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Texto apresentado no VI SEAD – Seminário de Estudos em Anáise de Discurso, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul no dia 18/10/2013. O artigo será publicado no livro referente às comunicações do evento em meados de 2015. Althusser, Pêcheux e as estruturas do desconhecimento Fábio Ramos Barbosa Filho 1 Uma história chegou ao fim. É a outra infinita? Louis Althusser, Unfinished history, 1976 Introdução Em 1976, no prefácio ao livro de Dominique Lecourt, “Lysenko, uma ciência proletária?”, Althusser encerra o texto com uma pergunta 2 a respeito da relação entre ideologia e produção de conhecimento, no famoso caso envolvendo o cientista russo Trofim Lysenko. É sabido que a história de Lysenko chegou ao fim no que diz respeito à sua relação com a ciência. Mas e a outra história? Aquela, quase silenciosa, que diz respeito à toda e qualquer produção de conhecimento, na sua relação inevitável com a ideologia? Aquela que diz respeito à relação entre teoria e política nesse jogo de autonomias relativas tangenciadas pelo movimento da história? Trago essa história para situar o meu texto. Talvez seja sobre isso, afinal, que eu me debruce nesse momento. Uma historia, ou duas. História de uma relação muito particular, ou melhor, de relações muito particulares. Relação entre formações teóricas, entre problemáticas, entre inconsciente e ideologia, entre teoria e política. Relação entre uma história que chegou ao fim, que precisa chegar ao fim – várias vezes – mas que continua produzindo efeitos quase silenciosos. Como o título sugere, falo de Louis Althusser e Michel Pêcheux que, neste momento e neste recorte, está presente por uma ausência necessária. Talvez não fosse preciso, mas quando trago esses nomes, não falo (apenas) de duas pessoas. Falo de duas formações teóricas, de duas regiões de conhecimento que, a partir de problemáticas específicas, produziram conhecimento sobre a linguagem, o sujeito e a história. E, sobretudo, propuseram uma nova teoria da leitura e do processo histórico de formação de sentidos, em um processo contínuo de autocrítica, passando por reelaborações extremamente significativas. A referência do título deste texto remete ao parágrafo final do “Freud e Lacan”, texto que me serve de ponto de partida para a presente discussão, que tem como fio condutor a 1 Mestre e doutorando em Linguística na Universidade Estadual de Campinas. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 A pergunta consta na epígrafe. Tradução minha.

Althusser Pecheux e as Estruturas Do Desconhecimento

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Texto apresentado no VI SEAD – Seminário de Estudos em Anáise de Discurso, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul no dia 18/10/2013. O artigo será publicado no livro referente às comunicações do evento em

meados de 2015. Althusser, Pêcheux e as estruturas do desconhecimento

Fábio Ramos Barbosa Filho1

Uma história chegou ao fim. É a outra infinita?

Louis Althusser, Unfinished history, 1976

Introdução

Em 1976, no prefácio ao livro de Dominique Lecourt, “Lysenko, uma ciência

proletária?”, Althusser encerra o texto com uma pergunta2 a respeito da relação entre

ideologia e produção de conhecimento, no famoso caso envolvendo o cientista russo Trofim

Lysenko. É sabido que a história de Lysenko chegou ao fim no que diz respeito à sua relação

com a ciência. Mas e a outra história? Aquela, quase silenciosa, que diz respeito à toda e

qualquer produção de conhecimento, na sua relação inevitável com a ideologia? Aquela que

diz respeito à relação entre teoria e política nesse jogo de autonomias relativas tangenciadas

pelo movimento da história?

Trago essa história para situar o meu texto. Talvez seja sobre isso, afinal, que eu me

debruce nesse momento. Uma historia, ou duas. História de uma relação muito particular, ou

melhor, de relações muito particulares. Relação entre formações teóricas, entre problemáticas,

entre inconsciente e ideologia, entre teoria e política. Relação entre uma história que chegou

ao fim, que precisa chegar ao fim – várias vezes – mas que continua produzindo efeitos quase

silenciosos.

Como o título sugere, falo de Louis Althusser e Michel Pêcheux que, neste momento e

neste recorte, está presente por uma ausência necessária. Talvez não fosse preciso, mas

quando trago esses nomes, não falo (apenas) de duas pessoas. Falo de duas formações

teóricas, de duas regiões de conhecimento que, a partir de problemáticas específicas,

produziram conhecimento sobre a linguagem, o sujeito e a história. E, sobretudo, propuseram

uma nova teoria da leitura e do processo histórico de formação de sentidos, em um processo

contínuo de autocrítica, passando por reelaborações extremamente significativas.

