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FRANS BROOD ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 7561 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Sexta-feira 17 Dezembro 2010 www.ipsilon.pt Out of Context - for Pina Há um novo Alain Platel à nossa espera Günter GrassMGMTFederico Fellini

Há um novo Alain Platel à nossa espera - BLXfonoteca.cm-lisboa.pt/mm/IMG/PUBPERIO/jornais/04614/pdf/101217... · um exorcismo. O realizador de nacionalidade francesa nascido na

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Sexta-feira 17 Dezembro 2010www.ipsilon.pt

Out of Context - for Pina

Há um novo Alain Platel à nossa espera

Günter GrassMGMTFederico Fellini

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 3

Twin Shadow no “Estaleiro” de Vila do Conde No total serão mais de 60 iniciativas entre filmes, concertos e ateliers que darão corpo ao projecto “Estaleiro”, ideia desenvolvida pela mesma equipa do festival Curtas de Vila do Conde, que tem início em Janeiro e se irá prolongar por dois anos, congregando a realização de 20 ateliers, 20 concertos e a produção de 20 filmes. O projecto, que assume uma faceta de formação e outra de programação artística, está dividido em várias áreas: Animar (educação para as imagens em movimento), Campus (programa de educação, formação e profissionalização na área da imagem digital), Cinema Expandido, Concertos e fórum sobre “songwriting”. Este último intitula-se “Ear the ground” e contará com autores e músicos que vão falar e trabalhar na escrita e produção de canções. O módulo dos concertos funcionará ao longo de vários meses, com cerca de vinte bandas programadas nacionais e estrangeiras, a maior parte delas ainda por confirmar. Do que já está assente destaque para os Clã, que irão abrir este conjunto de concertos – a 14 e 15 de Janeiro no Teatro Municipal de Vila do Conde – e desenvolver um trabalho de raiz para o público infantil; para os Belle Chase Hotel (12 Fevereiro) e para o americano Twin Shadow (26 Maio), ou seja George Lewis Jr, autor de um dos álbuns mais festejados dos últimos meses, “Forget“, disco de canções evocativas, algures entre a pop, o rock, a soul e as electrónicas mais lúdicas. No módulo Cinema Expandido, que propõe o cruzamento entre áreas de grande impacto da cultura popular, a exposição “Stereo” juntará seis duplas de criadores portugueses, entre eles Legendary Tiger Man e Rodrigo Areias, Manuel João Vieira e Bruno Almeida, Zé

São sete cineastas, seis deles com muita experiência atrás da câmara e um deles com muita experiência em frente à câmara, juntos com um objectivo: retratar a capital cubana, Havana. Laurent Cantet (“A Turma”), Gaspar Noé (“Irreversível”), Elia Suleiman (“O Tempo Que Resta”), Julio Medem (“Lucia y el Sexo”), Pablo Trapero (“Família Rodante”) e Juan Carlos Tabío (“Lista de Espera”) juntam-se ao actor porto-riquenho Benicio Del Toro no projecto “7 Days In Havana”. A ideia é simples: reunir sete curtas sobre a cidade. O projecto foi apresentado a semana passada no Havana Film Festival e vai ser produzido pela Full House em conjunto com a Morena Films. De acordo com a revista “Variety”, citando Didar Domehri, da Full House, “7 Days In Havana” vai “representar a visão que os turistas têm de Havana e retratar o dia-a-dia [dos habitantes] da cidade”. A revista avança com sinopses de cada uma das curtas: Trapero vai contar a história de um actor que visita Havana para receber um prémio; o espanhol Medem vai retratar um triângulo amoroso; Cantet vai focar-se numa família praticante de uma antiga religião e Tabío vai mostrar a vida

de um grupo de jovens cubanos. Benicio Del Toro vai dirigir uma curta sobre um turista norte-americano e as suas primeiras 24 horas no país. Para o actor-realizador, a participação em “7 Days In Havana” será a sua segunda tentativa na realização, depois da curta “Submission” (1995). Venceu um Óscar para Melhor Actor Secundário em “Traffic- Ninguém Sai Ileso”, realizado por Steven Soderbergh, com quem trabalhou há dois anos num biopic sobre a vida de Ernesto “Che” Guevara, papel que lhe deu o prémio de interpretação em Cannes. O episódio de Gaspar Noé, o nome mais controverso dos sete (é o autor de “Irreversível”), vai mostrar um exorcismo. O realizador de nacionalidade francesa nascido na Argentina estreou há pouco “Enter the Void”, filme que conta a tentativa de reencarnação da alma de um jovem, depois de ser baleado pela polícia na casa de banho de um bar – o espectador acompanha a alma de Oscar a voar pela cidade e vê

memórias dos

acontecimentos que o levaram ao bar onde foi morto e da sua relação quase incestuosa com Linda, a irmã.O palestiniano Elia Suleiman, que foi alvo de uma retrospectiva na última edição do Estoril Film Festival, participa com uma curta sobre um estrangeiro que chega a Havana pela primeira vez e deambula pela cidade à espera que algo aconteça. Muita curiosidade, finalmente, espera o trabalho de Cantet, o vencedor da Palma de Ouro de Cannes com “A Turma”.“7 Days In Havana” é uma declaração de amor a uma cidade como “New York I Love You” (2009) ou “Paris’ Je t’aime” (2006), filmes que reuniram realizadores como Fatih Akin, Yvan Attal, Shunki Iwai, Alfonso Cuarón, Walter Salles e Gus Van Sant. Há uma especificidade: em “7 Days in Havana” as personagens principais de cada segmento participam nos outros filmes como secundárias. A rodagem deve começar no início do próximo ano, com um orçamento de 3 milhões de euros.

Havana I love you

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Directora Bárbara ReisEditor Vasco Câmara, Inês Nadais (adjunta)Conselho editorial Isabel Coutinho, Óscar Faria, Cristina Fernandes, Vítor Belanciano Design Mark Porter, Simon Esterson, Kuchar SwaraDirectora de arte Sónia MatosDesigners Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana SoaresEditor de fotografi a Miguel MadeiraE-mail: [email protected]

Ficha Técnica

SumárioAlain Platel 6Achávamos que o conhecíamos de cor, mas “Out of Context- for Pina” mostra-o renovado

Günter Grass 12Vai mudar de ferramentas

Tony Belloto 14O mundo do rock por um Titã

Luís Sepúlveda 16Tocou-lhe ser a memória

MGMT 22O concerto, depois do “caso” “Congratulations”

Joaquin Phoenix 31Será que ele ainda está aqui?

Trapero vai contar a história de um actorque visita Havana para receber um prémio; oespanhol Medem vairetratar umtriângulo amoroso; Cantet vai focar-se numafamíliapraticante de uma antiga religião e Tabíovai mostrar a vida

a voar pela cidade e vêmemórias

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Laurent Cantet e Benicio del Toro estão envolvidos no projecto sobre Havana

Twin Shadow, dia 26 de Maio em Vila do Conde

Lança-mento

O livro “Atelier Bugio João Favila Menezes” vai ser apresentado pelo arquitecto Rui Mendes no dia 21, às 19h no À Margem, em Belém. Edição bilingue em português e inglês, contém textos dos arquitectos João Belo Rodeia e Paulo David e do escritor Pedro Paixão, entre outros. Bugio é o nome do atelier fundado por João Luis Sousa Menezes em 1980 e o livro reúne os “trabalhos mais relevantes compreendidos entre 1994 e 2010”, de acordo com a editora A+A Books.

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4 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Pedro (Xutos & Pontapés) e Dead Combo com João Louro.

Helen Mirrencontra a falocracia em Hollywood

Helen Mirren causou esta semana espanto em Hollywood ao acusar os cineastas de não darem oportunidades às mulheres. “Com todo o respeito pelas mulheres brilhantes e bem-sucedidas na sala, muito pouco mudou em Hollywood: quem faz os filmes continua a venerar homens dos 18 aos 25 anos os seus pénis”, disse a actriz britânica de 65 anos no seu discurso. Falava num pequeno-almoço anual dedicado às 100 mulheres mais poderosas da indústria do espectáculo, promovido pela “Hollywood Reporter”, e disse sentir-se ressentida por ter assistido à

“sobrevivência de muitos actores medíocres e ao desaparecimento, a nível profissional, de muitas actrizes brilhantes”. “Virtualmente todos os dramas escritos para cinema, televisão ou palco têm 20 personagens masculinas para uma, duas ou talvez três

personagens femininas, isso com sorte” acrescentou. Isso

terá influenciado a sua decisão de

participar em “The Tempest”.

No filme, adaptação de Julie Taymor da peça de Shakes-peare, Mirren

interpreta Prospera, personagem que na versão original é um homem, e se chama Prospero.A actriz de 65 anos continua a ser considerada uma das mais sensuais de Hollywood, mas preferia que as pessoas focassem as suas atenções noutros aspectos da sua carreira. Em entrevista à “Hollywood Reporter”, mostrou-se “irritada” com as constantes referências à sua beleza. “Temos que parar com esta porcaria. Isto só cria ainda mais pressão nas mulheres e não quero fazer parte disso. O facto de eu ‘parecer bem’ com esta idade é completamente irrelevante”, acrescentou. “Porque é que não falamos do facto de eu ter acabado de filmar ‘Arthur’ e de o director de fotografia e operador de câmara serem mulheres? Era a isso que devíamos prestar atenção”.“Red - Perigosos”, que conta com a actriz no elenco, juntamente com Bruce Willis, John Malkovich e Morgan Freeman, estreou em Portugal no dia 11 de Novembro. Na semana passada chegou às salas “A Última Estação”, de Michael Hoffman, filme sobre Lev Tolstói (Christopher Plummer) e a sua mulher, Sofya (Mirren), que valeu aos dois actores uma nomeação para a edição de 2010 de os Óscares.

Scorsese e De Niro, de novo bons rapazes

“Irishman” vai voltar a reunir Martin Scorsese e Robert De Niro, juntos já oito vezes, em filmes como “Os Cavaleiros do Asfalto”, “Taxi Driver” ou “O Touro Enraivecido”. Uma adaptação do livro “I Heard You Paint Houses” de Charles Brandt, “Irishman” mostra a transformação de Frank “The Irishman” Sheeran, de sindicalista para assassino. De acordo com o “Hollywood Reporter”, Scorsese pode mesmo começar a filmar no próximo ano. Steven Zaillian, que foi nomeado para os prémios da Academia para Melhor Argumento Original por “Gangs of New York”, vai escrever o guião. O realizador de 68 anos encontra-se a filmar “Hugo Cabret”, que marca a sua estreia no 3D. O filme tem estreia marcada nos EUA para 9 de Dezembro de 2011 e conta a história de um rapaz que vive em segredo numa estação de comboios de Paris. Do elenco fazem parte actores como Ben Kingsley, Ray Winstone, Chloë Moretz, Emily Mortimer, Sacha

Baron Cohen e Jude Law. O último filme de Scorsese, “Shutter Island”, foi protagonizado por Leonardo DiCaprio, que depois de DeNiro passou a ser o cúmplice do realizador. Robert De Niro pode ser visto nas salas portuguesas em “Machete”, de Robert Rodriguez e até ao final do ano estreiam mais dois filmes com o actor: “Stone - Ninguém é Inocente” e “Não Há Família Pior!”.

Novo “Alien” de Ridley Scott já tem título

Mais de 30 anos depois de “Alien - O 8º Passageiro”, Ridley Scott regressa à “franchise”. A prequela de “O 8º Passageiro” vai estar dividida em duas partes e vai chamar-se “Paradise”. A “NY Magazine” avança que a história deste regresso, tal como o original, vai centrar-se num grupo de viajantes espaciais a tentar sobreviver ao encontro com uma monstruosa criatura alienígena. Segundo a revista, a actriz sueca Noomi Rapace (Lisbeth Salander na adaptação da trilogia Millennium, de Stieg Larsson) deve encarnar Elizabeth Shaw, a personagem principal. Ridley Scott está interessado em Michael Fassbender (“Fome”, “Sacanas Sem Lei”) para representar David, um andróide, mas a “NY Magazine” adianta que a negociação com os agentes do irlandês de origem alemã está difícil. Para o papel de Vickers, uma personagem que a revista descreve como uma “mulher na casa dos quarenta, dura mas sensual”, o realizador inglês quer Michelle Yeoh (“O Tigre e o Dragão” e “Missão Solar”). A produção do filme deve começar já em Março. O último filme da série foi “Alien: O Regresso”, de 1997, realizado pelo francês Jean-Pierre Jeunet (“O Fabuloso Destino de Amélie”).

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Peter Brook encena Flauta Mágica em Paris Em Portugal só em Maio do próximo ano - Guimarães (5, Centro Cultural Vila Flor) e Porto (8 e 9, Teatro Nacional S. João) -, mas até ao fim deste mês ainda pode ir até Paris ver “Une Flûte Enchantée”, uma encenação de Peter Brook da célebre ópera de Mozart. De uma eficácia a toda a prova, o espectáculo aplica o método de encenação de Brook, ausente de efeitos e expositivo, reduzindo a ópera, normalmente de quatro horas, para uma hora e meia sem que se sinta que estamos a perder aspectos singulares.Usando uma versão para piano, alternadamente interpretado por Franck Krawczyk e Matan Porat, a encenação guarda as mais célebres árias e deixa a narrativa para os diálogos, que o conjunto dos intérpretes gere com humor e sagacidade.É o próprio teatro que serve de cenário para a floresta, o palácio da Rainha da Noite ou a prisão dos dois amantes, Tamino et Pamina ( Jeanne Zaepffel, na foto), no palácio de Sarastro. Iluminado numintenso vermelho, e usando varas de cana como material cenográfico, Brook estabelece um espaço limpo e liberto de simbolismos, tanto mais surpreendente por se tratar de uma ópera que habita num território onírico.De pés nus, os intérpretes preenchem a cena com a qualidade de uma interpretação onde se evidencia o primado da palavra e, sobretudo, através da concentração da acção, se exploram, sem disfarces, as fragilidades das personagens. A peça integra a programação do Festival d’Automne, estreou no dia 9 de Novembro e tem prevista uma digressão que a levará ainda aos Estados Unidos da América, República Checa, Espanha, Itália, Holanda e Alemanha. Tiago Bartolomeu Costa em Paris

mulheres mais poderosas da indústria do espectáculo, promovido pela “Hollywood Reporter”, e disse sentir-se reressentida por ter assistido à

“s“ obrevivência de muitos actoremmedíocres e ao desaparecimento, a nível profissional, de muitas actrizes brilhantes”. “Virtualmente todos os dramas escritos para cinematelevisão ou palco têm 20 personagens masculinas parauma, duas ou talvez três

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participar em “The Tempest”

No filme, adaptação dJulie Taymoda peça deShakes-peare, Mirren

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Helen Mirren: “quem faz os fi lmes continua a venerar homens dos 18 aos 25 anos os seus pénis”

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Scott faz a “prequela” ao “O 8º Passageiro”, mas continua a ser um grupo de homens, uma mulher e uma criatura

Scorsese e De Niro, juntos em “Irishman”

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Começar de novo

Peça grandiosa, convida-nos a olhar,

como se fosse pela primeira vez, para um autor que achávamos

saber de cor. “Out of Context - for Pina”

é um Alain Platel renovado,

mais centrado no corpo do que nunca. E mais silencioso do que imaginávamos.

Hoje em Guimarães, no Centro Cultural

Vila Flor, domingo e segunda-feira, em Lisboa, no

Teatro Maria Matos. Tiago Bartolomeu

Costa, em Paris

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o com Alain Platel

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8 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Com “Out of Context - for Pina” é um outro Alain Platel que se apresenta. Não há efeitos coreográficos vorazes, nem uma arqui-estrutura que esma-ga. Não há sequer um fio que nos con-duza. Mas há, como sempre, corpos que parecem vir de um outro mundo e, por virem de longe, nos surpreen-dem pelo modo como se relevam, intensos, presentes, inteiros.

Longe das pesadas máquinas céni-cas que nos últimos tempos nos trou-xe – “Vsprs” (2006), a partir de “Ves-pro della Beata Vergine” de Monte-verdi, ou “Pitié!” (2009), a partir da “Paixão segundo de São Mateus” de Bach –, e antes de regressar com “Gar-dénia” (18 e 19 Fevereiro 2011), diver-timento seríssimo e agridoce sobre o travestismo, eis uma peça que, em jeito de homenagem a Pina Bausch, se apresenta sem outro mistério que não seja o do movimento.

São corpos praticamente nus, em-brulhados em cobertores, que falam pouco e, quando o fazem, citam ridí-culas canções de amor. São corpos mudos, ou quase mudos, que usam o movimento não como matéria para a acção, mas como a própria acção. E, por isso, mais do que corpos, são espectros que deambulam num palco vazio, imersos numa paisagem sono-ra hipnotizante, à espera de nada. À espera de nós.

Alain Platel, 51 anos, coreógrafo que se reiventou depois de mais de vinte anos à procura de uma ordem para o seu movimento, fala-nos hoje de um lugar mais sereno, onde a ur-gência tem mais a ver com o presente do que com o futuro. E, por isso, quando o questionamos, a resposta só pode ser a de um homem tranqui-lo. E inquieto, porque tranquilo.

Pina Bausch dizia que a alegada liberdade característica do seu

movimento vinha do imenso trabalho que nele colocava. A mesma ideia parece estar presente nesta peça.Existe diferença entre o que se vê e o que se sente porque o que se vê é sem-pre testemunhado a partir de um pon-to de vista diferente. Estamos a falar de processos sentimentais e emotivos

Estreada em 2009, a peça

explora um movimento

mais livre, com menos

efeitos. Alain Platel

quis saber até onde podia

esticar a corda

que ultrapassam as estruturas das próprias peças. Hoje acho que um dos grandes objectivos da dança é conse-guir ser-se ambicioso nesse sentido e encontrar um modo diferente de co-municar. Era isso que acontecia entre mim e Pina. Das várias vezes em que estivemos juntos nunca falámos de dança ou de arte no geral. Falávamos de outras coisas. E isso é uma forma de entender o que ela dizia sobre o movimento ter que ser auto-susten-tado. Ele não existe por si só.“Out of context - for Pina” explora uma tensão entre um movimento interior, pertencente ao tempo do intérprete, e um movimento colectivo, que surge a partir do confronto entre bailarinos e espectadores...Ouço-o e isso parece lógico, mas não tinha pensado nisso assim. Não tra-balho com esse género de jogos, as coisas acontecem e vamos descobrin-do ao longo do processo o que que-remos fazer. Claro que me interessa encontrar não uma nova forma, mas uma forma diferente de fazer o que faço. Mas seria muito difícil consegui-lo se isso fosse uma estratégia.Trabalha mais por intuição do que estratégia?É verdade que neste projecto fui mais insistente, do que em outros, em ter-mos de objectivos a traçar. Tentei ser muito menos aberto a compromissos, ainda que goste muito deles, porque exercem influências e podem enri-quecer todos os elementos envolvidos na peça. Mas aqui era muito mais “sim” ou “não”, e muito mais “não” do que “sim”.

De qualquer forma, é tudo sempre muito mais profundo. Há um tempo de descoberta, e por vezes não sou capaz de falar disso, porque quando as coisas parecem novas não há mui-tas palavras que as possam descrever. Talvez por isso, no meu percurso, a linguagem corporal se torne tão forte, porque encontra o seu próprio cami-nho, faz o seu trabalho.E daí se sentir este diálogo entre o balanço e desequilíbrio que percorre toda a peça e, de certa forma, contamina o próprio corpo e movimento dos intérpretes.

Acho que foi o [bailarino português] Romeu Runa que disse que em “Out of context” estamos a criar um con-texto e isso foi muito engraçado de descobrir, porque não se pode estar fora de contexto. Há sempre um con-texto à nossa espera.Aqui foi uma homenagem a Pina Bausch?Apesar de ter estreado em Outubro de 2009 a peça não mudou depois da morte dela [três meses antes] porque já estava a trabalhar antes. Inclusiva-mente o subtítulo [“for Pina”] desa-pareceu durante os ensaios, porque não queríamos criar uma pressão des-necessária. Era, sobretudo, um pre-sente para Pina, em resposta ao modo sempre tão generoso com que ela se relacionava com os outros. Queria que se fizessem referências ao traba-lho dela, mas nunca pensámos numa homenagem.O que prevaleceu então?Neste formato foi muito fácil aceitar que as coisas acontecessem e deixar que encontrassem o seu lugar. Havia uma pré-disposição para fazer esta viagem e, ao mesmo tempo, para per-ceber até onde se pode esticar a corda, e que cordas podem ser esticadas.

Quando a peça começa, e para vol-tar à pergunta inicial, há um tempo que se instala e que é comum aos es-pectadores e aos intérpretes. Eles aparecem em palco, despem-se, en-rolam-se num cobertor, levam tempo até conquistarem o espaço. Tudo isso podia ser mais curto, mas se o fosse seria muito artificial, acho. Depois disso tudo é possível, porque esse tempo da acção, que é um tempo re-al, aproxima os intérpretes do públi-co, que percebe de onde é que eles vêm. Não há outro contexto, como em “Pitié!”, onde os bailarinos e os músicos se relacionavam com a mú-sica ou o tema da peça. Aqui pergun-tamo-nos quem são estas pessoas que chegam desta forma, formando esta massa, através dos cobertores. Per-cebemos que estão preparados para uma viagem. E se esta vai de A a Z, em vez de A a B, isso é aparentemen-te possível. Claro que o meu trabalho é fazer as ligações, iludindo grandes contrastes. E isso é muito difícil, mas também muito precioso.

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“Há um momento na peça em que Romeu Runa pergunta se alguém quer dançar com ele. A primeira vez que o tentámos foi em Hamburgo, durante o Tanzkongress. Havia mil pessoas a assistir, todas elas a viver da dança, fosse a escrever, a coreografar, a pensar ou a dançar. E, perante essa simples pergunta, ninguém veio ter com ele. Isso foi chocante, mesmo para os bailarinos”

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10 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Porque nem sempre é evidente em que momento se pede ao espectador que acompanhe a viagem...Há um momento na peça em que Ro-meu Runa pergunta se alguém quer dançar com ele. A primeira vez que o tentámos foi em Hamburgo, duran-te o Tanzkongress [congresso mundial de dança que acontece de dois em dois anos]. Havia mil pessoas a assis-tir, todas elas a viver da dança, fosse a escrever, a coreografar, a pensar ou a dançar. E, perante essa simples per-gunta, ninguém veio ter com ele. Isso foi chocante, mesmo para os bailari-nos. Ali estavam eles, vivos, em fren-te a outras pessoas que pugnam por uma dança também ela viva, e quan-do alguém lhes perguntou, ninguém apareceu. As pessoas com quem falei [noutras apresentações] e que acei-taram ir ao palco disseram que o fa-ziam porque não aguentavam que ninguém fizesse nada. Em Bruxelas houve um espectador que tirou a rou-pa, ficando igual aos intérpretes.Isso não se pode controlar.Não, nunca se sabe. É um momento muito frágil. Mas se ninguém vier, a questão fica, e fica também a culpa de ninguém ir.A peça está cheia de momentos desses, quase catárticos...... e a catarse nunca chega.Pois não, mas isso não impede que existam zonas que vivem de uma relação no presente e, por isso, irrepetível com as expectativas do espectador, denunciando assim a incompletude do movimento. Assim sendo, quando acha que

A peça vive desse imponderável, desse ambicioso desejo de nos fazer acreditar na surpresa

No início a cena está vazia. Os intérpretes demorarão a chegar ao palco, vindos da plateia, onde estavam sentados, iguais aos espectadores. Despirão as roupas casuais que trazem e embrulhar-se-ão em puídos cobertores laranja. E ficarão por ali, a deambular, à espera que algo aconteça. À espera que seja não o

tempo coreográfico, mas o tempo emocional a ditar as regras, as frases, os movimentos e a estrutura.

É um processo de permanente início aquele que se estabelece em “Out of context – for Pina”, peça que Alain Platel assinou depois desse monumento que foi “Pitié!”, criado a partir da obra de Bach, “Paixão segundo São Mateus” (CCB e Teatro Nacional São João, 2009). Aos bailarinos já não lhes é pedido que se esgotem em cada movimento, como aconteceu em outras peças de Platel. O prazer, mesmo que físico, tem que ser interior antes de ser exterior. E é por isso que esta é uma peça onde não existe lógica pré-determinista que condicione o significado do que fazem, promovendo, antes, uma intenção exploratória do potencial do movimento sem objectivos.

A peça não é tanto uma homenagem a Pina Bausch, que morreu no Verão de 2009, no sentido de referência directa e explícita, como o é enquanto reconhecimento do percurso aberto pela coreógrafa. Percebe-se isso pelo modo como os bailarinos encontram um espaço individual dentro de uma estrutura que os agrega. E ainda pela capacidade de trabalharem essa individualidade não apenas no plano físico, mas no plano emocional.

A relação de proximidade e identificação que Pina procurava instituir nas suas peças, eventualmente mais evidente na série criada a partir de cidades – onde se incluiu Lisboa em “Masurca Fogo” (1998) –, está aqui presente no convite explícito à observação e à partilha. À observação dos corpos que se libertam nas linhas de um movimento também ele mais desprendido, mais físico sem ser gutural, como muitas vezes o foi. À partilha de referências, visuais, coreográficas e musicais, iniciadoras de um processo de construção referencial comum.

Alain Platel desenha linhas que se emaranham a partir dos percursos de cada bailarino, devolvendo-lhes o que são notórias distinções físicas, diferentes modos de intervir e de agir perante o movimento. Assumindo esse como o único material passível de ser trabalhado, o coreógrafo belga abandona as arqui-estruturas que estiveram na base de trabalhos anteriores para apresentar uma peça que não é menos política nem menos implicada do que as anteriores. Talvez o seja, até, mais do que as outras.

Ao reclamar o primado do movimento como o ponto de convergência entre o seu olhar, a funcionalidade do intérprete face ao movimento e o significado

que o espectador lhe atribui, Platel liberta a peça de qualquer intenção moralista ou definitiva. E liberta-se também, enquanto autor, de um peso descritivo que sempre tendeu a carregar as suas peças de uma “feérie” insana. Essa decisão, mais ou menos intuitiva – ou instintiva – ou mais ou menos estratégica reclama para o seu discurso o direito à reconstrução. Ou seja: evidencia o desejo de não dar as fórmulas por garantidas.

Há, em todo este processo, uma dimensão de clarificação do próprio significado primário do gesto, obedecendo a estrutura a um apaziguamento em relação à suficiência do movimento. Uma suficiência que advém de uma distinção entre o essencial e o acessório, entre as diferentes camadas de leitura que um movimento pode conter, entre os espaços em branco, propositadamente por preencher, entre uma sequência e outra. Em suma, um desejo intrínseco de habitar a estrutura em vez de deixar a estrutura consumir o movimento. Será por isso que, ao longo do espectáculo, vamos encontrar zonas que poderíamos apelidar de “terra de ninguém”, onde os bailarinos podem explorar o desequilíbrio sugerido pelas permanentes acumulações de personagem e realidade. Ou ainda quando é a própria estrutura da peça que se permite uma invasão/contaminação por outros elementos, exteriores, que ocupam a cena e alteram o centro de acção.

Essa introdução, sempre diferente em cada apresentação, não apenas valida a ideia de permanente início, como força uma defesa do que se passa em palco naquele momento.

E “Out of context - for Pina” vive desse imponderável, desse ambicioso desejo de nos fazer acreditar na surpresa. Quando os bailarinos interpretam – na sequência-chave da peça – um conjunto de canções pop, como se fossem poemas que carecem de uma voz, ou mensagens importantes que não querem deixar de fazer passar, fazem-no, de facto, assumindo não apenas o lado paródico, mas o verdadeiro dramatismo da universalização e da generalização vazia dos discursos políticos, simbólicos ou amorosos.

É pela reclamação de um outro espaço, não necessariamente novo nem original, mas um que possam chamar seu, que este espectáculo batalha. A memória de Pina estará presente aí, mais como inspiração do que como reverência, nesse inconformismo que funciona como atrito no interior da máquina, pesada e poderosa, mas necessariamente mutante.

Cada um dos bailarinos, desenvolvendo uma gestualidade que, por vezes, se vê espelhada num outro corpo, outras vezes contrariada, muitas vezes ampliada, contribui para esse território imaginário onde a peça pode existir. O convite que é lançado assenta num princípio de identificação que é, numa primeira fase, lúdico, depois se torna mais introspectivo, logo depois especulativo, e algumas vezes errante. Mas sempre como um balão a precisar permanentemente de ser soprado, expectante. E será, talvez, por isso, que cada convite feito em palco não é artificial, não é dramatúrgico, não é ficcional. É um convite para que, juntos, se possa começar.

No fim, como se tudo o que aconteceu não tivesse passado de uma hipótese, o palco volta a ficar vazio.

Um movimento que seja seu

Comen-tário

Tiago Bartolomeu Costa

“Um dos grandes

objectivos da dança é

conseguir ser-se ambicioso e

encontrar um modo diferente

de comunicar. Era isso que

acontecia entre mim e

Pina. Nunca falámos de

dança ou de arte no geral.

