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1 EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – DD. EROS GRAU – RELATOR DA ADPF 73 CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação civil sem fins lucrativos qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, inscrita no CNPJ sob nº 04.706.954/0001-75, com sede na Rua Pamplona, 1197, casa 4, São Paulo/SP, por meio de seu programa de justiça Artigo 1º, representada por seu Diretor Executivo e bastante representante nos termos de seu estatuto social, Dr. Oscar Vilhena Vieira, brasileiro, casado, advogado inscrito na OAB/SP sob o nº 112.967 (doc.1 e 2), vem respeitosamente à presença de V. Exa., por seus advogados constituídos (doc. 3), com fundamento no §2º do artigo 6º da Lei 9.882/99 manifestar-se na qualidade de Amicus Curiae na ADPF 73 ajuizada pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB, tendo por objetivo a procedência da argüição de descumprimento dos preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e do direito à saúde para que seja sanado o ato do Poder Público violador dos preceitos fundamentais apontados, consistente na edição da Lei n° 10.934, de 11.08.2004, sem a vinculação de recursos mínimos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde, culminando na omissão do cumprimento do disposto no artigo 77, I do ADCT, pelas razões e argumentos a seguir expostos.

amicus curiae ADPF 73 - conectas.org curiae ADPF... · Nos termos do §1º do artigo 102 da Constituição Federal e de acordo com a Lei 9.882/99, a argüição de descumprimento

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EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL – DD. EROS GRAU – RELATOR DA ADPF 73

CONECTAS DIREITOS HUMANOS, associação civil sem fins lucrativos

qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP,

inscrita no CNPJ sob nº 04.706.954/0001-75, com sede na Rua Pamplona, 1197, casa

4, São Paulo/SP, por meio de seu programa de justiça Artigo 1º, representada por seu

Diretor Executivo e bastante representante nos termos de seu estatuto social, Dr.

Oscar Vilhena Vieira, brasileiro, casado, advogado inscrito na OAB/SP sob o nº

112.967 (doc.1 e 2), vem respeitosamente à presença de V. Exa., por seus advogados

constituídos (doc. 3), com fundamento no §2º do artigo 6º da Lei 9.882/99

manifestar-se na qualidade de

Amicus Curiae na ADPF 73

ajuizada pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB, tendo por objetivo a

procedência da argüição de descumprimento dos preceitos fundamentais da

dignidade da pessoa humana, do direito à vida e do direito à saúde para que seja

sanado o ato do Poder Público violador dos preceitos fundamentais apontados,

consistente na edição da Lei n° 10.934, de 11.08.2004, sem a vinculação de recursos

mínimos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde, culminando na

omissão do cumprimento do disposto no artigo 77, I do ADCT, pelas razões e

argumentos a seguir expostos.

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1. DA POSSIBILIDADE DE MANIFESTAÇÃO COMO AMICUS CURIAE

NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO

FUNDAMENTAL

O instituto do amicus curiae teve sua inserção formal na legislação processual

constitucional com as leis 9.868/99 e 9.882/99, que dispõem sobre o trâmite das

ações declaratórias de inconstitucionalidade e das argüições de descumprimento de

preceito fundamental, respectivamente. Desde a edição de tais leis, inúmeros

memoriais, pareceres, arrazoados e documentos foram admitidos por este Egrégio

Supremo Tribunal Federal e juntados aos processos de controle concentrado de

constitucionalidade.

No que se refere às argüições de descumprimento de preceito fundamental, a lei

dispõe nos seguintes termos:

Art. 6º, Lei 9.882/99: (...)

§1º. Se entender necessário, poderá o relator ouvir as

partes nos processos que ensejaram a argüição,

requisitar informações adicionais, designar perito ou

comissão de peritos para que emita parecer sobre a

questão, ou, ainda, fixar data para declarações, em

audiência pública, de pessoas com experiência e

autoridade na matéria.

§2º. Poderão ser autorizadas, a critério do relator,

sustentação oral e juntada de memoriais, por

requerimento dos interessados no processo.

No entendimento deste Egrégio Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de

manifestação da sociedade civil em tais processos tem o objetivo de democratizar o

controle concentrado de constitucionalidade, oferecendo-se novos elementos para

os julgamentos.

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É o que se depreende da ementa de julgamento da ADIn 2130-3/SC:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.

INTERVENÇÃO PROCESSUAL DO AMICUS

CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI Nº 9.868/99 (ART.

7º, § 2º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA

ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA

DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE

CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE

ADMISSÃO DEFERIDO.

- No estatuto que rege o sistema de controle normativo

abstrato de constitucionalidade, o ordenamento positivo

brasileiro processualizou a figura do amicus curiae (Lei

nº 9.868/99, art. 7º, § 2º), permitindo que terceiros -

desde que investidos de representatividade adequada -

possam ser admitidos na relação processual, para efeito

de manifestação sobre a questão de direito subjacente à

própria controvérsia constitucional.

- A admissão de terceiro, na condição de amicus

curiae, no processo objetivo de controle normativo

abstrato, qualifica-se como fator de legitimação

social das decisões da Suprema Corte, enquanto

Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio

ao postulado democrático, a abertura do processo de

fiscalização concentrada de constitucionalidade, em

ordem a permitir que nele se realize, sempre sob

uma perspectiva eminentemente pluralística, a

possibilidade de participação formal de entidades e

de instituições que efetivamente representem os

interesses gerais da coletividade ou que expressem

4

os valores essenciais e relevantes de grupos, classes

ou estratos sociais.

Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº

9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora

da intervenção processual do amicus curiae - tem por

precípua finalidade pluralizar o debate

constitucional.” (grifamos)

De fato, com a possibilidade de manifestações da sociedade civil nas ações de

controle concentrado de constitucionalidade, busca-se a representação da pluralidade

e diversidade sociais nas razões e argumentos a serem considerados por este Egrégio

Supremo Tribunal Federal, conferindo, inegavelmente, maior qualidade nas decisões.

Desta forma, diante da previsão legal e da construção jurisprudencial acerca dos

limites da possibilidade de manifestações de organizações da sociedade civil na

qualidade de amicus curiae nas ações de controle concentrado, depreendem-se

alguns aspectos principais, quais sejam: a relevância da matéria discutida, no sentido

de seu impacto sócio-político; a representatividade e legitimidade material dos

postulantes e a pertinência dos argumentos apresentados, cabendo ao Relator do

processo a análise de sua admissibilidade dentro destes parâmetros.

A organização da sociedade civil subscritora deste amicus curiae trabalha com a

promoção dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, incluído neste rol o

direito à saúde, de que trata a presente ADPF 73.

A Conectas Direitos Humanos tem como objetivo estatutário promover, apoiar,

monitorar e avaliar projetos em direitos humanos em nível nacional e internacional,

em especial: I– promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da

democracia e de outros valores universais; VI – promoção de direitos estabelecidos,

por meio da prestação de assessoria jurídica gratuita, tendo, inclusive, quando

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possível e necessário, a capacidade de propor ações representativas

(www.conectas.org).

A participação da Conectas como amicus curie já foi apreciada por este Egrégio

Supremo Tribunal Federal nos autos da ADIn 3268, com o seguinte despacho:

“Admito, na condição de amici curiae, a Conectas

Direitos Humanos e o CDH, eis que se acham

atendidas, na espécie, as condições fixadas no art. 7º,

§2º da Lei n.º 9.868/99. (...) Impõe-se registrar, neste

ponto, que a razão de ser que primordialmente justifica

a intervenção do amicus curiae apóia-se na necessidade

de pluralizar o debate em torno da constitucionalidade

ou não de determinado ato estatal, em ordem a conferir

maior coeficiente de legitimidade democrática ao

julgamento a ser proferido pelo Supremo Tribunal

Federal, em sede de fiscalização normativa abstrata,

consoante pude enfatizar em decisão que proferi, como

Relator, na ADI 2130-MC/SC (DJU 02/02/2001 -

grifamos)

No mesmo sentido se deu a admissão na recentíssima argüição de descumprimento

de preceito fundamental 71, com base no artigo 6º da Lei 9.882/99:

“Junte-se aos autos a petição nº. 2430/2005. Em face

do artigo 6º, §1º, da Lei 9.882, de 3 de dezembro de

1999, admito a manifestação de Conectas Direitos

Humanos, (...) que intervirão no feito na condição de

amici curiae. À autuação para a inclusão dos nomes

dos interessados”. (27/05/2005) (grifamos)

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2. DO CABIMENTO DA PRESENTE ARQÜIÇÃO DE

DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

A argüição de descumprimento de preceito fundamental está prevista no parágrafo 1º

do artigo 102, nos seguintes termos:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,

precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

§1º. A argüição de descumprimento de preceito

fundamental decorrente desta Constituição será

apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da

lei.

Referido dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei 9.882 de 03 de

dezembro de 1999, dispondo sobre seu processo e julgamento. A constitucionalidade

da lei editada, no entanto, foi contestada pela ADIn 2231, ainda pendente de

julgamento por este Egrégio Supremo Tribunal Federal.

Não obstante, passada a análise liminar no âmbito de referida ADIn e suspensa a

aplicação em parte do artigo 1º, bem como deferida a liminar para suspender o § 3º

de seu artigo 5º, o restante da legislação permanece em pleno vigor. Assim já

ponderou o Exmo. Ministro Carlos Britto, quando do recentíssimo julgamento da

questão de ordem na ADPF 54:

“(...) tomando em linha de conta o fato de que há

decisões plenárias a prestigiar os desígnios da mesma

lei 9.882/99, que tenho feito? Tenho me rendido ao

princípio constitucional da presunção de validade dos

atos legislativos, de sorte a momentaneamente acatar o

instituto da ADPF tal como positivamente gizado”.

(grifamos)

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Em seu texto, a Lei 9.882/99 estabelece alguns critérios para admissibilidade da ação

de controle concentrado de constitucionalidade, previstos em seus artigos 1º e 4º, in

verbis:

Art. 1º. A argüição prevista no §1º do artigo 102 da

Constituição Federal será proposta perante o Supremo

Tribunal Federal e terá por objeto evitar ou reparar

lesão a preceito fundamental, resultante de ato do

Poder Público. (grifamos)

Art. 4º. (...)

§1º. Não será admitida argüição de descumprimento de

preceito fundamental quando houver qualquer outro

meio eficaz de sanar a lesividade. (grifamos)

Assim, de acordo com a previsão constitucional e legal, a argüição de

descumprimento de preceito fundamental tem os seguintes requisitos: i) tratar-se de

preceito fundamental; ii) ameaçado por ato do Poder Público; iii) sem outro meio

jurídico eficaz de evitar ou reparar a lesão. A presente ADPF 73 preenche os três

requisitos de admissibilidade, conforme se demonstrará a seguir.

2.1 Do descumprimento de preceito fundamental

O conceito de “preceito fundamental” não foi definido pela Constituição Federal nem

pela legislação específica. Seus contornos estão sendo definidos, portanto, a cada

decisão deste Egrégio Supremo Tribunal Federal e pela doutrina, que cada vez mais

se debruça sobre o tema.

