428
ISBN 85-99229-01-X Alex Calazans, Alexandre Dittrich, César Augusto Battisti, Claudemir RoqueTossato, Claudiney José de Sousa, Eduardo Salles O. Barra, Emerson Vizzotto de Barros, Felipe Ribas, Fernando Tula Molina, Gelson Liston, Gustavo Piovezan, Irinéa de Lourdes Batista, Ivan Ferreira da Cunha, João Carlos M. Magalhães, José Borges Neto, José Carlos Cifuentes, Joyce Mayumi Shimura, Júlio C. R. Vasconcelos, Leônia Gabardo Negrelli, Marcelo Moschetti, Márcio Augusto Damin Custódio, Marisa C. de O. F. Donatelli, Marlene Perez, Maurício de Carvalho Ramos, Max Rogério Vicentini, Michel Paty, Osvaldo Pessoa Jr, Pablo Mariconda , Patricia Coradim Sita, Paulo Tadeu da Silva, Renato Rodrigues Kinouchi, Robinson Guitarrari, Rosana Figueiredo Salvi, Simone Luccas, Veronica Ferreira Bahr Calazans. III ENCONTRO DA REDE PARANAENSE DE PESQUISA EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA

Anaiais Encontro Filosofia Parana

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Page 1: Anaiais Encontro Filosofia Parana

ISBN 85-99229-01-X

Alex Calazans, Alexandre Dittrich, César Augusto Battisti, Claudemir RoqueTossato, Claudiney José

de Sousa, Eduardo Salles O. Barra, Emerson Vizzotto de Barros, Felipe Ribas, Fernando Tula Molina, Gelson Liston, Gustavo Piovezan, Irinéa de Lourdes Batista, Ivan Ferreira da Cunha, João

Carlos M. Magalhães, José Borges Neto, José Carlos Cifuentes, Joyce Mayumi Shimura, Júlio C. R. Vasconcelos, Leônia Gabardo Negrelli, Marcelo

Moschetti, Márcio Augusto Damin Custódio, Marisa C. de O. F. Donatelli, Marlene Perez, Maurício de Carvalho Ramos, Max Rogério

Vicentini, Michel Paty, Osvaldo Pessoa Jr, Pablo Mariconda , Patricia Coradim Sita, Paulo Tadeu da

Silva, Renato Rodrigues Kinouchi, Robinson Guitarrari, Rosana Figueiredo Salvi, Simone

Luccas, Veronica Ferreira Bahr Calazans.

III ENCONTRO DA REDE PARANAENSE DE PESQUISA EM

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA

Page 2: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência(UEL, UEM, UNIOESTE e UFPR)

Projeto Temático “Estudos de Filosofia e História da Ciência”(USP e UNICAMP)

GT História da Filosofia da Natureza – ANPOF

ANAIS DO III ENCONTRO DA REDE

PARANAENSE DE PESQUISA EMHISTÓRIA E FILOSOFIA

DA CIÊNCIAUNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Curitiba, 16 a 18 de março de 2005

Eduardo S. O. BarraAlex Calazans

Veronica F. B. Calazans(organizadores)

Setor de Ciências Humanas, Letras e ArtesUFPR2005

Page 3: Anaiais Encontro Filosofia Parana

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SISTEMA DE BIBLIOTECAS COORD.PROCESSOS TÉCNICOS Ficha catalográfica Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e E56 Filosofia da Ciência (3.: 2005: Curitiba, PR). Anais [do]/ III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência, Curitiba, 16 a 18 de março, 2005.—Curitiba: UFPR, 2005. 424p.

Inclui biliografia ISBN 859922901X 1.Ciência – Filosofia – História. 2. Ciência – História.

3. Ciência – Filosofia – Congressos. I. Universidade Federal do Paraná. II. Universidade de São Paulo. III. Universidade Estadual de Campinas. IV. Universidade Estadual de Londrina. V. Universidade Estadual de Maringá. VI. Universidade Estadual do Oeste do Paraná. VII. Título. CDD 20.ed. 501 CDU 50 Samira Elias Simões CRB-9/755

Page 4: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Índice:

SESSÃO DE ABERTURA:MESA-REDONDA “A CIÊNCIA COMO OBJETO”

AS QUESTÕES ............................................................................................................................... 6Pablo MaricondaMichel Paty

AS RESPOSTAS.............................................................................................................................. 14Alexandre DittrichEduardo Salles O. BarraJoão Carlos M. MagalhãesJosé Borges Neto

EIXO TEMÁTICO 1:MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA; MECANICISMO; FILOSOFIA DA NATUREZA

A NATUREZA DO MECANICISMO CARTESIANO ................................................................................... 46César Augusto Battisti

AS ORIGENS DA ÓPTICA DE KEPLER ............................................................................................... 66Claudemir RoqueTossato

MATEMÁTICA E REALIDADE NO PENSAMENTO PÓS-MECANICISTA DO SÉC. XVIII................................. 74Eduardo Salles O. Barra

A HISTÓRIA DA ARTE COMO HISTÓRIA DA CIÊNCIA: HOMENAGEM A PIERRE FRANCASTEL NO SEUCENTENÁRIO ................................................................................................................................. 87

José Carlos CifuentesLeônia Gabardo NegrelliMarlene Perez

OS MANUSCRITOS REDESCOBERTOS EM 1973 E O PROGRAMA EXPERIMENTAL DE GALILEO GALILEI .. 101Júlio C. R. Vasconcelos

A MATEMÁTICA E OS DADOS VISUAIS NA CARTA DE GALILEU SOBRE O CANDOR LUNAR ...................... 120Marcelo Moschetti

CONTINUIDADE E MOVIMENTO EM BRADWARDINE ............................................................................ 129Márcio Augusto Damin Custódio

A INFLUÊNCIA DE DESCARTES NO PENSAMENTO MÉDICO HOLANDÊS: ALGUNS EXEMPLOS.................. 142Marisa C. de O. F. Donatelli

A TEORIA DA RELATIVIDADE DE EINSTEIN COMO EXEMPLO DE CRIAÇÃO CIENTÍFICA............................ 157Michel PATY

FISICALISMO REDUTIVO E SONDAS EPISTEMOLÓGICAS ..................................................................... 179Osvaldo Pessoa Jr

MATÉRIA E SUBSTÂNCIA SEGUNDO LEIBNIZ ..................................................................................... 191Patricia Coradim Sita

MERSENNE E O DEBATE EM TORNO DO COPERNICANISMO ................................................................ 197Paulo Tadeu da Silva

A CRÍTICA DE BERKELEY AO MÉTODO DAS FLUXÕES DE NEWTON ..................................................... 208Alex Calazans

A RELAÇÃO ENTRE INFERÊNCIA E CONEXÃO NECESSÁRIA NO TRATADO DA NATUREZA HUMANA DEDAVID HUME ................................................................................................................................. 222

Claudiney José de Sousa

DESCARTES E NEWTON: A QUESTÃO DE CONCILIAR A DESCONTINUIDADE DA MATÉRIA E ACONTINUIDADE DO ESPAÇO. ........................................................................................................... 233

Veronica Ferreira Bahr Calazans

Page 5: Anaiais Encontro Filosofia Parana

AS MANCHAS SOLARES DE GALILEU GALILEI ................................................................................... 242Felipe Ribas

EIXO TEMÁTICO 2:TELEOLOGIA NA BIOLOGIA

ALGUNS PRESSUPOSTOS SUBJACENTES ÀS TEORIAS SOBRE A NATUREZA E ORIGEM DA VIDA ............. 249João Carlos M. Magalhães

TELEOLOGIA E CIÊNCIAS DA VIDA NA ÉPOCA DAS LUZES: O FINALISMO NA TEORIA DA GERAÇÃO DEMAUPERTUIS................................................................................................................................. 262

Maurício de Carvalho Ramos

NOTAS SOBRE EVOLUÇÃO E TELEOLOGIA NO PENSAMENTO DE CHARLES S. PEIRCE.......................... 273Max Rogério Vicentini

SOBRE A IMPORTÂNCIA DO OBJETO EM DESCARTES, O NÚMERO E A ORDEM DAS PAIXÕES NA II PARTEDAS PAIXÕES DA ALMA .................................................................................................................. 283

Gustavo Piovezan

EIXO TEMÁTICO 3:CIÊNCIA: CRITÉRIOS E VALORES; PÓS-MODERNISMO NA CIÊNCIA

COMPLEJO DE VALORES, CAMBIO SOCIAL Y ESTRATEGIA COGNITIVA: LA PROPUESTA DE HUGH LACEYREVISADA...................................................................................................................................... 296

Fernando Tula Molina

SENTENÇAS PROTOCOLARES E A CONSTRUÇÃO DE UM SISTEMA CIENTÍFICO. .................................... 303Gelson Liston

RACIONALIDADE E INCOMENSURABILIDADE CIENTÍFICA: UMA REFLEXÃO SOBRE O RELATIVISMOCOGNITIVO .................................................................................................................................... 305

Robinson Guitarrari

A VISÃO KUHNIANA DE CIÊNCIA APLICADA A GEOGRAFIA FÍSICA, SUA HISTÓRIA E EPISTEMOLOGIA: DORENASCIMENTO À NOVA GEOGRAFIA ............................................................................................... 318

Emerson Vizzotto de BarrosRosana Figueiredo Salvi

EIXO TEMÁTICO 4:ESTUDOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA;

EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E MATEMÁTICA

O ENSINO DE TEORIAS FÍSICAS MEDIANTE UMA ESTRUTURA HISTÓRICO-FILOSÓFICA .......................... 337Irinéa de Lourdes Batista

ABORDAGEM HISTÓRICO-FILOSÓFICA E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: UMA PROPOSTA DE INTERAÇÃOENTRE DOMÍNIOS DE CONHECIMENTO.............................................................................................. 361

Irinéa de Lourdes BatistaSimone Luccas

O PRAGMATISMO E A FILOSOFIA DA CIÊNCIA .................................................................................... 396Renato Rodrigues Kinouchi

RUDOLF CARNAP: TEORIAS CIENTÍFICAS E PREDIÇÕES .................................................................... 411Ivan Ferreira da Cunha

O PROJETO CARTESIANO NAS REGRAS PARA A ORIENTAÇÃO DO ESPÍRITO ...................................... 419Joyce Mayumi Shimura

Page 6: Anaiais Encontro Filosofia Parana

SESSÃO DE ABERTURA: MESA-REDONDA “A CIÊNCIA

COMO OBJETO”

Page 7: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As questões

Pablo MaricondaDepartamento de Filosofia/USP

Ao tomar a ciência como objeto de investigação é possível tomá-la sob

uma perspectiva científica, como se fosse possível uma ciência da ciência? Ou

tomá-la como objeto seria olhá-la necessariamente de uma perspectiva

externa, alheia a sua própria natureza investigativa, num movimento de

pensamento que não é o seu? Não seria necessariamente tomá-la como objeto

de reflexão filosófica, mesmo quando esse olhar exterior fosse histórico ou

sociológico?

A ciência como conhecimento em movimento

Michel PatyCentre National de la Recherche Scienfique (CNRS); Equipe REHSEIS; Université Paris 7;

Departamento de Filosofia/USP

1. A minha questão é a seguinte: Quando se considera uma ciência

através de um processo histórico, mesmo localizado, sempre constatam-se

mudanças e até progresso: aponta este movimento para uma diferença entre

conhecimento (relacionado à idéia de movimento e de procura) e saber

(conjunto de conteúdos considerados estaticamente)? O que se chama ciência

é este saber, ou é também este conhecimento em movimento? Deve-se

considerar a racionalidade somente nas proposições estabelecidas ao final, ou

ela participa do próprio movimento que elabora a ciência? A ciência em

elaboração é um campo de problemas filosóficos? Em que sentido?

2. Devo comentar um pouco sobre esta questão, seus porquês e

como. Trata-se, com a formulação aqui proposta, de especificar um aspecto da

ciência considerada de maneira geral como objeto de investigação pelo

pensamento. Tal aspecto é que a ciência se transforma, muda, nas suas

formas e nos seus conteúdos de significação: ela varia e se modifica com o

tempo, com a história dos homens no tempo; ela é histórica, porém contínua,

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 8: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As questões 7

apesar das diferenças de formas e de conteúdos, assegurados e confirmados

(até um certo ponto), pelos confrontos com a efetividade ou a realidade do

mundo (com os fenômenos) e também pela sua expressão racionalizada, por

sua organização racional.

3. Ela continua sendo a ciência, em particular porque ela nos é

inteligível, por ser racional e capaz de ser assimilada e comunicada, e vamos

admitir aqui que se ela nos é inteligível, é fundamentalmente por ser racional. É

verdade que a idéia da ciência como algo racional não é aceita por todos: os

empiristas consideram outras propriedades do conhecimento, além da razão, e

notavelmente a “evidência empírica”, para justificar este conhecimento como

legítimo e admitido. Na verdade, as palavras formadas para explicitar a razão e

explicitar sua função, tais como “racional” (na forma de adjetivo ou de

substantivo, “o racional”) e “racionalidade”, são muitas vezes ausentes das

considerações dos filósofos do tempo presente. É verdade também que é difícil

definir exatamente todos estes termos, que são tomados geralmente de

maneira intuitiva, ao invés da lógica, pois só a lógica tem uma definição e

operatividade exata, que pode ser reduzida a signos e sequências ordenadas

de signos para expressar uma operação exata da mente sobre objetos

exatamente definidos. A razão é mais complexa do que a lógica, pois ela opera

de maneira não tão precisamente definida e sobre objetos que não são

definidos de maneira exata e unívoca como os objetos de um raciocínio lógico.

A razão é complexa, ela não se reduz à lógica, mas sabemos por experiência

(a nossa experiência própria e a experiência dos cientistas ao longo da história)

que sem ela não teríamos conhecimentos seguros e objetivos (capazes de

libertar-se da subjetividade, do seu peso e das suas limitações, como crenças

chamadas precisamente “irracionais”, imersas nos afetos e nos sentimentos, ou

mitológicas) e nem poderíamos comunicar os nossos conhecimentos a outros.

Pode-se atribuir várias formas de racionalidade aos vários domínios do

conhecimento (Bachelard fala, neste sentido, de racionalidades “regionais”,

segundo as disciplinas científicas) e aos vários gêneros, relacionados com os

diversos campos da razão, abstrata, pura à maneira da matemática, científica,

prática (orientada pela consideração de questões morais), técnica etc. Mas

nessa diversidade dos tipos e das formas de razão em relação com seus

Page 9: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Michel Paty 8

objetos de aplicação, existe uma unidade de função de todas elas, que nós

chamaremos de função de racionalidade, que permite considerar uma

coerência (possível) no ser pensante entre seus vários campos de pensamento

e de ação.