Falávamos de outras coisas”

Pina Bausch morreu no verão de 2009. Alain Platel não quis fazer-lhe uma homenagem, mas tê-la como referência

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 11

pode dizer que uma peça está pronta?Neste caso, dez dias antes da estreia. Mas, às vezes, só quatro ou cinco dias antes. Quando estreia é porque está perto do fim, e só sobram detalhes. E, depois da estreia, não mudo as coi-sas. Não vejo que uma peça possa mudar radicalmente depois da es-treia. Mas muda muito em termos de presença ao longo das apresentações. E isso não se pode prever completa-mente.E lida como com essa incompletude?Esta peça toca em zonas muito pro-fundas que, na altura da estreia, não o sentimos. Hoje, quando olho para ela, percebo que sou responsável por “isto”, sou consciente do que fiz. Mas o modo como ela se tornou uma en-tidade viva, não sei qual foi.Descobre coisas no seu trabalho quando o vê?Sim, pelo modo como as pessoas fa-lam dele. Tanto interna como exter-namente. Tenho a minha própria fantasia quando vejo o espectáculo, vejo o que os bailarinos fazem, mas só percebo o que querem dizer atra-vés do efeito que as pessoas dizem que teve nelas. Por isso, pode ser in-teressante ler, por vezes, sobre o que se fez. Nem sempre, mas às vezes.Ainda se pode surpreender pelo que escrevem e dizem sobre o que não tinha pensado fazer ou não tinha previsto?Claro. Durante os ensaios a minha mãe, que tem 80 anos, veio ver a pe-ça. Estávamos a um mês da estreia. E estávamos ainda a trabalhar a paisa-gem sonora, quando o microfone caiu e ouvimos um baque, seguido de um “tic-tic”, e ela disse que se lembrava de sons de guerra que ouvia durante a noite. Isso fez-me olhar para aquele momento de modo diferente. Eu cha-mo-lhe “o efeito Iraque”. Algo muito distante no deserto onde há uma guerra a decorrer. Era só um som de que eu gostava e agora tinha um sig-nificado. Isso foi uma surpresa.Mas a peça está cheia de zonas dessas, onde é a interpretação do espectador que activa os sentidos do movimento.

Eu gosto muito do modo como a peça começa, e os bailarinos também, mas era a sequência que mais me assusta-va. Não tinha uma ligação com ela, era muito severo, não me parecia bem. Não sei o que a faz funcionar, mas há uma forma muito fria de se construir, que não cabe em nada do que fiz, nem se compromete com o prazer que se pode ter, ou dar, no iní-cio de uma peça.Porque instala uma aridez e uma frieza no movimento que o vai obrigar a uma justificação pela acção ao invés de seguir um esquema formal de narratividade?Sim, é um movimento muito frio o desta peça. Isso, e o lado técnico, preocuparam-me. O que procurei construir foi uma paisagem feita a partir dos movimentos de cada intér-prete, onde se produzissem encon-tros. Cada movimento tem a sua his-tória, dependente de quem o faz. Não é transmissível, mesmo que em certos momentos [os bailarinos] possam es-tar a fazer a mesma frase.Ou possam, em momentos musicais distintos, uns mais clássicos, outros mais pop, reagir da mesma maneira porque, afinal, são o mesmo corpo.Exactamente. Eu não modelo aqueles corpos. Dou-lhes liberdade para ex-plorarem as ideias, ideias que nem sempre são precisas. Vendo-os vou descobrindo mais e mais. É isso que gostava que acontecesse a quem vê a peça. Não sei se estamos sempre cer-tos do lugar que cada um vai ocupar. Há pessoas com as quais se pode ir muito longe e outras não. Alguns po-dem dar mais que outros, porque têm inspiração ilimitada, e outros têm um outro tempo de descoberta e explo-ração.Como escolhe os bailarinos?É frequente as pessoas escreverem-me, como aconteceu com Romeu Runa. Mas a maioria das pessoas nes-ta peça conheci-as através de audi-ções, que também não são a melhor forma de conhecer pessoas.Mas não procura uma coisa específica?Têm que ser boas pessoas, simpáticas e que não gostam de confronto. Têm que ser muito bonitas em palco, e têm que dançar, o que é raro de en-contrar, especialmente em bailarinos contemporâneos. As pessoas querem falar sobre isso, não querem dançar. Eu gosto de uma certa timidez, de uma certa reserva. Isto combinado com a alegria criada pelo movimento é a comunicação perfeita. Já trabalhei com pessoas que gostavam de confli-tos e já não consigo. Há intérpretes que conseguem encontrar inspiração em conflitos, isso não deixa de me impressionar, mas entristece-me. Descobri que ser simpático é muito compensador porque torna toda a atmosfera mais doce, calma e leve. Tenho bailarinos que são muito pro-vocadores, mas uma coisa não con-tradiz a outra, porque é feito com amor, porque querem levar toda a gente para a frente, e não iniciar uma batalha.Desliga-se das peças que faz?Não, é muito difícil. É como lhe dizia: às vezes surpreendo-me com o que fiz. Pergunto-me como cheguei ali. Mas é verdade que não as acompanho em todas as deslocações. E mesmo que possa ver algumas coisas erradas, sei que os bailarinos são capazes de resolver o problema. Afinal, são eles que ali estão, mesmo quando é muito aborrecido fazer uma peça cinquen-ta ou cem vezes. Quando estou com eles, é muito divertido estarmos jun-tos. Espero que não pareça que os estou a controlar.

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12 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Aos 83 anos de idade, o escritor ale-mão Günter Grass (n. 1927), Nobel da Literatura em 1999, deu como encer-rada a sua obra literária com a publi-cação, há três meses, do terceiro vo-lume da autobiografia, “Grimms Wör-ter. Eine Lieberserklärung” (As Palavras dos Grimm. Uma declaração de amor) – cuja edição portuguesa está prevista para 2011 (Casa das Le-tras). “Falta-me o ânimo para escre-ver. Acabou o meu prazo de validade. Já escrevi tudo. Na minha idade, já se começa a ficar surpreendido quando chegamos à próxima Primavera. E eu sei o tempo que um livro pode demo-rar a escrever.” Esta confissão foi fei-ta na noite da passada sexta-feira no E.T.A. Hoffmann Theater, em Bam-berg – pequena cidade do Norte da Baviera –, perante um auditório de meio milhar de pessoas. (os bilhetes para assistir à leitura de alguns excer-tos do último livro de Grass, pela voz do próprio, e ouvir algumas palavras sobre o autor e as razões que o leva-ram a escrever uma autobiografia dedicada aos irmãos Grimm, custa-vam entre 9 e 16 euros; e estavam esgotados havia mais de uma sema-na.) Sobre o que vai então fazer, dis-se: “A idade da reforma nunca chega para um artista. Há sempre uma ten-tativa de se fazer uma coisa mais per-feita, nunca se fica contente com o resultado e temos sempre o senti-mento de que o que se fez é insufi-ciente. Por isso, depois de tantos anos a escrever, vou mudar de ferramen-tas. Vou voltar a pintar. Quando es-tendo as mãos, vejo que elas ainda não tremem, por isso vou continuar. Vou começar por desenhar e pintar novas ilustrações, e também a capa, para a reedição de um romance que me é muito querido e que foi publi-cado pela primeira vez há quase 50 anos, ‘Hundejahre’ [edição portugue-sa “O Cão de Hitler”, o último volume da “Trilogia de Danzig”, iniciada com o famoso “O Tambor de Lata”]. Este meio século que entretanto passou permite-me ter um outro olhar sobre o que então escrevi. Eu tinha 35 anos. Depois talvez vá fazendo o mesmo para os outros que se seguiram.” E

mais tarde, à pergunta se iria voltar a escrever poesia (Grass começou a sua actividade literária como poeta, no chamado “Grupo 47”), disse ao Ípsilon que sim, que “com a idade a poesia lhe chegava com mais facili-dade”, que as palavras estavam “mais soltas”.

Política e os irmãos GrimmA autobiografia de Günter Grass ini-ciou-se com o polémico volume “Des-cascando a Cebola” (Casa das Letras, 2007) – que descreve o período entre 1939 e 1959 (data da publicação de “O Tambor de Lata”) – e onde revela que aos 17 anos de idade se alistara volun-tariamente nas Waffen-SS (já este ano, numa entrevista à “Spiegel”, disse que o alistamento não foi voluntário, co-mo aliás aconteceu a muitos jovens alemães à época). O homem que no debate público sempre criticou feroz-mente os defeitos da Alemanha – que pretendeu ser durante mais de trinta anos uma espécie de “consciência moral da nação alemã” – não teve co-ragem, durante décadas, de se criticar a si próprio. A sua “honestidade tar-dia” quase atingiu a dimensão de es-cândalo nacional.

A esse primeiro volume seguiu-se “A Caixa – histórias da câmara escura” (Casa das Letras, 2009), que abrange o período entre 1959 e 1999 (ano em que lhe foi atribuído o Nobel). Para este livro, Grass arquitectou uma for-ma narrativa mais “soft”, de maneira a que os assuntos tratados o deixas-sem a salvo de críticas indesejadas, e apontou os focos narrativos, essen-cialmente, para a vida familiar, para os seus problemas económicos, para as mudanças de casa, para os casa-mentos, para os filhos. “A Caixa” en-contrada por Grass (e porque é de um objecto que se trata, uma máquina fotográfica antiga) é uma espécie de instância autoral que ilumina as trevas do seu passado – é um objecto bem ao seu gosto, que mergulha nas águas turvas da história contemporânea ao mesmo tempo que procura auscultar o destino do Homem. Finalmente, o terceiro volume agora publicado, “Grimms Wörter. Eine Lieber-

serklärung” (As Palavras dos Grimm. Uma declaração de amor), é sobretu-do um contar sobre a sua intensa ac-tividade política durante várias déca-das, sobre a literatura, sobre a língua alemã e a arte de contar histórias.

Os irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), recolheram durante décadas as antigas narrativas que viviam apenas na memória po-pular e no folclore alemão (apesar de muitas delas serem comuns, em dife-rentes versões, um pouco por toda a Europa). A essas fábulas, que escre-veram numa linguagem directa, de-ram uma roupagem literária de his-tórias infantis, com uma temática expurgada dos aspectos mais violen-tos, e sempre em redor de aconteci-mentos mágicos, um pouco à manei-ra de Hans Christian Andersen. Os

temas focaram-se sobretudo na soli-dariedade e no amor ao próximo. Grass confessou que cresceu “envol-vido por essas histórias”, e que foram elas que lhe deram o gosto pela lite-ratura, pela arte de contar e pelas subtilezas da língua.

“Ainda em Danzig [cidade onde Grass nasceu, actual Gdansk, na Po-lónia] cheguei a assistir, levado pela minha mãe, a uma peça dos irmãos Grimm no teatro da cidade, por altu-ras do Advento, era a história do ‘Tom Thumb’. As histórias dos Grimm in-fluenciaram todo o meu trabalho cria-tivo, e vivem nele. Por exemplo, esse Tom Thumb que vi quando era ainda tão pequeno, vive no Oskar Matzera-th [o rapaz que se recusou a crescer e que é o herói de ‘O Tambor de La-ta’]. E no romance ‘A Ratazana’ eles

Günter Grass

pincéisvai trocar a caneta

O escritor alemão Günter Grass publicou o terceiro volume da sua autobiografi a. E deu por terminada a sua actividade literária, pelo menos

em termos de romances. “Acabou o meu prazo de validade.” Mas um artista não tem idade de reforma, por isso vai mudar de

ferramentas. José Riço Direitinho em Bamberg

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“Falta-me o ânimo para escrever. Acabou o meu prazo de validade. Na minha idade, já se começa a fi car surpreendido quando chegamos à próxima Primavera”

pelos

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 13

estão descritos como um ministro e um deputado que querem parar com a morte das florestas, originada pelas chuvas ácidas.”

Mas onde é que é feita a ligação dos irmãos Grimm com a actividade po-lítica e social da biografia de Grass? “Os Grimm viveram um período mar-cado por mudanças radicais, quer políticas quer sociais. Como eu, que assisti ao dividir e reunificar a Alema-nha, ao erguer e ao cair do Muro de Berlim. O Liberalismo dava os primei-ros passos no século XIX, havia tre-zentas pequenas cidades divididas umas das outras política e economi-camente. Quando eles tiveram a ideia de fazer o Grande Dicionário da Lín-gua Alemã, isso foi uma tentativa de unificação pela língua. Mas não sa-biam bem a tarefa a que tinham me-tido ombros.”

Aqui um parêntesis: os Grimm co-meçaram o dicionário em 1838, e com todas as palavras e frases exemplifi-cativas, à data da morte de Jacob Grimm (1863), este tinha chegado à sexta letra do alfabeto. Foram preci-sas mais umas gerações de linguistas para acabarem o trabalho, cujo último volume foi publicado em 1961, 123 anos depois de ter sido iniciado.

“Uma das minhas intenções ao con-vocar os Grimm para a minha auto-biografia”, diz Grass, “foi também a de os libertar desta visão muito redu-tora, que muita gente tem, de que eles foram sobretudo uns colectores de fábulas do folclore germânico. Não, eles ensinaram-nos a contar histórias e, sobretudo, a gostar de histórias. E ainda o gosto que tenho pelas pala-

vras, mesmo por aquelas que já não se usam mas que de cada vez que as oiço me parecem ressoar mais perto do seu significado.”

Sobre se o Nobel o tinha limitado na escrita, dando-lhe ainda mais res-ponsabilidade social, disse: “De ma-neira nenhuma. Já não era importan-te para mim. Esperei-o durante alguns anos, e quando mo deram já não o esperava. Foi mais importante um prémio alemão, há muitos anos, dado por colegas escritores, e numa altura em que eu atravessava momentos de dificuldades económicas.” E quanto à responsabilidade e intervenção so-cial, queixou-se: “A minha geração parece ser a última que foi activa po-litica e socialmente. Os escritores mais jovens, especialmente os da úl-tima geração, parecem já não querer saber. Fazem mal, porque há cada vez mais temas onde poderiam ser úteis intervindo. E muitas razões para o fazerem.”

Depois do final da sessão, perto das 22 horas, seguiu-se a habitual longa fila para autógrafos e breves trocas de palavras. Tudo isto antes de Günter Grass cumprir uma tradição: comer uma sopa depois de todas as sessões, nem que seja quase meia-noite (como aconteceu), com muitos poucos con-vidados, oferecida por quem o convi-dou para a sessão de leitura. O Ípsilon também esteve presente na Interna-tionales Künstlerhaus Villa Concordia, onde lhe perguntámos sobre o futuro do livro. “Não vai acabar. Vai ter um valor diferente, como antigamente. O de um objecto que podemos deixar aos nossos filhos.”

À pergunta se iria voltar a escrever poesia (Grass começou a sua actividade literária como poeta), disse ao Ípsilon que sim, que “com a idade a poesia lhe chegava com mais facilidade”, que as palavras estavam “mais soltas”

“Vou voltar a pintar. Quando estendo as mãos, vejo que elas ainda não tremem, por isso vou continuar”

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Eureka. Afinal é de Frank Zappa “aquela velha tirada” sobre jornalis-mo de rock: “gente que não sabe es-crever escrevendo para gente que não sabe ler sobre gente que não sabe ler nem escrever”. E é de Mick Jones, guitarrista dos Clash, a frase “não im-porta o ‘que’ se toca, mas ‘quem’ to-ca”. E foi John Lennon que disse nu-ma das canções que a “vida é o que acontece quando se está ocupado com outros planos”.

Tudo isto nos é dito por Teo Zan-quis, ex-guitarrista e narrador de “No Buraco”, o último romance do escri-tor – e guitarrista do grupo rock bra-sileiro Titãs – Tony Bellotto. O livro foi editado em Portugal pela Quetzal, quase ao mesmo tempo que saiu na Companhia das Letras, no Brasil. Nu-ma das suas crónicas deste Verão na revista “Veja”, Bellotto escrevia: “Não é um policial, e fala da vida ‘mui’ atri-bulada de um guitarrista de rock não muito conhecido, Teo Zanquis. Já ou-viu falar?”

Neste livro, o autor de “Um Caso com o Demónio”, abandonou o seu detective Bellini e teve vontade de fa-lar sobre a sua experiência na estrada. São histórias de rockeiros e de outras coisas que tal. Na verdade, o romance nasceu de uma série de contos que foi armazenando num arquivo sem saber o que lhes fazer. “Um dia, ao ler esses contos, vi que eles eram narrados sempre na primeira pessoa e que qua-se todos tinham esse tema do rock, das viagens. Era intencional. Percebi que o narrador era o mesmo em to-dos: era eu”, explica Belloto, na gigan-tesca sala de sua casa, no bairro de Ipanema, Rio de Janeiro.

É claro que “esse cara ia virar per-sonagem”. Então começou a imaginar “esse sujeito” de 50 anos – um guitar-rista de uma banda de rock brasileira que alcançou a fama nos anos 80 com o sucesso “Trevas de luz”, para depois cair no esquecimento - como alguém

que está “naquele vazio existencial que proporciona uma avaliação da vida”. O romance está cheio de hu-mor, sexo, drogas e rock and roll. E já se está mesmo a ver por que é que este é o único livro que só o Tony Bellotto podia ter escrito.

“É muito baseado na minha vivên-cia pessoal [risos]. Nem tudo aconte-ceu, nem tudo é verdade. [ainda mais risos] Mas muito aconteceu também nessa minha profissão de rockeiro brasileiro.” Não deixou de ter presen-te “essa coisa paradoxal que é fazer-se rock num país como o Brasil, onde o rock não é a música mais apreciada” e onde os grandes ídolos do rock dos EUA e da Inglaterra são o único termo de comparação.

Bellotto fez uma primeira versão do romance e mandou-a à sua edito-ra, Marta Garcia, que na Companhia das Letras edita outros autores brasi-leiros como Ruy Castro e Daniel Ga-lera. Ela não gostou e disse-lhe: “Isto é uma mistura das coisas que você já fez. Está muito indefinido, falta algu-ma coisa.” Mandou-lhe o manuscrito de volta.

“‘Que é que eu faço com isto?’ Pri-meiro guardei. Depois, aos poucos, comecei a tentar ver o que é que era bom no livro. Eram justamente as lembranças dele. Peguei as lembran-ças do músico e mudei toda a parte do livro que se passava no presente.” Depois surgiu-lhe uma ideia, enquan-to corria. “O cara iria estar na praia ouvindo as conversas dos outros sem entender direito”. Refez o início e continuou por ali fora. Quando ter-minou, ficou com medo de enviar o manuscrito e de ser rejeitado de novo. “Eu iria ter uma crise, iria parar de escrever, fiquei tenso.” Por essa altu-ra, tinha acabado de ler “Pornopo-peia”, de Reinaldo Moraes (um dos dez finalistas do Prémio Portugal Te-lecom de Literatura 2010) e mandou ao amigo um e-mail a “parabenizar”.

Na resposta, Reinaldo Moraes dizia-lhe que se Bellotto tivesse alguma coi-sa escrita, e quisesse que ele fizesse uma leitura crítica, que lhe enviasse. “Mostrei para ele, Reinaldo me fez umas sugestões, trabalhei em cima do que ele me disse e só depois é que mandei outra vez para a editora.” – o engraçado nesta história é que Rei-naldo Moraes é o marido da editora Marta Garcia.

Tudo isto aconteceu, mais ao menosEm “No Buraco”, o guitarrista Teo Zanquis recorda a sua vida em quar-

tos de hotéis, noites loucas de sexo, de drogas e de álcool. Andar em tour-née “é uma loucura mesmo. Você vi-ve em hotéis. E vai criando um hábito, como se estivesse sempre no mesmo hotel, só que cada dia tem um dife-rente. É uma sensação estranha e muitas coisas acontecem no hotel”, conta.

Ao longo de todo o livro fala-se de literatura ( Jack Kerouac, Schope-nhauer, Bukowski, William Blake, Gabriel García Marquez, Nick Hor-nby) e da história do rock e das trans-formações que têm acontecido ao longo dos anos na música. “A gente vive um momento muito gritante des-

“No Buraco” é uma divertida e melancólica viagem ao mundo do

rock, anos 80 pela estrada fora. Tony Belloto, que é guitarrista dos Titãs, garante, tal como Kurt Vonnegut, que “tudo isto aconteceu, mais ao

menos”. Isabel Coutinho, no Rio de Janeiro

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“Um dia, ao ler esses contos, vi que eles eram narrados na primeira pessoa e que quase todos tinham esse tema do rock, das viagens. Percebi que o narrador erao mesmo em todos: era eu”

Tony Bellotto e uma das suas guitarras

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 15

sa transformação. Há dez anos ven-diam-se muitos discos e agora ven-dem-se muito poucos. O poder que as gravadoras tinham não existe mais. Hoje, no Brasil, o cara que mais ven-de discos é um padre. É estranho. O país já foi o quinto maior mercado do disco do mundo, nos anos 80. Agora ninguém vende nada, um padre ven-de mais do que os próprios músicos. É triste.”

A par de uma enorme ironia surge neste romance, onde alguém deixa a carreira musical porque ficou careca, um tom amargo. Reflecte-se sobre o fracasso e o sucesso, como se não houvesse muita diferença entre uma coisa e outra. “Na minha carreira de músico percebi que o sucesso é mui-to mais uma visão que os outros têm de quem está fazendo sucesso do que da própria pessoa. Claro que a pessoa se ilude, se inebria, em alguns mo-mentos com aquela situação mas a vida pessoal é muito parecida com a de qualquer outro.”

E depois, dentro do que se costuma chamar sucesso existem sempre os pequenos fracassos. “Você se propõe fazer uma coisa, não consegue e sen-te que fracassou. E aos olhos dos ou-tros você está fazendo sucesso ainda. Tudo isso é relativo, dividir as pesso-as entre os que vencem, os que fazem sucesso, os que fracassam... Era essa a ideia que estava na minha cabeça” durante a escrita do livro.

Aos 50 anos, o narrador começa a olhar para todos “esses processos do sucesso como ilusões”, vê aproximar-se o fim da vida e percebe que, afinal, tudo aquilo não significa tanto assim. É o olhar de quem avalia, de quem já vê a finitude como um facto real, de quem perdeu as ilusões da juventude. “Quando se chega nesta idade você percebe que as possibilidades não são infinitas, se vão fechando e que o tempo é finito.”

Tony Belloto fez 50 anos em Junho e a personagem Teo Zanquis apresen-ta-se como “guitarrista escritor” e escreve contos que têm o rock como tema. Nada disto será por acaso, “No Buraco” tem referências autobiográ-ficas. Basta ler a epígrafe retirada de “Matadouro 5” de Kurt Vonnegut: “Tudo isto aconteceu, mais ao me-nos.”

Lá para a página cento e tal é des-crito um episódio inspirado na vida real: numa noite fatídica, Teo é preso com um saquinho plástico cheio de cocaína. O mesmo acontece ao amigo que lhe deu a droga mas a este é apli-cada uma pena mais pesada. O episó-dio faz parte da história da música do Brasil. Em 1985, Tony Bellotto e o can-tor Arnaldo Antunes, dos Titãs, foram presos por posse de heroína. O disco que o grupo gravou e lançou a seguir a esse episódio, “Cabeça Dinossauro”, transformou-se no primeiro disco de ouro da banda.

“Foi uma coisa traumática e sempre tive vontade de um dia falar sobre is-so num livro. Fiz nesse aí. Foi uma coisa difícil porque estava lembrando uma situação chata pela qual passei”, recorda Bellotto.

Naquela época, por causa do es-cândalo, muitos shows foram cance-lados e houve pessoas que não qui-seram ficar atreladas à imagem da banda. “Ficámos presos um tempo. Eu fiquei menos, o Arnaldo ficou mais. Isso é que me doeu mais por-que da maneira como a situação aconteceu o delegado acabou me en-quadrando a mim como a um usuário e a ele como um traficante. Foi injus-

ta a situação que ele viveu. Depois a gente respondeu o processo em liber-dade. Enfim.”

“Na época foi muito difícil, cada vez que eu ia viajar tinha que pedir autorização e tinha um promotor que me perseguia e não queria dar. E sempre que saíamos para o exterior era um problema passar na Polícia Federal, os policiais diziam que eu ficava fazendo músicas contra a po-lícia...”

Também é verdadeira a história da guitarra Rickenbacker contada pelo protagonista (os nomes é que são fic-tícios). “Eu e o Marcello Fromer – o outro guitarrista da banda, que mor-reu – comprámos uma guitarra que era muito boa, uma Rickenbacker. Estávamos fazendo um show lá na cidade Prudente, fomos comprar drogas a um traficante japonês e ele chegou com uma guitarra. A gente comprou e uns dias depois, chegan-do no aeroporto, encontrámos Os Paralamas do Sucesso. Começámos a mostrar e eles disseram que era a guitarra do Lobão [cantor de rock dos anos 80] que tinha sido roubada. Será que é? No fim essa guitarra tam-bém acabou desaparecendo, rouba-ram ela da gente em algum momen-to. Não foi daquela maneira que está descrita no livro, mas sumiu.”

Brincar com a línguaEntre os jovens Tony Bellotto tam-bém é conhecido pelo programa “Afi-nando a Língua”, no Canal Futura (educativo), que tenta atrair a aten-ção dos que gostam de música para os livros.

A ideia é pegar letras de música e fazer uma ligação com textos de lite-ratura, poesia e prosa. E em termos de linguagem “No Buraco” está cheio de brincadeiras, referências e gíria.

“Interesso-me por essas coisas en-graçadas que a língua proporciona. Nos meus livros gosto de falar sobre as diferenças regionais, como o ca-rioca fala, o gaúcho, o paulista...”

Neste livro, quase do princípio ao fim, também teve que descrever mui-tas cenas de sexo. A determinada al-tura o protagonista apaixonado diz: “Nos tornamos amigos. Até parece. Como se fosse possível um homem maduro (eu) no desabrochar – sem trocadilhos, por favor – de seus cin-quenta anos ficar amiguinho de uma ninfetoide coreana de dezenove. Me engana que eu gosto.”

É assim o humor de Bellotto. “Es-crever sobre sexo é difícil. Ou você cai numa coisa vulgar ou numa coisa cafona. Acho que ficou legal. Deu tra-balho mas fui inspirando-me nos es-critores que fazem isso bem, como o Henry Miller, o Bukowski. Isso tam-bém é uma coisa que acontece muito, essa coisa casual, essa coisa com fã. Está bem representado no livro.”

Durante os últimos meses, Bellotto tem andado a promover o livro pelo Brasil afora e apareceram-lhe “o fan-tasma da livraria vazia” (“Realmente eu pego, como a gente diz por aqui, umas roubadas. O lançamento do li-vro em Porto Alegre foi péssimo, foi triste. Cheguei na livraria e não tinha ninguém. Fiquei sentado, numa me-sa, com uma pilha de livros e não ti-nha ninguém. É muito confrange-dor.”) e “o fantasma do esqueci o teu nome” na altura de assinar o autó-grafo. “Esse é pior que o da livraria vazia. Sempre me acontece, eu estou olhando a pessoa e não vem o nome. ‘Qual é seu nome mesmo?’” É esta a vida de um guitarrista escritor.

FestivalEscrita na Paisagemapresenta

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No que quer que escreva, Luís Sepúl-veda põe toda uma humanidade seja na ficção seja no que mais gosta – o exercício da memória para que ela não se dilua. Tal e qual assim. E por isso os seus leitores gostam tanto da histó-ria do gato Zorbas como do “Encontro de Amor num País em Guerra”, do “Velho que Lia Romances de Amor” ou de obras onde o mais azedo de si vem à tona como “O General e o Juiz”, para dar só um exemplo – há mais.

“Histórias Daqui e Dali” (Porto Edi-tora), que veio lançar a Portugal, é um novo exemplo do que poderia ser uma obsessão se não tivesse por trás uma história trágica, a do Chile recen-te, e as provações de um exilado que anda pelo mundo a explicar sonhos e pesadelos. “Escrevo porque tenho memória e cultivo-a escrevendo”, dis-se uma vez.

Tão pouco é uma questão de idade, não; embora, nascido em 1947, a re-fira várias vezes neste acrescento de velhos episódios da angústia chilena – “Não, porque deixo que os anos en-velheçam comigo; e até não é mau quando vou à piscina de Gijón e uma jovenzinha me diz que tenho direito a desconto”. Nem de resumos de vida – “Não gosto em geral do género me-morialístico. Leio poucas biografias, todas as que leio são decepcionantes, omitem muitas coisas ou contam ou-tras que não me interessam saber”. Mas talvez já seja de adeuses.

Metido num sobretudo, a caminho de uma noite fria e de mais um en-contro com alguns dos “mil amigos” e leitores portugueses, admite que escreveu sobre desaparecimentos (naturais) e despedidas.

“Histórias Daqui e Dali” é um salto a um passado de coisas, umas vividas, outras interrompidas. Um “album” de 25 retratos como o dos garotos que a fotógrafa Anna Petereson não voltou a encontrar em La Victoria (Santiago), do jornalista Augusto Olivares, que se suicidou na mesma manhã em que Salvador Allende também se matou, de velhas máquinas Olivetti, Un-derwood ou Adler salvas do lixo, da luta ao lado do comandante Martín, na Nicarágua, do silêncio, agora, de Katya Olevskaia, que na Rádio Mos-covo dizia “Escuta, Chile”, da morte de Mario Benedetti, de Turquito, do tempo do Equador, de Edward, um cão polícia adoptado por punks, ou de La Negra, uma cadela que gostava de liberdade e de ciclistas, e que des-filava contra os crimes da ETA.

“É de alguma maneira um livro ín-timo. Foi uma forma de partilhar com os meus leitores – não sou um arro-gante neste aspecto, mas sei que te-nho muitos leitores, incluindo um

grupo de uns mil amigos aqui em Por-tugal – outras amizades que tive e te-nho, uma fase bastante terrível da minha vida depois dos 50, prolongan-do-lhes a memória através da home-nagem.”

Heróis frágeisMas é uma forma também de espetar dardos em catástrofes como a dos confins gelados da Patagónia e da Terra do Fogo, que derretem aos olhos dos turistas que se divertem com as alterações climáticas; em epi-sódios de puro desconcerto, como o de Edna Espinosa, que por um rabo maior morreu numa clínica de Bogo-tá, às mãos de Soler, um falsário que despiu a bata e fugiu da sala de ope-rações; ou de pura nostalgia como a redução a escombros da casa dos Par-ra – Violeta, Isabel e Ângel – onde passou horas que lhe ficaram para sempre debaixo da pele. À trincheira intelectual, na Calle Carmen, 340, chamavam-lhe La Peña.