A referência do título deste texto remete ao parágrafo final do “Freud e Lacan”, texto

que me serve de ponto de partida para a presente discussão, que tem como fio condutor a

1 Mestre e doutorando em Linguística na Universidade Estadual de Campinas. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 A pergunta consta na epígrafe. Tradução minha.

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meados de 2015. relação entre Althusser e Pêcheux frente a uma teoria materialista da leitura. Lá, Althusser

afirma:

Desse modo, ter-se-á notado, está aberta para nós, sem dúvida, uma das vias pelas quais

chegaremos talvez um dia a uma melhor compreensão dessa estrutura do desconhecimento,

que interessa, em primeiro lugar, a qualquer pesquisa sobre a ideologia (Althusser 1964

[1985a, p. 71])

É dessa (in)conclusão de Althusser que parto para relacionar dois domínios de saber

que se articulam justamente no limiar desses conceitos. Quando o filósofo relaciona

inconsciente e ideologia, põe uma questão incontornável no entremeio da psicanálise e do

marxismo (inclusive no campo da prática política): a descoberta freudiana do inconsciente

mexe com a estruturação teórica do materialismo no que tange à teoria da ideologia. Ou seja,

há algo no funcionamento do inconsciente que estrutura o modo de funcionamento da

ideologia como uma entidade “profundamente inconsciente” (Althusser, 1965 [1967a, p.

206]). Ora, é justamente esse deslocamento que retira a ideologia do campo da consciência e

permite que o desconhecimento seja mais do que um “engano” ou um “erro” para ser

constitutivo de qualquer relação subjetiva e de qualquer relação social, colocando em pauta a

primazia da opacidade do sujeito e do social frente às categorias de razão e consciência. Em

suma, frente a uma concepção idealista de ideologia.

Partindo dessas premissas, o que aproxima então a psicanálise do marxismo é o fato de

ambos se debruçarem sobre instâncias que, cada qual ao seu modo, são estruturas. É essa

consideração que permite deslocar as discussões fenomenológicas (Politzer e o desprezo pela

metapsicologia, do lado da psicanálise, ou a ideologia como “senso-comum”, do lado do

marxismo) ou ontológicas (Laplanche, a respeito da realidade ou realismo do inconsciente,

do lado da psicanálise, ou da ideologia como “a ideologia do/de cada indivíduo”, do lado do

marxismo) a respeito do par ideologia e inconsciente. É isso que permite a Althusser afirmar

que

[...] a ideologia tem uma estrutura e um funcionamento tais que fazem dela uma realidade não-

histórica, isto é, omnihistórica, no sentido em que esta estrutura e este funcionamento se

apresentam na mesma forma imutável em toda história, no sentido em que o Manifesto define a

história como história da luta de classes, ou seja, história das sociedades de classe (Althusser

1971 [1985b, p. 84])

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meados de 2015. A questão que se coloca, a partir desse deslocamento, é compreender ideologia e

inconsciente não como realidades fenomenológicas ou ontológicas, mas como estruturas que

produzem efeitos e que sustentam processos e práticas. Essa compreensão dialoga de uma

maneira bastante particular com as relações existentes entre a psicanálise e o marxismo.

1. Inconsciente e ideologia: do freudo-marxismo à intervenção althusseriana

Há, na história do marxismo, diferentes modos de articulação (teóricos e políticos)

com a psicanálise. Vale a pena lembrar que ela, que conta com uma grande produção e até

mesmo “simpatia” oficial na União Soviética até a morte de Lênin, é execrada quando o

marxismo se torna a “religião” do Estado. Passa a ser uma panacéia idealista, uma

charlatanice pequeno-burguesa suplantada pelas idéias de Pavlov. É justamente contra essa

interpretação, difundida pela Terceira Internacional, que surgem tanto as “reações” do freudo-

marxismo e da teoria crítica quanto a de Louis Althusser. Cada qual à sua maneira.

