de um álbum novo. Gente solidária, responsável há um par de anos por “Dark Was The Night”, compilação produzida pelos gémeos Aaron e Bryce Dessner (baixista e guitarrista da banda) que contou com a colaboração de Feist, Decemberists, Arcade Fire ou Spoon e cujos lucros reverteram para associações de luta contra a sida, os National reincidemDesta vez, não se trata apenas de juntar uma série de amigos de bom gosto impoluto e chamá-los a oferecer os seus talentos à beneficência. Os National estão a tratar, novamente em conjunto com a associação Red Hot, de uma compilação, preparem-se, dedicada exclusivamente aos Grateful Dead, banda fulcral do psicadelismo de São Francisco, banda fulcral, depois disso, no renascimento da música de raízes norte-americana mas, causa directa do seu péssimo posicionamento na escala de “coolness” da música popular, também responsável pelo nascimento de uma seita de freaks e hippies reunida sob a designação “Deadheads”, bem como pela fundação de centenas de aborrecidíssimas bandas de jam como os conhecidos Phish.O baixista Scott Devendorf confirmou à “Spinner” que o trabalho está a começar e que, neste momento, a grande questão que se coloca aos National é escolher correctamente a canção dos Dead em que pegar – tendo em conta o tom de voz de Matt Berninger, Devendorf diz que estão a apontar para “Box of rain”, canção de “American Beauty” que marca o início da viragem dos Dead para a folk e country. O álbum só estará pronto daqui a cerca de um ano, mas os National já sabem o que querem. Nada de bandas de jam tricotando solos intermináveis. Depois de inquiridos alguns amigos para descobrir se têm discos dos Grateful Dead escondidos em casa, já há algumas confirmações: os Fleet Foxes estão entusiasmados, Bon Iver também. O compositor Steve Reich, amigo de Phil Lesh, baixista dos autores de “Box of rain”, também já foi “intimado” a participar. E Devendorf pretende atrair bandas inesperadas: “Seria incrível ter os Crystal Castles”, exclamou à “Spinner”.

Os National adoram os Grateful Dead e vão prová-lo

nal m teful

e vão -lo

Os Grateful Dead vão ressuscitar num álbum com versões de Bon Iver, Fleet Foxes, Steve Reich...

Com o lançamento, a 15 de Maio, de “Frank Lloyd Wright (1985-1916)”, a Taschen culminará a sua monumental edição, em três volumes, dedicada à obra daquele que é considerado por muitos o mais influente arquitecto americano de todos os tempos. Centrado no período inicial da longa carreira de Wright, este primeiro volume – o terceiro na ordem de publicação – abarca uma década decisiva no percurso de Lloyd Wright; os anos que vão de 1896 a 1906, quando concebeu e desenvolveu o conceito da “prairie house”, que viria a exercer uma profunda influência em muitos arquitectos europeus. Escrito por Bruce Brooks Pfeiffer, director dos Arquivos Frank Lloyd Wright, o livro, editado para a Taschen por Peter Gössel, passa minuciosamente em revista todos os projectos do arquitecto, quer os mais de 500 que foram efectivamente construídos, quer os que nunca chegaram a sair do papel, e que são sensivelmente outros tantos. Lloyd Wright (1867-1959) defendia uma concepção orgânica da arquitectura, que resultasse numa relação harmónica entre a habitação humana e o mundo natural, uma missão que só julgava possível levar a cabo se o arquitecto interviesse não apenas no desenho das estruturas, mas também no interior das casas – desenhando, por exemplo, o mobiliário – e no espaço que as rodeia. O exemplo mais flagrante desta ambição de uma arquitectura perfeitamente integrada na natureza é a sua célebre “Casa da Cascata”, projectada nos anos 30 do século XX.

Taschen completa edição monumental dedicada a Lloyd Wright

A casa, enquanto sítio onde se mora e trabalha no dia-a-dia, esteve sempre no centro das preocupações de Lloyd Wright, mas o arquitecto projectou todo

o tipo de edifícios, desde escolas, bibliotecas e museus a igrejas, hotéis e pontes. E tanto se entusiasmava em projectar a pequena casa ideal para um trabalhador remediado como um edifício público tão grandioso e arrojado como o Museu Guggenheim de Nova Iorque. Num inquérito nacional lançado em 1991, nos EUA, pelo American Institute of Architects, Frank Lloyd Wright foi considerado “o maior arquitecto americano de todos os tempos”, e a sua “Casa da Cascata”, construída na Pensilvânia, foi eleita “a melhor obra de sempre da arquitectura americana”.

Frank Lloyd Wright (1867-1959)

A Presidência da República vai editar em CD a sessão de poesia que o Palácio de Belém acolheu a 21 de Março do ano passado e que reuniu, entre outros, as actrizes Eunice Muñoz (lendo a “Tabacaria” de Álvaro de Campos) e Emília Silvestre (que interpretou “A Carta da Corcunda para o Serrano”, de Fernando Pessoa), o escritor Vasco Graça Moura (em “Nocturno”, de David Mourão-Ferreira) e a fadista Carminho (numa passagem do “Livro do Desassossego”, do heterónimo Bernardo Soares). O disco regista ainda as intervenções de Filipa Leal (que diz o seu poema “Hoje Também os Carros Dançam”), Tiago Torres Silva (“Vou Num Rio”), Ricardo Ribeiro, Ana Sofia Varela e Lara Li, que tal como Amália Rodrigues em tempos, canta “Barco Negro” de David Mourão-Ferreira. Os lucros da venda do CD reverterão para uma causa social escolhida por Maria Cavaco Silva. A sessão pode ser vista, em formato vídeo, na página oficial da Presidência da República.

Palácio de Belém edita poesia

Carminho canta uma passagem do “Livro do Desassossego” no CD

DA

NIE

L R

OC

HA

Page 5: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

LANÇAMENTOS

APRESENTAÇÕES

MÚSICA AO VIVO

LANÇAMENTO

Infectious AffectionalUm álbum carregado de elementos de herança Disco cruzados de forma irrepreensível com a sua leitura única do universo do pós-Punk.

Filme de Raúl RuizA adaptação do romance homónimo de um dos nomes maiores da literatura portuguesa é apresentado por João Lopes, com a presença de Paulo Branco e dos actores Maria João Bastos, Adriano Luz, Albano Jerónimo, Joana de Verona e Luís Arrais.

AGENDA CULTURALFNAC

X-WIFE

MISTÉRIOS DE LISBOA

ENTRADA LIVRE

EXPOSIÇOES

MÚSICA AO VIVO

MÚSICA AO VIVO

Alba SóNos 10 anos da morte de Sebastião Alba, o Sindicato do Credo - colectivo multidisciplinar de performances poéticas - homenageia o poeta bracarense através de um espectáculo que evoca o seu percurso incondicionalmente livre e insubmisso.

30/04 SÁB 16H00 STA. CATARINA

SINDICATO DO CREDO

MÚSICA AO VIVO

MÚSICA AO VIVO

I am YouUm disco em forma de diário, mas sem factos, com canções inspiradas no amor entre as pessoas. Alexandre Frazão na bateria, Miguel Menezes no contrabaixo, Viviena Tupikova ao violino e piano e voz pela própria Nicole Eitner.

As Pequenas Gavetas do AmorUma viagem pelo Universo do Fado, do Musette e da Chanson, com convidados especiais como António Zambujo, Luís Varatojo e Custódio Castelo.

14/05 SÁB 22H00 BRAGA15/05 DOM 17H00 NORTESHOPPING

29/04 SEX 21H00 ALFRAGIDE30/04 SÁB 21H30 COLOMBO01/05 DOM 17H00 CASCAISHOPPING

13/05 SEX 18H00 STA. CATARINA13/05 SEX 22H00 GAIASHOPPING14/05 SÁB 17H00 GUIMARÃESHOPPING

29/04 SEX 22H00 GAIASHOPPING30/04 SÁB 17H00 CHIADO01/05 DOM 17H00 COLOMBO

14/05 SÁB 22H00 COIMBRA15/05 DOM 17H00 LEIRIASHOPPING

NICOLE EITNER

VIVIANE

Consulte a AGENDA FNAC também em:www.culturafnac.pt

apoio:

02/05 SEG 18H00 STA. CATARINA02/05 SEG 22H00 NORTESHOPPING

05/05 QUI 19H30 CHIADO

Page 6: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

6 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Não se deve subestimar o poder do tempo e da mudança. Há dois anos, quando David Machado lançou o seu segundo livro para adultos e primeiro de contos, confessava que se via mais como escritor de histórias curtas e precisas, mas que era complicado convencer uma editora a apostar nes-se género. Se for preciso um exemplo para corroborar esta ideia, o escritor e crítico Pedro Mexia, com quem fa-lámos sobre a nova vaga de narrado-res portugueses, oferece-a de bom grado: “Olha-se para a obra do João Aguiar, que escreve romances histó-ricos e escreveu um livro de contos, e vemos nas cintas publicitárias ‘se-gunda edição, terceira edição, quarta edição’. Depois chega o livro de con-tos e diz só ‘livro de contos’, porque nunca foi reeditado. Ninguém com-pra”.

Aparentemente, por cá, aquilo a que os americanos chamam “short story”, e que serve de preâmbulo a empreitadas maiores, não parece ter cultores.

Pelo que acaba por fazer sentido que, ao terceiro livro, Machado diga, entre goles de chá e uma gripe mal curada, que gosta “muito de escrever contos”, mas o romance “tem uma exigência em termos de estrutura que é muito desafiante”: perante o inevi-tável (ter de escrever romances), na-da melhor do que olhar para a tarefa como um desafio.

Por estes dias, Machado tem dois livros para defender e não podiam

estar mais afastados entre si: “A Mala Voadora” é o seu quinto livro para crianças, “Deixem Falar as Pedras” é o seu segundo romance.

A violência do romance não encon-tra – obviamente – eco no livro infan-til. Machado – que mais mês menos mês irá ser pai pela segunda vez – con-vive há muito com esta dicotomia en-tre a escrita para miúdos e para graú-dos e não menoriza minimamente a primeira. “Tem coisas extremamente recompensadoras”, diz este econo-mista de formação que começou a escrever a tempo inteiro quando per-deu o emprego: “De certa forma, foi a melhor coisa que me aconteceu, porque me permitiu concentrar-me exclusivamente na escrita”.

José Riço Direitinho, extraordinário escritor português cujo regresso à edição começa a assumir proporções sebastiânicas e que fez o prefácio ao livro de contos de Machado, confirma esse lado laborioso, intenso, do tra-balho de Machado: “O David é escritor a sério. Ele fica de manhã à noite a escrever e reescrever, todos os dias. É isso que um escritor faz”.

É pelo menos isso que permite que David, sem grandes mecanismos pu-blicitários ao seu redor, sobreviva praticamente só da escrita ou dos seus, chamemos-lhe, derivados: além dos livros dá aulas de escrita criativa de Literatura Infantil numa escola chamada Escrever Escrever, traduz e faz idas a escolas, escreve para crian-ças.

“Com as idas a escolas acontecem coisas extraordinárias”, como “ir a Abrantes, falar para 700 miúdos que põem perguntas e no fim dar 150 au-tógrafos”, conta. “Isto nunca aconte-ceria com os meus livros para adultos. Quando muito estariam quatro pes-soas na sala”, diz, assumindo sem peias que há, na alegria da miudagem, uma massagem ao ego do escritor que lhe é benéfica.

A massagem ao ego tem, além dis-so, uma vantagem para a carteira: “Pagam-me 250 euros por ida. Não é nada mau, pois não? Eu não acho mau”, continua, com um à vontade que é raro nas letras portuguesas: ele é um daqueles casos que surgem ape-nas muito de vez em quando e em que não se sente pose, em que cada pala-vras dita parece corresponder exclu-sivamente ao que quer dizer em vez de obedecer a um guião. O que lhe permite dizer coisas como: “O que acho mais interessante na literatura é que podemos contar uma história de infinitas maneiras” com um mara-vilhamento expectável num princi-piante, mas não em alguém que já acumulou um certo repertório.

Com a mesma abertura explica-nos ainda como funciona o mundo da edi-ção infantil – os seus quatro livros in-fantis anteriores venderam 20 mil exemplares, mas o que retira deles é menos do que o que retira dos roman-ces, porque tem de dividir os direitos com o ilustrador. E – acrescenta – o preço de capa é bastante menor. “Se

o preço por unidade fosse o mesmo eu ficaria bastante satisfeito”, assu-me.

Um salto e a maturidadeTalvez fosse a isto, a este não-estar-com-merdas, que Riço Direitinho se referia quando falava em seriedade – uma seriedade que é certamente responsável pelo salto admirável em termos de maturidade que encontra-mos em “Deixem Falar as Pedras”, quando comparado com “O Fabuloso Teatro do Gigante” com que se es-treou na ficção para maiores de 12 anos, ou mesmo quando comparado com “Histórias Possíveis”, a acima mencionada colectânea de 16 histó-rias curtas que publicou no início de 2009.

A maturação visível que Machado alcança com “Deixem Falar as Pedras” não é um caso insólito, mas é talvez – dependerá da opinião de cada um – o momento mais conseguido de uma geração de escritores que confia for-temente na narração, uma geração que teve em José Luís Peixoto o seu primeiro ícone e que desde então viu surgir nomes tão díspares como João Tordo, Hugo Gonçalves, Vasco Luís Curado, Francisco Camacho ou valter hugo mãe, este mais dado a lirismo.

No caso de Machado, essa maturi-dade vem a par de uma ligeira mu-dança tonal: onde antes havia uma espécie de véu reminiscente do fan-tástico, agora encontramo-lo bem mais atreito ao real. “Eu gosto do

O livro tinha de

ser narrado por alguém

que não tivesse muita

consciência do passado,

alguém que ainda

acreditasse que o passado

pode ser vasculhado e que com isso

algo pode mudar

“Deixem Falar as Pedras”, o segundo romance de David Machado, é talvez o momento mais conseguido de uma

nova geração de escritores portugueses que confi a fortemente no poder de uma boa história. Depois de

termos sido um país de poetas, teremos perdido o medo de ser um país de narradores? João Bonifácio

“Irrita-me que em Portugal as histórias

sejam postas de parte”

Page 7: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 7

RU

I G

AU

NC

IO

David Machado, economista de formação, tornou-se escritor a tempo inteiro depois de ter fi cado sem emprego: “De certa forma, foi a melhor coisa que me aconteceu”

Page 8: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

8 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Narrar ou não

narrar, eis a geraçãoContar histórias terá sido mal visto em

Portugal em tempos idos, mas parece ser uma mais-valia para a geração de escritores

que tem entre 30 e 40 anos.

Não terá sido por acaso que a apresentação do último romance de David Machado esteve a cargo de Mário de Carvalho, um dos mais exímios narradores nacionais. “Deixem Falar as Pedras” exibe qualidades que certamente agradarão ao autor de “Era Bom que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto”: controlo dos tempos da narrativa, sub-narrativas bem-enjorcadas, desenho cuidado das personagens secundárias.

São marcas que, mais do que um estilo, defi nem, pelo labor e pelo brio, um tipo de escritor: o narrador, o contador de histórias – mesmo que no caso de Mário de Carvalho isso venha acompanhado cada vez mais de um extenuante trabalho sobre a linguagem.

Ser um contador de histórias terá ou não sido mal visto neste território em tempos idos – as opiniões dividem-se –, mas parece ser uma mais-valia em tempos mais recentes ou para as gerações mais recentes, pelo menos a que tem entre 30 a 40 anos.

Uma série de escritores fez do cuidado com a trama e dos tempos da revelação da informação o seu “métier”: JoãoTordo, diz o crítico Pedro Mexia, “é o que mais pratica essa fé”, numa “versão mais sofi sticada de narração”, com um lado “metanarrativo forte, de explicação da própria narração ou dos mecanismos da narração”.

Não é caso único: José Luís Peixoto talvez seja o mais famoso deles, mas nomes como Vasco Luís Curado, Hugo Gonçalves, mesmo Francisco Camacho (se bem que o autor de “Niassa” seja una anos mais velho) serão, em última instância, considerados narradores puros. A questão que se põe é: houve ou não um preconceito em relação à narração pura e há ou não nesta nova geração um despudor face aos mecanismos clássicos da regra e do esquadro narrativo?

As respostas, como sempre, divergem. José Riço Direitinho, escritor cujo tempo de procriação está alinhado pelo cometa Halley, e crítico do Ípsilon, diz que “há um certo regresso à ideia de narração,

Nascido em 1976, foi jornalista da “Focus” antes de sair de Portugal e encetar uma série de colaborações

com várias publicações, a mais recente das quais uma crónica diária no jornal “i”. Tem três romances

editados, todos devedores de uma escrita limpa e urbana, o mais recente dos quais “Fado, Samba e

Beijos com Língua”. Não se sabe se é especialista nesta última categoria.

HUGO GONÇALVES

Ilustrador e realizador de filmes de animação, nasceu na Figueira da Foz em 1971. O seu livro “Enciclopédia da Estória Universal” granjeou-lhe o Prémio de Conto Camilo Castelo Branco. Leva cinco livros publicados. Especialista em pequenos quadros auto-limitados.

Psicólogo de 38 anos, foi finalista do Prémio Leya. Editou recentemente “A Vida Verdadeira” - livro com

o qual não concorreu ao Prémio Leya. Especialista em criação de ambientes.

AFONSO CRUZ

VASCO LUÍS CURADO

Escritor, guionista e tradutor, nasceu em Lisboa em 1975, e é autor de quatro romances, o mais recentes

dos quais “O Bom Inverno”. O seu romance de 2008, “As Três Vidas”, valeu-lhe o Prémio Saramago.

Especialista em enredos.

JOÃO TORDO

NU

NO

OL

IVE

IRA

/ A

RQ

UIV

OM

IGU

EL

MA

NS

OR

UI

GA

UD

ÊN

CIO

Page 9: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 9

fantástico”, diz, como que a escla-recer que o autor de “Histórias Possí-veis” não desapareceu, “mas no sen-tido em que faz parte da nossa metá-fora colectiva: as lendas, os mitos, etc”.

Curiosamente, “Deixem Falar as Pedras” também tem o seu quê de lendas e mitos, ainda que abordadas de outra forma: em vez de lendas e mitos colectivos, temos um homem cuja vida é lendária, vida cujos factos foram mitificados (por ele e pelos ou-tros outros).

“Deixem Falar as Pedras” é a rocam-bolesca história de Nicolau Manuel, um homem que, no dia do seu casa-mento, foi tomado como cúmplice de um agrupamento de guerrilheiros es-panhóis e injustamente preso – após o que é desterrado, torturado, ensur-decido a tiro de pistola, provando to-dos os pães que o diabo conseguia amassar neste território chamado Por-tugal no tempo da outra senhora.

É curioso que o livro narre a histó-ria de um homem que é surdo, por-menor quase humorístico mas que, diz Machado, “dá mais profundidade e verosimilhança à personagem”. En-tre outras razões, pelo menos justifi-ca o facto de o velho estar sempre a berrar, para sofrimento da família. “Quando se define alguém com algo muito específico”, diz, “dá-se-lhe cre-dibilidade. Quando as qualidades são pouco definidas, o leitor assimila-as mas elas não marcam. Assim tornam-se reais”.

Mas o que torna o livro raro é o fac-to de a história ser narrada pelo neto de Nicolau Manuel, num diário em que escreve não só as memórias do avô como o processo que o leva a con-tar essas memórias à noiva que ele perdeu. As memórias, verdadeiras ou falsas, que o avô lhe transmite (e que mais ninguém quis ouvir) fazem eco

na solidão de Valdemar, um rapaz anafado, perdido de amores pela vi-zinha anoréctica, que recorre não raras vezes à violência para resolver os seus problemas. Em certo sentido, Valdemar herda a dor do avô – como adolescente revê-se nesse homem idoso que é uma espécie de margi-nal.

O que chega ao leitor já não é a ver-dadeira história de Nicolau Manuel, mas essa história filtrada pela memó-ria de Nicolau e pelas eventuais dis-torções de Valdemar – o que torna “Deixem Falar as Pedras” num traba-lho sobre a memória e a identidade.

“A memória é falível, permeável, sofre acrescentos e subtracções”, vai dizendo Machado. “Nunca é a verda-de”.

Contrapor passado e presenteÉ essa ambiguidade da memória, na impossibilidade que temos de viver sem ela mas também na impossibili-dade que temos de não a alterar, que explica o nascimento da personagem do neto adolescente: “Não é impor-tante saber se o que o puto conta é verdade ou não”, diz Machado. O que importa é que “o facto de ser o neto a contar a história enfatiza o poder da memória”, que é, de certo modo, a personagem central do romance.

“O miúdo”, vai dizendo Machado, “tem uma série de conflitos e só tem uma relação aberta com o avô”. A voz deste rapaz foi o grande desafio do romance, “a coisa mais difícil de con-seguir”. “Foi difícil não cair em cli-chés”, assume, até porque a verosi-milhança da personagem era essen-cial para contar a história como Machado queria: “O livro tinha de ser narrado por alguém que não tivesse muita consciência do passado, tinha de ser alguém que ainda acreditas-

Não ouvi estas

histórias [de violência]

a ninguém. Vi fi lmes

americanos sufi cientes

para ser capaz de

escrever estas cenas

sim”, “mas também nunca se saiu por completo de lá”. Direitinho vai um pouco mais longe afi ançando que “nunca sequer houve um modelo de romance português – mesmo o Eça copiava muito”.

(Embora aqui fosse útil acrescentar que, não recuando muito no tempo, Camilo, Raul Brandão e João Araújo Correia – nos contos – são certamente modelos de uma certa escrita tremendamente portuguesa.)

Sugerimos a Mexia que esta geração de escritores talvez procure a narrativa por reacção ao duplo espartilho Saramago-Lobo-Antunes, escritores que tiveram o condão de secar tudo à sua volta, inclusive o seu próprio talento. Ou então por reacção a toda uma geração de escritores-Maio-de-68-experimentalistas.

O crítico considera ser “excessivo dizer que houve uma vaga experimentalista em Portugal”. “Só há quatro ou cinco nomes relevantes experimentalistas. E não eram particularmente inovadores – apesar de serem grandes escritores, o Ruben A ou o Nuno Bragança não fi zeram experiências que já não tivessem sido feitas lá fora. E estavam longe de ser o ‘mainstream’”.

Mas Mexia concede que hoje há um bom número de “romances com um enredo muito bem delineado” e que “isso [ao contrário do que acontecia antigamente] já não dá má fama”. Acima de tudo, diz Mexia, “hoje os jovens fi ccionistas falam de uma forma mais desinibida e frontal de narração”. Ou isso ou, diz, são infl uenciados pela melopeia de Lobo Antunes, como no caso de Pedro Vieira, cujo ouvido Mexia gabou recentemente, ao mesmo tempo que lhe diagnosticava problemas na criação de uma estrutura romanesca.

Uma geração mais livreEsta opinião tem pontos de encontro com a de uma personagem fundamental no desabrochar de uma série de nomes desta nova geração, Maria do Rosário Pedreira. Para a editora, “havia qualquer coisa contra a história com agá pequeno”. Pedreira considera que estes autores, “por já terem crescido num mundo livre, mais descomprometido”, não sentem “a obrigação de de fazer literatura engajada”, um tipo de literatura que marcou as letras portuguesas até à ascensão de Lobo Antunes. (Porque é impossível não ver Saramago como um moralista engajado.)

Mas Maria do Rosário recusa que a narrativa seja “o foco destes novos autores”: “Nem todos são narradores no sentido de contarem uma história”, diz, dando o exemplo de valter hugo mãe, em cujos livros não está em causa “a história, mas a forma como ele conta a história”. Mexia também realça “um certo embalo de linguagem” na obra do escritor que, diz, “mais do que de uma narrativa, consiste de pequenas cenas, por vezes quase ínfi mas”.

A ter de reduzir todo o escritor nascido na geração de 70 num denominador comum, talvez ele seja aquilo a que Maria do Rosário Pedreira chama “liberdade para escrever sobre o que quiserem”.

Liberdade para escrever sobre o que quiserem, usando linguagem enxuta, de gente que anda no mundo, ou então o oposto: no último caso teríamos a “história da narrativa em miniatura” que caracteriza Afonso Cruz, ou os jogos lógicos de Gonçalo M. Tavares; no primeiro, teríamos as dúvidas metafísico-sexuais de Mónica Marques (que está muito longe de ser uma narradora no sentido estrito do termo) ou – e aqui sim, temos alguém que procura ser um narrador – a “escrita urbana, preocupada com a legibilidade” de Hugo Gonçalves, a quem Mexia chama “o anti Gonçalo M. Tavares”.

Esta é uma geração que, ao contrário das que a precederam, “abraça a cultura anglófona” e tem uma forte “infl uência e cultura de cinema e de séries de televisão”, para usar os termos de Maria do Rosário Pedreira, que lembra que no seu tempo “havia dois canais e um fi lme por semana” e que “todos estes fi lmes e séries de hoje têm uma cultura narrativa muito forte”.

Pegando por essa ponta – a de um certo desplante –, Mexia lembra que houve predecessores, lembrando que “Mário de Carvalho e Luísa Costa Gomes levaram as brincadeiras com a ideia de narrar mais longe e trouxeram uma dimensão lúdica ao romance português”. “Esse sim”, continua, “talvez tenha sido um momento essencial”. Uma posição que não deve desagradar a Riço Direitinho, para quem estes novos escritores, na maior parte dos casos, “fazem livros que são fáceis de ler”. Já não se trata tanto de criadores, no termo antigo do termo, mas de “gente que tem de escrever um livro de dois em dois anos”. “Há uma pressão dos editores e deles próprios para o fazer. Sabes quando podes esperar um novo romance do José Luís Peixoto porque já passou um certo tempo”.

Ou seja: haverá de novo uma instituição da fi gura-escritor, mas agora de forma mais mundana. O que, diz, Direitinho, “é positivo, excepto se se estabelecer a bitola da grande literatura por aqui”. Porque, diz, “uma coisa é escrever, outra coisa é escrever com as tripas”. J.B.

“Havia qualquer coisa contra a história com agá pequeno. Os novos autores não sentem a obrigação de de fazer literatura engajada”Maria do Rosário Pedreira

Page 10: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

10 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

se que o passado pode ser vascu-lhado e que com isso algo pode mu-dar”.

Desde que lhe surgiu a ideia para o romance que havia um objectivo prin-cipal: “Contrapor passado e presen-te”, através do jogo entre o avô e o neto, o campo e a cidade.

Este é um dos aspectos centrais de “Deixem Falar as Pedras”, porque permite contrapor dois países, um país rural sob o jugo do fascismo e outro país urbano afectado por múl-tiplas maleitas de nomes menos gran-diosos do que “fascismo”, mas ainda assim tendentes a um “mal de vivre” simbolizado pela anorexia da miúda, pela disfunção da família, pela gordu-ra e pela violência de Valdemar.

O país rural do romance situa-se em Lagares, lugar imaginário que já tinha servido como cenário ao primeiro romance. É inspirado em Ruivães, “a aldeia de onde vem a família do lado da mãe”, mas não surge por vontade de criar um território só seu (não há nada de Faulkner em Machado), nem por obsessão de um escritor urbano com a província, muito menos por estilização, antes pela mais simples das razões: era uma forma de resolver um problema. “Usei Lagares porque havia um grupo de guerrilheiros es-panhóis, e tinha de ter um lugar bem definido para eles”.

O grupo de guerrilheiros espanhóis – que pode ou não ser um grupo de guerrilheiros espanhóis – é um dos achados e uma muito bem consegui-da incursão na (por assim dizer) his-tória paralela da violência em territó-rio nacional. Essa parte do livro passa-se quando Nicolau Manuel está noivo e vai casar e nos arrabaldes da aldeia acampam uns espanhóis que se diz andarem fugidos da Guerra Civil de Espanha.

David não só apanha bem esse lado português do diz-que-andem-fugidos, como o usa para iniciar a tremenda queda de Nicolau Manuel: ele é apon-tado à polícia como apoiante da cau-sa terrorista, numa confusão identi-tária com o seu irmão. Um truque li-terário que lembra Adolfo Bioy Casares, que David Machado aliás tra-duziu.

Quando se dá o 25 de Abril, Nicolau Manuel continua a ser perseguido. “Achei tremendamente divertida essa ideia”, diz Machado – e ficamos a pensar que Bioy Casares também acharia.

Toda a parte “espanhola” do livro, antes da saga de torturas infernais a que Nicolau Manuel é sujeito, tem si-multaneamente um lado revelador (a já mencionada relação escondida que a nação tem com a violência) e lúdico. O curioso é que o autor não reclama nenhuma portugalidade na criação dessas cenas específicas. Antes pelo contrário: “Isto basicamente são his-tórias de índios e cowboys na serra”.

Apesar do valor que atribui ao tra-balho duro de escrita, Machado diz não ter precisado de falar com nin-guém que tenha presenciado histórias semelhantes: “Não ouvi estas histórias a ninguém. Vi filmes americanos sufi-cientes para ser capaz de escrever es-tas cenas. Documentei-me com livros e o resto inventei. Tive de me docu-mentar porque a história passa-se nu-ma época que não vivi. Mas isto não é um romance histórico. Não era impor-tante contar uma história tal como aconteceu durante a ditadura”.

A saga de uma obsessãoPara um livro sobre as consecutivas desgraças de um homem que sofre tudo, contado por um neto que sofre bastante, não deixa de ser curioso que nada disso tenha sido o que surgiu primeiro. “O que surgiu primeiro foi o alfaiate, que se quer matar sem mor-rer”. O alfaiate é o homem que de-

nuncia Nicolau, o homem que almeja ficar-lhe com a noiva. “Comecei a construir a história do avô a partir daí”. O que se segue é uma saga: não a de Nicolau mas a de David, a procu-rar o próprio livro.

“Escrevi o primeiro capítulo 18 ou 19 ou 20 vezes”, confessa, sem que pareça haver no seu discurso qual-quer resquício daqueles lobo-antu-nismos literários (“ai, a mão”, “ai, o trabalho”, “ai, a mão que trabalha”): “Comecei a contar do ponto de vista do alfaiate, do ponto de vista do avô, do ponto de vista do miúdo”.

O primeiro capítulo era – como muitas vezes é, na literatura, como um primeiro plano o é no cinema, ou uma primeira canção na música po-pular – uma espécie de obsessão, não apenas porque marca do encontro do leitor com as páginas mas também porque “de alguma forma o primeiro capítulo é o último capítulo, o livro é circular, o último encerra elementos do primeiro”.

As 18 versões do primeiro capítulo demoraram-lhe “nove meses”. “O res-to demorou um ano”. Um ano de ten-tativa e erro, mas não um ano estrito de escrita diária: “Acabo hoje uma versão e fico frustrado, pelo que só

duas semanas depois é que me ape-tece voltar a pegar naquilo”, confessa. “Mas a frustração é importante, é o que faz voltar lá e tentar outra vez”.

Machado, que só se senta para es-crever quando tem “uma série de momentos chave para [se] orientar”, é um sujeito notoriamente metódico: no seu livro anterior todos os contos tinham o mesmo exacto número de páginas. Neste também é preciso: “to-dos os capítulos têm, mais coisa me-nos coisa, 25 páginas”.

E o mesmo se pode dizer do seu método de trabalho, pelo menos nas alturas em que está a escrever diaria-mente: “Acordo de manhã cedo, leio qualquer coisa e escrevo até às seis horas”.

Mas desta feita ele tinha alguém a quem se reportar, um eco que lhe de-volvia uma visão menos engajada do progresso do romance: Maria do Ro-sário Pedreira, conhecida por ser a editora portuguesa mais próxima do que os anglo-saxónicos chamam “edi-tor”: alguém que, de facto, edita.

Rosário Pedreira não teve de correr atrás de Machado para trabalhar com ele. Bastou-lhe dizer o que pensava da sua escrita numa rádio.

“No programa do Carlos Vaz Mar-

ques, ele perguntou à Maria do Rosá-rio Pedreira se havia algum escritor que lhe tivesse escapado e ela disse o meu nome. Fui ao Facebook, encon-trei-a e mandei-lhe uma mensagem. Nessa altura já tinha o romance bem encaminhado”.

O que descobriu depois foi que Ro-sário Pedreira “edita mesmo”, o que para ele foi uma alegria: “Sempre achei que um livro devia ser trabalhado as-sim”. “Ela não resolve problemas, põe-te a pensar sobre eles. Pergunta ‘O que é que pretendes com isto?’. E eu é que tenho de resolver o problema. E nunca diz ‘Este final não pode ser’. Se eu achar que uma coisa tem mesmo de ficar assim, fica assim”.

Talvez o acima mencionado salto de maturidade na escrita de Machado venha um pouco dessa companhia, desse olhar de fora que pergunta “Pa-ra que é que isto serve?”. Ou então é o simples crescimento de um escritor que acredita em contar histórias: “Irrita-me que em Portugal as histó-rias sejam postas de parte”.

E que em vez de chorar sobre o lei-te derramado, foi à procura da teta da vaca.

Ver crítica de livros na pág. 48 e segs.

