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119 O ENSINO JURÍDICO: UM ESCORÇO HISTÓRICO Ana Lucia Magano 107 Resumo Fruto de pesquisa qualitativa, este artigo cogita sobre a docência do Direito e o contexto histórico no qual se desenvolveu no Brasil. Criados para viabilizar o Estado nacional mediante a formação de uma burocracia dirigente, indaga-se sobre as motivações que hoje tem provocado a multiplicação dos cursos jurídicos. Palavras-chave: Educação, docência jurídica, ensino do Direito. This article, fruit of thorough research on methods used, considers the teaching of Law and wonders about the history context in which it developed in Brasil. Created to make the National State possible with the conception of a leading burocracy, it questions the motivation that nowadays have caused the multiplication of Law Schools. Key words: Education, Lecturing of Law, Law School, Humanization of Law. É no contexto histórico no qual se processou o fato que se pode compreendê-lo e avaliá-lo. O Ensino Jurídico não poderia ser compreendido e avaliado sem que se considerem os fatos históricos que permearam seu desenvolvimento e que estão imbricados na História da formação da sociedade e do Estado brasileiros. Tentar compreender como nasceram e se desenvolveram os cursos de direito é lançar um olhar crítico sobre aspectos da História do Brasil. Esse é o método que Saviani (2005), propõe ao desenvolver seus estudos sobre a pedagogia histórico-crítica “por meio da qual se pretende rastrear o percurso da educação desde suas origens remotas, tendo como guia o conceito de “modo de produção”.”(SAVIANI, 2005, p. 2) A adoção de tal método se justifica nas suas palavras: 107 Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, advogada militante, Mestra em Educação pela PUC Campinas, Professora de História do Direito, Prática do Direito do Trabalho e Antropologia Religiosa e Jurídica, no curso de Direito do Centro Universitário Salesiano, campus Liceu – Campinas.

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O ENSINO JURÍDICO: UM ESCORÇO HISTÓRICO

Ana Lucia Magano107

Resumo

Fruto de pesquisa qualitativa, este artigo cogita sobre a docência do Direito e o contexto

histórico no qual se desenvolveu no Brasil. Criados para viabilizar o Estado nacional mediante

a formação de uma burocracia dirigente, indaga-se sobre as motivações que hoje tem

provocado a multiplicação dos cursos jurídicos.

Palavras-chave: Educação, docência jurídica, ensino do Direito.

This article, fruit of thorough research on methods used, considers the teaching of Law and

wonders about the history context in which it developed in Brasil. Created to make the

National State possible with the conception of a leading burocracy, it questions the

motivation that nowadays have caused the multiplication of Law Schools.

Key words: Education, Lecturing of Law, Law School, Humanization of Law.

É no contexto histórico no qual se processou o fato que se pode compreendê-lo e avaliá-lo. O

Ensino Jurídico não poderia ser compreendido e avaliado sem que se considerem os fatos

históricos que permearam seu desenvolvimento e que estão imbricados na História da

formação da sociedade e do Estado brasileiros. Tentar compreender como nasceram e se

desenvolveram os cursos de direito é lançar um olhar crítico sobre aspectos da História do

Brasil.

Esse é o método que Saviani (2005), propõe ao desenvolver seus estudos sobre a pedagogia

histórico-crítica “por meio da qual se pretende rastrear o percurso da educação desde suas

origens remotas, tendo como guia o conceito de “modo de produção”.”(SAVIANI, 2005, p. 2)

A adoção de tal método se justifica nas suas palavras:

107 Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, advogada militante, Mestra em Educação pela PUC Campinas, Professora de História do Direito, Prática do Direito do Trabalho e Antropologia Religiosa e Jurídica, no curso de Direito do Centro Universitário Salesiano, campus Liceu – Campinas.

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Trata-se de explicar como as mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente. (SAVIANI, 2005, p. 2)

É na busca da compreensão do percurso concreto trilhado pelas práticas educativas (jurídicas,

no caso) e “no confronto com a prática política” que a especificidade dessa prática será

conhecida e caracterizada. (SAVIANI, 2005, p.6).

Por essa razão, no presente trabalho será apresentado um escorço108 histórico focado nos

aspectos sócio-políticos e econômicos do Brasil, pois é só depois de se perceber os

movimentos ocorridos é que se terá a possibilidade de melhor entender o porquê da educação

(e mais especificamente da “educação” jurídica) ter trilhado os caminhos que trilhou.

Emprestando as palavras de Saviani, o que se busca é compreender a questão do ensino

jurídico com base no desenvolvimento histórico objetivo (SAVIANI, 2005, p. 88). Assim, será

possível compreender como o conteúdo do saber jurídico, saber metódico, sistemático,

científico, elaborado, surgiu no bojo do aparecimento e desenvolvimento da sociedade capitalista

(SAVIANI, 2005, p.8).

O saber jurídico não escapa aos movimentos históricos dos quais é uma resultante uma vez

que é produto da realidade sócio-política e econômica brasileira imbricada na mundial. Estes

aspectos político-econômicos e sociais serão ressaltados na busca da compreensão dos

diferentes cenários brasileiros e das correspondentes políticas que determinaram e ainda

determinam as decisões tomadas (ou a falta destas) sobre questões educacionais no âmbito

jurídico.

1. O ensino no Brasil e seu contexto histórico

Assim, para que se compreenda a maneira como o bacharel é formado em ciências jurídicas e

qual saber lhe é transmitido, é importante saber o lugar histórico no qual os cursos de direito

foram forjados e as circunstâncias que os condicionaram, e até hoje os condicionam.

1.1 O ensino no Brasil colônia

108 Segundo Houaiss(2001), escorço, no sentido figurado, corresponde: condensação, resumo e deriva do verbo “scorciare 'tornar mais curto' < lat.vulg. *excurtiáre 'encurtar'; cp. esp. escorzo (1580) 'id.', que Corominas deriva do v. esp. escorzar 'escorçar' < it. scorciare 'tornar mais curto';”

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O fato de o Brasil ter sido uma colônia de Portugal é condicionante que não pode ser

esquecida. Para Caio Prado (1962) a forma de povoamento adotada no Brasil visava tão

somente manter supridas as necessidades da Metrópole pela exploração dos recursos naturais

do território virgem. A colonização tropical teve objetivo externo, “voltado para fora”, isto é,

visava apenas o atendido do interesse comercial da metrópole, o que determinaria a

organização da sociedade e da economia brasileiras de forma puramente produtora, mercantil.

Em 1647, aqui já existia, nos mesmos moldes das privilegiadas companhias inglesas e

holandesas, companhia de comércio à qual se garantiu direito exclusivo de realizar o comércio

externo da colônia, caracterizando-se por um regime de monopólios e restrições destinados “a

dar a maior amplitude possível à exploração e aproveitamento da colônia e canalizar para o

reino o resultado de todas as atividades.” (PRADO, 1962, p. 54/55).

O cenário encontrado no primeiro período colonial confirma o caráter extrativista da economia

que não propiciou o nascimento de um povo voltado para suas próprias necessidades e cuja

estrutura social caracterizou-se por uma organização de relações predominantes de submissão

(RIBEIRO, 2000, p. 37).

Dessa forma, o ensino na colônia caracterizou-se por ser estatal e religioso com a

administração das escolas a cargo da Igreja Católica, entregue mais especificamente aos

jesuítas e cujo conteúdo era religioso (CUNHA, 1986 p. 79). Ao Brasil, bastou a pregação do

púlpito pelos padres para o exercício refinado da dominação. O “exercício refinado da

dominação”, realizado tão somente do púlpito, é traço que marca a educação na colônia.

(CUNHA, 2000, p.153)

A Ordem dos Jesuítas que para o Brasil viera com o objetivo de catequizar os índios, com o

tempo, abandonou este mister a fim de dedicar-se ao “letramento” dos filhos dos portugueses

que para cá vinham explorar as oportunidades que o Mercantilismo, à época, propiciava.

Como assinalado por Ribeiro (2000), os padres perceberam ser necessário cumprir sua

“missão educadora” junto aos “filhos dos colonos, uma vez que, naquele instante, eram os

jesuítas os únicos educadores de profissão que contavam com significativo apoio real na

colônia” (RIBEIRO, 2000, p. 21). A colônia deveria ser conformada aos padrões da cultura

portuguesa. Ao ensino jesuítico cabia obter a implantação desse padrão. Privilegiar o trabalho

intelectual em detrimento do manual afastava os alunos da elite dos assuntos e problemas

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relativos à realidade imediata, diferenciando-os da maioria da população iletrada e escrava, a

quem rejeitavam, pois, para esses componentes da elite colonial, o mundo civilizado era o “lá

de fora”. Outro dado, trazido por Cunha (2000), diz respeito à essa mentalidade imposta na

colônia:

Trata-se de uma atitude cultural de profundas raízes: pelas letras se confirma a organização da sociedade. Essa mesma organização vai determinar os graus de acesso às letras, a uns mais, a outros menos. [...] E os colégios, esses sobretudo, se voltam para os principais. A cultura hegemônica assim o dispunha. (CUNHA, 2000, p.44) (grifos nossos)

O termo “principal” bem revela o reconhecimento da superioridade desses “principais

da terra” cujos filhos “seriam ou padres ou advogados, ocupariam cargos públicos,

possibilitariam à sociedade se reproduzir.” (CUNHA, 2000, p.44). Os estabelecimentos de

ensino fundados pelos jesuítas na colônia reproduziram, pela imposição, a sociedade do

colonizador.

