8
ALTA A PEDIDO FRENTE AO ESTATUTO DA CRIANÇA OU ADOLESCENTE Luiz Antonio Miguel Ferreira 1 01. Considerações iniciais. A família, a comunidade, a sociedade em geral e o Estado têm o dever de assegurar com absoluta prioridade a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes relativos à vida, saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar. Essa prioridade na proteção dos direitos da criança e do adolescente é imposta a todos e está assegurada pela Constituição Federal (art. 227, caput) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 4º). Especificamente com relação ao direito à vida e à saúde, os pais, os responsáveis, os médicos, enfim todos os profissionais ligados à saúde ou não, são responsáveis pela garantia de tal direito à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, visando o seu nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Estabelece ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente, que essa garantia de prioridade absoluta na efetivação do direito à vida e à saúde, compreende entre outras ações, a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias e precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, em respeito à condição peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento (Art. 4º, parágrafo único). Qualquer ação ou omissão ou a negligência, que vier a ferir esses preceitos fundamentais 1 Promotor de Justiça da Infância e da Juventude do Ministério Público do Estado de São Paulo – Membro do Comitê Regional de Mortalidade Infantil da DIR/XVI – SP. E-mail – [email protected]

Alta a Pedido Frente Ao Eca

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Texto de Direito da Criança e do Adolescente

Citation preview

ALTA A PEDIDO FRENTE AO ESTATUTO DA

ALTA A PEDIDO FRENTE AO ESTATUTO DA

CRIANA OU ADOLESCENTE

Luiz Antonio Miguel Ferreira

01.Consideraes iniciais.

A famlia, a comunidade, a sociedade em geral e o Estado tm o dever de assegurar com absoluta prioridade a efetivao dos direitos fundamentais das crianas e adolescentes relativos vida, sade, alimentao, educao, ao esporte, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e a convivncia familiar.

Essa prioridade na proteo dos direitos da criana e do adolescente imposta a todos e est assegurada pela Constituio Federal (art. 227, caput) e pelo Estatuto da Criana e do Adolescente (art. 4). Especificamente com relao ao direito vida e sade, os pais, os responsveis, os mdicos, enfim todos os profissionais ligados sade ou no, so responsveis pela garantia de tal direito criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, visando o seu nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condies dignas de existncia.

Estabelece ainda o Estatuto da Criana e do Adolescente, que essa garantia de prioridade absoluta na efetivao do direito vida e sade, compreende entre outras aes, a primazia de receber proteo e socorro em quaisquer circunstncias e precedncia de atendimento nos servios pblicos ou de relevncia pblica, em respeito condio peculiar de pessoa em processo de desenvolvimento (Art. 4, pargrafo nico). Qualquer ao ou omisso ou a negligncia, que vier a ferir esses preceitos fundamentais importa na responsabilidade do agente, tanto na esfera penal, como civil e administrativa.

Os pais so os primeiros responsveis pela garantia do direito vida e sade das crianas e dos adolescentes. A seguir, pela determinao legal, assumem tal responsabilidade a sociedade e o Poder Pblico. A responsabilidade dos pais decorre do ptrio-poder (ECA., art. 22). Entretanto, este poder no absoluto, apresentando certas restries, todas as vezes que a ao ou omisso dos mesmos venha a colocar a criana ou o adolescente em situao de risco social e pessoal (ECA, art.98, I). Nessa hiptese, assumem a responsabilidade pelo referido direito os demais atores apontados na lei, ou seja, a sociedade, a comunidade em geral e o Poder pblico.

Assim, quando os pais no cumprem o seu papel, justifica-se a interveno na famlia como forma de garantir o direito vida e a sade da criana. O pai que deixa a criana em abandono; pratica atos violentos contra a mesma, como maus tratos ou abuso sexual; no atende as determinaes do Juzo; deixa de prestar assistncia sade do filho ou no atende as orientaes mdicas referente sade da criana, estar colocando a mesma em situao de risco, justificando a citada interveno na famlia.

Sob o manto do efetivo exerccio do ptrio poder, os hospitais e mdicos tm vivenciado uma prtica comum e que apontada como uma das causas de ocorrncia de bitos evitveis, referente denominada alta a pedido, que se caracteriza quando os pais retiram a criana do hospital, assinando um termo de responsabilidade, solicitando sua alta mdica, independente de representar o melhor encaminhamento criana.

Diante desta situao, como deve agir o mdico responsvel pelo atendimento da referida criana ou o diretor do hospital frente atuao dos pais ou responsveis no ldimo exerccio do ptrio poder? Como agir para garantir o direito vida e sade da criana previstos na Constituio e no Estatuto da Criana e do Adolescente ?

02.O problema da alta a pedido.

O alvo de toda ateno do mdico a sade e a vida do ser humano, em benefcio do qual dever agir com o mximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional (Cdigo de tica Mdica art. 2), empregando todos meios necessrios em favor do paciente (Cdigo de tica Mdica, art. 57).

