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Alma Marinheira Platão dizia que existem três tipos de homens: os mortos, os vivos e os que “andam” no mar. Os homens do mar não são pessoas comuns, de fato se diferem dos demais por seus hábitos, sua linguagem e principalmente por estórias e pela solidão que carregam. As estórias dos homens do mar ecoam os meados dos séculos VII ao XI onde, nesta época, os dominadores do mar do norte eram os Vikings que usavam seus famosos navios dragão, assim chamados por terem uma cabeça de dragão na proa, para viajarem do extremo norte ao ocidente, primeiro como guerreiros, e depois como colonos. Essas viagens eram bastante perigosas, tendo em vista que navegar somente pela propulsão a vela e a remo não era nada fácil, ainda mais com as fortes tempestades e ondas enormes que surgiam pela proa no decorrer da derrota traçada, deixando-os à mercê da ventura. Séculos após, partia sob o comando do português Vasco da Gama, no reinado de D. Manuel I, a armada de cinco navios que faria uma das viagens mais notáveis da era das Grandes Navegações com intuito de “descobrir o mundo”. Eram travessias que duravam em média seis meses, e não raro, consumiam um terço da tripulação, perdurando enquanto fosse necessário ou até quando houvesse homens para morrer. Portanto, a vida do mareante nunca foi fácil, desde sempre eram vistos como corajosos homens que se aventuravam mar adentro guiados pelos astros e levados pela força humana e vento. Muitos dos que iam muitas vezes não voltavam das perigosas expedições, já os que retornavam eram tratados como verdadeiros mitos por terem vencido o tenebroso mar e trazido novas informações sobre o mundo. Os tempos passaram e, com isto, os navios tiveram sua forma de navegar extremamente modificada; pois se tem hoje equipamentos avançados que facilitam de maneira inimaginável a navegação, tais como GPS e cartas eletrônicas. Todavia, apesar de todas as mudanças, manteve-se a tradição do homem do mar. No dia de trabalho do marinheiro percebe-se uma diferença em relação ao trabalho em terra. Se fosse possível ao navio navegar somente de oito horas da manhã até as cinco da tarde, podendo fundear ao final do dia para então recomeçar tudo no dia seguinte, a jornada de trabalho teria sido como a de terra, porém o navio não pode se dar esse privilégio, já que deve navegar muitas vezes por dia, se prolongando por até meses. Desta forma, durante muito tempo os marinheiros se vão adequando à baderna do mar. Estabeleceram-se quartos de serviço (quatro horas de trabalho) e diferentes funções para os

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Alma Marinheira

Platão dizia que existem três tipos de homens: os mortos, os vivos e os que “andam”

no mar. Os homens do mar não são pessoas comuns, de fato se diferem dos demais por seus

hábitos, sua linguagem e principalmente por estórias e pela solidão que carregam.

As estórias dos homens do mar ecoam os meados dos séculos VII ao XI onde, nesta

época, os dominadores do mar do norte eram os Vikings que usavam seus famosos navios

dragão, assim chamados por terem uma cabeça de dragão na proa, para viajarem do extremo

norte ao ocidente, primeiro como guerreiros, e depois como colonos. Essas viagens eram

bastante perigosas, tendo em vista que navegar somente pela propulsão a vela e a remo não

era nada fácil, ainda mais com as fortes tempestades e ondas enormes que surgiam pela proa

no decorrer da derrota traçada, deixando-os à mercê da ventura. Séculos após, partia sob o

comando do português Vasco da Gama, no reinado de D. Manuel I, a armada de cinco navios

que faria uma das viagens mais notáveis da era das Grandes Navegações com intuito de

“descobrir o mundo”. Eram travessias que duravam em média seis meses, e não raro,

consumiam um terço da tripulação, perdurando enquanto fosse necessário ou até quando

houvesse homens para morrer.

Portanto, a vida do mareante nunca foi fácil, desde sempre eram vistos como corajosos

homens que se aventuravam mar adentro guiados pelos astros e levados pela força humana e

vento. Muitos dos que iam muitas vezes não voltavam das perigosas expedições, já os que

retornavam eram tratados como verdadeiros mitos por terem vencido o tenebroso mar e

trazido novas informações sobre o mundo. Os tempos passaram e, com isto, os navios tiveram

sua forma de navegar extremamente modificada; pois se tem hoje equipamentos avançados

que facilitam de maneira inimaginável a navegação, tais como GPS e cartas eletrônicas.

Todavia, apesar de todas as mudanças, manteve-se a tradição do homem do mar. No dia de

trabalho do marinheiro percebe-se uma diferença em relação ao trabalho em terra. Se fosse

possível ao navio navegar somente de oito horas da manhã até as cinco da tarde, podendo

fundear ao final do dia para então recomeçar tudo no dia seguinte, a jornada de trabalho teria

sido como a de terra, porém o navio não pode se dar esse privilégio, já que deve navegar

muitas vezes por dia, se prolongando por até meses.