Acabo uma versão e fi co frustrado. Só

duas semanas depois é que

me apetece voltar a pegar

naquilo. Mas a frustração

é importante, é o que faz voltar lá e

tentar outra vez

“Deixem Falar as Pedras” resulta do

confronto da escrita de

David Machado com o trabalho de

edição de Maria do

Rosário Pedreira, que ele contactou

através do Facebook

RU

I G

AU

NC

IO

Page 11: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

imag

em D

avid R

umsey M

ap C

ollectio

n, ww

w.d

avidrum

sey.com

desig

nJo

ana Mo

nteiro

T E AT R O D O MU N D O

JOSEF NADJLes CorbeauxCCVF Guimarães 11 Mai, 22:00Teatro de Vila Real 13 Mai, 22:00Theatro Circo Braga 16 Mai, 21:30TeCA Porto 18+19 Mai, 21:30Centre Chorégraphique National d’Orléans França

YAEL RONENThird GenerationTheatro Circo Braga 20 Mai, 21:30TNSJ Porto 21+22 Mai, 21:30+16:00Schaubühne am Lehniner Platz | Habima National Theatre Alemanha/Israel

MATTHEW LENTONSaturday Night MSBV Porto 20 Mai, 18:00TNSJ Porto 15-17 Set, 21:30; 18 Set, 16:00CCVF Guimarães 30 Set, 22:00Compagnia Teatrale Europea Itália/Escócia/Portugal

JEAN-LOUIS MARTINELLIMédéeArcos Miragaia Porto 20-22 Mai, 21:30Max Rouquette | Théâtre Nanterre-Amandiers França

MOUSSA SANOUJe t’appelle de ParisTeCA Porto 21+22 Mai, 16:00Théâtre Nanterre-Amandiers França

FRANK VAN LAECKE | ALAIN PLATELGardeniaCCVF Guimarães 27 Mai, 22:00les ballets C de la B Bélgica

ANTUNES FILHOPolicarpo QuaresmaTNSJ Porto 28 Mai - 11 Jun, 21:30; 29 Mai, 16:00Lima Barreto | Centro de Pesquisa Teatral/SESC São Paulo Brasil

EMERSON DANESILamartine BaboTeCA Porto 4-11 Jun; 4, 5, 10 e 11, 16:00; 6+7, 21:30Antunes Filho | Centro de Pesquisa Teatral/SESC São Paulo Brasil

Auditório de SerralvesUCI Arrábida 7-9 MaiPina Bausch: filmesAnne Linsel, Rainer Hoffman | Wim Wenders | Fundação de Serralves | Midas Filmes

MSBV Porto 30 Abr - 20 Mai, qua-dom 14:00-20:00Roupas de CenaJoão Tuna | Bernardo Monteiro | Teatro Nacional São João Portugal

CCVF, TNSJ, TheatroCirco 25 Abr - 22 MaiLaboratórios criativos

INFORMAÇÕESwww.tnsj.ptwww.ccvf.ptwww.theatrocirco.comwww.teatrodevilareal.com

ORGANIZAÇÃOTNSJ, Centro CulturalVila Flor, Theatro Circo, Teatro de Vila Real COLABORAÇÃOUnião dos Teatros da Europa

PETER BROOKUne Flûte EnchantéeCCVF Guimarães 5 Mai, 22:00 TeCA Porto 8+9 Mai, 21:30W.A. Mozart | Théâtre des Bouffes du Nord França

PINA BAUSCHBamboo BluesTNSJ Porto 6+7 Mai, 21:30Sweet Mambo TNSJ Porto 11-13 Mai, 21:30Tanztheater Wuppertal Pina Bausch Alemanha

SANJA MITROVIĆWill You Ever Be Happy Again? CCVF Guimarães 9 Mai, 22:00TeCA Porto 13+14 Mai, 21:30+16:00

A Short History of CryingTheatro Circo Braga 11 Mai, 21:30TeCA Porto 14 Mai, 21:30Stand Up Tall Productions | Center for Cultural Decontamination Holanda/Sérvia

CO-FINANCIAMENTO ODISSEIA PARCEIROS MEDIAMECENAS TNSJO TNSJ É MEMBRO DAAPOIO INSTITUCIONAL

imag

em D

avid R

umsey M

ap C

ollectio

n, ww

w.d

avidrum

sey.com

desig

nJo

ana Mo

nteiro

Page 12: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

12 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Leonardo Padura escreveu um romance sobre um homem que fez História, Trótski, e um homem que entrou na História porque o matou, Ramón Mercader. Ao contar esta história real, por onde passa a perversão da utopia socialista pelo estalinismo, o povo cubano nunca lhe saiu do pensamento. Isabel Coutinho

Padura e o homem que gostava de cães

Page 13: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 13

Na última Feira do Livro de Cuba, que decorreu em Fevereiro, em di-versos locais de Havana, o novo ro-mance de Leonardo Padura, “O Ho-mem que Gostava de Cães”, esgotou. Uma multidão esteve horas na fila para conseguir um exemplar. E nos dias seguintes, em várias livrarias da cidade, houve um papel colado nas portas a dizer: “Já não temos livros do Padura”.

O romance que trata do assassinato de Trótski e da história do seu assas-sino saiu primeiro em Espanha, em 2009. Apesar do preço, muito alto para um cubano o poder comprar (22 euros, que é mais ao menos o que ga-nha num mês um médico na ilha de Fidel), muitas pessoas conseguiram ter o livro, enviado por algum amigo ou por outra via. “Muita gente tinha lido o livro, outros tinham notícias dele, e foi criada muita expectativa”, explica o escritor cubano que esteve no festival LeV- Literatura em Viagem, em Matosinhos, a lançar o romance. Foi assim que uns 200 ou 300 exem-plares da edição espanhola circula-ram em Cuba antes de o livro ter uma edição cubana de quatro mil exem-plares, vendidos a 30 pesos (cerca de um euro, que é ainda um preço alto para um país onde o salário médio ronda os 450 pesos).

Muitas das pessoas que em Cuba têm lido o romance agradecem ao es-critor tê-lo escrito. Leonardo Padura tem uma explicação para este senti-

mento: “Conta uma história que tem muito a ver com os cubanos,

mas que é muito desconhecida para nós. Sobretudo quando

aborda a perversão estali-nista do ideal socialista: sabia-se em linhas gerais como tinha decorrido to-do o processo, mas não

se sabiam detalhes. Por isso foi-se

criando uma ex-pectativa em re-

lação a esta obra.”

Padura escreve sempre em primei-ro lugar para os leitores cubanos, porque os considera o seu “público natural”. Neste romance isso aconte-ceu-lhe mais do que em qualquer outro. “Ainda que as histórias se pas-sem no século XIX ou em outros lu-gares, como na Turquia, país onde Trótski esteve exilado, tudo na minha literatura tem a ver com a vida em Cuba, com o presente em Cuba, com a minha experiência como ser huma-no em Cuba e, sobretudo, com a ex-periência da minha geração. É sem-pre uma literatura focada no que foi o sonho e no que têm sido as frustra-ções da minha geração”, afirma.

Desta vez, Padura criou uma histó-ria que se passa em cenários muito diferentes e com personagens muito pouco conhecidas em Cuba. “No mo-mento de escrever, eu não podia de-dicar-me a ficcionar e, de alguma ma-neira, também tinha de explicar a um potencial leitor cubano quem foram estas personagens: quem foi Trótski, o que se passou na disputa entre Trótski e Estaline, o que se passou no estalinismo dos anos 30. O leitor cubano viveu todos estes anos voltado de costas para essa informação. As

pessoas em Cuba agradecem-me por-que lhes ensinei uma história de que eles fazem parte e que lhes foi escon-dida durante muitos anos.”

“O Homem que Gostava de Cães” pretende explicar um dos episódios que evidenciam a perversão da utopia socialista. “Creio que o assassinato de Trótski tem um carácter simbólico muito grande dentro da perda dessa utopia socialista. O meu livro mostra como a União Soviética, a partir da época de Estaline, sofreu um acelera-do processo de dogmatização, de per-versão, que acabou por converter o país numa autocracia onde só Estali-ne decidia. Não decidia só o que acon-tecia na União Soviética, decidia o que acontecia no resto dos partidos co-munistas do mundo. Quem não cor-respondia a essa ortodoxia ficava de fora”, acrescenta o escritor cubano.

“O sentido de perda de identidade, de perda de independência, de perda de espaço para se poder pensar, para se poder decidir, é um dos elementos mais dramáticos desta perversão da utopia socialista, que tinha como princípio criar uma sociedade onde houvesse o máximo de liberdade com o máximo de democracia. Digo o mais dramático porque não devo dizer o mais terrível; o mais terrível é o que matou mais de 20 milhões de pessoas. Entre um escritor ou um pensador que tem de deixar de escrever ou de pensar e uma pessoa que morre, é muito mais dramática a morte. Mas não foi só uma pessoa, foram milhões de pessoas, por isso há uma diferença importante”, sublinha. Além de mos-trar como se perverteu essa utopia, “O Homem que Gostava de Cães” mostra também a experiência de Cuba quando adoptou o modelo so-viético. “O modelo soviético desapa-rece nos anos 90, mas Cuba manteve-o e continua a mantê-lo até hoje. Nes-te momento, hoje mesmo [a entrevista foi realizada no dia 16 de Abril], o Partido Comunista Cubano

trata de afastar-se do que significou esse modelo, trata de propor um mo-delo social e económico diferente. Como vão conseguir fazê-lo, e se a burocracia vai permitir que esse afas-tamento seja possível ou não, é algo que só o futuro dirá. Mas é evidente que mesmo os mais altos dirigentes cubanos se deram conta de que ti-nham cometido um grande erro ao importar um sistema que já vinha do-ente, que já estava pervertido.”

Surpresas durante a investigação

A investigação que Leonardo Padura foi obrigado a fazer para conseguir escrever este livro foi muito compli-cada. “A primeira complicação é que em Cuba não existe bibliografia sobre estas personagens ou sobre estes te-mas. Por isso, parti de um desconhe-cimento absoluto.”

Na época em que Leonardo Padura andou na universidade, era como se Trótski não existisse; de Ramón Mer-cader, o seu assassino, não se sabia nada. Foi só nos anos 90 que o escri-tor, que ficou mundialmente conhe-cido por causa dos seus romances policiais com o detective Mario Con-de, começou a ter um pouco mais de informação sobre Trótski e soube que Ramón Mercader tinha vivido quatro anos em Cuba, de 1974 a 1978, e que tinha morrido em Havana. “Com estes conhecimentos, em alguma parte da minha cabeça começou a formar-se a possível ideia de fazer um romance. Passei dois anos a investigar, não fazia mais nada. Li muito, sistematizei o meu conhecimento e quando já tinha capacidade para poder movimentar as personagens na história comecei a escrever. Isso aconteceu três anos an-tes de terminar o romance.” Mas du-rante o tempo que demorou a escrita nunca deixou de investigar: “É uma história praticamente nova que esta-mos a ler, porque, embora conheça-mos os pontos fundamentais, todo o interior dessa história esteve oculto durante muitos anos nos arquivos de Moscovo. Uma parte importante des-ses documentos foi sendo trabalhada, divulgada e publicada. Mas como não leio russo tinha de esperar que a in-formação fosse publicada em inglês ou em espanhol para poder consultar os livros. Esse processo também me atrasou a escrita porque tive de rec-tificar muitos elementos ou aumen-

osGu

perueartro

O mviéso

gmou acicidéto ddort

o eerdenpoum

des q

mao d

ocre naismir o

dssoátisoo hnherGGooa pptto smamantêhoiizzom

sino saiu primeiro em Espanha, em 2009. Apesar do preço, muito alto para um cubano o poder comprar (22

que lhes ensinei umeles fazem parte e qdida durante muitopara um cubano o poder comprar (22

euros, que é mais ao menos o que ga-nha num mês um médico na ilha de Fidel), muitas pessoas conseguiram ter o livro, enviado por algum amigo ou por outra via. “Muita gente tinha lido o livro, outros tinham notícias dele, e foi criada muita expectativa”, explica o escritor cubano que esteve no festival LeV- Literatura em Viagem, em Matosinhos, a lançar o romance. Foi assim que uns 200 ou 300 exem-plares da edição espanhola circula-ram em Cuba antes de o livro ter uma edição cubana de quatro mil exem-plares, vendidos a 30 pesos (cerca de um euro, que é ainda um preço alto para um país onde o salário médio ronda os 450 pesos).

Muitas das pessoas que em Cuba têm lido o romance agradecem ao es-critor tê-lo escrito. Leonardo Padura tem uma explicação para este senti-

mento: “Conta uma história que tem muito a ver com os cubanos,

mas que é muito desconhecida para nós. Sobretudo quando

aborda a perversão estali-nista do ideal socialista: sabia-se em linhas gerais como tinha decorrido to-do o processo, mas não

se sabiam detalhes. Por isso foi-se

criando uma ex-pectativa em re-

lação a esta obra.”

Padura escreve sempre em primei-ro lugar para os leitores cubanos,porque os considera o seu “públiconatural”. Neste romance isso aconte-ceu-lhe mais do que em qualqueroutro. “Ainda que as histórias se pas-sem no século XIX ou em outros lu-gares, como na Turquia, país ondeTrótski esteve exilado, tudo na minhaliteratura tem a ver com a vida emCuba, com o presente em Cuba, coma minha experiência como ser huma-no em Cuba e, sobretudo, com a ex-periência da minha geração. É sem-pre uma literatura focada no que foio sonho e no que têm sido as frustra-ções da minha geração”, afirma.

Desta vez, Padura criou uma histó-ria que se passa em cenários muitodiferentes e com personagens muitopouco conhecidas em Cuba. “No mo-mento de escrever, eu não pop dia de-didicar-me a fficic icionar e, dde aalglgumuma ma-neira, também tinha de explicar a umpopotetencnciaial l leleititoror c cububanano o ququemem f fororamam estas personagens: quem foi Trótski,o o quque e sese p pasassosou u nana d disispuputata e entntrere Trótski e Estaline, o que se passou noestalinismo dos anos 30. O leitorcucubabanono v viviveueu t tododosos e eststeses a anonoss vovoltltadadoo de costas para essa informação. As

dida durante muito“O Homem que

pretende explicar que evidenciam a psocialista. “Creio quTrótski tem um camuito grande dentutopia socialista. Ocomo a União Sovépoca de Estaline, sdo processo de dogversão, que acabopaís numa autocrane decidia. Não dectecia na União Soviéacontecia no restomunistas do mundrespondia a essa ofora”, acrescenta o

“O sentido de pede perda de indepede espaço para se pse poder decidir, é mais dramáticos dutopia socialista,princípio criar umhouvesse o máximoo máximo de demodramático porquemais terrível; o mamatou mais de 20 mEntre um escritorque tem de deixar pensar e uma pesmuito mais dramánão foi só uma pessde pessoas, por issoimportante”, sublintrar como se perve“O“O H Homomemem que GGmostra também aCuCubaba q quauandndo o adadopopviético. “O modelorerecece n nosos a anonos s 9090, , mmo e continua a mante momento, henentrtrevevisistata f foioi r reaealiliAbril], o Partido C

“Ainda que as histórias se passem no século XIX ou em outros lugares, como na Turquia, país onde Trótski esteve exilado, tudo na minha literatura tem a ver com a vida em Cuba, com o presente em Cuba, com a minha experiência como ser humano em Cuba e, sobretudo, com a experiência da minha geração”

Na época em que Padura estudou na universidade, era como se Trótski não existisse: esta é uma história completamente nova para os cubanos

MA

NU

EL

RO

BE

RT

OTrótski foi assassinado pela picareta de Ramón Mercader em Agosto de 1940

Page 14: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

14 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

tá-los, já que estava a trabalhar num romance histórico.”

À medida que ia investigando, Le-onardo Padura foi surpreendido por três coisas. Primeiro, os números. Sa-bia que Estaline tinha deportado mui-tas pessoas e que nos campos de tra-balho muitos tinham morrido, mas sentiu-se horrorizado porque os nú-meros se iam multiplicando e eram cada vez mais: mil, centenas de mi-lhar, milhões de vítimas. A segunda coisa que o surpreendeu foi sentir, em todas as personagens desta história, um sentimento de terror, que consi-dera ter sido um dos elementos que Estaline utilizou para aglutinar e go-vernar a União Soviética. E a terceira, talvez “o mais importante de tudo”, foi uma mudança total da visão que o escritor cubano tinha do que acon-teceu na Guerra Civil Espanhola. “Eu tinha uma visão muito particular da Guerra Civil Espanhola escrita pelo lado republicano, pelos comunistas do lado republicano. Quando se re-vela uma série de documentos, fica a entender-se como é que estes co-munistas espanhóis foram manipu-lados, governados, dirigidos pelos assessores soviéticos e pelos assesso-res da Internacional Comunista.”

Ficção e dramatismoNo romance histórico que Leonardo Padura acabou por escrever existem três personagens, protagonistas de cada uma das histórias: Trótski (con-ta-se a sua vida no exílio até à morte),

Ramón Mercader (o homem que pre-parou e cometeu o assassinato de Trótski) e uma personagem comple-tamente inventada por Padura, um cubano que se chama Iván e que re-úne todos os elementos desta história e a entrega ao leitor. Estas três per-sonagens têm um carácter comple-tamente distinto. Trótski é uma per-sonagem com uma biografia muito conhecida e todos os acontecimentos de que se fala no livro partem de uma investigação histórica: os incêndios, a morte dos filhos, os lugares onde viveu, é tudo real. No caso de Ramón Mercader, em “O Homem que Gos-tava de Cães” está contada pratica-mente toda a sua história conhecida. Mas como aquilo que se conhece so-bre este homem não era suficiente para criar a personagem, Padura in-tegrou no livro uma série de elemen-tos de ficção (por exemplo, o mo-mento em que ele é preparado para cometer o assassinato). E quanto a Iván, o cubano aspirante a escritor, é uma personagem de ficção mas cor-responde a uma realidade, a uma história, à história possível de um cidadão cubano que quis ser escritor nos anos 70 e 80.

Leonardo Padura é fundamental-mente um escritor, apesar de fazer investigações históricas e literárias. Gosta de utilizar a História como componente da ficção porque acre-dita que “a ficção é capaz de realçar a parte mais dramática da História”. “É muito complicado escrever ro-mances históricos no sentido em que os acontecimentos da realidade têm a sua própria dramaturgia e os acon-tecimentos da literatura têm de ter a sua – que é diferente. Têm leis dife-rentes. A realidade é realidade, a fic-ção é ficção, e comportam-se de ma-neiras dramaticamente diferentes. É complicado tratar o romance histó-rico tentando ter um respeito pelos factos reais.”

Por isso recorreu a um recurso roma-nesco para con-tar a História. “A História ocorre para-lelamente. Enquanto a c o n t e c e uma coi-

sa em Portugal, está a acontecer ou-tra coisa no Líbano e há um congres-so a decorrer em Cuba em que se está a decidir qual vai ser o futuro do país. No romance, este recurso das histórias paralelas tem a função de suster o desenvolvimento dramático e estrutural de uma história que tem para o escritor um problema funda-mental: é que o eixo mais importan-te do livro é o assassinato de Trótski. E antes de começares a ler o livro já sabes que Trótski foi assassinado no México por Ramón Mercader. Eu ti-nha que fazer com que isto resultas-se interessante para o leitor. Por isso utilizei vários recursos literários, en-tre eles essa estrutura paralela para que o leitor sinta que a informação não lhe chega toda ao mesmo tempo e que tem de continuar a ler para conseguir chegar a ela.”

Na primeira versão que Leonardo Padura escreveu de “O Homem que Gostava de Cães”, todas as linhas re-lativas a Trótski estavam na primeira pessoa. “Queria que o leitor se sen-tisse o mais próximo possível desta personagem histórica tão complicada e tão esquiva. Depois de ter escrito mais de 200 páginas, dei-me conta de que realmente era incapaz de ex-pressar o pensamento de um revolu-cionário russo do princípio do sécu-lo, um homem fanático pelas suas ideias políticas, um homem de cultu-ra judaica e europeia, que viveu uma época e situações históricas diferen-tes das minhas. Ao narrá-lo na pri-meira pessoa, não ia conseguir ex-pressar quem era Trótski. Portanto tive de refazer tudo e mudar a sua voz para a terceira pessoa.”

No caso de Ramón Mercader, en-controu a solução mais rapidamente. “Mercader não pode contar a sua his-tória. Tem de contar a sua história a alguém e é por isso que há um narra-dor. Como é uma história que origi-nalmente está contada pelo próprio Ramón Mercader, utilizei uma lingua-gem mais próxima do espanhol da

Península Ibérica. No caso de Iván, o homem que reúne toda esta his-tória e que a expressa, a primeira pessoa pareceu-me a mais ade-quada. E para mim era muito fácil, porque era um pouco como se eu estivesse a escrever sobre mim.”

“O assassinato de Trótski tem um carácter simbólico muito grande dentro da perda da utopia socialista. O meu livro mostra como a União Soviética, a partir de Estaline, sofreu um acelerado processo de dogmatização”

A abertura dos arquivos de Moscovo permite agora reler acontecimen-tos como a Guerra Civil Espanhola: as novidades, diz Padura, são surpreen-dentes

MA

NU

EL

RO

BE

RT

O

O lado humano do assassino

Esta é uma história é feita por homens, mas as personagens femininas, ainda que secundárias, são determinantes nas suas escolhas. “É muito difícil que um homem possa executar alguma coisa se não tiver a seu lado uma mulher. Muitas vezes, ao contarmos a história, esquecemo-nos disso. Nos romances policiais desenvol-veu-se muito o herói solitário que vai pela cidade, já meio escura, e a percorre com a solidão às costas. A mim interessa-me muito a relação dos homens com determinadas mulheres, como estas os influenciam, como os ajudam.”

Neste caso, historicamente, houve du-as mulheres que tiveram uma importân-cia muito forte na formação de Ramón Mercader. De um lado, a sua mãe, Cari-dad del Río, “uma personagem fascinan-te, detestável, admirável, repudiante”. De outro, África de las Heras, cuja relação com Mercader está exagerada romanes-camente. Mas ela existiu realmente, par-ticipou na Guerra Civil Espanhola e foi durante anos agente do KGB.

No caso de Trótski, a companhia da mulher, Natália, foi fundamental em todo o processo do exílio, e houve ou-tras que entraram na sua vida, como Frida Kahlo. No caso de Iván, é quando conhece Ana que descobre que a feli-cidade é possível no meio da maior pobreza e da maior miséria.

Que todos os assassinos têm um la-do humano não é novidade. Quem leu “A Sangue Frio”, de Truman Capote, não escapa a uma certa compaixão por um homem que matou a sangue frio quatro pessoas. E o título “O Ho-mem que Gostava de Cães” foi “rou-bado” por Leonardo Padura de um conto escrito por Raymond Chandler onde há um assassino a soldo que ama os cães. “Chandler escolhe este ele-mento para dizer que um assassino é capaz de fazer festas a um cão e de amar esse cão. Utilizo-o como metá-fora da possível união destas três per-sonagens tão diferentes umas das ou-tras: um homem que fez a História [Trótski], um homem que entrou na História porque o matou [Ramón Mercader] e um homem que sofre a História [Iván].”

Ver crítica de livros pág. 48 e segs.

Page 15: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

• Horário da bilheteira da Cinemateca: das 14:30 às15:30 e das 18:00 às 22:00a bilheteira da Cinemateca: das 14:30 às15:30 e das 18:00 às 22:00 • • Não há lugares marcados • Informação diária sobre a programação: Tel. 21 359 62 66 •

• Transportes: Metro: Marquês de Pombal, Avenida • Bus: 2, 9, 36, 44, 45, 90, 91, 732, 746 • • Rua Barata Salgueiro, 39 em Lisboa • Consulte a programação de Maio em www.cinemateca.pt •

apoio

150 ANOSRABINDRANATH TAGORE

Alto Patrocínio da Embaixada da Índia em Portugal

6 filmes de Satyajit Ray | 19 a 25 de Maio

CINEMATECA PORTUGUESAMUSEU DO CINEMA

COM O INDIE LISBOA

JULIO BRESSANE 6 a 14 de Maio

NÃO20 filmes que ensinam a dizer “não”

2 a 31 de Maio

OHAYO, JAPÃO“O Outono da Família Kohayagawa”de Yasujiro OzuJapão, 1961 - 103 min

6 de Maio | 19:00

DIE FREMDE“O Estrangeiro”de Feo AladagAlemanha, 2009 - 119 min

9 Maio | 21:30

Page 16: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

16 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Não me lembro de ser novo. Não tenho nenhuma memória de me sentir na força da vida, ou no vigor da idade, ou nos anos dourados. Mesmo quando era adolescente. Nesse sentido, sempre fui bastante velho (...). Eu fui criança. Não tenho é noção de ter sido jovem. Saltei de criança para velho

muito rapidamente (...). [Mas] não é um movimento unívoco

Pedro Mexia “Menos por Menos” reúne cem poemas escolhidos por Pedro Mexia a partir dos seis livros

que editou até hoje. Retrato do escritor enquanto velho (“Não me lembro de ser novo”) numa entrevista em que dá à escrita o que é da escrita e à vida o que é da vida. Anabela Mota Ribeiro

Pedro Mexia já não é aquele que adop-ta o verso de Camões “Foi-me tão ce-do a luz do dia escura” como primei-ra linha de um auto-retrato. O poema vai para 20 anos. Entretanto acabou o curso de Direito (alguém o imagina num escritório?), apresentou nos blo-gues a personagem Pedro Mexia (o público não compreende porque ra-zão é auto-depreciativo), passou a escrever crónicas e crítica literária nos jornais. Às vezes, também confis-sões sobre o medo e a angústia. Ago-ra, edita em “Menos por Menos” cem poemas escolhidos dos seis livros de poesia que lançou até ao momento. O primeiro é de 1999, o último de 2007. Ele acha que ninguém os leu.

Quando é que começou a envelhecer?Não me lembro de ser novo. Não te-nho nenhuma memória de me sentir na força da vida, ou no vigor da ida-de, ou nos anos dourados. Mesmo quando era adolescente. Nesse sen-tido, sempre fui bastante velho. Já fui mais velho do que sou hoje. Sobretu-do porque não tinha sentido de hu-mor. Ou, pelo menos, hoje acho que não tinha sentido de humor. Isso aju-dava a que fosse mais pesada a minha maneira de viver as coisas. Ter ganho ironia e humor atenuou isso.A ironia cria uma certa distância, uma membrana.Sim. Isso não aconteceu por uma ra-zão estritamente voluntária. Tem a ver com os autores que leio, os de língua inglesa, e os ingleses em par-ticular, nos quais a auto-ironia – um elemento não-óbvio na cultura por-tuguesa – está muito presente. Senti isso como muito natural para mim, para o meu discurso. Coincide com o momento em que comecei a escre-ver crónicas e o blogue, 2002. Essa dimensão irónica é sucessivamente referida e colada a mim, e bem. Eu era seriíssimo no pior sentido da pa-lavra quando tinha 20 anos.Levava-se muito a sério?Não era tanto levar-me muito a sério. Era levar as coisas muito a sério. Era

tudo muito pesado.Há em alguns poemas um fundo nostálgico. Em especial quando faz uma dissecação dos retratos de família, de memórias. Identifica-se e incorpora-se nesses retratos, como se fosse também aqueles que evoca. Existiu um tempo em que se sentiu o menino desta cadeia familiar?Há um livro que acho importante no percurso destes seis livros; hesito em dizer se é o melhor ou não, nem me cabe a mim dizê-lo. Chama-se “Em Memória” (2000). Concentra os po-emas sobre a família e sobre a memó-ria, enquanto mecanismo, identida-de. Foram escritos depois da morte da minha avó, em 1993. São, portan-to, muito anteriores à publicação. Significou uma espécie de apocalipse familiar. Era na casa dos meus avós – o meu avô já tinha morrido – que a família se reunia no Natal, na Páscoa, essas coisas. A morte da minha avó acabou por desencadear uma refle-xão sobre a família e o deslaçamento. Eu estou sempre no retrato. Embora não tenha muitas memórias de infân-cia (aliás, tenho muito má memória), tive uma infância muito feliz e um começo de adolescência bastante fe-liz. Esses anos familiares, vejo-os com nostalgia. A perda iminente dessa correia, desse legado foi traumática. Alguns poemas são até violentos. De-pois não aconteceu exactamente as-sim. As relações mudam de natureza, as pessoas encontram formas de re-lacionamento diferentes.Esse tempo da infância e do começo da adolescência parece ser anterior à cicatriz. Nesse tempo era novo.Era criança. Eu fui criança. Não tenho é noção de ter sido jovem. Saltei de criança para velho muito rapidamen-te. Não velho. Mas mais velho do que sou. Nesses anos, as minhas memó-rias são boas e não creio que sentisse um desfasamento [em relação à mi-nha idade]. Continuo a ser uma pes-soa introvertida, pouco social, etc. Já

era na altura. Claro que não formu-lava as coisas nestes termos, mas ape-sar de tudo estava mais integrado.Não havia nem medo nem angústia, que são palavras recorrentes do seu discurso. E palavras essenciais numa das suas autoras de eleição, Agustina. Não por acaso organizou e prefaciou os ensaios de “Contemplação Carinhosa da Angústia”. Um dos aforismos mais famosos de Agustina: “Nasci adulta, morrerei criança”. Parece fazer o movimento contrário…Que é o movimento natural da espé-cie. Não é um movimento unívoco. Em três ou quatro momentos sinto que me tornei mais velho ou mais novo do que era antes. O livro não tem nenhum poema posterior a 2007. Há um hiato sobre o qual não escrevi. Isto não interessa nada ao leitor. In-teressa-me a mim, enquanto organi-zação, até mental, da minha vida através dos poemas. O livro acompa-nha este percurso. Não de uma forma cronológica. Progride por avanços e recuos.No poema Avó Leonor, há versos sobre ela: “… sabendo tudo, sofrendo tudo, como se fosse um alimento. (…)… Essa mistura de uma aceitação cristã, de uma nobreza que não mostra o que vai na alma”. E isto: “um coração atento e em tumulto”. Podiam ser sobre si?Não sei bem. Haverá similitudes. A minha avó é retratada com fidelidade como uma pessoa muito reservada, fechada. Eu sou muito reservado e fechado pessoalmente, mas no que escrevo sou muito confessional.Mas essa não é a personagem Pedro Mexia, que criou, e que lhe permite relacionar-se com muitos?As regras que valem para as relações sociais não valem necessariamente para a escrita daquilo que presumo ser literatura. E assim como dificil-mente teria conversas íntimas com

alguém que não fosse do meu círculo de amigos mais próximo, na literatu-ra, naquilo a que insisto em chamar literatura – boa ou má –, é o contrário. Não escrever de forma intimista seria batota em relação ao que me interes-sa na escrita. Interessa-me falar do medo e da angústia. Não só, mas pa-ra pegar nessas duas palavras. O úni-co cuidado que é preciso é eliminar tudo aquilo que possa ser informati-vo e que constitua bisbilhotice. Por respeito pelas pessoas sobre as quais se escreve. Mesmo as coisas obsce-namente pessoais que escrevi, nin-guém, ao ler aquilo, saberá sobre quem são. Não há nenhuma razão para que as regras [a observar na vi-da social e na escrita] sejam as mes-mas. Daí tanta gente ficar surpreen-dida, perplexa, quando encontra um escritor que é muito diferente daqui-lo que ele escreveu. Isso é, para mim, uma ideia banal.Mas há uma personagem Pedro Mexia.Se não criarmos algo que se pareça com uma personagem quando somos figuras públicas, quando escrevemos no espaço público, somos devorados. Não podemos ser 100 por cento nós mesmos. Há um fenómeno de distan-ciação. É verdade que nos emails que recebo, as pessoas (amigos e desco-nhecidos) sentem-se incomodadas com a possibilidade de aquilo poder não ser uma personagem. Por exem-plo, incomoda muito que escreva recorrentemente sobre o tema do fracasso. Também para essas pesso-as, é mais confortável dizer que é fic-ção, que é um boneco. Eu não me sinto obrigado a dizer o que é ficção e o que não é.É uma das regras da literatura.É. Outra coisa que incomodava mui-to as pessoas (agora nem tanto, mas quando escrevia crónicas mais pes-soais) era o tom auto-depreciativo. É um género de que gosto muito.Há imensas coisas que diz de si próprio no livro, ou que julgamos que são de si, que não são propriamente abonatórias.

