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LUTANDO COM DANDARA: TEMATIZANDO LUTAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Ana Cristina Godoy Leonardo de Carvalho Duarte

Ana Cristina Godoy Leonardo de Carvalho Duarte

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lutAndo com dAndArA: temAtizAndo lutAS nA educAção infAntil

Ana Cristina Godoy

Leonardo de Carvalho Duarte

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Ela é a mais bela, rainhaNão é cinderelaEla é forte e guerreira que lutou por nósHoje brilha estrelaDandara eu sou sua voz

Pra que princesa?Se eu tenho rainhaTanta nobreza, mas eu sou da magia

Dandara foi quem lutouDandara que guerreou, Dandara (4x)

Para cada ancestral que nos deu vida nessa caminhadaSementes plantadas, lutas travadasHoje honramos o teu nomeAssim como Dandara

(Dandara – Vanessa Borges – grifo nosso - Clique para ouvir)

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Dandara dos Palmares, mulher, negra, guerreira, que afrontou a escra-vidão no período colonial nas últimas décadas do século XVII, lutando ao lado de homens e outras mulheres nas batalhas em defesa do quilombo de Palmares, estabelecido no século XVII na Serra da Barriga, região de Alagoas. Companheira de Zumbi, com quem teve três filhos, participou ativamente das lutas e estratégias de resistência, bem como, de toda orga-nização política, econômica e familiar do quilombo. Ouvir, cantar e dançar a música de Vanessa Borges, em homenagem à Dandara, nos inspirou e moveu nas atividades iniciais e durante toda tematização das lutas.

Dandara foi a “musa” e a “personagem” que nomeou a turma da profes-sora Ana Cristina e mais 30 crianças de 4 e 5 anos, em 2019. Além de batizar a turma, sua vida e obra fizeram parte dos projetos de estudo e investiga-ções do grupo durante todo o ano. A EMEI tem em seu projeto político pe-dagógico, objetivos de valorização da cultura africana e afro-brasileira, em consonância às demandas da lei 10.63968 de 09 de janeiro de 2003, e prevê a promoção de práticas em direção da equidade racial e de gênero, por isso, naquele ano escolheu mulheres negras69 para inspirar os projetos didáticos de todas as turmas.

Logo nos primeiros investimentos de pesquisa que realizamos encon-tramos com a canção de Vanessa Borges, e selecionamos para apresentar para as crianças através da audição da música e leitura da letra. Quando realizamos esse momento as crianças demonstraram muito interesse can-tando e dançando a música. Nas pesquisas iniciais sobre a vida da perso-nagem, realizadas em casa com as famílias e também na escola, com auxí-lio de computadores e celulares, descobrimos as habilidades da heroína e guerreira nas lutas contra a escravidão.

A possível relação da personagem com a capoeira nos fizeram pensar que essa deveria ser a prática corporal a ser tematizada nos tempos desti-nados ao território da cultura corporal. Contudo, resolvemos iniciar com

68 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.69 Além de Dandara dos Palmares, foram homenageadas, Elza Soares, Ivone Lara, Clementi-na de Jesus, Leci Brandão, Sandra de Sá e Lia de Itamaracá.

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uma proposta mais ampliada, conversando com as crianças e reconhecen-do seus saberes e representações sobre as lutas, por isso, definimos como objetivos iniciais vivenciar lutas e ampliar e aprofundar os conhecimentos das crianças sobre as lutas. Nossas experiências aconteceram entre os me-ses de abril e agosto e foram planejadas e desenvolvidas em parceria entre uma pedagoga, professora regente da turma, e um professor de Educação Física, colaborador que desenvolvia pesquisa na escola no período.

Em uma das nossas rodas iniciais, na área externa ao ar livre...

Criança 1 – “Ela lutou por nós”.Léo - Certo, mas o que vocês acham que ela fez?Criança 2 – “Ela lutou com um instrumento”.Criança 3 – “Ela casou com Zumbi dos palmares”.Criança 4 – “Capoeira”.Criança 5 – “Ela lutou com um pauzinho”.Léo – Ah! Olha só o Natan acha que a Dandara lutou capoeira. E a Aila falouque ela fez uma luta com um pauzinho.Criança 6 – “Não ela tocou um instrumento com o pau”.Criança 7 – “Ela casa com Zumbi e o Zumbi é do Palmares”.