Gostaria, brevemente, de mencionar as consequências desses diferentes modos de

articulação a partir de duas posições de “defesa” da pertinência da psicanálise no terreno do

marxismo:3 a) o freudo-marxismo dos anos 20 e 30, que surge, sob a forma do positivismo

biologista, enquanto tentativa de compreender as “raízes psíquicas” e a eficácia da dominação

capitalista e b) a teoria crítica4, que se debruça diante da discrepância entre a “consciência

política” e as condições objetivas da exploração, buscando compreender como os explorados

aceitam e defendem o sistema que os oprime. O que une essas duas tendências, é o modo de

consideração dessa discrepância, ou seja, a natureza desse “espaço” entre a exploração

(realidade objetiva) e os explorados (classe trabalhadora) . Existe, então, tanto no freudo-

marxismo quanto na teoria crítica duas suposições basilares: há algo como uma

irracionalidade da classe operária frente ao funcionamento objetivo das relações sociais bem

como uma certa indistinção entre inconsciente e ideologia5.

Assim como o freudo-marxismo e a teoria crítica, a concepção freudiana de

inconsciente desempenha para Althusser um papel fundamental tanto na defesa da

3 Este panorama é definido de forma bastante pormenorizada em Rouanet (1989). 4 Aqui me restrinjo às observações de Fromm, Adorno, Horkheimer e Marcuse. Novamente, recomendo a leitura de Rouanet (1989), onde há uma minuciosa investigação da relação entre marxismo e psicanálise na teoria crítica. 5 Para ilustrar essa indistinção, trago a caracterização sintomática de Erich Fromm: “[...] as ideologias são o produto de certos desejos, excitações pulsionais, interesses e necessidades, em grande parte inconscientes, e que se manifestam ideologicamente sob a forma de racionalizações” (Fromm apud Rouanet 1989, p. 51)

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meados de 2015. psicanálise6 no terreno do marxismo (e, nesse sentido, o artigo “Freud e Lacan” funciona

quase como um manifesto) quanto na elaboração da sua teoria da ideologia em geral7. Em

“Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado” (daqui em diante, AIE)8, o filósofo afirma,

após apresentar algumas teses fundamentais (a ideologia é onipresente, transistórica e

imutável em sua forma, ou seja, eterna), que se considera autorizado “a propor uma teoria da

ideologia em geral, no mesmo sentido em que Freud apresentou uma teoria do inconsciente

em geral” (Althusser 1971 [1985b, p. 85])”. Porém, diferentemente do freudo-marxismo e de

alguns autores da teoria crítica, Althusser não tenta encontrar uma plasticidade ou uma forma

de integrar inconsciente e ideologia (tal como Erich Fromm9, por exemplo, que busca

compreender a ideologia a partir do funcionamento das pulsões), mas apenas de supor que há

entre essas duas estruturas algo de análogo.

Essa consideração é extremamente importante para pontuar a posição de Althusser no

marxismo, pois efetua um corte tanto com a concepção pré-marxista de Marx (duramente

criticada no AIE), mas também com a concepção de Gramsci (ideologia como “consciência

social” ou “concepção de mundo”) e Lukács (ideologia como “alheamento” ou “falsa

consciência”)10. Deslocando essas duas posições, Althusser vai afirmar que

a ideologia é, antes de tudo, um sistema de representações: mas essas representações nada tem

a ver com a “consciência”: elas são na maior parte das vezes imagens, as vezes conceitos, mas

é antes de tudo como estruturas que elas se impõem à imensa maioria dos homens, sem passar

para a sua consciência. São objetos culturais percebidos-aceitos-suportados, e que agem

funcionalmente sobre os homens por um processo que lhes escapa (Althusser 1965 [1967a, p.

206])

Essa caracterização da ideologia como um “processo que escapa” abre espaço para o

que viria a ser, alguns anos depois, a “teoria da interpelação ideológica”, que institui a noção

de ideologia como noção basilar do empreendimento althusseriano e possibilita pensar o

sujeito sempre-já atravessado pela ideologia e pelo inconsciente. Esse encontro, para usar um

termo caro a Althusser, marca uma especificidade na articulação entre psicanálise e marxismo 6 A esse respeito há a excelente obra de Pascalle Gillot (2009) que pormenoriza a relação de Althusser com a psicanálise. 7 Vale a pena precisar: não uma teoria das ideologias (formações ideológicas) específicas. Essa distinção é bastante explorada em Althusser (1971[1985b]). 8 Althusser, 1985. 9 Não trago aqui as posições de Erich Fromm em vão. No texto “A querela do humanismo”, Althusser inicia um debate direto com a teoria crítica a partir de um convite de Eric Fromm para que o filósofo francês escrevesse um texto para um livro a respeito do “humanismo socialista”. Althusser aceita o convite mas o seu texto não é incluído na publicação por “destoar” dos demais textos. 10 A esse respeito, ver Sampedro (2010).