“Sim, mas uma nostalgia mais co-mo um exercício de memória. A mim

e a muitos escritores da minha gera-ção tocou-nos ser a memória, conser-vadores da memória dos nossos paí-ses, para que não se apague, como a história oficial tentou fazer, toda uma época. Isto é para mim importante, porque me sinto muito orgulhoso des-sa memória, que foi rica. Porque tal como disse Eduardo Galleano, esta memória é uma memória de fogo, e gosto de manter vivo o seu fogo.”

“Quando, no Chile, tínhamos qual-quer coisa como 17 ou 18 anos e co-meçávamos o nosso 1968, estavam a acontecer coisas semelhantes noutros países. Estamos a falar da memória colectiva. Para mim tão importante como Victor Jara, no Chile, é um Jan Palach, na Checoslováquia, dois ho-mens diferentes mas da mesma di-mensão, ambos assassinados por te-rem achado que era possível viver num mundo mais decente.”

Em dois dos textos, uma espécie de declaração: “Nem esquecimento, nem perdão!” Uma frase terrível.

“Sim, é. É uma frase de grande res-ponsabilidade. Penso que o perdão

enquanto categoria moral é uma das manifestações mais altas, pois é a ge-nerosidade em estado puro. Mas para que exista tem de existir primeiro desculpa de quem cometeu a falta.”

Tínhamos acabado de falar do gol-pe de Setembro de 1973, o mais re-corrente dos temas do autor, que foi parte do GAP, o grupo de amigos de Allende, a sua escolta, todos mortos depois. Está contada num documen-tário, “Héros Frágiles”, de que se considera um. “Sim, sinto-me um pouco parte desse colectivo de pes-soas que tinham uma grande dureza e ao mesmo tempo uma grande fra-gilidade.” E outra vez a lembrança de Augusto Olivares, cuja arma era: uma Olivetti.

O mais português dos escritores latino-americanos, como uma editora lhe chamou, trabalha agora numa his-tória, passada entre os anos de 1967 e 1989. É uma ficção, onde um perso-nagem “tem muito” do que o autor viveu. A memória outra vez, pelo pu-nho de quem não a quer em água co-mo os glaciares da Terra do Fogo.

“...tocou-nos ser a memória”

Dois miúdos desaparecidos de uma foto antiga, amigos mortos, a casa dos Parra, em Santiago, mandada abaixo por uma escavadora, Luís Sepúlveda, cujo dom de escrita é um poder,

ressuscita-os a todos em “Histórias Daqui e Dali”; até a um cão que a polícia abandonou e a uma cadela que ladrava à ETA. Fernando Sousa

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“A mim e a muitos escritores da minha geração tocou-nos ser a memória, conservadores da memória dos nossos países, para que não se apague, como a história oficial tentou fazer, toda uma época”

Luís Sepúlveda veio a Portugal lançar “Histórias Daqui e Dali”

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18 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Vivemos tempos estranhos. Em tu-do e no mundo dos livros também. Se por um lado o panorama é com-posto por grandes grupos editoriais, financeiramente poderosos, que englobam várias editoras (para não falar em livrarias, distribuidoras), por outro lado, quase todos os me-ses nasce uma nova editora. E en-quanto se vai discutindo e-books, leitores de e-books e morte do livro impresso, as livrarias vão sendo inundadas por novos títulos. Con-sequentemente, o espaço e o tempo de exposição na livraria acaba por se ressentir. Os grandes grupos po-dem usar técnicas de marketing mais agressivas, mas o que podem fazer os independentes? Além do critério da escolha dos títulos a pu-blicar, a outra resposta óbvia é apos-tar na imagem.

Talvez seja cedo demais para fa-lar, mas parece que atravessamos uma pequena revolução no design de livros em Portugal. Há quem aposte na excelência dos materiais e há quem não se possa dar a essa luxo. Há quem trabalhe com prata da casa e quem encomende capas a especialistas. O Ípsilon foi falar com alguns daqueles que contri-

buem para que um olhar pelos ex-positores de uma livraria possa ser uma experiência.

1. Coerência despreocupadaA Livros de Areia nasceu em 2005, pela mão de Pedro Marques e João Seixas, em Viana do Castelo. A quan-tidade de títulos publicados desde então é inversamente proporcional à qualidade dos mesmos. Poucos mas bons. Com parcos recursos, sem pos-sibilidade de fazer os livros como gos-tariam, fazem-nos como podem. E não o fazem mal. Pedro Marques, que é também editor, faz as capas. Com formação em História da Arte, consi-dera-se um autodidacta nesse ofício. Se às vezes a palavra é olhada com estigma, para Pedro isso não é grave, porque está “em muito boa compa-nhia. Um dos meus designers favori-tos é Quentin Fiore, autodidacta, que trabalhou com o Marshall McLuhan em todos os livrinhos dele.”

O trabalho é sempre feito a poste-riori. Com o texto já em mãos, pensa a capa e executa-a. Tudo feito livro a livro, sem pensar num design de co-lecção. “Não posso ter um design se-riado se tenho apenas dois livros por ano.

Pode-se julgar umHá quem aposte na excelência dos materiais e há quem não se possa dar a essa luxo. Há quem

contribuem para que um olhar pelos expositores de uma

Andrew Howard Nos livros de ficção da Ahab, Andrew Howard, inglês que trabalha em Portugal desde 1993, quis fugir ao facilitismo da tipografia sobre imagem e enveredar antes

pelo caminho da união. “O texto torna-se imagem, em vez de ser um elemento separado.”

Corro o risco de as pessoas se es-quecerem e essa arma perde-se.”

No entanto, há uma imagem reco-nhecível nos Livros de Areia. Isto acontece por todas as capas obede-cerem apenas ao gosto pessoal de Pedro Marques. De influência surre-alista e expressionista, como uma das suas referências principais, Roman Cieslewicz, o processo é o de recorrer a bancos de imagens, juntar peças como num puzzle, mas também dis-torcê-las, de tal forma que o resulta-do seja reconhecível apenas enquan-to capa da Livros da Areia. “A ideia é servir o melhor possível o título e o autor. Mas se de facto há pessoas que acham que há uma imagem da edito-ra, tanto melhor.”

Os autores não se queixam, pelo contrário. Um caso curioso é o de Lázaro Covadlo, escritor argentino, que quis utilizar no seu país natal a capa feita por Pedro Marques para o livro “Criaturas da Noite”.

Adepto do paperback, do livro portátil que se leva em viagem, que

não pesa, Pedro lamenta ainda assim não ter possibilidade de dar um me-lhor acabamento a alguns dos livros. “Se tivesse hipótese, teria feito o li-vro ‘Da Treta’ com uma capa dura com sobrecapa, com uma fitinha, ou seja, um livro à antiga.” E não tem pejo em admitir um pecado mortal, quando lembra a qualidade das edi-ções da Tinta-da-China: “Tenho mui-ta inveja daquelas edições, gostava muito de fazer livros assim, mas não posso.”

Gosta, mas admite: “Essa não é a minha preocupação. A minha preo-cupação é fazer livros baratos, com o acabamento mais básico, colados, nem sequer têm cadernos.” Assim descritos, imagina-se algo muito pior do que é. Porque com materiais ba-ratos também se produzem coisas boas. E a Livros de Areia não é o úni-co exemplo.

O trabalho de Pedro Marques não se esgota na edição e no design. Em-bora a uma escala que se pode dizer amadora (o que não significa falta de

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m livro pela capam trabalhe com prata da casa e quem encomende capas a especialistas. Eis alguns daqueles que a livraria possa ser uma experiência. Gonçalo Mira

qualidade), é também alguém que pensa e que luta por que se pense o design de livros. Tenta fazê-lo no seu blogue (pedromarquesdg.wordpress.com) e nos artigos que vai publicando na Bang!, na Os Meus Livros e na Ali-ce (clubalice.com). Não lhe interes-sam só os designers mas também os editores responsáveis por revoluções no design editorial, como os france-ses Jean-Jacques Pauvert, Maurice Girodias e Eric Losfeld.

“Um dos grandes paradoxos da im-prensa cultural, no que diz respeito ao livro em Portugal, é que há uma invasão das capas nos jornais e nas revistas que é inversa à reflexão sobre elas.” É isto que quer combater com o seu blogue e com o espaço que lhe vão dando nas revistas.

2. Do livro ao objectoQuando pensamos em bons exem-plos de design de livros em Portugal é inevitável que o primeiro nome que nos vem à cabeça não seja o da Tinta-da-China. O mérito é todo deles e de Vera Tavares, responsável pelo logo-tipo e pelas capas da editora, desde o primeiro livro.

Também na Tinta-da-China a linha gráfica não surgiu premeditadamen-te. “As coisas foram-se definindo,” diz-nos Vera. Teve sempre liberdade artística e beneficiou de uma forte compatibilidade de gostos com a edi-tora Bárbara Bulhosa. O facto de ha-ver pessoas que identificam uma co-erência gráfica virá, uma vez mais, do facto de ser a mesma pessoa a fa-zer as capas. Porém, para Vera é mais fácil ver essa coerência nas colecções do que no catálogo geral.

Mas se a Tinta-da-China causou tan-to impacto, isso não se deve apenas às capas. Tendo a possibilidade de in-vestir nos acabamentos, não hesitou em dar aos livros dignidade especial. No catálogo encontram-se muitos li-vros de capa dura, com bons acaba-mentos, bom papel, uma embalagem luxuosa para um conteúdo que cos-tuma corresponder em qualidade.

“Havia uma vontade de não fazer igual ao que se fazia,” admite Vera, mas o objectivo é o mais básico: que o livro “esteja nas livrarias, que as pessoas o vejam e comprem, porque a capa é bonita e o conteúdo é inte-ressante.”

Nesta busca pela capa perfeita, considera fundamental a escolha do tipo de letra. É importante que a fon-te tipográfica se adeque ao conteúdo e quando a busca não traz resultados satisfatórios, é a própria Vera que de-senha as letras. Por vezes volta a uti-lizá-las, até porque já tem “uma pas-ta com uma grande colecção de le-tras, que não chegam a ser fontes, porque não as sei transformar em fonte. São só letras desenhadas.”

Embora recuse a ideia de que há livros que, de tão bem trabalhados, se tornam objectos, acaba por concor-dar, reticente, quando se fala na co-

lecção de humor dirigida por Ricardo Araújo Pereira. Os livros desta colec-ção acabam por ser objectos estranhos nas nossas livrarias, porque não têm lombada. As capas e os cadernos estão cozidos, com o “esqueleto” à mostra. A ideia foi da editora, Bárbara Bulho-sa, que viu algo semelhante num ca-tálogo de uma feira literária. Fez finca-pé para que a ideia se concretizasse, porque é complicada de executar. Ga-rante Vera: os livros são resistentes. “Foram feitos monos, que testámos e atirámos ao chão. É tão resistente co-mo um livro de capa dura normal.” E têm a vantagem de, por não terem lombada, se conseguirem abrir total-mente e manterem-se abertos em ci-ma de uma mesa.

Objectos ou não, os livros da Tinta-da-China saltam à vista. Mesmo quan-do os autores fazem exigências, Vera consegue executá-las ao seu gosto e terminar com um produto que tem a sua marca. A marca da Tinta-da-China.

Vinda do mundo da publicidade, Vera Tavares tem formação em His-tória. Como leitora e compradora, irrita-se quando um livro tem uma capa má. Mesmo assim, considera que em Portugal há cada vez mais bons exemplos no design de livros.

3. Os profi ssionaisA par das editoras em que o trabalho de design é feito dentro de portas, há outras que recorrem a ateliers profis-sionais. São casos disso as editoras do grupo Almedina, com grafismo a car-go da Ferrand, Bicker & Associados (FBA), ou a editora independente, sediada no Porto, Ahab, com design do Studio Andrew Howard.

Estes designers trabalham por en-comenda, mas a responsabilidade para com o produto final é a mesma. João Bicker, da FBA, explica-nos: “Trabalhamos sobre as ideias expres-sas por outros e procuramos interpre-tá-las visualmente. O essencial é a procura do entendimento do texto, da maneira que melhor o dá a ler. A escolha da tipografia adequada, da forma do livro e da página, o proces-so de colocar as palavras e as imagens na forma que melhor as sirva.”

Andrew Howard, inglês que traba-lha em Portugal desde 1993, vê o pro-cesso de design como “a combinação entre o conceptual e o material para criar um objecto que tem de satisfa-zer as nossas sensibilidades intelec-tuais e tácteis.” E é isso que torna o design de livros, para Andrew, um dos mais completos trabalhos de de-sign gráfico.

O processo começa sempre pela leitura da obra. E no caso das capas para a Ahab, livros de ficção, “o con-teúdo não pode ser resumido num simples momento gráfico.”

Por isso a leitura é fundamental, para perceber não só a história, mas o seu universo e estilo.

Para João Bicker “não há nada mais

Vitor Silva Tavares “Isto é uma editora pobre e funcionamos sempre com recursos muito parcos.” Foi assim que começou a conversa com Vítor Silva Tavares, editor da &etc, editora que sempre se manteve à margem, de costas voltadas para o mercado. Há quase 38

anos que faz livros com o mesmo formato, com os materiais mais baratos, e que ainda assim não podem ser ignorados, pelo projecto único que representam

importante do que a escolha da tipo-grafia, das letras que darão a ler o texto. Cada tipo de letra carrega no seu desenho características formais e históricas que influenciam a leitura porque influenciam a forma do tex-to.” É importante ter em conta que a FBA, ao trabalhar com o grupo Alme-dina, tem em mãos muitos livros de ensaio, que pedem uma abordagem diferente da ficção.

Nos livros de ficção da Ahab, An-drew Howard quis fugir ao facilitismo da tipografia sobre imagem e envere-dar antes pelo caminho da união. “O texto torna-se imagem, em vez de ser um elemento separado,” diz. Ou seja, Andrew Howard e João Bicker têm abordagens distintas, mas ambos consideram crucial dar importância às letras.

A Ahab, com um ainda curto perí-odo de existência, já ganhou a aten-ção da crítica e dos leitores que, além da inquestionável qualidade literária de autores que Portugal desconhecia, elogiam também o sólido projecto gráfico do Studio Andrew Howard. E a colecção Minotauro, das Edições 70, desenhada por João Bicker e Ana Boavida, recebeu prémios interna-cionais de design.

Se estes dois ateliers estão a pro-duzir boa parte do melhor design de livros que se faz em Portugal, como olham para o trabalho dos outros? Andrew Howard acha que a percen-tagem de trabalhos bem feitos em Portugal não andará longe do que acontece pela Europa. Já João Bicker é mais crítico. Se é essencial fazer li-vros que se destaquem nas livra-

2. Do livro ao objecto

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rias, acha que essa tarefa está faci-litada “na medida em que o mercado português se caracteriza por uma uniformização de soluções que tudo mistura e tudo confunde.”

4. Geometria não alinhada“Isto é uma editora pobre e funcio-namos sempre com recursos muito parcos.” Foi assim que começou a conversa com Vítor Silva Tavares, editor da &etc, uma editora que exis-te há quase 38 anos, que sempre se manteve à margem, de costas volta-das para o mercado. Há quase 38 anos que faz livros com o mesmo for-mato, com os materiais mais baratos, e que ainda assim não podem ser ig-norados, pelo projecto único que representam.

Tudo começou no quadrado. Um dia, depois de abandonar o “Diário de Lisboa” para se lançar a uma aven-tura poética, criar a revista &etc, Ví-tor Silva Tavares pôs-se a pensar no formato que a revista ia ter. O qua-drado já lhe andava na cabeça.

Pegou num papel e num lápis e desenhou-o. “Um quadrado imper-feito, claro, feito à mão. E a seguir inscrevi-o dentro de um rectângulo, porque se era uma revista, tinha de ser rectangular.”

As medidas foram aperfeiçoadas e aquilo parecia harmonioso aos olhos do seu criador. Fazendo curta a longa história, o formato foi definido para a revista e depois foi feito numa es-cala menor para os livros da &etc. Assim nasceu este formato único, de personalidade vincada.

“O quadrado é quase mítico”, diz-nos Vítor Silva Tavares. Por isso é que é dentro do quadrado que os artistas desenvolvem o desenho das capas da editora. E aquilo que podia ser uma limitação aos artistas, acaba por ser “um desafio à inventividade e à cria-tividade.” O que explica, na opinião do editor, a felicidade de algumas das capas da &etc.

A utilização dos materiais mais ba-ratos é motivada não só pelos parcos recursos, mas também pelo “gosto por esses materiais pobres, que ain-da têm personalidade, que não são plastificados, industriais, e que pre-tendo recuperar dando-lhes uma nobreza.”

Depois, a ideia era “dar tanta ên-fase à ilustração, à pintura, como à mensagem literária. De forma a cons-tituir um todo e, se possível, fazer do livrinho um objecto onde as artes plásticas e o conteúdo fizessem uma unidade.” Dentro daquele quadrado que se insere nas capas da &etc pas-saram muitos artistas. Ilustradores, pintores e também designers. Só que designers é uma palavra que não se usa naquela cave da Rua da Emenda. Os designers colaboraram enquanto “desenhadores, ou pintores, ou ilus-tradores. As nossas capas não são capas de design.”

A &etc funciona num universo à parte e orgulha-se disso. Será assim até ao fim. Não podemos falar aqui em design da editora, mas podemos elogiar o projecto gráfico e artístico, que assim Vítor Silva Tavares não se zangará.

Vera Tavares Na busca pela capa perfeita, considera fundamental a escolha do tipo de letra. É importante que a fonte tipográfica se adeque ao conteúdo e quando a busca não traz resultados satisfatórios, é a própria Vera que desenha as letras. Por vezes volta a utilizá-las,

até porque já tem “uma pasta com uma grande colecção de letras, que não chegam a ser fontes, porque não as sei transformar em fonte. São só letras desenhadas.”

Pedro Marques Todas as capas da Livros de Areia obedecem ao gosto pessoal de Pedro Marques. De influência surrealista e expressionista, como uma das suas referências

principais, Roman Cieslewicz, o processo é o de recorrer a bancos de imagens, juntar peças como num puzzle, mas também distorcê-las, de tal forma que o resultado seja reconhecível

apenas enquanto capa da Livros da Areia. “A ideia é servir o melhor possível o título e o autor. Mas se de facto há pessoas que acham que há uma imagem da editora, tanto melhor.”

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Eles é que mandam, ok?

Amanhã, o Campo Pequeno, em Lisboa, será palco das canções de psicadelismo pop dos MGMT. Com a banda vêm os sucessos de “Oracular

Spectacular” e as canções menos badaladas de “Congratulations”. Ou a lembrança de que indie, em tempos, vinha de independente. Gonçalo Frota

JP Morgan Chase, ICBC, HSBC Holdin-gs, BP, BNP Paribas, AT&T: designa-ções de algumas das empresas cons-tantes dos primeiros vintes lugares do top 200 realizado este ano pela revista “Forbes”. São as mais lucrati-vas, as mais poderosas, praticamente todas nos negócios da banca e do pe-tróleo. “Atenciosamente, MGMT”, “Com os melhores cumprimentos, MGMT”: assinaturas dos emails que Ben Goldwasser e Andrew VanWyn-garden trocavam nos tempos de fa-culdade em que decidiram pôr um carimbo de quatro maiúsculas (não olhe agora, valter hugo mãe) também como assinatura da sua música, pa-rodiando o mundo das altas finanças de gente quase asfixiada pelos fatos retesados, a mais fina indumentária para praticar a mais alta barbárie. Goldwasser e VanWyngarden eram já de si nomes pomposos que pareciam gritar por uma sigla que lhes abrisse portas no mundo. E o facto é que abriu. Mas o tiro saiu-lhes mais ou menos pela culatra.

Nessa lendária troca de emails en-quanto estudantes de artes na presti-giada Wesleyan University, os dois amigos almejavam algo de tão nobre e inocente quanto mostrarem um ao outro as suas descobertas musicais. Não havia ainda sonho algum de ser capa da “Spin”, da “Black Book”, do “New Musical Express” ou de compor o tema que havia de ilustrar o final de

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çar muito para que isso aconteça” é aquilo que Goldwasser nos oferece sobre o assunto. “Vamos antes con-centrar-nos em fazer boa música”.

Mas, como é evidente, tal declara-ção casmurra de independência só pode conduzir a um sentimento de traição para quem já tinha os MGMT tão bem emprateleirados de acordo com as regras do marketing. Houve quem levasse a mal que a banda res-ponsável por “Time to Pretend” e “Ki-ds”, duas canções tão bonitas e a pedir ser o código secreto para recordações românticas de tanto casal de bom gos-to, se lembrasse agora de fazer impres-táveis músicas de 12 minutos. E aí, perceberam os dois ex-estudantes uni-versitários que gostavam de tocar o tema de Caça-Fantasmas horas a fio, estavam já dentro de uma das grandes armadilhas do sucesso: a sensação de que a banda quase deixara de ser sua, uma vez que não eram poucos aqueles que se arrogavam o direito de lhes impor um rumo.

A maior fatia dessa reacção, acre-dita, Goldwasser, “teve que ver com as pessoas quererem ter a primeira

palavra sobre o assunto e formarem a sua opinião demasiado depressa”. “Congratulations” não teve tempo sequer de se sentar ou abrir a boca. Assim que entrou na sala, tiraram-lhe as medidas, formularam teorias e des-pacharam tudo por iPhone para os blogues, os sites, os facebooks desta vida. “Quando leio a Pitchfork ou algo do género e fazem um grande alarido à volta de um disco, e depois o oiço, consigo perceber a opinião deles, mas não são coisas que me imagine a ouvir daqui por um ano. Há discos com 40 anos que ainda estou a ouvir, a des-cobrir. Não sei se alguma vez me in-teressou o que é ou não hype, mas as coisas de que realmente gosto são aquelas que demoram algum tempo a crescer em nós”.

A vampiresca indústria, por seu lado, não perdeu muito tempo a fin-

car os seus desgastados caninos na ementa que os MGMT lhe servia. Ac-tuou como um verdadeiro jogador de poker. Fez bluff, taxou o disco como “suicídio artístico” e paga para ver. “Foi difícil lançarmos um disco que significava tanto para nós e ter as pes-soas a dizer-nos que era um suicídio artístico. É ridículo achar que tudo tem de ter uma resposta imediata, em vez de encontrarmos alguma coisa de que gostamos mesmo”.

O grupo desvaloriza, portanto, o argumento de que se tratará de um disco experimental, complicado, cheio alçapões que estão lá só para fazer a vida negra aos ouvintes. Mas não deixa de ser, mesmo que a con-tragosto dos MGMT, o álbum que lhes devolve a bola para fazerem o que quiserem com ela. 2011 vai ser ano de novas gravações e logo se verá por que caminhos os dois rapazes + três de empréstimo resolverão seguir. Nos entretantos, fica um conselho aos candidatos presidenciais portugue-ses: nada de pegar em músicas do grupo para embelezar as caravanas. Em 2009, a União para uma Maioria Popular de Sarkozy foi processada pelos MGMT pelo uso não autorizado do tema “Kids” em acções de campa-nha. “Enquanto banda, queremos estar dissociados da política, apenas porque achamos que não nos cabe dizer às pessoas aquilo em que devem acreditar. Mas também ajudou o fac-to de a UMP estar a tentar aprovar legislação anti-pirataria que achámos ser injusta e, ao mesmo tempo, estar a piratear a nossa música. Parece-me uma forma muito autoritária de lidar com a situação, sem ouvir o público, mas sim os lobistas, as editoras e as associações de direitos de autor”. É que, no caso dos MGMT, a proprieda-de das suas canções tornou-se assun-to, enfim, de Estado.

temporada de uma das mais popula-res séries teen de que há memória – Gossip Girl. Quando no último ano de faculdade – já os rapazes se tinham estreado numa festa a tocar circular-mente o tema de “Caça-Fantasmas” num corredor de uma república – ti-raram do forno “Time to Pretend”, mal lhes passava pela cabeça que ti-nham acabado de desenformar uma ironia perfeita em forma de canção. Elevado a caricatura embebida em sarcasmo, o tema imaginava o que seria, na flor da vida, fazer música, ganhar rios de dinheiro, casar com modelos, comprar casa em Paris, ir para a cama com as estrelas, conduzir carros que custam um apartamento mobilado e encher o corpo de drogas a partir de uma bandeja nas mãos de um mordomo.

A ironia, claro está, é que foi “Time to Pretend” que os deixou à beira de conseguir tudo isso. A piada, mergu-lhada numa contagiante solução de pop psicadélica, parecia ter ganhado vida própria e, qual Aladino, decidido levar à letra cada verso da canção e proporcionar a sua concretização. E, no meio de tudo isto, Goldwasser e VanWyngarden assinavam com a Co-lumbia, subsidiária da Sony BMG, e eram engolidos pelo pernicioso mun-do das siglas. O que, em grande me-dida, foi um choque e deixou os dois membros originais dos MGMT deso-rientados. Repentinamente levados

em braços até ao al-tar de fe-

nómeno in-die, tinham

passado, em cinco anos, dos corredores

do dormitório da Wes-leyan para os corredores

do Staples Center, em Los Angeles, na cerimónia dos Grammy 2010, para os quais estavam nomeados, cruzan-do-se já não com o Kip da equipa de basquetebol, com o Mervyn dos computado-res ou a Tracy das aulas de história de arte, mas com

Kanye West, Brian Eno ou Lady Ga-ga.

“É muito bom haver reconhe-cimento a uma escala daquelas”, diz-nos Goldwasser, “e gostaria muito se houvesse mais boa mú-sica e preocupação com o conte-

údo no mainstream, mas ao mesmo tempo há coisas muito repelentes

nos Grammy e grande parte é apenas a indústria a comprar favores”. Daí que ganhar o prémio para Melhor Re-velação ou Melhor Gravação Pop por um Duo ou Grupo com Voz (isto sim, já merecia uma sigla) fosse coisa para o deixar dividido entre a felicidade e a estranheza do circo da indústria. À entrada para a cerimónia, foram en-trevistados em directo para a “TV Guide”. Vestidos a rigor, em modo nerd chique, quadriculados e cornu-cópias a desfilar na passadeira ver-melha, foram óbvio motivo de troça do apresentador, que lhes comparou as roupas aos padrões do sofá da avó e de cortinas para a banheira. A fina-lizar, o mesmo galante senhor avisou que, em caso de vitória, os Grammy mudariam a carreira dos MGMT. O que deve dado que pensar ao duo fundador. E despertado medo daqui-lo em que poderiam estar a tornar-se. A entrada para esta feira de vaidades traz no bico água com um rótulo em que se lê em letras miudinhas: “Perda de autonomia”.

Declaração de independênciaLançado meses depois, “Congratula-tions” soou a um violento coice artís-tico, uma tentativa de repelir a forma rápida e desembestada com que a in-dústria força cada novo nome que se destaca a encaixar dentro dos moldes autorizados. No caso dos MGMT, era enfiá-los na categoria indie rock ex-cêntricos e o assunto estava arruma-do. Se os Flaming Lips tocaram em “Beverly Hills 90210”, os MGMT ilus-tram um dos momentos capitais de “Gossip Girl”, não tem nada que saber. Por isso, “Congratulations” tresanda a passo atrás nesta avalanche de su-cesso, um querer ter de novo as réde-as nas mãos e fugir do magnetismo impiedoso das passadeiras vermelhas e das festas exclusivas. “Talvez um dia venhamos a ter outro sucesso, e será muito bom, mas não nos vamos esfor-

Houve quem levasse a mal que a banda responsável por “Time to Pretend” e “Kids”, canções tão bonitas e a pedir ser o código secreto para recordações românticas de tanto casal de bom gosto, se lembrasse agora de fazer imprestáveis músicas

de 12 minutos

2011 vai ser ano de novas

gravações e logo se verá por que caminhos os dois rapazes + três de empréstimo resolverão seguir

“Foi difícil lançarmos um disco [Congratulations] que significava tanto para nós e ter as pessoas a dizer-nos que era um suicídio artístico. É ridículo achar que tudo tem de ter uma resposta imediata, em vez de encontrarmos alguma coisa de que gostamos mesmo”Ben Goldwasser

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24 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

“Não consigo dizer se há um sentido primário na nossa música”, diz Brent Knopf ao telefone de Colónia, um cer-to tom de hesitação na voz. Depois de um “hum” que redobrou essa impres-são de dúvida. “Vejamos: não fazemos canções de amor, não fazemos can-ções de rock tout court” e a frase perde-se em reticências... “Talvez se-jam canções onde o coração encontra a cabeça”, diz por fim, interrompen-do um silêncio vagamente incómodo. Depois, como quem já se esforçou mais do que está habituado, acaba o seu micro-pensamento: “Há um pou-co de tristeza, mas não sei dizer mais que isto”.

A incapacidade de Brent Knopf em definir a música dos Menomena não é pose nem se deve a qualquer difi-culdade na articulação de palavras sob a forma de ideias. Este trio de Por-tland (que se completa com Justin Harris e Danny Seim, sendo os três multi-instrumentistas) carrega desde há seis anos, aquando da estreia com “I Am the Fun Blame Monster!”, o epíteto de banda indie-rock. Mas quem ouvir “Mines”, o quarto e mais recente álbum (e um dos objectos bi-zarros mais cativantes de 2010), facil-mente conclui que a designação é redutora.

Caos e ordemA música dos Menomena, não sendo propriamente um labirinto sem saída ou o jardim de Alice, é, pelo menos, uma casa com muitos quartos, portas secretas, janelas que dão para pare-des tapadas e uns quantos alçapões. Um riff à Led Zepellin pode dar lugar a uma melodia delicada ao piano an-tes de metais dispararem pela canção adentro como o tráfego no Marquês à hora de ponta.