Uma formiga aparece, mobiliza todo grupo e desmancha toda roda. A professora Ana Cris retoma a atenção do grupo e continuamos...

Criança – “Eu acho que o instrumento era um violão”.Ana Cris – Léo será que só a capoeira que luta?Criança – “Meu irmão luta capoeira”.Léo – Vocês ouviram o que a Lívia falou? Que o irmão dela luta capoeira?Crianças – “Sim”.Léo – A capoeira é uma forma de lutar. Quem conhece outra forma?Criança – “Meu pai vai numa academia para lutar de boxe”.Léo – Boxe também é outra luta. Será que a Dandara lutou capoeira e boxe?Criança – “Luta tem que usar uma espada”.Léo – Vocês acham que luta tem que usar uma espada?Criança – “Os lutadores lutam na academia”.

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Criança – “Só o Batman lutou”.Léo – Será que só os super-heróis lutam?Criança – “Acho que a Dandara lutou igual o Batman, em cima do telhadode uma casa”.Criança – “Pra lutar tem que ter duas pessoas”.Criança – “Minha mãe lutou, ela lutou em um ringue”.

Uma criança chora, o colega lançou uma pedrinha que bateu no olho dela, novamente as crianças dispersam.

Criança – “Eu acho que ela luta com arco e flecha também”.Léo – Que legal, será que tem luta com arco e flecha? Como podemos des-cobrir se todas essas coisas que estamos falando existem?Criança – “Perguntar na rua”.Ana Cris – Esse é um jeito Léo?Léo – Sim, podemos descobrir algumas coisas perguntando na rua.Criança – “Perguntando em casa”.Criança – “Perguntando pra muitas pessoas”.Léo – Muito boas essas ideias. Então esse grupo quer saber mais sobre lu-tas porque ouviu na música que a Dandara lutou, certo?Crianças – “Sim”.Léo – E nesse grupo tem alguém que luta?Uma criança levanta, faz um chute no ar e diz “eu sei lutar assim” outrascrianças levantam fazem movimentos de chutes e socos e repetem “eu seiassim, ó Léo”.Léo – Então quem sabe lutar levanta e mostra...Várias crianças foram mostrando...

Em seguida fomos incentivando as crianças fazerem e os colegas a repe-tirem o gesto que o colega fez. Após alguns minutos envolvidos nessa vi-vência as crianças começaram a correr e distanciar do espaço, então cha-mamos o grupo para retornar para sala. Enquanto nos dirigíamos para lá algumas crianças falaram, “Léo tem luta de arma também”.

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Para o encontro seguinte planejamos a leitura de imagens de diferen-tes lutas, selecionamos várias imagens de pessoas lutando, cuidamos para que em nossa seleção de imagens houvesse diferentes corpos representa-dos. Fizemos uma roda, desta vez na própria sala de convivência da turma e começamos a conversa relembrando a atividade anterior. Uma criança, disse que o amigo bate porque quer lutar. Perguntamos para a turma se bater era lutar e algumas crianças disseram “não”. Uma menina disse que era apanhar, perguntamos se luta era apanhar e algumas crianças também disseram “não”.

Depois começamos conversar sobre as imagens. Passamos mostrando e perguntando o que as crianças achavam que era cada imagem. As crianças foram falando várias coisas sobre as imagens: “luta de boliche”, “karatê”, “tem uma ficha amarrada”, “capoeira”, “o instrumento que tem na nossa sala”. Após passar na roda mostrando as imagens, mudamos a estratégia e começamos passar as imagens nas mãos das próprias crianças pedindo para observar e depois passar para o colega ao lado. Fomos passando várias imagens ao mesmo tempo e as crianças foram vendo, algumas comentan-do, algumas brigando para não passar a imagem, algumas segurando mais de uma imagem nas mãos.