Este dever apresenta uma limitao prevista no prprio Cdigo de tica Mdica, j que o mdico deve respeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar e sobre a execuo de prticas diagnsticas ou teraputicas, salvo no caso de iminente perigo. o que estabelecem os artigos 48 e 56 do Cdigo de tica Mdica.

No caso do paciente ser criana ou adolescente, seus responsveis legais (pais, tutores ou guardies) que devem manifestar-se quanto ao tratamento realizado.

Quando o paciente estiver em iminente perigo, a autoridade do mdico indiscutvel, dando o Cdigo de tica Mdica suporte legal para tal atuao. Neste caso, o mdico no esta obrigado a seguir a vontade do paciente ou de seu responsvel, devendo dar continuidade ao tratamento dispensado criana ou o adolescente que se encontra nessa situao, pois sua conduta impe-lhe a responsabilidade de garantir a vida dos mesmos.

Nas demais hipteses, ou seja, quando a criana ou o adolescente no estiver em iminente perigo de vida vontade dos responsveis quanto alta a pedido tambm deve ser analisada com cautela, j que o ptrio poder no garante o direito absoluto quanto vida da criana. Nessas hipteses, deve ser analisado o grau de responsabilidade dos pais ou responsveis e se a conduta dos mesmos no coloca em risco vida da criana. Caso se vislumbre a ocorrncia de risco, por menor que seja, deve ser negada a alta e comunicado, imediatamente o Conselho Tutelar ou o Juzo da Infncia e da Juventude, caso o municpio no possua o referido Conselho, para as providncias pertinentes.

A alta a pedido, pode ser aceita em casos especiais desde que:

a) Para encaminhamento a outro centro mdico ou outro mdico. No caso de no haver concordncia com o tratamento proposto ou, achando o mdico tratar de conduta inadequada por falta de recursos, seu direito abrir mo do caso, passando formalmente a responsabilidade para outro profissional que esteja disposto a assumi-lo.

b) Quando a criana ou o adolescente esteja fora da situao de risco. Caso em que o profissional tem a convico, segundo seu prognstico, de que o paciente j se encontra fora de qualquer perigo.

Em concluso, a alta a pedido, depender sempre da situao do paciente, sendo que somente o mdico tem competncia e condies de avaliar as conseqncias da mesma, pois referido pedido pode gerar danos vida e sade do paciente, no instante que ele interrompe o processo de tratamento. Dessa maneira, se aps refletir sobre o estado de sade do recm-nascido o profissional concluir que, efetivamente , a alta agravar a situao do mesmo, ele dever recus-la. Vale dizer que, se a sade do paciente agravar-se em conseqncia da alta a pedido, o profissional que autorizou poder ser responsabilizado pela prtica de seu ato, no caso, por omisso de socorro, imprudncia ou negligncia. (Consulta n. 26.574/92 do CREMESP aprovada na 1.586 RP em 29/03/94).

O profissional da rea da sade, dever estar atento a tais situaes, sob pena de se comportar de forma negligente que se caracteriza pela inao, indolncia, inrcia, passividade. Como esclarece Miguel Kfouri Neto:

Na lio de Avecone, a negligncia o oposto da diligncia, vocbulo que remete sua origem latina, diligere, agir com amor, com cuidado e ateno, evitando quaisquer distraes e falhas. Portanto, na base da diligncia est sempre uma omisso dos comportamentos recomendveis, derivados da comum experincia ou das exigncias particulares da prtica mdica.

03.Termo de responsabilidade

Apresenta-se como costume dos hospitais ao proceder a alta a pedido, a lavratura de um termo de responsabilidade devidamente assinado pelo pai ou responsvel como forma de se buscar a iseno de qualquer conseqncia do ato.

Tal conduta afronta o que estabelece o Estatuto da Criana e do Adolescente, pois o profissional da rea da sade, em especial o mdico, tambm responsvel pela vida e sade do paciente, no caso, criana ou adolescente, no podendo esquivar-se de sua responsabilidade, diante de um pedido dos pais ou responsveis.

Nessa hiptese, lembra Iray Novah Moraes:

Diante de circunstncia tal que o profissional seja impedido, pelo doente ou seu responsvel, de proceder a seu critrio, utilizando os recursos convencionais, ele deve recorrer Justia, que lhe dar autorizao para proceder dentro de seus princpios tcnicos modernos.

Assim, verificando a necessidade do tratamento, a alta deve ser recusada e o Conselho Tutelar ou o Juizado da Infncia e da Juventude (nas cidades que no possuem Conselho Tutelar) devidamente acionado para o encaminhamento do caso. Deve-se evitar a alta e posterior termo de responsabilidade, pois a garantia da vida e da sade da criana ou do adolescente no se limita apenas a esta atitude passiva de encaminhamento ou entrega aos pais.