E isto é o disco mais “certinho” do trio. Aquele em que a melodia é mais presente e, por consequência, a dico-tomia entre caos e ordem se torna mais explícita. A ideia, note-se, não é nossa, é de Knopf.

“Por mais imprevisíveis que as nos-sas canções sejam”, avança com hu-mildade, “acho que há nelas um pa-drão perceptível: vão-se tornando intensamente mais caóticas, depois há uma ameaça de perigo e finalmen-te regressa-se à ordem”. E é isso que lhes interessa – “e muito”, acrescenta o músico: “Essa dicotomia entre caos e ordem”.

Podiam ser as palavras de um prog-rocker dos anos 70, de um miúdo com acne apaixonado pelos Faust ou de um poseur a armar ao pingarelho ar-

tisteiro. Mas há sinceridade nas pala-vras – e dá-se o caso de não só a des-crição ser correcta como ele não fazer gala dessa “paixão” por fazer canções que não obedecem ao ritual verso-ponte-refrão.

“Acho, honestamente, que pelo me-nos conscientemente não nos passa pela cabeça fazer música para surpre-ender quem quer que seja. Agora, damos por nós a pôr mais coisas e mais coisas numa canção porque te-mos de as ouvir muitas vezes e que-remos, ao ouvir várias vezes a mesma canção, que nos pareça a cada vez estar a ouvir uma canção diferente, porque se não torna-se insuportavel-mente aborrecido”.

Estamos agora em território bem mais prosaico, totalmente despido de grandiosas ambições vanguardistas.

Knopf começa a alinhavar hipóte-ses para a geometria cambaleante que estrutura as canções dos Menomena. Primeira hipótese, quase caricata: “Eu acho que temos défice de aten-ção. Esse nosso lado de surpresa, de composição sempre em mudança, tem a ver com a facilidade com que nos aborrecemos”.

Segunda hipótese, quase, digamos,

adulta: “O nosso som tem muito a ver com a combinação das nossas perso-nalidades – ou as dificuldades de com-binação, o que seria mais correcto de dizer. Antes, os nossos gostos eram muito próximos, mas com o tempo, com a idade, os nossos gostos come-çaram a afastar-se: o Justin gosta de rock mais clássico, é dele que vêm os riffs, o Danny ouve sobretudo hip-hop e eu gosto de T-Rex mas também de Zombies. E acabo por ser quem traz os acordes mais escuros, os arranjos mais estranhos”.

É difícil traduzir aquilo que Knopf define como “os acordes mais escuros, os arranjos mais estranhos”, mas di-gamos que há sempre na música dos Menomena uma sombra em fundo, algo que prenuncia que a qualquer momento a melodia solar que agora ecoa será nublada e ventos vindos não se sabe de onde eclodirão – um sopro de metais, uma rabanada de riffs, a percussão aos trambolhões ou tudo isto ao mesmo tempo onde antes es-tava um piano em sorrisos. Se quise-rem: a dita “harmonia”, nos Meno-mena, é algo de pouco pacífico, mais próxima de um choque entre cabe-ças numa formação ordenada no rugby do que de passarinhos a chil-rar num campo primaveril.

O que leva à terceira teoria sobre a incerteza na música dos Menome-na: a importância do erro (tese de Brent Knopf ). “Usamos todas as línguas que sabemos falar”, come-ça por afirmar, em jeito de expli-cação do modus operandi da ban-da, para rapidamente chegar a um auto-depreciativo “o que na reali-dade é muito pouco”. Depois vem a honestidade: “Para ser sincero acho que em vez de aprendermos a tocar bem aprendemos a tocar mal. O que tem vantagens: as mi-nhas melhores ideias vêm de er-ros. Engano-me a tocar qualquer coisa e gosto mais do erro do que do que estava a fazer. Acredito – e se calhar estou a ser ingénuo – que a ingenuidade é melhor que ser virtuoso. A virtuosidade faz-me adormecer”.

E finalmente, de forma simpá-tica, Knopf oferece um resumo do que subjaz à estranha música dos Menomena: “Basicamente nós gostamos de coisas que fun-cionam de modo que não era suposto funcionarem”.

É isso a música dos Menome-na: põe-se uma fatia de pão no frigorífico e sai de lá uma tor-rada. Não há melhor que isto.

Ver crítica de discos págs. 43 e segs.

o errado é que está certoO quarto disco dos Menomena, “Mines”, é um dos mais bizarros objectos rock do ano:

melodias cândidas, metais desvairados, portas secretas e uns quantos alçapões. João Bonifácio

“Acho que em vez de aprendermos a tocar bem aprendemos a tocar mal. O que tem vantagens”

O trio Portland: Brent Knopf, Justin Harris e Danny Seim

Com os Menomena

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 25

Dave Sitek é um homem ocupado. É membro dos TV on the Radio, pro-duziu discos de gente tão diferentes como os Yeah Yeah Yeahs, Scarlett Johansson e artistas de menor dimen-são, fez remisturas para Beck ou Nine Inch Nails, é pintor e fotógrafo. Em 2008, o “New Musical Express” foi ao ponto de lhe dar o posto cimeiro de uma lista das 50 pessoas mais vi-sionárias da indústria.

Como se a sua agenda fosse peque-na, Sitek decidiu meter-se numa em-preitada que lhe faltava: um disco a solo.

Na verdade, o primeiro álbum de Sitek, que escolheu a designação Ma-ximum Balloon, não é bem um álbum a solo. Experimentou trabalhar sozi-nho numa versão dos Troggs para a compilação “Dark Was the Night”, em 2009, mas em “Maximum Balloon” preferiu calar-se e ceder o microfone a velhos cúmplices (como os compa-nheiros de banda Kyp Malone e Tun-de Adebimpe ou Karen O, dos Yeah Yeah Yeahs) e a nomes inéditos na página de colaborações do seu currí-culo (David Byrne, ex-Talking Heads, e Ambrosia Parsley, dos Shivaree).

Mais do que um disco a solo, “Ma-ximum Balloon” é uma ponte entre a carreira de produtor de Sitek e a sua experiência de banda nos TV on the Radio. Ele confirma-o, ao telefone com o Ípsilon, em Los Angeles. “É exactamente como dizes. Foi uma oportunidade para fazer o que faço com outros tipos de música, mas tam-bém de incorporar elementos da mú-sica dos TV on the Radio. Foi uma transição natural”. Foi uma oportu-nidade, como explicou ao “site” Brooklyn Vegan, de “usar 35 sinteti-zadores” porque não os terá que levar em digressão, algo impossível nos TV on the Radio. Uma utopia de um bicho de estúdio.

Equipa de sonhoO álbum coincidiu com a mudança de Dave Sitek de Nova Iorque para a mais luminosa Los Angeles, onde ago-ra vive. Foi no novo estúdio caseiro na californiana, a que chamou Fede-ral Prism, que gravou o disco, num cenário diferente do estúdio sem ja-nelas onde produziu trabalhos dos Liars, Yeah Yeah Yeahs e dos próprios TV on the Radio. “Nova Iorque tam-bém pode ser optimista, mas quis experimentar algo diferente. Acho que foi o sol, mais do que a cidade - aqui tenho muito mais sol”, diz ao Ípsilon.

“Tiger”, com Aku, dos Dragons of Zynth, foi o ponto de partida para um disco que é, sobretudo, um conjunto de canções, sem grande ligação entre si. Coube aos vocalistas escolher o que queriam cantar. O mentor de Ma-ximum Balloon deu uma ajuda, insis-tindo, por exemplo, com o “rapper” Theophilus London para fazer outra

coisa que não “rappar” - pô-lo a can-tar em “Groove Me”.

“Já ia a mais de meio do disco quan-do decidi que ia ser um disco”, refere Dave Sitek, para quem estas são “as melhores vozes do mundo”. “Limitei-me a fazer umas canções e em juntá-las. Parecia-me lógico fazê-las com pessoas que conhecesse”, explica. Mas não se ficou pelos cúmplices do costume. Um amigo ouviu “Apart-ment Wrestling”, uma “funkalhada” a lembrar os Talking Heads, e pen-sou: “‘Meu Deus, o Byrne ficaria mui-to bem aqui’”. “Dei-lhe a faixa, ele pô-la a tocar para o David e ele gos-tou. Foi tudo muito simples, não há qualquer mistério”.

Sitek diz que quis “experimentar com a música de dança”, mas reco-nhece que também o faz nos TV on the Radio (“Maximum Balloon” é, po-rém, bem mais festivo e leve, sem a arquitectura de camadas que faz da sua banda um caso especial). “Aqui fiz as coisas de uma maneira diferen-te”, afirma. Insistimos e lá elabora que este é um disco em que reina a “canção pop, com três ou quatro mi-nutos”. “Normalmente não faço isso nos TV on the Radio. Foi sobretudo isso: experimentar a fórmula pop”.

A diferença foi que, desta feita, fa-zer pop “foi o único objectivo”. “Não tinha a sensação que devia estar a fazer outra coisa”, resume. “Maxi-mum Balloon” revela um Dave Sitek apaixonado por “Let’s hear it for the boy”, clássico de Deniece Williams (diz que andou a vida toda a tentar fazer o seu próprio “Let’s hear it for the boy” e que “Maximum Balloon” foi quando mais se aproximou do ob-jectivo), pelo funk branco de “Good Enough”, de Cindy Lauper, por Nile Rodgers, pelos Chic.

Sitek mostra agora, sem subterfú-gios, o gosto antigo pelas melodias perfeitas, que o levou a cantar num grupo vocal “barbershop” nos tempos do liceu e a pertencer à Sociedade para a Preservação e Promoção dos Quartetos Barbershop na América – tudo factos que escondia, muito con-venientemente, da banda de hardco-re que tinha na altura. Em 2010, já não há nada a esconder: até um ícone do indie moderno pode brincar um pouco e fazer um disco pop.

Ver crítica de discos págs. 43 e segs.

O membro dos TV on the Radio meteu-se num estúdio em LA com “as melhores vozes do mundo”. Nasceu o

projecto Maximum Balloon e um disco a solo que não é bem um disco a solo. Pedro Rios

“Foi uma oportunidade para fazer o que faço com outros tipos de música, mas também de incorporar elementos da música dos TV on the Radio. Foi uma transição natural”

“Maximum Balloon” é uma ponte entre a carreira de produtor de Sitek e a sua experiência de banda nos TV on the Radio.

Dave Sitek brinca no

recreio da pop

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26 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Todos os nomes do f

Biografias do Fado

VáriosEMI Music

Os Fados de ALvorada

Volumes 1, 2, 3Vários

Movieplay

Divas do FadoVários

Difference, IPlay

A Origem do Fado

José António Sardinha

Vários Tradisom

“Houve a opção de procurar reportórios muito próximos dos critérios da própria comunidade” fadista, diz o antropólogo Pedro Félix

Esgotada há muito, a “Biografi a do Fado” ressurge agora nas lojas as biografi as da guitarra e do fado de Coimbra e a “Nova

alinhamento e a garantia de que o fado veio para fi car. É mais um

Um género, muitas histórias

Quando surgiu, em 1994, a “Biografi a do Fado” foi uma interessante novidade. Em LP e CD, vendeu mais de 120 mil exemplares até que esgotou. Ressurge agora, numa caixa com 5 CD reunindo pela primeira vez não só o duplo CD original como as “biografi as” que se lhe seguiram: a da guitarra, a do fado de Coimbra e a dedicada à nova vaga de fadistas, esta última integralmente refeita para acolher novos intérpretes. A sua edição, integrada nos eventos da Lisboa’94, deu origem nos anos seguintes a uma vaga de colectâneas de fôlego, das quais se destacam “Um Século de Fado” (Ediclube, 1999), com vasto conjunto de livros, CD e vídeos ou “O Fado do Público”, um colecção de CD-livros com coordenação de Rui Vieira Nery (Público, 2004).

Mas no último ano surgiram outros títulos dignos de nota. “Os Fados da Alvorada”, um notável trabalho de pesquisa

de José Manuel Osório (em 3 CD) será dos melhores, com recuperação de muitos títulos nunca antes editados em CD. É uma interessante viagem aos arquivos, com muitas histórias a acompanhar. “Fado Capital”, bem mais pobre na concepção, alinha 120 intérpretes da A a Z, cada um com um tema, de Ada de Castro a Zélia Lopes, acrescentando-lhe um DVD de concepção mediana. Tem, no entanto, pelo meio, curiosidades que interessará ouvir.

No capítulo das colectâneas, “Divas do Fado” é dedicado às mulheres, com mais de um tema cada uma. Tem desde nomes incontornáveis, antigos e novos, até às promessas de amanhã. Mas tem falhas e até escolhas discutíveis, no contexto a que se propõe. Falta-lhe, por exemplo, Ana Moura ou Mariza, só para dar dois exemplos…

Por fi m, “A Origem do Fado”, de José António Sardinha”, sendo uma obra de tese e de recolha, inclui quatro CD demonstrativos de que os horizontes do fado são mais largos do que se pensa. A tese é: o fado será fi liado, não no lundum brasileiro mas “na canção narrativa tradicional (romances de cordel ou de cegos).” É uma nova pista para um debate cada vez mais útil.

O primeiro CD duplo da “Biografia do Fado” vendeu 120 mil exemplares. Até hoje

Desde a edição da primeira “Biografi a do Fado”, por ocasião da Lisboa’ 94 e agora

reeditada, muitas colectâneas surgiram no mercado. Só os últimos doze meses deram muito que ouvir. E pensar. Nuno Pacheco

Fado Capital A essência do fado de A a Z

VáriosOvação

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 27

o fado

“O fado tem uma vitalidade única, que não está limitada circunstancialmente ao impacto mediático que agora tem.Há uma rede só permeável a quem vive muito intensamente o meio do fado, que é uma grande escola para os novos intérpretes”

Aparentemente, a caixa “Biografias do Fado” seria a reunião, num só vo-lume, dos 5 CD que a EMI Music foi editando desde 1994, com o objectivo de traçar um retrato o mais fiel pos-sível de um género e onde, ao fado que se sedimentou em Lisboa se jun-taram trabalhos exclusivamente de-dicados fado de Coimbra (em 2002), à guitarra portuguesa (em 2005) e aos novos valores do canto fadista (2002). Mas se todos os outros volumes se mantiveram tal qual foram editados da primeira vez, já este último sofreu alterações de monta e é sobretudo nele que reside a novidade desta edi-ção. Além do facto de, pela primeira vez, todas as “biografias” se encon-trarem juntas e de novo acessíveis.

Assim, no volume “Nova Biografia do Fado”, aos nomes que continuam, embora alguns com outros temas (Ca-mané, Hélder Moutinho, Katia Guer-reiro, Ana Sofia Varela, Joana Amen-doeira, Maria Ana Bobone, Mísia, Cristina Branco, Mafalda Arnauth e Mariza) juntam-se agora Carminho, Raquel Tavares, Ricardo Ribeiro, Al-dina Duarte, Cuca Roseta, Ana Moura, Pedro Moutinho e Rodrigo da Costa Félix. Todos no activo. Havia mais? Havia, mas a escolha, entregue ao an-tropólogo Pedro Félix, guiou-se por um padrão que ele próprio explica. “A questão começa logo por definir o fado, o limite do fado. E é muito com-plicado definir isso. Até porque ao excluirmos algum reportório mais próximo de tradições brasileiras, a bossa nova, o cool jazz, isso levanta-nos um problema: saber até que pon-to eles ainda estão na prática do fado. Mas no momento em que dizemos ‘não estão’, estamos também a dizer ‘se calhar estamos a fechar portas’.”

Isto justifica, por exemplo, a ausên-cia de um nome com projecção inter-nacional como António Zambujo. “De facto, de entre o reportório que já es-tava gravado, não havia nada que se enquadrasse numa certa linha que estava nos temas anteriores, sentia-se essa falta. Lá está: as partes cinzentas são as mais complicadas. Se calhar, ao incluir o António Zambujo, tería-mos de incluir outros intérpretes.”

Sem nenhum constrangimento por parte da editora, excepto “ser repre-sentativo”, o disco começou a ser ide-alizado com a procura de “nomes incontornáveis” e depois com a audi-ção integral das suas discografias. No final, foram escolhidos os fados “on-de mais características interpretativas de cada pessoa se reflectem”.

1994, um ano fulcralPedro Félix começou a trabalhar sis-tematicamente com a comunidade do fado em 2004. E isso fê-lo tornar-se “um bocado ortodoxo na maneira de abordar o fado. O fado tem uma série de códigos muitos próprios: interpre-tativos, de escolha de reportório e daquilo que se chama de criação. Por isso houve a opção de procurar repor-tórios que estivessem muito próximos dessa interpretação do fado segundo os critérios da própria comunidade.”

Nas aulas, como professor, ele costu-ma usar o exemplar da “Biografia do Fado”. “Porque consigo levar numa pequena caixa tudo aquilo que preci-so de mostrar a qualquer pessoa sobre o fado. Isto pode soar a promoção, mas é mesmo assim. Ouve-se aquilo e fica-se com a perfeita noção das di-nâmicas da história do fado.” O ano de nascimento da “Biografia” foi, se-gundo Pedro, fulcral para o fado. “Lis-boa 94 foi um marco muito importan-te, mudou radicalmente a história do fado. E esse duplo CD inicial [que saiu em vinil, antes] fez parte de um con-junto, com uma exposição e com um catálogo [que vai ser reeditado em breve], e ao articular esses materiais consegue-se ter pela primeira vez uma reflexão crítica, desapaixonada e muito rigorosa do que é o fado e de quais são as suas histórias. Depois apareceu o Museu do Fado, que foi incorporado pela comunidade de uma forma absolutamente extraordi-nária, em 1998, e em 2004 tivemos o início da candidatura à Unesco, que é um novo fôlego.”

Daqui para a frente só pode melho-rar, diz. “O fado tem uma vitalidade única, que não está limitada circuns-tancialmente ao impacto mediático que agora tem.” Isto não apenas em termos de mercado. “Há uma rede só permeável a quem vive muito inten-samente o meio do fado, que passa por casas de fado, restaurantes, asso-ciações recreativas, juntas de fregue-sia, pequenos palcos de colectivida-des, essa rede é muito vigorosa. A noite de terça-feira na Mouraria, a de quarta em Marvila, depois no Beato. Tudo isto é uma grande escola para os novos intérpretes.”

No caso da candidatura apresenta-da à Unesco (candidatura a que Pedro está ligado e no âmbito da qual estas reedições ocorrem), ele acha que o reconhecimento do fado como Patri-mónio Imaterial da Humanidade terá bons resultados, logo de início. “Vai haver um impacto óbvio, imediato. Quando foi feito o anúncio de que a candidatura ia ser entregue, houve uma semana na televisão em que não havia notícias: era a gala do fado, a noite do fado, o espectáculo do fado, o documentário do fado. Um bocado terrível. Obviamente quando o resul-tado surgir, vai haver um mês em que, como se diz, o telefone não vai parar. Depois as coisas vão assentar. Vai ha-via uma maior divulgação internacio-nal, até porque o turismo cultural é que faz as pessoas viajar. E o grande desafio para as editoras, os investiga-dores, os museus, é não se deixarem levar pela superficialidade. Se houver um cuidado grande, o meio do fado só beneficia.”

numa caixa com 5 CD e acompanhada das suas três fi lhas: Biografi a do Fado” com novos intérpretes, novo passo no longo caminho da Unesco... Nuno Pacheco

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28 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Resultante de uma encomenda da Culturgest, a ópera de Luís Tinoco estará em cena nos dias 17 e 18 e tem encenação de Rui Horta

Fantasiasnuma carruagem de comboio“Paint me”, primeira ópera de Luís

Tinoco baseada num libreto de Stephen Plaice, é uma antologia de pequenas histórias passadas entre seis passageiros que entram num

compartimento de comboio. A acção real e as fantasias imaginadas

cruzam-se como num fi lme no Grande Auditório da Culturgest

Cristina Fernandes

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 29

Viajar de comboio pode ser um exer-cício voyeurista, facilitado pela obser-vação do reflexo do outro no vidro da janela, sobretudo nos percursos noc-turnos. Imaginam-se as vidas das pes-soas que estão ali mesmo ao lado ca-sualmente e fantasia-se com elas. Este foi o ponto de partida para “Paint Me”, a primeira ópera de Luís Tinoco, es-crita a partir de um libreto de Stephen Plaice, autor de textos para teatro, musicais e óperas de compositores como Harrison Birtwistle, Richard Taylor ou Jonathan Gill. O modelo for-mal foram os “Contos de Canterbury”, escritos por Geoffrey Chaucer no sé-culo XIV, com a diferença de que os viajantes de “Paint Me” não são pere-grinos com um objectivo comum, mas estranhos que foram agrupados em virtude da aleatoriedade da forma de viajar moderna. Os seus contos são narrados para si próprios, nas suas próprias fantasias. Luís Tinoco já tinha feito experiências no teatro musical, com destaque para “Evil Machines”, com libreto de Terry Jones (um dos elementos dos Monty Python), mas esta é a sua primeira ópera no sentido tradicional, “um desafio aliciante”, no qual projectou técnicas cinematográ-ficas. Resultante de uma encomenda da Culturgest, o espectáculo estará em cena nos dias 17 e 18 e tem encenação de Rui Horta, direcção musical de Jo-ana Carneiro e um elenco de seis jo-vens cantores: Raquel Camarinha (Tula), Eduarda Melo (Ruth), Patricia Quinta (Stephanie), Hugo Oliveira (Ho-ward), Job Tomé (Padre) e João Rodri-gues (Lee).Como surgiu a colaboração com o libretista Stephen Plaice? Podemos comparar o papel do libre-tista ao do guionista no cinema. É um trabalho muito específico. Queria um libretista com “métier”, alguém que pudesse construir um drama e uma linha narrativa com uma direcção contemporânea, mas que fizesse ao mesmo uma ponte com a história e a tradição do género operático. Passei um período à procura de autores e li muita coisa, até que uma amiga me falou do Stephen Plaice. Ópera é mú-sica e teatro ao mesmo tempo. Um libretista tem de ter intuição musical, mas também intuição de palco. O Ste-phen tem essa experiência, escreveu muitas peças de teatro, é casado com uma cantora de ópera e canta num coro. Tem um enorme conhecimento da história da música e da ópera, o que lhe permite brincar e ironizar com o género operático. Li os seus libretos e em todos os casos senti que gostava de fazer música para eles. A ideia do conteúdo da história foi dele?Antes de iniciar o trabalho conversá-mos sobre temáticas e também sobre problemas práticos da técnica de es-crita. Depois houve um aspecto que partilhámos a título de curiosidade. Tratava-se daquela situação que já todos experienciámos quando viaja-mos de comboio e observamos os outros passageiros através do reflexo no vidro. É uma forma voyeurista de observar as pessoas, de fantasiar o que será a vida delas ou mesmo de imaginar uma possível relação com elas. Esse foi um ponto de partida. Em termos literários há uma referên-cia aos “Contos de Canterbury”, de Geoffrey Chaucer. Neste caso, em vez de uma viagem de peregrinos que se

entretêm a contar histórias para o tempo passar, temos uma relação ca-sual entre as pessoas que entram na-quela carruagem. Como geriram a oposição entre a acção real e imaginada?Esse foi um aspecto aliciante que me permitiu trabalhar musicalmente o espaço interior da carruagem e o es-paço da fantasia e também cruzá-los. Há aspectos das fantasias que passam para o som real e sons da vida real que entram no espaço da fantasia. Esse processo tem uma componente cinematográfica apelativa. O que aca-ba por ser importante em termos nar-rativos é o espaço da fantasia. Seria mais fácil adaptar o texto para cinema pois aí temos o corte, a montagem, os saltos de elipse temporal e espacial. Em palco é mais fácil resolver os sal-tos no tempo do que no espaço. Como

não podíamos ter um elenco de 12 cantores em vez de seis, tivemos de encontrar soluções musicais, drama-túrgicas e de cena para conseguirmos que a mesma pessoa tenha tempo de andar aos saltos do espaço físico real para o espaço imaginado.Como fez o tratamento musical das personagens?Usar a música para ajudar a caracte-rizar as personagens é um bom prin-cípio que não morreu historicamente. Há materiais musicais recorrentes ao longo da ópera associados a situações, espaços e personagens. Por outro la-do, nesta ópera uma personagem com determinado tipo de comportamento pode a certa altura passar a ser não essa pessoa mas outra que está a ser imaginada pelo próprio ou por um outro passageiro. Temos, por exem-plo, uma senhora de idade que tem um comportamento muito britânico e convencional mas a dada altura transforma-se numa mulher que ao longo da vida andou a destruir obras de arte em museus e galerias sempre que via pinturas com mulheres nuas! Isso é muito engraçado, posso traba-lhar musicalmente esse personagem durante dois terços da ópera de uma forma e depois mudar radicalmente esse tratamento.Que outras histórias nos trazem os restantes passageiros?A primeira passageira a entrar na car-ruagem é Tula, uma rapariga bonita e ingénua, que leva um quadro debai-xo do braço. Como ela traz esse qua-dro muitas das fantasias giram em torno das artes plásticas, há uma fan-tasia num leilão, outra no atelier de um pintor.

Temos uma mulher de meia idade que teve uma casamento falhado e anda à procura de uma realização afectiva que ainda não encontrou e que vai projectar noutra passageira, e a tal velhinha que é muito religiosa e contida e que tem um problema por resolver com a representação do cor-po nu e com a sexualidade em geral.

Existe também um Padre com uma fantasia de exorcismo, que imagina

O modelo para “Paint Me” foram os “Contos de Canterbury”, com a diferença de que os viajantes de “Paint Me” não são peregrinos com um objectivo comum, mas estranhos agrupados em virtude da aleatoriedade da forma de viajar moderna

que está a tirar o Diabo do corpo de uma das passageiras enquanto lê uma passagem do Evangelho São Lucas em que se fala de porcos que estão pos-sessos e depois se afogam...

O Revisor é um indivíduo gingão com uma fantasia detectivesca — a de desmascarar um noivo que passa a vida a somar casamentos e apaixona por mulheres que vê em catálogos de moda... — e o Howard, outro passagei-ro, é cínico, prepotente e dominador. Logo no início tenta convencer a jo-vem estudante de pintura a oferecer-lhe os seus favores sexuais em troca de projecção profissional, fazendo-se passar por um curador de uma galeria de arte. Depois tenta projectar esta fantasia de prepotência nos outros passageiros e é muito engraçado por-que lhe sai tudo trocado. É um compositor português, mas a ópera será cantada em inglês. A escolha da língua tem apenas a ver com a nacionalidade do libretista ou há outras razões? Várias vezes me perguntam se tenho algum problema com a língua portu-guesa ou com os autores portugueses. Não tenho problema nenhum, já adaptei Camilo Pessanha, Fernando Pessoa e vou fazer um projecto com Almeida Faria. Não acho que seja mais ou menos português pelo facto de trabalhar noutras línguas. Às vezes há um certo bairrismo, um certo pro-vincianismo na forma como as pes-soas lidam com estas questões. Se pensarmos no universo da música contemporânea nunca vejo ninguém levantar esse problema quando o compositor opta pelo alemão ou pelo francês. Eu gosto muito do inglês can-tado, mas neste caso mais importan-te do que saber em que língua ia fazer a ópera era encontrar o libretista. Ca-lhou ser inglês, se fosse espanhol faria a ópera em castelhano. Também vejo a questão do ponto de vista do “mé-tier”. Só me atrevo a escrever música e adaptar textos em línguas que con-sigo dominar musicalmente no plano da prosódia ou de aspectos como o

registo vocal e a cor. Teria dificuldade em fazer uma ópera em alemão. Além dos instrumentos acústicos recorre à electrónica, uma componente pouco presente noutros trabalhos...É uma área que nunca desenvolvi in-dividualmente, embora tenha recor-rido a ela em colaboração com cole-gas especializados. Neste caso recor-ri ao Carlos Caíres. Queria ter o apoio da electrónica não só como elemento de sonoplastia (em que pudesse me-ter sons de comboios, carris, api-tos...), mas também para captar a orquestra em tempo real e interagir com ela através de software informá-tico. É outra orquestra em cima da orquestra, outras fronteiras que po-dem ser ultrapassadas. Do ponto de vista da instrumentação acústica uso muita percussão, uma das caracterís-ticas da minha linguagem em termos de definição de cor e de pulsação. Já fez outras incursões no teatro musical mas esta é a sua primeira ópera. Colocou-lhe desafios diferentes?Se pensar na forma como trabalhei a voz humana nas composições dos úl-timos anos, as minhas opções estilísti-cas foram mais definidas pelo texto do que pelo género que ia abordar. A pri-meira peça que fiz que me começou a preparar para a ópera foi outra enco-menda da Culturgest, um projecto de homenagem aos grandes bailados. Calhou-ne “Le Jeune Homme et la Mort”, com texto do Cocteau, e na al-tura o António Pinto Ribeiro pediu-me que fosse uma homenagem puramen-te musical, sem coreografia. Enviou-me um artigo que o Jean Cocteau tinha es-crito no dia a seguir à estreia e eu fiz um melodrama a partir desse texto usando um narrador. Depois fiz os “Contos Fanstáticos” e as “Evil Machi-nes”, obra a meio caminho entre a ópe-ra, o musical e a música para cinema. Sabia que esses trabalhos eram uma aprendizagem para uma futura ópera, mas não fiquei demasiado ansioso. Acho que os compositores não devem ter pressa para chegar à ópera.