“Destroço”. Fala sobre o seu corpo num poema que tem por título “Ferro-Velho”. Num dos primeiros poemas fala de um tronco decepado; a seguir não sabemos se o tronco vai ser usado como jangada ou caixão. Nesta fase, há muitos poemas com referência a árvores.Nos poemas familiares, as árvores representam o campo. Mesmo na ex-periência urbana, a mim, que não sou um amante da natureza, as árvores tendem a chamar a atenção. Tenho que ir ler o dicionário de símbolos quando chegar a casa. Nesse poema, não pensei nisso. O poema nasceu da experiência concreta de ver uma ár-vore a ser transplantada para o con-texto urbano. Claro que pode ter to-das as leituras alegóricas, mas não diria que se trata do corpo.Do seu corpo. De um “imenso totem decepado”, como está em “Sinal”.Admito a leitura, mas nunca pensei nisso dessa maneira. Como em todos os poemas: a distância entre a inten-ção que se teve ao escrevê-lo e a lei-tura possível é enorme.Isto a propósito das coisas auto-depreciativas que diz de si nos poemas.Nos poemas também? Mais nas cró-nicas e nos blogues.Nos poemas aparece uma auto-contemplação desesperançada, rasgada. Menos irónica e mais sofrida.Sim. Por razões que não sei exacta-mente explicar, e que admito que tenham a ver com uma certa (a pala-vra é má…) sacralização da poesia, refreio-me mais no uso da ironia. Em-bora exista uma espécie de ironia, muito contida, nalguns poemas. Al-guns poemas, pela situação que des-crevem ou encenam, são mais den-sos, mais trágicos. No livro sobre Lisboa (“Eliot e Outras Observações”, 2003) há mais anotações irónicas so-bre a cidade e os comportamentos.Há dois poemas terríveis, sem sombra de ironia, no livro de

PE

DR

O C

UN

HA

Page 17: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 17

transitivo e confessável“Menos por Menos” junta poemas que Pedro Mexia escreveu entre 1999 e 2007 - e que, ao contrário do que aconteceu com a prosa que vem publicando entre jornais e blogues, o autor acha que “ninguém leu”

2007, “Senhor Fantasma. O Auto-retrato com Versos de Camões” e “A Esperança entre as Urtigas”. O título do segundo já diz quase tudo.São poemas do começo dos anos 90, recuperados no livro de 2007. O ex-cesso de “pathos” cria um efeito con-trário ao que se pretende, poetica-mente não é interessante. Mas nal-guns momentos não há como fugir-lhe. Não há ironia nenhuma no livro “Avalanche” (2001), o dos poe-mas de amor. São poemas mais ou menos escritos em directo. Não ti-nham aquela coisa que o Wordswor-th recomendava: as emoções recor-dadas na tranquilidade. Talvez seja a maneira ideal de escrever poesia. O investimento biográfico estraga os poemas. Tenho a noção de que há poemas que considero muito impor-tantes mas que não são interessantes, em termos de objecto verbal. Quando se escreve sobre acontecimentos – o Drummond de Andrade recomenda-va que não se escrevesse sobre acon-tecimentos –, a distância protege, do ponto de vista literário. Os poemas do “Avalanche” são o contrário do “Em Memória”. São escritos no mo-mento.Ainda o incómodo que os leitores sentem quando faz comentários auto-depreciativos, ou escreve sobre o fracasso…Mas esse incómodo é em relação à prosa. A poesia ninguém leu.A audiência do Pedro Mexia-cronista fica de fora da poesia?Completamente. Não é por ser eu. Muito pouca gente lê poesia. Há mui-ta gente que segue o que escrevo e que sabe vagamente que escrevo po-esia. Esta selecção é publicada, em parte, porque dos seis livros que a compõem quatro são praticamente impossíveis de encontrar. Mas tenho a noção de que, de tudo o que fiz, isto é o mais obscuro.Fala do “amor intransitivo e inconfessável”. Parece uma condição dos seus amores.É uma expressão oxímora. Os po-

Page 18: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

18 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

emas do “Avalanche” são bastante transitivos e confessáveis! [riso]É um verso do poema “Bad Songs”.É sobre as paixonetas do liceu, que não são nada, não têm sequer espes-sura. Puras fantasias. Intransitivos e inconfessáveis, sim. Ao contrário dos poemas da família, que incluem um grande elenco, e dos da cidade, que incluem desconhecidos, nos poemas do “Avalanche” só existem duas pes-soas. Uma coisa reincidente, sempre que falo da temática amorosa, é que é uma temática totalmente não-social. Não existe o mundo. É bastante tran-sitivo, mesmo que seja, como aconte-ce na maioria desses casos, infeliz.Existe uma relação. O que nem sempre acontece nos poemas de outros livros.Nos poemas sobre Lisboa, é inquie-tante o facto de haver tão poucas re-lações. As pessoas relacionam-se por razões práticas, utilitárias. É uma vi-são da vida urbana desolada.Nesses poemas, existem você, os intermináveis domingos à tarde e os terraços vazios.Exactamente. No “Avalanche” uso o “tu”, o poema é dirigido a alguém. São os poemas mais relacionais numa poesia que não é muito relacional.Um par amoroso que convoca: Paolo e Francesca. Amantes adúlteros da “Divina Comédia”. Porquê este par?Tem a ver com uma ideia de retribui-ção metafísica a que eles são sujeitos. Como têm um amor tempestuoso em vida, no outro mundo têm um casti-go e uma recompensa misturados. Por um lado estão juntos, abraçados, mas no meio de um vórtice. Estão num permanente turbilhão. A ideia de que há um castigo e uma recom-pensa, juntos, no amor, interessou-me quando li a “Divina Comédia”.Linda visão que tem do amor. (E isto é uma provocação…)Já lá vou. Tendemos a arrumar muito bem o castigo e a recompensa. O amor, tenho mais dificuldade em arrumá-lo numa dessas categorias. A minha experiência do amor é a de que é castigo e recompensa ao mes-mo tempo. A minha visão do amor é como a de quase tudo: por mais que conceptualizemos, nasce da nossa experiência. Aquele verso do Ca-mões: “Segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento dos meus ver-sos”. Como nunca tive uma visão lú-dica do amor – tenho uma visão não necessariamente trágica, mas muito séria –, não consigo encará-lo de um modo mais leve.Agora parece Kierkegaard a falar de Regina Olsen.Muito obrigado!, há muito tempo que não tinha um elogio desses. O Kierke-gaard é um dos autores que mais leio, de que mais gosto. A maneira terrível como fala do amor… Uma categoria que escapa ao mundano, ao trivial –

sempre me reconheci nisso. Não acho que seja um tema social. Por isso há uma distância muito grande entre todos os temas da vida em sociedade e o amor (que são duas pessoas abra-çadas numa espiral, na eternidade).É mesmo verdade que escreveu num blogue que uma mulher que gostasse de si não era digna de ser amada?É possível, eu já escrevi coisas bas-tante palermas. Essa frase, que não sei a que contexto pertence, tem um carácter lúdico. Claramente não me estou a referir ao amor. Admito que apareça a tal ideia da personagem. Há muitas coisas que escrevo que são frases de efeito. Essa é uma frase pa-ra chamar a atenção. Não tem a ver com isto de que estamos a falar.Outro par da “Divina Comédia”, Dante e Beatriz. Inspira-o?Sim, mas não foi desses que falei. Sempre me pareceu um par amoroso, ainda que no contexto bíblico não seja um par amoroso, a mulher de Ló, que se transforma em sal, olhan-do para trás. É verdade que tendo a transformar todos os pares, homem e mulher, em pares amorosos.Obsessão. É um “flor de obsessão”, que era como Nelson Rodrigues se chamava.Outra grande referência para mim. Com todas as distâncias tropicais. Há uma presença muito maior da sexu-alidade nas coisas que ele escreve. Eu quase só falo da sexualidade em registo irónico.Usa num poema a expressão “foda kitsch”. Muito inesperada.É verdade. Não é um dos meus temas, na poesia. Na prosa é, enquanto ob-servador. É um tema divertido por-que é o grande impulso por trás da-quilo que as pessoas fazem. Sou um freudiano de estrita observância.Num dos poemas usa uma expressão de Dante citada por Baudelaire: “vita nuova”. Já antes, o nome de uma das suas crónicas remetia para o “spleen” de Baudelaire. Surpreende quando sabemos que é um autor de filiação anglo-saxónica.O meu universo estilístico é muito anglo-saxónico. Mas o Baudelaire é uma óbvia referência para quem quer escrever sobre a colmeia da cidade e a vida contemporânea. Tem essa per-sonagem do “flâneur” – a pessoa que passa e que observa. Mas o que es-crevo, do ponto de vista formal, não tem nada a ver com a poesia do Bau-delaire.Outro autor que aparece e que é um dos seus preferidos: Tchékhov. Esse poema chama-se, com ironia, “Futuro Radioso”.A imagem central da peça “O Cerejal” é a imagem final, do cerejal a ser aba-tido.

A minha experiência do amor é a de que é castigo e recompensa ao mesmo tempo. A minha visão do amor é como a de quase tudo: por mais que conceptualizemos, nasce da nossa experiência (...). Como nunca tive uma visão lúdica do amor - tenho uma visão não necessariamente

trágica, mas muito séria -, não consigo encará-lo de um modo mais leve

PE

DR

O C

UN

HA

Page 19: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 19

Outra árvore a ser cortada.Sim. Na peça significa o fim de uma época, de uma certa ordem social. Nesse poema significa o fim de uma família. Cortar aquilo que lá esteve desde sempre. Num certo sentido, quase todos os poemas são sobre uma coisa que acabou. Há muito pou-cos poemas sobre coisas que estão a começar. Essencialmente, o que faço são elegias. Nem todos os poemas são episódios autobiográficos, embora sejam todos biográficos. Como não tenho imaginação, é uma transposi-ção de coisas que vi, ouvi, conheci. Tenho dificuldade em criar do nada. Por isso é que não escrevo ficção.Como é que concilia essa desesperança, essa ausência de futuro radioso, com o seu catolicismo?É a pergunta que mais me fazem. São horizontes diferentes. Não sou niilis-ta, não acho que a vida não tenha sentido, que tudo seja arbitrário. Acredito num sentido da existência que o cristianismo dá. Mas o horizon-te do cristianismo ultrapassa o limite da nossa existência física, tal como a conhecemos. Projecta-nos para uma realidade sobre a qual não temos meio de falar. Mesmo quem acredita na eternidade não sabe o que é isso. Escapa à capacidade de verbalizar. O catolicismo existe nos poemas como educação, como visão do mundo. Os poemas têm a ver com o para cá da morte, e não com o para lá da morte. Não que a metafísica não me interes-se, mas não saberia escrever sobre isso. É intransitivo e inconfessável. Não é incompatível porque a minha desesperança tem a ver com o hori-zonte da nossa vida.Um poema tem por título “Vencido do Catolicismo”. Mas o mais forte vem a seguir: “sem plural”. É um modo de falar da sua solidão? E contraria outra das premissas do catolicismo: o de ser em rebanho.É verdade. Mas tem um contexto es-pecífico, um poema do Ruy Belo que fala da desilusão de uma geração em relação ao catolicismo. Quis falar de uma relação meramente individual com o catolicismo. Não poderia usar esse plural que o Ruy Belo usa. Per-tenço a uma geração para quem o catolicismo é um traço arcaico. Em tudo, e também na religião, as coisas fragmentaram-se. Além do mais, sou um individualista.É um solitário, além de individualista.Não sei se é a palavra. Voltemos ao Kierkegaard: a religião é uma expe-riência totalmente subjectiva. Envol-ve uma relação directa entre o sujei-to e aquilo em que ele acredita. Va-lorizo a relação directa, a vida em comunidade vem mais tarde.Nos poemas, no que escreve, os seus pais, que são pessoas centrais na sua vida, quase não

aparecem. Alguma coisa do que vem dizendo nesta entrevista será uma surpresa para eles?Não creio. O meu universo está mui-to circunscrito. Os temas que vêm à baila são os mesmos, há muito tem-po. A não ser que houvesse uma in-flexão grande do que digo ou do que me interessa… Controlo bastante aquilo que digo. Não dou entrevistas sem trazer o superego. Mesmo sem superego, um conservador não tem coisas bombásticas desde a última vez [risos].Faz um “Auto-retrato com Versos de Camões”. Muito escuro, desesperançado.São quatro versos de Camões, de po-emas diferentes. É um retrato fiel ao momento em que foi tirado (início dos anos 90). Estou muito mais bem disposto! A partir do momento em que está escrito, deixa de estar sujei-to à nossa confirmação a cada mo-mento. Todos nós já escrevemos coi-sas que não subscrevemos. Se escre-veria este poema hoje? Não. Mas gosto muito do poema. É o poema de que gosto mais – nenhum dos versos é meu.Está a fazer género.Não, é literal.Tem uma escrita ecléctica. Tanto escreve sobre o Morrissey como sobre o George W. Bush.Nos poemas o universo é muito mais delimitado. Se pensar nas coisas que são fundamentais para mim, estão todas neste livro.Por ser crítico é mais difícil editar poesia?Estou demasiado perto daquilo que escrevo para ter a distância que é ne-cessária para a crítica. Um crítico escreve sobre um texto e não sobre um autor – o autor nunca percebe isto. Exercer a faculdade crítica em causa própria é impossível. Daí tam-bém haver tantos poemas maus. Es-pero que não nestes cem escolhidos. Faz diferença quando, ao fim de mui-tos anos a ler e a escrever sobre po-esia, tenho uma maior percepção do que é um mau poema. Ter um discur-so crítico incorporado ajuda. “Estas duas imagens não funcionam”. “Estas palavras são de diferentes áreas vo-cabulares”. Coisas que vêm com a prática. Uma das frases que mais gos-tei que me tivessem dito, numa ses-são literária: “Gosto muito do que você escreve, mas não me interessa nada a sua vida”. A minha esperança é que isso seja o sentimento da maior parte das pessoas. A minha vida in-teressa-me muito a mim. Percebo que, por um lado voyeurista, interes-sa um bocadinho a algumas pessoas. Se for como eu gostava que fosse a literatura, a vida que está por trás não é radicalmente diferente das outras. Toda a gente tem família, toda a gen-te se apaixonou, toda a gente tem um percurso.

“Auto-Retrato com Versos de Camões” é, diz Mexia, o seu melhor poema, e dos mais autobio-gráficos: nenhum verso foi escrito por ele...

Page 20: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

20 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

No caso do milagre cinematográfico, é preciso ver para crer. Por exemplo, aquele plano-sequência, em “As Qua-tro Voltas”/“Le Quattro Volte”, que se segue à morte do pastor que o pó das igrejas que ele dissolvia na água para acalmar a tosse não salvou, em que decorre a encenação da morte de Jesus. Numa aldeia da Calábria, Itália, encena-se a Via Sacra, gladiadores romanos descem a rua em procissão. Um homem morreu, o povo passa com a cruz, Jesus vai morrer também e um cão trabalha para o desapareci-mento dos humanos. Chama-se Vuk o pequeno exemplar que sorrateira-mente toma conta do ecrã – cuidado com este cão: Prémio Especial do Jú-ri da 10ª edição do alternativo Palma-

rés canino Palme Dog, em Cannes 2010. A operação de sabotagem que ele comanda, uma carrinha, uma pe-dra a servir de travão e o travão que ele tira à carrinha, é triunfante. E lá se vão os humanos, varridos para fora do enquadramento. E é também o triunfo das cabras, que invadem a partir daí o ecrã. Nós é que ficamos boquiabertos, sem saber o que se pas-sou ali ou como se passou ali: coreo-grafia orquestrada num microcosmos à Jacques Tati, espera paciente por qualquer coisa de milagroso a que o milagre respondeu afirmativamente ou mesmo, e para sermos destemidos na invocação, a mão Deus, que, aqui, é o realizador de cinema Michelange-lo Frammartino?

O cineasta quase se engasga, ao tele-fone, quando invocamos o divino a propósito do belíssimo (des)equilíbrio que existe em “As Quatro Voltas” en-tre a espera pela manifestação da “re-alidade” e o empurrão que o cinema dá, com a manipulação, com a core-ografia.

“Essa sequência foi repetida 20 ve-zes”, conta-nos Frammartino, 43 anos. “Eu tinha-a desenhado. Tinha mesmo feito um filme de animação. Para a concretizarmos, contratámos um treinador de cães, aqueles que preparam os cães para competições. É um tipo extraordinário: pensa como um cão. Isso para mim foi importan-te para esse plano-sequência. Não podia conceber uma cena absurda e

obrigar um cão a fazê-la. Tinha de es-tar à altura das possibilidades de um cão. E o treinador fez um milagre, conseguiu que o cão tomasse conta do território, conseguiu que ele me-morizasse o lugar e que reagisse a quem entrasse nele. E eu tive de pen-sar num acordo entre as várias pre-senças nessa sequência: há humanos, há um animal, há uma pedra, há ár-vores. Eu devia ser um pouco de tu-do.”

O realizador pensa como um cão. Logo a seguir o espectador sente-se como uma cabra – eis a proposta de “As Quatro Voltas”, filme que mexe na nossa natureza. Frammartino diz que esse plano-sequência (quem não for convertido por ele é incrédulo sem

remédio, não vale a pena andar então à procura de milagres) é uma súmula concentrada do seu projecto: o desa-parecimento da hierarquia que colo-ca a figura humana (e os diálogos) no topo da pirâmide, a maravilhosa con-tradição, que anima o filme, entre o realizador controlador e o realizador à mercê.

“Em outros episódios – por exem-plo, naquele do nascimento da cabra –, a minha possibilidade de controlo tornou-se menor. Não podia pedir mais às coisas. O meu poder pôde li-bertar-se mais na cena do cão, mas nos outros episódios tornou-se mais débil, sem eu poder fazer nada – ain-da, por exemplo, a cena da festa da árvore – a não ser observar. O homem

O ano em que fe homem, e mineral, e vegetal...

Há milagre na aldeia. E como é preciso ver para crer, vamos todos em procissão em E em que o realizador, Michelangelo Frammartino,

Page 21: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 21

desaparece narrativamente, mas tam-bém o realizador.”

Eis a contradição, que Frammarti-no acolhe, mesmo que se tenha en-gasgado quando lhe falámos na (sua) mão de Deus: e então a montagem, que estabelece um acordo entre os vários segmentos das cenas da vida de uma aldeia da Calábria? E então essa linha “narrativa” de sucessivas – quatro – vidas e reencarnações que liga o humano, o animal, o vegetal e o mineral, e que começa no carvão e com os carvoeiros e ao carvão faz tu-do regressar, “ashes to ashes”?

“É verdade, e ainda por cima a montagem mudou muito o filme e demorou um ano, porque fomos fil-mando ao longo de três anos em con-

dições diversas, em alguns dos casos sem dinheiro nenhum, e ficámos com material heterogéneo, o que se tornou complicado... Mas não sei como res-ponder a essa questão. Procurei – e espero não estar a ser arrogante – res-peitar a realidade. Deixá-la falar. O conflito que habitualmente se tem com a realidade quando se filma, ten-tei perdê-lo. É claro que, quando fil-mo as cabras, elas não são apenas cabras. Que quando filmo o homem, ele não é apenas o homem. Como se houvesse uma concepção da realida-de como uma superfície que cobre algo, outra coisa, como um vestido. Mas ao mesmo tempo posso permitir que as coisas aconteçam. Um Deus-realizador é aquele que constrói tudo

meticulosamente. Em vez disso eu aqui não sou forte. Este filme deixa muito espaço ao espectador, deixa que ele tome posse da imagem. Não lhe diz tudo.”

A igreja é o cinemaFrammartino nasceu em Milão, no Norte de Itália. A Calábria é a terra da família. Ali realizou o seu primeiro filme, “Il Dono” (2002). É um “espaço de liberdade” para Michelangelo: “fil-mes sem dinheiro, sem argumento” ali podem fazer-se, na Calábria.

Um amigo, fotógrafo, falou-lhe dos carvoeiros. Frammartino foi observá-los. Depois observou um ritual, a fes-ta da árvore. E depois juntou-se aos pastores de cabras.

“E sem saber bem o que fazer com este ‘material’... mas foi então que tive uma iluminação: percebi que es-tas quatro coisas para que eu estava a olhar, o humano, o mineral, o vege-tal e o animal, tinham uma conexão imprevista. E lembrei-me da presen-ça de Pitágoras [filósofo e matemático grego] na Calábria e das suas teorias sobre a transmigração das almas, e lembrei-me das tradições animistas daquela região, uma coisa muito for-te. Disse a mim próprio: ‘a reencar-nação não me interessa’, e por isso resisti. Mas acabei por ceder. É um filme que me chegou, portanto, de fora.”

Filho de uma família calabresa que se dividiu em duas – o lado da mãe,

“O meu acesso ao invisível foi feito através do cinema: a imagem como meio de assinalar algo de maior, uma presença. A minha igreja foi o cinema”

e fomos cabra, m direcção a “As Quatro Voltas”. O fi lme em que somos homem, animal, mineral e vegetal.

, teve de pensar como um cão. Vasco Câmara

Michelangelo Frammartino

passou anos a observar

uma aldeia da Calábria

O animal, o vegetal, o humano, o mineral sem prioridades numa hierarquia: “As Quatro Voltas”

Page 22: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

22 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

rante um ano. Não basta ter uma boa ideia”.

Desenha os projectos em vez de os escrever – quer dizer, escreve-os só no momento do produtor e do finan-ciamento. “Quando penso numa ima-gem, sinto que o esforço de escrita é de natureza diversa, sinto que vou contra a imagem; pelo contrário, quando faço esboços, porque não são propriamente desenhos, sinto que estou na mesma zona do cérebro, que isso não modifica o que tenho na ca-beça.”

Frammartino esperou muito tempo para o filme. Não esperou só pela im-posição, dento de si, desse filme. An-tes de o desenhar, passou anos em contacto com o que filmaria depois. “Existem as intenções estéticas e as inevitabilidades de um ‘set’. Quer di-zer: eu queria colocar a câmara à es-pera do que pudesse acontecer, mas não podia fazer tudo como queria, porque não tinha película para isso.

Mas as coisas ‘aconteceram’ antes. Estive dois anos a observar aquela aldeia. Passei meses com os pastores. Ou seja, pude prever. Coloquei-me muito antes numa situação de liber-dade. Sabia, por exemplo, que se cho-vesse, as cabras fariam determinada coisa” – mas é uma experiência nova para o espectador ficar a ver o que uma cabra pode fazer e como uma cabra pode tomar conta de um ecrã. “Tudo o que acontece no filme eu vi antes. Limitei-me a colocá-lo numa determinada parte do filme.” Ou seja, belíssima contradição final: o que pa-rece ser um documentário de obser-vação é, no fim de contas, algo que se aproxima mais de uma reconstitui-ção daquilo que se observou.

Há um milagre nesta aldeia. E como é preciso ver para crer, vamos todos em procissão em direcção a “As Qua-tro Voltas”.

Ver crítica de filmes págs. 52 e segs.

Aldeia antes da procissãoe

da entrada em cena de Vuk,

o cão (prémio do júri da

alternativa Palme Dog,

prémio cani-no durante

Cannes 2010)

“Percebi que estas quatro coisas para que eu estava a olhar, o humano, o mineral, o vegetal e o animal, tinham uma conexão imprevista. E lembrei-me da presença de Pitágoras [filósofo e matemático grego] na Calábria e das suas teorias sobre a transmigração das almas, e lembrei-me das tradições animistas daquela região, uma coisa muito forte”

camponês, muito religioso; o lado do pai, comunista e revolucionário –, desde jovem partilhou a crença pa-terna de que “a religião é o ópio do povo”.

“Sempre fugi da religião. Foi atra-vés do cinema, e da pintura, que co-mecei a sentir a transcendência do invisível. O meu acesso ao invisível foi feito através do cinema: a imagem como meio de assinalar algo de maior, uma presença. A minha igreja foi o cinema.”

(Fizemos aqui um parêntesis para invocar, adequadamente, o santo no-me de Roberto Rossellini: “Muito im-portante para mim. Lembro-me da primeira vez que vi ‘Viagem a Itália’, muito comovente. Um grande sentido de liberdade. Comove-me. Um enor-míssimo realizador”; já Pasolini “é mais difícil”: “Não consigo amar o seu cinema, mesmo se li muito dos seus escritos, era alguém muito atento nos debates dos anos 70”.)

Frammartino, como disse, resistiu, até que aquilo que viu na Calábria se lhe impôs e o atirou para um filme. É

assim que as coisas se passam com ele. É por isso que este arquitecto de formação e professor só tem duas longas-metragens na sua “carreira” e entre uma e outra distam sete anos.

“Preciso de tempo para compreen-der que é importante fazer aquele filme. Como disse, antes de me deci-dir por ‘As Quatro Voltas” resisti du-

Frammartino passou meses com os pasto-res; quando fi lmou pôde prever o que uma cabra faria em determinada situação - e esperou que ela o fi zesse para a câmara

Page 23: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR.

www.

casa

damu

sica

.com

| w

ww.c

asad

amus

ica.

tv |

T 2

20 1

20 2

20

APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICAMECENAS CICLO PIANO

fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo Edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos)Tel. 217 803 003 / 4 www.fundacaocarmonaecosta.ptMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31

Exposição: de 26 de Março até 28 de MaioHorário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00

Ciclo de conversas: Prof. José Gil – 9 de Abril (sábado) às 17h00

Pedro Cabrita Reis – 27 de Abril (quarta-feira) às 18h00

ESCREVER PAISAGEMManuel Baptista | Desenhos

1960-1970comissariado: João Pinharanda

Page 24: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

24 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Nos anos 50 Oliveira fotografou um familiar morto: “Entrei em casa e ela estava no meio de uma sala escura, debaixo de um candeeiro e rodeada de uns senhores, deitada com o vestido de noiva numa ‘chaise longue’ azul clara. Parecia sorrir, não parecia morta.” É a origem deste filme

PAU

LO

PIM

EN

TA

Page 25: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 25

“O Estranho Caso de

Angélica” (2010) e

“Francisca” (1981): a vida fantomática ,

sonâmbula, das

personagens

“O cinema é o espelho da vida,

não temos outro”

Após um extenso percurso interna-cional — Cannes, Toronto, Nova Ior-que, São Paulo ou Viena —, com espe-cial atenção dos EUA, cuja imprensa colocou o filme nas listas dos melho-res de 2010, “O Estranho Caso de An-gélica” chega às salas portuguesas. O caso angelical de Manoel de Olivei-ra.

“O Estranho Caso de Angélica” é um filme cujo projecto remonta aos anos 50, inspirado num caso pessoal.Sim, uma senhora na família da minha mulher adoeceu com o nascimento de um filho. Fomos visitá-la, e a sua irmã mais velha, muito religiosa, dis-se-me: “A mãe gostava muito que fi-zesse uma fotografia.” Chocou-me muito, pois fazia muitas fotografias a vivos mas não a mortos, era desagra-

dável fotografar a morte. Entrei em casa e ela estava no meio de uma sala escura, debaixo de um candeeiro e rodeada de uns senhores, deitada com o vestido de noiva numa “chaise longue” azul clara. Parecia sorrir, não parecia morta. O sorriso vem à super-fície depois da morte por se ver livre do sofrimento de uma doença.

Peguei na máquina e apontei, uma Leica que, naquele tempo, duplicava a fotografia. Ao focar, fiz a experiência de ter uma parte do corpo a sair de outra. Assim, estava morta e o espíri-to soltava-se, e foi esta ideia que, mais tarde, me fez fazer o filme. Passava-se depois de 1946, quando os judeus fu-giam para Portugal para apanhar o avião para a América. A história tinha também, portanto, um judeu que ti-nha fugido, intelectual e fotógrafo. E esse judeu é convidado a ir fazer a fotografia.Há um trabalho de actualização, o contexto actual, o da crise. Mas há pormenores desse outro tempo, a questão judaica.Em toda a fotografia e arte pictural é preciso que os artistas sejam cultos, as fotografias e os quadros represen-tam-se a eles próprios, mas não falam nem se explicam. O mesmo pode acontecer com o cinema: é preciso um certo estado de coisas que faça compreender. Tinha uma versão on-de colocava a questão: porque é que o judeu é assim perseguido? Hoje já não valia a pena, basta a palavra “ju-deu” para assumir um significado. Na altura, era Hitler quem os perseguia, mas hoje também são perseguidos quando se diz que é necessário des-truir Israel. Daí a actualização, pois o que se passava numa determinada circunstância passa-se hoje noutra. Bastava o nome “Isaac” para dar o seu tom.

Por outro lado, era difícil conservar o filme à época. Tinha facilidade em filmar na mesma casa, mas quando antes havia uma só ponte da vista so-bre o rio, hoje há três. A fisionomia da cidade mudou. Retornar à época passada seria horrível. De resto, é tu-do uma situação enigmática, nada é verdadeiramente explicado. Toda a arte se baseia no “supõe-se”, no “crê-se que”.Neste filme diz-se: “apenas muda a circunstância do homem.” Mas várias outras coisas mantêm-se: a paixão que move os sentimentos, a morte que termina com os impulsos. Essa inevitabilidade é algo que percorre as suas obras.Nos filmes, como em qualquer obra

de arte, há sempre uma grande parte do subconsciente do artista do qual ele não se dá conta. Por isso, as obras enriquecem com o tempo, a crítica vai descobrindo partes mais ignora-das e as obras ficam mais ricas do que quando saem. Na verdade, o homem não mudou, apenas aquilo que fez: o progresso. A natureza do homem é a mesma: a inveja, a vingança, as pai-xões ou o amor são manifestações da natureza do homem que não muda-ram nada. Há pessoas que, às vezes, mudam de partido. Eu pergunto: tam-bém mudam de natureza? Ela é a mes-ma, e é nela que está todo o bem e o mal do homem.Nas suas obras, a natureza intervém nos momentos decisivos. Neste filme, Isaac parece mover-se pela paixão, para além da racionalidade.Espinoza disse: “Supomo-nos livres porque ignoramos as forças obscuras que nos comandam.” Somos movidos por impulsos que ignoramos da na-tureza: o ódio, o amor, a paixão, a bondade. Pode-se quase perguntar se somos dependentes porque ninguém nasceu por vontade própria. Seremos verdadeiramente responsáveis pelos nossos actos? Temos a justiça que nos torna responsáveis e a evolução que o homem tem engendrado, mas não somos independentes. Somos depen-dentes das circunstâncias, e por isso cito Ortega y Gasset no filme. Torna-mo-nos responsáveis perante a lei e pela justiça, mas na verdade somos um joguete do destino.A paixão de Isaac revela-se pela lente do fotógrafo, quando ele tenta captar o indecifrável - a morte -, algo que tem também a ver com a função do cinema.Porque o cinema tem tudo a ver com a vida, tal como a arte. José Régio, grande poeta português, dizia que a originalidade de uma obra de arte es-tá na personalidade do artista que a faz. Na Renascença, os pintores pin-tavam todos o mesmo: as Madonnas, o Menino Jesus e Nosso Senhor. Mas eram todos diferentes.Quando Isaac chega à cidade e vê o trabalho dos homens na terra, parece dividido entre essa ideia de corpo e o desejo pelo absoluto de Angélica. Em certas alturas, está no quarto a pensar no seu espírito mas ouvimos os homens a trabalhar.Será um contraste entre a paixão e a libertação em que me pergunto se Isaac será, ou não, um apaixonado. Ou seja, se haverá um espírito que o liberte do pesadelo que são os ca-

Na estreia de “O Estranho Caso de Angélica”, uma conversa com o cineasta sobre as paixões por trás dos seus fi lmes. Francisco Valente

“Falei com o Dalai Lama e pus-lhe essa questão: se a pessoa morre e a alma passa de um humano para uma fera, não perde a evolução do raciocínio?”

Page 26: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

26 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

vadores e que é a nossa vida em determinadas circunstâncias. Em “Guerra e Paz” [Lev Tolstói], há um nobre que está moribundo, sabe que vai morrer e pergunta-se o que é a morte. A certa altura, olha para um canto do seu quarto onde se encontra uma porta. E aí vê: a morte é uma porta. É algo que me ficou sempre comigo, acho extraordinário.É uma imagem de grande simplicidade.Mas muito enigmática, porque toda a porta que dá para uma saída, dá para uma entrada. Na vida material onde vivemos sabemos para onde dá a porta quando morremos: o cemité-rio. Espiritualmente, a morte é abso-luta ou pendente? No filme, o espíri-to leva Isaac e salva-o da situação angustiosa em que vivia. Mas é difícil explicar as coisas que não têm expli-cação. Sentem-se, percebem-se, nada mais.A morte é um dos maiores mistérios. Mas neste filme filma-a, de facto, ou o seu espírito.Sim, o espírito. Tem a ideia de que toda a matéria é imóvel? Toda ela se move na vida pela força do espírito, é este que a anima. E quando a pessoa morre, o espírito solta-se.

Quando estava no colégio de jesu-ítas, em Espanha, diziam-nos que, depois da morte, as almas vão para o purgatório. Cheguei à conclusão, na ingenuidade dos meus 16 anos, que o mundo era uma fábrica de almas. Hoje, penso numa imagem muito cer-ta: os rios. Têm uma vida e passam por ela torturados, e quando desa-guam no mar, perdem a sua persona-lidade pois juntam-se ao absoluto. Depois, vem o calor, a evaporação e

as chuvas que caem sobre a terra. A fonte renasce e o rio continua. Vamos sempre para o absoluto, e depois um retorno que gera continuidade. Para os budistas, quando morre uma pes-soa, a alma sai e pode instalar-se num gato. Falei com o Dalai Lama e pus-lhe essa questão: se a pessoa morre e a alma passa de um humano para uma fera, não perde a evolução do racio-cínio? Disse-me que não, pois o que conta é o esforço. Percebi que a vida, em si mesmo, é um esforço enorme em tudo que fazemos. Mas é ele que activa a imaginação.Jean Renoir foi à Índia filmar “O Rio Sagrado” (1951).O rio é uma crença da Índia. Tomam banho nele, purificam-se naquela água. Mas é também uma personali-dade. O mar é que não, tem um nome mas recebe água de todos os lados, anula esse pensamento. Não se sabe que bocado vem de que rio, abstrai-se.Isaac comporta-se como um sonâmbulo, vive focado no sonho de Angélica. Sobre “Francisca” (1981), João Bénard da Costa escreveu: “o comportamento fantomático e errático dos seus personagens é muito mais determinado por quem os visita durante a noite e o sono, de que pelos acontecimentos ocorridos à luz do dia. Nesse sentido, os personagens de Oliveira (...) são sonâmbulos, separados do mundo, embora continuando nele.” E em relação à personagem de “Benilde ou a Virgem Mãe” (1975): “ela própria é sonâmbula (...) e todo o seu comportamento é determinado pelo que durante esses sonhos se possa ter passado e de que não guarda — acordada — qualquer memória.”Parece-me bem, explica “Angélica”. Eu também preciso de explicações... Não vejo tudo e a vida está construída dessa forma. Vivemos num segredo que nos é vedado. Há várias crenças, e admiro muito a figura de Cristo, di-vina ou não, já não importa, mas que reconhece que a natureza humana é fraca. É ele que abre o campo da to-lerância para a fraqueza do homem, que é capaz de fazer coisas terríveis. Essa convicção é interessante na figu-ra de Cristo por ser extraordinária, não vejo que em parte nenhuma te-nha sido ultrapassada.A fraqueza do homem, neste filme, faz com que o que era amor, para Isaac, se torne também num vício.Na Bíblia, há uma passagem onde se interroga Cristo: “alguém que casou três vezes, quando morrer e for para o céu, qual será a sua mulher?” E Cris-to responde: “No céu, as coisas são

diferentes.” Mas caímos sempre na dúvida. No livro de São Paulo, que diz que o espírito é como o ar que se res-pira, lê-se: “se Cristo não ressuscitou, toda a nossa fé é vã.” É uma palavra terrível.Vendo como Isaac procura o absoluto, é isso que busca, quando diz que Angélica atenua ou elimina as suas angústias na terra.Por isso, quando Angélica o leva, juntam-se. Já não é uma pessoa, é es-pírito. Está limpo da vingança, mal-dade e bondade. O cadáver fica e ele junta-se aos outros espíritos. Tanto desisti de fazer este filme que foi o produtor que me pediu para fazê-lo, porque partia do princípio que o ci-nema não filma sonhos nem pensa-mentos.Mas provoca-os.Sim, mas não os filma. O sonho, no mudo, não tinha nem som, nem pa-lavra. Não há barulhos no sonho, logo o cinema mudo era bastante onírico. Quando ganhou a palavra e a cor, tornou-se mais realista.Há uma homenagem a Georges Méliès neste filme.Com certeza. Todo o cinema ficou inventado de entrada: Lumière deu o realismo, Méliès a fantasia e Max Linder o cómico. Está tudo lá, não há mais nada.A sua essência não muda para além da evolução tecnológica.Porque todos os efeitos especiais per-tencem à técnica, não à arte. Para além disto, sugerimos o inacreditável. Onde podemos ir mais longe do que aquilo que somos? Li um realizador dizer que quando apresentava um filme novo, se ouvia que era o filme de um grande realizador, ficava triste. Mas se ouvia que era um grande filme, ficava contente. Isto é evidente: o re-alizador não deve mostrar-se. Mostra o inconcebível, mas não se mostra a ele próprio.Sobre o seu espólio a dar à cidade do Porto ainda não se encontrou solução?Está-se a estudar, mas é difícil e a cri-se dificulta mais. Gostava de deixar uma reportagem familiar. É para a memória, assim sempre fica.Quanto à nossa memória, a vida da Cinemateca está a estrangular-se, não chegam autorizações para os seus serviços.É um crime. Basta uma inundação ou um incêndio para desaparecer tudo. A nossa memória está nos livros, nas pinturas e nos filmes. Dizia Arturo Ripstein, um realizador mexicano, que os governos deviam ajudar os re-alizadores não por favor mas por obri-gação, porque o cinema é o espelho da vida, não temos outro.