4. Admitindo estas considerações (que poderiam e deveriam ser

investigadas em mais detalhes ainda), retomemos os elementos de

questionamento sobre o objeto “ciência” considerado como evolutivo e

histórico. Em geral, a filosofia, quando considerava a ciência como seu objeto

de reflexão, a tomava no seu estado supostamente atual, na forma de suas

proposições estáticas. A atitude, exemplar a este respeito, de Kant, era de se

perguntar como a ciência é possível, como ela é um conhecimento inteligível e

seguro, e ele foi assim levado a formular o seu edifício da teoria crítica da

razão pura. Ele tomava de início a ciência tal como ela acabava de ser

transformada e edificada na modernidade, como já adquirida de maneira

essencialmente bem delineada nas suas grandes estruturas, e parecendo

bastante segura, com o papel notável da ciência newtoniana, da matemática e

da física matematizada. Esta ciência nova mostrava um grau bastante alto de

verdade, pois combinava o caráter inteligível com a adequação à natureza,

dando conta de uma grande quantidade de fenômenos naturais. A potência da

teoria física da época (a mecânica ou dinâmica) lhe vinha da forma matemática

da sua expressão, que todos os avanços do século xviii tinham confirmado e

ampliado, em particular nas áreas da mecânica dos corpos e da astronomia

matemática. A análise (infinitesimal, ou diferencial e integral), fundada por

Newton e Leibniz na última parte do século precedente, tinha sido desenvolvida

consideravelmente, em primeiro lugar, pelos discípulos de Leibniz (na escola

dos Bernoulli, e nas academias parisiense e berlinense), e, ao tempo de Kant,

mesmo pela obra notável e celebrada dos “Geômetras” (matemáticos e físicos-

matemáticos tais como Euler, Clairaut, d’Alembert, Lagrange…).

Os avanços deste ramo da matemática e sua utilização nos fenômenos

mecânicos e astronômicos e até no próprio pensamento a seu respeito, parecia

dar uma grande segurança a respeito das possibilidade da razão humana no

conhecimento do mundo. Claro que existiam muitos ramos do conhecimento

que não pertenciam ao domínio da mecânica e cuja aproximação não se fazia,

Page 10: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As questões 9

nem se podia fazer, da mesma forma, como este uso particular da matemática

no pensamento da mecânica. Mas a matemática dava uma grande lição até

para os outros conhecimentos, sendo ela, segundo Kant, um exemplo nítido da

“razão pura”. Era assim possível, baseando-se nos resultados mais seguros da

ciência do seu tempo, delinear uma teoria crítica da razão pura, que permita

entender como é que a ciência (na variedade dos seus ramos) é possível.

5. Encontramos aqui uma lição do programa kantiano de justificação

racionalista do conhecimento, que é este de tomar o conhecimento, na forma e

nos modos que ele tem, como um fato, e sendo este um fato, como os demais

fatos, é legítimo tentar entendê-lo (como ele é, e, sobretudo, como ele é

possível). Ao contrário do empirismo, a perspectiva kantiana é de entender o

conhecimento racionalmente, e por isto, de estabelecer racionalmente a sua

possibilidade. Tal é um aspecto importante, talvez o mais importante, da

questão “a ciência como objeto”. Temos que entender como é que a ciência é

possível, a ciência considerada como sendo um conhecimento seguro (pelo

menos bastante seguro) e inteligível, isto é, captado pela estruturação racional

do pensamento do sujeito humano transcendental. Esta estruturação racional

era concebida por Kant (das “formas puras da sensibilidade”, que enquadram e

condicionam a percepção, até as categorias do entendimento que permitem a

apreensão analítica e sintética, incluindo o “sintético a priori”, nó da elaboração

kantiana) como intangível, adquirida uma vez por todas1. Se não fosse o caso,

estimava ele, recairíamos nas perspectivas do empirismo, sem possibilidade de

entender porque se entende a ciência: ela seria simplesmente dada, e deixaria

de ser a ciência, se ela não fosse enquadrada pela razão (pura). Em princípio,

o conhecimento segundo Kant pode se modificar e crescer. Mas, basicamente,

ele teria que ficar dentro dos moldes da razão pura, os quais, por abrangentes

que estejam, estavam, como nós sabemos hoje, marcados pelos limites da

ciência mais segura do tempo, elaborada em tôrno da mecânica clássica.

6. Ora, a ciência muda, sem entretanto deixar por isso de ser

ciência. A ciência mudou desde o tempo do iluminismo e da filosofia kantiana,

sem deixar de ser ciência, e na continuação daquela precedente, mas sem

1 Kant [1781-1787].

Page 11: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Michel Paty 10

mais se deixar adequar aos requisitos da filosofia kantiana que devia, pelo

menos, sofrer alterações e ser adaptada. Tais tentativas foram feitas pelos neo-

kantianos: por exemplo por Ernst Cassirer, que propôs superar os limites da

concepção kantiana do espaço e do tempo, inadequada para dar conta da

teoria da relatividade, substituindo estas formas da intuição pura por uma

“função de espacialidade” permitindo a construção de conceitos de espaço e de

tempo mais físicos e adequados às exigências da física contemporânea2. Mas

este tipo de adaptação sofre de uma falta de generalidade, quando se

necessita repensar as grandes linhas da filosofia racionalista. Em particular, era

necessário reconsiderar o sintético a priori, que Kant colocava no centro do seu

edifício. Os empiristas e positivistas lógicos, propunham uma pura e simples

“dissolução do sintético a priori”, mas esta seria também a dissolução da

racionalidade. Pois, com a rejeição do sintético a priori, rejeita-se a sua função,

que é a da organização racional dos elementos de conhecimento.

7. Se nós compartilhamos da perspectiva racionalista, no sentido

kantiano da superação do empirismo, nós temos que manter a idéia de uma

função de racionalidade, que teria de ser concebida diferentemente do sintético

a priori kantiano no sentido estrito, isto é, no seu caráter intangível, inerente, na

sua forma proposta, ao pensamento humano3. Da nossa perspectiva

racionalista, pretendemos, como Kant, tomar a ciência como um dado, sem

com isso nos satisfazer com a sua simples aceitação à maneira dos empiristas,

mas tentando entendê-la com a razão. Só que nós sabemos agora que este

objeto da nossa investigação, o conhecimento científico, transforma-se

historicamente de tal maneira a colocar em jogo até as noções que nos

pareciam as mais bem estabelecidas e fundadas (espaço, tempo, uma certa

acepção da causalidade etc.). Tomando como objeto de investigação a ciência

tal como é dada, temos que levar em conta esta lição dos fatos do

conhecimento: a ciência muda, nossas formas de conhecimento mudam

também. A nossa concepção das condições de possibilidade também vão ter

que mudar, se mantemos o programa de uma inteligibilidade racional do objeto

2 Cassirer [1922]; veja Paty [1993], cap . 7.3 Veja, a este respeito: Paty [1992]

Page 12: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As questões 11

científico mesmo. Há indícios de que tal programa não só é legítimo, mas

também é conformado aos fatos (a ciência e sua história). É possível pensar

que a razão seja capaz de dar conta destas mudanças, pois ela fornece de fato

conhecimentos teóricos, que estão bem longe de todo empirismo, e que são

pelos menos tão adequados quanto na época de Kant (em verdade, eles são

mais adequados, e mais diversificados). São conhecimentos inteligíveis que

por sua firmeza parecem bem fundados na razão. Tais índices sugerem o rumo

a tomar para nossa investigação: temos que empreender novamente, como

Kant o fez no seu tempo, o estudo das estruturas da razão, mas numa

perspectiva transformada pelo fato de mudanças radicais do conhecimento e

da estruturação do conhecimento terem ocorrido e, portanto, serem possíveis.

O guia a seguir será considerar a racionalidade não como uma forma fixa e

fechada, mas como sendo definida essencialmente por sua função: como a

função do pensamento que integra os conhecimentos de tal modo que nos

tornam inteligíveis.

8. Há outros aspectos das mudanças no “objeto ciência”.

Mencionamos apenas alguns: a questão de fundamentos racionais do

conhecimento não sofre da impossibilidade lógica encontrada no século xx pela

questão dos fundamentos lógicos, mas se se fala de fundamentos, não pode

ser no mesmo sentido que previamente, e a noção de fundamentos ou de

fundação deve ser repensada. Em particular, se se pode pensar em atribuir

fundamentos racionais ao conhecimento científico, é claro que estes

fundamentos não podem ser concebidos como já presentes no início, como

uma base estática que conteria em potência o conhecimento, atual e futuro.

Seria no melhor dos casos uma base provisória, considerada como numa

parada no caminho, para avaliar onde estamos e o que temos obtido em

matéria de conhecimento assegurado. Aqui aparece uma distinção necessária

a ser feita entre conhecimento (relacionado com a idéia de movimento e de

procura) e saber (como conjunto de conteúdos considerados estaticamente). O

que se chama ciência não se limita a um saber considerado parado, mas é

também e sobretudo este conhecimento em movimento. Uma questão de

fundamentos de uma ciência em movimento só pode ser considerada

dinamicamente: o saber atual não é o fim da ciência, a ciência de hoje está

Page 13: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Michel Paty 12

direcionada para a ciência de amanhã, e toda questão de fundamento só pode

ser considerada “pela frente”4.

9. Um dos aspectos da dimensão dinâmica da ciência é este da

natureza dos elementos de novidade que aparecem, e que eram impensáveis

anteriormente. Esta novidade é criada, no lugar próprio do pensamento, antes

de ser comunicada e posta à disposição dos outros pensamentos. A dinâmica

da ciência dada como inteligível, nos remete ao mesmo tempo, e num mesmo

movimento, à objetividade de seus conceitos e teorias, e à um processo criativo

do sujeito transcendental movido pela exigência interna de entender melhor, de

chegar a uma maior inteligibilidade racional. Esta “criação científica”, ligada à

inteligibilidade e à assimilação e apropriação do conhecimento, manifesta-se

como a resposta do sujeito transcendental à exigência do conhecimento

objetivo ser inteligível por ele e pelos outros sujeitos (ali entra a

intersubjetividade). Ela constitui um problema filosófico em torno da

racionalidade, ligado com a faculdade de intuição (intelectual) como

representação mental sintética de um conjunto de elementos de conhecimento

integrados entre si5.

10. Enfim, propomos uma última consideração (por ora) sobre esta

criação mental que faz nascer formas novas e conteúdos novos de

conhecimento, como conseqüência “transcendental” da transformação do

conhecimento: tal mudança, ou criação, por ser entendida racionalmente,

supõe, como condição de possibilidade, uma mudança correspondente da

forma da racionalidade mesma. De tal maneira, com efeito, que na

permanência da função de racionalidade, esta racionalidade também evolui, se

fazendo mais abrangente, permitindo a extensão do conhecimento fora dos

seus limites anteriores, dando aos novos elementos de conhecimento a

possibilidade de ser concebidos e formulados. Esse duplo movimento resulta,

em última instância, da interação do pensamento com o mundo, segundo os

modos do conhecimento científico. Esta perspectiva esclarece também as

4 M. Paty [no prelo].5 Refiro-me aqui à conferência dada neste mesmo evento, na sessão de encerramento, sobreuma aproximação do tema da criação científica através do caso do trabalho de Einstein com ateoria da relatividade: M. Paty [2005].

Page 14: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As questões 13

modalidades do pensamento humano comum, e das suas adaptações aos

meios ambientes, na geografia e na história, levando à formas refinadas de

conhecimento e de uso da função do racional.

Referências

CASSIRER, E. [1921]. “Zur Einstein'schen Relativitätstheory”, BrunoCassirer, Berlin, 1921. Trad. angl., “Einstein's theory of relativityconsidered from the epistemological standpoint”, in Cassirer, E [1923].Substance and function and Einstein's theory of relativity. Trad. ingl.por William Curtis Swabey e Mary Collins Swabey, Open Court,Chicago, 1923 ; Dover, New York, 1953 [édition utilisée], p. 347-460.

KANT, I. [1781, 1787]. Critik der reinen Vernunft, J.F. Hartknoch, Riga,1781; 2a ed. modificada, 1787. Trad. fr. por A.J.L. Delamarre e F.Marty, Critique de la raison pure, in Kant, E., Oeuvres philosophiques,vol. 1, Gallimard, Paris, 1980, p. 705-1470.

PATY, M. [1992]. “L'endoréférence d'une science formalisée de la nature”,in Dilworth, Craig (ed.), Intelligibility in science, Rodopi, Amsterdam,1992, p. 73-110. Trad. en portugais par Belkiss Jasinevicius Rabello,“A endoreferência de uma ciência formalizada da natureza”, EstudosAvançados (IEA, São Paulo) 6, n°14 (janeiro-abril), 1992, 107-141;errata, 7, 1993, n°17 (janeiro-abril), 223-224.

___________ [1993]. Einstein philosophe. La physique comme pratiquephilosophique, Presses Universitaires de France, Paris, 1993

___________ [2005]. “A teoria da relatividade de Einstein como exemplode criação científica”, Atas do 3º Encontro da Rede Paranaense dePesquisa em História e Filosofia da Ciência, Curitiba (Paraná), marçode 2005.

___________ [no prelo]. “Des fondements vers l'avant. Sur la rationalitédes mathématiques et des sciences formalisées”, Contribution auColloque International “Aperçus philosophiques en logique et enmathématiques. Histoire et actualité des théories sémantiques etsyntaxiques alternatives”, Nancy, 30 sept.-4 oct. 2002; PhilosophiaScientiae.

Page 15: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas

A atividade científica como objeto da ciência: uma perspectivacontextualista behaviorista radical

Alexandre DittrichDepartamento de Psicologia/UFPR

Resumo: O behaviorismo radical, enquanto filosofia contextualista,considera a atividade científica como objeto de estudo legítimo para aanálise do comportamento. Para o behaviorista radical, o comportamento docientista deve ser compreendido como atividade-em-contexto. Através domodelo de seleção por conseqüências, o behaviorismo radical procuracompreender as características peculiares da atividade científica a partir dasconseqüências que as selecionam – especialmente, aquelas estabelecidaspela cultura na qual está inserido o cientista, incluindo a comunidadecientífica da qual faz parte. O behaviorismo radical afasta-se de doutrinasepistemológicas essencialistas ou relativistas. As leis científicas sãoanalisadas enquanto regras, sendo julgadas por sua utilidade como guiaspara a ação diante de certos objetivos, e não por sua correspondência coma realidade. Para o behaviorista radical, além disso, ciência e ética sãoindissociáveis. A atividade científica, enquanto instrumento de modificaçãodo mundo, gera conseqüências de ordem ética e política. A própria“neutralidade” do pesquisador é assegurada a partir de regras éticasadotadas pelas comunidades científicas.