No entanto, existem algumas normas que foram identificadas como fundamentais

pela própria Constituição Federal de 1988, entre elas: os princípios fundamentais

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contidos nos artigos 1º a 4º, os direitos e as garantias fundamentais constantes dos

artigos 5º a 17 e as chamadas “cláusulas pétreas”, contidas no artigo 60, § 4º. Dentre

estes dispositivos se encontram os direitos sociais.

O próprio Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 já

estabelece que o Estado Democrático constituído pelos representantes do povo será

“... destinado a assegurar o exercício dos direitos

sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-

estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como

valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista

e sem preconceitos...” (grifamos)

No artigo 6º, a Constituição Federal estabelece quais são estes direitos sociais

definidos como valores supremos da nossa sociedade, entre os quais está inserido o

direito à saúde:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o

trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência

social, a proteção à maternidade e à infância, a

assistência aos desamparados, na forma da

Constituição. (grifamos)

Ademais, o direito fundamental à saúde é hoje visto como condição essencial para o

cumprimento do postulado da dignidade da pessoa humana, bem como está

intrinsecamente ligado ao direito à própria vida, direitos fundamentais expressamente

previstos em nossa Constituição. De fato, dispõe o artigo 1º da CF/88, ao elencar os

fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela

união indissolúvel dos Estados e Municípios e do

9

Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático

de Direito e tem como fundamentos: (...)

III – a dignidade da pessoa humana; (...)

Do mesmo modo, o direito à vida está assegurado no artigo 5º, caput da Constituição

Federal, inserido no Título II que versa sobre os direitos e as garantias fundamentais:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos

estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do

direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e

à propriedade, nos seguintes termos: (grifamos)

Assim, os direitos à saúde, à dignidade da pessoa humana e à vida configuram, sem

sombra de dúvida, preceitos fundamentais a serem protegidos pelo instituto da

argüição de descumprimento, vez que essenciais ao exercício de todos os demais

direitos.

2.2 Do ato do poder público violador do preceito fundamental

Nos termos do §1º do artigo 102 da Constituição Federal e de acordo com a Lei

9.882/99, a argüição de descumprimento de preceito fundamental tem como missão

evitar ou reparar lesão a preceito fundamental causada por ato do Poder Público.

Trata-se, portanto, de ação de defesa do cidadão e da ordem jurídica constitucional

dos atos lesivos emanados pelo Poder Público, concebido de forma ampla e irrestrita

pela lei específica e pela Constituição. Assim, esclarece Nelson Nery Jr.:

“(...) Esse ato do Poder Público pode ser normativo ou

administrativo, comissivo ou omissivo. Todos esses

10

ficam sujeitos à fiscalização por meio da argüição de

descumprimento de preceito constitucional

fundamental.” (in Código de Processo Civil

Comentado, 2001, p. 1444).

No mesmo sentido, é o entendimento de André Ramos Tavares, ao esclarecer a

extensão da expressão “Poder Público” para fim de aplicação da argüição de

descumprimento de preceito fundamental:

“... Assim, os Poderes Executivo, Legislativo ou

Judiciário, de quaisquer dos níveis federativos, restam

absorvidos pela expressão. (...) Realmente, não se pode

deixar de admitir a sindicabilidade dos atos estatais

sob o pretexto de serem discricionários.

Discricionariedade não se confunde com

arbitrariedade. Ademais, a Administração deve

perseguir sempre a melhor das alternativas para o

interesse público. Por fim, frise-se que a argüição está

vocacionada com exclusividade para os preceitos

constitucionais fundamentais, sendo absolutamente

absurdo imaginar que um ato viole normas desse porte

e possa, ainda assim, restar ileso” (in Tratado da

argüição de preceito fundamental, 2001, p. 209)

Desta forma, todo e qualquer ato do Poder Público, seja emanado do Poder

Executivo, do Legislativo ou mesmo do Judiciário, que lesione preceito fundamental

pode ser argüido perante este Supremo Tribunal Federal.

No caso dos autos, o ato do Poder Público que descumpre os preceitos fundamentais

apontados está consubstanciado na elaboração da Lei 10.934/04, que dispõe sobre as

diretrizes para elaboração da lei orçamentária de 2005, sem a necessária vinculação

11

dos recursos mínimos estabelecidos pela Constituição Federal para aplicação em

ações e serviços públicos de saúde. Referida omissão é resultado conjunto do veto

presidencial aposto sobre o § 3º do artigo 59 do Projeto de Lei nº 3 de 2004-CN, bem

como da manutenção do veto pelo Congresso Nacional.

Ao regular o processo legislativo, a Constituição Federal de 1988 prevê a

possibilidade de veto a projeto de lei elaborado nas casas legislativas e levado à

apreciação do Presidente da República para sanção (art.66, CF).