Ver crítica de filmes págs. 52 e segs.

“A natureza do homem é a mesma: a inveja, a vingança, as paixões ou o amor são manifestações da natureza do homem que não mudaram nada. Há pessoas que, às vezes, mudam de partido. Eu pergunto: também mudam de natureza? Ela é a mesma, e é nela que está todo o bem e o mal do homem”

Isaac: o confl ito

entre o corpo e o desejo

de absoluto

Page 27: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

SÃOLUIZMAI ~11

SÃOLUIZMAI ~11

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPALRUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38; 1200-027 [email protected]; TEL: 213 257 640

www.teatrosaoluiz.ptBILHETES À VENDA EM WWW.TEATROSAOLUIZ.PT, WWW.BILHETEIRAONLINE.PT E ADERENTESBILHETEIRA DAS 13H00 ÀS 20H00TEL: 213 257 650 / [email protected]

Encenação Gonçalo Amorim Adaptação Emília Costa Assistência de encenação e Dramaturgia Ana Bigotte Vieira Assistência de encenação e Movimento Vânia Rovisco Cenografia Rita Abreu Assistência de cenografia Raquel Albino Figurinos e Adereços Ana LimpinhoMaria João Castelo Música original Paulo FurtadoRita Redshoes Desenho de luz José Manuel Rodrigues Sonoplastia Sérgio Milhano Vídeo Frederico Lobo Intérpretes António FonsecaCarla GalvãoCarla MacielDuarte Guimarães Iris CayatteJoana de Verona João Villas BoasMónica GarnelNicolas BritesRaquel Castro Romeu CostaVânia Rovisco

episódios 1 e 2Quarta às 21h00episódios 3 e 4Quinta às 21h00todos os episódiosSexta a Domingo às 18h00

sessão com interpretação em língua gestual portuguesa: domingo, 15 mai

APOIO

1415

MECENAS CICLO JAZZ APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICA

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR.

www.casadamusica.com | www.casadamusica.tv · T 220 120 220

PATROCINADOR PRINCIPALPAÍS TEMA

PATROCINADOR OFICIALPAÍS TEMA

APOIO INSTITUCIONAL

������������

�� �����������������������

����

& Five ElementsAstronomical/Astrological Music Project

Page 28: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa
Page 29: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa
Page 30: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Sim, Rivaldo ouviu falar vagamente do Jardim Gramacho. Muitos brasi-leiros ouviram falar vagamente do Jardim Gramacho, mais ainda desde que o artista plástico Vik Muniz deci-diu usá-lo na sua obra, e isso deu um documentário candidato ao Oscar: “Lixo Extraordinário”. Não ganhou, mas já ganhara prémios do público nos festivais de Sundance e Berlim, e continua a correr mundo. Terça-feira abriu o FESTin, no Cinema São Jorge, em Lisboa, com a presença de Muniz e de um dos realizadores, João Jardim, e desde ontem está em exibi-ção nas salas portuguesas.

Disto, Rivaldo, o taxista carioca, não ouviu falar. Só sabe que Jardim Gra-macho não é nenhum jardim. “É um lixão, não?”, pergunta, crucifixo a ba-louçar no espelho do carro, Cristo Redentor atrás das costas, enquanto avançamos cada vez mais para Norte. Um lixão, sim. Mais exactamente, a maior lixeira do mundo: nove mil to-neladas de lixo por dia, 60 milhões de toneladas já acumuladas. Vamos pela Linha Vermelha, a via rápida que vai do Rio de Janeiro ao aeroporto inter-nacional. Só que depois do aeroporto continuamos, e continuamos, até Du-que de Caxias, na Baixada Fluminen-se. Nem duques nem jardins. Fábricas, favelas, desolação, violência.

Tião tinha dito: primeira rua depois da Volvo. Tião, ou seja Sebastião San-tos, o catador protagonista de “Lixo Extraordinário”. Um catador é aque-le que cata aquilo que se pode reci-clar, e portanto vender. No Jardim Gramacho trabalham 1200 catadores. Vik Muniz encenou os retratos de al-guns deles, trabalhou as fotografias, e o documentário — realizado por

Lucy Walker, João Jardim e Ka-ren Harley — acompanhou todo o processo: idas à lixei-ra, escolha das persona-gens, trabalho em estúdio, leilões internacionais, a al-

t e - ração das vidas dos catadores

protago -n i s -

tas.

O resultado emociona: plateias a chorar. Mas é possível alterar real-mente aquelas vidas? E se for, é legí-timo? Quem ganha com isso? O artis-ta? Os catadores? O filme? Debates que o próprio filme esboça.

Além de dinheiro para uma casa nova, Tião viu-se em Londres e nos Oscars. Tem planos para melhorar a vida dos catadores e para projectos ecológicos.

Entretanto, no Jardim Gramacho, o debate é mais acerca da sobrevi-vência.

O segurança“Não deu nem para mim ver o filme”, diz José, negrão de tronco nu, cerca-do por sacos de lixo já escolhido. É o segurança da Cooperativa de Catado-res liderada por Tião. E Tião, que combinou com o Ípsilon aqui? “Veio e foi”, diz José.

Rivaldo, o taxista, está boquiaber-to, braços apoiados na porta do táxi. Olha o lixo, respira o cheiro, adivinha o resto.Depois da fábrica da Volvo lá dobrámos à direita, baldios com gen-te de tronco nu caminhando no calor. O cheiro cada vez mais próximo: pe-sado, denso, podre.

Se há um fim do fim, é aqui. Tião não atende o telemóvel. A mu-

lher, em casa, atende e promete en-contrá-lo. No telefonema seguinte explica que a mãe de Tião está no hospital e que ele teve de ir vê-la. Não, não vai ser possível estar com Tião hoje.

José vai continuar sozinho pela ma-nhã. Está com 55 anos. “Catei até ao ano passado. Mas depois adoeci e não fui mais, não.” O lixo em decompo-sição produz gás. “A minha pressão piorou muito.” Como muitos dos ca-tadores, veio de fora, neste caso de Minas Gerais. Catou durante 25 anos.

“Tu- do o que vê aqui já ca-t e i ” , diz, apontando os sacos encardidos. “Alumínio, papelão, fras-cos, plástico fino, sucata…” Por cada um que sai, há um que vem. “É um rodízio, noite e dia, homem e mu-

lher, só não tem menor. Mas no Verão, ali no meio do lixo, é um

calor…”À beira da cooperativa

sempre está mais tranquilo, embora

desarmado. “Eu e Deus.”

A vida no lixo

Um fi m do fi m: Jardim Gramacho, arredores do Rio de Janeiro, a maior lixeira do mundo. O artista plástico Vik Muniz quis trabalhar aqui e isso deu um documentário

que se estreou esta semana em Portugal, “Lixo Extraordinário”. Alexandra Lucas Coelho, no Rio de Janeiro

As peças construídas com os detritos acumulados na maior lixeira do mundo têm por base os retratos de alguns dos 1200 catadores que trabalham no Jardim Gramacho

Vik Muniz, o artista plástico que “Lixo Extraordi-nário” acompanhou

k k MuMunni ene ce ou os et atos de aguunsns d deles, trabalhou as fotografias, e e oo dod cumentário — realizado por

Lucy Walker, João Jardim e Ka-ren Harley — acompanhou todo o processo: idas à lixei-ra, escolha das persona-gens, trabalho em estúdio, leilões internacionais, a al-

t e - ração das vidas dos catadores

protago -n i s -

tas.

a o passado. as depo s adoec e ão fui mais, não.” O lixo em decompo-sição produz gás. “A minha pressãopiorou muito.” Como muitos dos ca-tadores, veio de fora, neste caso deMinas Gerais. Catou durante 25 anos.

“Tu- do o que vê aqui já ca-t e i ” , diz, apontando os sacosencardidos. “Alumínio, papelão, fras-cos, plástico fino, sucata…” Por cadaum que sai, há um que vem. “É umrodízio, noite e dia, homem e mu-

lher, só não tem menor. Mas noVerão, ali no meio do lixo, é um

calor…”À beira da cooperativa

sempre está maistrt anquilo, embora

dedesarmado. “Eu e Deus.”

Vik Muartista plástic“LixoExtraornário”acompa

A montanhaPara chegar à entrada da lixeira, há que atalhar por caminhos de terra cheios de barracos, e depois cami-nhos de asfalto, mas ainda com bar-racos. Entre os barracos, em vez de hortas, animais ou tralha, há lixo. Sa-cos de lixo para vender, Contentores a transbordar, e em volta os restos que não se vendem. Lixo, lixo, lixo.

Não é a lixeira, ainda. É o entorno da lixeira. A aldeia-satélite dos que vivem do lixo e no lixo. Crianças cor-rem e saltam no lixo, como se fosse terra ou erva. E há placas a anunciar

sorvetes e açaí. Rapazes em motas. Bebés em triciclos.

Mais perto da entrada oficial, uma Igreja Mundial do Poder de Deus, anunciando o seu Templo dos Mila-gres. Um ônibus 016 Duque de Caxias-Jardim Gramacho. Camiões do lixo saindo. Ao fundo a placa: Aterro Me-tropolitano do Jardim Gramacho. Além da placa, uma espécie de mon-tanha ondulante, cor-de-barro.

“O lixo está todo ali por baixo”, diz o segurança Marco, nordestino do Rio Grande. “É tipo uma balança. A terra é jogada em cima ao fim de dois, três

Page 31: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 31

“Tudo o que vê aqui já catei”, diz José, segurança da Cooperativa de Catadores do Jardim Gramacho, apontando os sacos encardidos. “Alumínio, papelão, frascos, plástico fino, sucata… É um rodízio, noite e dia, homem e mulher, só não tem menor. Mas no Verão, ali no meio do lixo, é um calor…”

dias, depois de o lixo secar.” No filme vêem-se as grandes pilhas acabadas de chegar, antes de serem soterradas. Marco também não viu o filme, mas acha que “alguma gente fica rica e os catadores [ficam] na miséria”. Apon-ta as barracas em fila, até à entrada: “Eles moram ali.”

Maneco na esquinaNum dos barracos, mulatos de tronco nu fazem desenhos com cabelo, ra-pando partes do crânio.

À esquina, há um veterano sentado, uma espécie de rei. Um sofá esventra-

do e imundo faz as vezes de trono. “A minha história no lixo é longa…”, avi-sa o veterano. Chamam-lhe Maneco.

Chega um rapaz, de lixo ao ombro. Maneco conta umas notas e paga-lhe. Já catou muito, agora compra o que outros catam.

E viu o filme, sim senhor. “O Tião é muito meu amigo, mas eu não gostei do que ele fez. Porque ele só envolveu pessoas novas, que chegaram há pou-co tempo. Fez uma coisa boa em va-lorizar a nossa imagem lá fora, mas tinha de pegar as pessoas antigas. Ele procurou pessoas mais cultas, mais

inteligentes. E tinha de procurar os lixeiros ignorantes, sem cultura, do jeito deles mesmo.”

Passa um homem com um prato cheio de puré e uma coxinha. Aqui se come e se dorme, dinheiro no bol-so.

“Um dia de trabalho de catador é de 100 reais para lá”, diz Maneco. “E sem esforço”, reforça um jovem Ra-mon que acaba de chegar.

A catar o quê? “Alumínio, papelão, plástico fino…”, aponta o veterano. “Hoje em dia o material está todo em alta. Alumínio é o que dá mais dinhei-ro. Vem daqui: latinha, panela…”

Pega para mostrar. Depois pergunta: “Quer ouvir mi-

nha história do lixo?” E lá vai: “Eu vim da Lixeira do Cajú. Menino já estava no lixo. Meu pai era dono de ferro-velho. Ele dizia: ‘O dinheiro que arru-mei é meu. Vocês se quiserem façam por onde.’ Então como todo o mundo ganhava dinheiro do lixo, fui catar lixo com 13 anos. Até hoje, quando está ruim aqui, eu vou e cato. Quando a maré está brava, a gente arregaça as mangas e vai trabalhar.”

É uma vida sem melhora. “Moro aqui mesmo, num barraquinho de madeira. Milhares de pessoas estão morando aqui. Cearenses, paraiba-nos, baianos, mineiros, pernambuca-nos, cariocas mesmo…”

E doença, não tem? “Tem em qual-quer lugar, não tem? A gente bota uma luva, uma bota, um chapéu para tapar do sol. A gente não vai com o corpo aberto. A coisa é dura, mas é por isso que ganha dinheiro. Se fosse fácil, a gente não ganhava.”

“Mas quando teve o incêndio a gen-te perdeu tudo”, resmunga um rapaz sujo e tatuado. Chama-se Cleverson. Veio pequeno da Paraíba, lá no Nor-deste. “Veio de lá comendo fari-nha!!!”, zombam os outros.

O fi m de GramachoManeco, cavalheiro, descompõe um dos rapazes que entretanto deixa cair um saco sujo ao pés da repórter. Quer mostrar disciplina. Mas estamos pe-rante um fim anunciado. Ontem mes-mo começaram a chegar os camiões que lentamente vão transferir o lixo do Jardim Gramacho para o novo Centro de Tratamento de Seropédica, a bem da ecologia, anunciam as au-toridades. “Estamos encerrando um crime ambiental que a cidade do Rio vem cometendo contra a Região Me-tropolitana e a Baía de Guanabara há anos”, disse o prefeito do Rio, Edu-ardo Paes. Mais: “Esta é a maior vitó-

ria ambiental da cidade em toda a sua história.”

Vai demorar, mas já começou.“Eles estão querendo tirar o lixo

daqui, dizendo que não está supor-tando mais, mas se o lixo acabar isso aqui vai virar uma Indonésia!”, pro-clama Maneco. “A maioria das pesso-as vai passar fome! Muita gente dei-xou de ter uma profissão lá fora.”

Diz “lá fora” como se Gramacho fosse um mundo.

E mostra o relógio no pulso, os anéis nos dedos. “Aqui no Jardim Gra-

macho, com tudo se ganha dinheiro. Está vendo? Tudo isso é do lixo. Vai desperdiçar?”

Cleverson abre uma lata de atum com o bico negro de um facalhão, espeta pedaços e mete à boca.

“Ouro, dinheiro, jóias”, prossegue Maneco. “Você acha tudo aqui… A vida é assim mesmo.”

“É boa”, comenta Cleverson, mas-tigando mais um naco.

“É muito dura”, corrige Maneco. “Mas a gente se acostuma.” Depois irrita-se com Cleverson por ele estar ali a comer como se tivesse tirado do lixo. “Depois vão dizer que a gente come do lixo. Eu não vivo de comida do lixo! Come besteira do lixo quem é burro!”

Cleverson mastiga impávido. É avô, Maneco. E antes disso pai de

14 filhos, nada menos. Onde estão? “Variado”, atalha ele. Filhos de várias mães. “O importante é que dei audi-ência para todos eles. Quando a gen-te é novo, tem os dentes todos, a pe-le lisinha, arrumar namorada é fá-cil…”

Isto para dizer que agora está sozi-nho.

Ver crítica de filmes págs. 52 e segs.

Page 32: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

32 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

“Distancias Cortas / Close Distance” (até 5 de Junho na Casa Encendida, em Madrid) não é uma exposição an-tológica, nem pretende ser uma revi-são dos principais momentos de uma carreira intensa que, desde a década de 70 do século XX, se vem afirmando como um dos acontecimentos mais significativos da arte contemporânea portuguesa. Assume-se desde logo, como escreve o comissário da expo-sição, o britânico Adrian Searle, como uma visão das “dualidades — e talvez dialécticas — entre intimidade e dis-tância, ausência e presença, coisas ditas e coisas silenciadas, ambiguida-des de diferentes tipos e imagens al-tamente carregadas” que caracteri-zam o “modus operandi” de Julião Sarmento.

Mais do que uma retrospectiva, a exposição de Madrid é uma visão de conjunto: “Cada sala de La Casa En-cendida”, diz Searle, “pode ser enten-dida como uma pequena exposição individual dos diferentes trabalhos do artista”, contrapondo “diferentes atmosferas, diferentes tipos de con-fronto — entre escuridão e a lumino-sidade, o fílmico e o físico, a imagem e o objecto; e, sobretudo, entre a pro-ximidade e a distância, a intimidade e a estranheza”.

“Distancias Cortas / Close Distan-ce” apresenta-se, assim, não como uma aproximação à variedade do tra-balho de Sarmento, correndo em to-das as direcções exploradas pelo ar-tista, mas como tentativa de identifi-cação dos seus elementos centrais. Não existe uma tese, nem se propõe um elemento de união e coerência entre todos os trabalhos: esta exposi-ção deve ser vista como uma espécie de recriação das experiências ele-mentares que alimentam cada trabalho e que, segundo Searle, constituem uma espécie de lugar onde o artista regressa continua-mente. Aqui, também o especta-dor pode participar nessas experiências, assumindo um lugar próximo do do artista e, desta forma, vendo abolidas as habi-tuais distâncias sujeito-objecto.

A esta distância, cur-

ta, as peças de Julião Sarmento não são objectos numa exposição: são ce-nas vivas.

CometaO confronto corpo-a-corpo proposto pela exposição da Casa Encendida implica levar o espectador para o in-terior das cenas que se imagina pode-rem ter estado na origem de cada obra de Sarmento, para o momento fundador cujos vestígios se podem detectar nas pinturas, nos desenhos e nas esculturas. Essas cenas configu-ram histórias de desejo, sedução, se-xualidade: um desejo que expressa uma fome humana e que não se pode saciar; só é possível encontrar solu-ções temporárias, porque ele regres-sa incessantemente, impondo-se co-mo umas das mais enérgicas forças em actividade e tomando a dianteira face a todas as outras deliberações.

O desejo, as pulsões e o movimen-to irrecusável do corpo são as ener-gias que invadem todos os trabalhos de Julião. É certo que a sexualidade, com todos os seus jogos de perversão, poder e violência, emerge continua-mente, mas o que lhe interessa é des-crever a fisiologia do desejo. O artista sabe que o desejo é uma forma huma-na que só conhece imagens (as con-

eriências ele-entam cada undo Searle, écie de lugar ssa continua-m o especta-nessas ndo do a, i--

-

A lei do desejo

“Distancias Cortas / Close Distance” é Julião Sarmento, um dos

acontecimentos mais signifi cativos da arte contemporânea portuguesa,

na Casa Encendida, em Madrid. Nuno Crespo, em Madrid

A tensão que percorre o trabalho de Julião Sarmento é a expectativa de ficar mais perto de qualquer coisa

de que se estará sempre distante

Julião Sarmento é um caso de sucesso a nível internacional

Ele está ao fundo da sala, perto de um rádio...

... ela, aparentemente distante e indiferente, começa a dançar...

“Cometa”, performance que pode ser vista até 5 de Junho na Casa Encendida, sintetiza a refl exão de Julião Sarmento sobre a natureza insaciável do desejo: não há inocência nem devassidão, mas sucessivas tentativas de acalmar o desejo, de se livrar da fome

RU

I G

AU

NC

IO

Page 33: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 33

De Madrid a Long IslandJulião Sarmento nasceu em Lisboa em 1948 e expõe regularmente desde 1976. Estudou Arquitectura na ESBAL em Lisboa, curso que nunca terminou, e passou por Londres entre 1964 e 1965. Não trabalha sobre nenhum meio exclusivo; utiliza abundantemente vídeo, fotografi a, performance, pintura, gravura.

Tem uma carreira de grande reconhecimento internacional. Participou nas Documentas 7 e 8 (em 1982 e 1987, respectivamente), e na Bienal de Veneza em 1997(como representante ofi cial

português) e em 2001 (com um trabalho em colaboração com Atom Egoyan). Teve exposições individuais em Nova Iorque, Londres, Paris, Munique, Washington, Tóquio, entre muitas outras cidades.

Recentemente, a Tate Modern em Londres fez uma apresentação de um conjunto signifi cativo de trabalhos seus. Presentemente, e além de “Distancias Cortas” em Madrid, tem uma exposição no Parrish Art Museum em Long Island (EUA), intitulada “Artistas e Escritores / A casa e o lar”.

cretizações dos desejos) provisórias. A cada passo, o desejo renova-se e é como se não houvesse história: o de-sejo de pão renova-se todas as ma-nhãs, o do amor a cada novo amor, o do dia a cada noite. Esta sua natureza obriga a que só seja possível conhecer o desejo através do modo como cada um se comporta na tentativa de o sa-tisfazer os seus desejos. E é esta des-crição fisiológica que Julião Sarmen-to ensaia em muitos dos seus traba-lhos.

“Cometa”, performance que pode ser vista em Madrid, sintetiza todos estes aspectos. Uma sala fechada pa-ra a qual só podem entrar poucas pessoas de cada vez: é preciso intimi-dade e solidão. No interior, um ho-mem e uma mulher sentados em vul-gares cadeiras de madeira. A atmos-fera é tensa, o ar abafado, quente, o verde das paredes electriza tudo e todos. Ele ao fundo da sala, perto de um rádio que passa Legendary Tiger Man. Ela, aparentemente distante e indiferente, começa a dançar. Todos os gestos são meticulosos e expres-sam uma força natural, sem media-ção, livre de qualquer contexto social, cultural, icónico: é a pura animalida-de a querer expressar-se. Ele forte, alto, viril, as mãos pousadas sobre o sexo, com os olhos fixos sobre o cor-po da mulher morena. E ela sozinha a percorrer a sala com os visitantes encostados à parede. A dança solitá-ria depressa se transforma num en-contro: um corpo contra o outro, as mãos a percorrerem o corpo alheio; tocam-se, agarram-se, procuram-se. Não há inocência, nem devassidão, mas sucessivas tentativas de ser com o outro, de acalmar o desejo, de se livrar da fome.

É uma dança sem fim: há momen-tos tranquilos, mas eles estão conde-nados a voltar repetidamente ao prin-cipio sem nunca realizar a acção re-dentora.

Facilmente se imagina o artista Ju-lião Sarmento a assistir a esta cena, a tirar fotografias, a fazer desenhos, a fixar os pormenores e as particulari-dades do modo como ele percorre o corpo dela e como ela se entrega ao corpo dele. Não se trata de uma cena iniciática, mas de uma matriz que é possível reconhecer em muitos dos seus trabalhos, que parecem docu-mentos de uma expressão habitual-mente inaudível. Os movimentos — anímicos, imaginativos, oníricos — que Sarmento materializa num vídeo, numa pintura, num desenho ou numa escultura são os que normalmente

disfarçamos, enjaulamos, constran-gemos à invisibilidade.

O esforço feito por Julião tem como objectivo reconhecer a tensão própria da vontade e da animalidade, que es-tá sempre a retomar. A tensão esta-belecida entre o desejo e os seus ob-jectos sempre provisórios e instáveis. É assim que a repetição surge como destino ao qual não se pode escapar; e surgem as mesmas palavras, as mes-mas situações, os mesmos sentimen-tos.

Film NoirA impossibilidade da concretização do desejo, que em “Cometa” surge tão claramente, introduz outro aspec-to essencial da obra de Sarmento: a solidão. As figuras, quase sempre sem rosto, surgem isoladas, distantes de tudo e de todos. As tentativas que fazem de ser com o outro são fracas-sadas: chega-se perto do outro, mas o ser num outro (que a experiência sexual parece prometer) é sempre fracassado. As mulheres de Sarmen-to (os homens quando surgem são instrumentalizados pela fome femi-nina de se exceder) são sempre mag-níficas e luminosas, mas isso não lhes chega para estabelecer contacto com o que está fora de si. A escultura/ins-talação “Film Noir” apresenta esta outra experiência-matriz. Um corpo translúcido que parece irradiar luz própria está de pés descalços sobre um tapete. Encapuçada com um gor-ro preto, portanto sem expressão, sem rosto ou individuação. É um pu-ro corpo, fechado sobre si próprio, perdido num sítio negro e escuro. A posição é a de quem está espera de um acontecimento, mas nada acon-tece. O paradoxo é o de estar sobre um palco e não ser capaz de agir por não se ser capaz de chegar ao exte-rior, mas esta imobilidade é expres-siva e enérgica.

Também aqui se torna presente a tensão que percorre o trabalho de Julião Sarmento. A expectativa é a de ficar mais perto de qualquer coisa de que se estará sempre distante; os tra-balhos do artista surgem como formas de abreviar distâncias e provocar aproximações, mas são ao mesmo tempo gestos conscientes de não po-derem fazer mais do que gerar figu-ras, desenhar contornos, sugerir pa-lavras. Gestos conscientes de que nunca nada disso será suficiente e que, portanto, será sempre necessá-rio voltar ao princípio e retomar a ideia, repetir a palavra, procurar a satisfação.

N.C.

Page 34: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

34 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Há um mistério qualquer, indiscerní-vel, nas fotografias que ocupam a sa-la do Museu da Electricidade, em Lisboa. Gabinetes vazios, salas aban-donadas aos seus objectos, espelhos que abrem outras imagens na super-fície da imagem, lugares que não sa-bemos se são públicos ou privados. Se ainda existem ou se já morreram. O mistério diminui, quase desapare-ce, quando o seu autor, Paulo Catrica, vem ao nosso auxílio erevela a origem do que vemos. Entre 2005 e 2009, deambulou pelo Teatro São Carlos, explorando camarins, oficinas, bocas de cena, “tropeçando” em mesas, ve-ludos, talhas douradas, espelhos. O resultado desta pesquisa foi baptiza-do de “TNSC - A Prospectus Archive” e traz para primeiro plano a intimida-de do teatro. Ou seja, os seus bastido-res. Está resolvido o mistério. Ou não?

Benigna, a intrusão do artista foi recebida pacificamente, o que deter-minou a natureza das imagens foto-gráficas: “Nos últimos anos já nin-guém dava por mim. Andava sozinho, ia onde queria. Bastava-me pedir au-torização para fotografar os lugares e como aparecia durante as férias, mui-tos gabinetes e salas estavam desocu-pados. Apercebi-me que podia pensar melhor as fotografias. Escolher os dias, a luz, os lugares, sem a presença das pessoas”. O projecto começara como uma encomenda da direcção

do Teatro, motivada pela vontade de registar o São Carlos antes da realiza-ção de obras importantes, mas Catri-ca decidiu prolongar a relação.

Tal como noutras séries, “TNSC - A Prospectus Archive” documenta um espaço definido, o espaço de uma ins-tituição. Mas ao contrário das escolas (que o artista fotografa desde os finais dos anos 90) ou do Palácio de Belém (motivo de “A Republica e o Palácio de Belém”, de 2008), aqui a evocação dos objectos e das pessoas é mais afectuosa. Numa fotografia, vê-se o gabinete vazio do então director Pa-olo Pinamonti, noutra a sala das cos-tureiras, em cuja mesa se vislumbram sacos de plástico e um par de óculos. Noutra, ainda, a sala de ensaio do Co-ro onde cada músico tem (por moti-vos insondáveis) a sua cadeira. “Inte-ressou-me o contraponto entre espa-ços públicos e privados, bem como as distinções entre os lugares. E ex-plorar o teatro como um sítio sedi-mentado, feito de várias camadas. Por isso, este trabalho tem menos arqui-tectura, e nele os objectos fazem par-te da história”.

A história “TNSC - A Prospectus Ar-chive” conta-se a partir de dois “en-redos”. O dos dourados postiços e dos mármores que não faziam parte da traça original e que terão sido intro-duzidos nos anos 40 ou 50 do século passado. E o do trabalho manual, ins-crito na carpintaria, nos armazéns,

na sala das costureiras, sítios que so-freram remodelações, mudaram de lugar ou desapareceram. Como que a duplicar estes tempos e cenários, encontramos os espelhos, sujeitos centrais de algumas fotografias. Ve-mo-los no camarim do maestro, no gabinete do director, a reflectir coisas diferentes (como uma pintura dentro de uma fotografia), no camarote, sob um candelabro desfeito, a criar uma espécie de “mise en-abyme” (um te-atro dentro da imagem do teatro).

“Alguns [espelhos] pertenciam a espaços públicos do Teatro e foram levados há décadas, tal como os lus-tres e certo mobiliário, para sítios mais resguardados. Criam um com-pósito de diferentes tempos. Estão ligados por uma ideia de brilho e de-cadência. Gosto de sítios que têm marcas do tempo, mas que estão vi-vos”.

Fotografi as habitáveisA deixa vem em boa altura para um pequeno confronto. O que separa e aproxima o olhar de Paulo Catrica da fotografia de uma Candida Höffer ou de um Thomas Struth? “A Escola da Düsseldorf é importantíssima e a Can-dida Höffer é uma artista fantástica, mas está muito preocupada em asso-ciar à arquitectura aspectos simbóli-cos e políticos ou em a limpar arqui-tectura da vida. A mim interessa-me a vida, as pessoas que andam nestes

sítios, que fazem estes sítios. Nesse sentido, as minhas referências são as da fotografia italiana, do Luigi Ghirri, do Gabriele Basilico.”

A obra fotográfica do artista nunca deixou de lidar com a trepidação do quotidiano, mais popular e colorido na série dedicadas aos campos de fu-tebol dos subúrbios (“Stadia”, de 2004), mais circunspecto e frio, nas fotografias das escolas. Curiosamente, não se vislumbram pessoas em “TNSC - A Prospectus Archive” (ausência que não é rara na sua fotografia). “Talvez tenha algum pudor em representá-

las”, sugere o artista, “mas são muito importantes. Estão naquela hera que decora o escritório, naquele verso do relógio, na organização que fazem do espaço”. Só é preciso olhar com aten-ção, poderíamos acrescentar.

“Quero que as minhas fotografias possam ser não somente visitáveis, mas também habitáveis. Que possam construir histórias, que sugiram ao espectador que ele já esteve ali. Co-loco-o no meu ponto de vista, mas espero que também possa ver porme-nores, descobrir detalhes que eu pró-prio não encontrei. Gosto desse jogo entre o trabalho analítico que a foto-grafia estimula, de que já falava o Wal-ter Benjamin, e a contemplação”

O jogo não é deixado apenas o es-pectador. Serviu como motor de ““TNSC - A Prospectus Archive”. “Es-ta exposição nasceu de coisas que me interessam ou me interrogam. Mas também nasceu de uma sedimenta-ção. O Freud contava que o olhar das pessoas sobre as ruínas romanas mu-dava consoante o seu grau de infor-mação ou conhecimento. Muitas des-sas fotografias nascem de um encon-tro com as coisas, mas também são consequência de quatros anos de tra-balho. A partir de uma dada altura sabia o que queria e estava a fotogra-far, para além da atracção visual dos sítios e dos objectos”. Podia compor um teatro vivo, de espelhos e memó-rias.

Depois de quatro anos a explorar os lugares mais recônditos do São Carlos, Paulo Catrica compôs “TNSC - A Prospectus Archive”, exposição dedicada a um espaço e às

pessoas que o construíram. No Museu da Electricidade, até 22 de Maio. José Marmeleira

Entre 2005 e 2009, explorou camarins, oficinas, “tropeçou” em mesas, veludos, talhas douradas, espelhos

“Quero que as minhas fotografias possam ser não somente visitáveis, mas também habitáveis. Que possam construir histórias, que sugiram ao espectador que ele já esteve ali”

RU

I G

AU

NC

IO

A vida do teatro contada pelos espelhos da fotografi a

Page 35: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Evolução de um projecto que reuniu o violoncelista holandês Ernst Reijseger e o cineasta alemão Werner Herzog, Requiem for a Dying Planet compreende a projecção dos filmes The Wild Blue Yonder e The White Diamond, acompanhados ao vivo por um ensemble que une sonoridades do mundo. Na tela como no palco, recria-se uma atmosfera mágica, telúrica e etérea.

DOM 01 MAI19:00 SALA SUGGIA · € 5SERVIÇO EDUCATIVO · MÚSICA E MAISFAMÍLIAS E PÚBLICO GERAL

Ernst Reijseger violoncelo e direcção musical Cuncordu e Tenore de Orosei vozes Mola Sylla vozWerner Herzog filmes

SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA ESTE CONCERTO. OFERTA LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR.

www.

casa

damu

sica

.com

| w

ww.c

asad

amus

ica.

tv |

T 2

20 1

20 2

20

APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICAMECENAS CASA DA MÚSICAAPOIO À DIVULGAÇÃO

WWW.MUSPORTUGAL.ORG

ENVIA JÁ O TEU SET PARA [email protected]

CONCURSO NACIONAL DE DJs 100% ECOLÓGICO

DJ CONTEST

Organização:Apoios:

����

O MUS em parceria com a Antena 3 organiza o primeiro concurso nacional de DJs 100% produzido com energia cinética. O vencedor final tem como prémio: Set para programa, participação no programa Antena 3 Dance e participação num evento com apoio da Antena 3. Sabe mais no site oficial do MUS.

Page 36: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

36 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

O que a música de um

faz pelas letras O guitarrista Afonso Pais, percurso feito no jazz, e JP Simões, homem d de um poderia fazer pelas letras do outro. O resultado é a

Depois de “1970”, e da exposição pessoal, JP SImões é agora mais autor que actor dassuas canções

Tem um sabor doce este

disco outonal em que JP

Simões e Afonso Pais

nos dizem basicamente

isto: assim continua o

mundo

“Onde Mora o Mundo”? O deles, de JP Simões e Afonso Pais morou no isolamento de um retiro. Em Tavira, primeiro, e depois numa das aldeias de xisto da Lousã. Aí nasceram as can-ções de um álbum que não é sucessor de “1970”, a muito e justamente cele-brada estreia a solo de JP Simões, que não é simplesmente passo seguinte no percurso do guitarrista Afonso Pais, músico com carreira feita no ja-zz e que, director musical de JP nos últimos anos, sentiu um chamamen-to do passado, o das canções que cres-ceu a ouvir e a admirar: as da música brasileira de Chico Buarque ou Edu Lobo, as da portuguesa de José Mário Branco ou Vitorino – não por acaso, marcas musicais que também reco-nhecemos em JP Simões.