Palavras-chave: ciência, contextualismo, behaviorismo radical,epistemologia.

Psicologia, Behaviorismo Radical e Contextualismo

Via de regra, caracteriza-se o objetivo da ciência como sendo o de

“construir conhecimento sobre o mundo”, ou sentença que o valha.

Obviamente, cada comunidade científica elegerá um “mundo” particular ao qual

direcionar seu interesse: física, química, biologia, psicologia, etc.

circunscrevem certas classes de fenômenos como seus objetos privilegiados,

demarcando fronteiras mais ou menos nítidas entre as diversas ciências de

acordo com tal circunscrição. Contudo, embora seja o primeiro passo para a

construção de teorias científicas, a demarcação de objetos de estudo pode

revelar-se uma tarefa bastante complexa e controversa. A psicologia – que

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 16: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 15

caracteriza-se, assim como as demais ciências denominadas “humanas”, por

uma notável pluralidade epistemológica – encontra, já neste momento, a raiz

de muitas de suas divergências internas. Pode-se definir, por exemplo, o objeto

privilegiado de estudo da psicologia como a mente, a consciência ou o

inconsciente – e a mera opção por uma dessas designações não esgota o

problema, pois cada uma delas presta-se, ainda, a definições subseqüentes.

O behaviorismo radical é uma filosofia que visa sustentar um método

específico de produção de conhecimento em psicologia, denominado análise

do comportamento (Skinner, 1974). A análise do comportamento explicita, já

em sua denominação, qual o seu objeto de estudo. Contudo, assim como

ocorre com as demais palavras que visam definir objetos de estudo em

psicologia, também a palavra “comportamento” está sujeita a diferentes

definições. A definição adotada pelo behaviorismo radical, como veremos

adiante, traz implicações importantes para a análise desenvolvida por essa

filosofia sobre a atividade científica.

A filosofia behaviorista radical encontra sua principal fonte na obra do

psicólogo norte-americano B.F. Skinner (1904-1990). Para esta filosofia, a

relação de conhecimento entre o cientista e seu objeto de investigação é, por si

mesma, um objeto de estudo legítimo no âmbito de uma ciência do

comportamento (Abib, 1993b; Skinner, 1945/1972, p. 380; 1963/1969, p. 228;

1974, p. 234-237; Zuriff, 1980). Conhecer o mundo é comportar-se de certas

formas em relação a ele – e, portanto, a atividade científica faz parte do campo

de interesses do analista do comportamento. É o desenvolvimento dessa

premissa que confere à epistemologia behaviorista radical certas

características originais em relação às epistemologias fundamentadas

exclusivamente na argumentação filosófica. O behaviorismo radical é uma

filosofia psicológica: uma filosofia informada por dados produzidos pela análise

do comportamento.

Uma filosofia psicológica pode ser acusada de circularidade. Ela apóia

sua reflexão filosófica em dados científicos, mas estes dados foram produzidos

através de um método, cuja escolha deve-se, por sua vez, a opções de ordem

Page 17: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alexandre Dittrich 16

filosófica.1 O behaviorismo radical reconhece tal circularidade, bem como a

possibilidade de escolha de outros métodos em psicologia, a partir de outros

pressupostos filosóficos. Escolhas filosóficas sempre precedem práticas

científicas – ao menos sob o aspecto lógico, ainda que nem sempre sob o

aspecto histórico.2 Contudo, mesmo que se reconheça a especificidade

epistemológica do behaviorismo radical e dos métodos dele derivados, isso não

desqualifica suas possíveis contribuições enquanto filosofia psicológica. Como

afirma Zuriff (1980), “Uma ciência do comportamento inevitavelmente volta-se

para dentro de si mesma” (p. 337) – isto é, inevitavelmente analisa, em algum

momento, o próprio comportamento dos cientistas. O procedimento é comum

também em filosofia, como dão prova as análises filosóficas “meta”.

Poderíamos afirmar, diante do exposto, que o behaviorismo radical é, no

sentido epistemológico, um naturalismo? Uma resposta adequada exigiria o

aprofundamento em diversas questões que não concernem ao presente

trabalho. Pode-se, porém, afirmar o seguinte: para o behaviorista radical,

problemas filosóficos podem ser cientificamente investigados de forma

proveitosa.3 O contínuo intercâmbio entre filosofia e ciência é uma

característica marcante da comunidade dos analistas do comportamento.

Demarcar fronteiras rígidas entre filosofia e ciência não constitui, para o

behaviorista radical, uma estratégia produtiva.

A circularidade, porém, permanece: a análise do comportamento é um

saber sobre o saber, uma ciência da ciência. Contudo, de acordo com Skinner,

se as escolhas do behaviorismo radical são arbitrárias e circulares, não o são

mais do que qualquer outra escolha filosófica ou metodológica:

(...) falar sobre o falar não é mais circular do que pensar sobre o pensar ou sabersobre o saber. Estejamos ou não nos elevando através de nossos próprios recursos,o simples fato é que nós podemos fazer progresso em uma análise científica docomportamento verbal (1945/1972, p. 380).

1 Usaremos o termo “escolha” por conveniência, mas entendemos que uma “escolha” filosóficanão implica, necessariamente, qualquer deliberação ou opção consciente por parte de quem arealiza.2 Tais escolhas, contudo, também integram o campo comportamental – e, portanto, arealização de escolhas filosóficas também figura entre os objetos de interesse para a análisedo comportamento.3 Contudo, nem todos os problemas filosóficos admitem soluções científicas. O aspectoprescritivo da ética é um exemplo digno de nota.

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As respostas 17

Comportar-se em relação ao comportamento levanta a mesma dificuldade de sabersobre o saber (1957, p. 453).

Se as acusações de arbitrariedade ou circularidade fossem suficientes

para desacreditar projetos epistemológicos, qualquer tentativa de produção de

conhecimento estaria, por definição, sujeita a tal descrença. Pode-se, não

obstante, adotar tal postura, desde que se reconheça o niilismo inerente a ela

(bem como as conseqüências deste niilismo para a própria credibilidade desta

postura: o niilista é a primeira vítima de suas críticas).

O behaviorismo radical é uma filosofia contextualista (conforme a

descrição do contextualismo por Pepper, 1942/1970). O contextualismo “(...)

nasceu do pragmatismo de Peirce, James, Dewey e Mead. De fato, pode-se

afirmar que o contextualismo é a instanciação moderna do pragmatismo

filosófico” (Morris, 1988, p. 298), ou ainda “(...) uma visão pós-moderna do

pragmatismo tradicional” (Carrara, 2001, p. 236). A visão contextualista do

comportamento opõe-se ao mecanicismo, ao realismo e ao reducionismo. Para

o contextualista, comportamento é sempre comportamento-em-contexto. Isso

significa que, de uma perspectiva contextualista, a própria definição de

“comportamento” subentende uma complexa rede de relações entre a ação de

um organismo e as variáveis ambientais das quais este é função. Não há

comportamento à parte do ambiente, e o ambiente só é significativo enquanto

ambiente comportamental.

Opondo-se a uma concepção mecanicista de causalidade, o

behaviorismo radical aponta três conjuntos de variáveis que determinam

seletivamente as probabilidades de ocorrência de classes de respostas

(denominadas operantes): variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais

(Skinner, 1981/1984). Se nos for permitido utilizar um termo em voga, pode-se

afirmar que esta é a versão behaviorista radical de um modelo “biopsicossocial”

de compreensão do comportamento humano.

A Interpretação Behaviorista Radical da Atividade Científica

A atividade científica é atividade-em-contexto. Denominamos um ser

humano “cientista” porque ele se comporta de determinadas formas sob certas

circunstâncias, produzindo certas conseqüências. Um cientista é,

Page 19: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alexandre Dittrich 18

simultaneamente, um organismo pertencente a uma espécie, uma pessoa com

uma história de vida singular e um membro de certa cultura. Se ignorarmos

qualquer um desses três conjuntos de fatores, estaremos impossibilitados de

explicar porque um indivíduo qualquer torna-se um cientista.

O comportamento do cientista é comportamento-em-contexto. Isso

implica a interação do cientista com variáveis ambientais. Dessas variáveis,

fazem parte não apenas os fenômenos estudados pelo cientista, mas também

a cultura da qual o cientista faz parte, muito especialmente a comunidade

verbal científica junto à qual o cientista desenvolve suas atividades. A atividade

científica é marcadamente verbal. O cientista discute e formaliza conceitos,

sustenta certos pressupostos, utiliza regras para guiar seu trabalho de

pesquisa e enuncia leis e teorias científicas. Uma comunidade científica só

investiga os fenômenos que conceptualiza. Estes passam a fazer parte dos

“jogos de linguagem” desta comunidade científica.

A ciência se define por suas conseqüências (ou “objetivos”), e deve ser

explicada – como, de resto, qualquer comportamento humano – através dessas

conseqüências. A própria permanência e crescimento da ciência enquanto

prática cultural se explica pelas conseqüências produzidas pela atividade

científica – as leis científicas e as técnicas derivadas dessas leis. Culturas

sustentam comunidades científicas, tanto materialmente quanto moralmente,

porque comunidades científicas produzem leis e técnicas úteis para a

resolução dos problemas que confrontam as culturas. Uma teoria

conseqüencialista do comportamento e da ciência, contudo, não compactua

com visões tecnicistas da ciência. Conseqüências úteis não se limitam, no

behaviorismo radical, a conseqüências tecnológicas – e a tecnologia, como

qualquer ação humana, não pode ser desvinculada da ética. As conseqüências

do comportamento são, sempre, éticas e políticas – conseqüências que afetam

não apenas o indivíduo que se comporta, mas também às demais pessoas com

quem este convive e à sua cultura. Voltaremos ao assunto em breve.

O gosto de um cientista pela ciência “pura”, pela “verdade pela verdade”,

a despeito de qualquer possibilidade de aplicação tecnológica posterior,

também é explicável a partir da perspectiva conseqüencialista do behaviorismo

radical. Culturas podem apoiar a prática de métodos científicos porque eles

Page 20: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 19

produzem “verdades” – isto é, porque tais métodos permitiram, em muitas

ocasiões passadas, a formulação de leis científicas que serviram como regras

úteis na interação dos membros da cultura com seus ambientes. O cientista,

por sua vez, pode ser ensinado por uma comunidade científica a valorizar a

simples aplicação de um método científico, por sua capacidade de produzir

“verdades”, ou de revelar “o mundo como ele é”. As conseqüências da

aplicação do método podem, a partir disso, ser suficientes para explicar porque

o cientista o aplica.

Tecnicamente, os analistas do comportamento diriam que os operantes

que integram as práticas denominadas “método científico” foram reforçados no

repertório comportamental do cientista. Denomina-se “reforço” qualquer

conseqüência de uma resposta operante que aumente a probabilidade

subseqüente de emissão das respostas pertencentes a um operante, diante de

situações similares. Esta “similaridade”, por sua vez, é definida pela presença

dos chamados “estímulos discriminativos” – isto é, características do ambiente

em cuja presença uma resposta pertencente a certo operante é reforçada ou

punida. Um “operante” é uma classe de respostas operantes que produzem

determinadas conseqüências sob certas circunstâncias. “Respostas operantes”

são instâncias do comportamento de um organismo que modificam seu

ambiente, produzindo certas conseqüências. Tais conseqüências apresentam

efeito seletivo sobre o repertório de operantes de um organismo – isto é,

podem aumentar (conseqüências reforçadoras) ou diminuir (conseqüências

punitivas) a probabilidade de ocorrência posterior dos operantes que as

produziram. Denomina-se “contingência de reforço” (ou punição) a relação

entre estímulos discriminativos, respostas operantes e conseqüências

seletivas. Quando um analista do comportamento fala em comportamento

operante, refere-se à relação entre comportamento e ambiente definida pelo

conceito de contingências de reforço.

Ciência, Utilidade e Verdade

O comportamento operante é útil quanto é reforçado, positivamente ou

negativamente. Um reforçador positivo é um objeto ou evento que aumenta a

probabilidade de ocorrência de um operante cujas respostas ocasionem sua

Page 21: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alexandre Dittrich 20

apresentação ou aumento. Um reforçador negativo é um objeto ou evento que

aumenta a probabilidade de ocorrência de um operante cujas respostas

ocasionem sua remoção ou diminuição. Contudo, objetos ou eventos não

possuem valor reforçador universal. Através do processo denominado

“condicionamento operante”, objetos e eventos adquirem valor reforçador

diferenciado para diferentes organismos. Em linguagem vulgar, diríamos que

isso explica porque cada ser humano gosta (aprecia, valoriza, estima, etc.) de

objetos ou eventos diferentes – ou ainda, porque diferentes seres humanos

possuem diferente objetivos, ou diferentes valores.

Sob uma perspectiva contextualista, a consideração desta diversidade

de objetivos é fundamental para a discussão do significado da palavra

“utilidade”. O que é algo útil? É algo que permite a um ser humano alcançar

certos objetivos. Contudo, os objetivos dos seres humanos são os mais

diversos. Assim, é impossível definir o que é “essencialmente” útil ou inútil, de

forma abstrata. Só podemos definir se algo é útil ou não em relação a

determinado objetivo ou conjunto de objetivos.

A verdade – científica ou não – é algo útil: algo que permite aos seres

humanos alcançar certos objetivos. Comunidades científicas possuem certos

objetivos; outras comunidades possuem outros objetivos: “É uma distinção

entre os tipos de vantagens obtidas pela comunidade que permite-nos

distinguir entre subdivisões literárias, lógicas e científicas” (Skinner, 1957, p.

429). O comportamento literário, por exemplo, gera conseqüências

reforçadoras para o indivíduo e para os demais membros de sua cultura – e,

por isso, é reforçado pela cultura. Mas essas conseqüências não são,

necessariamente, “práticas” no sentido usual. Não obstante, as regras que

governam o comportamento literário podem ser mais ou menos reforçadoras –

isto é, mais ou menos úteis ou “verdadeiras”. O grau dessa utilidade depende

não só da execução do comportamento adequado diante das contingências

estabelecidas pela comunidade literária, mas também das práticas adotadas

por esta comunidade e pela cultura na qual esta se insere no sentido de

reforçar o comportamento literário de seus membros.

O contextualismo, contudo não se identifica com o relativismo. Ainda

além, o behaviorismo radical evita os jogos de linguagem típicos da oposição

Page 22: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 21

objetivismo-relativismo, introduzindo uma descontinuidade no discurso que

configura tal oposição (Abib, 2001). O “vale-tudo” do relativismo é estranho ao

contextualista. As práticas científicas são mais úteis, ou mais verdadeiras,

conquanto vise-se alcançar certos objetivos estabelecidos pelas ciências.