Serafim Leite (1938 apud CUNHA, 1986, p.29), “comparou a clientela dos colégios,

principalmente a dos cursos de humanidades e os superiores, com a nobreza e burguesia

da Europa” indicando como os principais:

- “os funcionários públicos,

- os senhores de engenho,

- os criadores de gado,

- os oficiais mecânicos e

- no séc. XVIII, também, os mineiros,”

muito embora, no Brasil desses primeiros séculos, ainda não se pudesse falar em nobreza ou

burguesia como entendidas na Europa. E “os graus acadêmicos obtidos nessas escolas eram,

juntamente com a propriedade e escravos, critérios importantes de classificação

social.”(RIBEIRO, 2000,p. 24).

Cunha (1986) destaca, ainda, que na formação da sociedade colonial as classes repartiam

o saber:

os saberes dominantes (das classes dominantes) e os saberes dominados (das classes dominadas). [...] Os saberes dominantes estão hierarquizados, de modo que há saberes dominantes inferiores (exemplo, o domínio da leitura e da escrita na língua dominante) e

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saberes dominantes superiores (por exemplo, o domínio das práticas letradas e da filosofia [...]) (CUNHA, 1986, p. 15).

NNaa ttaarr eeffaa dde manter a dominação da colônia pela metrópole, aa II ggrr eejj aa,, ppooddeerr --ssee--iiaa ddiizzeerr ,,

aaccaabbaa ppoorr ddeesseemmppeennhhaarr iimmppoorr ttaannttee ppaappeell nneessssee sseenntt iiddoo.. EE nneessssee mmiisstteerr aa rr eettóórr iiccaa éé

eemmpprr eeggaaddaa ccoommoo iimmppoorr ttaannttee iinnssttrr uummeennttoo nnoo ppúúllppii ttoo ee nnooss eessttaabbeelleecciimmeennttooss ddee eennssiinnoo.. A

retórica usada na pregação do Brasil colônia era a forma de exercer o poder: “A

representação da pregação era a reprodução visível de uma relação de poder.” (CUNHA,

2000, p. 32).

AA importância dada à retórica permaneceu ainda depois, na medida em que foi

especialmente presente na formação dos bacharéis saídos das primeiras faculdades

brasileiras de Direito. AA sseerr vviiççoo ddoo ppooddeerr aa rr eettóórr iiccaa pprr eessttoouu--ssee a reiterar a sacralidade

da classificação jurídica de forma a reiterar a hierarquia existente de forma que os

membros da comunidade se integrassem harmoniosamente como súditos no corpo

político do Estado. De acordo com esta concepção ideológica, “liberdade” é definida

como “servidão”: liberdade de escolher seguir a Deus ou não, para depois, se feita a

opção “correta”, a Deus submeter–se totalmente. ((CCUUNNHHAA,, 22000000))

1.2. Período Pombalino

No período Colonial, um segundo cenário apresentou-se. Trata-se da fase pombalina que

teve grandes reflexos na educação/escolarização colonial. A interface econômica desse

cenário não era alvissareira. A produção açucareira estava em decadência por conta da

concorrência dos holandeses que haviam levado sua produção para as Antilhas. Como

tentativa de solucionar a crise político-econômica que atravessava, Portugal aproxima-se

da Inglaterra, rival da Espanha, da qual estivera dependente pela união dos reinos, e

mediante sucessivos acordos concorda com “concessões econômicas (à Inglaterra) em

troca de proteção político-militar.” (CUNHA, 1986, p. 39). Portugal deixa de produzir

manufaturas para “prestigiar” aquelas de origem inglesa. Assim, os lucros auferidos na

colônia vão sendo transferidos para os ingleses já que estes compravam dos portugueses

produtos não manufaturados e para os lusitanos vendiam o que haviam industrializado.

Dessa maneira, o que era retirado do Brasil, os lusitanos entregavam aos ingleses. Poder-

se-ia dizer que o Brasil era, na verdade, uma sub-colônia da Inglaterra ou uma “colônia

terceirizada”, para usar o termo contemporâneo, já que Portugal estava submetido ao

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império anglo-saxão como se fosse uma sua “colônia”, situação camuflada por “acordos”

comerciais.

Caberia a Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, nomeado em 1750 como

ministro de Estado, enfrentar a crise econômica promovendo a hegemonia do poder real e a

concretização do programa de modernização que se reclamava. Nesses tempos, a política

visava a transformação da economia mercantilista em industrial/capitalista. Até então, meados

do século XVIII, a universidade de Coimbra ainda não conseguira deixar de ser tão medieval

quanto sempre fora, comenta Ribeiro (2000): “A filosofia moderna (Descartes), a ciência

físico-matemática, os novos métodos de estudo da língua latina, eram desconhecidos em

Portugal. O ensino jesuítico, solidamente instalado, continuava formando os membros da corte

dentro dos moldes do Ratio Studiorum.” (RIBEIRO, 2000, p. 32)

A política pombalina buscaria em primeiro lugar incentivar a produção manufatureira na

metrópole visando à industrialização de Portugal e a quebra da subordinação em relação à

Inglaterra. Em segundo lugar, incentivaria o investimento do capital privado pela concessão de

monopólios de comércio de certos bens a determinados investidores. E um terceiro aspecto,

este de caráter ideológico, seu programa de modernização deveria acabar com a mentalidade

da organização feudal que ainda impregnava a sociedade lusa.

Parece clara a tentativa de transformar Portugal numa metrópole capitalista, a exemplo do que

ocorrera na Inglaterra havia mais de um século. Esta política buscou provocar algumas

mudanças também no Brasil, com o objetivo de adaptá-lo, enquanto colônia, à nova ordem

pretendida por Portugal. Tal política era ditada por interesses econômicos das novas

companhias monopolistas criadas pelo Estado que “precisavam de burocratas que soubessem

ler e escrever, em português, e dominassem o cálculo aritmético”. A burocracia demandava

canonistas, advogados, médicos, filósofos e teólogos que deveriam contar com “uma formação

prévia em humanidades nucleadas pelo latim.” (CUNHA, 1986, p.50). Para adaptar o Brasil à

nova ordem pretendida por Portugal, a “formação ‘modernizada’ da elite colonial (masculina)

era uma das exigências para que ela se tornasse mais eficiente em sua função de articuladora

das atividades internas e dos interesses da camada dominante portuguesa.” (RIBEIRO, 2000,

P. 35). O que se pode notar é a presença de uma política que visava formar uma elite que

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viabilizasse os interesses econômicos colimados. Os objetivos desta reforma pombalina

preconizados para o ensino109 são descritos por Ribeiro (2000, p. 33):

- A formação do perfeito nobre, que deveria ser formado negociante;

- O aprimoramento da língua portuguesa e seu ensino equilibrando-se, assim, a

importância ortodoxa dada ao latim110;

- A abreviação e simplificação dos estudos visando levar um maior número de interessados

ao curso superior111;

A diversificação do conteúdo ministrado com inclusão do conteúdo de natureza científica,

“tornando-os os mais práticos possíveis.112” (RIBEIRO, 2000, p. 33).

Como dito anteriormente, a “formação “modernizada” da elite colonial (masculina) era uma

das exigências para que esta se tornasse mais eficiente de modo a viabilizar a função

articuladora “das atividades internas e dos interesses da camada dominante portuguesa.”

(RIBEIRO, 2000, p. 35) AAssssiimm,, ppooddee––ssee iinnffeerrii rr qquuee oo mmeerrccaannttii ll iissmmoo ddoommiinnaannttee ddii ttoouu aa rraazzããoo

ddee sseerr ddaa vviiddaa nnaa ccoollôônniiaa.. PPooddee--ssee ccoonncclluuii rr qquuee iissssoo ffooii ppoossssíívveell ppoorrqquuee aa eell ii ttee ccoolloonniiaall ffooii

ffoorrmmaaddaa ddee mmaanneeii rraa aa aatteennddeerr aaooss iinntteerreesssseess ddooss ddoonnooss ddoo ccaappii ttaall qquuee eexxpplloorraavvaamm aa ccoollôônniiaa..

AA aaddeeqquuaaççããoo ddeessttaa eell ii ttee àà ppooll ííttiiccaa ccoolloonniiaall ooccoorrrreeuu,, ppoorrttaannttoo,, eemm rraazzããoo ddaa ccoonnffoorrmmaaççããoo ddeessttaa

mmeessmmaa eell ii ttee aaooss ppaaddrrõõeess ee iinntteerreesssseess ddaa mmeettrróóppoollee jjáá ssaattiissffaattoorriiaammeennttee eennggeennddrraaddooss ppeellaa

eedduuccaaççããoo jjeessuuííttiiccaa..

Uma vez que a colônia não contava com uma universidade, os jovens da elite colonial neste

período dirigiam-se para Coimbra, Portugal, em busca do curso de Direito para, depois de oito

anos de estudo, além da profissão, garantir para si um cargo burocrático.

109 Interessante registrar a semelhança entre a ideologia que subjaz à política pombalina e aquela que se observada em pleno século XXI . Os objetivos apontados por Ribeiro ao tempo de Pombal cumpriam um comando de interesses econômicos hoje também vigentes. 110 Cabe lembrar aqui a seleção social promovida pelo uso da língua, aspecto apontado por Cunha que afirma que pelas letras, pelo conhecimento letrado, se confirma a organização da sociedade.( CUNHA, 1986). Hoje a “pureza” da língua parece ainda revelar a organização da sociedade. 111 Hoje há a permissão à proliferação de empresas educacionais que ofereçam grande diversidade de cursos dentro da política neoliberal implantada nos anos 90 na política educacional (SANTOS E MORAES , 2007, p.60). 112 Hoje, leia-se, cursos que atendam às necessidades específicas de mercado com ênfase na mais moderna tecnologia sem preocupação com a formação humanista(HIRONAKA, 2005, p. 35).