Então pedimos para as crianças colocarem as imagens no centro da roda e propusemos outra estratégia. Chamávamos uma ou duas crianças e pedía-mos para elas encontrarem a imagem conforme o enunciado, por exemplo: João, encontra “uma foto com mulher lutando”; Pedro e Bia têm que encon-trar “uma foto com crianças lutando”. Quando a/as criança/as escolhiam a imagem no centro da roda pedíamos para ela/as mostrar/em aos colegas e perguntávamos se eles concordavam com a escolha, se havia na imagem “mulheres lutando”, ou “crianças lutando” e se conheciam aquela luta.

Houve um momento onde pedimos para as crianças encontrarem foto “com pessoas gordas lutando” e uma criança que estava ao nosso lado disse baixinho, “Léo, minha mãe disse que não é gorda é pessoa fora do peso”. Então perguntamos “qual peso?” e a criança ergueu as mãos com gesto e expressão de não saber. Bem nessa hora uma criança derrubou água na roda, várias crianças levantaram, outras começaram pegar as imagens para evitar molhar, dois garotos começaram disputar as imagens chegan-

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do a rasgar uma delas, e a roda se desfez. Depois de alguns minutos, entre enxugar o chão e mediar os conflitos acabamos perdendo a fala sobre “pes-soas gordas” e “fora do peso” e estabelecemos uma nova estratégia com intenção de sintetizar aquele momento. Então passamos a fazer perguntas para as crianças responderem coletivamente, foram elas:

Léo – Como eram as pessoas que vimos nas imagens?Silêncio – alguns segundos.Léo – As pessoas que nós vimos lutando nessas fotos eram iguais?Crianças – “Não”Léo – Quem viu fotos com idosos lutando?Várias Crianças falando ao mesmo tempo – “Eu”, “Eu viu”, “Eu”, “Eu vi”, “Eu também”.Léo – Então levanta a mão, quem viu nas fotos crianças lutando?Todas as crianças levantaram a mãoLéo – Quem viu homens e mulheres lutando juntas?Várias crianças levantam as mãos, muitas falam junto “eu vi”, algumas di-zem “eu não”.Léo – Quem viu pessoas usando calça na luta?Algumas crianças levantam a mãoLéo – Quem viu pessoas usando roupas diferentes? Algumas crianças levantam a mão.Léo – quem viu foto com índios lutando? Algumas crianças levantam a mãoAproximando-se o horário de saída das crianças finalizamos a conversa.

Para o encontro seguinte pensamos em selecionar e exibir vídeos de diferentes lutas para as crianças, mas diante da dificuldade de tempo para fazer a seleção dos vídeos e da empolgação das crianças com as imagens resolvemos explorá-las mais um dia, deixando os vídeos para o próximo momento. Pensando em explorar as gestualidades das lutas, fixamos as imagens ao redor da quadra e perguntamos às crianças se elas achavam que conseguiriam fazer movimentos parecidos com os que viram nas ima-

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gens. Logo uma criança disse “a gente pode imitar” e outra questionou “como vai imitar aquela luta se não tem uma espada?” Então perguntamos o que ele e as outras crianças achavam que podíamos fazer e elas começa-ram dar ideias: “pode pegar um pauzinho”; “pode fazer assim fingindo que tem uma espada”; “pode pegar uma coisa no anexo”.

As crianças foram circulando e tentando reproduzir as cenas das lutas, em duplas, grupos ou sozinhas. Dois garotos ficaram quase todo o tempo brincando de luta, várias crianças foram chamando para mostrar que esta-vam conseguindo. Ficamos surpresos com o interesse da turma circulando livremente entre as imagens e tentando fazer os gestos com os colegas. Apenas algumas crianças dispersaram e entraram em outras brincadeiras. Enquanto as crianças faziam as posições nós fotografávamos.

Depois da vivência fizemos uma roda e perguntamos o que as crianças acharam. Elas falaram coisas como “foi legal”; “foi muito legal”, “eu gostei”, “eu também gostei”, “eu consegui fazer tudo”, “eu fiz do meu jeito”. Também perguntamos se foi difícil, e algumas crianças disseram “sim” enquanto a maioria disse que “não”. Então perguntamos para as crianças: “se nós conseguimos fazer coisas parecidas com o que vimos nas fotos, será que também conseguimos fazer algumas dessas lutas aqui na escola?” Algumas crianças responderam “não” e a maioria disse que “sim” uma criança disse “podemos fazer do nosso jeito”.

