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Ana Paula Fontoura da Silva
"A PROIBJ(;:AO FUNDA 0 DESEJO?"
Monografia apresentada ao Cursu de P6s-Gradua~iio em Psicologia, da Faculdadc deCicncias Biologicas c da Saudc daUniversidade Tuiuti do Parana, como rcquisitoparcial it obtenryao do titulo de Espccialista empsicologia Clinica.Area de concentraryao: Psicanalisc.
Orientadora: ProC Esp. Angela Mum SilvaValorc.
Curitiba
2006
SUMARIO
RESUMO ...
ABSTRACT ...
INTRODUCAO ...
. .iv
SENTlDO DO PECADO ESTA SUMfNDO? ..
CONCLUSAO ...
BIBLlOGRAFfA. ..
. 38
. v
. 1
CAPiTULO 1- MORAL, ETfCA E RELlGIAo... . 8
CAPiTULO 1I- 0 PECADO SEGUNDO REFERENCIAL CRfSTAO... . 13
CAPiTULO III - 0 PECADO SEGUNDO REFERENCIAL PSICANALiTICO 20
CAPiTULO IV - A INFLUENCfA DO PECADO NO HOMEM ATUAL. 0
PARADOXO DA QUESTAO DO PECADO NA SOCIEDADE DE CONSUMO: 0
. .47
. .52
RESUMO
Se para falar de pccado Ga que cstc e urn lcrmc advindo do cristianismo) a propria Bibliafor tomada como referencia primeira, vc-sc que 0 pecado original consiste no acesso aofruto proibido da arvore do saber - dai pode-se concluir que 0 ato de saber e cntaooriginalmcntc cquivalente ao ato de pecar; c como castigo, Adao e Eva foram cxpulsos doparaiso por ocasiao desla transgressao. A lei e que cmpurra it transgrcssao. pois, comodisse Sao Paulo em sua Epistola aos Romanos, ao ser enunciada, a lei produziu 0 desejo-"a proibiy30 funda 0 desejo". A intenyao aqui c discutir, atraves de uma rcvisao tcorica,como a n0930 de pccado areta 0 hom em, inclusive nos tempos atuais, em que se encontranurn mundo de novos valores (muito difcrentes, senao opostos aos anligos), rcgido poruma etica de bens, onde a moral vigente C a do consumo. E procura-sc questionar, seainda sobra urn scntido cristao de pecado ou sc 0 progrcsso da socicdadc ja deturpou estcsentido ou ate 0 cxtinguiu. Onde a psican:Hisc cntra nesta discussao? A psicanalise e urnoutro rcfcreneial para se queslionar 0 pccado, ja que lei e culpa sao elementos cenlrais nasdivergencias entre a psicanalisc e 0 sentido cristao do pecado; e Freud, em "0 rnal-cstarna civilizayao" traz 0 senlimento de culpa como 0 mais importantc problema nodesenvolvimcnto da civiliza9ao. E, a1em de urn referencial (embora 0 pecado seja urntermo do discurso religioso e nao psicanaHtico), hit que sc pcnsar se a psicanalise traz urnnovo sentido ao pccado, como afinnam alguns aulores.
Palavras-chave: Lei, lransgressao, desejo. moral c etica, culpa.
ABSTRACT
Iflo talk about sin (since this is a term resulted afthe Christianity) the Bible will be takenas first reference, it can be secn that the original sin consists in the access to forbiddenfruit of the tree of knowledge - from there, it can he concluded that knowledge isoriginally equivalent to sin; and as punishment, Adam and Eva had been expelled of theparadise because of this trespass. The law is what pushes to the trespass, therefore, asSaint Paulo said, in his Epistle to the Romans, being enunciated, the law produced thedesire - "the prohibition establishes the desire". The intention here is to argue, through atheoretical revision, how the notion of sin alYcets the man, also in the current limes, whichlives in a world or new values (very different, otherwise opposing to the old ones),conducted by an ethics or goods, where the effective moral is the consumption. And isintended to question, if still lefts a Christian direction of sin or if the society progressdisfigured this direction already or until put it out. Where the Psychoanalysis enters in thisquarrel? The psychoanalysis is another reference to question the sin, since law and guiltarc central elements in the divergences between the psychoanalysis and tbe Christiandirection orthe sin; and Freud, in "Civilization and its Discontents", brings the feeling ofguilt as the most important problem in the development of the civilization. And, beyond areference (although the sin be a tenn of the religious speech and not of the psychoanalysisspeech), it should be thought if the psychoanalysis brings a new sense to the sin, as someauthors affirm.
Key-words: Law, infringement, desire, moral and ethics, fault (guilt).
INTRODU<;:AO
o titulo deste tTabalho representa a ideia que se quer estudar a respeito do
pecado. Com eSla indagayao - "a proibiy30 fWlda 0 desejo?" - procura-se verificar se a
insrihlicao de uma lei moral, que vern para ditar 0 que e certo e 0 que e crrado, nao
estaria justamente, ao ser enunciada, apresentando 0 desejo, que nCIll sempre constltui
o que e certo, porquc este nao e guiada por lei cxtema. Para tanto, antes de estabelecer
como a 1101'(30 de pecado afcta 0 homcm, inclusive nos tempos atuais, surgcm outros
questlonamentos, que se propoern a: verificar a relacao entre moral, etica e religiao.
uma vez que esta ltltim3 tambem pressupoe uma regulamcntacao das relacoes entre os
homens e de sell comportamcnto, ditando 0 que e certo e 0 que e errado; definir 0
conceito de pecado segundo 0 referencial cristao (na medida em que "pecado" e um
tellllO advindo do Cristianismo) e segundo 0 referencial psicanalitico - base para este
estudo, embora "pecado" nao faya pal1e do discurso psicanaHrico~ analisar a
contradiyiio da vida na sociedade de consumo atual com a nOyaOde pecado; aiem de
pensar se 0 senti do do pecado esta se diluindo e se teria a psicanalise alguma relayao
com isso.
Isto porque, 0 pecado parece desacreditado em BOSSOSdias. 0 proprio frei
Antonio Moser, em seu artigo "Pecado, Culpa e Psicami.1ise" (1975) question a se as
listas de pecados revelam de forma suficiente a condi.;:ao de pecador do homem ou, se
na realidade, sao apenas uma compreensao superficial do homem como sujeito de
atitudes isoladas e extemas. Porque a maioria dos sujeitos, busca scr "correto", mas de
2
acordo com a Biblia, naD pode negar sua condiCfao de pecador. Ou seja, por mais que
busque nao pecar, 0 homem scmpre roi e sernprc sera considerado pecador pela
religiao. Entao por que continuar obedecendo a uma lei moral imposta, se 0 homcm ja
esta condenado a priori pela Tgreja? Baseado nissa, tnuitas pessoas Edam de forma
muito "subjetiva" COm 0 pecado, l11uitas vezes ate filiando-se a religioes que impocm
proibi~5es bern c1aras (as mais radicais, como as evangelicas, por exemplo); mas na
realidade naa se submetem totaimcnte a elas, porque sabem que sao pecadores "pOl'
natureza". ou porque acreditam que desobedecendo as proibic;:oes naa serao
"condenados", ou simplesmente porque sao guiados pela maxima "farra 0 que eu digo,
nao fa93 0 que eu fa90". au se 0 que afinna Freud ern "Atos obsessivos e pnltic3s
religiosas" (1907), sobre 0 individuo executar uma pn1.tica religiosa sem ater-se ao seu
significado, pelo simples fato de ser urn ritual da sua religiao, apl.icar-se-ia tambem it
relayao com 0 pecado.
Atraves de pesquisa bibliognifica, 0 metoda utilizado no presente tTabalho
consiste em uma revisao literaria, onde procura-se explicar 0 tema deste estudo atraves
de referencias te6ricas publicadas a respeito do ass unto - pecado. Para tanto, buscou-se
em Adolfo Sanchez Vazquez, no livro "Erica" (2000), fundamental' a questao da moral
e da ctica e estabelecer uma rela9ao corn a religiao, jit que a ultima pressupoe uma
moral, a moral crista, a ser enfocada aqui.
Partin do entao do principio cristao, nao ha como deixar de falar em pecado a
paltir de um referencial biblico, ja que 0 «livro sagrado" traz em si a fundamentayao
das leis cristiis. Neste estudo, busca-se retirar da propria Biblia, passagens que se
3
refercm ao pecado, a fim de analisar e compreender as varias definivoes que a religiao
crista propoe sabre 0 mesmo. A partir de listas de pecados citadas no uIndice
Tcmatico" da Biblia, as quais trazem uma divisao clara entre pecado original, atual,
mortal, refcrcnte ao mal etc., procura-se demonstrar 0 que caracteriza cada urn deles,
para que se tcnha uma leitura 3mpla do que 0 cristianismo classifica como pecado.
Buscando urn referencial psicanalitico para estudar 0 pecado, estc trabalho
aborda alguns autores que tratam deste tema, dircta au indiretamente; mas,
inegavelmente, Freud e a referencia principal que embasa estc estudo. Maria Rita Kehl
em seu livro "Sabre Etica e Psicanalisc" (2002) afinna que, diferentemente da moral
crista, para a psicana1ise existe uma incompatibilidade entre culpa e etica. Freud em "0
mal-estar na civiliza930" (1930) tTata da questao da culpabilidade, trazendo 0
sentimcnto de culpa como 0 rnais impOitante problema no desenvolvimento da
civii.izay30 e afinna que a intensifica9ao deste senrimento traz a perda de felicidade,
sendo este 0 pre90 que se paga pelo avan90 da civiliza930. Contardo Calligaris raja
justamente dessa questao ern seu 3Itigo "Divida e culpa" (1990), enfocando a culpa
como urn verdadeiro motor do desenvolvimento psiquico, fazendo distin930 entre
culpabilidade e culpa, em que a primeira nao necessariamente seria um tenTIOrelativo it
cuJpa, mas sim urn afeto subjetivo concemente ao sujeito psicol6gico dissociado de
culpa enquanto fato estrutural; seria 0 sentimento de experimenta9aO da culpa, uma
culpa imaginana. Jfl a culpa, oa tradu930 francesa de Lacan, ''jaule'', em portugues
tambem podendo ser interpretada como "falta" e em alelllao "should', gera um
"equivoco" entre divida e culpa. A culpa como falta e da ordem da simboLiza9ao de urn
4
real, e gerada pelo fato do sujeito naa conseguir ser 0 objeto (fala) para 0 Outre,
ficando em divida. A culpa e estrutural, constitutiva, esta em todas, mas nao se tern
conhecimento dela - e inconsciente. Para Calligatis, a culpa seria 0 que faz existir algo
ou alguem que julgue 0 sujeito, sendo 0 motor estrutural da neurose, mas a
culpabilidade nao.
Em "Um eShldo autobiogriLfico, Inibic;:oes, sintomas e ansiedade, A questao da
analise leiga e outros t:rabalhos" (1925-1926), Freud assume que atribuiu grande valor
as suas contribuj90es it psicologia da religiao, as quais comecaram com 0
estabelecimento do simulacra entre as pniticas religiosas e 0 titual. E confmna isto em
"Moises, 0 sell POVD e a religiao monoteista", (1938), dizendo que anitlogo ao que
desencadeia a neurose obsessiva no sujeito, a religiao e responsavel par eventos e
conseqilencias semelhantes a sintomas na humanidade. Pode-se verwcar este raciocinio
ja em "Atos obsessivos e praticas religiosas" (1907), em que ele atreve-se a considerar
a neurose obsessiva como correlato patol6gico da forrnayao de lIma religiao,
descrevendo a neurose como uma religiosidade individual e a religiao como uma
neurose obsessiva universal.
No attigo "0 mito, a religiao e sua relay80 com a psicanalise", Alessandra
Tomaz Rocha (2001) faz referencia a Freud quando ele aproxima, ern "Moises e 0
monoteismo" (1937-1939), a religiao de delirio. Mario Aletti, em "A figura da ilusao
na literatura psicanalitica da religiao" (2004) - trabalho que acompanha a hist6ria e
evoluyao do modele da ilusao apJicado it vivencia religiosa, a partir de concepyoes
psicanaliticas, Iemhra que Freud define os conteudos da reiigiao como "mitos
5
endopsiquicos". E. parrindo desta COnCep(f80 da religiao como ficr;ao, na obra "0 futuro
de lima dusao" (1927), Freud trata a rei.igiao, detenninando a cren<;:a fundada no desejo
como iillsao. Conftnnando esta conviccao de Freud, Gerard Pommier, em "Existiria lim
sentido psicanalitico na 'Hist6ria'?" (1994), diz que a crenca e proporcional it forea do
recalque. Para ele, aquilo que um sujeito ere (a ficc;;ao, 0 "sen" mito) e proporcional ao
recalcamenta de seu deseja. Em "Sabre a psicapatalagia da vida caridi ana" (190 I),
Freud ira precisar que a crenca religiosa se trata seguramente de lima constrw;:ao
projetiva.