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1.3 A corte chega ao Brasil

Quando a corte lusitana chegou ao Brasil, trouxe consigo as orientações já adotadas na

metrópole. Há muito que Portugal já se rendera ao pensamento iluminista de educação

burguesa. Esse era o ano de 1808, quando, no Brasil, instalam-se a família real e sua corte. A

mentalidade burocrática secular (não confessional) do novo Estado Nacional que se firmava e

a presença do rei no Brasil provocaram a modificação do ensino existente na colônia. A nova

orientação passou a repudiar os padrões escolásticos impostos pela tradição jesuítica. Nesse

novo cenário presenciou-se uma demanda maior por burocratas para o Estado com a

conseqüente necessidade da criação de um corpo de funcionários do Estado organizado

segundo padrões burocráticos seculares. (CUNHA, 1986, p. 79)

Com a chegada da corte de Portugal, a necessidade de uma elite mais preparada, também,

intensifica-se. “A vinda da família real e a posterior instalação do Império permitiu um rápido

desenvolvimento dos aparelhos judiciário e policial brasileiros” e os cursos de direito

demonstraram-se indispensáveis ao processo de construção da ordem burguesa pela

necessidade de instituições de controle social garantidores dos interesses privados na

construção da ordem capitalista moderna (CASTRO JR, 1998 apud MARTINEZ, 2003, p.

72/73).

Com a proclamação da independência, um dos graves problemas do Estado seria o da sua

estruturação jurídica que não se resolveria, é claro, de uma hora para a outra, mas exigiu uma

gama enorme de providências. “Proclamada a independência do Brasil, em 1822, surgiu como

um dos primeiros problemas o da formação de quadros para a burocracia do novo Estado.”

(CUNHA, 1986, p.111). Vale ressaltar que, como o Brasil sempre fora parte integrante de

Portugal, era juridicamente “regido de acordo com o velho figurino lusitano”. Sua orientação

jurídica era dada pelas “Ordenações Filipinas, já então com dois séculos de vigência.”.

(NASCIMENTO, 2002, p. 209/211). Por falta de outra, permaneceria ainda em vigor a

legislação vigente em 1821.

A primeira geração de legisladores brasileiros formou-se em Coimbra. Porém, ao separar-se de

Portugal, o Brasil perdeu Coimbra como seu centro cultural. Para solucionar esse problema, os

cursos de Direito no Brasil foram fundados em 1827, em São Paulo e Olinda. Buscava-se,

assim, atender à necessidade de formação de quadros para a burocracia do novo Estado. “Mas

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não só a burocracia do Estado nascente carecia de profissionais sistematicamente formados.

Também, necessitava deles a produção de bens simbólicos para o consumo das classes

dominantes.” (CUNHA, 1986, p. 68). Em 1823, a Assembléia Constituinte, atendendo a estas

demandas, faz a proposta de criação de uma universidade que procedesse a “autonomização

cultural da sociedade brasileira, além da necessidade de formar quadros para o aparelho

estatal” com a finalidade de formar uma elite intelectual e cultural que conduzisse os negócios

públicos. (ADORNO, 1988, p. 81)

Cury (1993) também aponta a importância da criação dos cursos jurídicos:

A valoração que se dava ao curso jurídico deixava transparecer a sua importância, reivindicando-se para o mesmo, [...] uma formação abrangente capaz de atender a necessidades de um jurista, de um magistrado, enfim de um homem de Estado. Buscava-se, desse modo, a formação de indivíduos que pudessem integrar os quadros políticos do Estado Brasileiro, da mesma forma como sido então os componentes, na Universidade de Coimbra. (CURY,1993, p.49).

Por ser produtor de um bem simbólico muito valorizado pela classe dominante, o curso de

direito é envolto em uma aura que acabava por garantir privilégios. “Os professores teriam os

mesmos vencimentos dos desembargadores e as mesmas honras, escolheriam ou preparariam

compêndios, que seriam aprovados pela Congregação e pela Assembléia Geral e o governo os

imprimiria.” (LOPES, 2002, p.338) Especialmente em torno da faculdade de Direito de São

Paulo, conhecida como a Academia do Largo de São Francisco, esta aura prevalece, para lá

sendo carreada enorme importância em função do papel sócio–político que a referida

academia acabou desenvolvendo.

Foi mediante esta aura e o pomposo discurso que adotava que o Direito pôde, segundo alguns

autores, ser utilizado para legitimar o poder, resguardando-se, assim, os interesses das elites. A

aura estabelecida era mantida, também, através da “pedagogia” coimbrã utilizada.

A aula de Direito no século XIX, principalmente nas Academias mais antigas e tradicionais do Brasil (São Paulo e Olinda) está revestida de um simbolismo sem par. [...]. A letra da lei parece tão sagrada e inviolável quanto à letra das Escrituras Sagradas. [...]. Eis o princípio da hermenêutica jurídica a partir da hermenêutica sagrada. (BITTAR, 2006, p.5).

Adorno (1988) afirma resumir-se, o magistério, ao mero comentário às leis. O “código era

considerado a perfeita expressão do direito de um povo, ditado conforme a idéia preconcebida

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de um sentimento de justiça absoluta, interpretada ou concretizada pela autoridade legislativa”

(PORCHAT, 1900-1:358 apud ADORNO, 1988, p. 101). Esse sentimento de justiça absoluta

contida na norma confere status de “indiscutibilidade” à eficácia desta norma.

As aulas então proferidas nas Arcadas, poder-se-ia inferir, aparentemente em nada

contribuíram para uma formação crítica do acadêmico. Ao revés, parecem só terem se

prestado a uma formação acadêmica ornamental, recheada de exposições quase literais de

doutrinadores e de comentários aos códigos. Eram, essas aulas, meras “lições” que o lente lia

aos alunos “sem qualquer efeito construtivo e modificador do comportamento”

(ADORNO,1986, p. 102/103). Essas aulas eram lições lidas em sala que bem demonstram o

padrão didático do curso jurídico.

Muito contribuíram para esse padrão didático a prática de aulas lidas, cuja técnica consistia na eterna repetição dos jurisconsultos tradicionais, sem qualquer análise crítica, a par do hábito corrente de se empregar apostilas que reuniam excertos de obras distintas, desprovidas de sistematicidade e organicidade. (ADORNO, 1986, p.104)

Também, a tradição dogmática do direito desde o alvorecer dos cursos jurídicos criou, de

acordo com Santos (2007), a idéia de que “o direito é um fenômeno totalmente diferente de

tudo (sic) o resto que ocorre na sociedade e é autônomo em relação a essa sociedade”

(SANTOS, 2007, p. 68). A autonomia do direito é construída, segundo este autor, na tradição

da dogmática dos dois grandes ramos do direito, o civil e o penal. E é exatamente a idéia de

autonomia desses grandes ramos do Direito, dominada por uma cultura normativista, técnico–

burocrática, que determina o modo de se interpretar e aplicar o Direito.

Segundo Adorno (1988), os cursos jurídicos serviram à “formação da elite coesa e

disciplinada, a prevalência dos princípios liberais sobre os democráticos [...]”. O bacharel

“sedimentou a solidariedade intra–elite de modo a rearticular as alianças entre os grupos

sociais representantes do mundo rural e do mundo urbano.” (ADORNO, 1988, p. 78).

A definição do local onde seria instalado o curso compreensivelmente veio a suscitar disputas

regionais que não deixava de ser uma disputa de poder. A primeira proposta feita em 14 de

junho de 1823 por José Feliciano Fernandes Pinheiro dizia que seria “São Paulo a cidade

preferida pelas vantagens naturais e razões de conveniência geral” (RODRIGUES 1974: 85

apud ADORNO, 1988, p. 81) Estas pendengas acabaram superadas depois de muito debate e

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os primeiros cursos foram criados em 11/08/1827, um em São Paulo e outro em Olinda para

que, assim, se atendesse ao “imperativo político de se constituir quadros para o aparelho

governamental e de exercer pertinaz controle sobre o processo de formação ideológica dos

intelectuais a serem recrutados pela burocracia estatal.” (ADORNO, 1988, p.88). Iniciou-se,

dessa forma, o que Adorno (1988) denomina de “bacharelismo” e que promoveu o nascimento

da aliança entre o estamento burocrático patrimonial e os liberais moderados. Em uma

complexa articulação político-ideológica, esta composição entre forças supostamente

antagônicas fez prevalecer o ideal de liberdade sobre o de igualdade. Fundados por força da

lei em 11 de agosto de 1827, por decreto de 28 de abril de 1854, os “cursos jurídicos seriam

transformados em faculdades de direito” (CUNHA, 1986, pág. 113) foram albergue deste

“bacharelismo”.

No período que vai de 1890, com a reforma Benjamin Constant, até 1910, ano que antecede a

Reforma Rivadávia Corrêa, foram criadas no Brasil oito (8) escolas de Direito, segundo Cunha

(1986, p. 175/176):

1891 – Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro;

Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro;

Faculdade Livre de Direito da Bahia;

Faculdade Livre de Direito de Goiás;

1893 –Faculdade Livre de Direito do Estado de Minas Gerais (Ouro Preto);

1903 – Faculdade Livre de Direito do Pará;

Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre;

1907 – Faculdade Livre de Direito de Fortaleza.