Práticas literárias são menos úteis ou verdadeiras diante de tais objetivos –

mas são mais úteis ou verdadeiras diante dos objetivos de comunidades

literárias. Uma perspectiva contextualista desautoriza concepções

essencialistas de utilidade e verdade.

Tampouco interessa ao contextualismo adotar os jogos de linguagem

típicos da oposição realismo-idealismo. O behaviorista radical não vê interesse

em discutir qual dentre as possíveis descrições do mundo – mesmo as

científicas – é mais ou menos “verdadeira”, no sentido realista da palavra: qual

delas, se alguma, “reflete” o mundo de forma mais acurada. A antiga definição

de “verdade” como adequação entre a mente (ou o discurso) e a realidade é

antitética ao contextualismo. Suponhamos que duas pessoas queiram, de

acordo com essa definição, decidir qual dentre duas afirmações sobre o mundo

(quaisquer que sejam) é a mais verdadeira – qual descreve a realidade de

forma mais verossímil. Seria possível a algum dos contendores exceder sua

própria subjetividade e lançar um rápido olhar sobre o mundo “como ele

realmente é”, retornando em seguida para contar as novas? Para o

contextualista, visões de mundo – científicas ou não – são necessariamente

subjetivas: subjetividade é comportamento de um sujeito-em-contexto, e é

interagindo com o mundo de formas particulares que um sujeito o conhece.

Poder-se-ia denominar tal postura como “idealista” – mas, lembremo-

nos, a discussão realismo-idealismo é estranha ao contextualista. Um idealista

(ao menos em sua versão “pura” ou “radical”) assume que o mundo com o qual

temos contato é uma criação subjetiva: um sujeito só tem contato com o que

lhe informam seus sentidos ou seu intelecto, e isso impede qualquer afirmação

sobre a existência de um mundo externo ao sujeito. Nenhuma dessas posturas

coaduna-se com o behaviorismo radical. A definição de subjetividade como

comportamento de um sujeito-em-contexto vai além de considerações sobre o

Page 23: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alexandre Dittrich 22

“mundo interno” deste sujeito.4 Subjetividade implica interação com o ambiente.

Mas e este ambiente, é “real” ou não? Está correto o idealista, quando afirma

ser o mundo apenas um “mundo interno”, ou o realista, quando afirma a

existência de um mundo externo independente do sujeito que o conhece? Esta

é, para os objetivos do analista do comportamento, uma discussão pouco

interessante (embora possa ser intelectualmente estimulante). Seja o mundo

uma criação subjetiva ou uma realidade independente do sujeito, o fato é que

precisamos lidar com ele – precisamos manipulá-lo, visando certos objetivos.

Este fato não se modificará, seja qual for a possível solução do problema

filosófico em pauta. Questões ontológicas, via de regra, transformam-se, para o

behaviorista radical, em questões epistemológicas, e são julgadas de acordo

com sua possível contribuição para a epistemologia behaviorista radical.

Para o behaviorista radical, leis científicas são regras de conduta, e não

descrições da realidade. Leis científicas servem pra orientar o comportamento

de pessoas em situações específicas, visando certos objetivos: “Leis científicas

(...) não são, é claro, obedecidas pela natureza, mas por homens que lidam

efetivamente com a natureza” (Skinner, 1966/1969, p. 141). A função das

verdades científicas não é “des-velar” ou “des-cobrir” uma realidade que, por

algum motivo, insiste em se esquivar dos olhares humanos (Abib, 2001). Leis

científicas são instrumentos que permitem aos homens agir de forma útil:

modificar o mundo visando certos objetivos sob certas circunstâncias.

A objetividade dos enunciados científicos não se deve a uma suposta

“neutralidade” inerente à descrição científica do mundo. As comunidades

verbais científicas utilizam-se de técnicas especiais para reduzir ao mínimo a

“subjetividade” de tais descrições (Skinner, 1974, p. 144), mas isso não

significa que o comportamento dos cientistas na produção de conhecimento

seja, de alguma forma, imune ao controle por contingências – uma afirmação

que, de resto, soaria absurda. (De fato, o comportamento científico é mais

estritamente controlado do que o comportamento comum.) Uma lei científica é

uma descrição de contingências de reforço – isto é, uma regra – e, enquanto

4 Deve-se notar, contudo, que o behaviorismo radical não só não desconsidera a existência deeventos comportamentais privados, como fornece novas perspectivas para a compreensão desua gênese. .

Page 24: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 23

tal, é “objetiva” se possibilita a outras pessoas comportarem-se efetivamente

diante daquelas contingências. Quando diversos cientistas enunciam as

mesmas leis diante das mesmas contingências, diz-se que houve uma redução

ao mínimo de suas contribuições pessoais5 (Skinner, 1974, p. 145). Porém,

para que isso ocorra, é necessário que: 1) as contingências descritas possuam

certas características relativamente estáveis e 2) os diferentes cientistas

exibam respostas verbais relativamente estáveis diante de tais contingências.

Assim, diferentes descrições de situações supostamente semelhantes devem-

se a diferentes práticas de controle nas diversas comunidades verbais. Um

poeta pode descrever certa situação de modos muito diferentes daqueles

empregados por um cientista. Sua descrição não será mais ou menos

verdadeira, visto que os objetivos – ou conseqüências – de sua descrição são

diferentes daqueles estabelecidos pela comunidade verbal científica (Skinner,

1974, p. 127).

Assim, não existe uma observação “pura”, isenta de preconceitos, sobre

um objeto. Não apenas a própria observação é, desde o início, um

procedimento interpretativo, como os enunciados verbais sob controle de

estímulos discriminativos estão impregnados de conceitos e teorias que

adaptam-se àquela forma particular de interpretação (Abib, 1997, p. 118).

Objetos são observados e descritos de diversas formas por espectadores

diferentes, de acordo com suas experiências passadas e atuais – vale dizer, de

acordo com as contingências de reforço passadas e atuais que controlam seu

comportamento na situação observada e descrita: “As descrições eliminam,

selecionam, não descrevem o que aconteceu tal e qual se passou. As

descrições são interpretações” (Abib, 1997, p. 148). Isso Skinner também

reconhece, apontando para as contingências de reforço como fontes da

diversidade de interpretações (1953/1965, p. 138-140; 1974, p. 127).

5 Se tomada em sentido literal, essa expressão é, obviamente, incorreta, pois “(...) oconhecimento depende de uma história pessoal” (Skinner, 1956/1972, p. 271). O significado daexpressão é esclarecido na seqüência do texto.

Page 25: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alexandre Dittrich 24

Ciência, Ética e Política

O behaviorismo radical é uma filosofia conseqüencialista do

comportamento. O comportamento humano, de acordo com esta filosofia, só

pode ser integralmente compreendido através da conjugação de variáveis

seletivas de ordem filogenética, ontogenética e cultural. Assim, analisar as

conseqüências da atividade científica é fundamental a partir de uma

perspectiva contextualista da ciência. As conseqüências da atividade científica

– como as de toda atividade humana – não são apenas conseqüências

reforçadoras ou punitivas. A ciência é uma prática cultural – e, como as demais

práticas culturais, a ciência produz conseqüências de longo prazo, que afetam

as possibilidades de sobrevivência das culturas e, em última análise, da própria

espécie humana.

A ciência é uma atividade com conseqüências éticas: conseqüências

reforçadoras e punitivas, mas também conseqüências com certo valor de

sobrevivência para as culturas. Enquanto prática cultural, a ciência visa certos

objetivos valorizados pelas culturas – em especial, visa permitir ou facilitar a

previsão e a intervenção sobre certos fenômenos. No horizonte das técnicas

científicas, encontraremos sempre conseqüências de ordem ética – o que

impede-nos de isolar técnicas “puras”, sem matizes políticos. Técnicas com

objetivos éticos são políticas – e não existem técnicas sem objetivos éticos (ou,

pelo menos, sem conseqüências éticas, mesmo que não planejadas). Técnica

e política são indissociáveis – visto que uma técnica posta em uso sempre

produz conseqüências de ordem ética, planejadas ou não.

O que dizer, porém, do cientista enquanto pesquisador? Não estará ele

produzindo um saber objetivo, a partir de uma visão eticamente neutra sobre

seu objeto de estudo? As possíveis relações entre ideologia e ciência são

assunto controverso – porém, via de regra, o cientista aprende que não deve

permitir que seus próprios pressupostos éticos ou políticos interfiram sobre a

produção e apresentação de dados científicos. De forma aparentemente

paradoxal, a comunidade científica – pelo menos no campo das ciências

naturais – possui uma ética interna que pune desvios como a personalização

ou politização dos dados científicos. O cientista aprende, em suma, a descrever

o mundo “como ele realmente é”, e não como ele supõe que seja, ou gostaria

Page 26: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 25

que fosse. A rigorosa obediência a esta regra traz valiosos dividendos: ela

contribui para a efetividade das leis científicas. Retomando as famosas

palavras de Bacon, “(...) a natureza não se vence, se não quando se lhe

obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática”

(1620/1999, p. 33). “Obedecer à natureza”, contudo, é um aprendizado, sujeito

a uma ética particular – e, ao menos nesse sentido, o pesquisador está tão

sujeito a influências éticas quanto qualquer ser humano.

Conclusão

Sob uma perspectiva contextualista e behaviorista radical, a

compreensão da atividade científica exige a análise do comportamento do

cientista enquanto membro de comunidades verbais inseridas em culturas. A

atividade científica gera conseqüências que explicam sua manutenção

enquanto prática cultural, e o comportamento do cientista, como o de qualquer

ser humano, também é explicado, pelo behaviorista radical, a partir das

conseqüências que produz. Produzir conhecimento é sempre atividade-em-

contexto – e, considerando a variabilidade de contextos epistemológicos

possíveis, as práticas de controle da produção de conhecimento também

variam entre as diferentes comunidades verbais. As regras estabelecidas pelas

comunidades científicas buscam possibilitar a produção de leis que permitam

manipular certos fenômenos visando certos objetivos. Estes objetivos, porém,

não se esgotam no aspecto tecnológico. Sob a perspectiva contextualista do

behaviorismo radical, ciência e ética não podem ser dissociadas, pois as

conseqüências geradas pelas técnicas científicas são também conseqüências

de ordem ética e política – conseqüências que transformam o mundo visando

certos objetivos.

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Page 29: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Eduardo Salles O. Barra 28

A ciência como conceito

Eduardo Salles O. BarraDepartamento de Filosofia/UFPR

Resumo: Análise das tentativas de estabelecer um critério de demarcaçãoentre ciência e filosofia, com base num conceito de ciência. O naturalismoepistemológico é sugerido como alternativa tanto às demarcaçõesconceituais rígidas quanto à tese quineana de que "ciência e ontologia estãoem pé de igualdade".

Palavras-Chave: filosofia e ciência; critério de demarcação; epistemologianaturalizada.

A ciência se converteu num objeto privilegiado de análise para a filosofia

desde épocas muito remotas. Pode-se inclusive suspeitar que tudo não passa

de uma questão de identidade: a filosofia parece ser incapaz de articular um

discurso coerente sobre sua própria natureza sem recorrer a juízos

comparativos (metafóricas ou não) entre si e a ciência. No século passado,

concomitantemente ao surgimento das questões canônicas da filosofia da

ciência, as discussões sobre as diferenças entre ciência e filosofia assumiram

uma posição a tal ponto central nesse campo de estudo que passaram a ser

reunidos sob o nome comum de "problema da demarcação". Popper, um dos

personagens mais ativos nesses debates nos anos 50 e 60, referiu-se certa vez

a esse problema como uma das duas fontes "de quase todos os demais

problemas da teoria do conhecimento" (1980, p. 9) – a segunda fonte seria o

problema da indução. No entanto, ocorreu que, à época de Popper e, em

grande parte, como efeito parcial das suas próprias especulações sobre a

natureza da prática científica, não apenas a filosofia estivera assolada por

questões de identidade, mas também a própria ciência, ao menos para aqueles

que desde o séc. XIX acreditaram ter encontrado no uso exclusivo de um

método – o chamado método científico – um argumento irresistível em favor do

presumido caráter sui generis das práticas científicas.

Isso, sem dúvida, representou uma grande reviravolta nas discussões

comparativas entre ciência e filosofia. Tomemos o séc. XVIII na filosofia. Ao

longo desse século, Hume e Kant fazem tentativas emblemáticas de colocar a

Page 30: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 29

filosofia em sintonia com a ciência da época – herdeira imediata da revolução

empreendida por Galileu, Kepler e Newton, entre outros, no século anterior. O

diagnóstico de ambos era o mesmo: a ciência está muito bem estabelecida –

exceto talvez pela ingerência espúria de uma metafísica que, nas palavras de

Kant, "falsamente procurasse compreender a si mesma" – e, em virtude disso,

realizou progressos tão extraordinárias naqueles anos recentes; ao passo que

a filosofia, pelo contrário, ainda não trilhou o caminho de uma ciência e, por

conseguinte, não parece ter avançado uma linha sequer do legado dos antigos.

Ora, essa cena muda radicalmente na segunda metade do séc. XX. Não que

se julgasse a filosofia em melhor estado do que estivera no tempo de Hume e

Kant. Talvez muito pouco se alterou na auto-imagem que filósofos nutriam da

sua atividade profissional. O surpreendente era que a ciência passou a ser

objeto do mesmo tipo de desconfiança que há séculos assolava a filosofia.

Como sugeri acima, essa nova situação pode ter sido precipitada pelo declínio

da crença nas credenciais epistêmicas de um presumido "método científico".

Invoco novamente Sir Karl Popper para fornecer um retrato dessa

época: "... a primeira tarefa da lógica do conhecimento é propor um conceito de

ciência empírica de modo a chegar a um uso lingüístico, que atualmente é um

tanto incerto, tão definido quanto possível, e de modo a traçar uma linha clara

de demarcação entre a ciência e as idéias metafísicas..." (1980, p. 13) Talvez

como a maioria dos seus predecessores, Popper compreendeu o problema de

articular um "conceito de ciência empírica" como um problema de metodologia;

tanto que acreditou que uma mesma solução serviria ao problema (conceitual)

da demarcação e ao problema (metodológico) da indução, a saber, o

falseacionismo. Todavia, por mais desinteressante que possa ser a solução

proposta por Popper para o problema por ele batizado de "problema da

demarcação", o seu modo de colocar a questão nos interessa sobremaneira.

Popper demanda por um conceito de ciência, reconhecendo que esse termo

tem atualmente um uso muito incerto ou, o que parece ser o mesmo, ambíguo.

A conseqüência disso é que, na falta de um emprego uniforme do termo

"ciência", não se pode nem ao menos cogitar "uma linha clara de demarcação

entre a ciência e as idéias metafísicas..." A solução do problema da

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Eduardo Salles O. Barra 30

demarcação pressupõe, portanto, um conceito ou uma definição adequada de

ciência.