Na trabalha "Tatem e tabu" (1912-13), Freud cita as dais fatares propulsares
das religi5es: 0 sentimento de culpa do filho e sua rebeldia; porque no mito cristae 0
pecado original roi cometido contra 0 Deus-Pai; ese, 0 Filho de Dells foi obrigado a
sacrificar sua vida para redimir a humanidade do pecado, entao este deve ter sido uma
morte, Wll assassinato. E, se 0 pecado original foi uma ofens a contra Dells-Pai, entao 0
primeiro crime da humanidade so pade ter sida urn parricidio, 0 homicidio do Pai,
gerando 0 sentimento de culpa do filho. A sua rebeldia cOllsiste no fato de que 0
proprio ato pelo qual 0 fiUlO ofere cia a maior repara~ao possivel direcionada ao Pai, 0
conduzia, ao mesmo tempo, a realizactao de seus desejos contra 0 pai; ao morrer, ele
proprio tomava-se Deus, nao ao lado, mas no seu lugar.
Neste mesmo texto, Freud faz uma critica a religiao, afinnando que cia dorninou
a sociedadc humana por muitos aTlOSe que se realmente houvesse cOTlsegwdo tomar
feliz a maioria da humanidade, ninguem se mostraria insatisfeito e infeliz com a
civiliza~ao, ou nao se geraria esta hostilidade contra cia como podemos vcr, ja na epoca
6
de Freud bem como atualmente. E ele se pergunta se essa hostilidade 11aO colocaria as
pessoas contra 0 ponto fraca que encontraram em quem the imp5e tarefas, au seja, a
religiao. A hip6tese de que a {mica razao pela qual HaD se cleve matar 0 proximo e
porque Deus proibiu suscitaria como con seqUencia que, se nao existe Deus e que
pOitanto HaO se precisa temer Seu castigo, certamente se rnatara 0 proximo sem
hesita'tao. Desse modo, para Freud, 0 relacionamento entre civiiizayao e reiigiao teria
de sofrer uma revisao fundamental.
Para fazer a analise da contradiyao da vida na sociedade de con sumo com a
noyae de pecado na atualidade, buscou-se de varios auto res, como Malia Rita Kehl em
seu livro "Sabre Etica e Psicanalise" (2002), que afinna que "0 homem se encontra
num mundo de valores invertidos, regido nao por uma ebCa, mas sim por uma
antletica". Na realidade, nos tempos atuais 0 homem vive num mundo de novos valores
(muito diferentes, senao opostos aos antigos) regido par uma etica de hens, mas ainda
uma dica, onde a moral vtgente e a do consumo. E urn destes hens selia a Grac;a
Divina, urn presente concedido aos "pecadores". E justamente por pecarem, C que os
homens tcm aces so a esta grac;a. Pois somente atraves de Cristo os "pecadores" sao
perdoados e s6 pecando para obter a grac;a divina; pOitanto, e pela via do pecado que se
chega a Deus (VALORE, I994). E atualmente vivemos numa sociedade conduzida pelo
mercado, em que este e considerado um deus Unico, deus-pai imaginfuio que comanda
a tudo e a todos - onipotente.
E neste mundo onde a mora] vigente e a do con sumo, Vazquez (2000) ve lima
alienac;ao do consumidor nas sociedades regidas pela lei de mercado. landira Kondera
7
Mengarelli diz, em "Quando 0 Pai padece no paraiso - UIll3 aproximayao ao tema da
delinqticncia" (1994), que levar vantagem. tirar proveito da materialidade, promove 0
detrimento do simb6lico, e uma aliena9ao ao objeto (2000), que denuncia que a lei
(Nome-da-rai) tern slIa funcao posta em questao.
IS10leva este estudo a questionar, com Moser (1975), se ainda sabra urn sentido
cristao de pecado ou se 0 progresso da sociedade ja 0 deturpou au ate 0 extinguiu e se
com a evolucao do mundo 0 homc11l reavaliou 0 seu conceito de moral e busca uma
nova compreensao do pecado, que siga 0 curso do desenvolvimento da especie e seja
mais adequada ao sell tempo. E com esta indagacao, Dutra vern it tona: haveria llTll
rcsponsavel por esta perda do sentido do pecado, pelo menos em sua representa<;ao
crista?
Embora procure-se aqui fazer uma analise a respeito do pecado atraves de uma
articula<;ao entre 0 discurso religioso e 0 discurso psicanalitico, e preciso esclarecer que
a nor;.aode pecado nao faz parte do discurso psicanalitico, para a psicanaiise a Religiao,
a BibLia sao mitos, regish'os imaginarios, 0 pecado faz parte do discurso religioso,
Inclusive os termos utilizados para designar esta "falta" (pecado) sao diferenles nos
dois campos: no discurso cristao e pecado, no discurso psicanalitico e h'ansgressao, Sob
um referencial cristao, pecado e a falta contra as leis divinas~ e do ponto de vista
psicanalitico, a tTansgressao depende do encaminJlamento das funr;.oes pulsionais em
rela<;ao a lei do significante it castra<;ao~ e nao a proibi<;ao, Para a psicanalise a
satisfa<;ao pOltanto, nao e tTansgressiva a medida que respeita os limites do gozo falico,
respeita a castra<;iio,
8
CAPiTULO I - MORAL, tTICA E RELIGIAO
"Se entenc/ermos () ethos como os paromelros de lima cone/lila conso/ie/ados no campo
dos cos/times ese, de Olt/fO lado, lembrarmos que a elica lida com ()bem da
convivencia, 01/ com UcOl1viver-bem. veremos que () etlrm•.do nosso tempo encen"o em
si lima QnlieJica". (Maria Rita Kehl).
Pode-se iniciar este capitulo com urn questionamento trazido par Adolfo
Sanchez Vazquez em seu livro "Erica" (2000): se wn individuo procura fazer 0 bem e
as conseqtiencias de suas a~oes causam mais prejuizQ do que beneficia, devemos julgar
que age conetamente de lim ponto de vista moral, quaisquer que tenham sido as efeitos
de sua a~ao?
o tenna moral vcm do larim, mos Oll mores e significa "costume" au
"costumes", no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por habito. Desta
forma, a moral se refere a urn compol13mento adquirido ou modo de vivcr conquistado
pelo homem, 0 qual se submete a normas que vem pautar 0 seu compOitamenlo. Estas
nonnas sao reconhecidas como obrigat6rias e sao aceitas pelos individuos que
compreendem tee 0 dever de agir de acordo com 0 que elas estabelecern. Por este
componamento ser result ado de uma decisao renetida, baseada nestas norm as, e nao
puramente cspontiinea ou natural, diz-se que 0 homem age moraJmente. Portanto, a
moral s6 surge quando 0 homern supera a sua natureza instintiva e possui uma natureza
social. A moral, portanto, surge como regulamenta~ao do cornponamcnto dos
9
individuos entre si e a comunidade em que vivem, exigindo do homem, lima
consciencia desta reiacao, para que possa se portar de acordo com as nonnas e
prescricoes que 0 govemarn. Sabre sua conduta lui 0 julgamento dos Qutros e, da
rnesma forma, baseando-se em norrnas estabelecidas, farmulam juizos que aprovarn au
desaprovam moralmente os atas dos homens. A moral efetiva compreende entaD naa 56
regras, nonnas, valores e principios, mas, por se tratar de comportamento, envolve
tambem os atos que sao regidos por estes.
Aqui, Vazquez faz uma ressalva, afirrnando que hit que se diferenciar mora] e
moralidade: a primeira seria ideal, nonnativa, urn conjwlto de ideias, prescrir;oes que
regu]arn lima epoca ou lIma sociedade; ao passo que a segunda seria factual, real,
pnltica e designaria um conjunto de atos concretos que adquirem urn significado moral
de acordo com esta em vigencia, sendo portanto, um componente efetivo das reial';oes
hurnanas que constituiria wn compOitarnento especifico do homern. Mas apesar da
distlnl';ao, na realidade a moral tende a transfonnar-se em rnoralidade, pois a
rnoralidade e a moral colocada em prittica, e a sua realiza'tao, exigida pelo proprio
nonnativo, que estabelece rCbTfaspara serem cumpridas, colocadas em a'tao.
A moral tern em sua essencia um cantter social, 0 que quer dizer que a sujei~ao
do illdividuo se refere a nonnas estabelecidas peia comlUlidade. 0 comportamento
moral trata da conduta tanto de grupos sociais quanto de individuos, desde que a
conduta individual afete, direta ou indiretamente, aDs demais. Portanto, a moral s6 se
estabelece individual mente a medida que regula comportamentos individuais que
tragam resultados e conseqilencias para os outros; atos individuais que nao tem
10
conseqoencia alguma para os demais, naa podem scr qualificados como atos morais. E
justamcnte por serem afetados pcJas 3c;oes dos individuos os outros julgam estas ac;5es,
as quais sao objetos de sua aprov39ao au reprov39ao. 0 estabelecimento da moral
nasce de uma necessidade social de regulamentay30 das reia90es entrc as hom ens com
o objelivo de contribuir para que se mantcnha urna determinada ordem social a fim de
preservar a integridade da comunidade.
Ao individuo como tal, naD e pennitido il1ventar au l110dificar as nonnas que
represenlam a moral de acordo com sellS interesses pessoais. 0 nonnativo moral edetcnninado e aeeito pelo meio social. A fUI1930 social da moral e fazer com que as
individuos aceitem a ordem social estabelecida, preferencialmente de maneira livre e
consciente, sem precisar reeoffer a for~a ou imposi~ao coercitiva, mas buscando uma
aceit'ayao tambem intima e por eonvie~ao pessoal dos valores, principios e fins
dominantcs numa detenninada sociedade.
A religiao, partieularmente 0 cristianismo - 0 qual e 0 referencial escolhido por
estar se h'atando de pecado, um tenTIo, pade-se dizer cristao, traz de maneira embutida
certa moral,) medida que inclui regulamenta~oes das rela~ocs entre os homens. as
mandamcntos de Deus sao tambem preceitos morais. Uma moral de inspirayao
reiigiosa existiu e continua a existir, onde Deus e a garantia dos valores morais e da sua
realiza~ao. 0 clistianismo antes de tudo e uma crenc;a, lI111 dogma, nao lima filosofia;
mas apesar djst'o, a filosofia se subordina a tcologia, a medida que esta fazia quest'ao
aos fil6sofos da Idade Media, que procuravam explica-Ia lan<;:andomao cia razao. Ese,
a filosofia se subordina a tcologia, a etica tambem 0 faz. Desta fonna, mesma limitada
11
pOl' sua indole religiosa c dogmatica, a filosofia crista daldade Media tl'az em si lima
et'ic8. A ctlca cl;sta admite que a felicidade 56 pade seT obtida Dum Dutro mundo (no
cell) como compcnsa<;:ao da infelicidade terrena.
Etica, vern do grego, elhos, que quer dizer, analogicamente, "modo de seT",
"Cantler", forma de vida adquirida ou conquistada pelo homem, como a moral.
Segundo Vazquez, a ctica e a teona DU ciencia do comportamento moral dos homens
CI11sociedade e l1'8tade lima forma especifica de comportamento humano. A etica c a
ciencia da 1110rale como tal, pade servir para fundamentar uma moral, mas nae se pade
con fundi-las. Pelo fato da 1110ralSCI' 0 objcto de estudo da etica, pode-se dizer que a
etica estuda lima forma de comportamento humane que os homens julgam valioso.
obrigatorio e inescapavel.
Maria Rita Kehl (em seu livro "sobre Etica e PsicamUise". 2002) afinna que, ~
levado em conta que a etica pressupoe 0 bern da convivencia, baseado flas nonnas de
conduta advindas dos costumes das comunidades. nos deparamos na realidade com
uma antietica, a qual nao se orienta para 0 (born) convivio entre os individuos da
comunidade - amor ao prox.imo. como pressupoe a religiao.
Mas a respeito desta citayao de Maria Rita Kehl que abre esle capitulo, cabe
fazer uma ressalva: a etica nem sempre se refere ao bern, a uma "boa" conduta, ela
design a simplesmente conduta, fonna de comportamenlo. 0 fazer. Nao podemos
considerar a etica vigente uma antietica pelo fato dos valores atuais se distanciarem
daquilo que considera-se "ideal" Tluma sociedade. Encontramos-nos numa etica onde 0
sujeito e 0 consumidor, uma etica de bens. mas ainda uma erica. Na etica da Pos-
12
modclllidade 0 capitalismo e a logica atual e numa sociedade globalizada. e 0 mcrcado
quem comanda. No Neoliberalisrno lui uma desmistificayao e uma demitific3'r30 dos
dogmas do pecado, allde busea-se 0 gazo sem limites. scm 0 respeilO a no~ao de
pecado. pais hoje Hpecado" e nao consurnir, as bens (e nao 0 bern) surgem como
so\uyao para tudo. Em contrapartida a iSla surge, pontualmcnte, a retomada do
fanatismo religioso. A propria Grarr3 Divina sena urn bern de consuma, um prescnte de
Deus concedido aos "pecadores" ao trazer ao mundo aquele que livraria 0 munclo dos
pecados - Jesus Cristo.