A Prof.ª Carmem Lúcia Antunes Rocha assim dispõe acerca deste instituto:

“O veto é o ato formal e expresso pelo qual o titular

do poder executivo nega a sua aquiescência ao projeto

de lei submetido à sua apreciação, após a manifestação

e decisão sobre ele tomada pelo poder legislativo,

impedindo, em princípio, a sua transformação em

norma do sistema jurídico. Recusando a sanção o

titular do poder executivo - que é co-participe da

formação da lei - obstrui o processo legislativo e

impede, em princípio, o surgimento da lei. Dizemos em

princípio porque o veto é submetido, acompanhado de

sua justificativa e razões ao poder legislativo, que

sobre ele se manifesta, em votação, podendo inaceitá-

lo. Nesta hipótese prevalece a deliberação legislativa e

o projeto converte-se em lei, lei sem sanção. No Direito

Constitucional positivo brasileiro, o veto do poder

executivo (ou, no caso da Constituição Imperial, do

poder moderador) aos projetos de lei tem sido presença

constante. Significa, pois, que a lei, no Brasil, tem sido

tradicionalmente e salvo exceções expressas previstas

no próprio texto constitucional, resultado da vontade

12

compósita dos órgãos do legislativo e do executivo.”

(in Constituição e Constitucionalidade, Editora Lê,

1991, p. 172/173)

Desse modo, a Lei 10.934/04, objeto da presente ADPF, é resultado da vontade

conjunta dos órgãos do legislativo e do executivo. O veto aposto sobre o § 3º do

artigo 59 do Projeto de Lei nº 3 de 2004 – CN, bem como sua manutenção pelo

Congresso Nacional resultou na edição de uma lei de diretrizes orçamentárias para o

ano de 2005, que não faz qualquer menção à vinculação de recursos mínimos a

serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde.

O dispositivo vetado trazia a seguinte redação:

Art. 59.

(...)

§ 3º. Na execução orçamentária de 2005, a aplicação

mínima em ações e serviços públicos de saúde será

equivalente ao maior valor entre o efetivamente

empenhado e o mínimo previsto para aplicação em

2004 nessas ações e serviços, corrigido pela variação

nominal do PIB em 2004 em relação ao de 2003.”

Referido dispositivo visava ao cumprimento do disposto no art. 77 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias, com redação dada pela Emenda

Constitucional nº 29/00, que tem por finalidade última a alocação de recursos

públicos mínimos para assegurar a população seu direito fundamental à saúde, sendo

que a não previsão legislativa desse piso implica em clara violação a preceito

constitucional fundamental.

Com isso a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO para o exercício de 2005

dispõe de forma absolutamente genérica acerca dos recursos a serem incluídos

13

no orçamento da União para gastos com saúde, impossibilitando o cumprimento

do disposto na Constituição Federal.

A redação do artigo em vigência é a seguinte:

Art. 59. O orçamento da União incluirá os recursos

necessários ao atendimento: (...)

II - da aplicação mínima em ações e serviços públicos

de saúde, em cumprimento ao disposto na Emenda

Constitucional no 29, de 13 de setembro de 2000.

(...)

§ 2o Para os efeitos do inciso II do caput, consideram-

se como ações e serviços públicos de saúde a totalidade

das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os

encargos previdenciários da União, os serviços da

dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada

com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da

Pobreza, ressalvada disposição em contrário que vier a

ser estabelecida pela lei complementar a que se refere o

art. 198, § 3o da Constituição.

§ 3o (VETADO)

Ademais, cumpre salientar que o dispositivo vetado encontrava-se em perfeita

consonância com o entendimento dado pelo Tribunal de Contas da União, quanto à

base de cálculo imposta pela alínea b, do inciso I do art. 77 do ADCT.

Em sessão de 06/03/2002, entendeu o Plenário do TCU1 que a expressão “valor

apurado no ano anterior” deveria ser compreendida como o valor efetivamente

empenhado no ano anterior em ações e serviços públicos de saúde, para efeito de

definição do valor mínimo a ser despendido no exercício subseqüente.

1 Decisão 143/2002- TCU - Plenário

14

2.3 Da subsidiaridade

A Lei 9.882/99, em seu art. 4º, §1º, impõe que somente será admitida a argüição de

descumprimento de preceito fundamental se não houver outro meio eficaz para sanar

a lesividade. Não há dúvidas de que a presente argüição de descumprimento de

preceito fundamental é o único instrumento eficaz para sanar a lesão aos preceitos

violados, uma vez que a omissão configurada na elaboração da Lei 10.934/04 não

poderia ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, de constitucionalidade ou

de inconstitucionalidade por omissão.

De fato, conforme entendimento deste Supremo Tribunal, a Lei de Diretrizes

Orçamentárias é lei com efeitos concretos e não pode ser questionada pela via da

ADIn. É o que se depreende do voto do Exmo. Min. Carlos Veloso proferido por

ocasião do julgamento da ADI 2.484:

“(...) No que toca às leis com efeitos concretos, assim

atos administrativos em sentido material, a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no

sentido de não admitir o seu controle em abstrato. É

dizer, o Supremo Tribunal Federal não admite a ação

direta de inconstitucionalidade que tenha por objeto

leis com efeitos concretos.”

Não sendo, portanto, cabível as demais ações diretas de controle concentrado de

constitucionalidade, há de se entender possível a utilização da ADPF, conforme já

decidido pelo Exmo. Min. Celso de Mello, ao analisar o cabimento da ADPF 45,

transcrita na inicial desta argüição.

Desse modo, temos que a argüição de descumprimento de preceito fundamental

é o único meio eficaz para sanar a violação aos direitos à saúde, à dignidade da

pessoa humana e à vida, decorrentes de ato do Poder Público que se omitiu em

15

concretizar política pública constitucionalmente prevista para assegurar

referidos direitos fundamentais.

Assim, resta evidente o cabimento da presente Argüição de Descumprimento de

Preceito Fundamental 73, que deverá ser admitida por este Egrégio Supremo

Tribunal Federal e julgada procedente para que sejam sanadas as violações aos

preceitos fundamentais aqui descritos.