1.4 Das motivações para a criação dos cursos jurídicos

Como apontado acima, a criação dos cursos jurídicos nutriu-se do individualismo político e do

liberalismo econômico no processo de “autonomização da sociedade brasileira (ADORNO,

1988, p.77). Tal autonomia exigiu tanto a autonomização cultural quanto a burocratização do

aparelho estatal. A tarefa final era, segundo Adorno (1988, p.77) a “construção do Estado

Nacional patrimonial articulado ao modelo liberal de exercício de poder” vigente, o que, a

despeito das agitações regionais ao longo do período do Império, foi alcançado. Essa

articulação, entretanto, só foi possível por duas razões: a primeira por conta da aliança entre o

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estamento burocrático e setores parlamentares que, assim aliados, venceram a oposição

política, expulsando as forças democráticas do âmbito institucional; a segunda porque a elite

governante e a dominante, a despeito de seus conflitos insuperáveis, resolveram unir-se.

Assim, os cursos de Direito prestaram-se, também, à promoção da profissionalização política.

Os cursos de Direito forneceram “os quadros mais importantes do Estado imperial.” (LOPES,

2002, p.337). Com efeito, “[...] entre os Ministros de Estado de 1831 a 1853, mais de 45%

deles eram magistrados; somados aos advogados, chegaram a ser mais de 60% em alguns

períodos.” (CARVALHO,1996:91 apud LOPES, 2002, p. 337). “Entre os Conselheiros de

Estado o percentual foi ainda maior.” (LOPES, 2002, p.337). E por causa do “número limitado

de postos de juízes e de advogados, grande número de bacharéis buscava o emprego público

em qualquer área da administração: ‘a burocracia, a vocação de todos’ [...] na frase de

Joaquim Nabuco.” (LOPES, 2002, p.337).

Assim, poder-se- ia afirmar com Adorno (1988) que o “Estado brasileiro erigiu-se como um

Estado de magistrados, dominado por juízes, secundados por parlamentares e funcionários de

formação profissional jurídica.” (ADORNO, 1988, pág. 78). O bacharel, neste contexto,

apareceu como o mediador entre interesses privados e públicos, entre o estamento patrimonial

e os grupos locais. Serão esses bacharéis, formados para ampliar os quadros políticos

administrativos, os responsáveis pelo estabelecimento da articulação das elites rurais e

urbanas, o que possibilitou “a separação entre o doméstico e o poder público, fundamental

para a emergência de uma concepção de cidadania.” (ADORNO, 1988, pág. 78).

Soa possível afirmar que as academias de direito foram produtoras do principal intelectual do

século XIX, segundo o melhor modelo liberal: o bacharel. Todavia, segundo Adorno (1988),

durante o Império, a tradicional escola de Direito de São Paulo não teria tido um efetivo

ensino jurídico, razão pela qual esta Escola não teria produzido juristas de envergadura mas

teria se constituído muito mais como o “celeiro de um verdadeiro ‘mandarinato imperial’ de

bacharéis.” (ADORNO,1988, pág. 79).

Os cursos jurídicos foram criados, portanto, para viabilizar o Estado nacional brasileiro que,

para se tornar autônomo, necessitava ter sua estrutura institucionalizada; para tanto necessitou

“formar a burocracia dirigente da sociedade brasileira” (SANTOS E MORAIS, 2007, p.60).

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Antonio Carlos Wolkmer (1995) ao tratar das demarcações históricas do discurso ideológico

na política e no Direito, ressalta a ambigüidade imprimida à política liberalista deste período

por promover a associação dos princípios liberais àqueles das estruturas oligárquicas; a

retórica será liberal mas subordinada à dominação oligárquica, o que produziu um conteúdo

político conservador sob uma aparência democrática. É ainda Wolkmer(1995) quem aponta

este paradoxo: a conciliação entre liberalismo e a escravidão que existiu por decisão do Estado

brasileiro (das elites dominantes). A este consenso consubstanciado nesta paradoxal aliança, o

autor chama de “a forma cabocla do liberalismo anglo-saxão”, por se preocupar com a

ordenação do poder nacional e não com a libertação de uma ordem absolutista; de um lado,

adotava uma lógica liberal, mas, do outro, uma práxis autoritária. Este liberalismo político das

oligarquias é uma concepção elitista que negava às massas incultas a “participação no

processo decisório, atribuindo aos letrados a responsabilidade exclusiva do funcionamento das

instituições democráticas.” (WOLKMER, 1995, p.119/120). A democracia era um clube

aristocrático no qual as massas rurais ou urbanas, ignorantes, incapazes, imaturas não

poderiam ser admitidas. (WOLKMER, 1995)

Os cursos jurídicos parecem ter servido à formação da elite coesa e disciplinada, a prevalência

dos princípios liberais sobre os democráticos e o bacharel “sedimentou a solidariedade intra–

elite de modo a rearticular as alianças entre os grupos sociais representantes do mundo rural e

do mundo urbano.” (ADORNO, 1988, p. 78)

A Retórica manteve-se como instrumento de grande importância para os cursos jurídicos

sendo empregada pela tradição liberal, marcada por um conteúdo discursivo conservador,

elitista, anti-popular e “matizado de autoritarismo antidemocrático e sem cunho heróico.”

(NOGUEIRA, 1984:67 apud WOLKMER, 1995, p.120) Esse autoritarismo, entretanto, não é

uma novidade como já se pode constatar nos itens precedentes. Deve ser lembrado que a

sociedade brasileira, assentada sobre os alicerces da escravidão e do latifúndio, centralizadora

e administrada pela elite, assim já fora moldada pelo seu colonizador. Foi o nosso colonizador

que implantou no Brasil “este modelo excludente de estrutura estatal [o qual provocou o]

“desenvolvimento de um pensamento patrimonialista, burocrático, estamental e

essencialmente autoritário.”(FAORO, 1979 apud WOLKMER, 1995,p. 139).

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Dos fatos que emolduram a origem dos cursos jurídicos, o que parece possível inferir é que o

ensino jurídico não objetivava a formação de um cientista jurídico crítico mas a viabilização

de uma política de interesses. O que se pode perceber é que seu objetivo, como já dito, era a

formação de quadros políticos e administrativos. A profissionalização jurídica não residia,

como bem diz Adorno (1988, pág. 157), no processo ensino- aprendizagem. Especialmente a

Escola de Direito de São Paulo fomentou e abrigou forças de diferentes correntes que

empregavam o jornalismo como seu mais eficiente instrumento de luta, quer pelas liberdades

civis e políticas, quer pelo abolicionismo ou pelo republicanismo. Em razão do ensino

praticado e das atividades desenvolvidas, certos traços característicos marcaram o “bacharel

juridicista” oriundos desse curso. Seu pensamento era pautado na cultura européia com nítida

“atração pelo saber ornamental, culto à erudição lingüística, cultivo do intelectualismo.”

(ADORNO, 1988, pág. 158) (grifos nossos).

Segundo a dicção de Santos (2007), no que se refere aos cursos jurídicos, observa-se a

manutenção da cultura normativista técnico-burocrática que tem o condão de manter o direito

indiferente às mudanças da sociedade. Com efeito, o legislativo constituído por representantes

das oligarquias, elaborava um direito liberal no qual o positivismo e a

cultura legalista na formação dos congressistas geraram uma valorização muito forte do plano legal sobre a construção do direito , da legalidade sobre a juridicidade, da lei sobre o direito, sempre a serviço de uma estabilidade e segurança a privilegiar as próprias classes dominantes. (SOUSA JR, 1996:91 apud MARTINEZ, p. 73). (grifos nossos)

Santos e Morais (2207) destacam que é a mentalidade liberal-individualista, que desde o início

norteou os movimentos que levaram à autonomização da política nacional, é a mesma que

nutriu “a criação e a fundação dos cursos jurídicos na Brasil na primeira metade do século

XIX”.

1.5 A Velha República

Com o advento da República, o número dos cursos jurídicos aumentou, acabando com a

exclusividade dos cursos de São Paulo e Olinda. Tal fato se deu em razão da criação de

“instituições de ensino que podiam funcionar regularmente sob a supervisão do governo” o

que permitiu à classe média acesso a esses novos cursos como forma de ascensão social

“colocando um fim no dualismo exercido entre São Paulo e Recife”. (SANCHES, 2003, pág.

19). Vale lembrar a marcante influência positivista na política educacional matizada por

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Benjamin Constant – 1890 – e cujo término será marcado pelo início da política educacional

de Vargas em 1930/31.

Esse período chamado de República Velha ou república oligárquica vai da sua proclamação

até a revolução de 1930, período que coincide com a crise da hegemonia dos latifundiários, o

surgimento da jovem burguesia industrial e do proletariado, bem como com as insurreições

militares apoiadas pelas camadas urbanas. São dessa época as escolas superiores livres que

surgiram para atender à demanda de força de trabalho de nível maior de escolaridade. Este

processo de facilitação do acesso ao ensino superior mediante o aumento destas escolas

privadas atendia às determinações de cunho ideológico, de influência positivista, que se

traduziam em exigências técnico-econômicas para o alcance do aumento de força de trabalho.

Entretanto, a proliferação de escolas superiores que facilitava a obtenção do diploma

garantidor da posse de conhecimento apropriado aos cargos de maior prestígio e remuneração,

comprometeu a formação “dos intelectuais orgânicos das classes dominantes” (CUNHA,

1986, pág. 147), e veio a provocar a instituição dos exames vestibulares como tentativa de

restabelecimento do valor atribuído ao diploma.