Também voltamos a perguntar se as crianças já sabiam como se chama-va alguma daquelas lutas que estávamos “imitando”, mas nenhuma criança

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falou o nome das lutas nesse momento. Então perguntamos se achavam importante saber os nomes das lutas que nós estávamos conhecendo e elas disseram que “sim”. A professora Ana Cris sugeriu enviar as fotos para casa (cada criança levou uma imagem) para as crianças descobrirem junto com as famílias o nome e mais algumas informações sobre a referida luta. As crianças acharam uma ótima ideia e assim organizamos uma atividade de pesquisa “para casa”.

Continuamos nossa tematização com a assistência de um vídeo com diferentes tipos de lutas, selecionamos e baixamos vários vídeos curtos no Youtube e fizemos edição e montagem de um vídeo único para deixar a atividade mais fluida, evitando interrupções ou risco de problemas com conexão durante a exibição. Conversamos com as crianças, recordando atividades anteriores que realizamos e contamos que nesse dia veríamos vídeos de várias lutas e conversaríamos sobre eles. Também combinamos que se alguém quisesse falar algo podia levantar a mão, algumas crianças já levantaram a mão e falaram de coisas que havíamos feito anterior-mente, ou perguntas de outra ordem, como por exemplo, “quantos anos você tem Léo?”

Quando iniciamos a assistência do vídeo as crianças foram imedia-

tamente comentando... “boxe”, “é boxe, meu pai faz boxe”, “capoeira”, “o instrumento que a gente tem na sala pró”, se referindo ao berimbau. “As mulheres lutando capoeira”, “que luta é essa?”, “ele é velhinho”. Além dos comentários houve momentos de vibração e comemoração de todo grupo,

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dos meninos ao ver determinados trechos do vídeo, e das meninas ao ve-rem outros trechos. Após alguns minutos de exibição o vídeo parou repen-tinamente, no primeiro momento não entendemos o que houve. Quando o vídeo estava reiniciando interrompeu novamente e vimos uma criança pondo o dedo no botão de liga/desliga do PC e entendemos o que havia ocorrido, falamos com a criança que não podia fazer aquilo e Cris sentou na frente do PC para evitar que ocorresse novamente.

Alguns minutos depois conseguimos reiniciar os equipamentos e vol-tamos para o ponto do vídeo onde havia interrompido. Em alguns trechos as crianças levantaram e reproduziram os movimentos que estavam visu-alizando e já começaram a lutar. Deixamos alguns minutos e depois inter-rompemos para evitar que houvesse machucados e também relembrar o combinado de ver o vídeo com atenção para conversarmos depois. Quando o vídeo finalizou propusemos fazer roda para conversar, mas as crianças estavam eufóricas querendo repetir os movimentos que viram. Nós tenta-mos controlar para realizar a conversa, mas as crianças não conseguiam ficar paradas. Quando perguntamos sobre quais lutas tinham visto no ví-deo falaram “boxe”, “capoeira”, “karatê” e uma criança disse “eu vi uma as-sim...” levantou e faz o gesto de chute, daí várias crianças levantaram e começaram a realizar outros gestos.

Insistimos em controlar os corpos e retomar a conversa pedindo para as crianças se sentarem e fazerem silêncio para escutar, mas só funcionou

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por alguns segundos. Então combinamos de encostar-se às paredes e fo-mos chamando as crianças para irem mostrando os movimentos, um por vez. As meninas ficavam mais tímidas e algumas não quiseram mostrar, depois começaram fazer. Algumas crianças começaram fazer em dupla, di-zendo que precisa ser com o colega e simulavam a luta. Depois que todos tiveram a chance de demonstrar, finalizamos e voltamos para sala.