3. O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Mesmo antes da promulgação da Constituição de 1988, o direito à saúde já havia

sido reconhecido como direito fundamental. Com a constituição da Organização

Mundial da Saúde em 1946, a saúde deixou de ser conceituada por seu aspecto

negativo, qual seja, a ausência de enfermidades. Assim, passou a ser entendida como

“um estado de completo bem-estar físico, mental e social” e “gozar do melhor

estado de saúde que é possível atingir” passou a “constituir um dos direitos

fundamentais de todo o ser humano”. 2

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, seguindo o conceito

estabelecido, aborda a saúde em seu artigo 25, relacionando-a diretamente ao estado

de bem-estar do homem:

Artigo 25. I) Todo o homem tem direito a um padrão de

vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e

bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,

cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,

2 Constituição da Organização Mundial da Saúde – disponível em www.who.int, acessado em 04.07.05.

16

e direito à segurança em caso de desemprego, doença,

invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de

meios de subsistência em circunstâncias fora de seu

controle. (grifamos)

Outros instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos também

abordaram o tema, dentre os quais podemos destacar o Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.

Dispõe o artigo 12 do referido Pacto:

Art. 12 –

1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o

direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado

nível de saúde física e mental.

2. As medidas que os estados-partes no presente Pacto

deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno

exercício desse direito, incluirão as medidas que se

façam necessárias para assegurar:

a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade

infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças.

b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do

trabalho e do meio ambiente.

c) A prevenção e o tratamento das doenças epidêmicas,

endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta

contra essas doenças.

d) A criação de condições que assegurem a todos

assistência médica e serviços médicos em caso de

enfermidade.

17

No Brasil, o direito à saúde foi elevado à categoria de direito fundamental com a

promulgação da Constituição Federal de 1988. De fato, as constituições anteriores

pouco diziam acerca do tema3.

A Constituição do Império de 1824 previa a inviolabilidade dos direitos civis e

políticos, porém nada dispôs acerca dos direitos sociais, sendo garantido apenas o

“socorro público”. A Constituição da República de 1891 não fez qualquer menção ao

direito à saúde no texto constitucional.

A Constituição de 1934 foi a primeira a vislumbrar preocupações de caráter sanitário,

conferindo à União e aos Estados competência concorrente para “cuidar da saúde e

assistência pública”, bem como para adotar medidas de “higiene social”. As

Constituições de 1937 e de 1946 apenas conferiram à União competência para

legislar acerca da proteção à saúde, sem, no entanto, aprofundar o tema.

Por fim, a Constituição da República de 1967 estabeleceu genericamente

competência para a União estabelecer planos nacionais de saúde.

3 - Constituição Política do Império do Brazil de 1824 – “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. XXXI. A Constituição tambem garante os soccorros publicos.” - Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 – sem dispositivo relacionado à saúde. - Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 – “Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: II - cuidar da saúde e assistência públicas;” e “Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis; g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais.” - Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 – “Art 16 - Compete privativamente à União o poder de legislar sobre as seguintes matérias: XXVII - normas fundamentais da defesa e proteção da saúde, especialmente da saúde da criança.” - Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 – “Art 5º - Compete à União: XV - legislar sobre: b) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; e de regime penitenciário;” - Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 – “Art 8º - Compete à União: XIV - estabelecer planos nacionais de educação e de saúde;”

18

Assim, foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 a primeira a

reconhecer expressamente a saúde como um direito de todos e dever do Estado.

Nesse sentido, dispõe a CF/88 em seu artigo 196:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do

Estado, garantido mediante políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doença e

outros agravos e ao acesso universal e igualitário às

ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação. (grifamos)

Assim, o direito constitucional pátrio positivou o conceito de saúde desenvolvido no

âmbito internacional, uma vez que prevê ações e serviços destinados a sua promoção,

proteção e recuperação, deixando para trás o aspecto meramente medicinal da saúde.

Com isso, o Estado brasileiro se comprometeu a promover a saúde, não apenas

como prevenção da doença (proteção) ou mediante um processo curativo

(recuperação), posterior à ocorrência da enfermidade.

Visando à promoção da saúde, a Carta Magna estabeleceu um sistema único que

seguirá as diretrizes estabelecidas pelo art. 198 que, entre outras coisas, prevê a

necessidade de atendimento integral, nos seguintes termos:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde

integram uma rede regionalizada e hierarquizada e

constituem um sistema único, organizado de acordo

com as seguintes diretrizes: (...)

II - atendimento integral, com prioridade para as

atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços

assistenciais.

19

Do mesmo modo, para assegurar o bom funcionamento do Sistema Único de Saúde

estabelecido, a Constituição estabelece o modo pelo qual ele será financiado:

Art. 198. (...)

§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos

termos do art. 195, com recursos do orçamento da

seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

§2º. A União, os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços

públicos de saúde recursos mínimos derivados da

aplicação de percentuais calculados sobre:

I – no caso da União, na forma definida nos termos da

lei complementar prevista no § 3º; (...)

Assim, o financiamento das ações e serviços públicos de saúde pelo Sistema Único

de Saúde - SUS depende da aplicação de recursos financeiros mínimos pela União,

Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme dispõe o § 2º do art. 198 da CF/88.