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meados de 2015. e determina a constituição do sujeito em um jogo de relações que excluem os temas da origem

e da essência humana, logo, da ideologia “como alheamento” ou conjunto de idéias

inculcadas, cinicamente, pela classe dominante. Pois se a ideologia “representa a relação

imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (ibidem, p. 85) ela não

representa as condições objetivas de existência, mas as relações com essas condições. Ou

seja,

é representado na ideologia não o sistema das relações reais que governam a existência dos

homens, mas a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais eles

vivem (ibidem, p. 88)

É isto, conceber as relações como relações imaginárias, que permite à ideologia não

ser um “véu”, um “engano” ou um “mito”, mas uma relação específica entre o sujeito e as

relações sociais (entre o sujeito e o sentido) e que tem uma forte ligação com o que Althusser

chamou de “autonomia relativa da superestrutura” e “ação de retorno da superestrutura sobre

a base”11. Essa concepção de ideologia afasta a idéia de uma suposta irracionalidade

(bastando a presença da racionalidade, ou uma inversão, para que tudo se torne evidente) e é

extremamente solidária a uma teoria da leitura, tema da próxima sessão.

2. Uma teoria materialista da leitura

Após esse recorte da relação entre marxismo e psicanálise, posso me deter no ponto

fundamental deste texto: pensar de que modo Althusser lança as bases de uma teoria

materialista da leitura12 que fundamenta a semântica discursiva de Michel Pêcheux. Utilizo a

palavra “fundamenta” de propósito. Tanto para afastar outras como “herança” ou “influência”

quanto para compreender essa relação a partir de uma constitutividade que se situa para além

de uma pano de fundo teórico, mas como uma relação que produziu conceitos e práticas que

estabelecem um vínculo direto entre teoria (enquanto uma prática teórica) e política na

análise de discurso. Para além de um substrato, um arsenal13 de palavras que, sob a forma de

11 Althusser, 1971[1985b]. 12 A esse respeito, vale a pena observar de que modo Pierre Macherey vai compreender a produção literária a partir de uma posição materialista. Essa obra (Macherey 1966 [1971]) é sintomática de um interesse acentuado na relação entre ideologia e o simbólico nas elaborações teóricas do grupo que se organizava em torno de Althusser. 13 Palavra que utilizo para jogar com a concepção althusseriana da teoria como arma.

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meados de 2015. conceitos, desenham uma forma de compreender o simbólico a partir da relação com a

história e que dá ao significante uma importância fundamental.

Althusser afirma que há em Marx a emergência de “uma teoria da história capaz de

nos fornecer uma nova teoria do ler” (Althusser 1965 [1975, p. 16]) e é justamente a partir de

uma caracterização bastante particular do conceito de história que o filósofo francês vai

pensar questão da leitura. Althusser considera que Marx abriu o “continente história”,

saturado pelas filosofias da história e marcado pelas problemáticas da origem e do fim

(gênese e teleologia), para o que se chama de conhecimento objetivo, ou seja, aquele que

“cessa de interpretar os fenômenos em termos de causas finais” (Turchetto 2010, p. 80) a

partir de uma leitura da Economia Política clássica que desloca certas palavras e, assim, faz

aparecer outras perguntas. Marx, como sabemos, possuia um olhar agudo para as questões

significantes14. Ele censura Ricardo e Smith por não chamarem a mais-valia por seu nome e

critica a não consideração da historicidade de certas palavras. Essa relaçao, porém, pode cair

num historicismo (ou seja, bastaria então contextualizar essas relações) que Althusser trata de

dissipar enfaticamente no seu esboço de um conceito de tempo histórico. De modo análogo ao

conceito de ideologia, é no conceito de inconsciente que o filósofo se ampara para propor um

deslocamento frente à compreensão da história como um processo contínuo e linear para

pensá-la como “uma realidade que nada tem a ver com a sequência visível de acontecimentos

registrados pela crônica” (Althusser 1965 [1980, p. 43]). O autor afirma que:

Do mesmo modo que sabemos, desde Freud, que o tempo do inconsciente não se confunde

com o tempo da biografia, que se impõe, pelo contrário, construir o conceito de tempo do

inconsciente para chegar à compreensão, do mesmo modo é preciso elaborar os conceitos dos

diversos tempos históricos, que jamais são dados na evidência ideológica da continuidade do

tempo (que bastaria recortar convenientemente por uma boa periodização para transformá-lo

em tempo da história), mas que deem ser elagorados a partir da natureza diferencial e da

articulação diferencial de seu objeto na estrutura do todo (Althusser 1965 [1980, p. 43])