Os predecessores mais imediatos de Popper na filosofia da ciência

foram pródigos em propor soluções para esse último problema. Os positivistas

lógico fiaram-se em métodos semânticos – teorias do significado – para

determinar as formas genuínas da enunciação, admitindo de antemão que elas

se encontravam exclusivamente no domínio das proposições científicas. A

metafísica – nome genérico dado a toda filosofia refratária a reduzir-se a um

mero instrumento da análise lógica da linguagem –, por outro lado, deveria

concentrar as formas abusivas de emprego da linguagem, isto é, as pseudo-

proposições. Tudo parecia muito bem projetado e coerente com a convicção de

que deve haver "uma linha clara de demarcação entre a ciência e as idéias

metafísicas..." Todavia, por décadas, as diversas tentativas feitas pelos

positivistas lógico no sentido de identificá-la enredaram-se à mesma

dificuldade: a impossibilidade de articular um critério de significação

(genericamente, chamado de verificabilidade) capaz de excluir todas as idéias

metafísicas do domínio da ciência e apenas elas. Por vezes, um determinado

critério que se mostrava capaz de excluir explicações neo-vitalistas, por

exemplo, do domínio da biologia, tinha como conseqüência indesejável nos

obrigar a excluir também explicações evolucionistas amplamente aceitas pelos

biólogos. Essas e muitas outras dificuldades solaparam não apenas os

esforços dos positivistas do último século, mas também os do próprio Popper,

predispondo ao fracasso qualquer tentativa de articular critérios de demarcação

com base num presumido conceito de ciência.

É duvidoso que esse tipo de dificuldade seja suficiente para despachar

qualquer nova tentativa de articular um conceito de ciência como ociosa e

fadada ao fracasso. O fato é, no entanto, que, após o adeus ao método

científico, a filosofia da ciência contemporânea parece também disposta a dar

adeus ao conceito de ciência. Na possibilidade de que isso venha efetivamente

a ocorrer, toda pretensão de que a ciência possui uma natureza sui generis,

distinta da metafísica ou da filosofia de uma maneira geral, não significará mais

do que uma alegação sem qualquer sustentação conceitual, isto é, sem que em

seu favor possam ser alegadas razões derivadas das credenciais epistêmicas

Page 32: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 31

exclusivas da ciência. Nas palavras de um dos mais destacados defensores

atuais dessa posição, Larry Laudan, "a evidente heterogeneidade das

atividades e crenças habitualmente encaradas como científicas alerta-nos para

a provável futilidade de buscar uma versão epistêmica para o critério de

demarcação." (1996, p. 221)

Antes de prosseguir, convém demorarmos um pouco mais na análise

das idéias de Laudan sobre o problema da demarcação – ou, no entender

desse autor, sobre a sua necessária extinção. Conforme vimos na citação

anterior, um dos pontos de partida de Laudan é "a evidente heterogeneidade

epistêmica das ciências", que ele descreve como o fato de que se aceitam

tanto teorias bem-testadas quanto teorias que não o são, que há ramos da

ciência com altas taxas de progresso enquanto outros nem tanto, que algumas

teorias fazem muitas predições surpreendentes enquanto outras não fazem

nenhuma etc. Isso significa que nenhum desses supostos critérios –

testabilidade, progressividade ou fazer predições surpreendentes, entre outros

– valem como características distintivas da ciência com respeito às demais

atividades culturais. Na visão de Laudan, o que contam são as credenciais

empíricas e conceituais das crenças acerca do mundo, "o status 'científico'

dessas crenças é totalmente irrelevante." (1996, p. 222)

Essa última afirmação é suficiente para mostrar que Laudan compartilha

de convicções similares às que caracterizam um ponto de vista ainda mais

extremo sobre a necessidade de abandonar nossas as preocupações com o

problema da demarcação. Refiro-me a um autor em particular: Williard Quine.

Quine foi quem, num artigo clássico de 1950, intitulado "Os Dois Dogmas do

Empirismo", anunciou "o esfumar-se da suposta fronteira entre a metafísica

especulativa e a ciência natural" (1980:231), antecipando em algumas décadas

o quadro que viria a se consolidar com o fracasso das mais sofisticadas

tentativas de esclarecer conceitualmente o estatuto científico das crenças

intuitivamente tidas como tais. A dissolução da venerada fronteira entre a

metafísica especulativa e a ciência natural outra coisa não é que um mero

corolário da proposta quineana de supressão de outra fronteira mais ampla e

inclusiva, qual seja, a fronteira entre o empírico e o a priori – ou, do modo como

Quine mais constantemente se refere a ela, a distinção entre analítico e

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Eduardo Salles O. Barra 32

sintético. As diferenças entre crenças tidas como a priori e empíricas, ou

analíticas e sintéticas, ou metafísicas e científicas deixam de ser encaradas

como diferenças de natureza ou espécie e passam a ser consideradas

diferenças de graus, pois nenhum enunciado tomado isoladamente pode ser

confirmado ou infirmado seja pela experiência seja pelo suposto significado dos

termos que nele ocorrem. A verdade de qualquer enunciado depende de um

duplo componente lingüístico e extralingüístico, sem cada qual possa ser

avaliado independentemente do outro.

A respeito da demarcação, as conclusões Quine podem ser ainda mais

desconcertantes para todas as tentativas futuras de promovê-la: "as questões

ontológicas estão no mesmo pé que as questões da ciência natural". Isso

significa que a ciência não pode demarcar sua província apoiada na confiança

de que as suas crenças – e somente elas – são sustentadas pela experiência.

Mas, do mesmo modo, isso significa que a filosofia ou a "metafísica

especulativa" não pode sustentar suas pretensões exclusivamente numa

suposta estrutura ou esquema conceitual conveniente. Quine anuncia o fim da

externalidade recíproca entre filosofia e ciência e, em seu lugar, sugere o

advento de uma epistemologia naturalizada.

A pergunta do prof. Pablo parte de um pressuposto nitidamente anti-

quineano. Ela sugere que, ao tomar a ciência como objeto de investigação –

como fazem filósofos, historiadores e sociólogos da ciência –, seja possível e

necessário assumir "uma perspectiva externa, alheia a sua própria natureza

investigativa". Está claro que, se nos orientamos por um ponto de vista

quineano, filosofia e ciência compartilham a mesma "natureza investigativa",

ainda que na primeira o componente empírico possa estar em posição inferior

ao componente lingüístico, mas sem jamais poder ser tomado como

completamente nulo – ou as pretensões filosóficas serem tomadas como

verdadeiras aconteça-o-que-acontecer-no-mundo. Desse ponto de vista, a

reivindicação de "uma perspectiva externa" em relação à ciência seria uma

mera reminiscência de uma época em que o emprego dos adjetivos "empírico"

e "a priori" denotava uma pretensa distinção exaustiva e exclusiva na totalidade

dos nossos pensamentos. Mas, ao menos para Quine, essa distinção é apenas

Page 34: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 33

um dos dogmas da tradição empirista que devem ser abandonados em favor

de uma naturalização dos nossos padrões de racionalidade.

Não pretendo aqui avaliar a plausibilidade do naturalismo quineano. A

mim, importa antes analisar como esse enfoque poderia sugerir uma forma

peculiar de interpretar a relação entre filosofia e ciência, de modo a contribuir

para o esclarecimento conceitual de ambas. Nesse particular, ocorre que a

adoção da perspectiva quineana acarreta justamente a dissolução recíproca de

ambas ou em colocar as questões ontológicas em pé de igualdade com as

questões da ciência natural e vice-versa. E aqui me interessa saber se a

adoção dessa perspectiva preserva a possibilidade de também levantar as

questões proposta pelo Prof. Michel Paty. É o que passarei a avaliar agora.

O ponto de partida do Prof. Paty é uma constatação: a ciência muda e

suas mudanças denotam progresso. O progresso, desse modo, poderia ser

considerado uma característica definidora da ciência, visto ser um fato a seu

respeito ou a respeito das mudanças que realiza ao longo do tempo. A dúvida

recai apenas sobre o significado desse fato, se ele aponta para uma diferença

entre conhecimento (relacionado com a idéia de movimento e de procura) e

saber (conjunto de conteúdos considerados estaticamente). Mas a pergunta

seguinte recoloca o problema em termos da identidade da ciência: deseja-se

saber se "o que se chama ciência é este saber, ou é também este

conhecimento em movimento". A questão, então, é: se o progresso tiver que

ser incorporado ao conceito de ciência, então ciência será mais que saber, será

também conhecimento. Se assim for, a questão seguinte destina-se a saber se

a racionalidade deve ser, ela mesma, parte do progresso científico ou do

"movimento que elabora a ciência". Por fim, o prof. Paty pergunta se essa

"ciência em elaboração" pode integrar a nossa agenda de "problemas

filosóficos".

Ora, começando pela última pergunta, a definição de um padrão de

racionalidade sempre foi um problema central da filosofia. Os antecedentes dos

atuais modos de traçar a demarcação entre ciência e filosofia, tais como a

distinção dos antigos gregos entre episteme e doxa, tinham justamente a

função de isolar os elementos distintivos do discurso racional. Na medida em

que identificamos na "ciência em elaboração" indícios de racionalidade, nada

Page 35: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Eduardo Salles O. Barra 34

mais natural que assumi-la como objeto da especulação filosófica. A dúvida é

como a ciência em elaboração pode revelar tais indícios de racionalidade ou

como a razão pode estar presente na ciência enquanto essa se encontra em

pleno processo de mudança.

Tudo leva a crer que as dúvidas retóricas do prof. Paty não fariam muito

sentido se encaradas da perspectiva proposta por Quine. Em primeiro lugar,

para o tipo de resposta afirmativa que o prof. Paty pretende para as suas

questões, deveria haver uma instância externa e anterior à "ciência em

elaboração" capaz de determinar ou ao menos delimitar o que deve ser a razão

ou um padrão de racionalidade. Em segundo lugar, essa instância externa e

anterior à "ciência em elaboração" não poderia ser outra senão a filosofia e, por

conseguinte, retornamos inevitavelmente a antigas crenças demarcatórias. Por

fim, o caráter progressivo de qualquer "ciência em elaboração" deveria ser

avaliado pela satisfatibilidade daquele padrão de racionalidade e não apenas

pelo critério pragmático-empirista de antecipação da nossa experiência futura.

Os últimos dois pontos parecem reverberar as conclusões de Putnam as

tentativas de tipo quineana de naturalizar a razão ou, em outros termos, de

eliminar o caráter normativo da filosofia – algo que, segundo ele, equivale a um

"suicídio mental" (cf. Putnam, p. 437).

As respostas afirmativas esperadas por Paty, assim como a

externalidade reivindicada por Pablo, dependem de que a filosofia possa dispor

de uma região do pensamento inacessível ou, no mínimo, incompatível com a

natureza das práticas científicas. A dificuldade de admitir essa possibilidade –

independentemente da sua factividade – é que ela parece exigir a reabilitação

do entulho dogmático banido por Quine. Em particular, ela exige que a

empresa filosófica seja concebida como uma forma genuína de conhecimento a

priori, sustentado talvez pelo venerável método da análise conceitual. A

solução para esse impasse pode estar em algum ponto intermediário entre

ambos os extremos, em algo que poderíamos chamar como fez Laudan de

"naturalismo normativo". Esse naturalismo normativo deveria ter como

característica central a crença na continuidade entre ciência e filosofia, mas

sem prejuízo da irredutibilidade mútua das regiões situadas nos pontos

extremos de cada um dos dois lados. Quiçá desse modo propriedades antes

Page 36: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 35

tidas como exclusividades da ciência e, em linhas gerais, motivadoras das

antigas doutrinas demarcatórias possam também ser identificadas na filosofia,

sem que isso signifique uma capitulação com respeito à sua natureza. Refiro-

me em particular ao progresso. A tese da continuidade entre ciência e filosofia

permite distinguir regiões dessa última – precisamente, aquelas que se mantêm

mais indistintamente ligadas à primeira – em que o progresso poderia ser

inequivocamente apontado – tão inequivocamente apontado quanto o pudesse

ser na ciência.

Bibliografia:

LAUDAN, L. (1996) "The Demise of the Demarcation Problem" in___________. Beyond Positivism and Relativism; Theory, Method andEvidence. Oxford: Westview Press, pp. 210-222.

QUINE, W. V. (1980) "Dois dogmas do empirismo" in PORCHAT, O. (org.)Ensaios/Ryle, Austin, Quine, Strawson. São Paulo : Abril Cultural. 2.ed., pp. 231-248. (Col. Os Pensadores)

POPPER, K. (1980) A Lógica da Investigação Científica. São Paulo : AbrilCultural (Col. Os Pensadores).

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João Carlos M. Magalhães 36

“A ciência como objeto”

João Carlos M. MagalhãesDepartamento de Genética, SCB/UFPR

Agradeço à organização deste evento pelo convite para participar da

mesa de abertura. É uma honra e uma temeridade, pois não tenho formação

regular em história ou filosofia. Tenho, entretanto, grande interesse no assunto.

Em meu doutorado em biologia, tive o privilégio de ser orientado pelo Dr. Décio

Krause, que trabalha com lógico e filosofia da ciência. O trabalho teve,

portanto, caráter interdisciplinar. Investigamos alguns aspectos da estrutura

lógica de partes da biologia evolutiva. Ao contrário do que se faz comumente

em ciências, onde as teorias são desenvolvidas e utilizadas para a investigação

da natureza, tomamos as próprias teorias biológicas como objeto de

investigação. Isto é exatamente o que é colocado pelas perguntas formuladas

pelos Profs. Pablo Mariconda e Michel Paty. A idéia surgiu da constatação de

certas dificuldades que surgem quando se integra elementos da genética à

teoria da seleção natural de Darwin, particularmente problemas relativos à

extensão do conceito de fitness, originalmente aplicado a organismos, para os

genes e genótipos. Partimos de questões relativas à biologia evolutiva para a

discussão da natureza dos conceitos e estrutura das teorias envolvidas, o que,

acredito, caracteriza um interesse filosófico. O que vou falar, entretanto, não

deve ser encarado como o desenvolvimento de teses filosóficas originais, mas

como um simples depoimento de alguém que, proveniente das fileiras da

ciência, aproximou-se deste tipo de problema em decorrência da necessidade

de investigar os fundamentos do que fazia. Será, portanto, uma visão muito

particular.

A primeira constatação foi a grande diversidade de perspectivas

possíveis. As diversas disciplinas a partir das quais se pode tomar a ciência por

objeto, como a história, sociologia e a lógica, comportam diferentes

abordagens. Em cada perspectiva, entretanto, é necessário um certo

distanciamento, é preciso usar conceitos e métodos apropriados, nitidamente

distintos dos conceitos e métodos de investigação científica, e ainda mais

Page 38: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 37

distantes do ramo ou aspecto particular da ciência que está sendo investigado.