Especificamente em relação aos recursos financeiros da União, objeto da presente

ADPF, deve-se aplicar ainda o disposto no artigo 77, I, b do Ato de Disposições

Constitucionais Provisórias, uma vez que a lei complementar prevista pelo § 3º do

art. 198 não foi editada. Dispõe referido dispositivo do ADCT:

Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos

mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de

saúde serão equivalentes:

I – No caso da União:

b) do ano 2001 ao 2004, o valor apurado no ano

anterior, corrigido pela variação nominal do Produto

Interno Bruto – PIB;

20

O dispositivo excluído do Projeto de Lei nº 3, de 2004-CN, objeto da presente

ADPF, visava justamente assegurar a aplicação de valores mínimos

constitucionalmente estabelecidos para as ações e serviços públicos de saúde, com

vistas à efetivação do direito fundamental à saúde.

A ausência de dispositivo de lei que disponha sobre os recursos públicos

mínimos para aplicação em saúde viola direito fundamental, na medida em que

impossibilita os meios para sua efetivação, esvaziando o sentido do direito

previsto pela Constituição.

A violação sistemática ao direito da saúde, perpetrada pelos atos do Poder Público

que excluem seus meios de efetivação, transforma referido direito fundamental em

mera norma programática, sem efetividade.

No entanto, conforme já ponderou este Egrégio Supremo Tribunal Federal, o direito

fundamental à saúde deve ser integralmente respeitado pelo Poder Público, que

deverá assegurar todos os meios necessários para sua realização prática, sob pena de

transformá-lo em promessa constitucional inconseqüente.

Esse entendimento pode ser ilustrado pelo seguinte acórdão, proferido por ocasião do

julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 271.286:

PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA

DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS -

DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO

GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER

CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF,

ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) -

RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O

DIREITO À SAÚDE REPRESENTA

21

CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL

INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. –

O direito público subjetivo à saúde representa

prerrogativa jurídica indisponível assegurada à

generalidade das pessoas pela própria Constituição

da República (art. 196). Traduz bem jurídico

constitucionalmente tutelado, por cuja integridade

deve velar, de maneira responsável, o Poder Público,

a quem incumbe formular - e implementar -

políticas sociais e econômicas idôneas que visem a

garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores

do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à

assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O

direito à saúde - além de qualificar-se como direito

fundamental que assiste a todas as pessoas -

representa conseqüência constitucional indissociável

do direito à vida.

O Poder Público, qualquer que seja a esfera

institucional de sua atuação no plano da organização

federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao

problema da saúde da população, sob pena de incidir,

ainda que por censurável omissão, em grave

comportamento inconstitucional.

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA

PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-

LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL

INCONSEQÜENTE.

O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da

Carta Política - que tem por destinatários todos os entes

políticos que compõem, no plano institucional, a

22

organização federativa do Estado brasileiro - não pode

converter-se em promessa constitucional

inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando

justas expectativas nele depositadas pela coletividade,

substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu

impostergável dever, por um gesto irresponsável de

infidelidade governamental ao que determina a própria

Lei Fundamental do Estado.

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS

A PESSOAS CARENTES.

O reconhecimento judicial da validade jurídica de

programas de distribuição gratuita de medicamentos a

pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus

HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da

Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e

representa, na concreção do seu alcance, um gesto

reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das

pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada

possuem, a não ser a consciência de sua própria

humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes

do STF. (RE 271.286 AgR/RS. Rel. Min. Celso de

Mello - 19.09.00 – grifo nosso)

Assim, o próprio Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, já apontou a

forma pela qual deve ser entendido o direito à saúde, inclusive em relação à sua

primazia frente aos demais direitos e interesses.

É neste contexto que deverá ser analisada a presente ADPF 73.

23

4. DO DESCUMPRIMENTO DO PRECEITO FUNDAMENTAL DO

DIREITO À SAÚDE QUANTO AOS RECURSOS MÍNIMOS

CONSTITUCIONALMENTE ESTABELECIDOS PARA APLICAÇÃO

EM AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

A Constituição Federal de 1988, por meio do disposto nos parágrafos §§ 2º e 3º do

art. 198, bem como do art. 77 do ADCT, acrescidos pela Emenda Constitucional

29/00, para assegurar o direito à saúde para a população brasileira determinou

recursos mínimos a serem aplicados pelos entes federativos em ações e serviços

públicos de saúde.

De acordo com o disposto no artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, o valor mínimo a ser aplicado pela União nas ações e serviços públicos

de saúde deve corresponder ao valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação

nominal do Produto Interno Bruto – PIB.

Conforme dados do Ministério da Saúde, divulgados em relatório intitulado “A

Vinculação Constitucional de Recursos para Ações e Serviços Públicos de Saúde –

EC nº 29/2000” (ANEXO 1), a União aplicou em ações e serviços públicos de

saúde valores inferiores ao previsto pela Constituição Federal.

O PIB e a Despesa do MS – 2000 a 2003

Ano Despesa MS com

saúde (EC 29)

em R$ milhões

Variação da

Despesa MS com

saúde (EC 29)

PIB nominal

em R$

milhões

Variação

do PIB

Nominal

2000 20.351 10,89% 1.101.255 13,08%

2001 22.474 10,43% 1.198.736 8,85%

2002 24.737 10,07% 1.346.028 12,29%

2003 27.181 9,88% 1.556.182 15,61%

24

A variação nominal do PIB no ano anterior deve ser a base de cálculo para

aferição dos gastos mínimos a serem realizados em ações e serviços públicos de

saúde.

Conforme se observa na tabela acima, entre 2001 e 2002 a variação do PIB

nominal foi de 12,29%. A variação das despesas do Ministério da Saúde entre

2002 e 2003 foi de 9,88%. Desse modo, no ano de 2003, as despesas

empenhadas pela União em ações e serviços de saúde ficou muito aquém do

mínimo estabelecido pela Constituição Federal.