Traço característico do materialismo de Althusser, a recusa de qualquer empirismo faz

o conceito de história tomar forma a partir de uma concepção de “conjuntura” que determina

o modo como as condições de produção do dizer podem ser pensadas no quadro de uma teoria

da leitura. Recusando o historicismo, pensa as palavras e os conceitos a partir de relações que

vão determinar diretamente a forma do visível e do invisível frente às suas condições

14 A mudança, em 1847, do nome da organização operária “Liga dos Justos” para “Liga dos Comunistas”, sugerida por Marx e Engels, é sintomática dessa relação com o significante.

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meados de 2015. históricas de produção. É essa consideração que permite pensar a conjuntura enquanto uma

realidade determinada pelo que ele chama de “temporalidade diferencial”, ou seja, que cada

nível ou instância possui uma autonomia relativa, funciona sob uma ordem “particular”,

possui uma história “própria” e portanto pode ser pensada (e analisada) autonomamente.

Entre o ver e o não ver é que o ler ganha força e precisa ser pensado de uma maneira

que não signifique um processo cuja força-motriz é a descoberta de um conteúdo. É por causa

de uma relação específica com a conjuntura, e não por uma questão de conteúdo, que os

economistas clássicos não podiam ver certas relações que Marx viu, estando o

(des)conhecimento marcado por esse jogo de (in)visibilidades diante de certas formações

teóricas na sua relação com a história. E é aí que a teoria da leitura tem, para Althusser, a

função específica de mexer com as evidências e dar visibilidade a outras questões. Afinal, se o

discurso teórico é aquele que “tem por efeito o conhecimento de um objeto” (Althusser

1967b, p. 52), ela precisa operar de uma maneira distinta da ideologia (visto que a ideologia

produz o reconhecimento), fazendo o óbvio deslizar no equívoco por um modo específico de

jogar com o sentido. E esse modo era, para o autor, pensado a partir das relações significantes.

Ele afirma:

Uma palavra em vez de outra: constituição no lugar de aplicação: parece uma ninharia.

Contudo, é assim que a filosofia procede. Basta uma nova palavra para desembaraçar o espaço

duma pergunta, aquela que não tinha sido posta. A nova palavra abala as antigas, e faz o vazio

para a nova pergunta. A nova questão põe em questão as antigas respostas, e as velhas questões

adormecidas debaixo delas. Ganha-se aí uma nova visão das coisas (Althusser 1979 [1967, p.

34])

Ganhar uma “nova visão das coisas” não é, então, se ocupar do “deciframento” de

certas questões (ou ver melhor outros “conteúdos”), mas deslocá-las, expondo as suas

relações com a história e com outras questões. Esse processo, bastante familiar para quem se

ocupa da Análise de Discurso, é o modo de abalar a linearidade do discurso ideológico,

saturado em suas próprias evidências, para propor uma forma de leitura culpada que,

recusando novamente o empirismo, se ampara na teoria para derrubar o “mito religioso da

leitura”. Essa concepção tem consequências que ultrapassam os limites do plano teórico e

significam efetivamente a relação entre prática teórica e prática políta. Althusser diz:

Por que a filosofia se bate com palavras? As realidades da luta de classes são "representadas"

por "idéias", que são "representadas" por palavras. Nos raciocínios científicos e filosóficos, as

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meados de 2015. palavras (conceitos, categorias) são "instrumentos" do conhecimento. Mas na luta política,

ideológica e filosófica, as palavras são também armas, explosivos, sedativos ou venenos. Toda

luta de classes pode às vezes se resumir na luta por uma palavra, contra uma outra palavra.

Certas palavras lutam entre si como inimigas. Outras palavras são o lugar de um equívoco: o

lance de uma batalha decisiva, embora indecisa. Exemplo: os comunistas lutam pela supressão

das classes e por uma sociedade comunista, onde, um dia, todos os homens serão livres e

irmãos. No entanto, toda a tradição marxista clássica se recusou a dizer que o marxismo é um

humanismo. Por que? Porque praticamente, logo nos fatos, a palavra humanismo é explorada

pela ideologia burguesa que utiliza-a para combater, quer dizer, para matar uma outra palavra

verdadeira e vital para o proletariado: luta de classes. [...] Esse combate filosófico sobre

palavras é uma parte do combate político. A filosofia marxista-leninista só pode realizar seu

trabalho teórico, abstrato, rigoroso, sistemático sob a condição de lutar com palavras muito