“[Andar de comboio] É uma forma voyeurista de observar as pessoas, de fantasiar o que será a vida delas ou mesmo de imaginar uma possível relação com elas. Esse foi um ponto de partida [para a ópera]

BERTOLT BRECHT VERSÃO JOÃO LOURENÇO | VERA SAN PAYO DE LEMOS DRAMATURGIA VERA SAN PAYO DE LEMOS

COM ANTÓNIO PEDRO LIMA | CÁTIA RIBEIRO

CARLOS MALVAREZ | CRISTÓVÃO CAMPOSFRANCISCO PESTANA | JOÃO FERNANDEZ

LUIS BARROS | MAFALDA LENCASTREMAFALDA LUÍS DE CASTRO | MARTA DIAS

MIGUEL GUILHERME | MIGUEL TAPADASPATRÍCIA ANDRÉ | RUI MORISSON

SARA CIPRIANO | SÉRGIO PRAIASOFIA DE PORTUGAL

VASCO SOUSA

ESTRUTURA PATROCINADA PELO

ENCENAÇÃO e REALIZAÇÃO VÍDEOJOÃO LOURENÇO

MÚSICA MAZGANI

CENÁRIO ANTÓNIO CASIMIROJOÃO LOURENÇO

FIGURINOS BERNARDO MONTEIRO

COREOGRAFIA CLÁUDIA NÓVOA

SUPERVISÃO AUDIOVISUAL AURÉLIO VASQUES

LUZ MELIM TEIXEIRA

[ m/12 ]

QUARTA A SÁBADO 21H30 DOMINGO-MATINÉE 16H00

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30 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

“O que é verdade? O que não é? É isso que faço: testo o modo como os ou-tros lidam com a realidade.”

Podia ser Joaquin Phoenix (ou o seu realizador, Casey Affleck) a falar de “I’m Still Here”, o falso documentário sobre a muito falada “retirada” do ci-nema do actor para se dedicar a uma carreira musical de “rapper”. Mas não: é uma citação de Andy Kaufman, o lendário comediante desconstru-cionista americano que, na transição dos anos 1970 para os anos 1980, le-vou a “stand-up comedy” às frontei-ras do desconforto. Kaufman – bio-grafado sob os traços de Jim Carrey no filme de Milos Forman “Homem na Lua” (1999) - levava a sua arte ao limite de não se conseguir perceber onde terminava a “performance” e onde começava a realidade, onde es-tavam os limites (ou a essência) da piada.

Joaquin Phoenix seria, então, o mais recente sucessor das experiên-cias conceptuais de Kaufman, ao pon-to de levar as suas explorações à pos-sível destruição da sua carreira, em nome da reflexão sobre a natureza da celebridade e do delírio mediático que a rodeia. Durante quase dois anos, Phoenix retirou-se do olhar pú-blico para trabalhar numa carreira de “rapper”, anunciada como modo de expressão verdadeiro da sua arte, es-cape da “persona” pública de “Joa-quin Phoenix”, o actor de sucesso nomeado para o Óscar.

Nas primeiras imagens de “I’m Still Here”, o actor diz estar cansado de representar essa “personagem” que seria a versão “social” de si mesmo. As escassas aparições em público du-rante este período – inchado, barbu-do, desgrenhado, incoerente – culmi-naram numa presença no “talk-show” de David Letterman (retomada no fil-me) que, para o bem e para o mal, marcou o actor como excêntrico, fri-que ganzado que se deixara perder na megalomania que a fama e o estre-lato permitiam. Subentendendo-se (mesmo que nunca dizendo-o publi-camente) que Joaquin poderia repetir o destino trágico do irmão River, fa-lecido em 1993 sem nunca ter cum-prido o seu potencial.

Ora, era precisamente essa fama e essa megalomania que Phoenix e o seu co-conspirador (e cunhado), Ca-

sey Affleck, ele próprio actor aclama-do, queriam denunciar. O seu projec-to performativo de Phoenix e Affleck implicava inverter os dados da situa-ção. Em vez de fazer tudo para sus-tentar a celebridade, recusá-la, aban-donar a imagem pré-existente e partir em busca de um “segundo acto” (ne-gando, no processo, a afirmação de F. Scott Fitzgerald: “não existem se-gundos actos nas vidas america-nas”).

Numa paisagem mediática domi-nada pela curiosidade insaciável e voyeurista das revistas cor-de-rosa, pelo ciclo noticioso imparável dos canais de notícias de cabo e da inter-net de banda larga permanentemen-te ligada, num mundo onde os “rea-lity-shows” televisivos fazem ponto de honra de explorar o deslumbra-mento de concorrentes capazes de tudo por 15 minutos de fama, como seria encarada a sua recusa assumida, a sua tentativa de fugir ao mundo re-al?

Falso documentárioA adaptação das técnicas de guerrilha performativa de Kaufman espelha uma verdadeira vontade de reflectir sobre o que significa ser famoso hoje, o tipo de escrutínio que isso implica, a possibilidade de escapar a esse olhar. E esse desejo reflecte-se no “tu-do ou nada” que viu Phoenix pôr em risco a sua carreira, sem rede de se-gurança, sem a certeza de que uma vez revelada a verdadeira natureza da experiência, houvesse retorno possí-vel. (E só isso já merece que tiremos o chapéu a Phoenix.)

Apresentar o resultado da experi-ência sob a forma de documentário é uma outra prova de inteligência, jogando com o facto de o género já ter há muito deixado de ser garantia de “realidade”/”veracidade”. A ideia do “falso documentário” não é nova – alguns dos exemplos pioneiros são filmes como “Coming Apart” (1969) de Milton Moses Ginsberg, ou “This Is Spinal Tap” (1984) de Rob Reiner - mas ao longo dos últimos anos tem-se tornado num elemento recorrente da gramática narrativa e visual do cine-ma “mainstream” e da televisão. De-pois dos múltiplos falsos documentá-rios de Christopher Guest (“Waiting for Guffman”, 1996, “Donos de Esti-

mação”, 2000, “A Mighty Wind”, 2003), os filmes de Larry Charles com Sacha Baron Cohen (“Borat”, 2006, e “Brüno”, 2009) trabalharam essa gramática numa linhagem directa-mente herdada de Kaufman, diluindo as fronteiras entre ficção e realidade. Por seu lado, quase todos os “reali-ty shows” rodados em exteriores (de “Survivor” às “Real Housewi-ves” de onde quer que seja) ex-ploram a forma, e séries de ficção como “Uma Família Muito Moderna” usam a es-tética como parte integran-te do seu conceito.

Mas tem sido dentro do cinema de género que a aparência formal de do-cumentário tem sido melhor trabalhada. “O Projecto Blair Witch” (1999) de Daniel Myri-ck e Eduardo Sánchez serviu como “matriz” retomada em filmes como “Actividade Pa-ranormal” (2009), de Oren Peli, “REC” (2007), de Jaume Ba-lagueró e Paco Plaza ou “Diário dos Mor-tos” (2007), de George A. Romero, usando as convenções do docu-mentário como ampli-ficador da lógica narra-tiva do filme, mas sem-pre dentro de um quadro assumidamente ficcio-nal.

Ora, a partir do momento em que o próprio formato do documentário pode ser mani-pulado para apresentar uma ficção, isso levanta nos especta-dores a dúvida metódica sobre a veracidade daquilo a que estão a assistir. O que Affleck e Phoenix fa-zem é transpô-lo para um plano pu-ramente dramático e realista, assu-midamente sério, mais próximo de uma experiência radical como “Mor-te de um Presidente” (2006), de Ga-briel Range, jogando com a percepção pública de que um documentário não é, já, um mero registo da realidade (como foi durante muito tempo en-tendido) mas apenas um outro tipo de mediação/tradução da realidade.

A verdade da “I’m Still Here”, a experiência performativa de Joaquin Phoenix e Mas, agora que sabemos que tudo é fi cção,

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 31

mentira Casey Affl eck sobre a celebridade, chega às salas portuguesas. ainda fará sentido? Jorge Mourinha

Cinismo?Essa dúvida metódica sobre a veraci-

dade do “ano perdido” de Joaquin Phoenix, contudo, abre o flanco

a acusações de cinismo e so-branceria. A reflexão que se

quer instigar nasce de uma genuína vontade de levan-

tar questões sérias, ou é apenas consequência

de uma partida de uni-versitários irrespon-sáveis (um “Jackass” teórico, se quiser-mos) que ganhou vida para lá da ideia original? E não é uma ques-tão casual: nes-tes dias em que os “reality shows” televi-sivos “escre-vem” a su-posta reali-dade dos seus aconte-c imentos, será possível ainda olhar para um ob-jecto como este acredi-tando na sua veracidade?

Após a apresentação fora de con-curso do filme no festival de Veneza, em Setembro, Casey Affleck mostrou-se relutante em responder aberta-mente à pergunta. Mas invocou, pelo meio das elipses com que respondeu, a presença tutelar de Gus van Sant (a quem, aliás, se agradece no genérico final). “As coisas têm de se revelar so-zinhas” — essa terá sido a grande lição que o actor/realizador tirou da roda-gem de “Gerry” (2001), e isso acabou por ser uma “pista” para quem qui-sesse olhar para o filme com olhos de ver e reconhecer nele os sinais de uma sátira radical levada às últimas con-sequências.

Quando revelou a verdade ao jornal “New York Times”, pouco após a es-treia americana, Affleck confessou que achava óbvio para qualquer es-pectador atento que se tratava de uma ficção - “a questão da realidade não era algo que eu achasse que iria exis-tir depois das pessoas terem visto o filme”. Mas talvez tenha sido esse o erro de cálculo que deita a perder “I’m Still Here”. Para o bem e para o mal, a exigência de concentração que o cinema coloca, pela própria natu-reza do seu dispositivo, não se com-padece com a estrutura mais fluida a que nos habituámos na televisão e na internet. O grande écrã presta-se, na-turalmente, a formas narrativas de

maior fôlego, enquanto a televisão abre espaço a formatos e construções mais curtas e económicas.

Também por isso, “I’m Still Here” não resulta no grande ecrã porque, à imagem dos “Borat” ou “Brüno”, sen-timos que esta sucessão de episódios autónomos não constrói um fio con-dutor linear que sustente uma dura-ção de longa-metragem. O essencial do que aqui se joga não pede o “lar-ger-than-life” da sala de cinema, mas sim o permanente bombardeamento informativo que permeia o nosso quo-tidiano nos ecrãs do televisor, do com-putador, do telemóvel. Affleck e Pho-enix não compreenderam que o seu projecto, pela sua própria natureza, era algo mais multimediático, que vi-via no constante limbo de rumores e incertezas do ciclo noticioso de 24 horas do que na limitação do grande écrã. Não porque este tipo de experi-ências não tenha espaço no cinema, apenas porque se sente que quer a natureza quer o pormenor do seu projecto não foram pensadas às últi-mas consequências.

Não por acaso, a produtora forma-da por Affleck e Phoenix para efeitos do filme chama-se They Are Going To Kill Us Productions – como quem sa-be à partida que o resultado vai fazê-los ser “persona non grata” junto do “establishment” que se pretende sa-tirizar. Mas a maior decepção de “I’m Still Here” não é que o filme fique aquém dos seus propósitos: é que, enquanto a dúvida sobre a sua vera-cidade existia, o lema de Andy Kauf-man sobre “testar o modo como os outros lidam com a realidade” fazia todo o sentido. A partir do momento em sabemos que nada é verdade, co-mo se pode desafiar o espectador a lidar com uma realidade que não existe?

Em vez de fazer tudo para sustentar a celebridade, recusá-la, abandonar a imagem pré-existente e partir em busca de um “segundo acto” (negando, no processo, a afirmação de F. Scott Fitzgerald: “não existem segundos actos nas vidas americanas”)

Andy Kaufman (o próprio à esquerda e na interpretação de Jim Carrey em “Homem na Lua”, à direita) levava a sua arte ao limite de não se conseguir perceber onde terminava a “performance” e começava a realidade

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Casey Affleck e o seu actor

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32 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Faz agora dois anos, “Katalin Varga” era um ovni que não surgia em ne-nhum radar cinéfilo ou cinematográ-fico: uma primeira longa rodada na Transilvânia por um realizador inglês estreante e financiada por uma he-rança de família, que depois ficou dois anos e meio à espera que alguém investisse o dinheiro necessário para a pós-produção.

Depois, houve a selecção para a competição do festival de Berlim 2009 – e, diz Strickland ao telefone ao Ípsi-lon, “foi muito estranho. Andámos tanto tempo a ser ignorados e depois aterramos em Berlim e recebemos uma avalanche de atenção...”

“Katalin Varga” saiu de Berlim com o prémio de melhor contribuição ar-tística (entregue ao design de som de Gabor Erdelyi e Tamas Székely), e o estatuto de surpresa do festival e a aclamação da crítica colocaram o fil-me, que estreia esta semana a Portu-gal, no mapa. Nick James, editor da revista inglesa “Sight & Sound”, es-creveu a seu respeito que “Strickland tem o potencial de se tornar num dos nossos melhores cineastas”.

Strickland, 37 anos, natural de Rea-ding, autor de algumas curtas-

metragens e ex-membro do grupo musical Sonic Cate-ring Band, reconhece que existe um novo floresci-mento do cinema inglês – mas do qual não se sente

próximo. “Sobretudo nos últimos dois anos, tem ha-

vido gente que fez coisas pessoais – Gideon Ko-ppel, o casal Joe Lawlor/Christine Molloy, Steve McQueen... E se pen-sarmos como o cinema inglês era horrível nos anos 1990, com o Guy Ritchie e toda essa gente, agora parece ter regressado um cinema mais pes-soal – com a tecno-

O elogiodo amador

Um cineasta inglês vai à Transilvânia rodar uma história de vingança de

mulher infl uenciada por... Paradjanov e Charles

Laughton? Peter Strickland explica que “Katalin Varga”

é, no melhor sentido da palavra, um fi lme amador.

Jorge Mourinha

Strickland, 37 anding, autor

metragengrupo mring Baexiste mento– mas d

próximúltimos

vido gpessoppel, ChriMcQsarminglêanoRigt

Peter Strickland, realizador

Os 17 dias de rodagem de “Katalin Varga” foram suportados por uma herança de família e pelo emprego diurno do realizadorlogia a ficar mais acessível, existe uma

possibilidade muito séria das pessoas poderem propor projectos mais pes-soais e conseguir financiá-los. Dito isto, não sinto especial parentesco com os outros – gosto de ver o que eles fa-zem, mas nunca me senti parte de ne-nhum grupo, nunca fui para os copos com outros realizadores...”

Que se lixem...A verdade é que Strickland está “à parte” dos seus compatriotas. Por um lado, “Katalin Varga”, história da vin-gança de uma mulher que se revolta contra o seu lugar numa Transilvânia rural e patriarcal, não teve financia-mento inglês. “Quase o tive, mas as-sim que ouviram que o filme ia ser falado em húngaro ficaram chocados, disseram que tinha de ser falado em inglês – e isso nunca me tinha passa-do pela cabeça. Isto não é futebol, isto é cinema – um filme não tem de ter forçosamente uma nacionalidade, e do modo como o mundo está hoje em dia, tão fluido, o filme não tem de ser húngaro ou romeno ou inglês. O filme é o que é.”

Por outro, as influências assumidas não vêm em nada do cinema inglês – Strickland fala entusiasmado do ge-orgiano Serguei Paradjanov e sobre-tudo de “Sombras dos Antepassados Esquecidos” (1964), pela sua capaci-dade de sintetizar e amalgamar tradi-ções folclóricas num todo visionário, mas cita também “A Sombra do Ca-çador” (1955), o único filme dirigido por Charles Laughton.

“Uma das coisas de que mais gosto no Quentin Tarantino é o entusiasmo que ele tem por nomes que costumam estar nas margens da história do ci-nema. Adoro que os cineastas façam questão de citar as suas influências – não tenho nada contra o Scorsese, mas há mais cineastas para lá dele! Há tantas ideias a flutuar no cinema que nunca são aproveitadas... Por exemplo, no cinema experimental, os filmes do Stan Brakhage ou do Jor-

dan Belson são impenetráveis, mas têm ideias espantosas que ainda não foram usadas no cinema ‘mainstre-am’. Se olharmos para os Sonic Youth, eles pegaram em ideias da vanguarda musical e usaram-nas na música rock – porque não podemos nós pegar em elementos do cinema marginal e usá-los no ‘mainstream’?”

Seja como for, há algo que Stri-ckland reivindica: o seu amadorismo. Os 17 dias de rodagem de “Katalin Var-ga” (“um momento mágico, a melhor memória do filme”) foram suportados por uma herança de família e pelo emprego diurno do realizador, e a montagem prolongou-se por dois anos e meio, à medida que o dinheiro aparecia e desaparecia. “Temos todos outros empregos, mas é isto que nos alimenta, que nos faz querer sair da cama de manhã. Uso a palavra ama-dor também por raiva, por causa do snobismo que existe na indústria à volta da palavra ‘profissional’, que sempre me transmitiu uma ideia de frieza... Por isso, que se lixem, somos amadores. Um amador faz as coisas por amor, e por isso uso essa palavra quase como uma medalha. Mas não consigo dar um passo atrás, olhar pa-ra ‘Katalin Varga’ e dizer por que é que o filme resulta. Quem sabe?”

Ver crítica de filme págs.41 e segs.

“Uso a palavra amador também por raiva, por causa do snobismo que existe na indústria à volta da palavra ‘profissional’, que sempre me transmitiu uma ideia de frieza... Por isso, que se lixem, somos amadores”

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 33

felliniEu sou

um“Federico Fellini: o circo das ilusões” é

“o pretexto ideal para falar da segunda metade do séc. XX”, diz Sam Stourdzé, comissário da

exposição apresentada no CaixaForum de Madrid. Retrato de uma obra que nos

revela como existimos enquanto espectadores. Francisco Valente, em Madrid

Ao contrário de autores que chegaram ao cinema pela sua cinefilia, por um interesse académico ou um vincado desejo profissional, Federico Fellini surge como um autodidacta que seguiu um gosto popular pelas imagens. As-sim, a exposição “O circo das ilusões”, apresentada no CaixaForum de Ma-drid, mostra-nos, por um percurso de fotografias e testemunhos de Fellini e colaboradores, que o interesse do ita-liano ultrapassava um mero gosto pes-soal, mostrando, pelo seu toque único, a forma como o homem criou uma plataforma para fantasiar os seus he-róis e reviver os seus desejos na pro-jecção das imagens.

“As várias temáticas do séc. XX es-tão presentes no cinema de Fellini”, diz-nos Sam Stourdzé, comissário da exposição sobre o realizador italiano, “a questão mediática, a imprensa e televisão, a representação. Para ele, a cultura popular é uma fonte de ins-piração, algo que vai das novelas grá-ficas ao rock’n’roll, passando pelos jantares de rua, os desfiles e as para-das de circo”, afirma. “Fellini alimen-ta-se dessa realidade e, através do seu processo criativo muito particular, transforma-a e coloca-a em cena nos seus filmes.”

Na exposição, os inícios de Fellini são mostrados por uma série de cari-

Foi Fellini que inventou os

“paparazzi” em “A Doce

Vida”, nome que depois se

adoptou na realidade – um mecanismo de

vai-e-vem entre o real e a

sua criação que está

presente na obra do

realizador

caturas feitas para jornais: as diferen-ças entre sexos e as suas formas exa-geradas, o tom cómico da postura das estrelas do entretenimento contra o dia-a-dia do homem comum. Na ver-dade, são os primeiros resultados criativos da observação de Fellini so-bre o que alimenta o olhar do homem, através do seu interesse pelo formato da BD (e o seu herói Mandrake). O realizador diria desses tempos: “Aprendi a essência da comédia com a banda desenhada.”

A realidade e as suas ilusõesMas é na escrita que Fellini viria a de-senvolver uma vertente mais incisiva

da sua observação de personagens e costumes. Ao mudar-se da sua Rimini natal para Roma (a fuga de um desper-dício de vida retratada em “Os Inú-teis”, de 1953), irá passar do desenho para funções editoriais em publica-ções, algo que abrirá as portas da es-crita romana e permitir chegar, mais tarde, à escrita para cinema. É aí que conhece Roberto Rossellini, seu mes-tre e protector, de quem será co-argu-mentista em “Roma, Cidade Aberta” (1945), “Libertação” (“Paisà”, 1946) — obras-primas do neo-realismo italia-no —, e também actor em “Il Miracolo” (1948) com Anna Magnani. Com Ros-sellini, afirmará ter encontrado o

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são, visões que parecem vir da viagem de G. Mastorna, a história do homem que descobriu o além e que Fellini nunca conseguiu adaptar ao cinema num filme só.

Dentro desse universo, a exposição dá destaque a uma das obsessões do realizador: a mulher felliniana, uma alternância entre a mulher doce e um corpo animalesco. “‘A Cidade das Mu-lheres’ (1980) é um filme dele que passou despercebido”, diz Stourdzé, “mas é onde vemos Fellini a mostrar-se muito, alguém cuja obsessão cine-matográfica é refazer o mesmo filme, mas dando sempre à mulher um lugar essencial.” As formas super-humanas das mulheres de Fellini (desenhadas nos esboços dos seus sonhos por su-gestão do seu psicanalista) encontra-ram a sua personificação ideal em Anita Ekberg, actriz de “A Doce Vida”, e mais tarde exploradas nas figuras de mulheres maternais, amantes ou prostitutas. Segundo Fellini: “A pros-tituta é o contraponto essencial da mãe italiana. Não se pode conceber uma sem outra.” O seu papel mascu-lino seria posteriormente confessado no rídiculo de “Casanova” (1976), um homem que não consegue amar as mulheres por amar, por sua vez, uma imagem que criou delas.

Fellini, hojeO espectáculo das imagens de Fellini não marcou apenas as possibilidades da expressão cinematográfica, mas também um reconhecido público que sempre se alimentou da sua fantasia. Contudo, e por os seus filmes serem, como poucos, encenações pessoais de um desejo de vida, a sua influência noutros autores ainda se mostra difí-cil de clarificar. Um resultado trágico e fértil da adopção do seu universo revelou-se em “Nove” (2009) de Rob Marshall, recriação musical de “8 1/2”. “Trata-se mais de uma recriação his-tórica que pega na comédia musical feita na Broadway”, diz Stourdzé. “É sempre difícil fazer remakes, sobre-tudo filmes tão majestosos e compli-cados como ‘8 1/2’, ou tentar trans-formá-lo num sucesso popular de 2010.” Quanto à influência noutros realizadores: “Begnini cresceu com a presença de Fellini mas o seu cinema não é exactamente felliniano, tal co-mo o lado barroco de Almodóvar é mais espanhol que italiano. Julgo que não encontraremos a herança de Felli-ni num só cineasta, mas sentimos que, em todos eles, houve um mo-mento em que um filme de Fellini os marcou particularmente, como ‘8 1/2’, ‘A Doce Vida’, ‘Roma’, ou filmes mais académicos como ‘A Estrada’. São obras que marcaram a história do cinema.”

Um dos realizadores mais interes-santes da actualidade, o tailandês Apichatpong Weerasethakul, vence-dor da Palma de Ouro deste ano, afir-mou recentemente à revista britânica “Sight & Sound” a sua admiração por Fellini, cuja cassete de “8 1/2” viu re-petidamente nos seus inícios. “É ver-dade que a sua relação com o oniris-

mo encontra-se sempre ancorada numa certa realidade, tal como Felli-ni”, afirma Stourdzé. “Os seus filmes surgem sempre na forma de uma fábula, remexendo-a en-tre o documentário e a ficção, de forma ténue, através do sonho.” Uma fórmula que ainda se en-contrará na base da arte que melhor encarna a ex-

pressão dos nossos so-nhos, e à qual Fellini soube dar uma efusiva, sentida e tocante repre-sentação da vida.

Vários episódios de

“A Doce Vida” foram

retirados da realidade romana: o

passeio de Jesus-Cristo

de helicóptero sobre Roma,

Anita Ekberg na Fonte de

Trevi (foto), o striptease de

uma actriz no bar

“Rugantino”...

seu meio de expressão no cinema, a plataforma ideal para criar a sua pro-jecção da realidade.

Dentro dessa matriz, cria, durante a década de 50, filmes cujos contextos sociais não estarão longe dos da dura realidade italiana, em que a sua tocan-te capacidade de esperança e revali-dação espiritual perante as dificulda-des aproximam-no de uma vertente católica do movimento. Contudo, se-rá ainda neles que Fellini começará a ser contestado como um dissidente e acusado, nas palavras do argumentis-ta e teórico Cesare Zavattini (num tes-temunho presente na exposição), de destruir o neo-realismo ao abdicar de qualquer análise política em “A Estra-da” (1954), obra-prima que revela o enorme talento cómico da sua mulher, Giuletta Masina, num filme focado nas desventuras de uma vertente pobre e rude do espectáculo de rua. “Existe toda uma ambiguidade no cinema de Fellini”, diz-nos Sam Stourdzé, “al-guém formado na escola do neo-rea-lismo e que trabalhará durante dez anos com todas as suas figuras. Mas por fim, acabará por guardar uma re-lação ambígua com a realidade.”

O interesse de Fellini, mais do que num mero retrato de uma vivência ligada a um contexto histórico e polí-tico, estará no fascínio do olhar hu-mano pelas formas de celebração do prazer e do entretenimento, tanto nos seus espectáculos como na recriação mediática de imagens para o olhar público — algo logo anunciado em “O Sheik Branco” (1952), o seu primeiro filme (a história de uma jovem perdi-da em Roma que decide conhecer a realidade por trás da sua estrela pre-ferida), e que atinge o seu ponto alto em “A Doce Vida” (1960).

Para Stourdzé, Fellini surge nesse filme como “o observador privilegia-do do período da vida romana entre 1950 e 1960, em que as maiores vede-tas mundiais de cinema vivem em Roma e os fotógrafos vêm fotografá-las num ambiente de deboche e festa permanente.” Através da imprensa da época apresentada na exposição, vemos que vários episódios do filme são retirados da realidade romana: o passeio de Jesus-Cristo de helicóptero sobre a cidade, uma sessão fotográfi-ca de Anita Ekberg na Fonte de Trevi,

Para ele, a cultura popular é uma fonte de inspiração, algo que vai das novelas gráficas ao rock’n’roll, passando pelos jantares de rua, os desfiles e as paradas de circo”Sam Stourdzé, comissário

o polémico striptease de uma actriz no bar “Rugantino”, ou os casos de aparições milagrosas nos arredores da cidade. Numa das cenas mais mar-cantes, Fellini reproduz a cobertura televisiva de um desses falsos mila-gres, o retrato da agitação e do circo mediático de uma imagem que se comprova inexistente. O realizador marca, então, o absurdo do fascínio humano por ilusões fictícias, valida-das por uma plataforma mediática que define, no seu vazio, a nossa per-cepção da realidade.

Para Stourdzé, “Fellini alimenta-se directamente da realidade para criar as suas personagens e as cenas dos filmes, sendo que a sua criação acaba por ultrapassar a realidade para de-pois alimentá-la de novo.”

Um caso paradigmático do retorno do espectáculo felliniano sobre a vida é a adopção do termo “paparazzi”. “No caso dos ‘paparazzi’, foi Fellini que os colocou no filme com esse no-me e que depois se adoptou na reali-dade. É um mecanismo de vai-e-vem entre a realidade e a sua criação.”

O interesse pela agressividade dos “paparazzi” como centro de uma in-dústria de ilusões revelou-se também no interesse pela sua estética. “Fellini

tinha um fascínio pela criação da es-tética de fotografias roubadas que aparece então nos fotógrafos em Ro-ma, uma verdadeira revolução que quebrou todos os códigos”, diz o co-missário.

A personagem fellinianaDesencantado com a sua realidade, à semelhança das suas personagens, Fellini vê-se perdido e desinspirado. A partir daí, inaugura o que Stourdzé apelida de “um cinema mais intros-pectivo, um mundo fantasista e ima-ginário que qualificamos de ‘fellinia-no’”. “8 1/2” (1963), o filme que vem da crise, acabou por ser a tábua de salvação pessoal do realizador, obra-prima onde irá expor as dúvidas sobre o seu papel na vida e no cinema, co-locando sonho e realidade no mesmo plano. Mastroianni, o seu alter-ego, é o veículo de Fellini como estrela dos seus próprios filmes, rodeado das pro-jecções que irão criar um cinema de visões fora de qualquer tempo.

Começa então o desfile das suas personagens, o espelho das fantasias do realizador e das suas idealizações dramáticas. Na exposição, testemu-nhamos as cartas e os rostos de mi-lhares de pessoas chamadas por Felli-ni e que seriam mais tarde escolhidas para as participações nos seus filmes. O realizador recebe-as no seu estúdio, enquanto estas tentam comprovar o que dizem pela sua aparência: “eu sou um Fellini”. Segundo Stourdzé, “sa-bemos que, nos filmes, existem uma série de personagens fellinianas, mas não sabíamos que as personagens existiam, a esse ponto, na realida-de, e que iam ter espontaneamen-te com Fellini.” Daí, o cineasta imporá a sua direcção: uma psi-cologia unicamente reflectida numa marcada caracterização e uma interpretação focada nas expressões faciais e corporais. É a montagem final do circo felliniano, vista nas experiên-cias alucinogénias de “Julieta dos Espíritos” (1965), na recria-ção barroca de “Fellini - Satyri-con” (1969), no desfile de “Roma” (1972) ou na re-criação de memórias em “Amarcord” (1973) — Felli-ni buscando outra dimen-

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No dia em que choveu tanto que a Baixa de Lisboa inundou, os donos dos restaurantes andavam aflitos a tentar salvar cadeiras e mesas, a reti-rar água com a ajuda de baldes, e a falar para a televisão, lamentando os estragos. Ali ao lado, na Rua Augusta, longe das câmaras de televisão, algu-mas pessoas entravam noutra cave. Mas o que vinham era muito diferen-te, e não tinha nada a ver com a inun-dação – algumas saíam da cave com dinheiro, outras com jóias, outras com objectos de valor, documentos importantes, outras com coisas cujo valor só elas percebiam.