No passado, segwldo Maria Rita Kehl, Deus era 0 fundamcnto e a garantia cia
vida moral, hoje cada vez mais as pessoas tern este fundamento e esta garantia no
proprio homem. A modernidade "emancipoll 0 homem das tiranias morais", libertando-
o das autoridades encarregadas de julgar e decretar 0 que e certo e errado. Porem, junto
com esta liberdade vern 0 desamparo, onde 0 sujeito modemo se encontTa «livre" para
viver segundo os seus desejos e governar a si proprio, mas na verdade, se encontra
desejante e desgovemado, nao sabe 0 que fazer com esta liberdade, que esbarra na
necessidade de levar em conta a existencia do ourro. Pais hoje, a convivencia nao
aparece como solu~ao, mas sim como um problema a ser rapidamente eliminado,
gerando refcns de uma etica da nao-convivencia. E fica esta dicotomia: 0 sujeito
contemporaneo e lim slljeito dividido entre gozar e tel' de conviver; e, ao mesmo tempo,
autor e vitima, inconsciente, da "etica antietica" da sociedade de consumQ.
13
CAPiTULO 11-a PECADO SEGUNDO REFERENCIAL CRISTAO
"Qlle diremos enlao? Que a Lei e pecado? De modo a/gum. Mas niio conhecio pecado senc/o pela Lei. Pois niio conhec:eria (I cobi(,:a se a Lei ntio dissesse:'Niln cobh,:aras' Mas foi ()pecado que. aproveitol1do-se da oem-iiio dada pelopreceilo, excilOIl em mim roc/as as c:oncupisdJm.:ias. porqllc, sem a I.ei. 0pecado estava morlO. Oll/rora scm a I.ei. ell estavo vivo mas. com a vinda dopreceilo. 0 pecado revivell, e jiqllei morto. Assim, 0 preceito. que devia darvida. cOl1duzill-me a morle. Porque 0 pecado, por ocos;(70 do preceifO.secillzilHne e por ele me motOIl ".
(Epistola de Sao Paulo aos Romanos. Rm 7, 7-11).
Para falar de pecado, deve-se aqui, tomar como referencial a religiao crista, ja
que esse e urn leona nascido no Cristianismo. Segundo 0 frei Antonio Moser em seu
artigo "Pecado, Culpa e Psicam'ilise", 0 real significado do pecado e uma ofens a a
Deus; Deus e 0 pressuposto do pecado. 0 pecado estaria na origem das diversas fonnas
do mal, direta ou indiretamente nascido no proprio homem, 0 seu pecado como fonte
do mal. Mas analisando este principio, cabe-nos questionar: se 0 mal nasce do pecado e
se este e uma ofens a a Deus, 0 pecado nasce do homem ou da Lei Divina? Se
tomannos a passagem biblica de Sao Paulo citada acima, vemos que ele afinna que 0
pecado nasce da lei; sem lei, nao haveria 0 pecado. Para Moser, 0 pecado aparecc como
a viola~ao de lima lei qlle se funda em lima tradi~ao de ordem social e religiosa.
Sendo assim, para tratar do pecado, patte-se de um referencial biblico, que e a
base maior das leis do cristianisl11o. A propria Biblia se refere ao "Pentateuco" (do
brrego"cinco livros", sellS cinco primeiros livros - Genesis, Exodo, Levidico, Numeros
e Deuteronomio) como material legislativo Oll Livro da Lei, pois nele "exprime-se a..~~.,
L~~>'>
14
vontade de Deus" onde estao recolhidas tradi~oes iegislativas desde a epoca dos
patriarcas (sec. XVlI a.c.) ate 0 tempo de Esdras (sec. V a.c.) e contem as prescri<;6es
que regulavam a vida moral, social e religiosa do pavo naqucJa epoca.
o pr6prio "indice Temfltico" da Biblia tTaz algumas passagens refcrentcs ao
tenno (pecado), que cabe analisar:
"Por issa, como por urn 56 homcm cntrou 0 pccado no mundo, c pelo pccadoa morte, assim a mortc passoll a todo 0 genera humano, porquc lodospccaram ... Dc falo, ate a lei 0 mal cslava no mundo. Mas 0 mal nao Cimputadoquando nao htl lei. (. ..) Sobrcvcio a lei para que abundassc 0 pccado", (Rom, 5.12-13.20)."Foi 0 Scnhor que, no principia. fez 0 homcm C0 cntregou tas maos de seuproprio arbitrio. Sc quiscres, podes obscrvar as mandamcntos: ser fiel dcpcndcda boa vontade. 0 iante de ti pas 0 fogo e a agua: e tll cstcndcnls a mao paraonde tu quisercs. Diante dos hornens esta a vida e a morte: a eada urn seradado 0 que Ihe agradar". (Eclo 15, 14-17)."Nao, nao c a mao do Senhor que c incapaz de salvar, l1em seu ouvidodcmasiado surdo para ollvir, slio vossos peeados que eolocaram lIllla barreiraentre "OS c "osso Deus. Vossas faltas sao 0 motivo pelo qual a Face se ocultapara nao vos ouvir ( ...)". (Is 59, 1-2).
Aqui, do mesmo modo que para Moser, a pecado c interpretado como a
lrallSQreSSaOda lei de Deus uma ofensa it lei divina, mas novamente e dito que 0 mal
nao existe quando nao lUIlei. A lei e que empurra a transgressao. pois, como d.isse Sao
Paulo em sua Epistola aos Romanos, ao scr enunciada, a lei produziu 0 desejo. Desta
fomm, a lei de Deus eriou 0 pecado e 0 d.isseminou. Em eontrapartida, nestas eita~5es,
ve-se a ideia de que Deus, alem do pecado, tambem deu aos "pecadores" 0 livre-
arbitrio, a escolha de peear ou nao. Todavia isto gera uma contTadi~ao, uma vcz que,
desde sempre, todos sao considerados pecadores pel a religiao. Entao, como saiT desta
cond.i~ao seja pecaram? 0 que pode-se supor e que aiem cia«aceila~ao de Cristo", pois
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56 atraves dele pode-se obter a graya e se redimir dos pecados, ja que Jesus Cristo
nasccu para livrar 0 mundo do pecado; 0 ser humane tern a escolha de pecar 0 menos
possivcJ e de, quando isso acontecer, pectir perdao a DeLIs e pagar por seus pecados,
submctcndo-se aos castigos Delc. Do mesmo modo que Aclao e Eva, que foram
expulsos do paraiso como castigo pcla sua transgressao no pecado original.
"Ouvistes 0 que foi dito: 'Nao cometenis adulterio'. Ell, porem, digo-vos que
lodo 0 que olhar para uma Inulher, cobi¥aJldo-a, ja comctcu adulterio com cia no sell
COraI'30". (MI 5, 27-28).
Nesta passagem, que faz a leitura do "pecado como mal do nosso intimo",
prcssup6e-se que 0 homem tern cantrcle sabre sellS "instintos", que 0 simples fato de
pensar ja 0 faz pecador. 0 que nos remete a ideia trazida no pecado original, que
consiste no aces so ao fruto proibido da arvore do saber; de onde pode-se deduzir, que
saber, pensar, conhecer 0 bem e 0 mal corresponde ao pecado. E isto remete it questao
do livre-arbitrio, ja que foi dito que 0 homem tern a escolha de DaO pecar, mas se
simplesmente ao pensar jit peco~ onde fica a escolha?
"Pois quando csmvamos na came, as paixQes do pccado cxcitadas pcla Leiagiam em nossos membros c davam frutos de morte" (Rm 7, 5)"Cada urn c tcntado pela sua propria eoncllpisccneia, que 0 atmi c alicia. Aconcupiscencia, depois de conccber, da a luz 0 pecado: C 0 pecado, uma vezconsurnado, gera a morte" (Tg I, 14-15)
Nestas citacoes, que caracterizam 0 pecado como "0 mal de paixoes
pecaminosas", confirrna-se a teoria de que a lei funda 0 desejo, mas sirnultaneamente,
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n"az-se que cada um deixa-se levar por sua propria ten sao ao gazo e, portanto, ao
pecado.
"A scrpcntc era 0 mais astuto de lodos as anima is sclvagcns que 0 SenhorDelis lioha feita, Ein dissc a mulhcr: 'E vcrdadc que Deus vas dissc 'm)ocomas de ncnhuma das arvon.."Sdo jardim'?' E a mulher rcspondeu it scrpcnte:'Do frulo das outras arvorcs do jardim, podcmos comer. Mas do fmta daafvorc que esta no meio do jardim, Deus nos dissc 'm10 comais dele nemscqucr 0 toqueis, do contrario, morrcrcis'.' A scrpcntc rcplicou a mulhcr: 'Dcmodo algum morrcrcis. E que Deus sabc: no dia em que dele comerdcs, vossos011105 se abrirao c scrcis como dcuscs, conhcccdores do bern e do mal' Amulhcr notou que era tcotador comer da arvore, po is era atrn.CniC aos 011105 CdcscjilVcI pam sc alcan<;ar intcligcncia. ( ...) Eo Senhor deus disse: 'Eis que 0homem se lomou como um de n6s, capaz de conhecer 0 bcm e 0 mal. N50 vaagora estcndcr a mao tambcm a arvorc da vida c viver para sempre'." (Gil 3, 1-6.22)."A quem Ierne 0 SCllhor, nao aconlceem mal algum, c nas prova<;oes, scmscmpre libertado. 0 homem sabio nao odeia a Lei ( ...). 0 hornem inteligenteeontia na Palavra (...). Tambcm os homens, todos vern do barro, pois da terraAdao foi criado. Em sua infinita cicncia 0 Senhor os distinguiu, e divcrsifieouos seus caminhos. A uns aben<;oou e exaltou, santificou-os e aproximou-os desi; a outros amaldi<;oou e humilhou, e os derrubou de suas posi<;5cs. Como aargila na mao do oleiro que dela dispoe a seu bc1-prazcr, assim as homenseslao nas maos de seu Criador, que Ihes da segundo 0 scu julgamcnto. Diantcdo mal esta 0 bem e, diantc da morte, a vida; assim tambcm diante do justoesta 0 pceador." (Eclo 33, 1-3.10-14).
Examinando estas passagens que falam do Peeado Original vernos, em primeiro
lugar, que foi 0 proprio Deus quem eriou a serpente e a colocou na Terra. E ela e
representante do mal, aquela que instiga para 0 pecado, mas tambem e considerada 0
animal "mais astuto", ou seja, com illteligencia, 0 que a caracteriza portadora de wn
saber, pOIianto, "pecadora". Pois na primeira passagem, ve-se que a lei proibia 0 acesso
it arvore do saber, ao saber propriamente dilo, ja que comendo do fruto proibido, "os
olhos se abrern", tem-se conhecimento do bern e do mal, a1can~a-se inteligencia; 0 que
leva a conc1uir. como ja foi dito, que segundo a Biblia 0 ato de saber e equivalente aD
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atc de pecar. Mas nao est'il escrito que 0 saber aproxima os homens de Deus, naa os faz
deuses como Ele, que conhece 0 bem e 0 mal? Nao se tern aqui. porern, a pretensao de
deturpar a "Palavra", mas a intencao de question a-la, a fim de entcnde-la ampiamcnte.
Neste caminho, nos question amos: sc Deus quer que 0 homem se distancie do pecado,
por que 0 fez tao atraente (" ...era lemadol' comer da arvore, pois era alraente aos
aI/lOs e desejove/ para se alcanrar inteligencia. ")7
Deus criOlI 0 mundo e 0 homcm "como a argila nas maDS do oleiro que dela
dispoe a sell bel-prazer", se «as homens estao nas maDSde Deus, que Ihes da segundo 0
sell julgamento", por que Deus os fez pecadorcs? Na citaC30 acima (Eclo 33, \-3.10-
14) cnfoca-se tambem a eieiC30 divina: nao se quer aqui duvidar da
"justi~a Divina", mas por que Ele eseolheria a um s6 povo (0 de Israel) como 0 "eleito"
it salva~ao? E por que eriou a desigualdade das eondiltoes humanas (titulo da pr6pria
passagem), eseolhendo a uns para abenltoar. exaltar, santificar e aproximar de si,
enqllanto a OlitrOSamaldiltooll e humilhou?
"Como pade 0 homcm ser puro, au inoccntc, a nascido de uma mulhcr? Scnem seus santos gozam de sua confiam;a nem as pr6prios celiS sao puros aosseus 01l10S,quanta mais 0 homcm, detestflVcl c corrompido, que bebc, comoagua a iniqiiid..,dc!" (J6 15, 14-16)."5cnhor, nao me rcprcendas com ira, mio me corrijas com colcra! Cravaram-seem mim tuas flcchas, lua mao abateu-se sobre mim. N50 ha parte ilesa naminha came, por causa dc tua ira". (5137, 2-4)."Pois os caminhos do homem eslao a vista do 5cnhor: Ele observa todas astuas scmias. 0 impio enreda-se nas proprias maldadcs c e caplurado nos loyoSde sua culpa; morrcra par fulta de corrcyao, pcrder-se-a por sua enormcinsensalez". (Prov 5,21-23)"Ai da nayao que peca, do povo carrcgado de fallas, da ITLyade malvndos, dostilhos degenerados!" (Is 1-4).