Todavia, vale pontuar que a cultura formada no nascedouro dos cursos de Direito parece ter

sido comodamente mantida ao longo desse período até nossos dias. Sim, porque a cultura

normativista técnico-burocrática estabelecida desde os primórdios dos cursos jurídicos e que

adotava “uma valorização muito forte do plano legal sobre a construção do direito, da legalidade

sobre a juridicidade, da lei sobre o direito, sempre a serviço de uma estabilidade e segurança a

privilegiar as próprias classes dominantes.” (SOUSA JR, 1996:91 apud MARTINEZ, p. 73) (grifos

nossos) parece ter ultrapassado os período do Império e da Velha República para chegar até

nossos dias, mantendo o direito indiferente às mudanças da sociedade. Formados para a

função burocrática, parece que, até hoje, os operadores do direito não conseguiram desatar-se

do positivismo garantidor dos interesses das classes dominantes, uma vez que o ensino do

Direito aparentemente mantém sua matriz positivista.

1.6 A Educação e o Ensino Jurídico: sua trajetória ao longo do Século XX

Saviani (2005) aponta, com ênfase, a ausência de um sistema educacional brasileiro ao

comentar que, no século XIX, enquanto os principais países preocupavam-se em organizar

seus sistemas de ensino, o Brasil não teve a preocupação de organizar o seu, gerando para a

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educação “um déficit histórico que nos cria problemas muito sérios na atual circunstância”.

(SAVIANI, 2005, p. 109).

Também, em razão da estrutura federalista da Primeira República, o ensino não foi organizado

como sistema nacional integrado, o que se mantém até os anos trinta (SHIROMA, MORAES e

EVANGELISTA, 2002) a despeito de nos anos 20 reformas educacionais terem ocorrido.

Entretanto, tais reformas ocorreram só no nível estadual e no âmbito da educação básica, como

fenômenos regionais (SAVIANI, 2005). Nessa ocasião, torna-se muito grande a influência da

Escola Nova a partir de um ideário reformista. No alvorecer dos anos 30, debates políticos

trouxeram à baila a necessidade de um Estado nacional antiliberal, centralizador, interventor.

A Educação foi, então, apresentada como solução dos problemas nacionais, sociais,

econômicos e políticos. Esta concepção salvacionista, aliada ao clima criado pelo Varguismo,

passou a incentivar a “importância da ‘criação’ de cidadãos e de reprodução/ modernização

das ‘elites’ [...]”; sendo a educação tomada como propulsora da mudança. (SHIROMA,

MORAES e EVANGELISTA, 2002, p.17)

1.6.1 O tempo de Vargas

Após a revolução de 1930, houve a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública No

campo do ensino superior a orientação se caracterizou pela centralização política

administrativa iniciada com a criação do Ministério da Educação. (CUNHA, 2000, p. 165).

Foi adotado como objetivo “criar um ensino mais adequado à modernização que almejava para

o país” de forma que se organizasse a nova nacionalidade. Intelectuais, políticos e educadores

deram seu o apoio. As reformas conhecidas como “Francisco Campos” promovem mudanças

em vários níveis de ensino como se o problema fosse resolvido tão somente mediante uma lei

bem formulada (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002).

Com o Estado Novo, a repressão que promoveu só faria “letra morta das propostas liberais, da

liberdade de cátedra e de outras garantias constitucionais.” (SHIROMA, MORAES e

EVANGELISTA, 2002, p.25). A Constituição de 1937 não definia o papel da Educação no

projeto de nacionalidade que o Estado Novo pretendia construir, colocando–a apenas como

instrumento de combate à subversão ideológica e de equacionamento da “questão social”. Mas

a escola para o trabalho, ou seja, o ensino para a profissionalização, é por Vargas apresentada

como grande conquista do seu governo. Contudo, houve a criação de uma discriminação na

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medida em que foi criado um ensino profissionalizante para as classes pobres que não tinham

acesso ao ensino superior enquanto as elites continuaram a ser preparadas para a sua função

política. Mais uma vez a história ocorrida no tempo colonial, no Império e na Velha

República, se repetiu. Os interesses econômicos mais uma vez parecem ter determinado o que

seria ensinado e a quem. Com a colaboração das indústrias e mesmo dos sindicatos, estas

escolas para o trabalho constituíram-se em “um dos loci da discriminação social”, segundo

Shiroma, Moraes e Evangelista ( 2002, p.26).

No século XX, para a Educação, os anos quarenta contaram com um marco: as Leis Orgânicas

do Ensino, de 1942, que ampliaram as reformas “Campos”, contemplando as diferentes áreas

da economia com o ensino técnico-profissional industrial, comercial e agrícola. Assim, o

quadro persiste: classe alta faz secundário preparando-se para o curso superior e a baixa passa

por uma “rápida preparação para o mercado do trabalho” com o surgimento do SENAI113. Em

1948, quando foi enviada ao Congresso proposta de reforma geral da Educação, iniciou-se

longa luta ideológica sob fortes pressões conservadoras e privatistas que, depois de 13 anos,

acabariam por resultar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4024 de

20/12/1961). Venceram as forças conservadoras que conseguiram, entre outros aspectos,

submeter a nova LDB aos interesses da iniciativa privada ao prever ajuda financeira à rede

privada e da Igreja . (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002, p.28/30).

1.6.2 Os Anos 1960/1970

Nos anos sessenta, cresceu em importância a tendência representada por aqueles que

apresentavam a educação brasileira como parte das “reformas de base” e como parte dos

movimentos da educação popular. Nestes movimentos engajaram-se inúmeros intelectuais

preocupados com questões educativas que deveriam ser apreciadas dentro do contexto social.

Destaque merecem os Centros Populares de Cultura e Paulo Freire que, depois de cursar

Direito, vai dedicar-se à Educação, com seu método de alfabetização de adultos. Freire

113 Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial_ http://www.senai.br/br/institucional/snai_his.aspx: Criado em 22 de janeiro de 1942, pelo decreto-lei 4.048 do então presidente Getúlio Vargas, o SENAI surgiu para atender a uma necessidade premente: a formação de mão-de-obra para a incipiente indústria de base. Já na ocasião, estava claro que sem educação profissional não haveria desenvolvimento industrial para o País. Euvaldo Lodi, na época presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e Roberto Simonsen, à frente da Federação das Indústrias de São Paulo, inspiraram-se na experiência bem-sucedida do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional e idealizaram uma solução análoga para o parque industrial brasileiro. Dessa maneira, o empresariado assumiu não apenas os encargos, como queria o Governo, mas também a responsabilidade pela organização e direção de um organismo próprio, subordinado à CNI e às Federações das Indústrias nos estados.

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propunha a educação como prática política por entender que educação se processa no

contexto social. Autor da “Pedagogia do Oprimido”, busca a conscientização do educando

para que se torne sujeito de sua vida. Roberto Schwarz sobre esta época, diria: “O país estava

irreconhecivelmente inteligente”. (apud SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002,

p.32). Propostas como o Plano Nacional de Alfabetização, baseado no método de Freire, a

“alfabetização em 40 horas” teriam lugar. A fertilidade da discussão das reformas, contudo,

não duraria muito mais pois os interesses dos grupos dominantes em clara oposição às

reformas que se delineavam acabariam por prevalecer, como comenta Schwarz:

[...] tempos de revanche da província, dos ratos de missa, dos bacharéis em

lei, das damas de sociedade que defendiam em marcha pelas ruas [...] a

tríade “Deus, família e liberdade”[...] (SCHWARZ apud SHIROMA,

MORAES e EVANGELISTA, 2002, p.32).

Afigura-se que os bacharéis estiveram mais alinhados com as forças conservadoras do lado

dos generais que, mediante o golpe militar, passaram a promover outro tipo de reformas: as

reformas necessárias para a adaptação econômica e política do país às exigências daqueles

tempos. Por muitos economistas essa fase foi denominada como a “segunda revolução

industrial”. Nela, o Brasil passou a aprofundar as medidas já iniciadas à época de Juscelino

Kubitschek de Oliveira.

Com certeza, o capitalismo não foi introduzido pelos militares; bem antes da ditadura militar,

a implantação do capitalismo já fora almejada pela metrópole portuguesa, o que acabou por

obrigar o Brasil, sua colônia, ao mesmo movimento. Nos anos sessenta, coube aos militares (e

não mais a coroa) iniciativa similar para a inserção do país neste “momento de reorganização

da economia brasileira [...] no processo de internacionalização do capital. O Estado autoritário

permitiu, então, consolidar no Brasil “o capitalismo tardio” (ORTIZ, 2001, p.114), à

semelhança do que Pombal tentara outrora no reino e nas colônias, especialmente no Brasil

colônia. Naqueles tempos (nos idos de 1750), a política pombalina tentava a transformação da

economia mercantilista vigente em Portugal em uma economia industrial/capitalista

(RIBEIRO, 2000, p. 29). Os militares dos anos 60/70 parece que reeditaram a façanha, pois

buscavam inserir o país no novo contexto das exigências econômico-tecnológicas então

vigentes.

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Portanto, necessário se demonstrou o desenvolvimento da tecnologia. Em razão disso, a

pedagogia “tecnicista” foi a dominante a partir de 1969 (SAVIANI, 2005, p. 90). Por essa

razão, nos anos 60/70, veremos um dos maiores impulsos na área do ensino sob a influência

desta pedagogia “tecnicista”. A reforma do ensino desenvolvida pela ditadura militar teve nas

Leis 5.540/68 e 5.539/68 (Estatuto do Magistério Superior Federal) o arcabouço legal que

propiciou o afastamento de reitores e em seu lugar a nomeação de interventores, restringindo

ainda mais a precária “autonomia universitária”, o que se agravou com a aposentadoria

compulsória de muitos professores de forma que “o controle policial estendeu-se aos

currículos, aos programas das disciplinas e até às bibliografias.” (CUNHA, 2000, p.178).