É isto que permite a visão crítica, característica do discurso filosófico, sem a

qual a história da ciência se degenera em mera coleção de fatos,

freqüentemente selecionados de modo arbitrário. Mas, por mais rigorosos que

sejam tais métodos, pela natureza do seu objeto, investigar a ciência implica

também em tomar posições que devem estar explícitas, claramente.

Em geral os problemas científicos são resolvidos de modo a se chegar a

soluções mais ou menos consensuais, com experimentos ou demonstrações,

ficando o debate restrito a áreas fronteiriças do conhecimento. Mesmo em

ciência, este aparente consenso pode ser ilusório. Em alguns momentos o que

antes parecia sólido torna-se vago e escorregadio e, algumas vezes percebe-

se que o método científico não é totalmente objetivo e que também tomamos

posições extracientíficas ao fazer ciência.

Na verdade a distinção entre os dois campos, ciência e estudo da

ciência, nem sempre é simples. Em alguns momentos a ciência e a filosofia da

ciência se aproximam, mesclando-se e fecundando-se mutuamente.

Muitos cientistas importantes, criadores de novas teorias que

expandiram as fronteiras do conhecimento, também atuam ou atuaram como

filósofos e historiadores da ciência. Posso citar como exemplo na biologia os

nomes de Ernest Mayr, Stephen Jay Gould e François Jacob, entre muitos

outros. Na verdade, o cientista que busca uma visão crítica da sua área tem de

ter pelo menos alguma familiaridade com certos aspectos de filosofia e história

da ciência. Tem de interpretar conceitos de alcance amplo e explorar relações

entre diferentes campos do saber. Freqüentemente é necessário considerar

conceitos e teorias do passado. Para isto é preciso reconstituir o modo de

pensar de uma época. Mas o cientista raramente tem a formação necessária.

Simplesmente não é treinado para isto. Tende a pensar o passado de uma

perspectiva contemporânea, a partir de seu próprio campo de atuação, mas as

questões de fundo retornam em alguns momentos. Ao fazer história da ciência

pode, por exemplo, estar tomando posições dentro do embate científico

contemporâneo e não distinguir estas posições da discussão propriamente

histórica.

Page 39: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 38

A perspectiva filosófica é muito relevante para a atividade científica

propriamente dita. Sem uma crítica efetiva e bem fundamentada o pesquisador

pode incorrer em erros que agem no sentido de limitar sua criatividade ou até

mesmo colocá-lo em um caminho equivocado. Às vezes isto implica em

questões éticas e até políticas. Principalmente entre estudantes das disciplinas

científicas é comum reduzir estes questões complexas a soluções simplistas.

Podemos citar, por exemplo, a controvérsia em torno do chamado

“reducionismo genético” e o “determinismo social” levou a posições extremadas

e ainda tem causado equívocos no estudo do comportamento. Assim, nunca é

demais destacar a importância da crítica externa para o trabalho do cientista e

para a formação do estudante de ciência.

Quando trabalha com disciplinas específicas, o filósofo e o historiador,

por sua vez, têm que conhecer conteúdos e métodos destas disciplinas, o que

pode ser bastante árduo, especialmente se trata períodos históricos mais

recentes, quando os conceitos e teorias científicas tornaram-se muito

complexos e distantes do senso comum. Embora distintas da ciência

propriamente ditas, história e filosofia da ciência são áreas por natureza

interdisciplinares.

Quando alguém, com formação predominantemente científica, defronta-

se com questões relacionadas à filosofia e história, necessita interagir com

pesquisadores destas áreas. Mas esta é uma via de mão dupla; parece-me

essencial que os filósofos e historiadores da ciência ouçam os próprios

cientistas, não apenas suas teorias e resultados experimentais, mesmo quando

estes não estão tratando diretamente de questões históricas ou filosóficas, pois

o objeto de estudo de uns é precisamente o processo e resultado da atividade

dos outros.

Vamos considerar a distinção entre conhecimento, tomado como

processo, e saber, como conjunto de conteúdos acabados ou estáticos,

conforme colocado pela questão do Prof. Paty. Esta distinção não é apenas

possível como também é necessária, especialmente para finalidades didáticas,

mas ela pode ser um pouco arbitrária e às vezes nebulosa. A ciência é

freqüentemente apresentada em livros texto como coleção de conteúdos bem

estabelecidos, mas é preciso considerar a dinâmica da aquisição deste saber.

Page 40: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 39

O progresso da ciência não é linear e contínuo, nem caminha diretamente para

o pensamento contemporâneo como único movimento possível. Mesmo

quando se estuda o trabalho de um cientista em um período particular da

história, é preciso situá-lo no movimento geral das idéias. Como fazer isto

depende da vertente teórica adotada pelo historiador.

Neste sentido, um aspecto a ser explorado é o papel das teorias em

ciência. Como é bem conhecido, de acordo com a concepção tradicional

associada ao positivismo lógico, poderíamos pensar nas teorias da ciência

como algo passível de ser reconstruído racionalmente, como sistemas lógicos,

conjuntos de proposições e suas conseqüências. No caso de ciências da

natureza, o teste empírico poderia fornecer, de algum modo, o crivo para se

verificar a validade ou adequação das teorias. Não se pode fazer injustiça às

formidáveis contribuições propiciadas pela análise da estrutura lógica das

teorias científicas realizadas dentro desta concepção, com todos os seus

desdobramentos, mas, como se sabe, esta visão tem suas limitações. O modo

como se faz a caracterização das teorias científicas não é consensual, cada

tentativa representa apenas uma visão possível das mesmas. De qualquer

modo, pode-se pensar no progresso científico como uma sucessão de teorias

cada vez mais poderosas, no sentido de fornecer melhores explicações para os

fatos conhecidos, gerar novos conhecimentos, aplicações e também novos

problemas.

O que se entende normalmente por “ciência” não é só teoria. Existem

experimentos, dados, resultados, aplicações, conclusões, entre outras coisas.

Influências externas, isto é, culturais, sociais, econômicas ou políticas, podem

ser fundamentais em cada etapa do desenvolvimento da ciência. Aspectos

psicológicos também devem ser levados em conta. A distinção entre um

“contexto da descoberta” em que o cientista estaria sujeito a todos estes

condicionantes, e um “contexto da justificação”, em que ele apresentaria seus

resultados re-elaborados, entretanto, pode dar a falsa impressão que a

racionalidade intervém apenas após o trabalho científico, como mera

justificação do mesmo.

Podemos aceitar que, de fato, a ciência não é uma atividade totalmente

racional. A maior parte do tempo o cientista trabalha dentro do que Khun

Page 41: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 40

chamou de ciência normal, no interior de um paradigma, resolvendo “quebra

cabeças”. Estas atividades não são banais, têm suas próprias dificuldades,

mas o pesquisador atua principalmente como um técnico, não precisa durante

todo o tempo distanciar-se e refletir sobre o conjunto destas atividades nem

como elas se inserem no campo maior da ciência. Em diversos momentos,

entretanto, precisa questionar o que está fazendo, por exemplo, ao escolher

um tema de pesquisa, justificar resultados inesperados, encontrar lacunas ou

inconsistências no raciocínio normalmente aceito, etc. Enquanto planeja,

discute seu trabalho ou dialoga com outras áreas, o cientista pode questionar

coisas que vão além de seu próprio campo de trabalho, como os fundamentos

em que se assentam as teorias ou os métodos que utiliza e, ainda que de

modo informal, e no sentido comumente apontado para o termo, ele está sendo

racional.

Deste modo, parece-me que a ciência em elaboração pode ser um

campo de problemas filosóficos, na medida em que o cientista tem que tomar

posições a respeito de questões que extrapolam os limites do conhecimento

científico. Dependendo de como ele se posiciona em questões metafísicas, por

exemplo, pode interpretar de diferentes maneiras um conceito ou pode optar

por diferentes abordagens em seu trabalho. Tomar consciência clara destas

posições pode representar uma influência positiva, e às vezes essencial, para

este trabalho.

Além disto, o resultado de suas atividades pode ter implicações éticas e

políticas, difíceis de serem percebidas a partir de uma perspectiva individual ou

tecnicista e sem o recurso a outros campos do saber. Exemplo disto é a

discussão atual das normas para regulamentar a pesquisa biotecnológica, as

quais devem considerar aspectos técnicos e científicos, mas não se esgotam

apenas nisto. Dependendo como a sociedade lida com tais questões, isto

também irá influenciar de diversas maneiras o desenvolvimento científico. Por

estas razões, insisto, a crítica externa é importante para o cientista. Por outro

lado, os avanços da ciência colocam em nova perspectiva conceitos

tradicionalmente abordados pela filosofia como as noções de matéria, vida,

individualidade e mente, entre uma infinidade de outras, forçando a

rediscussão e o aprofundamento de tais temas, dentro e fora da academia.

Page 42: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 41

Ora, o que é ciência?

José Borges NetoDepartamento de Lingüística/UFPR

A questão que o Pablo coloca é muito interessante, porque muito

reveladora de pressupostos ideológicos que enviesam a discussão sobre a

natureza dos estudos que tomam a ciência, seus produtos e produtores, como

objeto.

Arrisco dizer que a ciência é uma atividade humana, coletiva, que tem

por objetivo a busca do conhecimento seguro, fundamentado. É um “fazer” que

existe há muito tempo e que se modifica com o passar do tempo (se modifica

na sua forma e se modifica enquanto reflexão sobre si mesma).

Bastante importante – mas não essencial, eu diria – é a “tipologia” que

se aplica a esse fazer. Com base, particularmente, na delimitação dos

domínios (das “áreas de atuação” de diferentes cientistas) distinguem-se tipos

diferentes de ciência (Física, Biologia, Lingüística, Antropologia, História) e

subtipos desses tipos (física quântica, genética, embriologia, antropologia

física, antropologia social, etc.). Ressalto que não considero essencial essa

“tipologia” porque ela não é natural (resulta de um certo olhar – histórico e

ideológico – sobre esse fazer). Eu diria que são aspectos históricos,

sociológicos, lingüísticos, éticos, etc., que fazem com que cientistas se digam

geneticistas, ou bioquímicos; mais do que aspectos “objetivos”, propriamente

ligados ao objeto (observacional ou teórico).

Eu diria que esses diversos tipos de ciência se colocam num grande

plano em que todos os tipos têm relações de semelhança e de diferença com

os outros: nenhum é igual ao outro e são possíveis n agrupamentos distintos a

depender do critério tipológico utilizado. Se eu olhar por um lado, coloco a

lingüística junto com a física acústica; se olhar por outro lado, coloco a

lingüística junto com a sociologia (e lingüística não é – nem se reduz a –

sociologia ou física acústica).

Creio que é num quadro como esse que podemos abordar a questão

colocada pelo Pablo.

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José Borges Neto 42

Não creio que a ciência seja um objeto natural. Logo, não vejo porque

deveria haver, necessariamente, uma ciência da ciência. Também não vejo

porque não poderia haver uma ciência da ciência. A ciência não seria um

objeto mais misterioso ou esquivo do que a linguagem, por exemplo. Assim

como a Lingüística é possível – e engloba estudos tão distintos quanto a

fonética, a semântica formal, a neurolingüística, a sociolingüística, a lingüística

histórica e a análise do discurso – seria possível uma “cienciologia”, que

englobaria estudos tão distintos quanto a história da ciência, a antropologia da

ciência, a sociologia da ciência, a psicologia da ciência, a filosofia da ciência,

etc.

Certamente, a ciência da ciência teria que ver externamente o fazer

científico e os seus resultados (TODA ciência vê externamente o seu objeto).

Embora eu não acredite que haja algum fundamento ou utilidade para a

distinção entre ciência natural e ciência humana, essa ciência da ciência seria,

por excelência, uma ciência humana. E enfrentaria os mesmos problemas que

outras ciências humanas enfrentam.

Não posso concordar, no entanto, com a afirmação (se é que é, de fato,

uma afirmação) de que qualquer reflexão sobre a ciência seria filosófica. O

filósofo não tem o monopólio do pensar a ciência. Ao contrário, como pensava

Bachelard (ouvi isso do Granger), o filósofo da ciência é que tem que ser, antes

de tudo, um cientista (até para saber do que está falando).

Antes de encerrar, creio que vale dizer algumas palavras sobre a

questão da natureza investigativa própria da ciência a que Pablo faz alusão.

Creio que aí por trás está um pressuposto de que a ciência deve ser

definida como um método, como um modo de pensar. Eu diria que os

"processos investigativos" não são iguais para todos os tipos de ciência. Em

conseqüência, não creio que haveria razão para supor que a ciência da ciência

não pudesse ter "processos investigativos" próprios, tão "científicos" como

qualquer outro

Na questão colocada pelo Michel, há dois pontos centrais que eu

gostaria de comentar. O primeiro é a questão da definição do que é ciência –

ponto que já abordei no comentário anterior, mas que não aprofundei para

poder retoma-lo aqui. O segundo é a questão da racionalidade.

Page 44: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As respostas 43

Como já disse antes, a ciência é uma atividade humana que tem por

objetivo a busca do conhecimento fundamentado. Logo, a ciência comporta

tanto o lado da busca do conhecimento como o lado do conhecimento que

obtém. E creio que cada uma dessas coisas pode ser observada e analisada

deforma independente (embora todos os aspectos se relacionem). Por

exemplo, é possível estudar os sujeitos envolvidos neste “fazer”, suas crenças,

seus comportamentos, e fazer uma psicologia dos cientistas. É possível

estudar as formas de convencimento de que lançam mão esses sujeitos para

impor aos outros os conhecimentos que obtiveram, e que consideram

verdadeiros, fazendo uma retórica da ciência. É possível estudar as várias

formas que esse fazer assume no decorrer da história, permitindo uma história

da ciência. É possível estudar as diversas feições que esse fazer assume

quando voltado a domínios distintos, na forma de uma tipologia da ciência (ou

uma ciência comparada). É possível, por outro lado, buscar invariantes do fazer

científico por sobre as várias ciências. E, é possível, também, ater-se aos

conhecimentos obtidos por uma determinada ciência, olhando a consistência

interna desses conhecimentos de forma a tomá-lo como um sistema.

Como também já disse antes, a ciência não é um objeto mais misterioso

do que a linguagem. E na lingüística co-existem (nem sempre harmonicamente,

reconheço) abordagens, digamos, “estruturalistas”, que tomam as línguas

como conjuntos de produções lingüísticas (enunciados), que têm sua lógica

interna investigada, ao lado de abordagens “gerativas”, que tomam as línguas

(os conjuntos de enunciados) como fenômenos que resultam de algo mais

profundo e fundamental – uma gramática interiorizada, na proposta de

Chomsky, ou um conjunto de condições de produção, externas, por definição,

na proposta das análises do discurso.