Esta também foi a conclusão do parecer prévio conclusivo do Tribunal de Contas

da União referentes ao exercício de 2003, apresentado na inicial da presente

ADPF.

Aplicando-se o mesmo raciocínio para os anos anteriores, e de acordo com os

dados apontados na tabela acima, podemos verificar que a variação das despesas

empenhadas pelo Ministério da Saúde nas ações e serviços públicos de saúde

delimitadas pela EC 29, não atingiram a variação nominal do PIB em nenhum

dos anos analisados.

Desta forma, restou devidamente caracterizado o descumprimento ao limite

mínimo estabelecido no art. 77, inciso I, alínea b, do ADCT, o que importa em

flagrante descumprimento do preceito fundamental do direito à saúde pelo Poder

Público.

Este descumprimento reiterado do financiamento mínimo exigido pela

Constituição é elemento determinador na situação de sucateamento da saúde

pública no Brasil, que está longe de efetivar uma assistência à saúde digna para

todos os brasileiros.

25

5. SUCATEAMENTO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE: AS

CONSEQÜÊNCIAS DO DESCUMPRIMENTO DOS VALORES

MÍNIMOS ESTABELECIDOS PELA CONSTITUIÇÃO

Conforme estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE4, a

população brasileira no ano de 2005 é de 183.989.851 milhões de habitantes. A

Constituição Federal de 1988 garante a todas as pessoas residentes no Brasil o

direito à saúde, mediante o acesso universal e igualitário às ações e serviços

para sua promoção, proteção e recuperação, visando assegurar a existência

digna, um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito.

A assistência à saúde no Brasil é prestada por meio do Sistema Único de Saúde –

SUS, sistema de natureza pública que tem seus serviços administrados pelos

governos federal, estaduais e municipais, sendo que em locais onde há falta de

serviços públicos, o SUS pode realizar a contratação de serviços de hospitais ou

laboratórios particulares, sendo os serviços pagos mediante o repasse de verbas

públicas.

Estatísticas de saúde elaborados pelo IBGE, divulgadas na pesquisa Assistência

Médico-Sanitária – 2002 (ANEXO 2), revelam que o Brasil possui 65.343

estabelecimentos de saúde, sendo 38.347 estabelecimentos públicos e 26.996

privados, dos quais 8.675 são vinculados ao Sistema Único de Saúde – SUS.

Estabelecimentos de saúde por natureza – Brasil, 2002

59%28%

13%

públicos privados privados - SUS

4 Disponível no site www.ibge.gov.br, consultado em 28.06.2005.

26

Nos estabelecimentos de saúde que possibilitam a internação, segundo a mesma

pesquisa, existem 471.171 leitos disponíveis, sendo 146.319 em estabelecimentos

públicos e 324.852 em estabelecimentos privados, dos quais 269.028 vinculados

ao SUS.

Leitos para internação em estabelecimentos de saúde por natureza – Brasil, 2002

31%12%

57%

públicos privados privados - SUS

A Organização Mundial de Saúde - OMS não estabelece taxas ideais de número

de leitos por habitantes a serem cumpridas por seus países-membros. No entanto,

informe elaborado por referida organização sobre a saúde no mundo em 2000,

revela que o Brasil ocupa a vergonhosa 125ª posição entre os 191 países

membros da OMS, no que diz respeito à qualidade da saúde pública

(ANEXO 3).

Este atestado de má qualidade da saúde pública brasileira tem diversos motivos.

De acordo com os Indicadores e Dados Básicos para a saúde – IDB-20045, em

2003 o Brasil contava com 254.886 médicos atuando em todo o sistema de saúde.

Este número representa uma média de 1,42 médico para cada 1.000 habitantes, ou

142 médicos a cada 100.000 habitantes.

5 Os Indicadores e Dados Básicos para a Saúde (IDB) são produto da ação integrada das instituições responsáveis pelos principais sistemas de informação de base nacional utilizados, sendo elas: Ministério da Saúde, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Ministério da Previdência Social. Os indicadores estão disponíveis para consulta na Internet: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/idb2004/matriz.htm#recur – consultado em 06.07.05.

27

No ano 2000, o Brasil possuía 127 médicos por 100.000 habitantes6, e este

número colocava o país em 13º lugar no ranking de médicos por habitantes

entre os países da América Latina e Caribe - um verdadeiro vexame se

levarmos em consideração que o Brasil possui um PIB quase 50 vezes maior

que o do Uruguai7, por exemplo, que ocupa o segundo lugar no ranking.

Médicos por cada 100.000 habitantes: América Latina e Caribe, 20008

530

370

268

236

216

186

170

167

152

141

140

130

125

116

110

110

93

93

86

83

25

18

8

127

Cuba

Uruguai

Argentina

Venezuela

R. Dominicana

México

Equador

Panamá

Bahamas

Costa Rica

Jamaica

Bolívia

Brasil

Barbados

Colombia

Paraguai

Chile

Guatemala

Peru

Nicaragua

Honduras

Suriname

Guiana

Haiti

6 Fonte: Universidad de Los Trabajadores de América Latino - www.utal.org 7 Conforme valores obtidos para o ano de 2003 disponíveis na página da internet: www.ipib.com.br – acessado em 13.07.05 8 Foram omitidos alguns países listados após a 13ª posição.

28

O Brasil, em comparação com outros países, investe muito pouco em saúde. De

acordo com tabelas divulgadas pelo Ministério da Saúde em relatório anexo, nos

anos de 2000 a 2003, o Brasil gastou cerca de R$ 174 bilhões de reais com

assistência à saúde, sendo a União o ente federativo que arcou com a maior parte

das despesas.