O aumento de matrículas para o curso superior dos estudantes egressos do Ensino Médio, que

já vinha em um movimento de expansão há alguns anos, contribuiu para a reestruturação

promovida pelos militares nas saturadas universidades federais mediante ampliação das verbas

destinadas ao ensino superior e à pós-graduação para se fazer frente ao expressivo aumento do

número de vagas. Entretanto, diante da demanda por mais vagas e de maiores recursos da

União, o regime militar optou pela solução do impasse mediante a redução de custos.

Em 1971, com a Lei 5.692, a tentativa de profissionalização universal do ensino de 2º grau

evidenciará a influência tecnicista já adotada em 1970 pela orientação pedagógica MEC–

Usaid. Esta orientação pautava-se nas idéias da racionalidade, eficiência e produtividade

(SAVIANI, 2005). A proposta da educação passa a traduzir-se em formação do “capital

humano”, vinculada ao mercado de trabalho e à modernização dos hábitos de consumo. Essa

política desenvolvimentista aplicada à Educação, articulada a uma reorganização do Estado,

tinha o escopo de garantir os interesses econômicos vigentes mesmo que isso significasse a

repressão e o controle político ideológico da vida intelectual e artística como ocorreu no país.

(SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002)

Assim, presenciaram-se no período entre 1962 e 1972, às reformas promovidas pelos governos

militares fortemente balizadas pelas recomendações advindas de agências internacionais e que

imprimiram caráter profissionalizante aos cursos superiores, inclusive aos cursos jurídicos.

Essas reformas determinaram o caráter tecnicista que passou a permear a política educacional,

o que apenas acentuou ainda mais o baixo nível de qualidade do ensino. O nível do curso

jurídico, que já vinha baixando em razão da sua desvinculação da realidade social por conta da

preservação dos currículos rígidos, “cumpridos” por meio das tradicionais aulas conferências,

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passou a ter o mesmo objetivo profissionalizante dos cursos superiores, agravando ainda mais

sua qualidade.

Nesse período há que se destacar a lei que foi considerada um grande marco na história das

universidades brasileiras: a lei 5540 de 1968. A lei 5540 de 1968114 imprimiu suas marcas

mediante a reforma que determinou no ensino superior.

Esta lei, entretanto, apresentou um aspecto contraditório na medida em que, ao mesmo tempo

que determinou a repressão no âmbito universitário mediante perseguição policial, tortura,

expulsão, exílio, implementou a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Essa

114 Em reportagem, o site http://www.comciencia.br apresenta aspectos relevantes sob o título Ditadura imprime suas marcas via Reforma Universitária (...) A reforma universitária, gestada pelo governo militar em 1968, é considerada um grande marco na história das universidades brasileiras. Sanfelice comenta que o objetivo da reforma era "modernizar a universidade para um projeto econômico em desenvolvimento, dentro das condições de 'segurança' que a ditadura pretendia para si e para os interesses do capital que o representava". A Lei 5540/68 introduziu a relação custo-benefício e o capital humano na educação, direcionando a universidade para o mercado de trabalho, ampliando o acesso da classe média ao ensino superior e cerceando a autonomia universitária. (grifos nossos)

Diversas medidas foram tomadas para alcançar tais metas, entre elas: a unificação do vestibular por região; o ingresso por classificação; o estabelecimento de limite no número de vagas por curso; a criação do curso básico que reunia disciplinas afins em um mesmo departamento; o oferecimento de cursos em um mesmo espaço, com menor gasto de material e sem aumentar o número de professores; a fragmentação e dispersão da graduação; o estabelecimento de matrícula por disciplina. Em 1971, foi promulgada a Lei 5692 que instituiu também a reforma do ensino fundamental, com mudanças que determinaram, por exemplo, a extinção das disciplinas de Geografia e História que foram substituídas pelo ensino de Estudos Sociais. Entre os resultados obtidos com as políticas implementadas os pesquisadores apontam: a diminuição na qualidade do ensino fundamental público, com a respectiva valorização do ensino particular, e a consequente elitização do ensino universitário, que impede até hoje o acesso de grande parte da população à universidade pública. (...)

Analisar a história pela perspectiva das rotas de fuga dos mecanismos ditatoriais, parece ser importante, mas não apaga da história as marcas da perseguição, cassação e expulsão de pesquisadores, docentes e alunos em todo o Brasil, que não aceitaram a ditadura e a ideologia da "segurança nacional". Romano ressalta que "a universidade cumpriu muitos papéis durante o regime castrador. Alguns de seus membros foram heróicos na tarefa de manter a qualidade superior da pesquisa e do ensino. Outros, se entregaram à colaboração sem freios éticos com os donos do mando político da hora. O movimento estudantil, na época, foi um dos esteios da luta em prol da democracia e do respeito aos direitos humanos". A conivência de docentes das universidades com os militares foi registrada na Revista Adusp, da Universidade de São Paulo (USP). Uma ampla cobertura traz à tona a colaboração da reitoria da Usp com os órgãos repressivos que, inclusive, antecedem o período do golpe militar. Ao mesmo tempo a USP também teve uma intensa movimentação política de combate às condições da época realizando passesatas, assembléias, manifestos e reinvindicações que ficaram na história. http://www.comciencia.br/reportagens/universidades/uni03.shtml (acesso em 28/02/09, às 10horas e 36min.)

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tendência contraditória ocorreu no âmbito da pós-graduação e, de certa forma, possibilitou “o

exercício da crítica social e política não somente ao regime político vigente no país, como

também ao próprio capitalismo” (SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002, p.38).

Paradoxo semelhante foi apontado acima a partir dos comentários de Wolkmer (1995) que nos

fala do advento da República, quando forças antagônicas adequaram os princípios liberais aos

interesses das estruturas oligárquicas produzindo um conteúdo político conservador sob uma

aparência democrática. Forças antagônicas mais uma vez, agora no regime militar, se

coadunam para manter a velha tradição das elites brasileiras em paradoxal postura que busca

“mudar para não mudar, modernizar sem romper com os antigos laços de poder, nem ferir os

interesses constituídos. ”(SHIROMA, MORAES e EVANGELISTA, 2002).

Visando à manutenção dos interesses conservadores de então, a década de 70 assistiu ao

processo de “demolição dos programas universitários”, forma adotada para que se permitisse

cumprir “o novo paradigma do ensino superior: o mercado de trabalho” de acordo com o

modelo “técnico-profissionalizante” estimulado pelo regime militar. A busca da excelência foi

trocada pelo atendimento da demanda do mercado, deixando-se de lado, em conseqüência, a

formação humanista, política e social, indispensável ao operador do direito (HIRONAKA,

2005, p.35).

A despeito de alguma resistência por parte das universidades públicas e pontifícias que

representaram exceção à regra, os demais cursos jurídicos podem ser identificados como

aqueles que “formam” seus alunos dentro das exigências técnico-profissionalizantes e nos

quais a preocupação fundamental é “a busca pela clientela e pelo lucro” em “detrimento da

busca de excelência qualitativa” (HIRONAKA, 2005, p. 35).

Na área jurídica, no período entre 1972 e 1994, vigorou a Resolução n. 3 do Conselho Federal

de Educação; nesse período, houve um aumento de vagas deste curso economicamente viável,

“de baixo custo de instalação e manutenção”. Já se prenunciava o que hoje se denomina a crise

no ensino jurídico. (SANCHES, 2003, pág. 20)

1.6.3 Os Anos de 1980

Apesar de cognominada pelos economistas de “década perdida” e de ter sido um período de

crise econômica iniciada na década anterior por conta dos problemas “mal diagnosticados e

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mal administrados pelos governos militares, [que] deixaram como herança o crescimento do

desequilíbrio financeiro do setor publico e da dívida externa” (SHIROMA, MORAES e

EVANGELISTA, 2002, p.46), não se pode deixar de apontar os dados positivos destes anos de

1980. A década de 80 foi o tempo da emergência de novos sujeitos sociais, década rica em

movimentos sociais de grande relevância e que produziria o clima propício para as “diretas

já”, para uma nova cultura operária, um novo sindicalismo e para a nova Constituição

Federal, chamada cidadã.

Santos e Morais (2007) destacam que, desde o período pós-64, os cursos de Direito foram se

transformando “em centros formadores profissionais, em sua maioria desqualificados”, cujos

egressos eram absorvidos apenas em funções subalternas deixando de representar, em

conseqüência, a possibilidade de ascensão social como dantes representara. Estes cursos

restringiam-se à visão positivista-legalista do fenômeno jurídico sem qualquer preocupação

crítico- reflexiva, denotando o grande distanciamento que da ciência mantiveram. Nesses

cursos, ensinava-se tão somente a lei mediante meros comentários que não iam além do óbvio,

de acordo com o velho modelo discursivo centrado no professor, com perda crescente da

significação social do Direito. Totalmente distanciados da realidade social concreta, estes

cursos de metodologia presa ao purismo normativista passaram a formar “juristas e

acadêmicos” descomprometidos historicamente e presos a realidades conceituais, criadas por

eles próprios. Esta situação poderia ser explicada, em grande parte, pela vinculação dos

responsáveis dessas escolas ao discurso dominante emanado do poder (SANTOS e MORAES,

2007)

1.6.4 Os Anos de 1990

Será a partir dessa década que políticas educacionais de cunho neoliberal passaram a ser

implementadas por Fernando Collor e, mais sistematicamente, no governo de Fernando

Henrique. Segundo Neves (2007), sua implementação ocorreria mediante a difusão e

sedimentação, entre as atuais e futuras gerações, da cultura empresarial. Para tanto, a educação

escolar teria como finalidade contribuir para aumentar a produtividade e a competitividade de

acordo com o novo paradigma produtivo; a classe trabalhadora seria educada para aceitar a

realidade do novo sistema. Os trabalhadores seriam educados para

“aceitar , como inevitável e até mesmo desejável, a perda da soberania nacional, a desindustrialização, o crescimento do desemprego, a flexibilização das relações do trabalho, a instabilidade social e profissional, o

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agravamento do processo de exclusão social, a perda de direitos historicamente conquistados, e a recorrência à competição, ao individualismo, à passividade ou mesmo à restrita participação política como estratégias de convivência social.” (NEVES. 2007, p. 213)

Estes pontos assinalados por Neves resumem os diferentes aspectos presentes na sociedade

organizada dentro dos pressupostos neoliberais.