Sensíveis à dinâmica das crianças na atividade anterior, que apontava para o interesse de experimentar mais intensamente as lutas, nas semanas seguintes realizamos novas vivências, desta vez experimentando algumas brincadeiras, que também são classificadas como jogos de combate e co-mumente são sugeridas como atividades para introdução do tema lutas com as crianças pequenas. Entre elas, o cabo-de-guerra ou jogo-de-corda; o braço-de-ferro ou quebra-de-braço.

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Em um dos encontros, ao chegar à quadra e ver a corda as crianças dis-serem que íamos “pular corda”, então perguntamos se pular corda era uma luta, elas disseram que “não” e uma criança falou que era “cabo-de-guerra”.

Léo – E cabo de guerra é uma luta?Crianças – “Sim”.Léo – Vocês viram o cabo-de-guerra no vídeo das lutas?Crianças – “Sim”.Léo – Quem estava fazendo cabo-de-guerra?Crianças – “Os índios”.Léo – Só os índios?Crianças – “As crianças”.Léo – Nós vimos crianças fazendo cabo-de-guerra no vídeo?Criança – “Sim, na aula do judô”.Criança – “É, com uma faixa, puxando”.Léo – Certo, então hoje nós vamos fazer o cabo de guerra, mas como agente faz?

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Criança – “Um grupo fica de um lado e outro do outro e puxa”.Léo – Ah então tem que separar os grupos?Crianças - “Sim”.Léo – E como a gente vai fazer?Criança – “Desse lado fica um grupo e do outro o outro grupo”Criança – “Pode escolher uma criança e ela escolhe”.Léo - Então temos duas ideias aqui da Maísa e da Lívia. Quem concorda com a Maísa de separar desse lado um time e do outro o outro levanta a mão. Quem concorda com a Lívia de escolher uma criança levanta a mão.A maioria escolheu a sugestão da Lívia então escolhi as crianças e elas fo-ram escolhendo as outras para formar os times.Léo - E agora?Criança - Criança – “Pega a corda e tem que puxar”.Entregamos a corda e as crianças já começaram a puxar.

Após alguns segundos de puxa e estica, interrompemos e combinamos de esperar todos segurarem, depois que todos seguraram sugerimos contar até três e dizer “já”, aí podiam começar e assim fizemos. Quando uma criança do grupo conseguiu sentar no murinho paramos, mostramos o que havia acon-tecido e perguntamos o que fazíamos, as crianças disseram que o grupo ga-nhou, era o ponto e começava novamente. Então entendemos que quando a última criança do time sentava no murinho acabava e o time marcava ponto. Recomeçamos e o mesmo time marcou o segundo ponto. Sugerimos os times trocarem de lado e o mesmo time marcou o terceiro ponto.

Uma criança disse que eles estavam ganhando por causa do colega que era forte. No início da atividade ainda na sala chamamos atenção dessa mesma criança porque não estava conseguindo ouvir, os colegas disseram que ele era “bagunceiro”, então na roda final contamos que uma criança achava que o time havia ganhado por conta da força daquela criança. Na conversa perguntamos o que elas acharam do cabo-de-guerra e disseram “legal”, “eu gostei”, “eu não gostei”, “a gente pode fazer mais uma vez?”. Perguntamos: por que será que as pessoas fazem essa luta? “Pra ficar for-te”, “pra ficar com o músculo e o corpo mais forte”. Será que os indígenas e

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as crianças que vimos no vídeo estavam fazendo cabo-de-guerra pra ficar mais fortes? “Sim”.

Na semana seguinte as vivências foram com o braço-de-ferro e sumô. Ainda em sala conversamos com as crianças lembrando o que estamos fa-zendo e novamente falaram das lutas e do cabo-de-guerra do último dia, então falamos que faríamos novas lutas e que se houvesse tempo seriam duas. Pedimos que as crianças formassem duplas para sair da sala e ir até a área externa na frente da escola onde tem mesinhas, sentamos duas duplas em cada mesinha e começamos a fazer o braço-de-ferro. Fomos passando em cada mesa e estimulando as crianças realizarem a luta entre elas e tam-bém irem trocando as duplas para realizar a atividade com outros colegas.