Despesas com Ações e Serviços Públicos de Saúde, em R$ milhões –

Brasil, 2000-2003

Federal Estadual Municipal TOTAL

Ano Despesa % do

PIB

Despesa % do

PIB

Despesa % do

PIB

Despesa %

PIB

2000 20.351 1,85 6.313 0,57 7.404 0,67 34.069 3,09

2001 22.474 1,87 8.270 0,69 9.269 0,77 40.013 3,24

2002 24.737 1,84 10.309 0,77 11.759 0,87 46.805 3,48

2003 27.181 1,75 12.224 0,79 14.219 0,91 53.624 3,45

Em 2001, o Brasil gastou o equivalente a 3,2% do PIB em saúde pública.

Vejamos a comparação com outros países da América Latina, também disponível

no relatório do Ministério da Saúde anexo:

Gasto Público com Saúde em 2001 (% do PIB) – Países da América Latina

6,2

5,1

3,7 3,6 3,5 3,2 3,12,7

2,3

0

1

2

3

4

5

6

7

Cuba Argentina Venezuela Colômbia Bolívia Brasil Chile México Equador

29

A situação fica ainda mais crítica se compararmos os gastos públicos com saúde

realizados pelo Brasil, com os gastos realizados nesta área pelos países do G79.

De fato, o PIB do Brasil no ano 200110 o colocava na posição de décima

economia mundial, razão pela qual seus gastos em saúde pública em relação

ao PIB deve ser equiparado ao de países de economia equivalente, não aos de

países da América Latina, que possuem um PIB bem inferior ao do Brasil.

Gasto Público com Saúde em 2001 (% do PIB) – Brasil e Países do G7

8,17,3

6,76,3 6,2 6,2 6,2

3,2

0

1

2

3

4

5

6

7

8

9

Alemanha França Canadá Itália Inglaterra Japão EUA Brasil

Além disso, outros indicadores apontam para o descumprimento do direito

fundamental à saúde no Brasil.

A Organização Mundial de Saúde recomenda, para uma boa assistência

farmacêutica básica, por exemplo, um investimento de R$ 6 a R$ 8 por

habitante/ano. O Brasil, conforme dados do Conselho Regional de Medicina de

Minas Gerais11, há cinco anos, investe cerca de R$ 2 por habitante para abastecer

as unidades básicas de saúde.

9 Conforme tabela do relatório do Ministério da Saúde anexo. 10 Disponível em www.ipib.com.br – acessado em 13.07.05 11 Disponível em www.crememg.org.br – consultado em 01.07.05.

30

Pesquisa acerca da qualidade do serviço de saúde, realizada pelo Ministério da

Saúde12 com os usuários do SUS, revela que as filas nas emergências dos

hospitais, o longo tempo de espera para a realização de exames e cirurgias e a

incapacidade das unidades de saúde de acolherem os pacientes são queixas

freqüentes entre os usuários do sistema único de saúde.

Estudos realizados pelo Conselho Nacional de Medicina13 criticam o longo tempo

de espera para internação: em média 6,2 dias; maior do que o próprio período de

internação, estimado em 5,7 dias.

A pesquisa ainda indica que, nos hospitais públicos, em média 69.088 pessoas

ficam por dia na espera de internação, mais do que o número de pacientes

que conseguem ser internado diariamente, em média 59.432!

Dados como os ora apontados servem para ilustrar as conseqüências da não

aplicação dos recursos mínimos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988

em ações e serviços públicos de saúde, importando em flagrante desrespeito aos

preceitos fundamentais do direito à saúde e da dignidade da pessoa humana, a

serem sanados por este Egrégio Supremo Tribunal Federal. Nos dizeres do Exmo.

Ministro Celso de Mello, no julgamento do HC 70.389, de 2001:

“É preciso enfatizar – e enfatizar com veemência, Sr.

Presidente – que este Supremo Tribunal Federal tem um

compromisso histórico com a preservação dos valores

fundamentais que protegem a dignidade da pessoa

humana. O Estado não pode prescindir na sua atuação

institucional da necessária observância de um dado

axiológico cuja essencialidade se revela inafastável e que

se exterioriza na preponderância do valor ético

12 Disponível em www.saude.gov.br – consultado em 13.07.05. 13 Conselho Nacional de Medicina – www.conselho.saude.gov.br – consultado em 01.07.05.

31

fundamental do Homem. Esse dado axiológico essencial,

que encontra sua expressão jurídica na proclamação

formal dos direitos fundamentais da pessoa humana, não

pode ser ignorado pelo Estado no desempenho das

atribuições político-jurídicas que lhe competem”.

5. PEDIDO

Ante o exposto, requerem:

a) seja a presente manifestação da Conectas Direitos Humanos admitida na

qualidade de amicus curiae na ADPF 73, nos termos do artigo 6º, § 2º, da

Lei nº 9.882/99;

b) caso negado o item anterior, requerem que estes argumentos e documentos

sejam recebidos como memoriais;

c) que Vossas Excelências julguem procedente a presente argüição de

descumprimento de preceito fundamental 73.

Protestam pela juntada aos autos da ADPF 73 dos documentos anexos a este

amicus curiae e pela possibilidade de sustentação oral.

São Paulo, 14 de julho de 2005.

Oscar Vilhena Vieira Eloísa Machado de Almeida

Diretor CONECTAS OAB/SP 201.790

Marcela Vieira

OAB/SP 136.738-E