Enfim, a questão de se ter que escolher entre o processo ou o produto,

é, na minha opinião, uma falsa questão. Pelo mesmo caminho vai a questão da

busca da racionalidade apontada no mote do Michel: também é uma falsa

questão.

Concordo com Lakatos quando ele diz que a racionalidade da ciência é

construída a posteriori. Assim, ao tomar a ciência como objeto, a última coisa

que deveríamos fazer é supor que lá iremos encontrar racionalidade. A busca

Page 45: Anaiais Encontro Filosofia Parana

José Borges Neto 44

da racionalidade é um movimento que supõe no objeto algo que eventualmente

o objeto não tem.

Todo cientista – os que estavam certos e os que estavam errados; os

que inauguraram paradigmas e os que sumiram nas trevas do esquecimento –

acha que está agindo racionalmente. Uma das tarefas do estudioso da ciência

– e aqui creio que se trata de uma tarefa própria do filósofo da ciência – é a de

dar, estabelecer, definir, construir a racionalidade do sistema sob análise.

Finalmente, uma última palavra sobre a questão do Michel. Ele pergunta

se a ciência em elaboração é um campo de problemas filosóficos. E eu diria

que tudo é campo de problemas filosóficos, não só a ciência em elaboração.

Page 46: Anaiais Encontro Filosofia Parana

EIXO TEMÁTICO 1:MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA;

MECANICISMO;FILOSOFIA DA NATUREZA

Page 47: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A natureza do mecanicismo cartesiano

César Augusto BattistiProfessor da Graduação e do Mestrado em Filosofia/UNIOESTE

RESUMO: O presente texto começa por apresentar características geraisdo mecanicismo clássico para, em seguida, examiná-lo a partir de seu maiorrepresentante: Descartes. O mecanicismo cartesiano é exposto em quatropontos. O primeiro discute a crítica à visão teleológica da natureza e atransposição indevida de propriedades feita do mundo da vontade ehumano para o mundo físico. Em seguida, faz-se a discussão domecanicismo sob o ponto de vista filosófico, físico e fisiológico. Em termosfilosóficos, a distinção entre corpo e alma garante a independência domundo físico em relação ao da alma, bem como lhe atribui, como essência,as qualidades mecânico-matemáticas. Do ponto de vista físico, é garantidaa suficiência dessas qualidades para a explicação dos fenômenos naturais,de sorte que não é preciso admitir, aí, a existência das ditas qualidadessecundárias. O mecanicismo ocorre também no âmbito interno dassensações ou fisiologicamente, de modo que as qualidades secundáriastampouco se originam ou têm importância nesse processo. E, assim, háuma continuidade plenamente mecânica entre o âmbito físico e fisiológico,não emergindo tais qualidades senão por intervenção ou por "interpretação"da alma.

PALAVRAS-CHAVE: Descartes; antifinalismo físico; máquina;matematização; mecanicismo físico; mecanicismo fisiológico.

1. VISÃO GERAL:

O mecanicismo foi certamente o grande movimento intelectual do século

XVII, do qual, com exceção dos escolásticos remanescentes, fizeram parte

praticamente todos os grandes filósofos e cientistas da época. Ele foi uma

espécie de mentalidade, de visão de mundo, uma espécie de "paradigma"

partilhado pela maioria dos sábios setecentistias, ainda que muitos destes não

tenham aceitado essa ou aquela de suas teses centrais.

O mecanicismo, em seus aspectos mais gerais, pode ser definido como

um modelo explicativo das mais diferentes manifestações do mundo natural a

partir de cinco eixos básicos: 1) a uniformização e a redução das entidades e

processos existentes na natureza, de modo que todo fenômeno possa ser

explicado por meio de elementos simples, tais como a matéria e o movimento,

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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e de seus diferentes arranjos e combinações; 2) a utilização de modelos

explicativos, inspirados na concepção e funcionamento das máquinas, de sorte

que os fenômenos naturais possam ser entendidos como mecanismos

semelhantes aos inventados pelo homem e cujo conhecimento implique a

possibilidade de sua decomposição e reconstrução e, portanto, de sua

reprodução e imitação; 3) a introdução da matemática como instrumento de

análise e de explicação científica, de maneira que o conhecimento de um

fenômeno só estará completo se puder ser traduzido, em algum sentido,

quantitativa ou geometricamente; 4) a substituição da distinção entre coisas

naturais e coisas artificiais pela distinção entre mundo humano e mundo

natural, entre o mundo da liberdade e da consciência, por um lado, e o mundo

do determinismo material, por outro, de modo que não se poderá mais transpor

propriedades entre eles nem avaliar um a partir do outro; 5) a clara distinção

entre causa final e causa eficiente ou operativa, com a conseqüente negação

da possibilidade de conhecer, caso houver, as causas finais da natureza.

Ainda que não se possa afirmar que esses cinco fatores tenham

emergido separadamente e tenham contribuído de modo distinto e

independentemente, é possível relacionar, de forma mais direta, algumas

características do mecanicismo a cada um deles. Algumas relações serão

apresentadas abaixo.

O primeiro fator, o da homogeneização do real e conseqüente redução

de seus constituintes básicos, trata fundamentalmente da relação entre a

manifestação multíplice e variada da realidade natural e a tentativa de abarcá-

la sob certos princípios unificadores. No interior dessa discussão, nasceu o que

ficou conhecido posteriormente como a distinção entre as qualidades primárias

ou objetivas e as qualidades secundárias ou subjetivas. Como se pode

perceber, essa operação de homogeneização implica uma nova ontologia, uma

ontologia reducionista, mais simples e mais clara. E essa atitude não se opõe

somente à atribuição de um estatuto ontológico à realidade múltipla captada

pela sensibilidade, mas também à perspectiva que aceita o extraordinário, as

coisas estranhas e milagrosas na natureza. A perspectiva mecanicista não

aceita, portanto, a descontinuidade e a exceção na natureza, em cujo âmbito

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nasce, além da tese da redução das entidades básicas ao mínimo possível, a

idéia da existência de leis universais e invioláveis.

O segundo fator, o da construção de modelos explicativos de natureza

mecânica, está ligado, em grande parte, à atitude voltada à emancipação

científica do saber técnico-artístico renascentista e à tese da negação da

distinção entre objetos naturais e objetos artificiais, entre natureza e arte, entre

conhecer e criar. Nesse sentido, não há mais uma distinção de essência entre

coisas naturais e coisas artificiais, entre as coisas criadas por Deus e as

inventadas por nós, e, portanto, aos homens é permitido reproduzir grosseira e

parcialmente a obra divina. Do ponto de vista epistemológico, isso significa

que, para conhecer a natureza, é possível – e por vezes necessário – explicá-la

a partir das engenhocas criadas pelo homem. Portanto, é possível inventar

mecanismos, máquinas ou modelos mecânicos que permitam compreender a

natureza. Mais do que isso, essa perspectiva permite interpelar a natureza,

reproduzi-la em laboratório – de onde nasce a idéia da experimentação – e

usar tecnologias para conhecê-la, como é o caso do telescópio de Galileu. Isso

significa que o homem pode agir sobre a natureza, para conhecê-la e para

transformá-la, para o bem ou para o mal. Do ponto de vista das nossas

faculdades e capacidades, isso significa que conhecer é imaginar, é usar a

imaginação, mais do que os sentidos, para criar modelos explicativos. A

imaginação passa a ser um instrumento fundamental de acesso à realidade

inobservável ao lado da razão, mas, ao mesmo tempo, introduz o problema da

realidade do objeto imaginado. Surge, assim, o problema do realismo e do

instrumentalismo na ciência.

Vemos aqui também como esse fator está ligado ao anterior. Ao dar

importância à imaginação (supervisionada pela razão) em detrimento dos

sentidos, o mecanicismo está dando prioridade às coisas pensadas em

detrimento do mundo imediato da experiência cotidiana. O real não é a

multiplicidade aparente, mas algo alcançado por meio de critérios

estabelecidos teoricamente. Assim, o mundo das coisas encontradas no nosso

dia-a-dia e também o mundo das coisas misteriosas, enigmáticas, curiosas ou

extraordinárias não exercem nenhum fascínio sobre o filósofo natural e são

relegadas ao estatuto de coisas ilusórias ou fantasias. Portanto, não se pode

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confundir imaginação com fantasia. Não se pode confundir o sábio com o

poeta, ainda que ambos se assemelhem quanto à sua capacidade criadora.

O terceiro fator citado é o da introdução da matemática na estrutura

explicativa dos fenômenos naturais. Aqui é preciso distinguir dois tipos de

matemática, como dirá Descartes, uma abstrata, que trata de um assunto

puramente matemático, e outra, voltada à explicação dos fenômenos físicos.

Mas, mesmo neste último caso, não se trata de uma física matemática tal como

nós a entendemos hoje. Antes de Newton, a introdução da matemática no

conhecimento da natureza não significou plenamente, em muitos casos, a

introdução do cálculo e a completa transposição matemática dos fenômenos

explicados, nem a introdução de conceitos definidos claramente por relações

matemáticas. Ao contrário, a matematização da natureza foi, antes de tudo, a

introdução de uma racionalidade matemática. E isso significa: uma oposição à

racionalidade ligada à sensibilidade e ao mundo da qualidade; uma

racionalidade que pensa com a clareza presente na matemática e com o

processo demonstrativo dessa ciência; uma racionalidade que reduz os

elementos explicativos a elementos com propriedades quantificáveis e

geometrizáveis, mas sem operar necessariamente de modo efetivo quantitativa

e geometricamente sobre eles. O discurso permanece ainda, em muitos casos,

qualitativo, ainda que feito sobre entidades de natureza quantitativa.1

Quanto ao quarto fator, o da distinção entre mundo da vontade e da

liberdade e mundo natural e determinístico, os mecanicistas em geral

pretendem se opor à concepção de natureza entendida como manifestação de

um princípio vivo ou como algo governado por força vitais ou causas finais. Ao

mesmo tempo, ainda que por razões distintas, eles se opõem a todo tipo de

antropomorfismo, seja em função da discussão sobre a "infinitude" do mundo

frente à "pequenez" humana e sobre a possibilidade da existência de outros

seres inteligentes, seja em função do fato de que o antropomorfismo é

injustificável por ser uma extrapolação do âmbito humano para o da natureza

física e, portanto, por ser uma aplicação de categorias espirituais ou humanas

1 Em outros casos, entretanto, poderíamos dizer que o processo de matematização foi além,mesmo bem antes de Newton. Tal é o caso de fenômenos óticos, que receberam tratamentogeométrico desde os gregos, mas também de fenômenos como o da queda dos corpos.

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ao mundo material. Um universo criado para o homem e, mais do que isso,

estruturado de forma análoga ao homem não é mais aceito. Mas, para isso, foi

preciso estabelecer a separação entre corpo e alma, entre liberdade do espírito

e necessidade física, bem como estabelecer uma teoria do conhecimento e

uma teoria da percepção que distinguissem claramente a significação subjetiva

do mundo da sua realidade propriamente dita.

Nessa perspectiva, vemos como o quinto e último fator está ligado de

forma imediata ao anterior: a atribuição de causas finais ao mundo natural, a

exemplo do mundo humano, é um desrespeito à distinção entre esses dois

mundos. Esse ponto será desenvolvido um pouco mais abaixo, tomando por

base o pensamento cartesiano.

2. Antifinalismo cartesiano:

Para os mecanicistas em geral, o combate ao finalismo na natureza é o

contraponto da defesa da visão mecânico-matemática do mundo físico.

Examinaremos esse ponto dentro do pensamento cartesiano e, com isso,

deixaremos de tratar do mecanicismo em geral, para nos dedicarmos ao de

Descartes, o seu mais radical representante.

Quanto ao caráter não-teleológico da natureza, Descartes apresenta um

argumento central, desenvolvido em dois tempos. O primeiro trata da

incomensurabilidade entre nossa finitude e a infinitude divina. O segundo trata

da esterilidade ou da inoperância da causalidade final em vista do

conhecimento das coisas, bem como da projeção indevida de características

do mundo humano e da vontade sobre o mundo natural.

A primeira parte do argumento, que pode ser encontrada nas

Meditações2 (Meditação Quarta, § 7) e nos Princípios (Parte I, art. 28),

contrapõe finitude humana e infinitude divina, de onde se segue que podemos

conhecer a Deus, mas não compreendê-lo. Em outras palavras, ainda que

possamos conhecer vários atributos divinos, não podemos conhecer a todos,

bem como não podemos determinar os fins pelos quais Ele criou o universo e a

2 As referências à obra cartesiana são dadas a partir da edição standard de Adam e Tannery(AT).

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nós mesmos. Há mistérios divinos que permanecerão como tais, e querer

desvendá-los é uma atitude indigna e de desrespeito a Deus. Diz a Meditação

Quarta:

"Pois, sabendo já que minha natureza é extremamente fraca e limitada, e, aocontrário, que a de Deus é imensa e incompreensível e infinita, não mais tenhodificuldade em reconhecer que há uma infinidade de coisas em sua potência cujascausas ultrapassam o alcance de meu espírito. E essa única razão é suficiente parapersuadir-me de que todo esse gênero de causas que se costuma tirar do fim não éde uso algum nas coisas físicas ou naturais; pois não me parece que eu possa semtemeridade procurar e tentar descobrir os fins impenetráveis de Deus" (AT, IX-1,p.44).

Nos Princípios (Parte I, art. 28), Descartes faz algumas considerações

semelhantes à citação dada das Meditações, mas, além disso, estabelece a

distinção entre a causa final e a causa eficiente, entre a busca dos fins e a dos

meios ou modos pelos quais Deus produziu algo. Diz o texto: "Não se deve

examinar o fim pelo qual Deus fez cada coisa, mas somente o meio pelo qual

Ele quis que ela fosse produzida" (AT, IX-2, p. 37).

A distinção entre causa final e causa eficiente é uma distinção entre o

fim, o "em vista do que" algo é feito e a realidade mínima necessária para

produzir algo. Essa distinção nos encaminha para a segunda parte do

argumento cartesiano contra o finalismo.

Ela consiste no seguinte: se, por um lado, os desígnios divinos são

insondáveis ao intelecto humano, por outro, eles parecem não deixar rastro

algum na criação. A única exceção é talvez a capacidade ilimitada da vontade

humana. Afora isso, o produto divino, tal como o humano, não conserva o fim

para que fora feito, enquanto conserva de algum modo a sua causa eficiente.