Nesse sentido, o relator Conselheiro Dr. Pedro Paulo Roque Monteleone no citado parecer do Conselho Regional de Medicina do Estado de So Paulo esclarece:

... se restarem infrutferas as tentativas do mdico, com o atual Estatuto da Criana e do Adolescente, em face das dvidas quanto ao tratamento ministrado pela equipe mdica e da recusa em fornecer a alta a pedido, a Vara da Infncia e da Juventude dever ser acionada para a resoluo do conflito.

Mais adiante ao tratar do termo de responsabilidade afirma:

O termo de responsabilidade s teria valor naqueles casos em que a retirada do recm-nascido do hospital no colocasse em risco a sade do mesmo. Como a questo foi colocada, tal documento no isenta a equipe mdica da responsabilidade; as eventuais complicaes que a criana vier a apresentar sero de responsabilidade do profissional que autorizou a alta a pedido. Vale ressaltar, mais uma vez, que o profissional poder responder por omisso de socorro, negligncia e por imprudncia, mesmo se lavrado o termo de responsabilidade.

Nessa mesma linha apresenta-se a Consulta n. 1.665-13/86 do CREMESP cuja relatora Conselheira Maria Cacilda Cmara Lima assim se manifestou:

... a validade do termo de responsabilidade assinado pelos responsveis pelos pacientes nos casos de alta, tem sua eficcia condicionada ao estado de sade do paciente, e essencialmente aos riscos que a alta possa vir a lhe causar, no isentando de responsabilidades, igualmente, os profissionais que atenderam o paciente at a efetiva data da alta.

A referncia do encaminhamento Justia, deve ser entendida como a comunicao ao Conselho Tutelar, pois a Justia da Infncia e da Juventude somente ser acionada no municpio que no possuir tal Conselho ou pela provocao do mesmo, diante da resistncia dos pais ou responsvel em acatar as suas deliberaes.

Deve-se ainda ter cautela redobrada quando se tratar de pedido de alta formulada por genitores menores de 21 anos de idade que no sejam casados legalmente, pois nesta situao ainda no so plenamente capazes, no obstante possurem um filho.

04.Dos encaminhamentos do Conselho Tutelar

Uma vez verificada a impossibilidade da alta a pedido, o mdico ou o hospital deve encaminhar o caso ao Conselho Tutelar, que poder tomar providncias tanto em relao criana ou adolescente como aos pais.

Em relao criana e adolescente, o Conselho Tutelar poder aplicar uma das medidas de proteo previstas no artigo 101, I a VII do Estatuto da Criana e do Adolescente, como orientao, apoio e acompanhamento temporrio; incluso em programa comunitrio ou oficial de auxlio famlia, criana e ao adolescente; requisio de tratamento mdico, psicolgico ou psiquitrico, em regime hospitalar ou ambulatorial e ainda abrigo em entidade.

Quanto aos pais, o Conselho Tutelar poder impor as medidas previstas no artigo 129, I a VII do Estatuto da Criana e do Adolescente com especial ateno obrigao de encaminhar a criana ou adolescente a tratamento especializado.

Caso os pais no cumprirem as determinaes do Conselho Tutelar ou do Juzo, poder ser destitudo ou suspenso do ptrio poder, pois se deve garantir, com absoluta prioridade, os direitos das crianas e dos adolescentes.

Assim, caso os pais solicitem alta a pedido e no sendo caso de tal procedimento, o Conselho Tutelar poder impor aos mesmos a obrigao do tratamento. Diante de eventual resistncia, haver a interveno do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico no sentido de garantir o direito vida da criana.

05.Consideraes finais.

Pelo que foi exposto, verifica-se que o interesse do menor dever sempre sobrelevar ao daqueles que so seus responsveis. Tanto por parte dos pais, detentores do ptrio-poder; quanto por parte dos profissionais de sade, como mdicos, enfermeiros e at mesmo o hospital. Estes devero zelar, acima de tudo pelo bem da criana ou adolescente.

O Conselho Tutelar, o Juiz da Infncia e Juventude e o Promotor de Justia so parceiros necessrios nessa luta para garantia da vida da criana e do adolescente, podendo o profissional da rea da sade contar com esta parceria para o bom encaminhamento dos casos. Assim, devero ser acionados todas as vezes que surgir leso, ameaa de leso, ou conflito de interesse que envolva criana ou adolescente, os pais ou responsveis e os mdicos.

O desrespeito a tal normatividade, resulta na responsabilidade criminal, cvel e administrativa, sendo que o termo de responsabilidade no tem o condo de afastar tal implicao.

Por fim, vale ressaltar que o bom encaminhamento dos casos de alta a pedido, poder levar a uma reduo da mortalidade infantil, quando observadas todas a cautelas e diligncias inerentes ao paciente menor.

Promotor de Justia da Infncia e da Juventude do Ministrio Pblico do Estado de So Paulo Membro do Comit Regional de Mortalidade Infantil da DIR/XVI SP. E-mail HYPERLINK "mailto:[email protected]" [email protected]

Responsabilidade Civil do Mdico. 2 ed. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996, p. 74.

Erro mdico e a lei. 3 edio. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 315.