Em seguida chamamos o grupo para ir até a quadra para fazermos a pró-xima luta. Lá fizemos uma roda, falamos sobre o braço-de-ferro e que ago-ra faríamos outra luta, então falei que a luta era como apareceu no vídeo que vimos em que uma pessoa tinha que empurrar a outra para deslocá-la. Uma criança lembrou que fez no dia que vimos o filme e levantou-se para mostrar, então aproveitamos e explicamos como faríamos a luta. Fomos chamando uma criança e ela convidava o seu “adversário”, depois algumas crianças pediram para ser “juiz da luta”.. Depois de bastante tempo na ativi-dade algumas crianças começaram a se dispersar, mas quando pedimos para

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fazer novas duplas todas fizerem e começaram a fazer a luta, após alguns minutos retornamos para sala em razão da proximidade do horário de saída.

No encontro seguinte, quando chegamos à sala, as crianças já estavam em roda e bastante agitadas. Conversamos sobre as lutas que já havíamos realizado e perguntamos quais outras lutas poderíamos realizar na escola. Uma criança falou do boxe, mas outra discordou e disse “não dá para fa-zer boxe porque pode machucar”. Lembramos que antes algumas crianças também haviam dito que não podíamos fazer lutas na escola e já estáva-mos fazendo algumas. Então contei que nos dias anteriores duas crianças haviam dado ideias para nossas lutas e falado que podíamos fazer “o sumô de costas” e também uma brincadeira de “pegar o rabinho”. Perguntamos o que elas achavam e começaram a falar coisas como: “a gente pode fazer de espada”, “pode ser a capoeira”, “eu sei como é essa brincadeira do rabinho”, “eu não sei”, “pode fazer boxe de mentirinha”.

Pedi para a criança que havia sugerido fazer o “sumô de costas” mostrar aos colegas como seria, depois as crianças fizeram duplas e começaram a fazer e outras pediram para ser “juiz”, assim acabaram formando trios ou

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quartetos e começaram a realizar a atividade e trocar as funções de “luta-dores” e “juízes”. Nesse dia uma criança pediu para fotografar e deixamos o celular com ela, outras duas meninas ao verem a colega com o celular também pediram para fotografar.

A criança que havia falado da brincadeira de “pegar o rabinho” não foi nesse dia, mas como outra criança tinha dito que conhecia a brincadeira pedimos para ela contar aos colegas, mas ela ficou tímida e só quis falar baixinho no ouvido. Então nós contamos para as crianças como devia ser a brincadeira. Primeiro fizemos a disputa com a mesma dinâmica da ativi-dade anterior, em duplas, trios ou quartetos, algumas no papel de “lutado-res” e outras de “juízes” e também incentivamos a trocar os papéis. . Houve vários momentos de conflitos, um deles uma criança chorou quando outra venceu a disputa de pegar o rabinho, quando fomos conversar ela disse que não estava chorando porque perdeu, mas porque o colega não respeitou a regra porque o juiz não tinha dito já. Com a proximidade do horário de saída retornamos para sala e conversamos sobre os conflitos. As crianças relataram que “o amigo não respeitou a regra”, “o juiz não falou já”, “o juiz não prestou atenção”, “o amigo empurrou com força”, “eu me machuquei”. Perguntamos como podíamos resolver essas coisas e uma criança disse “tem que ter cuidado com o amigo e o juiz tem que prestar mais atenção” e todas as crianças concordaram.

No encontro seguinte dedicamos um tempo para conversar com as crian-ças e planejar a vinda de um visitante. Contamos para as crianças que con-vidamos um amigo, professor de capoeira para conversar conosco e pergun-tamos o que elas achavam. A maioria expressou concordância, mas algumas meninas disseram que tínhamos que convidar uma amiga também. Então dissemos que íamos tentar. Uma criança perguntou qual luta íamos fazer aquele dia, então explicamos que queríamos usar o tempo para nos organi-zarmos para receber a visita e saber o que gostaríamos de conversar com ela.

Começamos a conversar e as crianças não se engajaram, dispersa-ram pegando folhas, pauzinhos, conversando em paralelo, saindo da roda. Chamamos atenção das crianças e explicamos que pensamos em levar um convidado porque elas disseram que “a Dandara lutou capo-eira”, mas que nós ainda não havíamos conversado muito sobre a capo-

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eira e que poderia ser legal saber mais sobre essa luta. Então pergun-tamos o que elas gostariam de saber sobre a capoeira e o que podíamos perguntar ao professor.