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Destas passagens sabre 0 Pecado "Atual" (tenna utilizado pcla Biblia para
designar os pecados que as pessoas cometern em sua vida), pade-se retiTar a ideia de
que 0 hornem que naD nasceu pel as maos de Deus e sim por uma l11ulher, e impuro,
injusto, corrompido e ate detestavel; porque nascern do pecado original. Mas se nos
lembrarmos do primeiro homem que Deus eriau, Adao, nos lembramos que ele tambem
pecall; e aqui designado como primeiro, porque todos os DutrOS,tambem foram criados
por Deus; sao nascidos de Illulheres, mas segundo a Biblia, Ele e 0 criador, quem Ihes
dell a vida. Portanto, Ele dell vida a criaturas detestAveis. Criaturas nas quais Elc
deposita sua ira, com pragas e castigos para punir-lhes de sellS pecados, pecados que,
como ja roi dilO, Ele mesmo criou aLTavesde sua lei. Mas castigos e ira nao combinam
com urn Deus dito misericordioso. Misetic6rdia esta que tambem flaO combina com 0
preconceito contra povos inteiros que pecam e tern faltas como todos alias, ja que sao
todos "pecadores".
"Aeaso 0.10 sabeis que os injuslos nao hao de possuir 0 Reino de Deus? Naovos enganeis: nern os impuros, ncm os idolalras, nem os adlilteros, nem osefcrninados, nem os devassos, nem os ladroes, nem os avarentos, nem osbCbados, nem os difamadores, nem os assaltmues hao de possuir 0 Reina deDeus". (1 Cor 6, 9-10)."Nao ha homem justo sobre a terra que faya 0 bern sem jamais pecar" (Eel 7,20)."Se dizemos que n5.o temos peeado, enganamo-nos a nos mesmos, e a verdade0.10 estil em n6s. Se rcconheccmos os nossos pccados, (Deus ai estill fiel cjusta para nos pcrdoar os pecados e para nos purificar de toda iniqiiidade. Scpcnsamos nao tef pccado, nos 0 dcelaramos mcntiroso e a sua palavra nao csraem nos" (Jo I, 8-10).
Nesta citac;ao sobre 0 pecado dito como mortal pelo indice tematico da Biblia,
hit novamente um paradoxo, em que os pecadores nao merecem 0 reino de Deus, mas
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em contrapal1ida, admite-se que Illcsmo quem peCOll,pode vir a ser justa e fazer 0 hem.
E aqui se encontra mais coen!Tlcia, jil que todos sao pecadores e Deus aparece
misericordioso, em concordancia com 0 que e dito Dele, senda capaz de perdoit-los.
E esta "misericordia" vern com a gralt3, concedida por Deus aD eolccar no
mundo aqueJc que Iivraria todos do pecado, seu filllO Jesus 0;5tO. Que ofcreee-se a seT
amado e vern com a missao de fazer imagem dando possihilidade ao impassive! - a
saida da culpabilidade: aU"aVeS de Cristo todos sao perdoados de sells pecados e para
feecher esta grac;a. basta pecar. Por ista chega-se a conclusao de que 0 pecado interessa
ao Pai, pOTque e atraves dele que 0 sujeito humana chega it graya djvina; nao conseguir
evitar 0 pecado, toma inevitavel a sua "aceita.:;:ao" de Cristo, e port anto, dependente da
gra,a divina. 0 senrimento de culpa funda 0 Cristo (Valore, 1994, p.137).
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CAPiTULO III - a PECADO SECUNDa REFERENCIAL
PSICANALiTICO
"Se /Jeus niio exisfisse, Ilido serio peJ'l1Iitido". (Dostoievski)
"Delis esro morto, nada mais e permilido ". (Jaques Lacan)
Como ja foi colocado 3nterionnente, "pecado" no discurso psicanalitico e
designado pclo tenno transgressao. Jandira Kondera Mengarelli, em "Quando 0 Pai
padece no paraiso - Um8 aproximayao ao terna da delinquencia" (1994, p.47) traz 0
conceito de transgressao em seu sentido literal, que do latirn e a "a93o de transpor au
atr3vessar". 0 ato de u'ansgredir prcssupoe, ponanta, uma travessia, onde hit urn ponto
de partida, um ponto de chegada e urn espa90 a se atravessar. A lei vigente csta it
margem da realidade, senda, portanto, marginal, porque nao interpreta a realidade da
sociedade, mas Ihe impoe uma realidade ao Ilivelldeal, e, como conseqlil~ncia, tem-se 0
sintoma. Hoje, nao ellcontrando 0 simb6lico para fazer a ponte da travessia da
tl·ansgressao e entao conciliar 0 imagimtrio do corpo com 0 real do lugar, s6 encontra-
se como saida 0 retorno it pr6pria condiy3o, de pecador; ou desejar ocupar 0 lugar do
tirano especularmente simetrico, julgando e condenando os outros pelos seus atos e
continuar fazendo 0 mesmo, s6 que com a prote.yao da mesma lei que pune. Desta
fonna, 0 sintom3 e sempre urn apelo ao Nome-do-Pai, urn apelo a lei.
Maria Rita Kehl, em seu livre "Sobre Etica e Psicamilise" (2002) afmna que
para a psicanalise existe uma incompatihilidade entre a culpa e a erica, ao contrano do
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que pretende a moral crista que ha mais de dais mil nil os noneia a avilo cia sociedade.
1S10porque, para a psicanalisc, a culpa pode ser entendida como sintoma do desejo de
lima submissao scm iimites, paTlanta impossivei, ao Outro. Segundo freud, a moral
consiste primordial mente na frustravao de urn gazo, colocado como lei aparentemente
avida e a proposivao etiea que a psicanaiise traz, e if aiem da hipocrisia e das in.ihi<;:5es;
nae cedendo de seu desejo, pais e a Unica caisa da qual se pode cuIpar 0 sujeilo,
segundo Lacan (citado por CHASSAING, 2000, p.S8).
De acordo com Moser (1975), os conflitos entre teo!ogi3 e psicanalise naa sao
de hoje e a quesUio da lei e da culpabilidade sao elementos centrais do confronta entre
a psicanaiise e 0 senti do cristao do peeado. 0 sentimento de culpabilidade se funda
numa lei constituida atraves de uma interdi~ao aJimentada por uma lradiQao de ordem
social e religiosa que traz 0 pecado como culpa moral. 0 pecado se constitui quando
alguem se encontra literahnente envolvido numa especie de culpabilidade universal que
invade toda a sua vida. E, ainda a respeito de culpabilidade, Moser afirrna que este
sentimento "•.ollle toda a iniciativa, levando a uma autopuni~ao sempre mais inoperosa
e sempre mais englobante" (1975).
Em "0 futuro de uma ilusao" (1927), Freud admite que a religiao desempenhou
grandes serviQos para a civiliza~ao humana, "contribuiu muito para domar os instintos
associais". POI·quepara ele, a consciencia moral Ilao e inata e sim urn efeito da renullcia
aos impulsos primitivos. (Moser, 1975, p.18-19). 0 seu trabalho "0 mal-est ••· na
civilizayao" (1930) traz 0 sentimento de culpa como 0 mais importante problema no
desenvolvimento da civiliz3Qao e afilma que a perda de felicidade pel a intensifica~ao
22
deste sentimento e 0 pre~o que se paga pelo avan((o em tennos de civilizayao.
Contardo Caliigans, em sell artigo '''Divida e Culpa" (1990), propoe uma
distinyao entre culpa e culpabilidade, em que esta nao necessariamcnte seria relativa a
primeira, mas sim urn afeto subjetivo concemente ao sujeita psicologico, dissociado de
culpa enquanto fato estrutural. A culpabilidade pade ser enUio, urn mito, uma culpa
imaginaria, 0 sentimento de experimentacao de culpa - a maneira da culpa entrar na
consciencia, lima cnstaiiz3cao qualquer de uma posiCao sintomatica au ate mesma urn
consolo narcisico, mas nao culpa propnamente dita. lit a culpa, em sua tradw;;ao
francesa «faute", em portugues tambem podendo ser inteq)retada como "falta" e ern
alemao "should" (que em ingles quer dizer "deve" ...). gera urn equivoco entre divida e
culpa; mas segundo Freud, 0 significado destes dois tennos refere-se a mesma coisa, ja
que para ele, a dimensao fundante do sujeito e a divida. A culpa como falta seria da
ordem da siI11boliza~ao de urn real, gerada pelo fato do sujeito nao conseguir ser 0
objeto (falo) para 0 Outro, ficando em divida. Culpa pOitanto, e urn fato estrutural, ela
e constitutiva, esta em todos mas e inconsciente. Para Calligalis, a culpa seria 0 que faz
existir algo ou alguem que julgue 0 sujeito (a que chama de "fiscal"), aquele a quem
interessa que nao se transgrida, logo, aquele a quem (ou a cuja palavra) estara sendo
respeitado, mantendo 0 sujeito na Lei (Func;ao Simb6lica do Paj); sen do a culpa
necessaria a neurose, lUll agente desta, 0 sell motor estrutural, 0 que flaO caracteliza a
culpabilidade.
Calligaris tTaz a questao da culpabilidade como ponto central na neurose
obsess iva, porque, Freud em "0 homem dos ratos" (1909), citando algo que escreveu
23
cm1896, diz que as ideias obsessivas sao auto-reprov3<;oes transforrnadas, que surgern
do reca\quc e que geralmente referern-se a algum ato sexual praticado com prazer na
infiincia. Portanto, uma primeira exigencia de culpa vai exigir a fantasia de um
episodio infantil feliz.
Em «Um estudo autobiob'nifico, Inibi<;oes, sintomas e ansiedade, A questao da
analise \eiga e outros trabalhos" (1925-1926), 0 proprio Freud assume que atribuiu urn
valor mais elevado as suas contribuic;oes it psicoiogia da religiao, que iniciaram com 0
estabelecimento da analogia entre as pr3.ticas religiosas e 0 ritual e, conseqUentemente,
se direcionaram it descriyao da ncurose obsessiva como uma reiigia.o particular
distorcida e a religHio como uma especie de neurose obsessiva universal.
No texto «Moises, 0 seu povo e a religiao monoteista" (1938, in: Moises e 0
Illonotcislllo, 1937-1939), Freud traz como 0 desencadeamento da doen~a neur6tica - 0
retomo parcial do reprimido - os elementos: trauma primitiv~, defesa e latencia. E
afll111aque scmelhante a csta formula que estabeleceu 0 que ocorre na vida dos sujeitos
para 0 desenvolvimento de uma neurose, tambcm OCOlTeramna vida da especie
humana evcntos de natureza sexual mente agressiva, que deixaram atras de si
conscqiiencias pennanentes, mas que foram, em sua maioria, desviados e esquecidos e
que apos uma longa latencia entraram em vigor e criaram fen6menos semelhantes a
sintomas, em sua estTutura e proposito. Esses eventos e suas conseqilcncias
semelhant'es a sintomas, sao os fenomenos da religiao.
Em «Atos obsessivos e praricas religiosas", In: 'Gradiva' de Jensen e outros
trabalhos (1906-1908), Freud traz a semelhan~a existente entre os chamados atos
24
obsessivos e as pnlticas peJas quais 0 fiel exprcssa sua devocao. 0 tenno 'ccrimonial',
que se aplica a alguns desses atos obsessivos, constitui uma evidencia disso. Para ele.
esta semelhanca nao e apenas superficial, de modo que a compreensao da origem do
cerimonial neur6tico e amlloga aDs processos psicol6gicos da vida religiosa. Pois as
pessoas que praticam rituais obsessivos au cerimoniais pC11'cncem it mesma classe das
que sofrem de pensamentos, ideias, impulsos obsessivos e afins. Issa, em conjullto,
constitui uma entidade cHnica especial, que comumente se denomina de "neurose
obsessiva".
Para Freud, nos at05 obsessivos, hem como nos cerimoniais propriamente ditos,
tuda tern sent-ida e pode ser interpretado. Uma das condi90es da neurose obsessiva e 0
fate da pessoa obedecer a uma compulsao, sem compreender 0 sentido disto . .E
somente atraves do trabalho no tratamento psicanalitico que eia se lorna consciente do
sentido do seu ate obsessivo e dos motivos que a levam a ele; ou seja, 0 ato obsessivo
serve para expressar motivos e idcias inconscientes. Em geraJ, da mesma forma, 0
individuo que executa um cerimonial religioso, 0 faz sem ater-se ao seu significado
(embora os sacerdotes e os investigadores cientificos estejam familiarizados com este),
eo realiza pelo simples fato se ser um ritual da sua religiao.