Raras vezes a sala dos cofres do an-tigo edifício do Banco Nacional Ultra-marino tinha assistido a tanta azáfama. Mas naquele dia do final de Outubro chegava ao fim um ciclo, e a Caixa Ge-ral de Depósitos, ainda utilizadora do espaço, comprometera-se a esvaziá-lo e a entregá-lo aos novos proprietários, a Câmara Muncipal de Lisboa e o Mu-seu do Design e da Moda (MUDE).

Hoje a sala forte, de grossas portas com códigos que têm que ser intro-duzidos à mão e que permitem rodar as grandes manivelas, a sala que guar-dou tantas riquezas e segredos, rea-bre com os cofres novamente cheios – só que desta vez não terão dinheiro, títulos do Tesouro ou barras de ouro. Desta vez vão ter sementes.

“Sabendo que a Caixa iria sair, co-meçámos a pensar como é que rea-briríamos os cofres”, conta Bárbara Coutinho, a directora do MUDE. “Com joalharia, moda, peças mais especta-culares de design? Pareceu-nos que este lugar exigia da nossa parte uma afirmação mais forte.” O que é que hoje tem tanto valor como o dinhei-

E nos cofres nasceram sementesCódigos, fechaduras que só se abrem com duas chaves – a sala dos cofres do edifício do BNU,

na Baixa lisboeta, vai abrir hoje como o novo espaço de exposições do MUDE. Onde até há pouco esteve dinheiro estão agora sementes. Alexandra Prado Coelho (texto) e Enric Vives-Rubio (fotografi a)

O que é que hoje tem tanto valor como o dinheiro? O que é que é tão importante que mereça ser guardado num cofre? Foi com perguntas como estas que Bárbara Coutinho chegou à ideia das sementes e à exposição que hoje inaugura

Hoje a sala forte, de grossas

portas com códigos que têm que ser

introduzidos à mão, a sala

que guardou tantas

riquezas e segredos,

reabre com os cofres

novamente cheios – só que

desta vez não terão dinheiro

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ro? O que é que é tão importante que mereça ser guardado num cofre? Foi com perguntas como estas que Bárbara Coutinho foi chegando à ideia das sementes e à exposição que hoje inaugura, “Sementes Valor Capital” (até 20 de Março de 2011).

Dois homens, duas chavesMas antes de a explicarmos melhor, vamos conhecer a sala dos cofres. Quem nos guia é António Carneiro, funcionário da Caixa, que trabalhou aqui durante perto de dois anos, mas que conhece há muito esta sala para onde vinha muitas vezes substituir, nas férias, o colega que aqui trabalhava.

Quem descia as escadas deparava em primeiro lugar com uma porta de vidro com elegantes grades de metal. Passada essa porta, numa pequena mesa estava António Carneiro. O cliente tinha já sido identificado lá em cima, à entrada, mas ali voltava a identificar-se, e seguiam então, clien-te e funcionário, cada um segurando a sua chave, para a sala dos cofres.

Paredes e chão são de mármore esverdeado. A luz vem de quadrados luminosos encastrados no tecto. Tu-do é rigoroso. Metálico. Ao fundo há um relógio negro e quatro portas com janelas redondas – como se fossem salas de interrogatório de alguma po-lícia secreta do Leste da Europa. Era aí que os clientes “podiam ter mais privacidade, para contar os Títulos do Tesouro ou ver documentos”, ex-plica António Carneiro.

A porta imensa da sala dos cofres, ao lado esquerdo de quem entra, es-tava aberta desde que, de manhã ce-do, António chegava e introduzia o código. Havia clientes habituais. “Os donos das casas de penhores vinham todos os dias. Alguns tinham aqui uma série de cofres”.

Dois homens, duas chaves. A sala dos cofres reluz. Alumínio a toda a altura. 3500 cofres, cada um com dois pequenos olhos – as fechaduras para as duas chaves. Depois o cliente reti-rava a caixa que se encontrava no interior e sentava-se numa das mesas a ver o conteúdo. António afastava-se discretamente.

A história do BNUA segurança aqui era absoluta. Quan-do encomendou a casa-forte à empre-sa britânica Chubb, em 1964, por oca-sião das obras que realizou no edifício para celebrar o seu centenário, o BNU quis o melhor: segurança, elegância, sofisticação. “Este é um lugar absolu-tamente singular a nível internacio-nal”, escreve Bárbara Coutinho num texto de apresentação, “um exemplo

de bom design que vamos preservar na sua integridade e que abrimos ago-ra ao público, tornando-o acessível a toda a cidade e a quem a visita.”

Passada a porta grande do cofre, existe à direita outra porta que dá acesso à zona de cofres maiores. “São cofres tipo dispensa, mais usados pe-los marchands de arte para guardar quadros ou peças de arte”, diz Antó-nio. À esquerda, outra porta. “Aqui depositavam os volumes”. Os clientes traziam as caixas – louças de grande valor, espólios de artistas – e deixa-vam-nas nas prateleiras.

Aí dentro, na parede, há mais uma manivela que abre uma pequena porta (há outra equivalente no lado dos co-fres usados pelos marchands). É uma saída de emergência para quem, even-tualmente, ficasse fechado na sala-for-te. Não se dá por nada para, mas escon-der essas saídas, vinte dos cofres da parede da sala-forte são falsos.

Atravessamos a sala principal, saí-mos por uma portinha ao fundo e António conduz-nos agora a uma zo-na escura, onde, por entre cabos e maquinaria, se vê a entrada de mais alguns antigos cofres do tamanho de pequenas divisões de uma casa. Era aqui que estavam guardados os valo-res pertencentes ao Estado, e reservas de ouro e bens das antigas colónias (o MUDE vai aproveitá-las como salas de reservas para as colecções de mo-da). O BNU, criado em 1864, foi du-rante muitos anos o banco emissor de moeda para todas as províncias ultramarinas e tinha dependências em África, na Índia, em Macau, e tam-bém em Londres e Paris.

Abrindo os cofres como espaço de exposições, Bárbara Coutinho quer valorizar essa história. “Há aqui uma riqueza patrimonial que espelha a nossa história recente, a história da finança e da própria Baixa. Percebe-se aqui a tercialização da Baixa, a impor-tância dos bancos e do próprio BNU, sobretudo entre os anos 30 e os anos 70 [o banco foi nacionalizado em 1974 e em 1988 a Caixa Geral de Depósitos tornou-se o principal accionista].”

Desde a primeira hora que a inten-ção foi a de preservar a sala dos cofres, “transformando-a num lugar que con-tasse a própria história, não de uma forma didáctica mas de uma forma mais plástica, um lugar que servisse como uma espécie de jóia da coroa”.

António Carneiro conduz-nos ago-ra por um labirinto – um corredor longo e estreito, um caminho de ron-da que permite dar a volta a toda a zona dos cofres. Olhamos para o fun-do e os corredores parecem-nos in-termináveis, mas é uma ilusão causa-

da pelos espelhos colocados em cada esquina e que nos permitem ver quem vem atrás de nós mesmo quando a pessoa ainda não dobrou a esquina.

Percorremos o caminho de ronda até sairmos mais uma vez na entrada principal para a zona dos cofres. Atrás de nós, na escadaria, está outro peda-ço da história do edifício que durante algum tempo a própria Bárbara Cou-tinho não sabia que estava ali. “Sabí-amos que este painel existia, tínhamos visto imagens dele, mas não tínhamos a certeza de onde estaria.”

Estava aqui, atrás de uma parede falsa que terá sido feita durante as obras de demolição do interior do edifício (que, em 2007, na altura da primeira visita de Bárbara Coutinho, antes de a CML o ter comprado para instalar o MUDE, estava num estado de “abandono e ruína”). O painel apa-rece agora em toda a sua glória. É uma peça do pintor Guilherme Camarinha (1913-1994) em mosaico Donà, de Mu-rano, que conta a Epopeia dos Des-cobrimentos Marítimos. Do lado es-querdo, do pequeno rectângulo que representa Portugal, partem carave-las, num movimento que parece o de uma banda desenhada, avançando para a direita do painel, à medida que os navegadores avançam pelo mun-do, encontram novos povos, trocam ofertas e conhecimentos. Quando a parede falsa saiu, o trabalho de Ca-marinha estava impecável – e, aqui e ali, a folha de ouro que cobre alguns dos mosaicos continua a brilhar.

Sementes em riscoSementes, portanto. Os últimos dias de Outubro foram os da saída do di-nheiro, das barras de ouro, dos valo-res. A semana que passou foi a da en-trada das sementes (500 variedades), que estarão expostas em caixas de acrílico mandadas fazer especialmen-te para caberem dentro dos cofres.

O MUDE teve dois parceiros princi-pais para a exposição – inesperados se pensarmos que este é um museu de design e moda: o Banco Português de Germoplasma Vegetal (BPGV) e a As-sociação Colher para Semear – Rede Portuguesa de Variedades Tradicio-nais. São eles que fornecem as semen-tes para a exposição. Quando os con-tactou pela primeira vez, Bárbara Coutinho fez descobertas que a sur-preenderam. Tinha desde o início a intenção de mostrar não as sementes mais exóticas, mas as mais banais, de alimentos comuns. E percebeu que estas são raras. “Pensei que cada se-mente existisse em grande quantidade mas não é assim. As associações expli-caram-me que daquela semente só

“Hoje a prática de guardar sementes está praticamente desaparecida”, lamenta. A maior parte dos agricultores usa sementes híbridas, as que se vendem nas lojas e que, explica Graça Ribeiro da Colher para Semear, exigem produtos químicos para crescerem, e têm um ciclo de vida mais curto. “Ao fim de uma ou duas gerações já não podem ser utilizadas, enquanto as das variedades tradicionais sobrevivem muito tempo e era isso que garantia antigamente a independência dos agricultores”

Tapado durante vários anos, um painel do pintor Guilherme Camarinha (1913-1994) em mosaico Donà, de Murano, que conta a Epopeia dos Descobri-mentos Marítimos, aparece agora em todo o seu esplendor

tinham determinada quantidade.Ӄ precisamente isso, confirma Gra-

ça Ribeiro da Colher para Semear. A associação independente, que existe desde 2006, procura os agricultores mais antigos, aqueles que ainda têm sementes das variedades tradicionais portuguesas. “Hoje a prática de guar-dar sementes está praticamente desa-parecida”, lamenta. A maior parte dos agricultores, sobretudo os mais jo-vens, usa sobretudo sementes híbri-das, as que se vendem nas lojas e que, explica Graça, exigem produtos quí-micos para crescerem, e têm um ciclo de vida mais curto. “Ao fim de uma ou duas gerações já não podem ser utili-zadas, enquanto as das variedades tradicionais sobrevivem muito tempo e era isso que garantia antigamente a independência dos agricultores”.

A experiência do Banco de Germo-plasma (integrado no Ministério da Agricultura) é mais antiga. Nasceu em 1977 e desde então tenta também re-colher o maior número possível de espécies e de variedades. “Grande parte dos materiais que temos no ban-co [mais de 100 espécies] já não estão em produção. Antigamente havia muito mais agricultores a usar varie-dades tradicionais do que os que exis-tem neste momento”, afirma Ana Barata, do BPGV.

A substituição das variedades tradi-cionais pelos híbridos levou a que a nossa alimentação ficasse mais limita-da. “Hoje as nossas sementes estão a ser procuradas por restaurantes e che-fs que promovem uma dieta mais va-riada”, garante Graça Ribeiro. “Actu-almente a população tem uma dieta muito restrita, e isso é negativo para a saúde.” Só de feijões nacionais existem 400 variedades. “Se for ao supermer-cado encontra cinco ou seis, na melhor das hipóteses. Está a ver a perda enor-me que isso representa do ponto de vista do nosso património?”

Quando se pôs a investigar o assun-to, Bárbara Coutinho foi-se aperce-bendo de cada vez mais ligações. “As sementes estão na origem do cálculo e do próprio dinheiro.” E hoje, o fac-to de muitas delas se estarem a tornar raras faz com que sejam preservadas em bancos como o BPGV em Portugal ou como o banco financiado por Bill Gates na Noruega, um autêntico bunker que pretende preservar a ori-gem da vida para o caso de um cená-rio de catástrofe mundial.

Mas cada vez mais a tendência é para a preservação das sementes in situ, ou seja na terra, onde podem ser cultivadas e mantidas no seu ciclo na-tural de vida. É isso que faz a Colher para Semear, no seu terreno e com a ajuda dos sócios, que plantam em ter-renos agrícolas mas também em pe-quenas hortas, quintais, jardins.

O BPGV, que conserva muitas semen-tes em câmara de frio, começou tam-bém a seguir essa tendência. “O objec-tivo é tentar que os agricultores voltem a produzir as variedades tradicionais, e eles estão abertos a isso”, diz Ana Ba-rata. Há mesmo produtos que já renas-ceram, como a broa de milho de Arcos de Valdevez ou o feijão tarrestre.

O MUDE organiza amanhã e domin-go uma feira de produtos biológicos, com produtores que usam variedades tradicionais e a partir de Janeiro vai ter painéis de debate “sobre um leque de assuntos que se abrem a partir da-qui e que entroncam em coisas tão diferentes como a slow food.”

Em Março, quando a Primavera co-meçar, a exposição encerra, as se-mentes voltarão para a terra, e os cofres que guardaram jóias, dinheiro, barras de ouro, segredos e sementes, ficarão à espera de novas riquezas – fiéis guardiões do que, na altura, os homens acharem que é, no mundo, o valor mais importante.

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Cormac McCarthy Vinte e cinco anos depois da publicação, “Meridiano de Sangue” (em segunda tradução de Paulo Faria) permanece um dos mais destemperados repositórios de violência na ficção americana. Pág. 38

Ken Vander-mark Um álbum arrasador Pág. 43

B Fachada “Pra Meninos” é para acordar adultos Pág. 43

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Programa sujeito a alterações

Informações:[email protected] | T: 91 635 08 38

Entrada LivreClub des Belugas Orchestra feat. Brenda Boykin& Anna Luca20 de Dezembro

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prefácio tipicamente idiossincrático, sugere a possibilidade de o acto se transformar numa cerimónia periódica, “até que a minha palavra e a de McCarthy sejam uma só”. A julgar pela mais recente encenação do ritual, as perspectivas são animadoras. A tradução melhora a anterior, não através de ajustes discretos mas de tranformação radical. Poucas frases permanecem iguais. Parece ter havido uma intenção deliberada de desformalizar a dicção, tornando os

coloquialismos mais ásperos, menos afectados (talvez a única falha da tradução de 2004). Um “diabos me levem” é promovido a “rais me partam”; um “onde é que vossemecê faz tenções de” transforma-se em “adondé que ‘tás a pensar”; um “Vossemecê perdeu-se nas trevas, disse o velhote” é agora um “Perdeste-te nas trevas, disse o velho” (houve, aliás, uma firme, mas não total, purga de “vossemecês”). O balanço final das alterações é claramente positivo,

ainda que a quantidade de vírgulas continue a exceder a do original, e que alguns refinamentos pareçam supérfluos, como a expansão de “mariquinhas” para “mariquinhas pé-de-salsa”.

Convém salientar que os mariquinhas pé-de-salsa são a pior audiência possível para “Meridiano de Sangue”, que permanece, vinte e cinco anos depois da publicação, um dos mais destemperados repositórios de violência da ficção americana. O romance percorre o

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

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Ficção

Sangue na arena Vinte e cinco anos depois da publicação, “Meridiano de Sangue” permanece um dos mais destemperados repositórios de violência na ficção americana. Rogério Casanova

Meridiano de SangueCormac McCarthy(trad. Paulo Faria)Relógio D’Água

mmmmm

Vede o tradutor. É pálido e malnutrido. O seu nome vem em letras pequenas, o seu cheque em algarismos anões. Especialmente nos casos do inglês e do francês - que

requerem especialização mínima - o processo de tradução segue um curso de bocejante monotonia: o tradutor lê o livro, consulta o dicionário, cumpre o prazo, queixa-se do pagamento, volta ao princípio. Depois temos os escalões superiores, em que um impulso vocacional precede o acto, em que as exigências (e a competência) são maiores, em que o trabalho de sapa envolve ler mais do que o livro, em que o produto final cumpre mais do que os mínimos olímpicos. E ainda depois - não acima, mas ao lado, num extremo paralelo de intransigente marginalidade - temos os animais raros, que encaram a tradução da mesma forma que os discípulos de Stanislavsky encaram a representação: as pessoas que não se limitam a ler toda as fontes secundárias e a visitar todos os sítios pertinentes, mas que também engordam quarenta quilos ou vivem seis meses numa gruta, conforme as necessidades.

Paulo Faria, cuja relação com a obra de Cormac McCarthy pode ser eufemisticamente qualificada como “especial”, é um dos mais curiosos representantes nacionais da tradução pelo “Método”. Depois de “Suttree” o ter levado a Knoxville, Tennessee (onde jogou bilhar com amigos de infância do autor), não surpreenderia descobrir que a pesquisa para “Meridiano de Sangue” envolveu passar um ano no sudoeste americano, a aprimorar com diligência a arte de domar cavalos e chacinar índios.

Esta é, na verdade, a sua segunda tradução do mesmo livro. Num

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 39

Até que a morte os separaA velhice, a perversidade, a graça e a tortura familiar por uma católica convertida, contemporânea de Greene e Waugh. Rui Catalão

Muriel SparkMemento MoriRelógio d’Água Tradutor: Miguel Serras Pereira

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Para a época em que viveu, Muriel Spark (1918-2006) tomou algumas decisões estarrecedoras e desconcertantes. Nascida em Edimburgo, de pai

judeu e mãe anglicana, casa-se aos 19 anos com um homem que meses mais tarde descobre ser maníaco-depressivo. Três anos depois deixa o filho Robin, o pai do seu filho, Sidney Spark, e a Rodésia, onde viviam os três. De regresso a Inglaterra, trabalha para os serviços secretos no último ano da II

trilho caótico de um rapaz sem nome, convenientemente chamado “o rapaz”, que nas primeiras páginas é alvejado, assaltado e encarcerado, antes de se juntar a um gangue de mercenários liderados por John Glanton e pelo juiz Holden, contratado pelas autoridades mexicanas para exterminar os apaches que aterrorizam a região. O projecto é executado com exorbitante entusiasmo, e o gangue semeia um pequeno holocausto à sua passagem, acumulando escalpes

não apenas de índios, mas de tudo o que mexa.

Começamos brandamente, encontrando alguém “com o crânio fracturado numa poça de sangue”, e continuamos numa gincana progressiva de cães mortos, olhos vazados, raparigas violadas, peregrinos castrados, árvores de crianças mortas, e garrafas de mescal com cabeças a boiar. Temos também um massacre comanche: “passavam as lâminas em volta do crânio de vivos e mortos sem distinção e erguiam ao alto as perucas sanguinolentas e acutilavam a esmo os cadáveres despidos, arrancavam membros, cabeças, esventravam os estranhos torsos brancos e seguravam nas mãos alçadas grandes punhados de vísceras, orgãos genitais, alguns selvagens tão lambuzados de sangue que quase parecia terem-se espojado na sangueira que nem cães, e alguns lançavam-se sobre os moribundos e sodomizavam-nos com altos brados para os companheiros”. Temos algum intrépido material envolvendo bebés: “um dos delawares emergiu do fumo com um bebé despido a baloiçar de cada punho e acocorou-se junto a um anel de pedras que delimitava um monturo e ergueu-os pelos calcanhares, primeiro um, depois o outro, e bateu-lhes com a cabeça contra as pedras, de modo que os miolos jorraram pela fontanela num vómito sanguinolento”. E encontramos um insólito churrasco humano: “tinham-lhes trespassado os tendões dos calcanhares com lançadeiras afiadas de madeira verde, e eles pendiam, cinzentos e nus, acima das cinzas mortas das brasas onde os tinham assado até as cabeças ficarem carbonizadas e os cérebros lhes borbulharem nos crânios e o vapor lhes jorrar das narinas em jactos sibilantes. Viam-se-lhes as línguas puxadas para fora da boca e presas com paus aguçados, cravados de lado a lado, e tinham-lhes cortado as orelhas e aberto rasgões no tronco com lascas de siléx, até as entranhas lhes penderem sobre o peito”.

O que fazer com tudo isto? As interpretações críticas de McCarthy tendem a concentrar-se na sua visível, e visivelmente circunscrita, colecção de influências retóricas (a Ilíada, o Antigo Testamento, “Moby Dick”, Faulkner), a especular sobre dúbios alicerces filosóficos (gnosticismo, niilismo) e a encaixar nervosamente tudo o resto à sombra de um conveniente pessimismo antropológico.

Um foco na prosa parece adequado, porque apesar de alguns difusos transportes líricos soarem as ocasionais notas falsas, ela continua a ser o grande e incontestável trunfo de McCarthy: uma prosa de amplitude épica, capaz de adulterar mesmerizantes cadências bíblicas

com um barbudo lirismo sulista, e capaz de inspirados momentos de observação - o cavalo que desfalece “com um suspiro pneumático”, os abutres “em posturas de exortação, como pequenos bispos escuros”. Vislumbram-se alguns sinais da tendência para a imprecisão que se agravou nas obras mais recentes - a “carcaça de um qualquer animal morto”, “uma qualquer criatura misteriosa”, “uma qualquer região inferior do mundo”, etc. - mas essa imprecisão parece aqui uma necessidade estrutural, a única forma de captar o que a narração chama a “democracia óptica” de uma paisagem desolada, informe e provisória, em que “ toda a preferência se torna fruto do capricho”.

Mas qualquer diálogo sobre “Meridiano de Sangue” está condenado a traçar círculos concêntricos à volta do seu fulcro, o juiz Holden. Harold Bloom chamou-lhe a “mais aterradora criação da literatura americana” e, por uma vez na vida, a sua histeria hierarquizante parece justificada. Como Ahab, o juiz vai anexando lentamente um romance que pertencia a terceiros, submetendo a narrativa a uma espécie muito particular de possessão demoníaca. As suas origens estão envoltas em nevoeiro místico, e McCarthy acumula os portentos até ao limite da ambiguidade: com mais de dois metros de altura, sem um único cabelo no corpo, exímio dançarino, tocador de rabeca, fazedor de pólvora, geólogo, jurista, multilingue, albino, pedófilo e rigorosamente amoral, o juiz é uma criatura que não devia sobreviver dois segundos fora dos limites seguros de um medíocre filme de terror sobre o Diabo na Terra. Mas a prosa vai suportando os exageros e distorções, até que o juiz a usurpa, e o coração violento de “Meridiano de Sangue” começa a pulsar ao seu ritmo. No deserto, entre os bárbaros que o seguem, vai pregando um evangelho marcial: “Antes de o homem surgir, a guerra já estava à espera dele. O ofício supremo à espera do seu supremo artífice”. O juiz apresenta a sua teologia como uma verdade que precede todas as falsidades morais, uma verdade sobre a única a verdadeira religião humana.

A intenção de McCarthy parece ser a construir uma mitologia invertida. “Meridiano de Sangue” é blasfemo, no sentido literal do termo; é uma anti-Bíblia. A Bíblia é mencionada por algumas personagens, mas o único exemplar é transportado brevemente por um analfabeto, como uma espécie de talismã: uma âncora moral no meio da desolação, mesmo para quem não tenha acesso ao conteúdo verbal. “Meridiano de Sangue”, pelo contrário, apropria e dessacraliza a

retórica do Livro Sagrado, utilizando-a para pregar um caos eterno, num Universo pré-determinado para a devastação.

Entre massacres e sermões, o juiz demonstra uma insólita curiosidade naturalista, documentando pacientemente a fauna e flora locais, e preenchendo um caderno com esboços de relíquias e artefactos recuperados (que depois destrói). Quando questionado sobre este processo, justifica-o com uma deformada versão do método científico “Tudo o que existe na criação sem o meu conhecimento existe sem o meu consentimento”. É o manifesto de um psicopata visionário, mas também a confissão de um autor omnipotente que, como Milton, não resistiu à tentação de entregar ao diabo as melhores frases.

Apercebemo-nos que o juiz Holden é o centro do romance, porque o romance age como o juiz Holden: equilibrado entre oratória inflacionada e brusca brutalidade, preservando esteticamente aquilo que vai destruindo, desprezando qualquer forma de autonomia, não permitindo existência sem consentimento. E quando nas últimas páginas, encontramos o juiz a dançar no palco de um saloon, “colossal e pálido e glabro, qual enorme criança”, afirmando com inteira plausibilidade que “nunca vai morrer”, sabemos que não está a falar de mera imortalidade; está a falar de posteridade.

Um livro estruturalmente rude (somos mergulhados e arrancados dos episódios um pouco como quem leva com baldes de água fria nas costas), sem uma única página mediana

Na sua segunda tradução de “Merediano de Sangue”, Paulo Faria sugere a possibilidade, num prefácio tipicamente idiossincrático, de o acto se transformar numa cerimónia periódica: “até que a minha palavra e a de McCarthy sejam uma só”

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40 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Guerra Mundial. Em 1947 torna-se editora da revista “Poetry Review” e em 1954, na sequência de uma depressão nervosa, converte-se ao catolicismo. Publica o seu primeiro romance em 1957, “The comforters”, e na década seguinte instala-se em Itália, onde passa a viver com Penelope Jardine, sua companheira até à hora da morte.

Muriel Spark (de quem estão disponíveis em português “Raparigas de escassos recursos”, também na Relógio d’Água, e “O apogeu de Miss Jean Brodie”, na Ahab Edições) tem 41 anos quando publica “Memento Mori”, o seu terceiro livro. A velhice, a morte, a decrepitude da vida familiar com os seus segredos & mentiras são temas abordados com a mesma estarrecedora e desconcertante frontalidade que caracterizavam a autora, chegando a fazer esquecer que “o escândalo, nesses tempos, era uma coisa séria”.

À excepção de duas personagens secundárias que se encontram na meia idade (e a meia idade é pior do que ser velho: “o envelhecimento destroça-nos os nervos, a velhice propriamente dita é mil vezes preferível!”), as restantes personagens de “Memento Mori” são muito velhas. Estão a morrer de uma maneira que apavora tanto quem assiste como a elas próprias. O que mais afecta esta gente não é a proximidade da sua própria morte, mas a proximidade dos outros que também estão a morrer! Os casais, quem convive numa casa, são simultaneamente vítimas e algozes desta tortura diária. São anos e anos de rancores, invejas, ciúmes, muito medo e muitos segredos. Miss Taylor, a personagem mais benigna do livro, talvez por estar em paz com a velhice invasora, diz que “ter-se mais de setenta anos é como estar em guerra. Todas as pessoas nossas amigas estão à beira de partir ou já partiram, e nós vamos sobrevivendo entre mortos e moribundos, como num campo de batalha.” Mas esse não é o pior cenário que a autora descreve.

Comparam-se as idades, a parecença com a idade real, os benefícios da cremação. Os testamentos são usados como derradeira ameaça perante a indiferença alheia, perde-se a mobilidade e a memória. Há personagens que se comportam como crianças e outras que são infantilizadas. Há quem leia o horóscopo. Há os senis eufemisticemente apelidados de pacientes “geriátricos” que deambulam como almas penadas numa enfermaria que é também um eufemismo para o purgatório. Há quem cace heranças, quem atravesse a cidade para ver uma faixa de perna, quem gaste quase todo o dinheiro que tem para enviar um telegrama com uma descompostura literária, e também quem esteja tão obcecado

com a perspectiva de ser assaltado ao ponto de criar as condições perfeitas para se tornar numa vítima. Para não enfrentar a morte que se aproxima há ainda um investigador que anota os comportamentos de quem é velho como ele, e lhes dá informações perturbadoras para depois medir-lhes a pulsação e a temperatura... também há quem trate dos netos, mas este livro é sobre o medo ao grande desconhecido. Uma das personagens do livro tem por passatempo cortar os fósforos em duas metades com uma lâmina para “tornar em duas cada caixa”. Há também um inspector aposentado que investiga um caso como quem persegue a própria morte e uma série de telefonemas que atormentam toda esta gente com um assustador lugar comum. Acima de tudo há o imenso talento de Muriel Spark que consegue ser mais incisiva e directa do que Patricia Highsmith sem precisar de criar um psicopata assassino.

Dir-se-ia que a proximidade da morte, ou a escrita da autora, é o Mr. Ripley desta história. Sabemos que as personagens estão apavoradas, mas o leitor é convidado a comportar-se com a frieza inclemente do psicopata: não nutrir qualquer piedade por quem está a morrer, mas antes divertir-se, como num entretém.

Poucas coisas são mais engraçadas do que a desgraça (alheia) e também se pode ganhar malícia na desgraça. A já citada Miss Taylor, despromovida a avó Taylor na cama de um hospital para idosos, passa a preferir o “regresso do sofrimento físico” à “dor desolada da humilhação” de não sentir: “Extraiu desse estado de espírito uma dignidade determinada e visível, ao mesmo tempo que abandonava a sua atitude de resistência estóica perante a dor. Queixava-se mais, pedia com mais frequência a arrastadeira, e não hesitou, em certa ocasião, quando a enfermeira tardara, em molhar a cama, como as outras avós tantas vezes faziam.”