“Onde Mora o Mundo”, que inaugu-ra o renascimento da mítica Orfeu, casa editorial de, entre outros, José Afonso, é o resultado de uma ideia com três anos. A mais óbvia das ideias que pode surgir a dois músicos que convivem em estúdio, em concerto, em sala de ensaios: “Temos coisas em comum, vamos tentar juntá-las”. A explicação da coisa óbvia é dada por JP e Afonso numa esplanada ameaça-da pelo “vai não vai” da chuva de Abril. Não choveu e a conversa avançou so-bre um álbum que é uma colaboração ( JP e Afonso insistem neste ponto, sa-bedores da tendência inevitável do público se focar no mais reconhecível). Avançou sobre estas dez canções em que Simões versa os temas de sempre, os únicos (o amor que nos assombra e glorifica, os demónios que nos tor-mentam, os poderezinhos que nos castram), em música que se faz híbrida

de mancha sonora jazzística e aban-dono ao balanço brasileiro, composta por Afonso Pais e interpretada por um notável conjunto de músicos, como o baterista Alexandre Frazão e o contra-baixista Carlos Barreto ou o saxofonis-ta espanhol Perico Sambeat, resgatado em Lisboa para oferecer um solo a “Conversa de esquina”. Uma benção, tal companhia: “A música é suficien-temente complexa para que não soas-se simples, se não tivesse sido tocada por músicos daquele calibre”, elogia Afonso Pais. “Tem um série de tensões de conceitos e uma certa recusa de moldes reconhecíveis”, explica JP Si-mões, “mas ao mesmo tempo, como estávamos a apontar para o formato canção, houve naturalmente a vonta-de que as coisas fossem comunicáveis,

que houvesse ali um lado funcio-nal”.

Não sendo parte daquilo que em português técnico se apelida de plano de gestão de carreira ( JP, diletante profissional da música, não tem cer-tamente um), talvez este “Onde Está o Mundo” seja o álbum que ele pre-cisava de fazer depois de “1970” (2007) e do ao vivo “Boato” (2009). Porque, de certa forma, o protege.

A estreia a solo destacou-o como um dos mais inspirados e assertivos cantores e compositores portugueses. Minuciosamente, de forma sentida e dorida, expondo sem pudor, vimo-nos reflectidos ali (nós e as nossas inquietações, nós, a geração nascida neste país na década de 1970), naque-las canções com Chico Buarque como anjo tutelar sorrindo em aprovação do outro lado do Atlântico, onde é mais quente e onde o samba se dança a sério. “Já percebi que na altura pre-

cisava de uma figura paternal”, sorri JP Simões. Afonso Pais complementa: “Actualmente, é tão raro ver pessoas que fazem música com riqueza e so-fisticação e que, ainda assim, tenham uma certa simplicidade e facilidade de leitura musical, que me parece que isso [as comparações feitas com Chi-co Buarque] acontece por as pessoas quererem a toda a força etiquetar”.

Chico não é figura tutelar em “On-de Mora o Mundo”, mas não é por isso que esta colaboração com Afon-so Pais protege JP Simões. Protege-o porque este é verdadeiro e conse-quente trabalho de partilha, porque a primeira pessoa de JP Simões é tam-bém a de Afonso Pais, que “deu um presente” a si mesmo e canta em al-gumas canções. Assim, o JP Simões exposto como se fosse totalmente as suas canções e aquilo que canta, sur-

é agora mais autor queactor dassuas canções

por Afonso Pais enotável conjuntobaterista Alexandbaixista Carlos Bata espanhol Pericoem Lisboa para “Conversa de esqtal companhia: “temente complexse simples, se nãpor músicos daqAfonso Pais. “Temde conceitos e umoldes reconhecmões, “mas ao mestávamos a apocanção, houve nade que as coisas fo

que houvessenal”.

“Mais que um híbrido da minha música e das letras dele, a ideia foi que uma coisa condicionasse a outra”, Afonso Pais

Page 37: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 37

do outrom das canções, descobrem o que a música é admirável. Mário Lopes

ge mais como autor, e menos como actor, das narrativas que criou.

Regressemos a “1970”. “Quando saiu, estava implantado em mim como um trabalho que quase roçava a por-nografia. Era demasiado pessoal. O que aconteceu com o disco, essa vira-gem para sugerirem que poderia dar voz a outras pessoas e a outras circuns-tâncias foi uma coisa exterior da mi-nha fabricação. Já há muito tempo que optei por viver em paz com a ideia de que, para estudar a Humanidade, estudo-me a mim”. Se houve uma ade-são colectiva às suas palavras e à sua música, naturalmente que isso lhe agrada – “como qualquer artista, ten-to quebrar a inevitável e instranspo-nível distância que existe entre as pes-soas, e entre as pessoas e si mesmas” -, mas não lhe ponham em cima o far-do de ser alguém que fala de nós, pa-

ra nós, com todos os eus que o ouvem a sobrelotarem-lhe a mente. Sobre “1970”, e para fechar a porta sobre “1970”: “Nunca pretendi, de modo algum, fazer uma música de exaltação colectiva. Fiz como sempre, peguei num assunto e trabalhei o seu lado doloroso com bastante auto-ironia”.

Entre a criança e o oráculo“Onde Mora o Mundo” não represen-tou para Afonso e JP fazer como sem-pre. Obrigaram-se a um retiro em Tavira e numa aldeia na Lousã e fren-te a frente, forçaram-se a trabalhar e a dar resposta aos estímulos, aos acor-des e às palavras um do outro. Afonso Pais, percurso feito no jazz, com pas-sagem prolongada por Nova Iorque, onde estudou e onde se apresenta regularmente, amante das canções (em “Subsequências”, o seu álbum

de 2008, gravou com Edu Lobo e re-cebeu dele todos os elogios), procu-rou em JP Simões, percurso feito nas canções e amante do jazz, um parcei-ro musical que lhe conduzisse a um lugar novo. “Mais que um híbrido da minha música e das letras dele, a ideia foi que uma coisa condicionasse a ou-tra”, diz Afonso. “O curioso”, aponta JP Simões, “foi ver estas duas pessoas colocadas voluntariamente numa si-tuação de ‘vamo-nos mandar para ali e ver o que acontece’. Há uma série de tensões que [nessa situação] fun-cionam a favor da música ou de qual-quer arte”.

A disciplina de trabalho em isola-mento, o ter que responder ao outro, em vez de prestar contas a si mesmos, representou algo de diferente para JP Simões e Afonso Pais e a música, cada canção um micro-cosmos reflectindo as empatias dos dois criadores, reflec-te-o. Mas há coisas que não mudam (nem é suposto que mudem). Como isto que, a determinado momento, nos diz JP Simões: “Os artistas utili-zam o discurso para procurar coisas que estão atrás do discurso. Vivem entre um estado de sonho e de vigília, porque dão importância aos sinais. É um trabalho entre a criança e o orá-culo. Tentar potenciar a intuição com a sensibilidade aberta ao máximo, como só as crianças têm”

Chegamos então a “Onde Mora o Mundo” e deparamo-nos com os sinais. Coisas intemporais como a “Dorinha (pequena dor)” que não é mulher ne-nhuma, que “fala sobre a afinidade amorosa que as pessoas podem ter com a tristeza, o que é um assunto bem português”. Coisas muito do agora, deste preciso momento em que o FMI já anda por aí, em que os partidos se atarefam em afã pré-eleitoral, em que as pessoas, o povo, pá, exaspera: em “A marcha dos implacáveis”, um ho-mem, sr. Primeiro ou sr. Presidente, tem um pesadelo, vê sangue chover no Rossio, vê desempregados e velhos e crianças marcharem sobre São Bento, “mata, esfola, mata, esfola”, e ele ater-rorizado, a acordar ensopado em suor: “a culpa, a culpa, a culpa”. Chegamos a “Onde More o Mundo”, repetimos, e deparomo-nos com coisas de JP Si-mões: ele, melancólico, pedindo “fica um pouco mais, fica até que eu fique em paz” sem que haja paz ao fundo do túnel. É um traço de carácter e resume-se nesta insanável insatisfação de que nos fala: “elaboramos o que é para nós a felicidade, definimos a meta e depois, como dizia o Bowie [em ‘Changes’], ‘the taste was not so sweet’”.

A música afaga, aplaca, sublima esse desconforto. E por isso tem um sabor doce este disco outonal em que JP Simões e Afonso Pais nos dizem basicamente isto: assim continua o mundo.

Ver crítica de discos págs. 46 e 47

Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / Informações: 808 200 543Siga-nos em www.facebook.com/fundacaoserralves

Apoio Institucional

Co-financiado porMecenas Exclusivo do Museu e do Projecto Improvisações/Colaborações

Patrocinador da Programação de Música Apoio à Divulgação

O Projecto Improvisações/Colaborações realiza-se entre Março e Outubro 2011.Programa integral e informação regularmente actualizada em www.serralves.pt

Page 38: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

38 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Durante dois anos, uma mesma ideia: a de que o retiro numa cabana junto a Walden Pond, um lago no Massa-chusetts, conduzisse a uma declara-ção de independência pessoal, a uma experiência reveladora de como o homem vive em sociedade, de como cada um deve bastar-se a si mesmo na sua sobrevivência e na sua cons-trução individual. E depois, então, oferecer-se ao mundo como produto semi-acabado, mantendo sempre as características da permeabilidade e da mutabilidade. Mas sem que isso, em momento algum, comprometesse as suas fundações – nada de traições com a subtileza de um hara-kiri. Des-sa experiência, o filósofo Henry David Thoreau fez nascer o livro “Walden ou a Vida nos Bosques”.

Durante dois anos, uma mesma ideia: a de que o retiro artístico num sétimo andar no Barreiro, junto ao piano oferecido anos antes pela avó, e sob a influência da leitura de Tho-

reau, conduzisse a um espelho musi-cal da declaração de independência do autor norte-americano, como se as palavras de um e as notas extraídas ao piano pelo outro fossem dois lados de uma mesma moeda de libertação. Depois, então, oferecer ao mundo uma música que embarca no mesmo desejo de simplicidade e descoberta. Dessa experiência, o músico portu-guês Tiago Sousa fez nascer o álbum “Walden Pond’s Monk”.

Mas o exercício de Tiago Sousa, diz-nos o próprio, é puramente estético: “Pegando na filosofia e na literatura do Thoreau, tentei ir buscar os ele-mentos que mais me diziam e com os quais me identificava, fazendo uma apropriação desses valores e trans-formando-os numa obra musical”. Não adianta, por isso, procurar uma narrativa em “Walden Pond’s Monk”, nem procurar correspondências di-rectas entre palavras e notas. Nas li-nhas e nas entrelinhas de Thoreau,

Tiago descobriu-se “em questões co-mo a emancipação individual e a ne-cessidade de nos centrarmos em nós próprios para causarmos modifica-ções na sociedade”.

O grito emancipador e de indepen-dência não se queda pela filosofia e tem, na vida artística de Tiago Sousa, uma aplicação prática na adopção de uma postura que lhe garanta, a cada passo e a cada segundo, duas coisas simples de nomear (mas nem sempre tão simples assim de preservar): total liberdade artística e necessidade de trabalhar de acordo com um ritmo criativo próprio, sem as urgências ha-bitualmente impostas por terceiros.

Das águas de Walden Pond, Tiago Sousa sorveu ainda uma ideia de des-pojamento que se liga naturalmente ao vocabulário que explora no piano. Desde “Insónia” que faz de uma car-regada melancolia minimalista a sua dama de ocasião, recorrendo às obras de Thoreau ou William Burroughs

como motes criativos, não pretenden-do no entanto realizar quaisquer es-tudos sobre a obra destes autores. No fundo, quer encontrar-se nos outros, para depois se projectar de novo no mundo, passando a incorporar ideias e reflexões trazidas ou inspiradas por este ou aquele – “É uma necessidade de tornar aquilo também meu, uma afirmação também minha”.

Erudito? Não, acidentalTiago Sousa, receptor de umas quan-tas aulas de piano dadas pela avó, não gosta de grilhetas. E, portanto, torceu o nariz e franziu o sobrolho ao acade-mismo bafiento e aos manuais pejados de regras, contra-regras e pancadas na mão para corrigir o ângulo do co-tovelo em relação ao teclado, às oito horas por dia de corcunda na tentati-va de domar o instrumento com exer-cícios de repetição. “Queria simples-mente partir à aventura, correndo os riscos inerentes. Tenho perfeita noção de que um professor de conservatório que vá ouvir os meus discos vai ficar arrepiado”, diz-nos sem remorsos. “Não é por aí que me rejo. Preocupa-me tocar pessoas que não estão pre-ocupadas com o formalismo mas que querem simplesmente experimentar alguma coisa; se consigo transmitir essa experiência através da música, tanto melhor. E sempre me liguei mui-to mais a uma lógica do acaso e da experiência empírica”. O problema, no seu entender, começa no método de aprendizagem das escolas, que “conduz a um certo embrutecimento, no sentido de não inspirar criativa-mente nem estimular o sentido críti-co”. Tiago queria procurar as suas respostas, não as do colega do lado.

Inspirado por Beethoven, Mozart, Chopin ou Debussy – “um património que não foi conquistado por uma qual-quer erudição, mas essencialmente por um acidente de percurso” – a ver-dade é que o percurso de Tiago fez-se primeiro nas fileiras dos batalhões pop/rock dos Goodbye Toulouse ou Jesus, the Misunderstood. Daí que, apesar das referências primordiais e daquilo que em “Walden Pond’s Monk” se ouve, não se reconheça em qualquer catalogação de música eru-dita. “O meu método não é erudito, está muito mais próximo da música popular – na qual o rock se poderá integrar e mesmo até alguma música experimental a partir dos anos 70 e 80. Não é minha pretensão escrever uma sinfonia para uma grande orques-tra ou escrever peças de piano para um intérprete depois tocar. Faço mú-sica para eu tocar com músicos com os quais queira fazê-lo, e nesse sentido o método é muito mais ligado a essa facção rock”. A ideia de lhe cair no colo uma encomenda para um quar-teto de cordas não cabe, de todo, no mundo que criou para a sua música.

“Walden’s Pond Monk” não quer doutrinar, “não obriga que todas as pessoas que oiçam o disco depois leiam o livro ou vão viver para as mon-tanhas”. E não se entrega a algo em voga nos últimos tempos: perda de soberania. Editado pela norte-ameri-cana Immune, Sousa diz que tentará sempre que o poder decisório nunca lhe salte das mãos. Por mais troikas que venham.

Ver crítica de discos págs. 46 e segs.

Fundador da netlabel Merzbau, Tiago Sousa tornou-se, aos poucos, num caso singular da música portuguesa: um piano sem morada certa (nem

clássica, nem jazz) que se inspirou em Thoreau para o disco que promete (fora de portas) tornar o seu nome fi nalmente invulgar. Gonçalo Frota

Sétimo andar com Thoreau

“Tenho perfeita noção de que um professor de conservatório que vá ouvir os meus discos vai ficar arrepiado. Não é por aí que me rejo. Preocupa-me tocar pessoas que não estãopreocupadas com o formalismo mas que querem simplesmente experienciar alguma coisa”

Inspirado por Beethoven, Mozart, Chopin ou Debussy, o percurso de Tiago fez-se primeiro nas fi leiras dosbatalhões pop/rock dos Goodbye Toulouse ou Jesus, the Misunderstood

Page 39: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 39

Peter Brook, figura de referência das artes cénicas europeias do século XX, nunca deixou de ver o teatro como espaço de socialização e os seus es-pectáculos continuam, até hoje, a trabalhar para o entendimento entre o que é mostrado e aqueles a quem é mostrado. A sua versão de “Une Flûte Enchantée”, de Mozart, que abre na próxima quinta-feira o festi-val Odisseia: Teatros do Mundo (dia 5 no Centro Cultural Vila Flor, Gui-marães; dias 8 e 9 no Teatro Carlos Alberto, Porto), resulta precisamen-te dessa vontade de transformar o teatro num “terreno comum” e de gerir o difícil equilíbrio entre projec-ção, metáfora e memória.

“Começámos a trabalhar sem qual-quer cenário, e a partir da música. Fomo-nos perguntando como conse-guiríamos fazê-la sentir, sem o peso e a solenidade de uma grande ópera. E sempre com um espírito lúdico”, explicou Brook quando “Une Flûte Enchantée” se estreou, em Novem-bro, no Théâtre des Bouffes du Nord, que dirigiu desde 1979 e que, com esta peça, abandona. Situado numa zona dura, cinzenta, de fins de ave-nidas, onde os sapatos altos e as peles parecem sempre fora do lugar, é um teatro de paredes desfeitas, verme-lhos carregados, filas apertadas. Um teatro circular, como uma verdadeira comunidade.

Brook abordou a ópera de Mozart como se ali tivesse acabado de des-cobrir uma narrativa contemporânea: “Quis sempre uma relação directa com o público.Uma relação actual”. Aquilo que vemos – e sobretudo o que escutamos – é efectivamente de uma limpidez a toda a prova, numa obra que reduz ao que há de mais íntimo na partitura original: “Mozart rein-ventava-se a cada instante, e nesse sentido, respeitando profundamente o essencial [do que compôs], traba-lhámos intuitivamente, sem esconder ou modernizar, mas fazendo apare-cer...”.

Esta ideia de aparição, vinda do negro, transformou sempre as suas personagens em fantasmas e os es-pectadores em objectos de desejo. O teatro de Peter Brook é um teatro de espelhos, em que a disposição espa-cial serve quem vê, e os actores nun-ca se coíbem de interpelar directa-mente o corpo dos espectadores.

“Une Flûte Enchantée” não é dife-rente: Brook explora, com uma efi-cácia dramatúrgica ímpar, a comple-xidade da ópera de Mozart, plena de símbolos maçónicos e significados duplos tão complexos que a extrac-ção de sentidos se torna normalmen-te inglória. Queria, explicou, “estar o mais próximo possível de Mozart”. Amores cruzados, equívocos, uma Rainha da Noite que tudo controla, passagens temporais anacrónicas, serpentes emplumadas e pássaros alados combinam-se harmoniosa-mente.

Amor-ódioNas encenações que fez para ópera, Brook apostou sempre num modelo próximo das suas leituras abertas de textos teatrais tão diferentes como “Marat/Sade” (1964), de Peter Weiss, em que colocou os espectadores co-mo visitantes da cela onde os loucos encenavam, sob a direcção do Mar-quês de Sade, o assassinato do depu-tado jacobino amigo de Robespierre, no calor da Revolução Francesa. Ou da mítica encenação do poema india-no “Mahabharata”, que fez na pedrei-ra de Boulbon em 1985, e que durava oito longas e inebriantes horas. Ou ainda da transformação em ópera de

câmara do secreto texto “Moderato Cantabile”, de Marguerite Duras, em 1959. Tal como pudemos comprovar com as recentes passagens em Por-tugal de “Sizwe Banzi est mort”, de Athol Fugard (Festival de Almada, 2007) e “Fragments”, de Beckett (Centro Cultural Vila Flor, Guimarães, e Teatro Viriato, Viseu, 2009), – é sempre o mesmo desejo de conflu-ência entre o ritual pagão e a ascece, materializados na palavra dita, que se joga em Peter Brook. “Nunca acre-ditei numa verdade única. Nem na minha, nem na dos outros. Eu sem-pre acreditei que todas as escolas e todas as teorias podem ser úteis a de-terminada altura. Mas descobri que alguém só pode viver se se apaixonar, e se identificar com um ponto de vis-ta”, defende.

A sua relação com a ópera tem sido, de resto, uma relação de amor-ódio. “Une Flûte Enchantée” foi uma rea-proximação imprevista, depois da ruptura nos anos 50: “Tinha abando-nado a ópera, depois de muitos anos de experiência no Covent Garden [em Londres] e na Metropolitan Opera de Nova Iorque, com um ódio absoluto por uma forma rígida – não apenas pelo ‘objecto ópera’, mas também pelas ‘instituições operáticas’, ‘o sis-tema operático’, que bloqueia tudo... Cheguei à conclusão de que era uma perda de energia: no teatro não-ope-rático podemos ir muito mais longe

com a mesma energia – por isso, para quê agastarmo-nos com um modelo tão rígido? Abandonei a ópera nos anos 50, e para sempre”.

Nessa altura, já Brook tinha ence-nado “La Bohéme” (1948), “Boris Godounov” (1948), “The Olympians” (1949) e “Salomé” (1949, com cená-rios de Dalí) para o Covent Garden, e “Faust” (1953) e “Eugene Onegin” (1957) para o Metropolitan de Nova Iorque. Mas o modo como o tinha ti-do de fazer, gerindo os complexos calendários das casas de ópera, im-pedia-o de trabalhar exactamente como pretendia. “Une Flûte Enchan-tée” era uma ambição com 25 anos. “Devíamos ser livres de a adaptar co-mo quiséssemos”, resume, “não pa-ra modernizar ou fazer moderno, mas para nos desembaraçarmos de todas as convenções impostas pela forma durante anos e anos. Era pre-ciso colocar a música e os cantores numa relação directa com o público, sem fosso de orquestra, para que a presença das personagens se expri-misse através do canto”. E, na base de tudo, “a improvisação”.

O que vamos ver agora em Guima-rães e no Porto é o resultado desse percurso de pesquisa e de permanen-te limpeza. O terreno comum que ainda persegue é o de um teatro sem fronteiras, aberto e infinito.

Ver agenda de espectáculos pág. 51

Peter Brook, um dos maiores encenadores europeus, abre na próxima quinta-feira o festival Odisseia: Teatros do Mundo com a sua leitura de “Une Flûte Enchantée”, de Mozart. É um exercício de descoberta ao qual cedemos sem temor, e um dos acontecimentos do ano. Tiago Bartolomeu Costa

“Fomo-nos perguntando como conseguiríamos fazer sentir a música, sem o peso e a solenidade de uma grande ópera. E sempre com um espírito lúdico”Peter Brook

O teatro como no princípio

Brook abordou a ópera de Mozart como se ali tivesse acabado de descobrir uma narrativa contemporânea

William Nadylam, que já foi o “Hamlet” de Peter Brook, regressa aqui ao trabalho com o encenador

PAS

CA

L V

ICT

OR

PAS

CA

L V

ICT

OR

Page 40: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa
Page 41: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 41

Há um momento, que corre o risco de se perder por entre a massa de bai-larinos que forma o elenco de “Ico-sahedron”: uma linha preta atravessa os 20 corpos que se digladiam por uma só identidade. O que então ve-mos, escondido pela sombria luz e pela rigidez dos corpos, é apenas uma das chaves para a mais recente core-ografia de Tânia Carvalho (n. 1976), feita de aglomerados de sentidos, de gestos, de frases que parecem de um outro tempo, imaterial apesar da ari-dez do que fazem.

A estreia hoje, na Culturgest, é só a primeira data de uma digressão que a levará, dias depois, a abrir os Rencon-tres de Seine-Saint-Denis, na região parisiense, o mais importante festival de dança contemporânea do início da temporada e para o qual todos os olha-res se dirigem quando se fala de expe-rimentação em dança.

Tânia Carvalho chega agora, ano de todas as crises, com uma peça pa-ra 20 intérpretes, quando as massas parecem ter perdido o lugar na cena contemporânea europeia. E, no en-tanto, ela, que sempre foi uma core-ógrafa do gesto implicado, resolveu responder a essa dificuldade com uma peça onde se desmultiplica nou-tros corpos, mas não noutros olha-res.

São 20 como podiam ser só um, ma-terializando a complexa construção

dessa figura geométrica, o icosaedro, de 20 faces iguais. “São todas projec-ções minhas”, diz-nos no fim de um ensaio em Montemor-o-Novo, onde a companhia esteve em residência. “São projecções com funções diferentes”, acrescenta. E a cada corpo uma fun-ção, a cada função um conjunto, em cada conjunto “a sua limitação”.

SobrevivênciaO percurso de Tânia Carvalho é feito disso, de permanentes projecções e conflitos. “Tenho uma relação de amor-ódio com a dança”, diz. Quando nos confessa que a acha pirosa, in-completa, imperfeita, nunca sabemos se está a ironizar ou se está a falar a sério. Nunca sabemos porque se per-cebe no movimento dado a fazer a cada bailarino uma limitação que de-riva “da impossibilidade de aquilo ser feito”. São assim as suas peças: no li-mite do dizível. E, no entanto, delas retiramos sempre a exigência de um movimento seco, áspero, que pede que os intérpretes sejam mais mecâ-nicos e funcionais do que fluidos e abrangentes. E, em resumo, é isso que são: objectos que pairam na cena co-reográfica europeia sem par, que per-turbam a lógica linear e integrada da dança actual, que reconstroem per-manentemente um mesmo caminho, através da repetição, da insistência, da pesquisa profunda, da vontade de

ficar a olhar para um mesmo movi-mento até ele se deformar por si, até ele passar a ser outra coisa, outro mo-vimento, outra ideia.

Contudo, o modo como trabalha é muito rigoroso e formal: “Passo-lhes [aos bailarinos] o que quero que fa-çam, até não lhes conseguir explicar. O que fazem, mesmo que tenha pro-curado integrar algumas das suas ‘ha-bilidades’, serve uma mesma ideia”. Essa ideia não é líquida e não é per-ceptível. Não tem de ser. Peças como “De mim não posso fugir, paciência!” (2008) ou “Orquéstica” (2006)”, tra-balhos de grupo, mostram o que já se tinha visto nos solos, como “Explodir em Silêncio Nunca Chega a ser Per-turbador” (2005) ou “Uma lentidão que parece uma velocidade” (2007), obras de uma intensidade limite, co-mo se cada movimento esgotasse a sua razão. “Eu sei sempre o quero que seja feito”, diz-nos, antes de explodir numa gargalhada que disfarça a sua permanente dificuldade em explicar, exactamente, o que quer.

Ao longo dos anos, o que tem apre-sentado é um trabalho onde o corpo, sendo a matéria-prima da qual parte, serve uma função: destruir-se. É um corpo que não se resolve, que não se conforma, que “tenta ter uma forma”. Em “Icosahedron”, estes 20 corpos, escolhidos em audição e com eviden-tes formações distintas, servem um

propósito: perceber se, juntos, po-dem criar uma massa. As imagens que criam, dialogando com uma surpre-endente banda-sonora de Diogo Al-vim, feita dos mesmos rasgos, cortes e amplificações metálicas do movi-mento, deformam-se ao mesmo tem-po que se constroem. São bichos, são homens, são monstros, são geométri-cos, são tudo ao mesmo tempo, pri-meiro a solo, depois em grupo, pri-meiro no chão, depois erguendo-se, como se cada metamorfose fosse uma nova hipótese de sobrevivência.

Sobrevivência é a palavra mais for-te para responder aos desafios lança-dos por Tânia Carvalho, que insiste numa ideia de derrota, de humilha-ção, de destruição. “Tenho essa ideia da dança”, diz. Os rostos dos bailari-nos, na primeira parte impassíveis, na segunda perturbadores, grotescos, “ridículos”, são a sua forma de res-ponder às exigências de formatação do corpo, do sentido, do gesto, da imagem. São, no limite, o seu próprio fantasma.

Ver agenda de espectáculos pág. 51

Uma das mais importantes coreógrafas da cena contemporânea, Tânia Carvalho, estreia uma peça para 20 intérpretes, verdadeiro teste às linhas principais do seu trabalho: rigor,

destruição, forma. Um discurso marginal que hoje e amanhã está na Culturgest, em Lisboa, e, na semana que vem em Paris. Tiago Bartolomeu Costa

Destruir-se, diz ela

MIG

UE

L M

AN

SO

“Tenho uma relação de amor-ódio com a dança”

Depois da Culturgest, Tânia abrirá os Rencontres de Seine-Saint-Denis, na região parisiense, o festival para o qual todos os olhares se dirigem quando se fala de experimen-tação em dança

Page 42: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

42 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

Para Bernardo Sassetti é uma estreia – ter um par de bailarinos a dançar com o seu piano enquanto ele toca é um cenário completamente novo, mas nem por isso desconcertante. O músi-co parece estar no seu elemento, mes-mo quando a coreografia que Clara Andermatt desenhou para os corpos de Irina Oliveira e Shang-Jen Yuan im-plica contacto entre os intérpretes e o homem que está sentado ao piano.

A estreia de Sassetti não foi a única a marcar a noite de ontem, no Teatro Camões, em Lisboa, nem a mais im-portante. É que, para a Companhia Nacional de Bailado (CNB), juntar no-ve coreógrafos portugueses num mes-mo programa em que só cabem ori-ginais também é novidade. Se quisés-semos ser dramáticos poderíamos até dizer que o momento é histórico sem nos enganarmos.

“Uma coisa em forma de assim” é um dos primeiros projectos de Luísa Taveira enquanto directora da CNB e, explica ao Ípsilon esta ex-bailarina e programadora, cumpre na perfeição o seu desejo de abertura da compa-nhia aos criadores portugueses e à contemporaneidade. “É maravilhoso poder ter aqui estas gerações de core-ógrafos e um compositor como o Ber-nardo Sassetti a mexer na companhia. É muito importante que os bailarinos se exponham a linguagens diferentes

daquelas a que estão habituados e que haja uma sensação de risco à nossa volta.” A proximidade de três dos co-reógrafos - Olga Roriz, Rui Lopes Gra-ça e Vasco Wellenkamp, que antece-deu Taveira como director desta for-mação - é evidente, mas com os restantes - Paulo Ribeiro, Rui Horta, Francisco Camacho, Madalena Victo-rino, Clara Andermatt e Benvindo Fonseca - a colaboração é mais espo-rádica ou até nunca tinha existido.

Apesar de Olga Roriz e Paulo Ribei-ro defenderem que o programa é de risco – “tanta gente para peças tão pe-quenas”, diz ela, “bonito abrir assim a companhia, mas potencialmente perigoso”, acrescenta ele -, Luísa Ta-veira diz que foi conservadora e que deixou de fora criadores da mesma geração (Vera Mantero e João Fiadeiro não aceitaram participar) ou mais no-vos que gostaria de ter incluído. “Que-ria ter sido mais corajosa, mas o grupo de coreógrafos que reunimos permitiu fazer aquilo que planeámos desde o início – trabalhar algo novo a partir da técnica e da fisicalidade dos bailari-nos, que assim se sentiriam mais à vontade para arriscar.”

Uma diva à saída do teatro“Risco” é uma palavra que parece es-tar longe do solo que Roriz criou para Ana Lacerda, rosto da CNB nos últi-

mos anos. Tudo porque quando ve-mos esta bailarina principal mover-se no seu longo casaco de peles temos a sensação de que a coreógrafa dese-nhou sobre aquele corpo magro que nos habituámos a ver dançar em pon-tas ou descalça, na piscina de “Pedro e Inês”. “Construí o solo no meu cor-po e depois passei-o para o dela. Mas a Ana estava sempre na minha cabeça enquanto trabalhava e é por isso que há uma certa recorrência de poses clássicas nestes breves minutos.”

Os tutus são trocados por um negli-gé suave, as sapatilhas de pontas por sapatos pretos de salto alto, mas La-cerda não chega a perder a pose que a caracteriza, garante Roriz. “Há uma força muito grande na sua fragilidade. Tudo nela é muito especial. Como se na sua leveza houvesse sempre algo de muito pesado, indizível.” Pesado é o casaco de peles – “quase mais pesa-do do que a Ana” – que ajudou Roriz a transformar a bailarina numa per-sonagem. “Gosto sempre de transfor-mar os bailarinos em seres de ficção. Para esta personagem tinha muito presente a ideia da diva à saída do te-atro, depois de um espectáculo. Quan-do penso nele lembro-me da Margot Fonteyn a sair do São Carlos.”

Trabalhar com Ana Lacerda num espectáculo que marca o no Dia Mun-dial da Dança, que hoje se celebra,

era também uma forma de homena-gear “uma artista que tem aproxima-do o público da companhia e que a tem transformado, tal como Domini-que Mercy moldou a ideia que temos do trabalho de Pina Bausch e nos faz suspender a respiração sempre que aparece em palco”. Quando Lacerda dança, conclui Roriz, o tempo tam-bém fica por vezes suspenso, mesmo numa peça breve como esta (as nove criações de “Uma coisa em forma de assim” têm na sua maioria quatro mi-nutos).

Levar os bailarinos da companhia a explorar outros métodos de traba-lho foi um dos desafios que Taveira quis promover com este programa assinado por nove coreógrafos e um compositor. Roriz, por exemplo, sabia que não podia compor o solo de La-cerda com base na improvisação, mas

foi muito importante para alguns bai-larinos o contacto em estúdio com coreógrafos como Paulo Ribeiro ou Francisco Camacho.

T-shirts e calças de ganga em baila-rinos mais habituados a malhas e collants num dueto que se concentra nas relações de poder é o que propõe Camacho. Dois homens – um que ma-nipula e outro que é manipulado – hão-de trocar de papéis, depois de se terem adaptado ao corpo um do outro, como bonecos feitos de plasticina.

Paulo Ribeiro, por seu lado, decidiu coreografar um quarteto a partir da ideia de reencontro. “São dois pares e, com eles, faço uma brincadeira à volta das pessoas que não conseguem separar-se ou que, apesar de tudo o que lhes acontece na vida, não dei-xam de estar umas com as outras.” Para este criador que também dirige o Teatro Viriato, em Viseu, e que está a colaborar pela primeira vez com a CNB, este programa começou por ser um convite inesperado e, pouco a pouco, transformou-se numa surpre-sa boa. “Não sabia que os bailarinos eram tão generosos, atentos e aber-tos. Não fazia a mínima ideia de que estavam tão dispostos a experimen-tar.” Luísa Taveira quer que se man-tenham “assim”.