FREUD (1907) destaca que lui sernpre 0 recalque de urn irnpulso instintual (urn
componente da pulsao sexual) presente na constitui9ao do sujeito que pode expressar-
se durante algum tempo em sua infancia. mas que nao resistiu a pressao subseqOente.
Neste processo de recalque da representa9ao da puls30, cna-se uma consciencia
especial, dirigida contra os objetivos desta pulsao. Essa fonna93o reativa psiquica,
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porem, sente-se insegura e constantemente amea((ada pel a pu]sao no inconsciente. A
inOuencia desta pulsao recaJcada e sentida como uma tenlar;ao, e durante 0 proprio
processo de recalque, gera-se ansiedade que adquire cantrale sabre 0 futuro, soh a
f0I1113 de ansiedade expectante. 0 processo de recalque que acarreta a neurose
obsess iva deve ser considerado como urn processo que 56 ohtem exito parcial, estanda
constantemente sob a ameaca de urn fracas so. Como num conflito intennin8vel, sao
necessarios esfon;os psiquicos para contTabalancar a pressao constante da pulsao.
Assim, as atas cerimoniais e obsessivos surgem, em parte, como urna protecao contra a
tentacao, e tambcm, como protcyao contra 0 mal esperado. Essas medidas de proteyao
tomam-se insuficientes ao sujeito contra a tentayao, surgindo entao as proibiyoes, cuja
finalidade e manter distancia as situayoes que podem originar tentayoes. Assim, um
ceTimonial e um conjunto de condic;oes que devem ser preenchidas, da mesma fonna
que uma cerimonia matrimonial da 19reja significa para 0 crente uma pennissao para
desfTutar os prazeres sexuais, que de outra maneira seriam pecaminosos.
Com reiayao a este contlito entre 0 processo de recalque e a pressao constante da
pulsao, Freud cita uma outra caracteristica da neurase absessiva, dizendo que suas
manifestayoes (seus sintomas, inclusive os atos obsessivos) sao uma conciliac;ao entre
estas foryas antagonicas da mente. Essas manifestac;oes entao reproduziriam,
parcialmente, aquele mesmo prazer que pretendiam evitar, servindo ao mesma tempo,
tanto a puisao recaJcada quanta as instancias que a repnmem. Entao. na verdade, a
medida que a neurose progride, os atos que se destinavam primeiramente a manter a
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defesa, acabam por aproximar-se cada vez mais dos at05 proibidos pelos quais a pulsao
pade se expressar na infancia.
Nesta amllise dos atas obsessivos, Freud cita motivos que os tomam ativos:
"Aquclc que safre de compulsocs e proibi~ocs comporta-sc como se cstivcsscdominado par urn senti memo de culpa, do qual, entrctanto, nada 5abe, de modoque podcmos denomimi-Io de sen[imcnto inconscicntc de culpa, apcsar daaparcntc contradi~1o dos tcrmos. Esse scnrimcnlQ de culpa origina-sc de certoseventos mentais primitivos, mas c constanlcmcntc rcvivido pclas rcpctidasIcnta~ocs que rcsulta.vam de cada nova provoca<;ao. Alcm disso, acarrcta urnfurtivo scntimcnto de ansicdadc cxpcctantc, uma cxpcctativa de infortll1lioligacta, atraves da ideia de puni¢o, it percepcao inlerna da lentacaa. Quando 0cerimanial 6 fannada, a paeiente aind., tern eanseiencia de que deve fazcr issaau aquila para evilar algum mal, e em gera1 a nalurez., dcsse mal que cesperada ainda c eanhecida de sua conseicncia. Cantudo, 0 que ja est:l acultadele c a eonexaa - sempre demanstravcl - entre a ocasiaa em que essaansicdade expeetantc surge e a perigo que cla provoca. Assim a cerimonialsurge eom urn ala de defesa au de scguranca.. uma mcdida protetora" (1907)
Vernos que para Freud, a renullcia progressiva as puls5es parece ser uma das
bases do desenvolvimcnto da civilizayao humana. Uma parcela desse recalque da
representay3.o pulsional e efetuada na religiao, que lla fonnal(ao do seu conceito de
pecado lambem tem como base a renUncia de certos impulsos instintuais, ao exigircm
do individuo que sacrifique it. clivindade seu prazer instintual. 0 senti menlo de culpa
resultante de uma lentayao continua e a ansiedade expectante ficam bern claros no
campo da religiao com 0 lemor da puniyao divina. Na vida religiosa a eliminacao da
pulsao tamhem se mostra urn processo semprc sujeito ao fracasso e intermimivel. Na
realidade, as recaidas totais no pecado sao mais comuns entre os i.ndividuos "tementes
a Deus" do que entre os neuroticos, dando origem a uma autra fanna de atividade
27
religiosa: as alas de penitencia, que tambem ocorrem na neurose obsessiva. (FREUD,
\907).
Freud faz a ressalva de que 0 canlter de conciliayao que os atos obsessivos
possuem em sellS sintomas neur6ticos naD e Hio evidcnte nas pniti.cas religiosas
corrcspondentes. Mas tambem no campo religioso encontram-sc alguns destes aspectos
quando sao comet-idos, com frequencia, todos os atos proibidos pela reJigiao (pecados),
justamente em nome da mcsm3 e aparentcmcnte par sua causa - as expressoes das
pulsoes por cia reprimidas. 0 scntimento de culpa dos neur6ticos obsessivos
demonSlTado por cle lla cit3yao acima, corrcsponde aos religiosos saberem, no intima,
que sao apenas pecadorcs. E suas pratlcas religiosas. especial mente as atividades nao
cOJTiqueiras, (tais como ora~oes, invoca~oes, 0 ate de acender velas, etc.) parecem
equivaler as medidas protetoras ou de defesa.
Freud traz mais uma caracteristica da neurose obsessiva: 0 mecan.ismo do
deslocamento psiquico que domina os processos mentais, pelo fato dos cerimoniais se
prenderem aos atos mais simples da vida coridiana e se expressarem atraves de
restric;5es e regulamentac;5es banais pertinentes a eles. 0 simbolismo e os detalhes
desses atos resultam da substitui~ao do elemento real e importante, par um trivial,
transformando um fato extremamentc banal em algo da maior urgencia e importancia.
Tambem no campo religioso existe uma tendencia para 0 deslocamento dos valores
psiquicos, de fonna que os cerimoniais niviais da pratica reiigiosa aos poucos se
tOnlam pl;oridade, tomando 0 lugar das verdadeiras prioridades. Devido a isso e a fim
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de restabelecer 0 equilibria original dos valores. as rcligioes SOh"emreformas de carater
retroativo.
Diante desses paralclos e analogias Freud atrcve-se a cOTlsiderar a uemose
obsess iva como correlato patol6gico da forma~ao de uma retigiao, descrevendo a
neurese como uma religiosidade individual e a religiao como uma neurose obsessiva
universal. A semelhanv3 fundamental residiria oa renuncia as puls5es~ e a principal
difercIly3 residiria na natureza dessas pulsoes, que na neurose sao exclusivamente
sexuais ern sua origem, enqu3nto na reljgiao procedem de fontes egoistas.
Em "0 milo, a religiao e sua rela<;iio com a psicanalise" (200 I), Alessandra
Tomaz Rocha faz referencia a Freud quando ele aproxima, a partir da questao do mito,
a religiao de um delirio. Em "Moises, ° seu povo e a religiao monoteista" (.1938), In:
"Moises e 0 monoleismo" (1937-1939), Freud Iraz a idCia de lima especie de 'credo
quia absurdul11', em que se exerce uma influencia incomparavelmente poderosa sobre a
massa, e ergue uma reivindicac;ao irresistivel a verdade, contra a qual as objec;oes
16gicas pennanecem impotentes; est'a caracteristica, para ele, s6 pode ser c0111preendida
segundo 0 modelo dos deHrios dos psicoticos. Esta caracteristica do que pode seT
chamada de verdade historica, que apresenta 0 cantter de l11anifesta~5es psicoticos,
tambem aparece nos dogmas da religiao, mas como fenomenos grupais.
Segundo Mario Aletti, em "A figura da ilusao na literatura psicanalitica da
religiao" (2004), a figura interpretativa da iiusao, como a da projec;ao, acompanha
desde sempre a reflexao do homem acerca da religiao. No que diz respeito a Freud, ele
define os conteudos da religiao como "mitos endopsiquicos" e explica na carta a W.
29
Fliess, de 12/12/1897: "A imortalidade, a recompensa depois da morte, 0 a\cl11no seu
conjunto: sao todas representa<;:oes de nossa interior psiquico. Ideias iOllcas?
Psicomitologia?" (Freud, 1887-1904).
Para Freud a cren<;:a religiosa se trata seguramente de uma constru<;:aoprojetiva,
como ira precisar em «Psicopato\ogia da vida cotidiana" (l901): "De fata, creio que
grande parte da visao rnitol6gica do mundo, que se estende ate as mais modem as
religioes, nada mais e do que a psico\ogia projetada no 111undo eXlema". E,
confinnando 0 que dizia em "Moises e 0 monoteismo", Freud traz a analogia com a
paranoia na construcao de lima realidade sobrenatural, que se destina a seT
rCl'ransformada pela ciencia na psicologia do inconsciente, para explicar os mitos do
paraiso e do pecado origina1, de Deus, do hem e do mal, da imortalidade etc., visando a
1l10strarque "0 homem criou Deus segundo a propria imagem".
ALETTI cita uma passagem de Freud em "Leonardo da Vinci e uma lembranc;a
de sua inffincia" (19lO) que explica bern isto: "A psicanitiise nos ensinou a reconhecer
a inlerconexao existente entre complexo paterno e fe em Deus, indicou-nos que 0 DeLIS
pessoal outra coisa nao e, psicologicamente, que urn pai mais poderoso". Projec;ao de
experiencias infantis de protec;ao e de cuidado (e, portanto, de lima relac;ao simbohca,
nao de uma figura real e historica), Deus e 0 precipitado da nostalgia do pai, que todo
homem leva consigo na vida adulta, procurando pellJetuar uma visao da vida como se
fosse urn "jardim da inffincia" (2004).
Para Contardo Calli garis, em "As incertezas do ateismo", 0 pape! de Deus vai
alem do significante paterno, alem do imaginano singular que cada urn tern sobre a
30
posi<;:aodo rai, pais a religiao e a fc se referem a todos como lim mesmo UM e esta
vern a sustentar a nOyaO de Deus de uma maneira universal.
Segundo Aletti, a fe se subtrai as figurayoes de Deus POf cia mesma criadas.
Porque a "verdadeiro" crente, aquele que na elaborayao religiosa pessoa\ e criador da
imagem de Deus, sabe que esta scmprc arriscando a idolatria das imagens. Pelo que,
"essa fe, a (mica que naD e objeto de abuso e que e absolutamente completa, con vern
apenas ao homem da duvida", aquele que, no proprio prolllmciamcnto de fe, e
acompanhado da "suspeita de ter trocado de Deus, de te-Io ofendido abandonando-o,
como presa, it tCITcnidade", na consciencia de que a figuray30 de Deus ja e "tim nome
para um vazio". (2004). E Rocha (2001) afil111a que 0 pai, aqueJe que teria 0 suposto
saber absoluto (onisciente), 0 pai universal, "uno", naD existe.
Para Aletti, falar de "representaQao inconsciente de Deus" pode revelar-se
improprio. Na medida em que e inconsciente, a represen13<;:ao flaO esta orientada por
lI111 nome, naD e definivel com uma especific3r;30. E a cultura, a religHio que da um
nome ao objeto do desejo. E, segwldo Rocha (2001), a reiigiao naD leva em conta 0
inconscienle, 0 pulsional.
Aletti ainda diz, que a reprcsentar;ao objeta] pareee mais adequadamcnte
pensftvei como "capaz de in-formaT com cia mesma as objetos reais: afetos, reiar;ocs,
crenvas; no caso especifico da religiao, na dircv30 guer da fe quer da naa crenv3". Pra
ele, essas relar;oes supoem pre-condir;oes psicol6gicas, como a capacidade de "crer" e
de confiar, a capacidade de reiayoes objetais suficientemente estruturadas, a capacidade
de simbolizayao, a capacidade de atribuir significado aos acontecimentos, a capacidade
31
de distinguir entre objcto e usa do objeto. Mas a experiencia reiigiosa requer,
especificamente, a capacidade de dar urn nome it experiencia de creT, que deriva da
interac;;aodo sujeito com 0 sistema simb61ieo religioso e, para 0 homem de fe crista,
supoe a palavra reveladora de Deus e a capacidade de responder, com tada a sua
pessoa, it interlocuyao iniciada par Deus. (2004).
Na ohra "0 futuro de lima ilu530", Freud detennina a crenC;;3 fundada no desejo
como ilu530: "Dizemos port'anto que uma crenc;;a e jlu530 quando em sua motivacao
preva!cce a satisfaC;;3odo desejo e prescindimos, por i550, de sua relacao com a
realidade, exatamcnte como a propria ilu530 renuncia a sua convalidac;;ao" (1927). Ao
fim, porel11~na convicc;;aode Freud, naD existe outro futuro para a ilusao religiosa que 0
de desaparecer progressivamente do patrimonio cultural da hlUl1anidade, sucumbindo
ao progrcsso cientifico que avan~a com a necessidade fatal dos processos de
crescimento.