Num livro estruturalmente rude (não há cenas de apresentação nem transição; somos mergulhados e arrancados dos episódios um pouco como quem leva com baldes de água fria nas costas), sem uma única página mediana, o episódio do chá (páginas 139-140) é o meu favorito: a antiga romancista Charmian Piper, até aí aparentemente imobilizada e com uma demência que só lhe permite pensar por associações, fica sozinha em casa à hora do chá e decide tratar sozinha da sua preparação. A tarefa é um suplício, mas à semelhança dessas patéticas digressões de fé que anos mais tarde dariam fama aos filmes de Tarkovski, torna-se grandiosa. Lembram-se da cena da vela na piscina, no fim de “Nostalgia”, de Tarkovsky? Aqui há “a chama incerta” de um fósforo a ser transportado por “uma mão

trémula” e o vai-vem entre a cozinha e a sala da biblioteca atinge o estado de graça quando é transportado um prato com biscoitos Garibaldi!

Para quem prefere o erotismo herético de Buñuel à graça cultivada pelos amigos católicos de Spark (Graham Greene, Evelyn Waugh), cito o parágrafo em que uma septuagenária faz uma mostra a um octogenário a troco de uma libra: “ficou imóvel, de pé, com os braços caídos e as pernas afastadas, com o ar de um camponês de comédia, a observá-la. Sem alterar a sua postura, ela levantou um dos lados da saia até deixar que aparecessem, bem visíveis, o remate superior da meia e a ponta de uma liga. Feito isto, continuou a fazer malha e a olhar para a televisão. Durante cerca de dois minutos, Godfrey contemplou em silêncio o remate da meia e o metal luzente da liga. E, por fim, endireitando os ombros, como se quisesse reaver a sua compostura habitual, sempre em silêncio, voltou a sair”.

Sonho corrompidoPatchwork de memórias do pós-guerra espanhol, com passagem por Xangai. Eduardo Pitta

O Feitiço de XangaiJuan MarséTrad. Cristina Rodriguez e Artur GuerraDom Quixote

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O catalão Juan Marsé (n. 1933) tinha seis anos quando acabou a guerra civil espanhola. Cresceu num dos bairros mais pobres de Barcelona, o de

Guinardó, palco de tantos livros seus. Sem educação formal, torna-se escritor aos 25 anos. Recebe em 1958 o primeiro de uma vasta série de prémios: o penúltimo foi o Cervantes, em 2008. “Encerrados con un solo juguete” (1960), livro de estreia, suscita a atenção da crítica e o respeito de autores como Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytisolo e Manuel Vázquez Montalbán. Em pouco tempo fará parte da denominada Geração de 50, a dos herdeiros da resistência anti-franquista. Se estabelecermos uma linha de continuidade entre “Si te dicen que caí” (1973) e “O Feitiço de Xangai”, podemos admitir que a lenda e proezas de Francesc Sabaté Llopart, guerrilheiro anarquista

conhecido por El Quico, alimentam o imaginário de Marsé.

Desde criança ouviu falar do “maquis” catalão, a frente de guerrilheiros que os falangistas perseguem sem trégua. A geração a que pertence não esqueceu a factura da guerra: fome, proibição da língua catalã, meio milhão de exilados, cem mil execuções sumárias, populações deslocadas. O pendor autobiográfico dos textos faz jus a esse caldo de cultura.

Autor de uma obra muito extensa, várias vezes adaptada ao cinema, “O Feitiço de Xangai” (1993; filme de Fernando Trueba em 2002), agora reeditado, é um dos quatro romances de Marsé traduzidos em Portugal, um dos quais o fabuloso “Rabos de Lagartixa” (2000). Guinardó está no centro da intriga.

Logo a abrir, sem rodeios: “Os sonhos juvenis corrompem-se na boca dos adultos”. Estamos em 1948, Barcelona ferve de inquietação para libertar-se do jugo opressor. Daniel, o protagonista, aprenderá à sua custa que toda a maturidade será castigada. De certo modo, “O Feitiço de Xangai” é um romance com romance dentro, sendo Daniel e Nandu Forcat os narradores de cada uma das partes da história. Os capítulos (nove, com subsecções numeradas) estão encadeados na primeira e terceira pessoa, modos que correspondem a Daniel e Nandu Forcat. O primeiro cola-se à realidade. O segundo, a partir de Xangai, introduz Kim: “Ao entardecer, quando se acendem as primeiras luzes da cidade, Kim está no seu quarto ajeitando sobre a camisa branca recém-estreada os

suspensórios da sovaqueia com a Browning.” Com enfoque no idealismo de Daniel e nas efabulações de Nandu Forcat, o perfil das personagens cobre todas as possibilidades.

Sem prejuízo do domínio narrativo, diria que há desfasamento entre o interesse do “plot” (medíocre) e a prosa escalorada do autor: “Enquanto avançava pelo pequeno e descuidado jardim, onde os arbustos de cevadilha languesciam à sombra do chorão e os húmidos recantos de lírios apodreciam por falta de sol, interroguei-me como é que estes dois xarnegos mortos de fome tinham podido adquirir aquela estranha autoridade ao falarem da tísica.” Xarnego é como chamam aos imigrantes não adaptados à cultura e língua catalã.

No capítulo cinco surge o famoso poema “A Cidade” (1910), de Kavafis. Atentos os acidentes biográficos de Marsé e o contexto ficcional, o “insert” faz todo o sentido. Fica por esclarecer a escolha da versão livre e “inédita” de Ángel González (tão livre que lhe acrescentou um verso), numa altura em que a obra de Kavafis fora vertida (1982) do grego para castelhano por Pedro Bádenas de la Peña. Não obstante, a pulsão nómada encontra nesses versos a epígrafe perfeita: “A cidade seguir-te-á. De volta pelos caminhos errarás / os mesmos. [...] Sempre a esta cidade chegarás.”

Em 1994, “O Feitiço de Xangai” recebeu o Prémio Europeu de Literatura Aristeion e o prestigiado Prémio da Crítica da Associação Espanhola de Críticos Literários.

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ros aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Com “O Feitiço de Xangai” Juan Marsé recebeu em 1994 o Prémio Europeu de Literatura Aristeion e o Prémio da Crítica da Associação Espanhola de Críticos Literários

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Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 41

movie em cadeira de rodas “Aaltra” e da negríssima sátira económica “Louise-Michel”, especialistas em comédias absurdas e surreais que falam de coisas muito sérias com um sentido de humor muito fora do comum.

Com “Mammuth”, à partida filme muito próximo dos anteriores (nas suas preocupações sociais e na sua estrutura fluida, quase episódica), os realizadores e argumentistas viram-se contudo obrigados a “subir o nível” graças à presença de Gérard Depardieu e Isabelle Adjani, mesmo que enquadrados por “habitués” do cinema da dupla como Yolande Moreau ou Benoît Poelvoorde. Depardieu é um recém-reformado do seu emprego numa fábrica de enchidos, que descobre que, para receber a reforma por inteiro, precisa de declarações de actividade que estão em falta no seu processo. Parte então em viagem na sua velha motocicleta – a Munch Mammuth de

1973 que dá o nome ao filme e a alcunha à personagem – para reencontrar os sítios onde trabalhou ao longo dos anos.

O que se segue ao longo de hora e meia é uma viagem pelo passado da personagem que Delépine e Kervern filmam em super-16 ampliado e retrabalhado e constroem como uma sucessão de episódios aparentemente espontâneos e desconexos. Um reencontro com a identidade de Mammuth/Depardieu, uma espécie de porta de entrada para o que a vida ainda lhe pode trazer agora que tem tempo para a gozar. Mas essa aleatoriedade, intercalada com momentos mais oníricos trazidos pela presença fantasmática de uma Adjani ensanguentada (creditada no genérico apenas como “o amor perdido”), é meticulosamente gerida e organizada pela dupla para maior glória de um Depardieu notável numa personagem que se exprime

exclusivamente pela sua presença física. É um daqueles papéis que nos recorda aquilo de que o actor ainda é capaz — a par do “Bellamy” que foi o último filme de Claude Chabrol e que continua à espera de estreia em sala entre nós (alô, Lusomundo?).

“Mammuth” pode não se conseguir verdadeiramente explicar nem descrever, mas deixa-nos com uma espantosa sensação de optimismo: um misto de “mas que raio foi isto?” e “que fixe que isto foi!”. E isso já chega.

Como um episódio bíblico “feminista”... A Katalin Varga deste filme é uma mulher de força. De força e de vingança. Luís Miguel Oliveira

Katalin VargaDe Peter Strickland, com Hilda Péter, Tibor Pálffy, Norbert Tankó, Melinda Kantor. M/12

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Lisboa: CinemaCity Classic Alvalade: Sala 2: 5ª Domingo 2ª 3ª 4ª 13h45, 15h35, 17h20, 19h20, 21h45 6ª Sábado 13h45, 15h35, 17h20, 19h20, 21h45, 23h55;

“Katalin Varga” é uma primeira obra, a estreia na realização de um inglês, Peter Strickland, que antes fizera sobretudo trabalho teatral. O que é singular é que – como o título de ressonância húngara, nome da protagonista, logo indica – Strickland não se estreou em casa, mas na Transilvânia e nos Cárpatos, com actores e contributos romenos e húngaros.

Uma pesquisa na Internet diz-nos que, no século XIX, houve uma Katalin Varga que liderou um movimento de mineiros da Transilvânia. Deve ser coincidência, mas também a Katalin Varga deste filme é uma mulher de força. De força e de vingança – há algumas ressonâncias bíblicas no filme de Strickland, de resto explicitadas na parte final, e a história de “Katalin Varga” podia vir de um episódio (“feminista”, digamos) do Antigo Testamento. Impressão que é salientada pelo carácter relativamente inusitado do filme, espacialmente (sabemos que é a Transilvânia mas não porque o filme o diga) e temporalmente (se não fosse por uma cena com um telemóvel não teríamos a certeza de que se trata da época contemporânea). Seja como for, na aldeia onde a acção começa é

Cin

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O homem da motocicletaGérard Depardieu recorda-nos de como pode ser um extraordinário actor, numa gentil comédia surreal à medida do seu talento maior que a vida. Jorge Mourinha

MammuthDe Gustave Kervern, Benoît Delépine, com Gérard Depardieu, Yolande Moreau, Isabelle Adjani, Miss Ming. M/16

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Lisboa: Medeia King: Sala 3: 5ª Domingo 3ª 4ª 20h, 22h 6ª Sábado 2ª 20h, 22h, 00h15; Medeia Saldanha Residence: Sala 5: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 13h50, 15h50, 17h50, 19h50, 21h50, 00h20;

Porto: Arrábida 20: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 14h20, 16h30, 18h55, 21h25, 24h 3ª 4ª 16h30, 18h55, 21h25, 24h;

Dois primos que não se vêem há vinte anos e se decidem masturbar mutuamente. Uma sobrinha artista que enterrou o pai no jardim sem dizer nada a ninguém. Um amor perdido que morreu num acidente de moto e cujo fantasma persegue o herói. Uma ladra que atende os telemóveis que rouba. Três caixeiros viajantes que se desfazem em lágrimas num restaurante de hotel.

Não é exactamente um resumo do que se passa em “Mammuth”: o filme não se consegue resumir, descrever ou explicar, vindo como vem da dupla francesa Benoît Delépine e Gustave Kervern, autores do road-

“Mammuth”: uma espantosa sensação de optimismo

“Katalin Varga”: nem deliberadamente áspero nem agilmente fl uido, não é um fi lme desagradável

aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Sexta,24 Dezembro,

TAKESHI KITANO

por mais 1,95€.����������������� ��������������������������������������������� � �!�"�#$����%� �����������&��"��������

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42 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

Jorge Mourinha

Luís M. Oliveira

Mário J. Torres

Vasco Câmara

O Americano mmmnn mnnnn nnnnn mnnnn

Aniki-Bobó nnnnn mmmmm nnnnn mmmmm

Douro Faina Fluvial nnnnn mmmmm nnnnn mmmmm

A Tempo e Horas nnnnn nnnnn nnnnn mmnnn

Cela 211 nnnnn nnnnn mmmnn mmnnn

I’m Still Here mnnnn mnnnn nnnnn mnnnn

Jogo Limpo nnnnn nnnnn mmnnn mnnnn

Katalin Varga mmmnn mmnnn nnnnn nnnnn

Mammuth mmmnn nnnnn nnnnn nnnnn

A Última Estação nnnnn nnnnn mmnnn nnnnn

As estrelas do público

notáveis, Mark Ruffalo (no papel do pai “biológico” dos miúdos, cuja aparição vem despoletar o drama) é excelente, mas “Os Miúdos Estão Bem” nunca descola para lá do amável, quando há momentos em que se percebe que um bocadinho mais de incorrecção política lhe daria o “cheirinho” para ir mais longe. J. M.

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como se o tempo e a moralidade não passassem há séculos – e quando se torna público o segredo de Katalin (o seu filho pequeno não é do marido, antes foi o resultado de uma violação perpetrada por dois mânfios), repudiada e desonrada, resta-lhe pegar no miúdo e embrenhar-se na floresta, em viagem mais ou menos desesperada, com um objectivo principal: encontrar os dois tipos e vingar-se. Encontra-los-á, de facto, ajudada pelo acaso, mas também a vingança tem as suas ironias, de proporções bíblicas ou, como um conto do imprevisto, britânicas.

Algo limitado, e sempre um bocadinho meias tintas (nem deliberadamente áspero nem agilmente fluido), não é um filme desagradável. Gostamos da protagonista (Hilda Peter), de presença forte e ambígua q.b., gostamos sobretudo do trabalho de “des-naturalização” da própria natureza, que passa sobretudo pelo som, “tridimensional”, a transformar os ruídos da floresta, dos rios, do vento, numa espécie de coro para as desventuras da personagem. Se não perder esta capacidade de dar um sentido muito específico, e muito integrado, à observação (ou à escuta) da paisagem, não há razão para que não se venha a ter alguma curiosidade pelos futuros cometimentos de Strickland, nos Cárpatos ou aonde for.

Cidadão Joaquin

I’m Still HereDe Casey Affleck, com Joaquin Phoenix. M/16

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Lisboa: Medeia King: Sala 1: 5ª Domingo 3ª 4ª 13h10, 15h15, 17h25, 19h35, 21h45 6ª Sábado 2ª 13h10, 15h15, 17h25, 19h35, 21h45, 00h30;

“I’m Still Here” é uma piada. Ou o relatório de uma piada, ou, ainda mais aborrecido, o certificado de uma piada, o “documento” que vem dizer que a piada já aconteceu e que o que aconteceu era uma piada. Tudo começou, se bem se recordam (pelo menos aqueles que se deram ao trabalho de prestar alguma atenção a tão desinteressante assunto), há cerca de dois anos, quando Joaquin Phoenix, mais ou menos por altura da estreia do “Two Lovers” de James Gray (um filme magnífico em que Phoenix é, ele próprio, magnífico), anunciou que ia abandonar a profissão de actor e (talvez não tenha dito isto logo mas vai dar ao mesmo) converter-se ao “hip hop”. Sobressalto nos “media” que no mundo inteiro se dedicam a uma cobertura exaustiva do “espectáculo” e das “celebridades”: Phoenix isto, Phoenix aquilo, está parvo, está louco, e só de vez em quando uma ligeira dúvida sobre se

ele não estaria mas era a gozar connosco. O ponto alto disto foi uma participação de Phoenix no “talk show” de David Letterman (não por acaso integralmente incluída em “I’m Still Here”), que suscitou as mais intensas discussões: estava bêbedo, estava charrado, estava não sei quê. Bastava ver dois segundos daquilo para se perceber que era tudo uma “practical joke”, mas toda a gente preferiu pensar outra coisa. Na sua profunda credulidade, os media contemporâneos, para serem manipulados, já dispensam os Orson Welles, chega-lhes um Joaquin Phoenix (e isto sem desprimor para ele, bem pelo contrário).

“Do we care?”, ouve-se dizer num dos muitos “clips” televisivos montados em “’I’m Still Here”. É obvio que eles “care”, ou não teriam perdido tanto tempo com isto. E são eles o alvo, e ao mesmo tempo, o alimento, de um filme como este e de uma piada como esta. No que toca ao filme, é mesmo a única coisa válida e, em termos de comentário da “contemporaneidade”, bastante aflitiva: aqueles momentos em que a montagem sobrepõe as mesmas frases, ditas em programas de televisão ou de rádio, repetidas ao infinito, como se fossem todas o eco uma das outras (a Internet também está assim, basta ver qualquer “agregador de notícias”, o sonho do propagandista, que já não precisa de dizer uma mentira mil vezes: diz uma, e há logo 999 voluntários para perfazer o número). A função do filme que Phoenix congeminou com o seu cunhado Casey Affleck é só esta, fazer de “punchline”, objecto que vem pôr os pontos nos ii, desmascarar o conceito, dizer que eram eles, Phoenix e Affleck, afinal, quem estava a olhar para os “media” e não o contrário. Previsivelmente (e de certa maneira coerentemente), cumprida essa função pelo simples facto de existir, “I’m Still Here” é puro “n’importe quoi”: Phoenix, tão alucinado quanto pode, a grunhir incoerências e banalidades sobre o estrelato, a vida, a expressão artística, acompanhado por parceiros que podem ou não estar a jogar o mesmo jogo que ele (há um parentesco entre este filme e os de Sacha Baron Cohen, certamente). Phoenix arrisca alguma coisa – se

calhar até a carreira – nesta piada, mas é coerente com o seu propósito: enquanto finge autenticidade, compõe a perfeita paródia da “celebridade atormentada” (outro eco remoto é o “Last Days” de van Sant). Um vazio laboriosamente construído, uma peça conceptual que precisa de ser absurdamente desinteressante para relevar o conceito. Missão cumprida. Phoenix “ainda aqui está”, mas não está mais nada. Luís Miguel Oliveira

Continuam

Os Miúdos Estão BemThe Kids Are All RightDe Lisa Cholodenko, com Annette Bening, Julianne Moore, Mark Ruffalo, Mia Wasikowska, Josh Hutcherson. M/16

MMnnn

Lisboa: CinemaCity Alegro Alfragide: Sala 10: 5ª 6ª 2ª 3ª 4ª 13h30, 17h50, 19h55 Sábado Domingo 17h50, 19h55; UCI Cinemas - El Corte Inglés: Sala 4: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 19h15;

Porto: Arrábida 20: Sala 17: 5ª 6ª Sábado Domingo 2ª 3ª 4ª 19h15;

Já vimos muitas vezes esta comédia sobre um casal em crise, com a saída de casa da filha mais velha para ir para a faculdade a abrir fissuras no núcleo familiar. Mas a aposta de Lisa Cholodenko (“Laurel Canyon”) é a de subverter essa convenção, ao fazer deste casal em crise um casal homossexual com dois filhos adolescentes, sublinhando como os problemas do casamento, do amor, da educação dos filhos são exactamente os mesmos independentemente do casal ser do mesmo sexo ou de sexos opostos. Paradoxo: é nessa visão de uma domesticidade normal, independentemente do sexo, que alimenta a subversão e a diferença do filme que reside também a sua fraqueza. Cholodenko é tão tolerante e tão programática que “Os Miúdos Estão Bem” acaba por não se distinguir de qualquer outra comédia familiar sobre um casamento em crise, a não ser na atenção prestada aos actores, e na capacidade de mostrar muito sem precisar de recorrer a diálogo expositivo. Annette Bening e Julianne Moore são

Cin

ema

Sexta, 17Salón MexicoDe Emilio Fernández. Com Marga López, Manuel Inclan, Rodolfo Acosta. 91 min.15h30 - Sala Félix Ribeiro

A Águia FugitivaThe One That Got AwayDe Roy Ward Baker. Com Hardy Krüger, Colin Gordon, Michael Goodlife. 106 min.19h - Sala Félix Ribeiro

Film ist a Girl & a GunDe Gustav Deutsch. 93 min.19h30 - Sala Luís de Pina

Merci Pour Le ChocolatDe Claude Chabrol. Com Isabelle Huppert, Jacques Dutronc, Anna Lugalis. 99 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

Chamada para a MorteDial M for MurderDe Alfred Hitchcock. Com Robert Cummings, Grace Kelly, Ray Milland . 100 min.22h - Sala Luís de Pina

Sábado, 18O ApartamentoThe ApartmentDe Billy Wilder. Com Fred MacMurray, Jack Lemmon, Shirley MacLaine. 125 min. M12.15h30 - Sala Félix Ribeiro

A Rua da VergonhaAkasen ChitaiDe Kenji Mizoguchi. Com Aiko Mimasu, Ayako Wakao, Machiko Kyo. 94 min. M16.19h - Sala Félix Ribeiro

Nasci, Mas..Umarete wa mita keredoDe Yasujiro Ozu. Com Hideo Sugawara, Takeshi Sakamoto, Tomio Aoki. 89 min.19h30 - Sala Luís de Pina

Ensaio de um CrimeEnsayo de un Crimen De Luis Buñuel. Com Ernesto Alonso, Miroslava Stern, Rita Macedo. 90 min. M12.21h30 - Sala Félix Ribeiro

Strange ImpersonationDe Anthony Mann. Com Brenda Marshall, William Gargan, Hillary Brooke. 68 min.22h - Sala Luís de Pina

Segunda, 20Uma Mulher InternacionalInternational Lady

De Tim Whelan. Com Ilona Massey, George Brent, Basil Rathbone, Gene Lockart. 102 min.15h30 - Sala Félix Ribeiro

A Tragédia do TitanicA Night to RememberDe Roy Ward Baker. Com Honor Blackman, Kenneth More, Robert Ayres, Ronald Allen. 120 min.19h - Sala Félix Ribeiro

Merci Pour Le ChocolatDe Claude Chabrol. Com Isabelle Huppert, Jacques Dutronc, Anna Lugalis. 99 min.19h30 - Sala Luís de Pina

La Fleur du Mal

De Claude Chabrol. Com Benoît Magimel, Nathalie Baye, Mélanie Doutey. 104 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

À Flor do MarDe João César Monteiro. Com Manuela de Freitas, Sérgio Antunes, Teresa Villaverde. 143 min. M12.22h - Sala Luís de Pina

Quarta, 22DráculaDraculaDe Tod Browning. Com Bela Lugosi, David Manners, Dwight Frye, Helen Chandler. 73 min.15h30 - Sala Félix Ribeiro

Forty GunsDe Samuel Fuller. Com Barbara Stanwyck, Barry Sullivan, Dean Jagger, John Ericson. 80 min. M12.19h - Sala Félix Ribeiro

A Dama de HonorLa Demoiselle d’ HonneurDe Claude Chabrol. Com Benoît Magimel, Laura Smet. 111 min. M16.19h30 - Sala Luís de Pina

A Esperança Nunca MorreThe Singer Not The SongDe Roy Ward Baker. Com Dirk Bogarde, John Mills, Mylène Demongeot. 132 min.21h30 - Sala Félix Ribeiro

La Fleur du MalDe Claude Chabrol. Com Benoît Magimel, Nathalie Baye, Mélanie Doutey. 104 min.22h - Sala Luís de Pina

Cinemateca Portuguesa R. Barata Salgueiro, 39 Lisboa. Tel. 213596200

“I’m Still Here”: do we care?

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aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente

Dis

cos

Jazz

Ao rubro, de novoCom dois convidados de excepção, o mais celebrado grupo do saxofonista Ken Vandermark edita um álbum arrasador. Rodrigo Amado

Vandermark 5 Special EditionThe Horse Jumps and The Ship is GoneNot Two

mmmmm

De todos os novos projectos do saxofonista norte-americano Ken Vandermark são já esperadas

habitualmente duas coisas; um equilíbrio notável entre forma e improvisação e uma atitude “take-no-prisoners” que dá origem a uma música orgânica e visceral com improvisações de uma urgência rara, como se o mundo fosse realmente acabar amanhã.

Neste novo registo, gravado para a polaca Not Two, Vandermark convida dois nomes de peso – Magnus Broo e Havard Wiik - para se juntarem à actual formação dos celebrados Vandermark 5 – Dave Rempis (saxs barítono e alto), Fred Lonberg-Holm (violoncelo), Kent Kessler (contrabaixo) e Tim Dasy (bateria). Gravado ao vivo (com excelente qualidade audio) no clube Green Mill de Chicago, este registo expande tudo aquilo que faz de

Vandermark umícone do jazz de

vanguarda mundial e expõe um septeto em pleno pico de forma e inspiração, tendo como particular atractivo o facto de se tratar de

um duplo CD, com duas

horas de música exploratória

e inspiradora. A inclusão do

piano, presente com contenção e absoluta relevância, vem

não o tomemos pelo valor facial. Claro que não poderia seguir o caminho fácil, pintar céus com arco-íris e contar histórias com moral bem medida e definida, explicando como o “petiz” tem de ser bom cristão na terra da infância para assegurar que crescerá como adulto respeitado (e o respeitinho, como sabemos, é muito bonito) e bem-sucedido (e o sucesso tem sorriso de marfim reluzente, várias contas em bancos recomendáveis e fica sempre bem a gente de bem).

“É Pra Meninos” nasceu sob o contexto que o título aponta, mas é o trabalho de alguém que, no seu ainda tão curto quanto infatigável e impressionante percurso, sempre lidou com uma questão fundamental: a moralidade, ou melhor, a ditadura da moralidade – as suas crónicas de costumes são, uma a uma e sob os mais variados e surpreendentes pontos de vista, reflexões sobre essa ideia de rectidão, fachada sob a qual tudo fica na mesma para que, enfim, tudo fique na mesma.

“É Pra Meninos”, o seu primeiro álbum de banda (Martim no baixo, Mariana na bateria), não demora a apresentar-se: “Tó-Zé tu tem cuidado / Não sejas pau-mandado / Antes louco e malcriado que pensar só de emprestado / Toda a vida te vão dar o mundo já bem mastigado / Tu começa a praticar para não ficares moralizado”. Estes versos, cantados enquanto uma melodia de voz rodopia sobre o piano eléctrico e o ritmo se insinua como na música de Pascal Comelade (que será inevitavelmente citado em referência ao álbum), hão-de ecoar até ao final das dez canções. Naturalmente, não é acaso ser a primeira de um ciclo que passará por pedidos natalícios de “babygrow de cabebal” e “cds de metal” – “mas se a mãe é que decide sobre o meu comportamento, que se lixe o Pai Natal” -, que passará pelo querido mês de Agosto dos amores de um mês para toda a vida, pelo aborrecimento das férias e das férias que acabaram, que terminará a olhar para a “gente grande”: “vejo em toda a gente grande / o que o tempo tem para mim / as pessoas que eu vou ser / desde agora até ao fim”.

A música, de arranjos meticulosos mas desembaraço na interpretação, onde sintetizadores sobrevoam melodias onde o popular português se embala em balanço brasileiro (“Conselhos de avô”, marcada pelo sax de Desidério Lázaro), feita de baladas a duas vozes (na ternura de “Primeiro dia”, com Minta, e na arrebatadora “Barrigão”, com Lula Pena) e com a capacidade de Fachada, uma vez mais, inscrever a sua marca autoral em novas estéticas (a perversidade serve-se aqui em prato delicodoce, ora “brincalhão”, ora melancólico), a música, dizíamos, oferece uma nova dimensão às palavras cantadas. Porque o álbum para crianças de B Fachada, que as

trazer nova dimensão à música dos V5, assim como as extraordinárias capacidades solistas de Broo (o mais poderoso trompetista do momento) fazem implodir o edifício harmónico e rítmico do grupo. Com um primeiro tema, “Friction”, quase violento, incandescente, como que a servir de aviso aos mais incautos, o álbum revela uma abertura surpreendente, não se ficando por uma previsível linguagem free-bop. Logo no tema seguinte, “Some not all”, sobre um swing intenso surge o primeiro de muitos solos brilhantes de Lonberg-Holm, confirmando em absoluto o acerto da sua escolha para substituir Jeb Bishop no grupo. Após uma reviravolta súbita, um riff “metal” do violoncelo e um vamp do barítono de Rempis dão lugar a um explosivo solo de Vandermark. É então que subitamente, num exercício notável de contenção e dinâmica, todo o grupo diminui de volume (mas não de intensidade – como se rodassem o botão do volume) para dar lugar a um solo extraordinário de Wiik. Ainda antes do final, Rempis no barítono e Vandermark no tenor pegam fogo ao que resta da composição. No terceiro tema, “New weather”, parece-nos ouvir Mingus, e até ao final do álbum surgem ainda improvisações “parkerianas” (Rempis), música serialista, third-stream, free jazz dos infernos, secções de uníssono que parecem retiradas do melhor jazz sul- africano, entre muitas outras coisas que nos transportam e inspiram. O futuro do jazz passa, com toda a certeza, por aqui.

Pop

Fachada para crianças crescidas

B FachadaÉ Pra MeninosMbari Música

mmmmn

“É pra meninos”, contextualiza B Fachada. “É pra meninos”, diz o título, e parecem confirmar os

sonzinhos de instrumentos de brincar – as baterias, os teclados – que se ouvem nas dez canções do álbum. B Fachada a cantar para crianças, portanto. E, dada a sua produtividade, porque não? Em Dezembro de 2009, editou o “B Fachada”, álbum da definitiva emancipação e maravilha da música portuguesa dos últimos muitos anos. No último Verão, baralhou tudo com som agreste e boa ginga veraneante em “Há Festa Na Moradia”. Um álbum para crianças? Venha ele.