Ver agenda de espectáculos pág. 51

“É muito importante que os bailarinos se exponham a linguagens diferentes daquelas a que estão habituados e que haja uma sensação de risco à nossa volta”Luísa Taveira

Um compositor, nove coreógrafos, uma companhia. O programa com que a Companhia Nacional de Bailado

festeja hoje o Dia Mundial da Dança quer abrir as portas do Teatro Camões, em Lisboa – ao público e aos

criadores nacionais –, com “Uma coisa em forma de assim”. Lucinda Canelas

Arriscar em quatro minutos

O solo que Olga Roriz criou para Ana Lacerda é uma homenagem à bailarina que, diz a coreógrafa, “tem transformado” a companhia

RIC

AR

DO

BR

ITO

Page 43: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 43

Aloe Blacc

Agora que precisamos

de uns dólares ele chega a Lisboa.

Pág. 44

Tiago Sousa Surpresa musical de 2011. Pág. 46

Michelangelo Frammartino Dá mais vidas ao cinema. Pág. 52

Paul Verhoeven Desconstrói Jesus Cristo, em livro. Pág. 49

Manoel Oliveira Abre as portas aos fantasmas. Pág. 52

PAU

LO

PIM

EN

TA

SU

SA

NN

A S

ÁE

Z

O Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís destina-se a distinguir, anualmente, um romance inédito de autor português, premiando-o com um prémio de 25 mil euros e a edição do romance. O prazo de recepção dos originais termina no próximo dia 14 de Maio.

Mais informações: www.casino-estoril.com | www.casino-lisboa.com Contactos: Tel: 21 466 78 20 | 21 466 78 98 | 21 466 77 91Fax: 21 466 79 90 | e-mail: [email protected]

Page 44: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

44 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

encontro de corpos numa pista de dança.

Não por acaso, “I need a dollar”, o sucesso que o tirou repentinamente do anonimato, tem como pano de fundo o despedimento do próprio Blacc. Ele que era consultor junto de uma daquelas empresas cuja grandeza se mede pela quantidade de &s que separam os apelidos dos seus sócios, foi vítima de uma das palavras mais populares das últimas décadas. O “downsizing” entrou pela porta grande, Aloe saiu pela pequena, mas com isso fez uma canção maior do que qualquer hierarquia laboral. Não houvesse recessão e Aloe Blacc nunca teria provavelmente despido o seu fato de executivo e vestido a roupa do músico. Teria gravado um par de canções para oferecer aos colegas no jantar de Natal da empresa. Não mais do que isso.

“Good Things”, segundo álbum de um talento que andou demasiado adormecido por mais de uma década, traz uma injecção de eficácia letal: o hip-hop, por onde se andou a passear durante anos (no duo Emanon), fornece-lhe a destreza rítmica, e depois há soul em estado puro. Do resto, encarrega-se o momento actual: a música soul sempre se alimentou dos tempos difíceis para se impor e funcionar como analgésico para almas hemorrágicas. Nessas alturas, aparece sempre alguém que, com a sua voz, ajuda a estancar e a dar um sentido à dor que se ouve nas ruas. Aloe Blacc, muito bem-vindo, agora é a tua vez.

Realeza britânicaDivine Comedy e Suede são nomes fortes da Queima das Fitas do Porto. Pedro Rios

Noites da QueimaPorto. Parque da Cidade. Av. Boavista/ Estrada da Circunvalação. De dom., 1, a sáb., 7, às 22h. Tel.: 226076370. 7€ a 14€.

“Give us some Pixies and some Roses and some Valentines — Give us some Blur, and some Cure, and some Wannadies”, canta Neil Hannon em “At the indie disco”, o primeiro “single” do seu último disco, “Bang Goes the Knighthood”. É possível que, na cabeça de Hannon, nas discotecas indie ainda se ouçam apenas discos com pó e que não existam coisas como Arcade Fire ou Vampire Weekend, mas na verdade nada disso interessa: Hannon podia muito bem ser um eremita que a sua música continuaria a mesma, imune à passagem do tempo e às modas.

Pudera: o senhor Divine Comedy (é o único membro constante do grupo formado em 1989 e que já vai no décimo álbum) sabe onde ir beber e é tudo matéria clássica: pop orquestral, Scott Walker, Burt Bacharach, Jacques Brel, alguma música indie, tudo com a sensibilidade de um “dandy” aristocrata que é também uma estrela pop.

Os Divine Comedy abrem, na passagem de amanhã para domingo, pela 1h, a Queima das Fitas do Porto, que este ano soube guarnecer-se com alguns nomes interessantes. É o caso dos MGMT, que actuam quarta-feira, dia 4 (na mesma noite há X-Wife, a mostrar o novo “Infectious Affectional”). Os americanos, que deixaram meio mundo espantado com as aventuras psicadélicas que seguiram no seu segundo álbum, “Congratulations” (e outro a abrir a boca num bocejo), regressam a Portugal numa altura em que já começam a pensar num sucessor. Sabe-se apenas que será um “disco alegre” e “divertido” - garantias de Andrew VanWyngarden à edição “online” da “Esquire”.

Até dia 7, a Queima reserva ainda outro nome grande (sexta, dia 6, com Os Pontos Negros): os Suede . Sim, a aventura “britpop” do vocalista Brett Anderson (foram talvez a primeira banda de rock alternativo a furar no “mainstream” britânico nos anos 90 – o “Melody Maker” chamou-lhes a melhor nova banda britânica) e companhia ainda mexe – regressaram aos palcos em 2010, depois de um silêncio de sete anos, em regime nostálgico “best of”. Voltaram com Anderson de pazes feitas com Bernard Butler (guitarrista e fundador, que deixou

os Suede depois de “Dog Man Star”), que, ainda assim, não regressou ao grupo. Numa entrevista recente a um blogue da BBC americana, Anderson afirmou que a banda está a compor material novo, mas que não é certo que o edite. “Se ficar bom, as pessoas vão ouvi-lo. Se não, não há qualquer desejo nosso em lançar um disco abaixo do que os Suede já fizeram só para lançar mais um álbum. Não tenho a certeza se isso deixaria o legado intacto”. Talvez possamos ouvir alguma dessas novas canções em primeira mão no Porto, mas é certo que a nostalgia falará mais alto.

Viagem à infância com os Clã

ClãLisboa. Centro Cultural de Belém - Grande Auditório. Pç. Império. Amanhã, às 21h. Tel.: 213612400. 12,5€ a 27,5€.

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho de Albuquerque. 4ª, 4, às 21h30. Tel.: 220120220. 20€.

O “Disco Voador” são os Clã a brincar à pop para meninas e meninos, mas não são os Clã a brincar ao circo (onde o mestre-de-cerimónias, diz-nos a memória, apresenta dessa forma o palhaço pobre e o palhaço rico: “meninas e meninos, blá, blá, blá”, e por aí fora).

“Disco Voador” é, à superfície das melodias e dos arranjos, como que um álbum clássico da banda de “Kazoo”, com as suas melodias escorreitas e os arranjos com teclados de fantasia – mas depois, há ali “kazoo” e flautas, há amores inocentes, cães a olhar para o dono deitado no sofá, “gu-gu dá-dás” ou guloseimas irresistíveis. Este disco que começou como espectáculo encomendado pelo Projecto Estaleiro, que se propõe promover em Vila do Conde, ao longo de 20 meses, 20 concertos, 20 ateliers e 20 filmes, é um objecto diferente no percurso dos Clã: um álbum para crianças, ou melhor, um álbum que fala daquilo que as crianças falam sem infantilizar o discurso e acolhendo o adulto sem medo da infância perdida lá atrás – a música é dos Clã, as letras de Regina Guimarães.

Apresentado dia 14 de Janeiro em Vila de Conde, transformou-se em disco, editado há três dias, e anda a ser apresentado em várias escolas do país. Nos próximos dias, o espectáculo, com cenografia adequada ao público-alvo preferencial (são bonitos os sonhos infantis), chega a outro tipo de instituição. Amanhã, ouviremos “Paf e puf”, “Chocolatando” ou “Loja do Mestre Hermeto” no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Quarta-feira, o “Disco Voador” aterra na Casa da Música. Mário Lopes

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Con

cert

os

Pop

Blacc musicAgora que realmente precisamos de uns dólares, Aloe Blacc chega a Lisboa.Gonçalo Frota

Aloe Blacc + Maya JupiterLisboa. Aula Magna. Alam. Universidade. 4ª, 4, às 22h. Tel.: 217967624. 28€ a 40€.

Há quem precise de complexos programas de ajuda externa de milhares de milhões de euros. E há quem, como Aloe Blacc, precise apenas de um dólar. Não espanta. Aloec Blacc, 31 anos de uma revelação notável no domínio da música soul, é homem que aparece como voz popular depois de dispensado das reuniões de engravatados, é homem que se preocupa com aquilo que lhe vale na dispensa uma nota de dólar na mão, é homem que decidiu dedicar-se por inteiro à música enquanto não se acabava o dinheiro. Aloe Blacc é, por assim dizer, microeconomia, finanças a uma escala humana, voz de uma América a contas com as contas que faz à vida, e por isso mesmo visto (e autoproclamado) como um herdeiro de nomes maiores como Marvin Gaye ou Bill Withers, gente que usava a canção para dizer alguma coisa com isso e não apenas para promover o

aMaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmMeMMMMeMMMeMMMeMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMeeMeMMMeMMMMMMMMMMMMMMMMMMeMeMMMMeMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMeMeMMMMMeMMeMMMMMMMMMMMMMMMMMMMeMMeMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMeMMMMMMMMMMeMMMMMeMeMMMMMMMMMMMMMMeeeeeeeeeeeeeMMMMMMMMMMMMMMeeeeeeeeeeeeeMMMMMMMMMMMeeeeeeeeeeeeeeeeMeMMeMMMeeeeeeeeeeeeeeeMMMMMMMeMeeeeeeeeeeeeeeeMMeMMeeeeeeeeeeeeeeMMMMMMMMeeeeeeeeeeeeeeMMMMMeMeeeeeeeeeeeMeMMMeeeeeeeeeeeMeeMMMMMeeeeeeeeeeMMMeeMMeeeeeeeeMMeeeeeeeMeeM dddddddddddídíííddddddddddídídíííídddddddddddídííííídíddddddddddddddííííííííííddddddddddddííííííddddddddddddddídíídíídíííííííddddddddddddddíííííííííídddddddddddddddíddííííííííííddddddddddddddddííííííííííddddddddddddddddíííííídídííídddddddddddddddddíííííííííídddddddddddddídíddíííííííííddddddddddddddddídddíííííííídddddddddddddddíííííííííídddddddddddddddííííííííddddddddddííííííídííddddddddííídíííííídddddddddddddííííííííííddddddddddddddddíííííííííííddddddddddddddííííííííídddddddddddddííííííídddddddddddíííííííddíddddddíííííííídddddddíííííddddddddíííddddddííííííííddddddííííííoccccccccccooooooccooooooooooooooccccooooooocoooooooooocccccccoooooooooooooocccccccooooooooooooooocccccccccoooooooooooooocccccccoooooooooooooccccccccccooooooooooooooccccccccccoooooooooooooooccccccccccooooooooooooooccccccccccooooooooooooocccccccccocccccooooooooooooooocccccccccccooooooooooooooocccccccccccccoooooooooooooccccccccccccooooooooooooooocccccccccccccccooooooooooooocccccccccccccccocoooooooooooooooccccccccccccccooooooooooooooocccccccccccccoooooooooooooocccccccccccccccccoooooooooocccccccccccreeeeereerrrrrrrrrrrrreeerrrrrrrrrrrrrrreeeeeerrrrrrrrrrrrrreeeeeerrerrrrrrrrrrrereeeeeerrrrrrrrrrrreeeeeeeeerrrrrrrrrrrreeeeeeerrrrrrrrrreeeeeerrerrrrrrrrreeeeeeeerrerrrrrreeeeeeeerererrrrrreeeeeeeerrrrrrreeeeeeererrrrrreeeeeeerrrrrreeeeerrrrrreeeeeeeerrrrreeerrrrrrreeeerrrrrrreeeeerrrrrrrrreeeeerrrrrrrrreeeeemmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Se não fosse a crise, Aloe Blacc nunca

teria despido o seu fato de

executivo e vestido

a roupa do músico que

precisa de um dólar

Os MGMT chegam à

Queima do Porto já com o novo disco na

cabeça

COCHAISEAO VIVO

06/05 SEX 22H00 LEIRIASHOPPING

ENTRADA LIVRE

Page 45: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 45

Clássica

Revoluções americanas A Orquestra Sinfónica do Porto e o Remix Ensemble cruzam John Zorn e Frank Zappa com Varèse e John Cage. Cristina Fernandes

Remix Ensemble e Orquestra Sinfónica do PortoDirecção Musical de Jonathan Stockhammer, Emilio Pomàrico.Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho de Albuquerque. Hoje, às 21h. Tel.: 220120220. 10€.

Porto. Casa da Música - Sala Suggia. Pç. Mouzinho de Albuquerque. Amanhã, às 18h. Tel.: 220120220. 10€.

No ano em que os EUA são o país-tema da Casa da Música, o ciclo Música e Revolução não podia deixar passar em branco o contributo americano nas transformações das linguagens musicais do século XX. Espaço privilegiado do cruzamento de géneros e tendências diversas, a América foi para muitos compositores um símbolo de liberdade, um território por explorar sem os constrangimentos do peso da tradição europeia. No texto introdutório ao ciclo, o director artístico da Casa da Música, António Jorge Pacheco, recorda um episódio bem emblemático dessa atitude. Quando um compositor europeu disse a John Cage que devia ser “muito difícil compor na América, estando tão longe dos centros de tradição”, este retorquiu: “Deve ser muito difícil compor na Europa, estando tão perto dos centros de tradição!”

Depois das actuações de Ursula Oppens e de Elliot Sharp, a Orquestra Sinfónica do Porto (dirigida por Emilio Pomàrico) e o Remix Ensemble (sob a batuta de Jonathan Stockhammer) apresentam este fim-de-semana dois programas que culminam com a estreia em Portugal da versão de 1922 de “Amériques”, de Edgard Varèse, a primeira obra criada pelo compositor francês em território americano e um exemplo dessa metáfora de liberdade e da exploração de novos mundos.

Destinada a uma formação instrumental de dimensões descomunais, a peça exige a participação de mais de 145 músicos.

Varèse teve uma influência marcante no percurso dos fundadores da Escola de Nova Iorque, nomeadamente em John Cage e Morton Feldman, e foi também um ídolo para Frank Zappa desde a sua juventude. Por seu turno, Feldman deixou a sua marca em John Zorn. A música destes vários autores cruza-se hoje (às 21h) e amanhã (às 18h) num mosaico fascinante de cumplicidades. No concerto desta noite, o Remix interpreta “For Your Eyes Only”, de Zorn, em conjunto com alguns excertos de “Yellow Shark”, de Frank Zappa, e a Sinfonia nº2, de George Brecht (1926-2008), irreverente músico e artista plástico americano que muito admirava Cage. Na segunda parte, a Sinfónica do Porto apresenta “Coptic Light”, de Feldman, e volta a subir ao palco amanhã para interpretar “Amériques”, de Varèse, após duas obras de John Cage (“Credo in US” e “Concerto para piano preparado e orquestra de câmara”, com Rolf Hind como solista) a cargo do Remix.

Reflexões para viola de arco

Gilad Karni e Orquestra Metropolitana de LisboaDirecção Musical de Lior Shambadal.Lisboa. Reitoria da Universidade Nova. Campus de Campolide. Hoje, às 21h. Tel.: 213715600.

Mafra. Palácio Nacional de Mafra - Sala Elíptica. Terreiro de Dom João V. Amanhã, às 22h. Tel.: 261817550.

Obras de Mozart, Britten, Hummel e Mendelssohn

O programa dos próximos concertos da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML) combina uma obra célebre do repertório oitocentista (a Sinfonia n.º 3, Op. 56, “Escocesa”, de Mendelssohn) com uma série de páginas mais raramente ouvidas, não obstante as suas inspiração musical e qualidade artística. Os primeiros andamentos da música de bailado da ópera “Idomeneo”, de Mozart — frequentemente suprimidos nas actuais apresentações cénicas — precedem duas peças de épocas diferentes em que a viola de arco assume o papel protagonista: a inspirada Fantasia em Sol menor, de Jan Nepomuk Hummel, compositor e pianista virtuoso contemporâneo de Beethoven, e “Lachrymae: reflexões sobre uma canção de John Dowland”, op. 48, de Benjamin Britten. Esta última é constituída por uma série de variações livres sobre a canção “If my complaints could passions move”, mas apresenta também citações de outras

melodias célebres de Dowland como é o caso de “Flow My Tears”. Escrita em 1950 numa versão para viola e piano e dedicada ao grande violetista William Primrose, seria orquestrada por Britten em 1976, cerca de um quarto de século depois da estreia. No concerto da OML será solista o violetista Gilad Karni, actual chefe de naipe da Orquestra da Tonhalle de Zurique e detentor de uma bem-sucedida carreira internacional que inclui numerosas actuações a solo, com orquestra e no domínio da música de câmara. A direcção musical estará a cargo do maestro e compositor israelita Lior Shambadal, titular da Orquestra Sinfónica de Berlim desde 1997 e director musical da Orquestra Filarmónica de Bogotá desde 2009. C.F.

Os Clã para o menino e para a menina em

Lisboa e no Porto

Gilad Karni com a Orquestra Metropolitana de Lisboa

Frank Zappa

Sexta 29Tim HeckerLisboa. Galeria Zé dos Bois. R. Barroca, 59, às 23h. Tel.: 213430205.

Sábado 30Loveless feat. Nana KitadeLisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24, às 23h. Tel.: 213430107. 18€.

Peixe: AviãoFamalicão. Casa das Artes - Grande Auditório. Pq. de Sinçães, às 21h30. Tel.: 252371297. 8€.

Domingo 1Requiem for a Dying PlanetDirecção de Ernst Reijseger. Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho de Albuquerque, às 19h. Tel.: 220120220. 5€.

Quarta 4Chain & The GangLisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24, às 22h30. Tel.: 213430107. 8€.

Abe Vigoda + EvolsPorto. Plano B. R. Cândido dos Reis, 30, às 23h. Tel.: 222012500. 10€ a 12€.

Quinta 5Paolo Conte BandLisboa. Centro Cultural de Belém. Pç. Império, às 21h. Tel.: 213612400. 15€ a 60€.

Yann TiersenLisboa. LX Factory. Rua Rodrigues Faria, 103, às 21h30. Tel.: 213143399. 25€.

Vladislav Delay QuartetLisboa. Teatro Maria Matos. Av. Frei Miguel Contreiras, 52, às 22h. Tel.: 218438801. 6€ a 12€.

Ursula RuckerLisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24, às 23h. Tel.: 213430107. 12€.

Gala Drop + Jamie XXLisboa. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique - Armazém A, às 23h. Tel.: 218820890. 12€.

Abe Vigoda + The Glockenwise

Lisboa. Galeria Zé dos Bois. R. Barroca, 59, às 22h. Tel.: 213430205. 8€.

Agenda

Conte

Galeria ois. oca, 59,Tel.:

0205.

CCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCCConnntteePaolo Conte

or,

ta

a da

Lisboa. Lux FrágArmazém A, às 2

Abe VigoGlo

LisZRà

Yann Tiersen

AN

A L

UA

ND

INA

MARIONETAS

w w w . a r t e m r e d e . p t | w w w . b l o g . a r t e m r e d e . p t© invisibledesign.pt | © fotografia Jesús Peña

��������������� ��� ����� �����

��������������������� ������

������������������

������ ��!����������� �������������������������

�"������#$���%�������� ���������������������"�������&����

�'�"(�� ������

�"�������)*��+�������� ������

�������������������

65 MIN. S/ INTERVALO M/16 ANOS

a p o i op r o d u ç ã o c o - p r o d u ç ã o

10 ABR » 22 MAIMOSTRA DA

MARIONETA ‘11MOSTRA DAMARIONETA

10 ABR » 22 MAI ‘11

Page 46: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

46 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

tratarem as guitarras como se pudessem fazer as vezes de toda uma orquestra. Foi uma virtude do rock menos alinhado nas duas últimas décadas: deu a sensação de que estava a crescer até esbarrar e assimilar/ser assimilado pelas gentes clássicas. Mas aquilo que Tiago Sousa faz não é rock. Não é tão fácil assim de explicar.

Entra o piano em modo circular, ouvidos à escuta para decidir se é erudito ou popular, uma melancolia fina que não ajuda à categorização e que exige uma audição impoluta, sem que etiquetas de uso corrente criem ruído e distraiam do essencial. E Tiago Sousa vai alimentando estes círculos até se transformarem noutros, trazendo à baila Debussy, mas também Bernardo Sassetti (de “Ascent”), em temas instrumentais desacelerados, belos e dolentes, e até em hipnóticas evocações indianas. Depois vêm clarinete e percussões, camadas que se vão avolumando sem que a música ganhe peso ou robustez. Permanece delicada e tímida, ao mesmo tempo que exigente e segura. Tiago Sousa faz isto como se não pudesse fazer outra coisa, como se a música não pudesse ser senão esta, como se cada nota tivesse demorado vários anos a procurar o melhor sítio onde se enfiar e daí se recusasse a sair.

Com isso, concretize-se, ganhámos uma das melhores surpresas do 2011 musical. E não custa a imaginar que, depois de editado internacionalmente pela norte-americana Immune, em Maio, o nome vulgar de Tiago Sousa passe a equivaler a um exótico sinónimo de música obrigatória um pouco por todo o mundo – onde houver um piano e não existir uma pauta.

Um encontro admirável

Afonso Pais / JP SimõesOnde Mora o MundoOrfeu; distri. Movieplay

mmmmn

“Onde Mora o Mundo” é o álbum de um encontro anunciado. Afonso Pais, músico jazz que

não pode ser etiquado “apenas” como tal, e director musical de JP Simões nos últimos anos, e JP Simões ele mesmo, o homem da palavra arguta e melancolicamente acutilante que nos ofereceu em “1970”, e no “Exílio” do Quinteto Tati, e nos Belle Chase Hotel antes de tudo isso, uma forma de olhar o país e o mundo em volta como poucos fizeram desde os tempos gloriosos da década de, precisamente, 1970.

“Onde Mora o Mundo”, encontro entre dois amantes do jazz e do balanço cheio de vida da bossa e do samba como explicado por Buarque ou Jobim, é um disco fascinante. A sensibilidade, justiça e liberdade musical de Afonso Pais, reunida à sabedoria que tudo enriquece de Carlos Barreto e Alexandre Frazão (a secção rítmica), servindo as palavras e a capacidade para pôr em cena de JP Simões, cantor “da melancolia / do abandono / que nos diz que o amor só é aqui / na poesia” (ouvimo-lo em “Canção de Esquina”, marcada pela leveza tocante do sax soprano de Perico Sambeat, sopro capaz de nos reconciliar com a vida).

“Onde Mora o Mundo” é JP Simões cantando do mesmo lugar. Versando o amor que teima em não se concretizar como o romantismo exige, a criminosa crueldade do mundo dos nossos dias, desta vez em modo pesadelo regenerador (há uma “Marcha dos implacáveis” caminhando sobre São Bento, um “carnaval de horrores” gritando “mata, esfola, mata, esfola”) e cantando-se a si próprio como só os grandes o sabem fazer: ou seja, incluindo-nos naquilo que canta, tornando-nos reconhecíveis no “Caro comparsa”, dueto vocal com Afonso Pais, que é esse outro de nós que “humilha o meu amor” e que “vilipendia a minha paz”, que “faz tudo o que não sou capaz”. A direcção musical de Afonso Pais transforma esse lugar em algo diverso, com as cordas caindo em lamento romântico nessa “Dorinha (Pequena dor)” que quase diríamos música de câmara para o baladeiro amante da dor de viver, com o contraponto dos metais que dão riqueza jazz a “Onde mora o mundo”, com o aroma brasileiro que inspira esse “Caro comparsa” que não é brasileiro, que é Afonso Pais e JP Simões encontrando-se em voz e em música numa das melhores canções do álbum.

Aquelas são as primeiras três canções do álbum, porta de entrada

perfeita num disco em que a marca autoral de JP Simões, aquilo que o tornou um imprescindível na música portuguesa da última década, descobre um parceiro que o serve da melhor forma possível: inscrevendo também a sua assinatura, indelével, em música que reflecte, sem subterfúgios e tão crente na poesia, no amor e no sonho, quanto na impossibilidade de tudo isso, o correr destes e de todos os dias. M.L.

O regresso do agitador Svenonius

Chain & The GangMusic’s Not For EveryoneK Records; distri. Popstock

mmmmn

A proclamação é forte porque se está a borrifar para o politicamente correcto. A proclamação tem

impacto porque não segue as regras oficiais do protesto. Ian Svenonius, o guru desalinhado do underground rock’n’roll americano, o provocador que criou o “13-Point Plan to Destroy America” em 1991, nos Nation Of Ulysses, e que utilizou o palco como púlpito de onde gritava o “gospel ye ye” dos Make Up, banda fulcral da segunda metade da década de 1990, este Ian Svenonius de fato sempre elegante e verve inflamada, fundou depois dos Make Up os Weird War, combo rock progressista por onde passou Neil Michael Hagerty, ele dos Royal Trux, e chegou agora a isto: aos Chain & The Gang que proclamaram primeiro “Down With Liberty” (falavam tanto da liberdade exportada em bombardeiros para o Iraque e para o Afeganistão, como da liberdade totalitária exposta em multiplexes enxameados de blockbusters) e que, dois anos depois, em 2011, se lançam em nova

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Dis

cos

Pop

O sítio certoLonge das academias e das cantorias, vinca com firmeza o seu percurso vagamente insólito. Gonçalo Frota

Tiago SousaWalden Pond’s MonkImmune; distri. Mbari

mmmmn

Um piano nas mãos de um leigo é, regra geral, visto como um elemento potencialmente hostil. Ou se trata

de alguém devidamente validado para lhe percorrer as teclas – e para isso existem escolas clássicas e de jazz – ou então o instrumento é visto quase como capricho de cantores com egos obesos, inebriados pela formulação matemática que diz que sentarem-se naquele banco preto e pousarem as mãos no teclado confere automaticamente prestígio, seriedade e relevância. É quase como um atestado de dignidade e maioridade musical: tocar piano é sinal de distinção, e ninguém pode alegadamente ser medíocre depois de por ali passar até a canção mais tenebrosa do mundo.

O novo disco de Tiago Sousa – longe das academias e das cantorias – vinca com firmeza o seu percurso

vagamente insólito. Compositor tardio ao

piano, Tiago não esconde as referências da música erudita ao mesmo tempo que parece herdeiro

do universo experimental do rock –

quando as bandas

percebem que podem ser

ambiciosas nas suas intenções de

composição sem com

isso

A marca autoral de JP Simões descobre em Afonso Pais um parceiro que o serve da melhor forma possível

vagamente insólito. Compositor tardio ao

piano, Tiago não esconde as referências damúsica eruditaaoa mesmo ttempo queparece herdeiro

do universo experimentaldo rock –

quando asbandas

percebem quepodem ser

ambiciosas nas suas intenções de

composiçãosem com

isso

Uma das melhores

surpresas do 2011 musical

Page 47: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 47

canções. Não satisfeito, tornou as coisas ainda mais difíceis e escolheu apenas tempos médios/lentos para os temas a tocar. Para o acompanhar, escolheu três músicos superlativos, bem mais experientes do que ele: o pianista Frank Kimbrough, o contrabaixista John Hébert e o baterista Matt Wilson. O resultado – um jazz simultaneamente clássico e aberto, muito elegante e invulgarmente contido - seduz-nos desde as primeiras notas, afirmando-se como paradigma de um cool jazz para este novo século. Ecos de Joe Henderson ou Dewey Redman (som e fraseado) relembram-nos a relevância dos clássicos criativos na história do jazz – músicos que realizam um equilíbrio vibrante entre a tradição e os valores da contemporaneidade. Num extremo oposto à “fire music”, aqui tudo parece metodicamente ponderado. Tão ponderado e deliberado que acabamos por retirar enorme prazer dos detalhes de cada nota, de cada movimento musical.

Com um elevado rácio de comunicação colectiva, intensa e bem calibrada (Hébert e Wilson acompanham de perto o saxofonista, não deixando de realizar a sua própria “dança”), “Before the Rain” arranca com enorme eloquência, numa versão de apenas dois minutos de “Where or When”, tema clássico de Rodgers and Hart. Quando os músicos atacam “Quickening”, da autoria de Kimbrough, já a música nos envolveu por completo – e ainda estaria para vir, entre quatro originais de Preminger, um outro de Kimbrough e duas versões, a brilhante metamorfose de “Toy dance”, de Ornette Coleman.

provocação: “Music’s Not For Everyone”. Porque não é.

Tal como Svenonius entende a música e a cultura popular, o rock’n’roll deve ser algo que tenha verdadeiro impacto e que revele um qualquer potencial transformador, deve ser mais que comodidade assemelhada ao micro-ondas e ao plasma exibido com orgulho na sala. E por isso Svenonius, cantor intempestivo, homem da palavra falada sardónica, canta “It’s a hard job keeping everybody high” (e é novamente da “exportação de liberdade” que fala), canta que “Bo Diddley” e “Duke Ellington” e “Ludwig Van Beethoven” não são para toda a gente. Fá-lo nuns Chain & The Gang onde o espírito contestatário do punk de Washington (Calvin Johnson, fundador da K Records, é produtor do álbum) é vertido em r&b agreste, fá-lo em diatribes musicais vociferadas em garage elegante, em dueto rapaz/rapariga com com um título brilhante como “For pratical reasons (I love you)” ou em mantras psicadélicos danificados (“Music’s not for everyone”).

Na entrevista que nos deu, e que será publicada no P2 no dia do concerto que trará os Chain & The Gang ao Musicbox, em Lisboa, no dia 4 de Maio, o vocalista/agitador Ian Svenonius, rei da metáfora inflamada, comparava o impacto da sua música com a “punchline” de um bom comediante “stand up” (lembrámo-nos de Bill Hicks). Não pelo potencial cómico, entenda-se mas pela capacidade de apresentar uma ideia de um ponto de vista surpreendente, desligado da castradora moralidadezinha que subverte o verdadeiro diálogo e impede a provocação.

Em “Music’s Not For

Everyone”, a banda mais

inspirada

de Svenonius desde os imprescindíveis Make Up, Ian Svenonius, o herói underground, reencontra o equilíbrio perfeito entre um discurso activista único e música que é tanto acto de resistência como urgência irreprimível. Não, não é para todos. M.L.

Clássica

A jovem consagraçãoEquilíbrio é a palavra de ordem numa interpretação neo-clássica de Rachmaninoff, na qual Yuja Wang alcança a consagração sob a direcção de Claudio Abbado. Rui Pereira

RachmaninoffVariações sobre um tema de Paganini; Concerto nº 2Yuja Wang, pianoClaudio Abbado, direcção musicalMahler Chamber Orchestra DG

mmmmn

Esqueçam o Lang Lang e os seus malabarismos inconsequentes. Yuja Wang está num outro campeonato de

qualidade artística e sofisticação interpretativa, dando provas de um novo patamar na evolução da destreza técnica humana. Com apenas 23 anos, a pianista chinesa lança o seu terceiro álbum para a prestigiada Deutsche Grammophon. Após dois impressionantes registos a solo, os quais revelaram uma técnica

estonteante e capaz de levar um melómano a questionar a sua consciência do possível, Wang veio agora confirmar a sua mestria ímpar numa

gravação ao vivo de duas obras-primas de Rachmaninoff, as Variações sobre o tema Paganini e o 2º concerto para Piano e Orquestra.

Foi Claudio Abbado que a escolheu e o

célebre maestro já só grava na companhia de raros eleitos. Isso já é revelador do reconhecimento desta jovem pianista que não só conquistou o exigente público do Festival de Verbier bem como os artistas que lá se apresentam e a sua

directora artística, Martha Argerich, que querem fazer música com Yuja Wang. Com uma agenda preenchidíssima, até pelo recente regresso aos palcos da China que já não pisava desde que tinha partido há largos anos para estudar nos EUA, Yuja Wang tem também um vasto repertório a solo, em música de câmara e com orquestra.

O público de Lisboa já teve a oportunidade de a escutar no Grande Auditório da Gulbenkian, em 2010, e quem quiser ser confrontado com a sua destreza ímpar pode ir ao youtube ver e ouvir a sua interpretação ao vivo do “Voo do moscardo”, tocado como encore em Verbier. No presente CD, Yuja Wang oferece uma interpretação electrificante das obras de Rachmaninoff, mostrando originalidade de pensamento sem o tipo de excentricidade com que alguns pianistas destroem o sentido musical. Num pianismo cintilante, cristalino e muito dinâmico, o que mais impressiona é a sintonia com uma Orquestra de Câmara Mahler coesa e com uma sonoridade envolvente e de grande coesão entre naipes. Alcançando um equilíbrio mais neo-clássico do que um furor romântico que geralmente se associa a estas obras, esta é uma boa escolha num repertório, apesar de tudo, saturado de boas propostas.

Jazz

O jogador de xadrezRegisto focado nos tempos lentos e nas baladas, “Before the Rain” é um enorme triunfo na arte de tocar com contenção e elegância. Rodrigo Amado

Noah PremingerBefore the RainPalmetto

mmmmn

O saxofonista tenor Noah Preminger tem apenas vinte e poucos anos, mas as ondas provocadas pelo

seu talento já se fazem sentir desde 2008, altura em que gravou e editou o primeiro álbum, “Dry Bridge Road”. Considerado desde então um

dos nomes a seguir da nova geração de jazzmen norte-

americanos, aborda este segundo registo com o espírito de um experiente jogador de xadrez; imaginação, perspicácia e toda a calma do mundo. Depurou o som e conceito anteriormente apresentados e focou-se na essência das

Noah Preminger:

imaginação, perspicácia e toda a calma

do mundo

do que u u oalmente bras,

oad Co s de ado dedos nomes a segui

geração de jazzamericanos,

segundo regespírito deexperientxadrez; iperspicácalma doDepurouconceitoanteriorapresense na es

pdestreza técniapenas 23 anolança o seu terprestigiada DeApós dois impsolo, os quais

estonteum mesua coWang sua m

gravobRVVP

quecélebrna coeleitodo rejovemconqpúblVerbartisapr

p p çEm “Music’s

NoNot For EvE eryone”, a

banda mais inspirada

Ian Svenonius, o herói underground, reencontra o equilíbrio perfeito entre um discurso activista único e música

Wang confi rma a sua mestria ímpar numa gravação ao vivo de duas obras-primas de Rachmaninoff

Page 48: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

48 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

pelas personagens secundárias – visível quando, mais à frente, um homem garantir que escapou três vezes à morte porque tem garganta de tubarão.