Confirmando esta convic~ao de Freud, Gerard Pommier em «Existiria um
sentido psicanalitico na 'Historia'?" (1994) estabelece que a crenya e proporcional it
forya do rccalquc, Aquilo que urn sujeito cre (a ficyao, 0 "seu" mito) e proporcional ao
recalcamento de seu desejo, aquila que nao quer saber em seu fantasma. E a "cultura"
que pennite ao sujeito assegurar seu proprio recalque, pais ele s6 pode faze-Io grayas a
ficyoes sociais que ele ja encontra ao nascer; e, consequentemente, ah'ibuira crenya a
est as ficyoes, conscientc au inconscientemente. Portanto, para Pommier, existem
ficyoes coletivas, que fazem lavo social au'aves do inconsciente de cada um. A
psicanalise se interessa por aquilo que Iiga 0 fantasma de cada urn e a ficvao coleriva,
32
A historia de um sujeito, 0 que ele conta sabre sua propria vida, cOITcspondem a uma
configuracao aceitavel de sell fantasm a, a quaJ geralmente 0 inocenta. Esta forma
aceitavel vai produzir lim direcionamento obrigat6rio, que comporta a ideia de um
progresso. E Pommier, baseando-se nas "profecias" da religiao crista, diz que
atualmente a humanidade caminha para as fins dos tempos, numa marca indefinida
para 0 progresso. 0 "progresso" nada mais e do que a fanna secularizada, recalcada, da
ficcao religiosa dos tempos mcssHinicos. As noc;oes de redencao, de fim dos tempos, de
remissao dos pecados respondem pcla culpa do 5ujeito. 0 tempo destr6i os seres que
ericu, a Ilisteria avanca indeftnidamente para 0 sell proprio fim, 0 progresso traz 0 seu
desaparecimento, a proximidade da catastrofe acompanha 0 progresso, que nao e causal
neste processo.
Em "0 mal-estar na civiliza~ao" (1930) Freud afinna que as rel.igioes sempre
deram atenyao ao papel desempenhado na civilizayao pelo sentimento de culpa, a que
chamam de pecado. Ah~m disso, elas alegam redimir a humanidade desse sentimento.
No ctistianismo, essa reden~ao e conseguida pela morte sacrifical de uma pessoa
isalada, Jesus Cristo, que desse modo toma sabre si mesmo a culpa COIllUina todos.
Freud diz que pOl1anto havia urn metoda altemativo de atenuar a culpa e ele foi
adotado pela primeira vez par Cristo, que sacrificou a propria vida e assim redimill do
pecado original 0 conjllnto de innaos. Esta e a Graya Divina.
'-Com cfeito, quando cramos ainda fracos, Cristo a seu tempo morrcu pclosimpios. C .. ) Pomnlo, muito mais agora, que cstamos justificados pclo seusanguc, scrcmos por de salvos da ira. Sc, qllando cramos ainda inimigos,fomos rceonciliados eom Deus pela morte de sell Filho, eom mUlto mais rarlo.
33
cstando ja reconciliados, scrcmos salvos par sua vida. ( ..) No cntanto, dcsdcAd5.o ale Moises rcinOll a marte, mesilla sabre aquclcs que nao pccaram aimiral;ao da transgrcssfio de Adao (0 qual Ii: figura do que havia de vir). ( ... ) Scpcla pccado de urn s6 homcm rcinou a morte (par esse {mica homem), muitomais aquelcs que rccebcram a abundancia da grac;.' C 0 darn da justica reinaraona vida por um sO, que c Jesus Cristo! Portanto, como pclo pccado de urn 56 acondcnaCao sc cstcndcu a todDs as homcns, assim par urn unico ala de justicarcccbcm todos as homells a justificacao que d:i a vida. Assim como pcladcsobcdicncia de urn 56 homcm foram todos constituidos pecadores, assirnpcla obcdicncia de lim 56 todes sc tomaraojustos". (Rm 5, 6.9-10.14.17-19).
Em "Totem e Tabu" (1912-13), Freud cita as dais fatores propulsores das
rel.igioes: 0 sentimcnto de culpa do I1lho e sua rebeldia. E tenta, seguin do pistas
fomecidas por Robertson Smith, Atkinson e Charles Darwin, adivinhar a natureza
dessa culpa, acreditando tambem que a doutrina crista pennite deduzi-la. No mito
cristao 0 pecado original foi urn pecado cometido contra 0 Deus-Pai. Se 0 Filho de
Deus foi obrigado a sacrificar sua vida para redimir a hwnanidade do pecado original,
entao, pela conhecida lei de taliao ("Olho par oiho, dente par dente", que estabelece
que um homicidio 56 pode seT reparado pelo sacrificio de Dutra vida), este pecado cleve
teT side lima marte, urn assassinate (Freud diz isso referindo-se ao suposto assassinato
do Pai Totemico). E, se 0 pecado original roi uma ofens a COTltra Deus-Paj, e este
sacrificio ocasionou uma reparay30 direcionada a Ele, 0 primeiro crime da humanidade
s6 pode tel' side um pan-ieidio, 0 homieidio do Pa.i; cuja imagem foi depois
transfigurada numa divindade. Oai consegue-se inferir que esta pode ter side a plimeira
ocasiiio em que a culpa primiuia, que constitui tambem 0 primordio da civilizayao, foi
adquirida.
Neste lexto ("Totem e Tabu") Freud propoe, pOitalltO, que na doutrina crista, as
homens estavam reconhecendo da maneira mais clara, 0 seu primeiro ato de culpa. A
34
reparayao direcionada ao Pai foi ainda mais completa vista que 0 proprio ato pelo qual
o filho ofere cia a maior reparayao passivel a Ele, 0 conduzia, ao meS1110 tempo, it
realizayao de seus desejos contra 0 pai. Ele proprio, ao marrer, tOlllava-se Deus, ao
lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Surge ai, uma reiigiao filial, que
deslocava a religiao patema. E, como sinal dessa subsrituiyao, a comunhao crista, no
entanto, cOllstitui essencialmcnte uma nova eliminayao do pai, uma repetiyao do ala
culposo, it medida que se consome a came e 0 sangue do filho (nao mais do pai), para
obter-se santi dade e identificar-se com ele. "Deve-se supor que, apcs 0 parricidio, urn
tempo considenlvel se passall, durante 0 qual os innaos disputaram uns com as outros a
heran,a do pai, que cada urn deles queria para si sozinho". (Freud, 1937-1939).
Dostoievski escreveu: "Se Deus nao existisse, tudo seria pennitido". De acordo
com Vergilio Ferreira, in "0 I:....ristencialismo e 11111 Humanismo" de Jean-Paul SartTe
(1962), tudo e pennitido se Deus nao existe e, com iS10,0 homem fica abandon ado, nao
IHi desculpas para ele, ja que nao encontra em si, Item fora de si, valores ou imposi~oes
que legitimem e justifiquem seu comportamcnto. 0 hom em esta condenado a ser livre:
s6 e sem desculpas. Condenado, porque nao criou a si proprio; e no entanto livre,
pOl·que uma vez lam;ado ao mundo, e responsavel por tudo quanto fizer. Portanto, 0
homem, sem qualquer apoio e scm qualqucr 3lodlio, esta cOlldenado a cada instantc a
(re)invcntar a si propl;o. E Ferreira cita Ponge num bela artigo: "0 homem e 0 futuro
do homcm".
Segundo Lacan (1960, publicado ern 2005, p.30), onde Deus estaria morto e
nada mais seria permitido, matar 0 pai e interclitar 0 gozo e portanto consolidar a lei e
35
nao aboli-Ia. Para Melman (1992, citado pOI' MENGARELLI, 1994, pAS), a lei paterna
interfere castrando e. se este ferimento narcisico naa se produz. entra em ay30 0 corte
real. Fundal' lim Pai como Paj morto permitiria lanc;ar-se a lIrna ordem simb61ica em
que as alas poderiam ser rcais porque estariam garantidos pel a lei. (Re)significando a
lei, nao se precisaria que 0 ala Fosse simb6lico de uma falha. A lei entao ser;a lima
garantia da possihilidade de acesso ao gazo falico.
Ja "prevendo" 0 futuro, como 0 proprio titulo cijz em "0 futuro de uma ilu53.0'·
(1927), Freud faz lima critica it reiigiao, dizendo que esta dominou a sociedade humana
pOTmuitos milltares de all os e teve tempo para demonstrar 0 que pode alcanC(ar. Se
hOllvesse conseguido tamar feliz a maiaria da humanjdade, conforta-Ia, reconcilia-Ia
com a vida, e transfonna-Ia em veiculo de civiliza~ao, ninguem sonharia em alterar as
condi~oes existentes. Mas, em vez disso. Freud ja via na epoca (e podemos tomar como
verdadeiro tambem para os dias atuais) que lim numero estalTecedoramente grande de
pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a Civ1liza~aO, sentindo-a como uma
opressao da qual gostariam de se Iibel1ar, fazendo tudo que puderem para ahera-la, ou
entao, geram uma hostilidade contra ela, na qual sentem que nada tt~m a ver com a
civiliza~ao ou com sua restric;;aoda pulsao.
Pode-se concordar com Freud, quando ele duvida que os hom ens tenham sido
em geral mills felizes na epoca em que as doutrinas religiosas djspunham de uma
innuencia irrestrita; e, mcsmo a religiao monoteista, atraves de seu incentivo as
sllblima~oes dando enfase ao que e moral, mais morais certamente tambem nao Coram,
pois sempre souberam como externalizar os preeeitos da religHio e anular assim suas
36
inlcn<;:oes.Os sacerdotes, cujo dever era asscgurar a obediencia it religiao, foram a seu
encontro nesse aspecto. A bondade de Deus deve refi-ear a Sua justic;a. Algllem peca;
faz depois urn sacrificio au se penitcncia e fica livre para peear de novo.
Em "Dostoievski e 0 PalTicidio" (1928 [1927], in: 0 Futuro de uma ilusiio,
1927), Freud diz que 0 homem moral e aqueJe que rcage it tentay30 tao logo ele a sente,
mas scm submeter-se a cIa. Urn homem que altemadamente peca e depois, em seu
remorso, institui-se altos padroes morais, fica exposto a censura de tomar as caisas
faeeis dcm3is para si. Nao alcancoli a essencia da moralidade, a renimcia, pais a
conduta Illoral de vida e um interesse humane pratieo.
Sendo assim, Freud concorda que 0 pecado e indispensavei it fruicao de tadas as
bcnyaos da graya divina, de rnaneira que, no fundo, 0 pecado e agradavel a Deus. Pois a
graya Divina e urn imperativo de gozo que diz, atraves da Lei Paterna "peque!", porque
s6 pecan do 0 homem ohtem a graya e quanto mais ete peea, mais dependente da h'Tac;a
ele fica. Para Norberto Carlos lrusta, em seu artigo "Lacan e a cultura: evidencia de urn
mal-estar" (1992), nao escapa a Freud que "pel a mesma mao que se funda Deus, se
perfila como necessaria it modelagem do diabo". E. segundo Freud, nao e segredo que
os sacerdotes s6 puderam manter as massas submissas it religiao pela efetivayao de
cOllcessoes tao grandes quanto essas it natureza instintual do homem. Assim~
concluiram: 56 Deus e forte e bom; 0 homem e fraco e pecador. Em todas as epocas, a
imoralidade encontrou na religiao urn apoio nao menor que a rnoralidade. Se as
realizayoes da religiao com respeito it felicidade do homem, susceptibilidade it cultura e
contrale moral nao sao melhore5 que i550, nao pode deixar de surgir a que5tao de saber
37
se nao superestima-se sua necessidade para a humanidade e se e adequado basear nela
as exigencias culturais.
E Freud indaga:
"Nao cxiste aqui perigo de que a hostilidadc dcssas massas a civilizar;ao searrcmcssc contra 0 ponto fraea que encontraram naqucla que Ihe imp6ctarefas? Se a (mica rawo pela qual nao sc deve malar nossa proximo 6 porqucDeus proibiu enos punira scvcramcnlc por issa nesta vida Oll na vida futura.entao, quando dcscobrinnos que nao existe Deus c que nao prccisamos IcmcrSeu castigo, ccrtamentc matarcmos 0 proximo scm hcsitar;ao C 56 podcrcmosser impedidos de faze-Io pela for1;a Icrrcna. Dcssc modo, au cssas rnassasperigosas tcrao de ser muito scvcramcnlC submctidas c com todo euidadomantidas afastadas de qualqucr possibilidade de despcrtar intelectual, ou cntaoo relacionamento entre civiliza'rao c reiigiao lera de sofrer uma revisaofimdamental" (1927)
38
CAPiTULO IV - A INFLUENCIA DO PECADO NO HOMEM ATUAL.-
o PARADOXO DAQUESTAO DO PECADO NA SOCIEDADE DE
CONSUMO - 0 SENTlDO DO PECADO ESTA SUMINDO?