Mas, se Fachada é Fachada, então

crianças trautearão, sim senhor, e que até lhes ensinará um par de coisas sobre a vida, é, na realidade, um álbum para acordar adultos. Não é pra meninos, não senhor. Mário Lopes

Gala Drop Overcoat HeatGolf Channel

mmmmn

Pode ser coincidência – para quem acredita no Pai Natal – mas não parece que o seja. Os dois discos

portugueses mais estimulantes do ano são EPs com quatro temas cada um. Falamos de “É uma água“ dos PAUS e deste “Overcoat Heat” dos Gala Drop, que se segue ao óptimo álbum de estreia de 2008. E não é coincidência porque ambos os projectos – sonicamente diferentes – fazem parte de uma geração que já assistiu à fragmentação da indústria e revela uma vontade de operar e de comunicar de forma diferente, não se preocupando se as opções de base correspondem às normas mais convencionais. No álbum de estreia os Gala Drop (Afonso Simões, Nelson Gomes, Guilherme Gonçalves e Tiago Miranda, com um máxi-single editado em nome próprio mesmo agora na DFA dos LCD Soundsystem) apresentavam uma música expansiva e cósmica, mescla de electrónicas e ritmos percussivos construídos sobre um manto sonoro dolente, onde encontrávamos alusões ao dub ou ao krautrock alemão. Agora neste registo para a americana Golf Channel, adicionam a essas características nucleares dinamismo rítmico e palpitações “neo-disco”, criando quatro temas de envolvimento dançante, feitos de percussões, ecos, guitarras, sintetizadores, psicadelismos e de um tipo de calor tropical lisboeta que só pode ser pós-efeito-estufa. Em 2008 escrevíamos que traduziam uma Lisboa tropicalista, africanizada, miscigenada, mas era ainda qualquer coisa de mais desejado do que real.

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Magnus Broo e Havard Wiik parajuntarem à actual formação doscelebrados Vandermark 5 – DaveRempis (saxs barítono e alto), FreLonberg-Holm (violoncelo), Kent Kessler (contrabaixo) e Tim Dasy (bateria). Gravado ao vivo (comexcelente qualidade audio) no cluGreen Mill de Chicago, este registoexpande tudo aquilo que faz de

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Gala Drop: magnífi co

Vandermark 5 Special Edition: o futuro do jazz passa por aqui

B Fachada: não é pra meninos, não senhor

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Dis

cos

Com “Overcoat Heat” aquilo que eram indícios e ecos remotos adquire uma forma sensível e comunicante, capaz de ultrapassar resistências. Magnífico. Vítor Belanciano

MenomenaMinesCity Slang; distri. Popstock

mmmmn

Falar de indie-rock a propósito dos Menomena é como chamar arvoredo a uma floresta cheia de árvores de

genealogia desconhecida, espinhos, lianas, pequenos animais e cascatas secretas que criam constantes encruzilhadas. Tal como a capa de “Mines” ostenta, a beleza desta música reside no encontro entre materiais opostos, no quebrado do apolíneo: guitarras que surgem e desaparecem, linhas de baixo sibilantes que logo se enleiam como uma serpente ao redor da presa, uma percussão que recusa o simples marcar passo e impõe a sua presença. Experimentemos comparar “Taos” com “Five little rooms”. A primeira vive de um riff tal como o

Senhor Jimmy Page nos ensinou, bateria pujante e músculo. Isto antes da paragem – depois vêm cordas em fundo, uma espécie de guitarra esquizóide sufocante, uma parte só ao piano, coros e ainda metais, em cinco minutos que lembram uns Spiritualized sem Deus nem droga (pensando bem, esta última descrição não soa bem). “Five little rooms” tem como âncora central espasmos de saxofone, um baixo obsessivo, percussões que pingam e pingam, antes de cada instrumento resolver esquecer a sua função e – como dizia a velha piada – tocar cada um para seu lado à moda do jazz (num magnífico momento). Tudo se torna mais complicado se referirmos que em “Queen black acid” a voz lembra Damon Albarn. Os

Menomena conseguem ser sinfónicos sem serem pomposos, fragmentados sem parecerem uma manta de retalhos, melódicos sem serem choninhas e rockam sem serem grunhos. É um pequeno puzzle que usa vez após vez as mesmas peças (coros, riffs, pianos martelados, metais, cordas, linhas de baixo complexas, paragens, muito trabalho de timbalões) mas nunca na mesma ordem. No fim nada encaixa, mas ninguém se importa. João Bonifácio

Maximum BalloonMaximum BalloonDGC, distri. Nuevos Medios

mmmnn

O disco de estreia de Dave Sitek – músico nos TV On The Radio e produtor requisitado (Scarlett Johansson, Yeah

Yeah Yeahs, etc.) – a solo é um objecto que não se enquadra no típico álbum em nome próprio. Sitek já experimentou cantar, mas nestas canções preferiu entregar o microfone a vozes que vão do “rapper” Theophilus London ao

monstro sagrado David Byrne, passando pelos companheiros de banda. O método tem méritos e desvantagens. Sem este espírito descomprometido, seria difícil ter no mesmo disco Byrne, numa “funkalhada” esguia a lembrar os seus (extintos) Talking Heads numa “jam” com Tom Jones (“Apartment Wrestling”), Karen O, dos Yeah Yeah Yeahs, doce, docíssima, em “Communion”, canção para aninhar na

invernia, e o festim rítmico de “Groove me”.

Estes são os méritos, mas há desvantagens. A diversidade resulta num objecto algo incoerente, o que se perdoar-se-ia se as canções estivessem todas ao nível das já citadas. Não estão: Kyp Malone, dos TV On The Radio, entra no funk em implosão (e com algum do negrume da banda de origem) de “Shakedown”, mas não impressiona, e as canções com Holly Miranda e Ambrosia Parsley são inofensivas ou mesmo soporíferas (para além de não encaixarem na toada festiva do álbum). Com estes

Clássica

Concerto coreográfi co na GulbenkianEm “Quatro Elementos-Quatro Estações”, com música de Rebel e Vivaldi, os instrumentistas da Akademie für Alte Musik Berlin são parte activa da coreografi a de Juan de Garaio Esnaola. Cristina Fernandes

Quatro Elementos-Quatro EstaçõesAkademie für Alte Musik BerlinAdriadne Daskalakis (violino)Juan Kruz Diaz de Garaio Esnaola (coreógrafo, bailarino)Lisboa, Grande Auditório Gulbenkian, dia 21, às 21h.

Num dos seus discos recentes a Akademie für Alte Musik Berlin, uma das orquestras barrocas de topo do actual panorama internacional, e a exímia violinista Midori Seiler combinam as “Quatro Estações”, de Vivaldi, com a música de “Os Elementos”, bailado composto por Jean-Féry Rebel em 1737. A gravação surgiu na sequência de uma série de concertos com coreografia e interpretação do bailarino Juan Kruz

Con

cert

osJazz

Downtown no PortoJazz intenso, exploratório, aberto e espiritual. Rodrigo Amado

Daniel Carter + William Parker + Federico UghiCom Daniel Carter (saxofone e piano), William Parker (contrabaixo), Federico Ughi (bateria). Porto. Culturgest. Avenida dos Aliados, 104 - Edifício da CGD. 6ª às 22h00. Tel.: 222098116. 5€.

Comissariado pelos imparáveis Filho Único, este espectáculo junta três das mais genuínas e destacadas figuras do downtown nova-iorquino; o saxofonista Daniel Carter, o contrabaixista William Parker e o baterista Federico Ughi. Daniel Carter (saxofone alto e piano) é um daqueles raros músicos que se distancia de tudo o que não tenha realmente a ver com a música. Para ele só isso interessa – tocar, partilhar o momento com outros músicos e comunicar através da música. É um saxofonista extraordinário, capaz de comunicar a mais extrema e pura emoção, e as suas participações alargam-se a projectos tão variados como Anti-Pop Consortium ou Yo La Tengo.

William Parker (contrabaixo) quase dispensa apresentações, sendo um dos mais poderosos e versáteis improvisadores em actividade. Federico Ughi, o mais novo dos três, divide-se entre a actividade da sua editora, a 577 records, e uma série de interessantes projectos em que participa como baterista. Juntos, gravaram em 2006 “The Dream”, registo que nos dá as pistas para o que iremos ouvir no auditório da Culturgest – jazz intenso, exploratório, aberto e espiritual.

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Menomena: um pequeno puzzle

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Três das mais destacadas fi guras do downtown nova-iorquino; o saxofonista Daniel

Carter, o contrabaixista William Parker e o baterista Federico Ughi

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Joana Seara e o barítono Hugo Oliveira) e os conceituados Martín Oro (contratenor) e Thomas Walker (tenor). Com direcção de Nicholas Kraemer, o concerto dá seguimento ao projecto de apresentação de três obras maiores do século XVIII pela OML e pelo Coro Lisboa Cantat, iniciado com “A Criação” de Haydn no ano passado. Em Março de 2011 prosseguirá com “As Estações”, também de Haydn.

Quando o Handel morreu, o “Messias” já tinha sido interpretado pelo menos 56 vezes e a obra nunca saiu do repertório desde então. Foi a oratória que mais contribuiu para a fama do seu autor ainda que a sua herança interpretativa nos séculos XIX e na primeira metade do século XX não coincida com as visões que temos hoje graças às práticas históricas da música antiga. O “Messias” era sobretudo conhecido através da orquestração de Mozart e associado a um estilo pomposo que fazia uso de opacas massas vocais e instrumentais. Antes das abordagens historicamente informadas não teria talvez sido possível a afirmação do maestro Paul McCreesh, que defende que “o Top 10 das oratórias de Handel é tão grandioso e variado como as nove sinfonias de Beethoven.” A OML usará, obviamente, instrumentos modernos, e o Coro Lisboa Cantat apresenta-se na sua dimensão sinfónica (com um tamanho comparável aos grandes coros que cantavam a obra no século XIX e não às formações mais reduzidas do tempo de Handel), mas o conhecimento estilístico da música barroca da parte do maestro Nicholas Kraemer, cuja formação inicial foi a de cravista, promete uma solução de compromisso. C.F.

Pop

A aventura de Tim no circo

Tim & Companheiros de AventuraLisboa. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96. 6ª às 22h00 (portas abrem às 21h). Tel.: 213240580.22,5€ a 30€. Camarotes: 100€ a 150€. M/3.

Primeiro foi no Coliseu do Porto, hoje chegam ao de Lisboa. Tim, dos Xutos, e os seus Companheiros de Aventura (Rui Veloso, Vitorino e Celeste Rodrigues, essa mesma, a fadista, que é irmã de Amália) fecham com um grande concerto na capital a primeira fase de uma aventura que começou há três anos, que foi preciso “remontar a banda. E também havia de a ideia de que eu tivesse um espectáculo mais perto do público.” Para isso, Tim quis fazer “um estágio”. Arranjaram um sítio, que foi o Braço de Prata. “Não queria um solo completo, queria

tocar com um músico ou outro, depois logo se via o que acontecia. E aí aparecem os vários músicos que se vão juntando e que de há três anos para cá fazem a banda”, vindos de grupos como os Sétima Legião, Madredeus, Trovante e outros. Um ano depois, quando se juntaram de novo no Braço de Prata para festejar, viram que faltava qualquer coisa. “O que faltava era o nervoso, porque a coisa estava feita.” Lembrou-se então de desafiar Rui Veloso, depois o Mário Laginha (“temo-nos cruzado várias vezes e a sala tem um piano bom”) e o grupo acabou por compor-se com Vitorino e com Celeste Rodrigues (“o baterista, que é o filho do Kalú, costuma dizer que ela é a mais punk de todos”). Quatro nomes mais a juntar a um grupo de músicos que já ganhara coesão no tempo. “Companheiros de Aventura”, o nome, veio da canção “Adeus ó Serra da Lapa”, de José Afonso. E assim gravaram um disco, de nome homónimo, e fizeram-se à estrada. “Em si”, diz Tim, “isto pode não ter um objectivo estético muito marcado, mas tem um objectivo concreto que é usufruir do facto de estarmos vivos, tocarmos juntos, gostarmos uns dos outros, podermos tocar músicas que não as nossas de todos os dias, podermos trocar de lugar no palco.” Essa troca já começou a alargar-se e pode vir a

Diaz de Garaio Esnaola produzidos pelo Radialsistem Berlim (espaço criativo para as artes aberto em 2006) e registados pela Harmonia Mundi num DVD de grande sucesso. No dia 21, às 21h, este espectáculo fora do comum, intitulado “Quatro Elementos-Quatro Estações”, poderá ser visto na Gulbenkian, contando com a participação da violinista grega Adriadne Daskalakis, que substitui a anteriormente anunciada Midori Seiler. Esta recriação musical da Natureza e dos seus ciclos inicia-se com a criação do mundo evocada pelo “Caos” retratado com ousadia no primeiro andamento da obra de Rebel e termina com a sua decadência. Os instrumentistas da orquestra são parte activa da coreografia e da construção do espaço cénico e a relação entre o movimento e a música e entre o bailarino e os instrumentistas culmina numa forte interacção teatral entre Esnaola e a violinista solista.

Nascido em 1966 em Legazpi (Espanha), Juan Garaio de Esnaola é membro da companhia Sasha Waltz and Guests, na qual colabora como bailarino, assistente, ensaiador, coreógrafo e director musical de vários projectos. A sua formação paralela na área da dança e da música (estudou no Conservatório Superior de San Sebastián e na Academia de Música Antiga de Amesterdão, tendo também uma carreira como contratenor e compositor) tem conduzido a diversas experiências que combinam a voz, o movimento e a criação musical como sucede em “Ars Melancholiae”, espectáculo estreado em Berlim em 2008, no qual dirige e coreografa cinco bailarinos que cantam ao vivo canções compostas pelo próprio Esnaola a partir de textos de Shakespeare, Baudelaire, Rilke, Pessoa e Cioran, entre outros.

O regresso do Messias

Messias, de HandelOrquestra Metropolitana de LisboaCoro Sinfónico Lisboa CantatJoana Seara, Martin Oro, Thomas Walker, Hugo Oliveira (cantores solistas), Nicholas Kraemer (direcção musical) Lisboa, Centro Cultural de Belém, dia 19, às 17h.

Pela sua temática e por tradição, a oratória “Messias”, de Handel, é uma obra recorrente em concertos alusivos ao Natal e à Páscoa. No dia 19, no Centro Cultural de Belém, a Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML) e o Coro Sinfónico Lisboa Cantat apresentam a sua versão desta partitura em colaboração com um criterioso conjunto de solistas, que inclui dois jovens cantores portugueses actualmente a fazer carreira internacional (a soprano

ter mais nomes e mais discos. Para já, juntou-se ao grupo Teresa Salgueiro, que esteve no Porto e estará hoje em Lisboa, num palco onde cada um tem direito a quatro temas, alguns partilhados. “Aqui vai ser quase único porque o coliseu já está preparado para o circo e nós vamos estar no meio da arena. Por isso acho que este espectáculo ainda vai ser mais compartilhado pelo público.” Nuno Pacheco

Minta & The Brook Trout19 de Dezembro, 18h Teatro da Luz, Largo da Luz, Carnide; tel.: 217 120 600. Bilhetes a 7 euros (venda antecipada, nas lojas Flur e Matéria Prima) e 10 euros no próprio dia.

Minta & The Brook Trout, ou seja, Francisca Cortesão, acompanhada das fieis Trouts Mariana Ricardo e Manuel Dordio. Ou seja, a autora em 2009 de “Minta & The Brook Trout”, álbum de melodias outonais, coração quente e atenção tão terna quanto obsessiva àquilo que marca a nossa vida

reflectida na vida do outro (questão de sempre, esta das glórias e das dores do amor).

Domingo, no Teatro da Luz, em Carnide, Lisboa, a Minta que vive rodeada de Laura Viers, Gillian Welch ou Tom Waits mostrará canções do álbum de estreia e canções de álbuns futuros. Mostrará a sua música em ambiente necessariamente diferente. Chamam-lhe um concerto especial e têm fundadas razões para isso. Minta & The Brook Trout não estarão sozinhos. Com eles, chegarão o baterista Nuno Pessoa e uma roda-viva de companheiros em estúdio e estética como Márcia Santos, Noiserv, João Cabrita, Walter Benjamin e BlackBambi. Uma

matiné (o início está marcado para as 18h) que não se

esgotará na memória dos presentes: o concerto será gravado para posterior edição na série Optimus

Discos. M.L.

Sexta 17Mísia + Guillaume & The Coutu Dumonts + Rui Vargas & André Cascais + Leonaldo de Almeida + Mário Valente & Zé Pedro MouraLisboa. Lux Frágil. Av. Infante D. Henrique - Armazém A (Cais da Pedra a Santa Apolónia). 6ª às 22h00. Tel.: 218820890. 15€.

Inicialmente previsto para 5 Novembro.

Orquestra Sinfónica do Porto Casa da MúsicaDirecção Musical: Neil Thomson. Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho de Albuquerque. 6ª às 21h00.Sáb. às 18h00. Tel.: 220120220. 17€. Jantar-concerto: 30€.

Na Sala Suggia. Fantasia de Natal.

Paint MeDe Stephen Plaice (libreto). Encenação: Rui Horta. Coreografia: Rui Horta. Direcção Musical: Joana Carneiro. Com Raquel Camarinha, EduardaMelo, João Rodrigues, Job Tomé, Patricia Quinta, Hugo Oliveira. Com Orquestra Sinfónica Portuguesa. Compositor: Luís Tinoco. Lisboa. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da CGD. 6ª e Sáb. às 21h30. Tel.: 217905155. 25€ (sujeito a desconto).

No Grande Auditório. M/12.Ver texto págs. 28 e segs

Dead Combo & Royal Orquestra das CaveirasLisboa. MusicBox. R. Nova do Carvalho, 24 - Cais do Sodré. 6ª às 00h00. Tel.: 213430107. 10€.

Apresentação de “Lusitânia Playboys”.

Sábado 18MGMTLisboa. Praça de Touros do Campo Pequeno. Campo Pequeno. Sáb. às 21h00 (portas abrem às 20h). Tel.: 217820575. 30€ a 33€.

Apresentação de “Congratulations”.Ver texto págs. 22 e segs

Jean-Guihen QueyrasLisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Avenida de Berna, 45A. Sáb. às 19h00. Tel.: 217823700.15€ a 25€.

No Grande Auditório.

The Legendary TigermanGuarda. Teatro Municipal da Guarda. Rua Batalha Reis, 12. Sáb. às 21h30. Tel.: 271205241. 10€.

No Grande Auditório. Apresentação de “Femina”.

Mão Morta + Talamasca + Tech Twist + TamirisPorto. Hard Club. Praça do Infante, 95 - Mercado Ferreira Borges. Sáb. às 22h00. 15€.

Na Sala 1. Apresentação de “Pesadelo de Peluche”.

MazganiMaia. Tertúlia Castelense. R. Augusto Nogueira da Silva, 779. Sáb. às 23h30. Tel.: 229829425. 6€.

Apresentação de “Song of Distance”.

Bernardo SassettiLisboa. Trem Azul Jazz Store. R. do Alecrim 21 A. Sáb. às 21h30. Tel.: 213423141. 10€.Ébano e Marfim Piano Festival.

Domingo 19Coro e Orquestra Barroca Casa da MúsicaDirecção Musical: Paul Hillier. Porto. Casa da Música. Pç. Mouzinho de

Agenda

Albuquerque. Dom. às 18h00. Tel.: 220120220. 11€.

Na Sala Suggia. Concerto de Natal - obras de Monteverdi, Buxtehude, Corelli e Mozart.

Mafalda ArnauthAlmada. Fnac (Almada Fórum). Caminho Municipal 1101 - Vale de Mourelos. Dom. às 17h00. Tel.: 707313435. Entrada livre.

Apresentação de “Fadas”.

Segunda 20Harlem Gospel ChoirLisboa. Coliseu dos Recreios. R. Portas St. Antão, 96. Sáb. às 21h30 (portas abrem às 20h30). Tel.: 213240580. 18€ a 35€. Camarotes: 180€ a 198€.M/6.

Já cantaram com Paul McCartney, Gorillaz, Diana Ross. Já cantaram para Barack Obama. E já encantaram Portugal, que no ano passado esgotou salas para os ver. A espiritualidade das vozes do Harlem Gospel Choir abre alas para a quadra que aí vem, com concertos em Ílhavo (18 de Dezembro), Lisboa (20) e Porto (21).

David FonsecaLisboa. Teatro Municipal de S. Luiz. R. Antº Maria Cardoso, 38-58. 2ª, 3ª, 4ª e 5ª às 18h30. Tel.: 213257650. 15€.

No Jardim de Inverno. “U Know Who I Am - one man, a thousand instruments and a Polaroid”.

Terça 21Harlem Gospel ChoirPorto. Coliseu do Porto. R. Passos Manuel, 137. 3ª às 21h30. Tel.: 223394947.25€ a 28€.M/6.

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rout, ou seja, , acompanhada

ariana Ricardo e Ou seja, a autorara em & The Brook

de melodias ração quente e terna quanto

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Campo Pequeno. Campo brem às 20h). Tel.:

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Albuquerque.ueueeeeeeeeeeeueeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee DDD DomD . às 18h00. Tel.: 220120220. 11€.

Na Sala Suggia. Concerto de Natal - obras de Monteverdi, Buxtehude, Corelli e Mozart.

Mafalda ArnauthAlmada. Fnac (Almada Fórum). Caminho Municipal 1101 - Vale de Mourelos. Dom. às 17hTel.: 707313435. Entrada livre.

esentação de “Fadas”.

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Nicholas Kraemer

dirige o Messias,

de Handel

A primeira ópera de Tinoco na Culturgest

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46 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon

convivem, entre outros, a Internacional Situacionista, as Guerrilla Girls ou Emory Douglas e um saco de Barbara Kruger. É um prólogo ruidoso (a arte a ameaçar saltar a barricada para o lado do activismo) com cartazes, livros de artista, panfletos, material gráfico.

Depois, precipita-se incontrolável pelo museu adentro. Um alvoroço. Numa sala há trabalhos que parecem incomodados com a presença de outros, nos tectos, palavras obrigam-nos a levantar a cabeça ou em estreitas escadarias, a interromper a descida. E a meio da corrida, a desorientação instala-se. Há de facto muitas obras no Museu, mas estranhamente, poucas de artistas nacionais. Contam-se apenas cinco nomes – André Romão, Mariana Silva, Rigo 23 António de Sousa e João Sousa Cardoso –, número tíbio, envergonhado, delimitado por critérios de selecção que embora livres e legítimos pecam por rigidez.

Então o que redime “Às Artes Cidadãos!”? Um surpreendente paradoxo: a sua intensa generosida-de. Ou melhor: a facilidade com que, através das obras de arte, desperta a consciência do mundo, da história, do “político” e enreda o espectador numa “encantamento” furioso, por vezes pungente. Privilegia-se o legado da arte conceptual e das vanguardas dos anos 60 e dominam a instalação, as intervenções na parede, a fotografia e, sobretudo, a palavra.

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ões

A genero-sidade numa exposiçãoAmbiciosa e imperfeita, é uma grande exposição que belisca, sem temor, a autonomia da arte e a consciência do espectador. José Marmeleira

Às Artes, Cidadãos!De Ahlam Shibli, Ahmet Ögüt, André Romão, Carlos Motta, Chto Delat, João Sousa Cardoso, Nicoline van Harskamp, Rigo 23, entre outros.

Porto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. Tel.: 226156500. Até 13/03. 3ª, 4ª, 5ª e 6ª das 10h às 17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 19h.

mmmmm

Comecemos pelos defeitos. Todas as exposições os têm e “Às Artes Cidadãos!”, que no Museu de Serralves lida com as intersecções entre a arte e a política, não é excepção: com obras novas e recentes de 30 artistas, estendendo-se à capela da Casa de Serralves, ao Auditório e à cidade de Porto, raia a desmesura. Para perceber a sua ambição, basta entrar no hall onde

Inauguram Encomendas Namban. Os Portugueses no Japão da Idade ModernaLisboa. Museu do Oriente. Av. Brasília - Edifício Pedro Álvares Cabral - Doca de Alcântara Norte. Tel.: 213585200. De 17/12 a 31/05. 6ª das 10h às 22h. 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, Sáb. e Dom. das 10h às 18h. Inaugura 17/12 às 18h30.

Objectos, Outros.

ContinuamBes Revelação 2010De Carlos Mesquita, Eduardo Guerra, Miguel Ferrão, Mónica Baptista. Porto. Museu de Serralves. Rua Dom João de Castro, 210. Tel.: 226156500. De 26/11 a 16/01. 3ª a 6ª das 10h às 17h. Sáb., Dom. e Feriados das 10h às 19h.

Fotografia.

Os ProfessoresDe Álvaro Lapa, Ângela Ferreira, Eduardo Batarda, João Queiroz, Manuel Botelho, Miguel Branco, Pedro Morais, Rui Sanches. Lisboa. Centro de Arte Moderna - José de Azeredo Perdigão. Rua Dr. Nicolau Bettencourt. Tel.: 217823474. Até 02/01. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Pintura, Escultura, Outros.

Res Publica - 1910 e 2010 Face a FaceDe Adriano de Sousa Lopes, Ângela Ferreira, Armanda Duarte, Bruce Nauman, Eurico Lino do Vale, Nuno Maya, Gabriel Orozco, Guillermo Kuitca, Joana Vasconcelos, Rodrigo Oliveira, entre outros. Lisboa. Fundação e Museu Calouste Gulbenkian. Avenida de Berna, 45A. Tel.: 217823700. Até 16/01. 3ª a Dom. das 10h às 18h.

Pintura, Fotografia, Vídeo, Outros.

João QueirozLisboa. Culturgest. Rua Arco do Cego - Edifício da CGD. Tel.: 217905155. Até 09/01. 2ª, 4ª, 5ª e 6ª das 11h às 19h (última admissão às 18h30). Sáb., Dom. e Feriados das 14h às 20h (última admissão às 19h30).

MontageDe Filipa César. Vila do Conde. Solar - Galeria de Arte Cinemática. Solar de S. Roque. Tel.: 252646516. Até 26/12. 3ª a 6ª das 14h30 às 18h. Sáb. e Dom. das 10h às 18h.

UnderdogsDe OBEY, Alexandre Farto aka VHILS, Mar, Ram, Sphiza, Tosco, Adres, entre outros. Lisboa. Vera Cortês - Agência de Arte. Avenida 24 de Julho, 54 - 1ºE. Tel.: 213950177. De 26/11 a 15/01. 3ª a Sáb. das 14h às 19h.

Pintura, Outros.

Falemos de Casas: Entre o Norte e o Sul De vários autores. Lisboa. Museu Colecção Berardo. Praça do Império - Centro Cultural de Belém. Tel.: 213612878. Até 16/01. Sáb. das 10h às 22h (última admissão às 21h30). 2ª a Dom. das 10h às 19h (última admissão às 18h30). Trienal de Arquitectura de Lisboa.

Arquitectura, Outros.

AgendaEsta é uma exposição, sublinhe-se, tomada, pela palavra. A representação dos acontecimentos ou da história é deixada à rememoração de quem chega.

Num capítulo da série “Spiral Lands” de Andrea Geyer (Freiburg, Alemanha 1971), lemos textos de alguém que recorda o seu passado índio. E à medida que lemos, vemos no fundo, sob as letras, fotografias de paisagens, de sítio sagrados, de planaltos. Nada nos diz se são imagens antigas ou feitas pela artista. O que interessa é a simultaneidade da experiência, a aliança entre texto e imagem, que revela uma História sem História (a do povo nativo norte-americano). E há mais palavras, frases no museu. Nos slogans poéticos do colectivo francês Claire Fontaine, que do tecto e das paredes exortam à greve humana (greve ao sexo, à produção, ao quotidiano, ao amor), nos manuscritos de Dahan Vo que aludem ao colonialismo e à religião, na provocação às políticas da arte de Stefan Brüggemann: “To be political it has to look nice”.

Avançam-se alguns passos e a palavra cede lugar à participação. Entre 1999 e 2001, o artista australiano Tom Nicholson fotografou os títulos dos livros que ele próprio ajudou a doar à nova biblioteca de Díli, incendiada pelas milícias pró-Indonésia logo após o referendo. E com esses títulos criou um livro que qualquer visitante pode levar para casa. Com uma condição: em troca deve doar outro para a Universidade de Díli. Assim, no museu, uma pilha diminui de tamanho, enquanto outra cresce para forjar a identidade de uma jovem nação. A proposta do colombiano Carlos Motta, concebida a partir da acção “Deus Pobre”, consiste em grupos de puzzles de imagens de religiosos que na América Latina lutaram e morreram em defesa dos pobres e dos povos índios. O exercício de combinar as peças ganha um sentido menos lúdico quando ouvimos nos auscultadores o relato da opressão da Igreja Católica pela voz de um padre do século XVII.

A história dos vencidos (no caso de Motta, a Teologia da Libertação) é também uma sucessão de catástrofes na comovente série fotográfica “Trauma” da palestiniana Ahlam Shibli. Ou uma narrativa em permanente reconstrução, entre o passado e o presente, como sugere o arquivo-instalação de Simon Wachsmuth sobre a antiguidade clássica. Poder-se-ia pensar que Às Artes e os Cidadãos encerra uma nota pessimista ou nostálgica. Não. Há espaço para celebrações: do corpo do “outro” na instalação de António Sousa Cardoso, da participação política, segundo o colectivo russo Chto Delat? ou de uma ideia de povo na instalação de Rigo 23. Esta é uma exposição generosa onde as obras se oferecem para deixar o museu.

“Às Artes, Cidadãos!”: a facilidade com que, através das obras de arte, desperta

a consciência do mundo, da história, do “político” e

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/// DE 25 DE NOVEMBRO A 17 DE FEVEREIRO

Jack presents BESart

// MORADA Praça Marquês de Pombal nº3, 1250-161 Lisboa

// TELEFONE 21 359 73 58

// EMAIL [email protected]

// HORÁRIO Segunda a Sexta das 9h às 21h

/// EXPOSIÇÃO *09

ANDRÉ PRÍNCIPE // CHRISTOPHER WILLIAMS // HIN CHUA //HANS-PETER FELDMANN // JOAO FELINO // JOAO SIMOES //JOÃO FERRO MARTINS // MARTHA ROSLER // JONATHAN LEWIS //LOUISE LAWLER // THOMAS STRUTH // STEPHEN SHORE //WOLFGANG TILMANS //

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