Criança – “A gente pode perguntar como luta capoeira”.Criança – “Se tinha instrumentos na capoeira”.Criança – “Eu não queira convidar ele”.Léo – Por que você não queria?Criança – “Por que não gosto de conversar”.Léo – E se ele fizer outras coisas além da conversa? Você vai gostar?Criança – “Se ele tocar um instrumento e ensina a lutar capoeira eu gosto”.Ana Cris – Léo, hoje nós conversamos sobre o Maculelê e as crianças disse-ram que era parecido com a capoeira.Léo – Vocês querem perguntar para o professor se Maculelê e Capoeira sãoparecidos?Criança – “Eu queria fazer uma pergunta”.Léo – Qual?Criança – “Que meu irmão luta capoeira”.Léo – Você quer contar para o professor que seu irmão luta capoeira?Criança – “Sim”.

Com as crianças dispersando novamente da roda e ainda restando algum tempo até o horário de saída propusemos fazer mais uma vez a brincadeira de pegar o rabinho, já que nesse dia a criança que falou da brincadeira es-tava presente. Assim que distribuímos pedaços de papel crepom as crianças correram para quadra e já iniciaram a brincadeira, depois organizamos uma roda e realizamos a brincadeira em duplas e no final todos contra todos. O momento tornou-se uma grande correria na quadra e mais uma vez houve crianças chorando por ter o “rabinho” arrancado pelos colegas.

Em um dos momentos de registro do grupo, as crianças produziram uma lista e cartaz com informações sobre as lutas/brincadeiras que viven-ciamos. As crianças conversaram e anunciaram as regras e/ou formas de lutar/brincar e a professora como redatora do grupo escreveu, depois as

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crianças colaram fotos impressas das vivências que realizamos. Esses car-tazes ficaram expostos no varal da sala de convivência da turma.

Dias depois tivemos a visita do professor Ronaldo e sua aluna de capo-eira Diana. As crianças ficaram extremamente envolvidas em toda ativida-de, fizeram as perguntas, ouviram o professor, manipularam os materiais que ele disponibilizou (revistas, CD, cordões e roupas/uniformes) tocaram instrumentos e vivenciaram as gestualidades e a roda de capoeira.

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Com a proximidade da festa e a previsão de realizar uma apresenta-ção com a turma nesta ocasião, resolvemos utilizar elementos das lutas na composição de uma coreografia, e os tempos de atividades da cultura corporal também passaram a ser utilizados para os ensaios desse momen-to. Antes, durante e entre os momentos de ensaios oportunizamos à turma a assistência de mais vídeos sobre a capoeira e o maculelê, fizemos um momento de contação de história da lenda do maculelê e vivenciamos mo-vimentos de ataque e defesa com os bastões.

Em uma das nossas rodas de conversa as crianças falaram que no ví-deo do maculelê as pessoas estavam dançando, então perguntamos se elas achavam que o maculelê era só uma dança ou uma luta também. Uma criança lembrou-se de uma das músicas que fazia parte da apresentação

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da turma e disse, “é luta sim, tem na música” e várias crianças começaram a cantar “corre pro mato que a batalha começou, é a guerra dos Palmares, vamos lutar meu sinhô”.

A Capoeira e o maculelê foram as lutas que mais atravessaram nossas conversas e ações ao longo da tematização, especialmente, porque supo-mos fazer parte da história de Dandara. E já que começamos a contar essa experiência com música, acabamos com um trecho da composição de Nina Oliveira, que também foi bastante ouvida, dançada e cantada pelas crian-ças ao longo do trabalho e, trilha sonora da apresentação do grupo na fes-ta, e com algumas imagens desse momento especial.

Dandara do meu quilombo Me faz livre e voar

Rainha do meu congo Me dá forças pra lutar

Ê Dandara(Nina Oliveira)

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Para assistir ao vídeo que registrou essa experiência, clique aqui.