"E passivel que 0 maiorpecado do muncio awol consislajllslamenle no/afo de os
hOlllellS {erelll perdido 0 sen/ido do pecado ". (Pio XII)
Para Maria Rita Kehl ern seu livro "Sobre Ellca e psicamllise", ha uma estranha
contradic;:ao em que os valores que alicen;am 0 comportamenta do hOl11cTll
contemporaneo sao 0 prazer narcisista. 0 acumulo de dinheiro e a exclusao do outro
(individualislllo ).
Seja nas sociedades altarnente industrializadas au nas menos desenvolvidas,
ambas regidas pela lei de tnercado, Vazquez (2000) rode-se ver utna aliena~ao do
consumidor. As relayoes entre prodUy30 e consumo se subordinam as exigencias de
obten~ao de lucro e, por este motivo, hoje naD se produz para satisfazer as necessidades
do consumidor, e sim, para satisfazer ulna necessidade criada artificialmente pelos
produtores, fomecedores e comerciantes, que se utilizam dos meios de comunic3y8o
em massa, de uma publici dade insistenl'e e organizada para seduzir, a partir de
refinadas tecnicas de persu3sao 0 consumidor, com a finalidade de ampliar a coloc3yao
e conseqiientemente a venda de seus arrigos, Desta fonna, as necessidades do homem
atual sao manipuJadas para que se consuma (pOl'que hoje, "pecado e nao consumir"!)
nao 0 que satisfaz as suas reais necessidades, mas as dos outros, "0 apeto, apesar de
39
sua forte consonancia com a cultura do individualisT11o,nao deixa de ter urn alcance no
que toca 0 la<;osocial." (Kehl, 2002).
Mengarelli (1994, p.46) afinna que rirar vantagem. levar vantagem, nao deixa de
seT uma apropria~iio de alga a mais, urn diferencial que marca a superioridade do Outro
de quem se tira e, ao fazer isto, registra 0 proveito da matclialidade em detnmclllo do
simbalieo, que fica anulado neste ato. E, diante clesta perda do simbalieo, Mengarelli
coloca em seu texto "A falha Etica e a Erica da Falha" (2000) a aliena<;ao ao objeto:
"vivcmos numa cpoca de imagcns, de cspclhos, scmblantcs e passarcJas, oodedcsfi1am~sc vaidadcs c quase nunca vcrdadcs. Pais a etic..1C a de uma vcrdadc,vcrdadc dcscjantc, diz Lacan, verdadc que compete a um sujeito sustcntarquando mio movido pcla alicnayao a scduc<1.0dos objctos. E cstamos numc.'(ugcro a proposilO dos objclos de consum~, nao? Objetos Que promctcmtrazcr a felicidadc. Ora, a elica nao csta no objcto. Esta no sujcito. Ou 11<10
csta",
Para a autora, 0 detrirnento do simb61ico denuncia que ha urn Nome-do-Pai
(uma lei) presente, mas sua fun~ao esta sendo pennanentemente sendo posta em
questao. Nao se desfaz deste Nome-do-Pai por conseguir construir uma propria
metilfora, mas por haver urn declinio de sua presenca, Pois deve-se questionar hoje, elll
que condicoes ele se expressa: se e veiculado it linguagern, exercendo perdas e ganhos,
que vao tracando suportes a falta, 0 que significa que e1e nao esta suspenso; ou se
deixa-o de lade nao tendo aprendido nada com ele, demonstrando sua ausencia. (1994,
p.4S).
Em "0 Pai ou 6pio. Entre e a Lei e a Transgressao", Angela Valore tarnbem
trala da questao da falencia do Pai, colocando que a sociedade esta em busca deste Pai
40
que Ihe 1l10strea falta, Ihe imponha limite. Pais 0 paj e lima instancia simb61ica cuja
operacao suporta a propria possibilidade de lima organizacao social e cuja manutcncao
pela funeao que sustcnta e essencial a cia. Fazendo referencia a Charles Melman,
Angela procura definir este Pai, em diferentes registros, colocando-o como castrador.
agcnte da castracao - no registro imagimirio, referente ao Edipo; e tambem como
significante - no registro simb61ico. Sua intervencao pennite que 0 sujeito se funde
como tal, pcnnite acesso ao falo enquanto regulador de gozo (falico), regido pe\a
castTacao. Este Pai tern como funcao instaurar limite quanta it possihilidade de accsso a
urn objeto capaz de tapaT 0 huraco da falta; opera a separacao e baliza um campo de
gozo, legitimando-o. POitanto, 0 regime do Nome-do-Pai dita a norma e convoea a
renuncia, que assegura 0 direito de gozar.
Mas atualmentc, segundo Angela, pareee estar havendo uma espeeie de mutayno
cultural, que privilegia urn tipo de gozo alheio ,\5 limitayoes. A medida que cada
cultura estabelece suas normas (etlea), pode-se dizer que a eultura judaieo-crista traz
consigo uma moral que vern para regular a satisfa':;30 atraves do sacrificio. Mas nesta
muta.:;ao cultural pretende-se suprimir 0 sacrificio em OpOSiy30as gera~oes anteriores-
marcadas pela renuncia (incitada pela religiao) aos prazeres da vida terrena em lToca de
uma felicidade apos a morte. Hoje vive-se 0 deelinio da fUfly30 Patema, portanto nao
ha lei que imponha limite. E sem a religiao, 0 Pai simbalieo e abolido, a transgressao
deixa de ser urn sonho e passa a ser quase urn imperativo. (VALORE, 1994, p.I-4).
Esta possivel ausencia do Nome-do-Paj, e portanto da lei, remete a uma questao
trazida por Moser: estaria de fato hoje 0 sujeito negando a sua condiy30 de pecador
41
(condi~ao esta que adquire 56 por nascer, 56 por seT desejantc)? Ou com a evolu~ao do
!nundo 0 homem tambem reavaliou 0 seu conceito de moral e busca lima nova
compreensao do pecado, que siga 0 curso do desenvolvimento da especie e seja mais
adequada ao seu tempo? Nesta Otica, 0 pecado talvez ja naD seja sentido tanto como
ofensa a urn Deus distante, mas uma ofens a ao proximo (SCOONENBERG, 1972,
p.268, citado por Moser 1975, p.12); naa se reduz a atas moralmente maus, como faha
individualmcnte considerada, mas COIllOfalta que afeta a coletividade. Continnando
este "sensa de proximo", Jaques Lacan (ern uma de suas conferencias em Bruxelas a
Faculdade Universitaria Saint Louis, que consrituem a pCC;3 "Discurso aos cat6licos" -
"Freud, no que se refere a moral, dil 0 peso correto", 1960) fala do problema da
instancia da moral por meio do recurso classico do utilitarismo, e afinna que:
"Esse rccurso C,cm suma, 0 hflbito na conduta, rccomcndilvel para 0 bcm-estardo gmpo. ( ...) A atracao da lItilidadc C irresislivel, a ponto de vermos pessoassc danando pclo prazcr de conceder suas eomodidades aquelcs nos quais clascnfiaram na c.1beya que mio poderiam viver scm seu socorro:'
Segundo Vazquez (2000), 0 Iflililal'ismo se caracteriza por "aquilo que se faz
que beneficia, fundamentalmente, os outros, ou 0 maior numero de pessoas". POitanlo,
se antes de tudo, se considera 0 bern dos OUlTOS, sem implicar porem na renimcia do
proprio bem, tem-se a teoria da obrigacao moral sob as diversas formas de utilitarismo.
Mas em contrapartida, se levar-se em considerar;:ao 0 bem pessoal. lui a obrigacao
moral do "egoislllo etico", que pressup5e que "deve-se fazer 0 que Ihe traz 0 maior
hem, independente das conseqUencias que derivem para os outros". Com estas duas
42
tearias, tem-se ai a rela~ao da ohrigayao moral - 0 que se deve fazer, com as
conseqUcncias desta 3930 - vantagens, beneticios que esta pode trazer a si proprio e/ou
aos demais.
Apesar de 0 urilitarismo buscar, em primeira instancia, 0 bern do proximo, 0 que
prcssupoc em certa altruismo, a esta neccssidade de se razef ubi surge uma questao:
lltil para quem? Na verda de, a si proprio; a medida que as pessoas tem necessidade de
se sentirem uteis, buscando 0 gazo que isso traz. Porque urilidade pressupoe certa
importancia, naD e iniltil, serve para alguma coisa, tern uma funr;30, e quem a exerce e
vista e lembrado por isto. Portanto, naD e para 0 Dutro, e para si proprio que se faz uti!.
Desta forma 0 utilitarismo, interpretado no senti do egoista, afmna que 0 bom seria lltll
ou proveitoso para 0 individuo, 0 que entra em contrad.i\tao com a ideia primeira que
sustenta 0 utilitarisrno em que 0 born e 0 util ou vantagioso para 0 maior nlilnero de
pessoas.
Esta contradic;;ao pode fazer pensar que no fundo. mesmo os altruistas. sao
egoistas, pois faz-se 0 que beneficia os outros para beneficia proprio (tambcm). Pois
como dito anterionnente, uma "boa ac;;ao"(moralmente faJando) produz satisfa\t3.o em
quem a executa - e 0 homem deseja 0 prazer como fim, sendo 0 homem. portanto. urn
ser egoisl'a par natureza. 0 egoisrno crieo tern sell fundamento numa doutrina
psieologica de natureza humana e sua tese fundamental traz que cada um deve agir de
aeordo com sell interesse pessoal, promovendo assim, aquilo que e born e vantagioso
para si; Oll seja, 0 homem C psiquicamente eonstruido de tal modo que 0 individuo
sempre tende a satisfazer seu interesse pessoal, Vazquez (2000).
43
Sendo assim, Dutra questao vern it tona: sera que 0 "amor ao proximo" e 0 que
(ainda) rege a moral? Para Maria Rita Kehl, 0 imperativQ cristao «Amaras teu proximo
como a ti mesmo" ja nac serve de resposta etica ao homem modema. Como ja
mcncionado, Kehl afirma que a etica atual nao se orienta para 0 (born) convivio entTC
os individuos da comunidade - amor ao proximo, como pressupoe a religiao. Para
Keht, hoje a convivencia nao aparece como 50Iu'(30, mas sim como urn problema a seT
rapidamente eliminado, gerando refens de lima ellca da nao-convivencia, onde 0 sujeito
contemporaneo e urn sujeito dividido entre gozar e ter de conviver (2002). lean-Louis
Chassaing, em "Especificidade da Elica?" (2000) lraz a amarra,;;o entre 0 bem
individual e 0 bern de todos como a submissao a uma razao ou a imposi~ao do gozo -
perversao, na qual se trata da rela9ao ao outro e, a esta rela9ao, e inerente ° prazer;
como ja mencionado anterionnente - 0 ser humane e regido pela busca da satisfa9ao.
Para Moser (1975), ha varios indicios de que 0 sentido cristao do pecado esta
sumindo na sociedadc de con sumo. Em seu diagnostico. ele cita alglUls sintomas e
raz5es para este descredito no pecado hoje; que seriam, em primeiro lugar, 0 ateismo e
a dessacraliza93.0. Porqlle Deus e 0 pressuposto do pecado - toda a tradi~ao crista
coloea ° pecado aeima de tudo, como uma ofensa a Deus - e hoje, para um numero
creseente de pessoas, a imagem de Deus como totalmente outro, 0 inominavei, alem de
todas as categorias, POliCOrepresenta para a maiOlia dos homens, que almejam lima
auto-suficicncia. Deus deixa de ser urn pressuposto; portanto. 0 pecado tambem.
GutTa razao citada por Moser para a perda de urn celto sentido do pecado, seria
o pillralismo cultural e religioso, a miscigena9ao cultural e religiosa, em que 0
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entrelayamcnto das culturas, dos costumes e das crenyas tmz urn relativismo it moral,
allde 0 que e certo para urn, e en'ado para outro, gerando uma inseguranya sabre 0 que
reaimcnte possa seTconsiderado pecado.
Alem dissa, Moser afinna que 0 decn!scirno da autoridade da igreja e uma
realidade patente e ilTcversivel. E com isto, cacm, tambem, muitas categorias marais e
religiosas, inclusive a do pecado. A negay30 pnirica da necessidade do sacramento da
penitencia, em contrapartida, e crescente, gerando uma diminuiy30 do numero de
confissoes, por exemplo.
Freud, ern"O futuro de urna ilusiio" (1927), confinua que pode-se a adrnitir que
a religiao crista naa possui mais sabre 0 POVD a mesma influencia que costumava tef. E
ele afirma que isso nao aconteceu por que as promessas cristas tenham diminuido, mas
pelo falo das pessoas acreditarem menos nelas.