Deve ser ressaltado que o projeto original da LDB, discutido ao longo dos anos 80, quando

aprovado finalmente em 1996, já não mais correspondia às aspirações originais. Descaminhos

desde o governo Collor foram levando o projeto a outro formato: o formato

desregulamentador e privatista com vistas à adequação da sociedade brasileira ao mundo

moderno, o que é entendido e chamado de ensino de qualidade. Essa lei seria considerada por

muitos de caráter anódino. Por força da LDB/96 o Estado não ficou nem impedido nem

obrigado a fazer modificações substantivas na educação (SHIROMA, MORAES e

EVANGELISTA, 2002). O conceito de Educação passa a ser o de propiciar “formação” e a

sua responsabilidade foi deslocada do Estado para a família e para a comunidade, ou seja, para

a sociedade civil. Por força dessa lei, a educação deveria ocorrer em vários e diferentes

espaços e a iniciativa privada surge como a assessora da reforma educacional. O Estado

terceirizou o ensino, para usar um termo contemporâneo, passando paulatinamente para a

sociedade o ônus financeiro dessa obrigação. O Estado usa seus sistemas de avaliação como

instrumento de controle sobre a educação, mas flexibiliza sua administração em forma

particular de gestão que mescla centralização com descentralização e que alguns estudiosos da

matéria deram o nome de política de mercantilização do ensino (SHIROMA, MORAES e

EVANGELISTA, 2002). O sentido da LDB foi alterado justamente para possibilitar, pelo que

se pode inferir, a legitimação dos interesses subjacentes ao governo.

A estratégia educacional neoliberal fundamenta-se em duas teorias, a teoria do capital

humano e a teoria das competências, segundo lição de Neves (2007). “A primeira orienta as

relações entre escola e sociedade enquanto a segunda fornece os fundamentos psico-

pedagógicos da prática docente”. Para implementação dessa estratégia educacional ações

estatais submetem “a escola à empresa, [e] em todos os níveis e modalidades do ensino o

sistema nacional de avaliação e as diretrizes e parâmetros curriculares” são balizadas por estes

elementos teóricos. (NEVES, 2007, p. 214/5)

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Vale destacar a opinião desta autora sobre a forma como o governo busca mediante políticas

sociais dar legitimidade às relações sociais de produção. Para ela a “política educacional,

enquanto política social, tem, também por finalidade ético-política conformar as novas

gerações às idéias, valores e crenças hegemônicas no capitalismo monopolista.” (NEVES,

2007, p. 207/208). Dessa forma o Estado dá atendimento às demandas impostas pelo mercado.

Para Neves (2007), portanto, a política educacional é a resultante das repercussões econômicas

e ético-politicas das aplicações da ciência sobre o trabalho.

A “conformação” de mentalidades, entre outras coisas, parece ter sido favorecida pela

ressignificação de vários conceitos (conceitos “sob nova tradução”) que, naquela altura,

revelaram-se mais adequados aos interesses vigentes. Assim, teríamos:

• “Participação da sociedade” querendo significar “participação de empresários/ONGs”;

• “Descentralização” querendo significar “desconcentração da responsabilidade do

Estado”;

• “Autonomia” querendo significar “liberdade para captação de recursos”;

• “Formação do cidadão” querendo significar “atendimento ao cliente”;

• “Melhoria do ensino” querendo significar “adequação ao mercado”;

• “Aluno” querendo significar “consumidor”;

• “Capacitação do professor” querendo significar sua “profissionalização”.

A ressignificação ou “redefinição de noções”, como quer Evelina Dagnino (2004), foi muito

bem focalizada por ela em seu artigo “Sociedade, participação e cidadania: de que estamos

falando?. Nesse artigo, apontou ela a “redefinição de noções” como “sociedade civil”,

“participação” e “cidadania” para demonstrar como o deslocamento de sentido constitui-se em

mecanismo que expressa não só uma estratégia política mas também uma política cultural

praticada para atender a projetos políticos. Explica que “nossa hipótese central sobre a noção

de projetos políticos é que eles não se reduzem a estratégias de atuação política no sentido

estrito, mas expressam e veiculam e produzem significados que integram matrizes culturais

mais amplas.” (DAGNINO, 2004, p.98). Ao contrário do emprego comum dado à expressão

“política cultural” para significar produção e consumo de bens culturais, Dagnino fala em

“política cultural” como resultante do laço constitutivo indissolúvel entre cultura e política no

qual cultura é entendida como visão de mundo, e cuja compreensão implica considerar o

conjunto de significados que integram as práticas sociais e as relações de poder embutidas

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nessas práticas. Interessante notar que, para a autora, o caminho inverso, da mesma forma,

tem que ser considerado, pois afirma: “ Por outro lado, a compreensão da configuração dessas

relações de poder não é possível sem o reconhecimento de seu caráter “cultural” ativo, na

medida em que expressam, produzem e comunicam significados” (DAGNINO, 1994 apud

DAGNINO, 2004, p. 104).

1.7 SÉCULO XXI E O MERCADO UNIVERSITÁRIO

A orientação neoliberal, que tem permeando de forma multifacetada a sociedade de uma

maneira geral, faz-se sentir, também, na educação superior. Na opinião de Boaventura de

Souza Santos (2005) dois processos, entre outros, marcaram a década dos anos noventa: “o

desinvestimento do Estado na universidade pública e a globalização mercantil das

universidades” que, como faces da mesma moeda, serviram de pilares a um projeto de médio e

longo prazo para “mudar profundamente o modo como o bem público da universidade” foi

transformado “num vasto campo de valorização do capitalismo educacional”. (SANTOS,

2005, p. 18) Tal projeto viabilizou-se, segundo esse autor, mediante a descapitalização da

universidade pública e a transnacionalização do mercado universitário. A mercadurização da

universidade, ainda conforme Santos (2005), foi uma opção preparada na década anterior e

concretizada na década de noventa e que se processou em duas fases:

• a primeira, que vai do início da década de 1980 até meados da década de 1990 e na

qual se verifica a expansão e consolidação do mercado nacional iniciada no início dos

anos oitenta e que se estende até meados dos noventa;

• a segunda que viu nascer um forte mercado de transnacional do ensino universitário

apontado pelo Banco Mundial e a Organização Mundial do Comercio como a

“solução global dos problemas de educação (...)” sinal de estar em curso a globalização

neoliberal da universidade (SANTOS, 2005, p. 17).

De acordo com esse novo “paradigma civilizatório”, como acima asseverado, o processo de

mercadorização do ensino superior - possível na perspectiva neoliberal - operacionalizou-se

em dois níveis: o primeiro, que consistiu em induzir a universidade pública a superar seus

problemas financeiros mediante a privatização de parte de seus serviços “através de parcerias

com o capital”; o segundo, que consistiu em eliminar a diferença entre universidade pública e

privada, expediente pelo qual a universidade, além de funcionar como “empresa” que produz

para o mercado, constitui ela própria um “mercado de gestão universitária, de planos de

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estudo, de certificação,de formação de docentes , de avaliação de docentes e estudantes.”

(SANTOS, 2005, p. 19). Dessa forma, a iniciativa privada é chamada a realizar o ensino e o

chamariz é o lucro.

O aspecto da política neoliberal que se ressalta aqui é aquele resultante do “consenso

internacional”. Merece registro, por exemplo, o relatório de 2002 do Banco Mundial,

referente ao Brasil. Nesse relatório há a “recomendação” de não aplicação de recursos

públicos nas universidades, uma vez que a solução deveria viabilizar-se pela“ ampliação do

mercado universitário” combinada com a eliminação da gratuidade do ensino público, bem

como com a “redução dos custos por estudante”, o que, entre outros efeitos, pressionou para

baixo o salário dos docentes (SANTOS, 2005, p.22). Essa política de redução de custos na

Educação, na verdade, não se constituiu em uma novidade. Já havíamos passado por isso no

final dos anos sessenta e anos setenta quando a reforma do ensino promovida pelos militares

optou pela redução de custos para atender à política desenvolvida sob influencia tecnicista da

orientação pedagógica MEC–Usaid. Isso ocorrera pela imposição das Leis 5.540 e 5.539 de

1968, entre outras. Como já referido, esta orientação pautava-se nas idéias da racionalidade,

eficiência e produtividade. (SAVIANI, 2005, p. 90)

Assim, na década de noventa manteve-se a política educacional de contenção de custos,

porém, defrontada com uma demanda do mercado ainda maior por mão de obra

“qualificada”115. Das escolas superiores foi exigido, então, o fornecimento dos conhecimentos

científico e técnico necessários à formação que atendesse aos padrões da “Qualidade Total”.

Tal exigência via se servir da “retórica da qualidade total” para se impor.