Estas qualidades seriam suficientes para contar uma boa história, mas o livro arrisca pela memória do país adentro e gradualmente vai-se tornando um trabalho sobre a identidade, a memória, a distância entre o país rural e o país urbano, o pré e o pós-25 de Abril.

Narrado por um adolescente obeso, enamorado de uma vizinha anoréctica que partilha com ele o amor por bandas aproximadas do metal, o romance começa a convencer ao conseguir encontrar uma voz credível para este moço. Intuímos que por trás dos seus demónios está uma fractura que reside na família – Machado, com maturidade, não mostra a “falha” familiar de forma pornográfica, antes acumula pequenos indícios.

A narrativa principal surge por elipse, quando o miúdo recorda a vinda do avô paterno de Lagares para Lisboa, contra a vontade do próprio pai. O avô é o elemento disruptor: tem dedos a menos numa mão, diz palavrões, não respeita as regras da casa, conta histórias de sangue e terror. Este avô exerce um imenso fascínio sobre o neto, que assume a dor que este carrega. Quando o avô desiste da sua vingança e passa os dias a ver telenovelas (delicioso humor cruel), o neto está pronto a, por assim dizer, dar à narrativa do avô um fim digno.

Tudo se reporta ao tempo da outra senhora, na altura em que o avô estava noivo. Na madrugada do seu casamento, acorda com o barulho de tiros – um suposto (é essencial notar que tudo neste romance é “suposto”) bando de guerrilheiros da Guerra Civil de Espanha que se havia acantonado junto à sua aldeia estava a ser atacado pela polícia. O irmão do avô passara a noite com uma das raparigas do ajuntamento, facto que foi transmitido às autoridades de forma deliberadamente deturpada – e em vez do irmão é ele que é enclausurado. Este é apenas o primeiro de um conjunto de acasos rocambolescos (quando não doentios) que atiram o avô para um vida de desgraças consecutivas.

Machado, escritor consciente das tramóias da arte da narrar, sabe que tem de haver uma justificação para o neto nos contar a história do avô, pelo que cria um “motivo”, o mais óbvio e eficaz deles: a necessidade que o neto sente de reportar a verdade à ex-noiva do avô. Ao contar o passado do avô, o neto dá-nos, para cada facto, as várias versões que correram na época: a do avô, as que iam na boca do povo, as que ficaram registadas em livros oficiais (como os da polícia).

É aqui que o livro se torna maior: o neto “herda” a maldição do avô,

torna-a sua. No entanto, o que ele toma como seu é um pedaço de história visto pelos olhos do avô (que podem muito bem distorcer o real). Pelo que nunca sabemos exactamente onde reside a verdade.

Há uma espécie de moral triste nisto: a nossa identidade é o rosto que as nossas memórias desenham; e no entanto somos capazes de escolhê-las, distorcê-las ou até de “viver” as dos outros e assim transformar os contornos do Eu.

(Se isto fosse geometria poderíamos chegar a um corolário: qualquer vitória que obtenhamos sobre o passado é uma vitória ilusória; a vitória só deve ser procurada em nome do futuro. Mas, curiosamente, isto não é geometria.)

Há algo de profundamente humano nesta história de pides e fascismos, de amores e azares, de como se perde uma vida lá onde as cabras pastam e tantos anos depois se influencia o futuro de um neto. Algo que está para lá de técnicas de escrita, algo que – temo – o país que aqui está retratado não terá tempo nem paciência para olhar com atenção.

A história do renegadoPadura nunca perde de vista a realidade. Unindo várias pontas soltas, sobra pouca ficção. Eduardo Pitta

O Homem que Gostava de CãesLeonardo Padura(Trad. Helena Pitta)Porto Editora

mmmmn

“O Homem que Gostava de Cães” são três homens: Leon Trótski, Ramón Mercader e Leonardo Padura. Trótski (1879-1940), o poderoso Comissário de

Guerra que Estaline expulsou do Partido em Outubro de 1927. Mercader (1914-1978), o catalão que assassinou Trótski a soldo da polícia secreta soviética. Padura (n. 1955), o cubano que escreveu este épico de recorte contemporâneo.

Padura é conhecido em todo o mundo como criador do detective Mário Conde, protagonista de novelas policiais de grande sucesso. Em Portugal estão traduzidas todas: a tetralogia “Cuatro estaciones” (1991-1998) e duas posteriores. Mas é também o autor de uma extraordinária biografia do poeta José María Heredia, “Romance da

Minha Vida” (2005). Agora, com “O Homem que Gostava de Cães”, título que foi buscar a Chandler, refaz a história de um dos crimes mais hediondos do século XX. Nada menos do que uma viagem ao fundo da perversão da grande utopia comunista. Nem sequer é o primeiro a interessar-se pelas circunstâncias da morte do fundador do Exército Vermelho e, em particular, pela enigmática figura do seu assassino. Um bom precedente é “A Segunda Morte de Ramón Mercader”, que o espanhol Jorge Semprún publicou em 1969. Pela mão de Losey, o cinema também pegou no tema.

Sem perder de vista a realidade, Padura manipula a ficção de modo a unir as pontas soltas da narrativa histórica, oficial ou oficiosa, do assassinato. Para tanto, intercala o tempo discursivo: prisão, desterro, fuga e exílio do dissidente bolchevique (Cazaquistão, Turquia, França, Noruega e México); o plano da NKVD, a poderosa polícia de Estaline, para o eliminar; bem como o “work in progress” do manuscrito de Iván Cárdenas Maturell (o narrador), síntese das confidências que Jaime López (o homem que gostava de cães) lhe fez durante 14 anos. Resultado: uma “história revulsiva de ódio, engano e morte”, tendo como balizas Alma-Ata e Coyoacán.

É esse livro-a-haver que permite estabelecer o fio da intriga. Ao mesmo tempo que dá espessura à personalidade de Mercader, faz luz sobre a biografia do próprio Padura: “Lembro-me de que saí daquele gabinete com uma mistura imprecisa e pastosa de sentimentos (confusão, desassossego e muito medo) mas, sobretudo [...] o que aconteceu na realidade foi que me lixaram para o resto da minha vida, porque [...] saí dali profundamente convencido de que o meu conto nunca devia ter sido escrito, que é o pior que podem levar um escritor a pensar.”

Contrariamente a Trótski, objecto de centenas de estudos, a vida do seu assassino continua marcada por zonas de sombra. Para aceder a uma parte da verdade, “O Homem que Gostava de Cães” exigiu muitos anos de “reflexão, leitura, investigação, discussão e, sobretudo, de assombro e horror”. Marxistas ortodoxos e anticastristas credenciados uniram-se na geral condenação desta saga de amor, loucura e morte. Não é difícil perceber o incómodo. O livro é um permanente jogo de espelhos entre a URSS dos anos 1920-30 e a falência do modelo cubano, ilustrada de forma eloquente pelo fracasso da Apanha da Cana de 1970. A quota autobiográfica irrita sobremaneira os detractores de Padura.

E Trótski com isto? O rival de Estaline, o renegado dos catecismos, não viveu em Cuba, mas no México, onde desembarcou em Janeiro de

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Liv

ros

Ficção

O buraco da memóriaMais do que uma boa história, um livro que se arrisca pelo passado do país.João Bonifácio

Deixem Falar as PedrasDavid MachadoDom Quixote

mmmnn

De cada vez que pegamos num romance, é sabido, estabelecemos um acordo tácito com o autor: suspendemos a descrença e aceitamos o faz-

de-conta. Pelo que as melhores aberturas são, por norma, aquelas em que nem sequer nos lembramos de que há esse acordo e simplesmente avançamos.

Nisso, “Deixem Falar as Pedras”, terceira obra e segundo romance de David Machado, é exemplar: à primeira frase – um simples “As minhas mãos apertam o pescoço do António com força e imediatamente me lembro de uma das histórias do meu avô” – sucumbimos à tentação normalmente atribuída apenas a porteiras mas omnipresente na raça humana: saber o que está a acontecer na vida dos outros.

Reparem na seguinte sequência. A terceira frase do primeiro parágrafo é: “Sinto o sangue do António vibrar-me nos dedos, da mesma forma que um dia o inspector Dias sentiu o sangue grosso do meu avô pulsar-lhe através da pele”. No segundo

parágrafo, o narrador afiança que “nem sequer devia estar” ali, porque regra geral àquela hora vai “ao quiosque em frente da escola consultar as páginas da necrologia nos jornais”, justificando assim o hábito: “Depois daquilo que aconteceu ao meu avô (por minha causa) é o mínimo que posso fazer”.

Percebemos que a voz é de um adolescente, queremos

saber por que raio está a apertar o pescoço ao António e o

que é que isso tem a ver com o avô e porque é que o narrador diz que o que aconteceu ao avô é culpa sua.

A primeira grande mais-valia de “Deixem Falar as Pedras” reside aqui: uma consciência apurada dos efeitos de narrativa e do “timing” de distribuição da informação, do valor das micro-histórias e do respeito

Uderzo, o criador, com Goscinny, das aventuras de Astérix, doou à Biblioteca Nacional de França (BNF) um conjunto de 120 originais daquela banda-desenhada. Apresentado ao mundo em 1959, o guerreiro gaulês

viria a protagonizar 32 aventuras. As pranchas agora depositadas na BNF dizem respeito às duas primeiras, “Astérix, o Gaulês” e “A Foice de Ouro”, assim como ao último álbum produzido a quatro mãos antes

da morte de Goscinny, “Astérix entre os Belgas”. A biblioteca já anunciou que irá festejar a doação com uma grande exposição dedicada a Astérix.

Doação

pelascção

D

minhas Antóniome lembmeu avônormalmporteirahumanana vida

Reparterceiraé: “Sintome nos um dia osangue através

parágr“nemporq“aoconj

saaper

que é qporque que aco

A prim“Deixemuma conde narradistribudas mic

RU

I G

AU

NC

IO

David Machado retrata em “Deixem Falar as Pedras” um país que talvez não tenha tempo nem paciência para olhar com atenção para o seu retrato

Page 49: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 49

1937, mesmo sabendo que “o perigo que a sua vida correria nesse país seria tão grande como o de dormir nu na costa do fiorde gelado de Hurum.” Ali fez amizade com Diego Rivera, amou Frida Kahlo e criou os fundamentos da IV Internacional. Quem de facto viveu em Cuba foi Mercader. Após 20 anos de prisão na Cidade do México, foi a Moscovo (1961) receber a medalha de Herói da União Soviética, radicando-se no ano seguinte em Havana.

Terá sido para evitar querela historiográfica que Padura meteu a biografia de Trótski (e, por extensão, a de Mercader; ou, se preferirmos, de Jacques Mornard, a identidade que assumia perante conhecidos e autoridades) num romance sobre a revolução cubana? Facto é que o extenso inventário de peripécias biográficas em torno de Trótski e Mercader obnubila a ficção. O mesmo se diga do perfil da mãe do assassino: drogas, prostituição, militância política, etc. Na estrutura narrativa, Caridad é a pista dos avanços e recuos dos antifranquistas (e, em consequência, de como Estaline deixou cair a República espanhola).

Sob a crosta da História, numa hábil “acumulação de lembranças e de culpas”, Padura escreve o guião de uma vingança pessoal. Rindo do veredicto da Comissão Dewey, que considerou fraudulentos os processos de Moscovo (assim absolvendo Trótski), Estaline, que não tinha pressa, esperou pelo dia em que Mercader fizesse o que o mandaram fazer. Em Coyoacán, no dia 21 de Agosto de 1940, a picareta do filho de Caridad abriu o crânio de Trótski em dois.

Biografia

De Deus, só a palavraO realizador de “Robocop”, Paul Verhoeven, dá-nos um Jesus humano, demasiado humano. Rui Catalão

Jesus de NazaréPaul Verhoeven(Trad. Arie Pos)Guerra e Paz

mmmmm

Paul Verhoeven (Amesterdão, 1938) deve a sua notoriedade ao período em que trabalhou em Hollywood, onde realizou três filmes de grande sucesso

(“Robocop”, “Instinto Fatal”, “Desafio Total”), duas super-produções (“Soldados do Universo”, “O Homem Transparente”) e um filme de culto (“Showgirls”). Em 1986, começou a assistir às conferências do Jesus Seminar, constituído por 77 professores catedráticos de teologia, filosofia, linguística e história da bíblia. Tornou-se membro com direito de voto e participou nas reuniões durante 20 anos. O objectivo inicial era preparar-se para fazer um filme sobre o Jesus histórico – afinal escreveu este livro, em colaboração com o seu biógrafo, Rob van Scheers.

Segundo Verhoeven, no cinema “não houve ninguém que quisesse retratar Jesus apenas como homem”. Pasolini “encontrou uma solução simpática” entre uma interpretação literal do evangelho de Mateus e um olhar marxista; quanto ao “filme de terror” de Mel Gibson, “conta-nos tudo sobre Mel Gibson, mas absolutamente nada sobre Jesus”.

“Jesus de Nazaré” resulta de um trabalho de depuração entre o que é o material histórico e o material teológico-político-literário-linguístico encontrado nos evangelhos. As suas fontes, a sua capacidade de argumentação e de fundamentação e o seu raciocínio céptico são clarificadores, mas é a desconstruir e a remontar a narrativa que tem maior credibilidade. Nela, Verhoeven apresenta um Jesus mais transparente e realista.

O seu “apego à realidade visível” exerce um efeito de gravidade que devolve a história ao plano terreno. Verhoeven compara a rebeldia de Jesus à de Che Guevara e a sua visão à de Van Gogh, encontrando uma série de paralelismos com o político e o artista. O enquadramento sociopolítico da Palestina ocupada em que Jesus se moveu faz entender melhor a agressividade da sua actuação e das suas ilusões quanto ao papel de Deus na transformação do mundo, mas a grande conquista de Verhoeven é a forma como encena o roteiro de Jesus a partir de cenas que nos Evangelhos se encontram em elipse ou trocadas (o Evangelho não sinóptico de João é o que lhe fornece mais dados geográficos).

Quem depende do sagrado para crer em Jesus encontrará neste livro o calvário da sua fé: Maria passa de virgem a grávida em resultado de uma violação, de um adultério ou de um engate; a ascendência de Jesus descrita por Mateus revela heroínas judaicas adúlteras ou promíscuas; ele relaciona-se com prostitutas…

Entre o pacifista que se julgava o mensageiro da vinda do reino de Deus, a figura angustiada com uma missão escatológica, e o rebelde que passou a acreditar na luta armada, aquele que Verhoeven mais valoriza

é o pregador inspirado de parábolas que “abre janelas” para a presença de Deus na terra, e que “foi ocultado do pensamento cristão”.

No capítulo “Jesus, o exorcista”, a iconografia cristã começa a ficar de pernas para o ar. Jesus revela-se irado, severo; bufa, rosna, berra, cospe nos olhos dos cegos para curá-los, “expele os demónios à pancada”. “O comportamento de Jesus nos exorcismos é de tal modo extremo, que a sua família pensava que tinha enlouquecido”. A forma como Verhoeven reinterpreta à luz de um ritual indiano uma história no evangelho de Marcos, de como Jesus tratou um paralítico que entrou pelo telhado, é outra maravilha de engenho interpretativo.

A popularidade do exorcista e orador messiânico fê-lo antipático. Criou inimigos. Alguns desses inimigos, que excluiu do reino de Deus, ainda estão vivos. São os ricos. “Muitos cristãos tentaram inventar uma interpretação que atenuasse a sua essência. Porém, não podem existir dúvidas sobre a autenticidade destas palavras de Jesus: a hipérbole do camelo que tem de passar pelo fundo de uma agulha é tipicamente Jesus, é a sua ‘propriíssima voz’, ipsissima vox.”

O capítulo dedicado a Lázaro é o mais original e comovente. Visualizamos o filme que Verhoeven, com 73 anos, dificilmente fará. A sua tese é que não houve milagre de ressurreição. Sendo informado de que “aquele que amava” tinha sido capturado, Jesus, depois de uma crise de confiança que durou dois dias, decidiu entregar-se para evitar que Lázaro fosse torturado. Acreditava que a sua morte era um plano de Deus, mas “a sua confiança inabalável de que o Reino de Deus se espalhasse a curto prazo por Israel tinha sido desmentida pelos factos”. Foi neste contexto que se deu a última ceia com os 12 discípulos.

Lázaro morreu e Jesus ficou sem razão para entregar-se. “O ‘sinal’ que Jesus pensara enxergar nunca existiu”, “estava abandonado à sua sorte. Tinha de encarar a dura realidade apenas como ser humano. Deus mantinha o silêncio.” Jesus aderiu à luta armada. Por pouco tempo.

A traição de Judas é interpretada como uma invenção que cita o Samuel do Antigo Testamento, com Jesus no papel de David e Judas no de Aitofel (o papel do traidor teria sido uma forma de os evangelistas se vingarem por Judas ter renegado a fé em Cristo; teria sido ainda uma solução de economia narrativa, já que se desconhecia quem entregou Jesus às autoridades).

Quanto aos 12 discípulos, nenhum o acompanhava na noite em que foi capturado! Estava com outros seguidores, armados, e todos foram crucificados. As últimas palavras de Cristo é outro mito que rejeita: “É

Leonardo Padura refaz a história de um dos crimes mais hediondos do século XX, e com isso refaz também a história da União Soviética e da Guerra Civil EspanholaM

AN

UE

L R

OB

ER

TO

L h m e hidaM

AN

UE

L R

OB

ER

TO

��������������� �� � �������������� �� ������������������������������ ���������

����������������� �������������������������������������� ����

Page 50: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

50 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

quem morre. Daí a síntese: “Nunca vi como nesta ilha tão extraordinário sentimento de igualdade. O Corvo é uma democracia cristã de lavradores.”

Trata-se, admito, duma modalidade impura de antropologia, muito embora Brandão não se esqueça de observar tudo o que um bom etnógrafo deve observar: economia, religião, ritos funerários, modos de habitação, vida familiar, relação com o ambiente, linguagem, etc. Não admira: a antropologia foi sempre impura ou, por outras palavras, foi sempre (continua a ser) literária. E aquilo a que chamamos literatura, por sua vez, nunca existiu nem se pôde definir sem a curiosidade extrema pelo sentido da experiência humana. Esse sentido que tanto se exprime nas palavras transcritas do Banzeca da ilha das Flores, “velho desdentado e alegre (…) com a língua salgada como a água do mar” que narra a sua vida de pescador de bacalhau nas costas da América, como em duas páginas notáveis sobre os jardins de Ponta Delgada ou no magnífico capítulo “O Atlântico Açoriano”, que começa com a personificação: “Este oceano tem uma fisionomia concentrada e séria.”

O que há de radical na antropologia de Brandão é esta condução da escrita ao extremo dos seus poderes interpretativos. Nenhuma timidez retórica a falso pretexto de ideais de objetividade científica ou, menos ainda, jornalística. Por isso mesmo, ler estas “Notas e Paisagens” pode ser uma excelente introdução para a descoberta de escritores-viajantes como Ferreira de Castro, Nemésio, Michaux, Segalen, Gauguin, Natália Correia, Jack London ou Jan Morris, na fascinante miríade das suas diferenças. Mas também deveria ser, para os editores e intelectuais portugueses, uma ocasião para finalmente traduzir as obras dos grandes antropólogos-escritores como Malinowski, Raymond Firth, Evans-Pritchard, Margaret Mead, Pierre Clastres ou Philippe Descola.

Para já, quando se anuncia que outra narrativa de Brandão foi adaptada a teatro (por João Brites, o que só faz temer o pior do pior), saboreie-se esta bela reedição das parcialíssimas “Ilhas Desconhecidas” que o viajante dedicou aos seus amigos dos Açores, presume-se que por achar a Madeira “um cenário e pouco mais (…) com desprezo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês”. Talvez a Madeira já não seja hoje esse “país de turismo” que repugnou a Brandão; talvez já nem existam hoje, como escreveu algures Joaquim Manuel Magalhães, os Açores de Brandão. Mas justamente o que será viajar, para nós, modernos, se não for captar da humanidade nem que seja um flash do seu imparável desaparecimento?

Liv

ros aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

uma ideia absurda que alguém, durante um dos mais terríveis suplícios que o homem alguma vez inventou, tenha sido sequer capaz de proferir uma frase inteira.”

Haverá crentes que encontram neste tipo de investigações uma heresia. Ignoram que o maior milagre de Jesus foi o uso que deu à palavra. É esse dom que faz Verhoeven deplorar a veracidade da ressurreição de Cristo. As frases por ele proferidas depois de morrer nada têm a ver com o orador inspirado: “Onde está a acutilância das suas palavras, a perspicácia das suas observações, o humor das suas hipérboles inteligentes? Será este o mesmo homem que inventou as belas parábolas, que se esforçava por uma renovação radical da ética judaica? ‘A paz esteja convosco…? Põe a mão nas minhas feridas…? Isto parece mais um zombie do que uma pessoa viva.”

Há ainda um apêndice hilariante, dedicado ao “Evangelho secreto de Marcos”, em que Verhoeven aborda um documento descoberto em 1958 que dá a conhecer um Jesus gay, que ensina o reino de Deus a um jovem que passou a noite com ele. O documento provavelmente era falso, a falsificação é deliciosa.

Viagens

Antropologia impuraUma excelente introdução a outros escritores-viajantes.Gustavo Rubim

As Ilhas Desconhecidas: Notas e PaisagensRaul BrandãoQuetzal

mmmmm

Se for um género, a literatura de viagens é o género ideal para quem tem a paixão do híbrido. Mas também se pode dizer simplesmente que não é um género e

que “literatura de viagens” é uma metonímia com que designamos livros demasiado diferentes uns dos outros e, afinal, também diferentes de si mesmos.

Ainda assim, “As Ilhas Desconhecidas” é um dos poucos livros portugueses que se candidatam a ser a realização perfeita desse género inexistente. Raul Brandão é aqui um narrador exímio, o itinerário da viagem está claramente circunscrito — Madeira e Açores — e a experiência da diversidade é dada tão intensamente que, no fim, chegando à baía de Cascais, o viajante escreve, com o alívio de quem regressa de um inóspito país estrangeiro, a última palavra do texto: “Portugal!...”

Publicado em 1926 (a viagem fez-se entre Junho e Agosto de 1924), tinha Raul Brandão 58 ou 59 anos, este é, juntamente com “Os Pescadores” (de 1923), um dos livros do autor do “Húmus” com que a crítica portuguesa tem lidado pior. Sobrecarregando o escritor com o lugar-comum que lhe confere a honra dúbia de herdeiro ou discípulo de Dostoiévski, quase não há críticos capazes de reconhecer em Brandão o seu espírito de antropólogo.

Basta contudo ler um dos capítulos mais famosos desta viagem (o segundo, sobre a ilha do Corvo) para pesar o interesse com que Brandão se confronta com este estranho microcosmos humano onde não há memória de ter havido “um assassínio ou um roubo”, onde o maior proprietário da ilha não tem chave na porta, onde os vizinhos abrem a cova e carregam o caixão de

A Penguin vai reeditar, em capa dura, 17 obras de Evelyn Waugh (1903-1966), autor, entre outros romances, novelas e livros de viagens, do popular “Reviver o Passado

em Brideshead”. O primeiro lote, que inclui títulos como “A Handful of Dust”, estará nas livrarias já em Maio; o segundo chega em Agosto.

ReediçãoRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRReed

Paul Verhoeven

escreve nesta surpreendente

biografi a de Jesus algumas

das cenas do fi lme que

provavelmente nunca

realizará

SU

SA

NN

A S

ÁE

Z

Colecção d

e autores

premiados

pelo tempo

Próximo mês:

Umapoderosafantasia

O escritor norte-americano Mark Twain nasceu em 1835, ano que assinalou mais uma passagem do cometa Halley, e morre aos 74 anos, quando o insólito astro se aproxima novamente da Terra. “Terei a maior decepção da minha vida se não me for embora com o cometa”, terá dito, com aguçado sentido de humor, um ano antes da sua morte.Na sua vasta obra, Um Americano na Corte do Rei Artur destaca-se pela sua poderosa fantasia. A história começa nos Estados Unidos, no século XIX, com o inventivo Hank Morgan, o superintendente de uma grande fábrica, paradigma da modernidade, em que se criam todos os tipos de máquinas. Um dia, Hank envolve-se numa rixa e é agredido na cabeça, sendo transportado para o século XIII e para o mítico reino de Camelot, onde convive com os cavaleiros da Távola Redonda e, claro, com o rei Artur, Merlim, Lancelot e Guinevere. Insatisfeito com a ordem estabelecida e nostálgico dos pequenos confortos do mundo moderno, Hank começa a subverter Camelot, reproduzindo ali alguns dos ideais sociais e maravilhas técnicas do seu século. Depois de fabulosas peripécias, que continuam a encantar jovens e adultos, o engenhoso americano regressa ao seu tempo. Mark Twain cresceu no Missouri, que serviria de inspiração e cenário para obras como Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Foi tipógrafo, colunista, mineiro, piloto de barcos a vapor e jornalista. Após a publicação dos seus diários de viagem, descobre-se como escritor, tendo tido uma vida tranquila e próspera, não isenta de altos e baixos, como as águas nem sempre tranquilas dos rios em que navegou.

VÍTOR QUELHAS,

JORNALISTA E CRÍTICO

Todas as Quintas com o PÚBLICO

Mark Twain

PUB

Anton Tchékhov A Estepe 12 Mai

Machado de Assis D. Casmurro 19 Mai

Malcolm Lowry Ultramarina 26 Mai

Mark Twain Um Americano 5 Mai na Corte do Rei Artur

Depoimento sobre o livro desta semanafeito a pedido do PÚBLICO

Page 51: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 51

austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) deu o subtítulo “Uma comédia da alma alemã”, é um inventário dos esqueletos (para não dizermos dos mortos-vivos) no armário do século XX europeu. A partir de hoje, a Seiva Trupe põe esses esqueletos em cima do palco, confrontando-se, e confrontando-nos, com a besta negra do nazismo, e com a maneira insidiosa, quase “natural”, como dominou a Alemanha até à capitulação e, nalguns casos, mesmo depois dela. Nesta casa, o armário abre-se a cada 7 de Outubro, dia em que, ano após ano, Vera prepara azáleas, champanhe e bandeiras nazis para Heinrich Himmler, como nos “bons velhos tempos” em que o mundo não caminhava para o caos, as crianças não eram selvagens e os judeus não estavam “incrustados em todo o sítio, por toda a parte”, a destruir impunemente a Alemanha. Só Clara respira mal ali (a própria Lurdes Norberto respira mal ali: “A Clara diz muito pouco, mas o

silêncio dela é toda uma revolta. Eu própria me sinto revoltada, embora passe muito tempo calada durante o espectáculo, coisa que nunca tinha feito no teatro: normalmente eu sou a personagem que fala”, confessa ao Ípsilon), sentada na cadeira de rodas a que um bombardeamento aliado (“terrorista”, corrige Rudolf ) a condenou; quando não está a dobrar peúgas, ou a ler “mentiras” em livros que Rudolf desaprova e que queimaria, se queimar livros degenerados ainda estivesse em vigor, escreve cartas para os jornais, SOS sem resposta até um dia, este dia, em que a ordem familiar parece ter de desabar.

Mário Jacques, o Rudolf de “À Beira do Fim”, lê a sua personagem como “um alerta”: “Se pensarmos que a Alemanha hoje volta a dominar a Europa, já não política e militarmente, mas economicamente, se pensarmos que nós também tivemos 48 anos de ditadura (uma

ditadura um bocado saloia, mas uma ditadura), teremos de perguntar-nos quantos desses fantasmas não andam aí a mexer-se outra vez”. O momento, sublinha, é aliás o ideal para voltar a Thomas Bernhard: “Estão aí à porta umas eleições que não vão servir para coisa nenhuma, porque quem vai decidir como vai ser a nossa vida são os três senhores que acabaram de chegar. Mas mesmo assim vamos empenhar-nos gloriosamente nessas eleições”.

Encenar este texto, agora, com a recessão e o FMI em cima, é “um acto de resistência”, diz o encenador, Júlio Cardoso: “O teatro deve ir ao encontro da verdade, sobretudo agora que estamos nesta vulcanidade e tudo o que é falso é que é verdadeiro. Não se fala a não ser da crise, mas tem de haver alguém a estrebuchar. É o que estamos a fazer aqui”.

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Tea

tro

Azáleas para o 7 de OutubroA Seiva Trupe tira esqueletos do armário da Europa com um texto de Thomas Bernhard, “À Beira do Fim”. Inês Nadais

À Beira do Fim - Comédia da alma alemãDe Thomas Bernhard. Encenação de Júlio Cardoso. Com Lurdes Norberto, Mário Jacques, Paula Guedes.Porto. Teatro do Campo Alegre. R. das Estrelas, s/n. De 29/04 a 29/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 226063000. 10€ a 12,5€.

As azáleas já estão numa jarra em cima do piano a que Vera (Paula Guedes) se atira quando o silêncio em casa se torna barulhento de mais, definitivo de mais. São “as flores favoritas de Rudolf” (Mário Jacques), o ex-nazi que teve uma segunda vida, depois da guerra, como eurodeputado e presidente de um tribunal, e que esta noite festeja secretamente, na casa onde uma irmã, Vera, nunca deixou de o esperar e outra irmã, Clara (Lurdes Norberto), nunca deixou de o desesperar, o aniversário de Heinrich Himmler. Vai haver champanhe, como em todas as festas, como em todas as guerras: para esta família, 1945 nunca existiu.

“À Beira do Fim”, texto a que o

Teatro

EstreiamLa Flûte EnchantéeDe Mozart. Encenação de Peter Brook. Com Betsabée Haas, Virgile Frannais, William Nadylam, entre outros. Guimarães. CC Vila Flor - Grande Auditório. Av. D. Afonso Henriques, 701. Dia 05/05. 5ª às 22h. Tel.: 253424700. 7,5€ a 15€.

Odisseia: Teatro do Mundo.Ver texto na pág. 39.

O JogadorDe Dostoiévski. Encenação de Gonçalo Amorim. Com António Fonseca, Carla Galvão, Romeu Costa, entre outros. Lisboa. Teatro Municipal de S. Luiz - Sala Principal. R. Antº Maria Cardoso, 38-58. De 05/05 a 21/05. 4ª às 21h (episódio 1 e 2). 5ª às 21h (episódio 3 e 4). 6ª, Sáb. e Dom. às 18h (todos os episódios). Tel.: 213257650. 5€ a 15€.

ContinuamA Morte do PalhaçoA partir de Raul Brandão. Pelo Teatro O Bando. Encenação de João Brites. Com Ana Brandão, Guilherme Noronha, Paulo Castro. Porto. Mosteiro de São Bento da Vitória. R. S. Bento da Vitória. Até 15/05. 4ª a Dom. às 21h30. Tel.: 222007283. 5€ a 15€.

Odisseia: (A)Mostra.

Exactamente AntunesDe Jacinto Lucas Pires. Encenação de Cristina Carvalhal, Nuno Carinhas. Com Jorge Mota, Lígia Roque, entre outros Porto. Teatro Nacional São João. Pç. Batalha. Até 30/04. 5ª a Sáb. às 21h30. Tel.: 223401910. 7,5€ a 16€.

Odisseia: (A)Mostra.

Rua GagarinDe Gregory Burke. Encenação de Marcos Barbosa. Com André Teixeira, António Jorge, entre outros. Guimarães. Espaço Oficina. Av. D. João IV, 1213 Cave. Dia 30/04. Sáb. às 16h. Tel.: 253424700. Entrada gratuita.

Odisseia: (A)Mostra.

Concerto à la CarteDe Franz-Xavier Kroetz. Pela Companhia de Teatro de Braga. Encenação de Rui Madeira. Com Ana Bustorff. Braga. Theatro Circo - Sala Principal. Av. Liberdade, 697. Dia 30/04. Sáb. às 21h30. Tel.: 253203800. 6€ a 12€.

Odisseia: (A)Mostra.

As Três IrmãsDe Tchékhov. Encenação de Nuno Cardoso. Com Isabel Abreu, Maria do Ceú Ribeiro, entre outros. Lisboa. Teatro Nacional D. Maria II - Sala Garrett. Pç. D. Pedro IV. Até 22/05. 4ª a Sáb. às 21h30. Dom. às 16h. Tel.: 213250835. 7,5€ a 16€.

Anúncio de Morte 2: Sete Espelhos no Quarto de DormirDe Heiner Müller. Encenação de Mónica

Calle. Com Ana Ribeiro. Lisboa. Casa Conveniente. R. Nova do Carvalho, 11. Até 08/05. 2ª a Dom. das 20h00 às 0h. Tel.: 963511971. 7€.

Agamémnon - Vim do Supermercado e dei Porrada no Meu FilhoDe Rodrigo García. Encenação de John Romão. Com Gonçalo Waddington. Lisboa. Teatro Municipal de S. Luiz - Jardim de Inverno. R. Antº Maria Cardoso, 38-58. Até 30/04. 5ª a Sáb. às 23h30. Tel.: 213257650. 10€.

Dança

EstreiamIcosahedronDe Tânia Carvalho. Lisboa. Culturgest - Grande Auditório. R. Arco do Cego. De 29/04 a 30/04. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 217905155. 5€ a 15€.

Ver texto na pág. 41.

ContinuamUma Coisa em Forma de AssimDe Benvindo Fonseca, Clara Andermatt, Francisco Camacho, Madalena Vitorino, Olga Roriz, Paulo Ribeiro, Rui Horta, Rui Lopes Graça, Vasco Wallenkamp. Pela Companhia Nacional de Bailado. Lisboa. Teatro Camões. Pq. Nações. Tel.: 218923470. 5€ a 20€.

Ver texto na pág. 42.