“sábias” (conceitos, teoria, dialética, alienação, etc.) e com palavras muito simples (homem,

massas, povo, luta de classe) (Althusser 1968 [1980, pp. 163-164])

Essa citação é sintomática da importância que certas relações ou demandas políticas

estabelecem com a produção de conhecimento. Em suma, o que Althusser nos diz é que certas

palavras “da política” representam, na teoria, modos de compreender e configurar

problemáticas. E, inversaemnte, certas problemáticas demandam um deslocamento, na teoria,

de certas palavras. O jogo que envolve o significante não é um jogo desinteressado, mas faz

parte da luta para colocar certos sentidos em outros lugares. Neste caso, colocar “na teoria”

sentidos “da política”.

3. Conclusão

Essa discussão, que por enquanto se configura como o esboço de aproximação de dois

autores a partir de uma problemática comum (a questão da leitura), coloca mais questões do

que busca soluções. Penso que esse recorte me permite pensar a prática analítica como uma

prática que joga tanto na teoria quanto na política. Permite, sobretudo, colocar à Analise de

Discurso uma questão tanto teórica quanto política: qual é o seu lugar na conjuntura?

Por enquanto, gostaria de mencionar duas hipóteses: 1) a existência de uma teoria

materialista da leitura que se fundamenta em uma articulação específica de Marx e Freud a

partir, justamente, de uma leitura específica dos conceitos de ideologia e inconsciente e 2) o

modo como essa relação adquire contornos específicos quando pensada em uma teoria do

discurso, em que há a consideração não mais em generalidades como palavras e conceitos,

mas na língua, assumindo as consequências da sua especificidade. Gostaria de aprofundar o

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meados de 2015. segundo ponto, em um outro momento, fazendo um liame entre as reconfigurações que

Althusser e Pêcheux desenvolveram nos seus percursos, quase que paralelamente.

Acho que a questão do desconhecimento, como ponto que articula inconsciente e

ideologia, permite a construção de uma teoria da leitura que rompe com o conteudismo.

colocando em pauta a questão da visibilidade e invisibilidade de certas questões em um plano

teórico que reclama a história. É esse o gesto que aproxima Pêcheux (e o que se chama análise

de discurso materialista) da produção teórica e política de Althusser (ou uma certa leitura do

marxismo-leninismo). Não trago, porém, esse recorte para ilustrar ou induzir que Althusser

lança as bases da Análise de Discurso, e assim entrar na briga pela sua paternidade. Foi

Pêcheux, inegávelmente, que deu ao simbólico todo o peso e preponderância que essa

instância ganhou na sua teoria do discurso ao descobrir de que modo essas relações

significantes funcionam no simbólico a partir de uma reflexão sobre a materialidade da língua

e não no que se poderia chamar de domínio do ideológico ou do imaginário, pura e

simplesmente15. Mas tomar a questão da leitura como recorte, me leva a supor que

desenvolver uma teoria materialista do discurso foi, para Pêcheux, partir de posições que se

formam na articulação específica da psicanálise com o marxismo e da política com a teoria.

Ou seja, pensar a questão da leitura em Althusser é assumir uma posição que não é só

teórica e implica as consequências de assumir não só um método, mas o investimento político

da teoria no jogo das relações de força que o conhecimento desempenha no social. Conceber a

prática teórica enquanto luta, significa inscrever a sua função crítica (não moral) frente ao que

se chama de domínio ideológico. E é essa função que tanto a prática filosófica de Louis

Althusser quanto a prática analítica de Michel Pêcheux: produzir conhecimento na teoria para

intervir na luta política. Pensar a questão da leitura em Althusser é, enfim, assumir uma

prática, demarcando uma posição. Afinal, como ele mesmo diz, “luta de classes e filosofia

marxista-leninista são unidas como carne e unha” (Althusser 1980, p. 165). E marcar essa

posição serve (como nos disse o próprio Althusser retomando Marx) para que não deixemos

jamais o trabalho do alfaiate desaparecer na roupa.

Referências

ALTHUSSER, Louis (1965[1975]). Ler O Capital, volume I. Rio de Janeiro: Zahar. 15 Isso não significa que Althusser não viu (para usar uma formula bastante marcante do Ler O Capital) o modo como o simbólico articula as relações entre a ideologia e o sujeito (ele chega a mencionar em diversas ocasiões a relação entre inconsciente e lei simbólica, jogos de palavras, metáfora/metonímia...)

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