Segundo Freud,
"Urn dos motivos para cssa mudan~a poderia ser 0 aumento do cspiritoeientifieo nos estratos mais clcvados da socicdadc humana. 0 cspiritoeicntffico provoc.:'l uma atitudc especifica para com os assuntos do mllndo:pcrante os assuntos rcligiosos, etc sc dctcm urn instante, hesita, e, finalmelHe.crllza~lhcs tarnbcm 0 limiar. Ncsse processo, na~ ha internlp~5.o; quanto maiorC 0 n"mero de homcns a quem os tcsouros do conhecimento sc tornamaccssivcis, mais difundido C 0 afastamcnlO da cren~a rcligiosa, a principiosomcnte de seus omamcntos obsoletos e objetaveis, mas, dcpois. tambcm dcseus postulados fundamcntais" (1927).
Para Gerard Pommier (1994), uma concep93o 1110dernade progresso equivale it
forma secularizada do encaminharnento monoteista para os fins dos tempos; urn
rccalcamcnto da rcligiao, da trindade divina. Nesta evolu93o 0 homem se encontra
abandonado, autor de seu proprio drama, mas queixando-se da ausencia de Pais,
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havendo, portanto, urna carencia patcllla, do simb6lico. A Crenlt3, 0 la~o religioso
continua a fazer laco sociaL Precisa-se que a religiao, 0 sagrada sejam devolvidos ao
mito. 0 mito nao requer 0 meSIllO ripa de creny3 que a religiao; 0 mito remete it solidao
de uma crenya individual, a reiigiao, em contra partida requer a multidiio. (Ponunier,
1994, p.27).
Ern consonancia com este principia, Mengarelli diz:
"De modo geral, cspera-sc de alguma inst£incia que haja cfctivrl.l;ao da lei. Asocicdadc espcra do Estado, 0 cstado espcra da socicdadc. Ainda: a crian~a e 0adolcsccntc cspcram do outro que lite produza uma marca simb61ica c asQutros csperam dcles que sc conduzam na vida de modo a responder segundoas principios de urn ideal que dcvcria seT comum a todos nao importando sobque condiCOcs" (1994).
Diante disso, pode-se entao afinnar que 0 sentido do pecado esta sum indo, pelo
menos em sua representacrao cJista? Se levannos em conta esta afirmacrao como
verdadeira, nos deparamos entao com uma outTa questiio: haveria a possihilidade da
psicamllise ler alguma relacao com isso? Segundo Moser (1975, p.24), a psicanaiise
adverte indiretamente contra uma "culpabilizaciio" moralizante; mas nao amea~a 0
sentido cristao do pecado, pois se coloca num horizonte diferente. £, segundo Rocha
(2001), a religiao nao leva em conta 0 i.nconsciente, 0 puisional. Mas seu livro, Maria
Rita Kehl demonstra que a psicanalise pode sustentar uma etica para as tempos atuais
e, mais do que isso, afinna que fora do saber psicanalitico, nao hit como pensar 0
i.ndividualismo exacerbado, a pOlllografia, a violencia, a J6gica cega do capital, enfim,
os valores, na~ declarados, mas que orientam a sociedade de consumo.
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"Na rcalidadc, a psicamilisc constitui urn metoda de pesquisa, um instrumcntoimparcial (...) Sc a aplicayao do metoda psicanalitico loma possivc1 cncontrarurn novo arh'1lmento contra as verdadcs da religiao, tanl pis para a rciigiao,mas as dcfcnsorcs dcsta, com 0 mcsmo direito, poderiio fazer usa dapsicanalise para dar valor integral a significayao cmocional das doutrinasrcligiosas" (Sigmund Freud)
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CONCLUSAO/CONSIDERA<,:()ES FINAlS
Se tamannos as argiii<;oes sob algumas perspectivas aqui citadas para abordar 0
assunto pecado, poderiamos entao nos aniscar a tentar definir, de maneira
extremamente simplificada este cOTlceito. Desta fanna, com base em Moser, nos
pennitimos dizer que pecado seria uma interdiyao nascida de wna lei extema ao
homem, que se apresentoll a vida crista como lim conflito entre a liberdade e a
autonomia do homem em contraposiyao it lei divina, imposta arbitrariamentc. 0 pecado
aparece assim, como violaC8o de uma lei, lima moral que se funda numa interdicao
alimentada por lima tradicao de ordem social e reiigiosa. E, nos apropnando das
palavras de Mengarelh, poderiamos dizer que 0 pecado senda a transgressao da lei
divina, e esta ser justamente 0 que emputTa a transgressao (pois, como disse Sao Paulo
em sua Epistoia aos Romanos, ao ser enunciada, a lei produziu 0 desejo), podemos
responder a questao inicial proposta pelo titulo deste trabalho - "a proibiyao funda 0
desejo", como afinnativa.
Apesar de 0 pecado parecer desacreditado em nossos tempos, muitas pessoas
ainda hoje agem sob forte influencia do cristianismo, de acordo com uma moral em que
esta inserido 0 "nao-pecar" .. Paradoxalmente, ern nossa sociedade comandada peJas
leis de mercado - em que este e considerado um deus (mica, a midia vern prestando um
grande desfavor aos que buscam ser '''nao-pecadores''. Atualmente basta andar pelas
mas ever nos OlildoOl:\', nas revistas, nos comerciais de TV; enfim, ern qualquer rneio
de comunicayao em massa, os mais variados animcios que se utilizam de apelos nada
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"cristaos" para conquistar a sua clientela. Desde os mais conhecidos Sete Pecados
Capitais, como a gula (nos comerciais, anUncios C flaD 56 os de comida); a luxluia,
estimulada peJa aparic;:ao de Tllulheres que sao verdadeiras beldades na maiaria dos
comerciais, principaimente os de cerveja - teoricamente mais voltados para 0 publico
masculino - (mas aqui ja entra a inveja, por parte das mulheres, que tambem tem acesso
its imagens dos corpos de dar inveja mesmo, e a ira, por naD conseguirem ter as
mesmas curvas); a cobic;:a, incentivada por produtos que nem scmpre se pode tel'; a
sabeTha, quando se tern 0 que os outros naG podem ter, (principaimente pader); a
avareza, quando flaD se quer dividir 0 que se teIll; e a preguic;:a, inegavelmente uma
caracteristica de muitos (senao, de todos!); sem mencionar todos os outros pecados que
contrariam os Dez Mandamentos de Moiscs.
Com 0 bombardeio diano de tantos apelos fica dificil, meSmO para quem opta a
"obedecer os preceitos de Deus", nao pecaL Pois ser pecador e uma condiyao inerente
ao homem - segundo 0 cristianismo - e nao ha como fugir disto. Ou seja, a religiao
crista vi! 0 homem como um todo indivisivel, que peca. Entao por que conti_lluar
obedecendo a estas leis, se sempre sera condenado (pela religiao)?
A saida para os que buscam flaOpecal"esta em "aceitar" a Jesus, que nasceu e se
sacrificou para livrar 0 mundo do pecado. Esta seria a graya divina. Angela Valore
(1994, pA) fala que a religiao impoe um sacrificio, mas nao de modo a sustentar a Lei,
e sim oferecer uma saida para ela; e tmz Lacan, que nos diz que quando 0 sujeito
ultrapassa os lilllit'es da Transgressao, se encontra com a Lei, a CaS1TatyaO;e na religiao
quem rompe os limites da transgressao se encontra com a graya. Pois a graya e 0 que
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liberta da Lei, e a Lei PatcIll8 envolve urn imperativQ de gazo: "peque!" Pais e pela via
do pecado que se chega a Delis, cuja lei nao e mais a do impassivel, mas proibi90es
para banalizar os esfof90s do pecador, manobrando-o para obter a Gra98. Porque 56
pecando, 0 5ujeito chega a Graya, pecar 0 lorna dependente da Gra93.
Mas lui ainda outra saida para buscar a redemyao dos pecados: "pecar men os" . A
OP930 fundamental, revelada pelos at05, nao Ihes retira 0 peso da condiyao de
pecadores, mas diminui it medida que a OP9aO feita e «pela caminho do bern". Um hem
que se revela "nao Hiobern assim", quando depara-se com tantas priV31(OeS e sujeil(oes
para ter acesso a felicidade. mas 11aO neste mundo, apenas apos a morte, ~ conseguir if
para 0 Cell. E at cria-se classificarroes para amenizar 0 pecado, que pode se enquadrar
nas categorias leve, grave, mortal, etc,
Contudo ainda hit muitos "fieis" capazes de anular Sllas intenyoes pecaminosas,
esperando que Deus tambem anule, simplesmente "sublimando" 0 preceito divino c
vivendo sua vida sem tantas privarroes, mas dizendo respeitar todas, Estas pessoas
lidam de uma forma muito "subjeliva" com a questao do pecado, muitas vezes ate
ligam-se a religioes que impoem proibicoes bern claras, mas na realidade nao se
submetem completamcnte a elas, pOl'que sabem que jit sao considerados pecadores, ou
porque acreditam que desobedecendo a estas proibirroes nao serao "condenadas" (par
acharem que estao cometendo pecados "Ieves"), ou simplesmente pOl'que sao guiados
pela maxima: "faca a que ell djgo, nao fay3 0 que eu faco",
E e impossive! nao concordar corn Freud, quando ele cnfariza que em bora
busquem nao peear (ou pecar menos), as recaidas no pecado sao muito comuns entre os
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"tementes a Deus". dando origem a lillla outra fanna de atividade religiosa: as atas de
penitencia, em que quando alguem peca, faz depois um sacrificio au se pcnitencia e
fica "livre" para pecar de novo.
E ncsta sociedade de consuma onde 0 ideal e 0 da midia, da industria - cuho ao
objeto, somas irnpelidos a transgredir. Mas alem da midia, Os progressos da cicncia, 0
avanr;o da tecnologia, as conqu.istas no campo da comunicar;ao fazcm pareeer que
"nenhum designio" mais e impassive! para os homens e 0 proprio modo de vida
contemporaneo traz muita do que e considerado pecado, como regra para uma vida
anunciada como "ideal" Porque hoje 0 lema e consumk E consumir sem culpa, sem
tel' que pagar pclas conseqii<~ncias, mas talvez assumi-las. Por exemplo, atualmente
muitas das pessoas que lTabalham buscam simplesmente ganhar dinheiro para poder
gastar com os prazeres da vida e nao necessariamente buscam um emprego para lerern
uma pro6ssao e assim se tomarem homens e mulheres considerados «de bern". Da
mesma maneira ocorre com a escolha do parceiro: hoje, as pessoas buscam se
relacionar com pessoas que Ihe tragam prazer, em todos os aspectos, dcsde 0 prazer da
companhia, ate 0 prazer sexual propriamente d_ito.Nao hft mais aqueJe modelo de casar
simplesmcnte para constituir familia. Ha sim 0 oposto, «0 pecado" - segundo a
Religiao, pois a maioria das pessoas que se relacionam sexual mente hoje, busca um
modo de se prevenir para nao procriar e nao 0 contrftrio, se relacionar para procriar,
como delega a Igrcja. E pecam, usando preservativo, tao condenado pela Igreja, ou
qualquer outro metoda anticoncepcional. Enfim, 0 que impera e 0 individualismo,
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intcnsificado pelo con sumo que hoje faz produtos "para voce", na busea de uma
individualizal'ao dentro da globalizal'ao.
Meslllo os que se dizern altruistas sao egoistas, pais teoricamcnte fazcm 0 que
beneficia os Olltros para beneficia proprio; seja por uma "boa" imagem que se gera,
seja para "lTanqUilizar sua consciencia" pOl' acreditar fazef a eaisa celia, OU seja
simpiesmcnte pelo fato de sentir-se uti\. Pais como dito anteriormente, lima "boa a~ao"
traz satisfay30 a quem a executa, e 0 homem tem como finalidade 0 prazer; seode
portanto, um ser egoista por natureza, que 56 busca a satisfay30 propria.
A Religiao denega esta realidade individualista e egoisla do ser hwnano; ja a
psicamllise assume esta caracteristica humana. 0 que nao significa liberar 0 homern
para urn egoismo desenfreado, mas tomil-Io ciente, ou leva-Io ao reconhecirnento de
que sellS atos sao de sua inteira responsabilidade - na medida ern que sao da sua
escolha e dirigidos a algwna bllsca de satisfayao (sem disfaryit-Ios de "bem para 0
proximo", Ollatribui-los a uma vontade divina).
E a Rcligiao vern condenar esta auto-suficiencia do homem. a sua independencia
e iniciativa: "Eis que todos constituem 11m s6 P0110 e fa/am lima s6 lingua. isso e 0
COJ1/e~:ode silas iniciaNvas! Agora, nen/t1l11ldesignio sera irrealizcivel para eles". (Gn
11,6)
A psicamUise e individualizante e analisa 0 sujcito (e suas relayoes), sernpre
como 0 "sujcito da cit3yao" e da situ3yao. A psican31ise pennite ao sujeito 0
reconhecimcnto do desejo, e so conscb'1lc isso passando pela Lei, pois a Lei (e portanto
a proibicao) produz 0 desejo.
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