A ‘retórica da qualidade’ está no bojo do “Programa da Qualidade Total”, que teve seu início na década de cinqüenta, nas empresas japonesas e que visava à instauração do novo paradigma da administração, cujas palavras de ordem são “eficiência, controle e competitividade” (RIOS, 2008, p. 72). O ‘discurso competente’ que se impõe pela chamada ‘retórica da qualidade’, aparece “como ‘contra face do discurso da democratização’, que estava presente nas escolas [deslocando] o eixo do debate sobre a qualidade do ensino como direitos dos cidadãos para uma articulação com as questões associadas à produtividade e à competitividade.” (VIEIRA, 1995 apud RIOS, 2008, p.73). Com o crescimento desse paradigma empresarial adotou-se também na área educacional o corolário: “o que é bom para a empresa, é bom para a escola.” Ora, se na esfera empresarial o que se espera é um profissional qualificado, “de alto nível de competitividade e de adequação aos critérios da racionalidade técnica e mercadológica” (RIOS, 2008), ser

115 Um ensino preso aos ditames do mercado não seria de Qualidade, na medida que busca atender às necessidades do mercado e não às necessidades do educando.( MAGANO, 2009)

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qualificado passa a equivaler a ser competente, ser aquele que desenvolve competências. À escola caberá o papel não de propiciar uma formação integral do educando, mas de fazê-lo desenvolver competências que o tornem (não mais humano), mas mais competente, isto é produtivo e competitivo. (MAGANO, 2009, p. 108)

A preocupação da apontada política educacional de “Qualidade Total” aparenta não ser

humanista ou cultural, nem tampouco, de formação integral do educando; assim, quer parecer

que a preocupação seria o “fornecimento” de conhecimento cientifico e técnico para

abastecimento do mercado como resposta a uma demanda de um tipo de “saber” que atenda às

especificações técnicas requeridas.

Por outro lado, como ressaltado por Santos (2005), assistiu-se nos anos noventa ao

“crescimento explosivo de emprego com baixíssimo nível de qualificação” (2005, p.23). A

conclusão deste autor orienta-se no sentido de que “a globalização neoliberal da economia

veio aprofundar a segmentação ou dualidade dos mercados de trabalho entre países e no

interior de cada país.” (2005, p.23). E não apenas isso. Permitiu que o recrutamento de mão-

de-obra pudesse ser feito globalmente ou pela fuga de cérebros ou pela subcontratação

(outsourcing) de serviços técnicos avançados, o que pode ocorrer pela “deslocalização das

empresas como também através da imigração muitas vezes clandestina.”(2005, p. 23). Esta

terceirização sem fronteiras, exigida pelo mercado, corresponde a um movimento que no

mundo do trabalho foi chamado de “terceirização”, figura de contratação de mão-de-obra

concebida na esteira da flexibilização das normas trabalhistas, tendência resultante da

globalização neoliberal.

Portanto, na área da educação, sob a pressão da produtividade, presenciou-se na década de 90,

adentrando os primeiros anos do novo século, o movimento da flexibilização da educação; é

ele todo voltado para o atendimento do mercado e o seu foco não será o educando ou os seus

direitos mas o atendimento dos interesses do mercado globalizado acompanhada por uma

verdadeira exploração e aproveitamento das pessoas qual um “capital”, o “capital humano”.

Emprestam-se aqui as palavras de Vera Telles que diz que a flexibilização está subsumida aos

“critérios da racionalidade instrumental do mercado” (2004, p.96). A flexibilização apontada

pela autora nas relações trabalhistas, se comparada àquela existente na área da Educação,

aponta para a conclusão de que as normas educacionais têm sido ditadas pelos “critérios da

racionalidade instrumental do mercado”. Sendo esta a situação do Brasil, a de um país semi

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periférico ao sistema globalizado, seu sistema educacional deve atuar apenas como fornecedor

da mercadoria “mão de obra”.

Interessante atentar para o que foi apontado por Prado quando analisa a economia da era

colonial. O movimento aparentemente se repete. Vejamos Prado (1962):

Assim, o que se pode depreender desses fatos é que no Brasil foi constituindo um sistema para atender interesses externos, demandas externas e que adotaria (...) um regime de monopólios e restrições destinados a dar a maior amplitude possível à exploração e aproveitamento da colônia e canalizar para o reino o resultado de todas as atividades. (1962, p. 54)

Hoje, não se trata mais de enviar matérias primas para o reino português/inglês mas de

atender aos interesses externos, às demandas externas de mão-de-obra dentro dos padrões

de qualidade impostos pelo mercado a um baixo custo para que, assim, se atenda ao princípio

da produtividade.

Ao apontar para o fenômeno da mercadurização da universidade, Santos (2005) fala, como já

apontado, das duas fases de seu estabelecimento; a primeira, a da consolidação da

universidade como bem de consumo no mercado nacional, e a segunda que coloca em curso a

globalização neoliberal da universidade pelo estabelecimento de um mercado transnacional do

ensino universitário nos anos noventa. (2005)

É o próprio Santos quem apresenta as idéias mestras que presidem a expansão do

mercado da Educação como um dos movimentos mais vibrantes e com maior potencial do

século XXI (2005, p.28). Ele assim as elenca:

• Vive-se hoje na era da informação na qual a “gestão, a qualidade e a velocidade da

informação são essenciais à competitividade econômica.” Para tanto há que se

produzir, segundo essa orientação apontada por Santos, mão-de-obra “de qualidade”

com vistas ao aumento da produtividade.

• Essa economia que tem por base a informação (e que Santos chama conhecimento)

está a demandar o que se passou a denominar “capital humano” como condição de

criatividade no uso de informação (...), eficiência e capacidade de promover constante

reciclagem.

• Segundo as novas políticas calcadas nessas tendências, o antigo paradigma deveria ser

abandonado pois, se mantido, manteria a economia do país em questão sem condições

de sobreviver . E o novo paradigma que se preconiza assim se apresenta:

- que as relações entre os públicos relevantes sejam relações mercantis;

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- que a política educacional (sua qualidade, eficiência) tenha no mercado seu

balizamento;

- que entre professor-aluno a mediação seja tecnológica;

- que o ensino seja para satisfação do cliente;

- que a flexibilidade e a adaptabilidade sejam as qualidades a forjar os

“operadores do ensino” de acordo com as expectativas dos seus

empregadores;

- que a instituição de ensino esteja apta a disputar o melhor nicho do mercado.

Essas idéias de Santos (2005) acima elencadas fazem parte, segundo o autor, de um cenário no

qual a instituição de ensino é levada a se organizar empresarialmente ao fito de maximizar

lucros, como qualquer outra empresa. Pois só assim seriam capazes de obter financiamento do

Banco Mundial. Este banco tem atuado como inculcador das supramencionadas idéias nos

países não centrais, ou seja, periféricos e semiperiféricos, entre os quais figura o Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É em razão desse contexto histórico ora apresentado que, atualmente, considerável número de

cursos de direito parecem estar voltados para o tipo de ensino predominantemente tecnicista.

Tal prevalecência aparentemente resulta da política educacional acima descrita perpetrada ao

longo de nossa história com as sofisticações do mercado que têm sido adotadas e praticadas

ultimamente no Brasil. Os fatos apontados neste escorço histórico encontram ressonância nos

autores visitados como Neves (2007), por exemplo, que entende que a política educacional de

dada sociedade é determinada por um complexo de determinações que dependem do “estágio

de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção” e do embate entre

diferentes propostas (NEVES, 2007, p. 208). Quer nos parecer que interesses econômicos e as

suas implicações ético-políticas, como acima delineado, compõem esse “complexo de

determinações” que permeiam (e acabam por ditar) as decisões relativas ao ensino jurídico.

O bacharel formado pelos cursos jurídicos desde 1827 parece ter desempenhado o papel

político garantidor dos interesses da elite no Brasil. O diploma a ele fornecido garantiu-lhe a

posse do conhecimento apropriado aos cargos de maior prestígio e remuneração. Quando, a

partir da década de 70, em atendimento ao novo paradigma do ensino superior, buscou-se a

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satisfação das exigências do mercado de trabalho ditadas pelas suas demandas, impôs–se o

modelo “técnico-profissionalizante” ao ensino superior, inclusive ao jurídico, de forma

“remasterizada”, dentro do padrão globalizado da “Qualidade Total”. A busca por atender à

demanda do mercado, a preocupação do “capitalista educacional” com o lucro, fará com que

os cursos mercadurizados passem a depender de sua capacidade maior ou menor de “vender”

a promessa de uma vaga no mercado de trabalho aos seus “consumidores”. Pautada no

mercado, é a relação consumista que dita a regra. Esses são fatores que compõe o “complexo

determinante” da política educacional praticada também na área do ensino do direito. Muitos

cursos de Direito parecem buscar responder à atual demanda do mercado educacional e, em

decorrência disso, vem ministrando um tipo de ensino pelo qual forma meros operadores da

técnica jurídica.

O que nos parece possível concluir é que, se conservada a tendência da manutenção do ensino

jurídico com característica técnico-profissionalizante com foco no mercado de trabalho, a

despeito de toda a regulamentação existente para a área de ensino jurídico, não se estará

privilegiando convenientemente a importância da formação humanística. Dessa forma, o que

se pode prever é a manutenção de um ensino do direito (com letra minúscula) tecnicista,

ensino que não está a serviço de todos mas, sim, à serviço de alguns por meio da manutenção

do mesmo estado de coisas que no passado foi preservado com prejuízo dos menos

favorecidos e que, até hoje, o “direito minusculizado” vem permitindo manter.

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