Desta forma, durante muito tempo os marinheiros se vão adequando à baderna do mar.

Estabeleceram-se quartos de serviço (quatro horas de trabalho) e diferentes funções para os

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tripulantes que se revezam a cada dois quartos. No período compreendido entre os toques de

alvorada (às 6 horas) e de silêncio (às 22 horas), os quartos e seus intervalos são marcados

por batidas do Sino de Bordo, feitas ao fim de cada meia hora, sendo uma batida singela para

indicar meia hora e uma dobrada para indicar 1 hora, podendo haver combinações entre estas.

Outra importante tradição de marinha refere-se ao uniforme. Todos os Oficiais da Armada de

países que foram aliados da Inglaterra durante as Guerras Napoleônicas usam a chamada

“Volta de Nelson” na última divisa do uniforme. Em 1797, na Batalha de Santa Cruz de

Tenerife, contra a Marinha de Guerra Espanhola, O Almirante Nelson foi atingido por um tiro

de mosquete e perdeu grande parte do braço direito e, a partir daí, para evitar que a manga do

uniforme ficasse pendente e vazia, ele descosturava um pequeno pedaço no meio da última

divisa, dava uma volta e pendurava a manga em um botão no peito: isto ficou conhecido

como o Nó de Nelson. A Real Marinha Britânica desde então passou a usar, no uniforme de

todos os Oficiais, o Nó de Nelson. A Marinha Portuguesa, aliada dos ingleses, adotou esta

tradição, e a nossa Marinha, herdeira de Portugal com a vinda da Corte Portuguesa em 1808,

também adotou-a até hoje. É interessante notar que mesmo as divisas na manga têm uma

tradição: foram colocadas pela Marinha Real para evitar que os Oficiais usassem as mangas

do uniforme para limpar o rosto suado, limpar o nariz etc. O fato de serem ásperas evitava que

fossem usadas como “lenços”.

Outra importante tradição é em referência ao Pavilhão Nacional. Na Marinha de

Guerra, a bandeira é sempre hasteada de manhã exatamente às 08h00min do horário local, e

arriada exatamente no instante do pôr do sol, com base em tabelas usadas em todos os órgãos

de Marinha. Há ainda certas simbologias quanto à bandeira: quando a mesma encontra-se a

meio-mastro é sinal de luto. Este costume teve origem na antiga marinha a vela: era usual que

os navios, como mostra de pesar pela morte de uma personalidade, desamantilhassem as

vergas, de modo a deixá-las desalinhadas e pendentes, em diferentes ângulos, e com todos os

cabos de laborar, de mastros e vergas folgados e pendentes. Esse aspecto de falso desleixo

reflete a tristeza pela morte. Também, em um Navio de Guerra, todo militar que entra, durante

o dia, ao pisar no “portaló”, volta-se para a popa e faz uma continência à Bandeira, que

mesmo não sendo vista por estar oculta por uma torre de artilharia ou de mísseis, por

exemplo, sempre está na popa, durante o dia. Este gesto é importante porque reflete que o

militar não serve a um governo, e sim à Nação, simbolizada pela Bandeira Nacional.

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Se alguém está se perguntando até agora o significado de algumas palavras escritas no

texto como derrota, fundear e portaló é porque provavelmente não faz parte do meio

marítimo, é aí que entramos em outra singularidade do homem do mar, a sua linguagem. Estas

palavras significam rumo, ancorar e porta de entrada do navio, respectivamente, e fazem parte

do dialeto marinheiro. Como afirma o Professor Doutor da Língua Portuguesa e representante

da Academia Brasileira de Letras, Evanildo Bechara, “no decorrer da história nem sempre o

vocábulo guarda o seu sentido etimológico, isto é, originário. Por motivos variados o sentido

ultrapassa os limites de sua primitiva esfera semântica e assume valores novos.” A linguagem

do homem do mar segue essa linhagem, é uma fala ímpar ao passo que uma palavra no

cotidiano, tal como derrota, torna-se outra de sentido totalmente diferente para aqueles que

são do mar. No alfabeto não se diz “a”, “b” ou “c” e sim alfa, bravo ou charlie, indo até zulu

(z); trata-se de um verdadeiro código internacional, comum a todos os navegantes.

Com efeito, há vários motivos para dizer que o marítimo é um arquétipo; suas

tradições, hábitos, linguagens e estórias são singulares. Não obstante, enquanto houver um

mar para navegar, lá estará ele, o marujo audaz que nada teme (nem mesmo a morte), a não

ser a própria solidão do mar azul por ele singrado e que, diferentemente dos vivos que temem

a morte e dos mortos que não reclamam da solidão, caminham entre as vagas e lembranças

saudosas do homem do mar plenamente identificado com sua sina e que, ao entardecer,

“encostado à amurada do navio” sente, no fundo de sua alma navegante, os versos de Castro

Alves: “Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima

saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos! - efêmeros filhos de minh'alma - levar uma

lembrança de mim às vossas plagas!”