Agenda

austríaco ThomasBernhard (1931-1989) deu o subtítulo “Uma comédia da alma alemã”, éum inventário dos esqueletos (para

silênciodela é toda uma revolta. Euprópria me sinto revoltada, embora ditadura um bocado saloia,

Paula Guedes, Lurdes Norberto e Mário Jacques protagonizam esta “comédia da alma alemã”

“Concerto à La Carte” no Theatro Circo, Braga

“O Jogador” no São Luiz, Lisboa

Page 52: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

52 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

e desta ao carvão, como se de estafetas se tratasse, uma vida sucedendo-se à anterior como outra possibilidade, juntando, e são as “quatro voltas” do título, o humano, o animal, o vegetal e o mineral. Parece a fixação artificial de uma narrativa de reencarnação, e é verdade que o realizador se tem referido às tradições animistas da Calábria ou à passagem por ali de Pitágoras, filósofo e matemático grego, autor de teorias sobre a transmigração das almas. Tem-se referido mas tem-se distanciado serena e humildemente – como, aliás, Apichatpong Weerasethakul em relação a reencarnação.

Do que se trata, então? Não da fixação de uma visão do mundo, mas de uma possibilidade de escuta. Até porque num filme sem diálogos ouve-se melhor – sobretudo quando esse filme se quer libertar daquilo que ensurdece e do que já não deixa ver: é a busca de outras vidas para o cinema, e não é por acaso que isso se faz (pensamos também no “Tio Boonmee...”) varrendo a hierarquia que coloca o homem no topo da figuração – e é tão aventurosa, incerta a “performance” de uma cabra. (É, para além do mais, a busca de vidas alternativas para o cinema italiano, e calha “As Quatro Voltas” chegar na mesma semana que “A Solidão dos Números Primos”: exemplar da “overdose” de redundância destes tempos.)

Não se trata da resposta a um segredo ou explicação de um mistério, mas da experiência do segredo e do mistério – a imagem cinematográfica como zona de contacto. Depois de anos de convívio com os pastores e com as cabras, Frammartino repõe a sua viagem sensorial através do seu filme (o cinema é a sua igreja, disse-nos em entrevista que publicamos neste suplemento). Muito menos documentário de observação, como pode parecer à primeira vista, e mais próximo até de uma recriação de

uma experiência, “As Quatro Voltas” é, ele próprio, feito a partir da harmonização de diferentes naturezas, a documental e a ficcional. Como se só o cinema pudesse traduzir o invisível, torná-lo sensorialmente identificável, Frammartino faz-se realizador em comunhão: quer quando está à espera (a imprevisibilidade previsível dos animais dentro do enquadramento; mas que aventura nova para o espectador...), quer quando se faz de Tati/Keaton, coreografando uma procissão numa aldeia – o tal plano-sequência pendular, virtuoso, sim, mas humilde, atento à escuta da zona de contacto que pressente. Entremos no templo de Michelangelo Frammartino. Em procissão.

Mundo fantasmaOs fantasmas da câmara e os fantasmas da imaginação têm a mesma natureza. Luís Miguel Oliveira

O Estranho Caso de AngélicaDe Manoel de Oliveira, com Ricardo Trêpa, Pilar López de Ayala, Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ana Maria Magalhães. M/12

mmmmn

Lisboa: Medeia Monumental: Sala 3: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h30, 15h30, 17h30, 19h30, 21h30, 24h; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 16h30, 19h10, 21h30, 23h40

Porto: ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h40, 16h20, 19h, 21h50, 00h25;

Em muitos dos seus filmes, e por certo em vários dos seus maiores filmes, Oliveira inventou um tempo e uma época, lançando códigos (de conduta social, de representação, de narração) que o senso comum daria por “desactualizados” ao confronto com aquilo a que o senso comum chama a “actualidade”. A tensão gerada por tal confronto nem sempre é o elemento essencial, mas por norma é um dado determinante, ao menos no modo como afasta os filmes de um naturalismo puramente mimético e “contemporâneo”. Isto tem-se adensado nos últimos anos – “Belle Toujours”, as “Singularidades de uma Rapariga Loura” – e “O Estranho Caso de Angélica” também é assim, dominado pelo “princípio da incerteza” cronológica. Quando tudo parece apontar para determinada (e passada) época, eis que o “nosso tempo” irrompe, quase como um arrepio. Nas “Singularidades” era poderosíssimo o momento em que, por entre as incidências queirozianas da narrativa (era, recorde-se, uma adaptação de uma história de Eça),

alguém vinha falar em “euros”. Na “Angélica” não faltam momentos destes.

E porventura com outra dimensão, uma vez que é um filme que pratica o “overlapping” temporal (passe o anglófono palavrão) de várias maneiras. É, para começar, baseado num argumento que Oliveira escreveu no princípio dos anos 50 e nunca tinha podido ou querido filmar até agora: a história de um fotógrafo que se apaixona pelo cadáver, jovem e belo, de uma rapariga morta subitamente. Depois, é um filme que evoca, através dessa personagem do fotógrafo (Ricardo Trepa, mais do que nunca a interpretar um “duplo” do seu avô), o que parecem ser “revisitações” de alguns momentos da obra de Oliveira, do “Douro” à “Caça”. Finalmente, é um filme que joga, a partir de certa altura a pleno vapor, com o arcaísmo cinematográfico, com o “efeito especial” rudimentar (ou seja: com o “efeito especial” tornado “efeito poético”), de inspiração que podia ter nascido em Méliès ou em Cocteau.

Apesar de toda a tensão criada pelo choque de códigos, ou pelas conversas onde se discute o “mundo contemporâneo”, este último aspecto é essencial, porque o “Estranho Caso de Angélica”, no limite, é um filme sobre o cinema, ou mais especificamente, um filme sobre uma atracção (entre a máxima inocência e máxima perversidade) pelo cinema como porta de entrada para um mundo alternativo, onde tudo é possível (até uma história de amor com uma rapariga morta). Talvez não se exagere muito se, desse ponto de vista, se disser que se trata dos filmes mais confessionais de Oliveira, e não custa nada imaginá-lo a escrever este argumento nos anos 50, altura em que estava, na prática, impossibilitado de filmar alguma coisa com este tipo de fôlego. É pela câmara do fotógrafo que a rapariga se manifesta, ou que o fotógrafo

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Cin

ema

Estreiam

Zona de contactoEntremos. Procissão. “As Quatro Voltas” é zona de contacto. Vasco Câmara

As Quatro VoltasLe Quattro VolteDe Michelangelo Frammartino, com Giuseppe Fuda, Nazareno Timpano , Bruno Timpano. M/12

mmmmm

Lisboa: Medeia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h 6ª Sábado 2ª 14h, 16h, 18h, 20h, 22h, 00h30

Momento 2, no 2011 português, do percurso de libertação do espectador e de apuramento dos sentidos: depois de “O Tio Boonmee que Recorda as Suas Vidas Anteriores”, do tailandês Apichatpong Weerasethakul, “As Quatro Voltas”, do italiano Michelangelo Frammartino. Onde somos também cabra ou mineral, onde não há diálogos e onde a figuração humana é empurrada para fora de campo por um cão, Vuk, e pelas suas estratégias terroristas pendulares ao longo da rua de uma aldeia da Calábria. Há neste filme hipóteses para várias vidas de um espectador.

Antes da encenação da Via Sacra em procissão pela rua e que o cão vai sabotar, antes desse extraordinário plano-sequência (onde não há um grama de exibicionismo), morreu um pastor. Depois dele, e depois do cão, nasce uma cabra, e as cabras invadem o ecrã, há uma árvore, que serve o ritual festivo e sacrificial da aldeia, e tudo acaba como carvão, exactamente por onde começara.

Do homem à cabra, desta à árvore

Com a edição de “Juventude em Marcha”, a editora britânica Masters of Cinema (comparada com a norte-americana Criterion na forma como produz as matrizes e cuida das edições) inicia uma

colaboração com Pedro Costa

que resultará no lançamento em DVD

e Blu-Ray de vários fi lmes do realizador.

Depois de “Juventude em Marcha” lançará

“No quarto da Vanda”. Mas não será a única presença de fi lmes

de Costa no mercado britânico. Ainda este ano, e pela Second Run, que já inclui “O Sangue” no seu catálogo, fi cará disponível uma nova versão restaurada em alta-defi nição de “Casa de Lava”, a segunda longa do realizador.

DVD

Do que se trata, então? Não da fi xação de uma visãodo mundo, mas de uma possibilidade de escuta

“O Estranho Caso de Angélica”: a atracção pelo cinema como porta de entrada para um mundo alternativo

a

oonn oduz

ccocco

qqulaan

ee Bfi fi lm

DDepeem M

“N“Noo qua

Page 53: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 53

imagina que a rapariga se manifesta – vai dar ao mesmo, porque os fantasmas da câmara e os fantasmas da imaginação têm, no fundo, a mesma natureza. “O Estranho Caso de Angélica” só diz isto. E o que é que ele faz lembrar que tenha sido feito em tempos recentes? Apenas “A Fronteira do Amanhecer”, de outro “arcaico”, Philippe Garrel, para quem o cinema também é uma porta de entrada para um mundo que se liberta do meramente “possível”, quer dizer, do tristemente “real”.

Mulheres após um ataque de nervos

Mães e FilhasMother and ChildDe Rodrigo García, com Naomi Watts, Annette Bening, Kerry Washington, Samuel L. Jackson, Jimmy Smits. M/12

mmmnn

Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 21h50, 00h25; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 5: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h50, 19h25 Domingo 11h30, 14h15, 16h50, 19h25; ZON Lusomundo Amoreiras: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h, 15h40, 18h20, 21h10, 24h; ZON Lusomundo Oeiras Parque: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h45, 15h35, 18h25, 21h20, 00h10; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 15h50, 18h45, 21h35, 00h25

Porto: Arrábida 20: Sala 12: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 13h45, 16h25, 19h10, 21h55, 00h40 3ª 4ª 16h25, 19h10, 21h55, 00h40; ZON Lusomundo Dolce Vita Porto: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 12h55, 15h40, 18h35, 21h35, 00h25

O nome do colombiano Rodrigo García (filho de Gabriel García Márquez) pouco ou nada dirá aos cinéfilos portugueses – das suas quatro longas anteriores, só o atípico “Passageiros” (2008) chegou às salas – mas os amadores de séries televisiva recordarão o seu nome dos genéricos de “Sete Palmos de Terra” ou “Terapia”, para as quais dirigiu e escreveu episódios. Essa herança televisiva, somada ao nome do polémico cineasta mexicano Alejandro González Iñarritú na produção, poderá fazer temer de “Mães e Filhas”, se não o pior, pelo menos algo de desagradável. Mas é filme que se afadiga a subverter quaisquer expectativas de modo inteligente, que trabalha o mosaico narrativo à la “Magnolia” ou “Amor Cão” a um ritmo singularmente desacelerado e sem preocupação de resolver as pontas soltas, resultando daí um melodrama clássico contado de modo seco, com uma atenção especial aos silêncios.

García cruza três histórias de mulheres em Los Angeles à volta da adopção: uma mãe solteirona (Annette Bening) que vive atormentada pela filha que teve menor e deu para adopção; uma advogada de sucesso (Naomi Watts) que a sua condição de filha adoptiva endureceu até uma determinação maníaca; e uma jovem profissional (Kerry Washington) incapaz de ter filhos que decide adoptar um bebé. Em rigor, o filme aguentar-se-ia melhor sem esta última história, a mais esquemática das três; e apesar de García as fazer confluir no final, o modo como elas passam o filme a fazer tangentes umas às outras de modo quase intangível é bem mais interessante.

Evitando as armadilhas lacrimejantes, García deixa às actrizes o tempo e o espaço para construirem as personagens e, sobretudo, para nos fazer compreender as escolhas e as

razões de mulheres que estão longe de serem imediatamente simpáticas. Nenhuma delas é mais espantosa do que Annette Bening, que volta a confirmar como é uma das maiores e mais injustamente ignoradas actrizes americanas contemporâneas. Jorge Mourinha

Lixo ExtraordinárioWaste LandDe Lucy Walker, João Jardim, Karen Harley, com . M/12

mmnnn

Lisboa: CinemaCity Classic Alvalade: Sala 3: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 15h50, 17h50, 19h50, 21h50 6ª Sábado 13h50, 15h50, 17h50, 19h50, 21h50, 23h55; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h20, 15h45, 18h20, 21h10, 23h50

Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 14h30, 17h, 19h20, 21h45, 00h10

O artista plástico brasileiro Vik Muniz decidiu reinvestir na comunidade os proventos da sua arte, e partiu para a mega-lixeira do Jardim Gramacho, que recebe 70 por cento do lixo carioca e cem por cento do suburbano, para realizar retratos dos “catadores” que vivem da reciclagem diária. Usando o próprio lixo como material da sua arte, envolveu os catadores na criação dos retratos e doou os consideráveis lucros da sua venda internacional. O documentário que a britânica Lucy Walker tirou do seu acompanhamento do processo cumpre as “figuras obrigatórias” do “caso da vida” de boa consciência liberal feito à medida para uma “remake” hollywoodiana. Ao mesmo tempo, questiona-as certeiramente, dando a ver as dúvidas do artista e da sua equipa: estão a ajudar esta gente ou a instilar expectativas insustentáveis para o futuro? Estão a contribuir para a comunidade ou a aproveitar-se dela? É uma questão que se pode colocar em relação ao filme, cujas sinceridade e boas intenções nunca estão em causa, mas cuja construção é tão polida, cuja estrutura narrativa quase exige o “final feliz”, que o modo

inteligente como Walker se desvia lentamente do projecto artístico de Muniz para se concentrar nos percursos de vida dos catadores acaba por ficar para segundo plano. “Lixo Extraordinário” nunca resolve a contento esse balançar entre a vibração espontânea do registo de uma comunidade fervilhante de vida e a lisura convencional da sua forma, e é nesse desequilíbrio que o filme se torna interessante. J. M.

A Solidão dos Números PrimosLa Solitudine dei Numeri Primi De Saverio Costanzo, com Alba Rohrwacher, Luca Marinelli, Isabella Rossellini. M/16

mmnnn

Lisboa: UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 10: 5ª 6ª Sábado 2ª 3ª 4ª 14h15, 16h45, 19h25, 21h55, 00h25 Domingo 11h30, 14h15, 16h45, 19h25, 21h55, 00h25

Porto: Arrábida 20: Sala 6: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 13h45, 16h20, 19h, 21h40, 00h20 3ª 4ª 16h20, 19h, 21h40, 00h20

Para a sua estreia na distribuição portuguesa, temos direito ao menos interessante dos três filmes de um dos mais interessantes jovens cineastas transalpinos. Saverio Costanzo, revelado em 2004 pelo excelente “Private” (que em Portugal foi mostrado apenas no Indie) e autor de um “In Memoria di Me” (inédito entre nós) de boa memória, passa ao “patamar superior” de produção com esta adaptação do “best-seller” de Paolo Giordano sobre a atracção elíptica entre dois solitários com traumas de infância, escrita a pensar no formalismo oblíquo do realizador. Costanzo filma magnificamente a inquietação surda que percorre o quotidiano silencioso e tenso da fotógrafa Alice e do cientista Mattia, lidando com famílias sufocantes e

círculos sociais que recusam a sua diferença. Mas, por excelente que seja o tratamento formal do filme (todo em atmosferas sublinhadas pela selecção musical de Mike Patton, retirada de uma mão-cheia de bandas-sonoras de filmes italianos de época) e a entrega dos actores (atenção a Isabella Rossellini), é difícil afastar a sensação de que é essa atenção formal que salva “A Solidão dos Números Primos” do convencionalismo; que, sem a intensidade dos silêncios e da angústia que transportam a estrutura propositadamente não-linear, ele não existiria. O que é mais sintomático do talento do realizador do que do interesse do filme em si. J. M.

Continuam

48De Susana Sousa Dias, com . M/12

mmmmm

Lisboa: Castello Lopes - Cascais Villa: Sala 5: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 21h 6ª Sábado 21h, 23h40; CinemaCity Classic Alvalade: Sala 1: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h35, 15h40, 17h30, 19h25, 21h35 6ª Sábado 13h35, 15h40, 17h30, 19h25, 21h35, 23h45; ZON Lusomundo Almada Fórum: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 18h50

Porto: ZON Lusomundo Parque Nascente: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 19h

Como se filma o infilmável? Como se mostra aquilo de que não existem imagens? A resposta de Susana de Sousa Dias é simples: com as imagens que há e dando a palavra àqueles que viveram a ditadura, de um modo que, raiando o experimentalismo formalista tem o efeito de libertar a emoção, de tornar o espectador simultaneamente testemunha e participante das experiências que a realizadora e a sua equipa recolheram junto de uma mão-cheia de prisioneiros políticos encarcerados ou torturados pela PIDE durante os 48 anos do regime salazarista. “48” é uma assombrosa lição de cinema, que ejecta todas e quaisquer convenções pela simplicidade depurada e austera do seu dispositivo; um imenso exercício de história vivida e contada na primeira pessoam, como se só do anonimato de vozes, da décalage entre os rostos de ontem e as vozes de hoje deste coro popular, pudesse nascer a intimidade que – como diz uma das entrevistadas – é o lugar da verdade. Como se só deste acumular anónimo de pequenas histórias pudesse nascer a mais fiel abordagem à grande história. Não é contraditório pôr “48” - prodigioso salto em frente para a sua autora - no mesmo caldeirão de cineastas radicais da modernidade fílmica como Godard, Tarr, Van Sant, Costa ou César Monteiro. Para lá de qualquer olhar político, é um filme sobre Portugal. Para lá de qualquer nacionalidade, é uma obra-prima. J. M.

Jorge Mourinha

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

A Cidade dos Mortos mmmnn mmnnn mmmnn

O Código Base mmmnn mmnnn nnnnn

O Estranho Caso de Angélica mmmnn mmmmn mmnnn

Lixo Extraordinário mmnnn nnnnn mmnnn

Medos mmnnn mmnnn mnnnn

Rio mmmnn nnnnn nnnnn

A Solidão dos Números Primos mmnnn nnnnn mnnnn

48 mmmmm mmmmn mmmmn

As Quatro Voltas mmmmn mmmmn mmmmm

Tournée mmmnn mmmnn mmmmn

As estrelas do Público

“Mães e Filhas”: três histórias em Los Angeles à volta da adopção

“Lixo Extraordinário”: as “fi guras obrigatórias” do “caso da vida” de boa consciência liberal

Page 54: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

54 • Sexta-feira 29 Abril 2011 • Ípsilon

As irregularidades da distribuição, sobretudo de fi lmes portugueses, colocam-nos neste momento perante duas obras absolutamente maiores, sem esquecer o interessantíssimo “A Cidade dos Mortos” de Sérgio Tréff aut: “48”

de Susana Sousa Dias, que chega às salas mais de um ano depois de ter obtido o Grande Prémio do Cinéma du Réel, em Paris, um dos mais prestigiados prémios internacionais de documentarismo, e “O Estranho Caso de Angélica” de Manoel de Oliveira, quase um ano depois da sua apresentação em Cannes – e creio que a coincidência só não é por inteiro fortuita, porque não deve ter sido acaso que “48” tenha estreado uns dias antes do 25 de Abril.

Não será preciso acentuar que em muito os dois fi lmes se distinguem, desde logo porque um é documental e outro fi ccional, ainda que não deixem de se intersectar na História, um explicitamente, “48”, com prisioneiros da polícia política da ditadura, a Pide

DGS, e o outro implicitamente, na medida que “Angélica”, projecto que remonta a 1952, é um dos vários que Oliveira, que aliás também esteve preso, não pôde realizar durante o salazarismo.

Mas o verdadeiramente espantoso é que ambos os fi lmes, “Angélica” e “48”, por modos tão diversos, colocam uma questão que se afi gura das mais importantes: o cinema e “o acto fotográfi co”. Que entendo por isto? Não os documentários sobre fotógrafos, ou os fi lmes feitos por reconhecidos fotógrafos, como Robert Frank ou William Klein (ainda que “Conversation in Vermont” de Frank seja de considerar), exceptuados os casos particulares de Raymond Depardon (“Les années-déclics”, narração autobiográfi ca) e de Agnès Varda. Falo de outros casos, em que o acto fotográfi co é inscrição fulcral ao fi lme.

Exemplo maior de uma fotografi a nodal à fi cção é “Blow Up” de Antonioni, cineasta que de resto várias vezes fez das suas personagens fotógrafos, e em relação ao qual, em termos de tipologia, se pode aproximar “Angélica”, em que o fotógrafo, Isaac, se torna possuído pelas fotografi as daquela que retratou morta. Há os fi lmes em que não são propriamente as fotografi as mas o acto fotográfi co em si que é crucial, como “Janela Indiscreta” de Hitchcok ou vários de Wenders, sobretudo “Alice nas Cidades”. Há os fi lmes de imagens fi xas, fotos portanto, de que o arquétipo é o maravilhoso “La Jetée” de Chris Marker, ou ainda “Salut les Cubains” de Varda e o tão pouco lembrado e delirante “Colloque des Chiens” de Raul Ruiz – e “48” aproxima-se destes. Há uma refl exão sobre a fotografi a como “Photo et cie”, um dos episódios de “Six fois deux” de Godard e Anne-Marie Miéville. Enfi m, para citar casos mais isolados, há o longuíssimo movimento lento que ao fi nal revela uma fotografi a, em “Wavelenght” de Michael Snow, ou um fi lme que parte de um foto-romance, como os havia até aos anos 60, “O Cheik Branco” de Fellini. Creio que a listagem é sufi ciente elucidativa da importância da relação, para além do que, ontologicamente (na terminologia de André Bazin), o cinema deve à fotografi a, da qual é uma prossecução técnica.

Abordarei mais em pormenor estas questões, e outras que também muito me interessam, a propósito de “48”. Detenho-me entretanto em “O Estranho Caso de Angélica”.

Aconteceu-me escrever que havia uma peça capital da obra de Oliveira que...nunca tinha sido fi lmada: “Angélica”, justamente. Conhecíamos o projecto pelo volume de argumentos não concretizados publicado pela Cinemateca Portuguesa e pela longa narração dos factos que lhe estiveram na origem que o autor faz no documentário que lhe dedicou Paulo Rocha.

A matriz documental é muito importante no trabalho de Oliveira, mas no pólo oposto ele é também, e até sobretudo, um cineasta assombrado – lembrem-se os fantasmas dos maridos mortos, que são os que Vanda sempre prefere, em “O Passado e o Presente”,

Cinema e acto fotográficoO verdadeiramente espantoso é que dois filmes, “Angélica” e “48”, por modos tão diversos, colocam

uma questão que se afigura das mais importantes: o cinema e “o acto fotográfico”.

esse alguém ou entidade que engravidou a jovem em “Benilde ou a Virgem-Mãe”, ou o delírio fi nal de José Augusto, como um vampiro, perante o cadáver de Francisca, no fi lme homónimo.

Há um limiar recorrente no cinema de Oliveira: aproximar-se do infi lmável, porque para além da matéria física, que é “a alma” – e não se trata apenas de que “A alma é um vício”, célebre frase agustiniana de “Francisca”. Nunca Oliveira se aproximou tanto desse limiar como em “Angélica”, caso em que literalmente o fantasma daquela se apossa daquele que fotografou o seu corpo morto, e enfi m lhe leva também a alma. Dizem-nos os antropólogos que havia tribos que temiam ser fotografadas ou fi lmadas, pois achavam que a imagem lhes roubava ao espírito. Em “Angélica”, a alma, a metafísica, liberta-se da imagem física impressa, as fotografi as.

É um fi lme belíssimo e de facto capital, em eco, muito anos depois, à famosa “Tetralogia dos Amores Frustrados” (“O Passado e o Presente”, “Benilde”, “Amor de Perdição” e “Francisca”), à qual, como projecto, poderá ter sido no entanto uma espécie de prelúdio. Afi gura-se-me que “O Estranho Caso de Angélica” é o mais importante fi lme de Oliveira em décadas.

“48” é um fi lme-ensaio poderosíssimo e, ouso dizer, uma obra marcante na História do cinema português. Não escrevo em maiúscula por acaso: o fi lme prende-se directamente com a História dos 48 anos de ditadura, por via dos depoimentos de alguns presos políticos que se confrontam com fotografi as suas quando presos pela Pide.

Eis assim um raro exemplo de cinema e acto fotográfi co, mas também – e são outras abordagens que me interessam muito – de fi lme feito a partir de materiais

de arquivo e em constante dialéctica entre o “em campo” e “fora de campo”.

Há uma curta-metragem de Agnés Varda, “Ulysse”, de 1982, em que ela reencontra, em movimento cinematográfi co, quem era uma criança numa foto por ela feita em 1954, e as pessoas em torno. O pressuposto de “48” é bem mais radical: quase só confrontar as pessoas em “voz off ” - o som em contracampo às imagens - com as fotos na Pide.

“Lembra-me”, lembro-me, é a primeira palavra do fi lme. Há um valor testemunhal importantíssimo no relato das torturas e humilhações – e salientem-se em particular as mulheres e as várias referências

às humilhações no período menstrual. Mas o propósito afi gura-se ainda mais lato.

A fotografi a “tipo passe” é parte da nossa identidade cívica. Feitas pela Pide, e com as subsequentes torturas, o propósito é o oposto: tentar que, “confessando”, os detidos fi cassem privados dessa mesma identidade cívica. Diria que é um exemplo extremo do que Barthes escreve em “A Câmara Clara”: “Quando se defi ne a fotografi a como uma imagem, isso não quer dizer apenas

que as personagens que representa não se movem. Isso quer dizer que elas não saem: são anestesiadas e pregadas, como as borboletas”. “Anestesiadas e pregadas”, o propósito da Pide.

Barthes ainda: “Recebi um dia de um fotógrafo uma foto minha que, apesar dos meus esforços, não me conseguia lembrar onde tinha sido feita. Olhava para a gravata, a camisola, para reconhecer as circunstâncias e era em vão. E, no entanto, porque era uma fotografi a, não podia negar que estava lá (mesmo se não sabia

Op

iniã

o

A fotografia “tipo passe” é parte da nossa

identidade cívica. Feitas pela Pide, o

propósito é tentar que, “confessando”, os detidos

ficassem privados dessa identidade

Au

gu

sto

M. S

eab

ra

Modo crítico

“48”: um fi lme-ensaio poderosíssimo, uma obra marcante na História do cinema português

Page 55: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa

Ípsilon • Sexta-feira 29 Abril 2011 • 55

A série CSI: Crime Scene Investigation (em Portugal, Crime sob Investigação que pode ser vista em várias estações) é da autoria de Anthony E. Zuiker, estreou-se em 2000 nos EUA e decorria originariamente na cidade de Las Vegas.

Dado o grande sucesso da série original CSI Las Vegas foram criadas duas outras séries herdeiras e surgiu a CSI Miami e CSI Nova Iorque. Têm ocorrido algumas mudanças de elencos mas a estrutura permanece. De um modo geral cada episódio é quase sempre autónomo, havendo contudo personagens ou situações passadas que são evocadas por aparecerem implicadas em novos casos de homicídio ou por serem fulcrais na biografi a destes cientistas forenses.

E de onde um tão grande fascínio por esta série onde correm em paralelo narrativas em cada uma das cidades protagonistas? Do seu carácter futurista no início século XXI, começa por ser uma série onde a sofi sticação tecnológica não tem comparação com outras produções. Acontece mesmo que algumas tecnologias surgem nas investigações por vezes ainda antes de algumas dessas ferramentas tecnológicas serem colocadas no mercado e de outras constituírem protótipos. O mesmo se pode dizer dos métodos de análise criminal: num dos primeiros episódios de CSI Miami, “H” (Horatio), o chefe da equipa, consegue provar um crime recorrendo a um método inédito de análise do ADN numa prova criminalista, isto no ano seguinte àquele em que se descobriu a sequência do genoma humano.

As instalações destes cientistas forenses são autênticos laboratórios científi cos e nada têm a ver com as antigas esquadras ou escritórios de detectives, o que faz a série ser uma combinação de fi cção científi ca com ciência forense. Não é por acaso que Star Trek, de Gene Roddenberry, é abundantemente citada em CSI.

Os investigadores, esses, são simultaneamente polícias, detectives, cientistas, e cada um deles um enciclopedista, com conhecimentos específi cos e paixões raras, que tanto podem ser pela entomologia, como Grissom (William Petersen), por cabelos e fi bras, Nick Stokes (George Eads), a guerrilha militar, Mac Taylor (Gary Sinise), a balística, Calleigh Duquesne (Emily Procter), ou ainda pela anatomopatologia, como o exímio Dr Albert (Al) Robbins (Robert David Hall).

Finalmente, os episódios têm como cenários as

cidades futuristas de Miami, Las Vegas, Nova Iorque com a sua arquitectura de mega escala: os edifícios compostos de grandes superfícies de vidro e de aço, as largas avenidas, as grandes e requintadas superfícies dos espaços nocturnos, as músicas de batidas das danças actuais, entre as quais o dubstep, o uso generalizado de iPhones, iPads, ecrãs LCDs, os bairros elegantes da classe média americana, o glamour das festas ou, pelo contrário mas nem por isso menos futuristas, os bairros sujos numa versão ainda mais suja e mais caótica do que no fi lme “Blade Runner” de Ridley Scott.

E em conclusão, a velocidade: a velocidade dos carros, dos barcos, da comunicação. O facto de a série se conjugar em três cidades, seja com o céu de Nova Iorque em tons mais negros ou mais azulados em Miami, é a expressão espectacular da portabilidade e da deslocalização temática, ambas tão próprias da globalização. A qualidade das suas intervenções, essas, decorre de eles desvendarem crimes e mortes sempre em condições misteriosas e pouco comuns, o que obriga e é nuclear das narrativas, para desvendar o enigma, o recurso prioritário aos processo de indução e de abdução contra a dedução mais tradicional nas fi cções policiais. Os diálogos em que estes dois

processos são exemplifi cados são momentos de particular gozo de raciocínio. A estes processos de lógica deve acrescentar-se a valorização do detalhe, do insignifi cante, como nas melhores utilizações das teorias da análise literária. Finalmente, apetece perguntar: porque são tão raras as vezes em que estes detectives comem ou bebem? Não

se alimentam? Serão cyborgs? O exemplo do médico legista Dr. Albert (Al) Robbins, a quem faltam as duas pernas que foram substituídas por próteses como acontece na vida real do actor Robert David Hall, é um contributo para esta especulação.

Mas o lado físico está presente na fi sicalidade de Eric Delko (Adam Rodriguez) ou na voz sussurrante e erotizada de Calleigh Duquesne (Emily Procter).

E contudo estes mesmos cientistas têm facetas obscuras ou passados biográfi cos desviados face à fi gura normal do polícia; na verdade esta é uma herança e uma homenagem à série Hill Street Blues, a primeira série policial dos anos 80, onde os policias tinham vícios, problemas familiares e angústias. Os protagonistas de CSI já foram bailarinas de “strip”, fi lhas de mães solteiras – Catherine Willows (Marg Helgenberger) –, viciados no jogo – Warrick Brown (Gary Dourdan) –, com insónias crónicas depois da morte da mulher que morreu no ataque às torres gémeas de NI – Gary Sinise (Mac Taylor) – ou amantes de relações sado-masoquistas – Stella Bonasera (Melina Kanakaredes). São, pois, também humanos, demasiado humanos.

As sessões de análise dos corpos na morgue pelos vários anatomopatologistas são lições excelentes de todo o espectro da medicina; mesmo no meio de expressões de humor comuns nestes ambientes os cadáveres são tratados com respeito, são limpos com cuidado, tocados com delicadeza, algo de recepção plástica acontece que permite evocar a pintura de “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp” de Rembrandt.

Repetimos que a velocidade é uma das chaves do sucesso desta série. Aqui tudo é veloz – da entrada à exposição do crime e deste à análise. O tempo é comprimido na montagem e tem como consequência que em cada episódio o enigma é resolvido do nascer ao pôr-do-sol, o que nos remete para uma dos cânones mais antigos da representação: o da unidade de tempo. O fascínio da série vem também da sua rara solidez dramatúrgica. Dir-se-á que esta velocidade de resolução dos crimes é inverosímil. É por isso que CSI é uma série de fi cção e não um documentário.

onde). Esta distorção entre a certeza e o esquecimento deu-me uma espécie de vertigem, e uma espécie de angústia policial (o tema de ‘Blow Up’ não estava longe). Eu ia ao reconhecimento como num inquérito, para aprender enfi m o que já não sabia de mim próprio”. Os termos em “48” são diferentes: não um “inquérito” de tipo “policial”, mas uma indagação sobre como as pessoas estavam num inquérito policial extremo; mas não deixa de haver momentos muito fortes em que as pessoas não se lembram em que circunstâncias foi feita a foto, ou o extraordinário momento em que “a fi lha de Stella Piteira Santos”, Maria Antónia Fiadeiro, explica porque estava a rir, logo acrescentando: “Vivi muito mal com esta fotografi a durante muito tempo”.

Ocorre-me o conceito freudiano de “das Uhmeinlich”, da “estranheza familiar”: os que testemunham revêem-se no que lhes é mais familiar, o próprio Eu, mas um eu que é outro, estranho, dados os registos com que se confrontam. E é nomeadamente a esse propósito que a dialéctica da imagem e do som, do “em campo” e “fora de campo” em “48”, parecendo simples, se me afi gura antes relevante.

Escreveu André Bazin: “Os limites do ecrã não são, como o vocabulário técnico o deixa por vezes entender, o enquadramento de uma imagem mas um oculto que não pode desmascarar uma parte da realidade [e note-se como isto é pertinente perante “48”]. (…) O enquadramento é centrípeto, o ecrã é centrífugo”. E Deleuze: “Num caso o fora de campo designa o que existe algures, ao lado ou à volta; no outro caso, o fora de campo designa uma presença inquietante [e no caso isso vale para os sempre referidos mas nunca apresentados agentes da Pide], da qual não se pode mesmo dizer que exista, mas mais que ‘insiste’ ou ‘subsiste’”.

“48” é um “documentário” que se inscreve contudo entre dois pólos extremos da arte cinematográfi ca, o apelo do real e o carácter espectral, donde, para além da importância testemunhal, o seu carácter singularíssimo.

An

tón

io P

into

Rib

eiro

E em conclusão, a velocidade:

a velocidade dos carros, dos barcos,

da comunicação

O fascínio CSIA expressão espectacular da portabilidade e da deslocalização temática, ambas

tão próprias da globalização.

Política cultural

Os investigado-res, esses, são simultanea-mente polícias, detectives, cientistas, e cada um deles um enciclope-dista

Page 56: O país de poetas perdeu o medo de ser um país de narradores?fonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/110429... · Juntos em “Onde Mora o Mundo” ... causa directa