Afirma Descartes, na sua Entrevista com Burman: "o conhecimento do fim não

nos faz penetrar no conhecimento da coisa mesma, cuja natureza não nos

resta menos escondida" (AT, V, p. 158). Em outras palavras, não podemos

descobrir a natureza de uma coisa a partir de sua finalidade, ainda que ela

tenha sido produzida em função de um fim. E Descartes parece estar disposto

a aceitar também o contrário: a natureza ou essência de algo não revela seu

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fim,3 a menos que o expresse de forma volitiva, o que o mundo físico não pode

fazê-lo.

Por definição, a causa final não está presente no efeito e, portanto, não

é manifesta. Ela é algo que não é imediatamente dado e, portanto, precisa de

uma interpretação. Assim, ela não recai sob os preceitos da evidência, do claro

e distinto, por não se apresentar imediatamente à mente.

Entretanto, não estando manifesta, ela poderia talvez ser descoberta

retroativamente, a partir do meio ou efeito. Mas essa perspectiva também é

fadada ao fracasso, pois o efeito denuncia a causa, mas uma causa que lhe

seja suficiente e, de algum modo, semelhante. A causa deixa sua marca no

efeito, mas somente na proporção dada pelo próprio efeito. Tal é o que diz o

princípio "do nada nada provém". Essa relação entre causa e efeito, porém, é

uma relação entre a causa eficiente e o efeito e não entre a causa final e o

meio para realizar o fim.

De um modo geral, podemos concluir, portanto, que, no que concerne ao

mundo físico, ainda que ele seja obra do criador e que, portanto, Deus tenha

agido conforme um ou mais fins, Descartes não vê como conciliar a abordagem

mecânico-matemática, nem uma abordagem clara e distinta da natureza com o

recurso à teleologia. Por um lado, os fins são inacessíveis, mas, além disso, os

fins não são quantificáveis, nem apreendidos dentro do quadro metodológico

do simples - complexo.

Além disso, há o problema de a natureza dever ter consciência de seus

próprios fins. Que ela tenha fins, isso Descartes parece admitir, pelo menos

para a natureza em seu todo. Mas que tais fins estejam inscritos de algum

modo na natureza, Descartes talvez duvidaria. De todo modo, se eles

estiverem, de algum modo, inscritos nela, ela não tem consciência. E, se ela

não tiver consciência deles, ela não pode realizá-los efetivamente. Portanto,

eles são inúteis à natureza em si. Logo, se eles estiverem inscritos nela, eles

devem ser redefinidos em termos determinísticos. E, portanto, o que temos a

conhecer são as leis fixas que Deus impôs à natureza.

3 Essa afirmação talvez seja problemática no campo da biologia e da medicina, uma vez queessas ciências, mesmo em Descartes, dificilmente desvinculam o estudo de um órgão (talcomo o coração) de sua finalidade.

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Finalmente, é preciso dizer que, para Descartes, tal como para Bacon e

para Espinosa, o finalismo é, em grande parte, uma projeção humana sobre a

natureza ou uma avaliação da natureza a partir da perspectiva humana. Nós,

seres de vontade e de liberdade, avaliamos a natureza a partir da perspectiva

dessas características do espírito. Avaliamo-la também sob a perspectiva da

sensibilidade e do que ela nos fornece. Assim, cometemos dois erros ao

procedermos desse modo. Em primeiro lugar, por não distinguirmos claramente

alma e matéria, imputamos à matéria vontade, liberdade e espiritualidade. Em

segundo lugar, ao avaliarmos as coisas a partir de nós e da sua utilidade para

nós, agora já não como almas, mas como homens (corpo e alma), cometemos

o erro do antropomorfismo e do antropocentrismo. Como dirá Descartes nos

Princípios (Parte III, art. 3), "não é de nenhum modo verossímil que todas as

coisas tenham sido feitas para nós, de tal maneira que Deus não tenha tido

nenhum outro fim ao criá-las".

Em síntese, o combate ao finalismo é o contraponto do mecanicismo. A

sua negação é a afirmação do mecanicismo e vice-versa. Não há como aderir

ao mecanicismo cartesiano sem a crítica à teleologia física, da mesma forma

que não se pode fazê-lo sem a crítica à sensibilidade.

3. O mecanicismo cartesiano em três passos:

Na tentativa de elucidar a perspectiva mecanicista cartesiana, serão

apresentados três passos que se apresentam como fundamentais para a sua

constituição e justificação. São eles: o ponto de vista filosófico, o fisiológico e

físico.

a) O mecanicismo do ponto de vista filosófico:

Filosoficamente falando, o mecanicismo cartesiano tem como

fundamento a distinção entre corpo e alma, bem como o reconhecimento da

existência de um terceiro mundo, o mundo humano ou da união entre corpo e

alma.

A tese da distinção traz como conseqüência a separação de dois

mundos absolutamente diferentes, o mundo do pensamento, por um lado, e o

mundo da extensão, por outro.

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A tese da união traz consigo a existência de um terceiro mundo ou de

um terceiro conjunto de fenômenos, os fenômenos das sensações e das

paixões. Aqui nos interessam exclusivamente as sensações externas, uma vez

que nosso objetivo é o mecanicismo do mundo natural, exterior a nós.

Dada a distinção categorial entre corpo e alma e dada a união de fato

entre ambos, tudo o que no mundo material não se submeter à extensão em

sua tridimensionalidade não pode ser legitimamente atribuído a ele. Desse

modo, sendo a extensão o atributo essencial dos corpos, todo outro atributo

físico deve ser um atributo secundário, decorrente do caráter extenso do

mundo material.

Por outro lado, o que não puder ser atribuído aos corpos, nem à alma,

mas sendo mesmo assim algo, deve ser oriundo da relação do homem com o

mundo, cujo significado deve ser buscado nessa relação. Assim, o valor das

sensações se determina pelo seu significado para o composto corpo-alma,

quanto à sua proteção, comodidades e incomodidades, prazer e desprazer.

Mas, para além disso, a sensibilidade humana nada ensina a respeito

das coisas exteriores, sem o referendum do espírito, dado de forma cuidadosa

e ponderada. Para além da "informação biológica" voltada à utilidade e ao bem-

estar, os sentidos não podem ensinar nada de claro e distinto por si mesmos,

sem a supervisão do entendimento, sem o julgamento do espírito. As

qualidades, portanto, que costumamos atribuir às coisas sem considerá-las de

modo adequado – tais como as representadas pela idéia de vazio, de quente,

frio, cor, sabor, etc. –, não devem ter correspondente real, ainda que possam

ser significativas para o composto corpo-alma (o homem) e possam auxiliar no

conhecimento do mundo exterior.

A conclusão que se deve extrair disso tudo é a de que a metafísica

cartesiana estabelece a existência de um terceiro mundo, o da sensibilidade e

das paixões, oriundo da relação entre os dois anteriormente dados. A distinção

entre este mundo do sensível e o da objetividade física permitirá a distinção

entre as qualidades objetivas e as qualidades subjetivas do mundo físico. Além

disso, a distinção entre o mundo humano e o espiritual, de um lado, e o

material, de outro, permite evitarmos a aplicação de categorias espirituais ao

mundo material – de onde nasce a busca pelas causas finais – ou de

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categorias humanas – de onde nasce o antropomorfismo e o antropocentrismo.

Por outro lado, se nos mantivermos no âmbito da objetividade física, veremos

que legítima é somente a atribuição de propriedades mecânico-geométricas ao

mundo físico.

b) O mecanicismo do ponto de vista fisiológico:

Passando, agora, ao ponto de vista fisiológico, teremos a oportunidade

de perceber como Descartes procede para demonstrar a subjetividade das

qualidades secundárias e apontar para a realidade das primárias, ao mesmo

tempo em que poderemos ver como ele entende o mecanicismo na própria

fisiologia e na anatomia. Para examinar esse ponto, utilizarei os Discursos 3 a

6 da Dióptrica, um dos ensaios do método, publicada junto com o Discurso do

método e com os outros ensaios em 1637. Como teremos a oportunidade de

ver, Descartes, nessa obra, institui uma nova teoria da percepção por meio de

sua teoria mecânico-geométrica da visão.

A Dióptrica, vista em seu todo, tem por objetivo central fornecer um

estatuto científico à técnica da utilização de lentes para o aperfeiçoamento da

visão. Em outras palavras, ela pretende legitimar teoricamente o uso de

instrumentos que aumentam o poder da visão, como o telescópio, e, portanto,

dar cientificidade a tais instrumentos. O texto pode ser dividido em três grandes

partes. A primeira (Discursos 1 e 2) apresenta uma reflexão sobre as

propriedades da luz e expõe a lei da refração; a segunda (Discursos 3 a 6), que

nos interessa aqui, trata da percepção visual e de como ela é produzida; a

terceira (Discursos 7 a 10) discute a forma pela qual é possível aperfeiçoar a

visão por meio de lentes, legitima seu uso e discute a sua forma mais

adequada e seu modo de confecção ou de fabricação.

Ao nos atermos aos Discursos 3 a 6, nosso objetivo será o de evidenciar

o processo de geometrização da visão e de mecanização do processo

sensitivo. Em outros termos, poderemos ver que tudo o que ocorre na visão,

enquanto envolve a participação do corpo, é um processo absolutamente

mecânico, não havendo nada de qualitativo ou não matemátizável. Ao

contrário, o processo sensitivo, sendo absolutamente mecânico, estabelece

uma relação causal com o mundo exterior, de modo que ambos se tornem

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homogêneos. Assim, não haverá interrupção da causalidade mecânica entre o

mundo exterior ao corpo e o processo que se passa no próprio corpo. Tudo é

questão de movimento, de matéria em movimento.

Nos discursos supracitados, portanto, o filósofo pretende geometrizar a

visão e explicar essa capacidade humana. Dentro dessa perspectiva, ele

retoma o trabalho de Kepler e o leva adiante. Kepler foi responsável pela

diferenciação mais adequada das partes do olho, de modo que, determinando

o papel refratário do cristalino, descobriu que a formação da imagem não se dá

nele, mas no fundo do olho, na retina. Além disso, determinou que essa

imagem é algo real, portanto, visível, e não mais um mero fantasma que torna

visível as coisas sem ser ela mesma visível. Ao contrário, a imagem na retina é

algo real, uma espécie de pintura bidimensional com plena presença física, de

tal maneira que poderia ser vista no fundo do olho de um boi dissecado

adequadamente, como dirá Descartes, da mesma forma que em um quanto

escuro (expediente já utilizado por Della Porta), por meio de um pequeno

orifício por onde a luz penetra e dá origem a uma imagem no interior do quarto.

Enquanto o cristalino era considerado o receptor do sensível, a imagem era

quase como um espírito ou um fantasma, pois não era vista. Ao contrário,

sendo ela uma verdadeira pintura, uma verdadeira imagem no fundo do olho,

sendo, portanto, uma entidade física, ela não é mais a representante da coisa,

a forma mesma da coisa visível presente no olho, mas um efeito da coisa

exterior. A imagem na retina deve ser tratada como um efeito, um efeito de

natureza ótica, e explicado com tal.

Além disso, Kepler sabe muito bem que a investigação ótica

propriamente dita para por aí, mas a questão da visão não. Ele distingue

claramente o componente ótico da visão e os eventos de natureza nervosa,

cerebrais e psicológicos envolvidos na percepção visual. A teoria da percepção

visual se submete a um processo causal cujo primeiro passo é de natureza

ótica e o segundo de natureza neuro-fisiológica, indo finalizar no interior do

cérebro e na consciência perceptiva do homem.

Descartes, dando prosseguimento a essa análise, observa

primeiramente que quem sente é a alma e não o corpo, e que a relação da

alma com o corpo se estabelece em um lugar específico, no senso comum ou

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na glândula pineal (ou conário). Depois disso, trata dos nervos, dos quais vêm

as impressões dos objetos exteriores por meio dos chamados espíritos

animais. Essa é uma descrição comum a todos os sentidos, distinguindo-se a

visão somente pelo que representa o olho. Efetivamente, como veremos, a

teoria da percepção visual terá uma função paradigmática em relação à teoria

da percepção em geral.

Dito isso, a primeira observação que Descartes faz é que a alma, para

sentir, não precisa de imagem alguma. A exemplo das palavras e dos signos,

não é preciso haver imagem para "excitar nosso pensamento" (AT, VI, p. 112);

e, se houver, não há necessidade de que as imagens sejam semelhantes aos

objetos que significam. Na verdade, as imagens não podem ser semelhantes

em tudo aos objetos que representam, pois do contrário seriam os próprios

objetos. Ademais, como as regras da perspectiva mostram, uma pintura ou

imagem bidimensional, como a que aparece na retina, no fundo do olho, deve

assemelhar-se pouco ao objeto tridimensional real; além disso, por seu aspecto

esférico, utiliza as técnicas dessa teoria, tal como quando representamos

círculos e quadrados por meio de ovais e losangos.

Isso tudo não impede, entretanto, que a imagem inscrita no fundo do

olho tenha certa semelhança com o objeto e que ela represente naturalmente

em perspectiva o objeto visto, como uma lente fotográfica sobre um filme ou a

imagem no interior do quarto escuro sobre um pano branco. E, tal como nesses

casos, a maior ou menor perfeição da imagem depende dos raios, da sua

dispersão ou reunião, da quantidade de luz, da distância do objeto, da maior ou

menor abertura da pupila, que nada mais é que um músculo que se comporta

mecanicamente em razão de estímulos luminosos externos.

É importante observar também que, para a formação da imagem, os

raios provenientes de um único ponto do objeto visto devem se reunir em um

único ponto sobre a retina, ainda que percorram caminhos distintos.

Igualmente, cada ponto do objeto visto mantém sua posição ou situação em

relação aos outros pontos. Em síntese, como uma pintura, a imagem no fundo

do olho reproduz bidimensionalmente as características espaciais do objeto

visto, com sua figura, situação, grandeza e distância. E tudo isso por meio das

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leis que regem o comportamento dos raios luminosos, dentre as quais a lei da

refração.

Todos esses fatores, que são de natureza geométrica, são produzidos

mecanicamente, por meio do comportamento dos raios luminosos. Nessa

perspectiva, o olho poderia ser substituído sem dificuldade por um globo

artificial, adequadamente construído e semelhante a ele, cujas divisões

internas contivessem lentes ou líquidos com índices de refração idênticos ao do

cristalino e dos outros humores ou líquidos que o compõem e em cujo fundo

contivesse um tecido delicado e semitransparente (ou, mesmo, uma casca de

ovo) que funcionaria como a retina. Sobre essa fundo da casca de ovo, que

envolveria boa parte do globo artificial, com exceção de uma abertura

semelhante a do olho, poderíamos constatar a presença da imagem do objeto,

tal como no olho natural.

No segundo momento da análise, Descartes irá tratar da passagem

dessa imagem sobre a retina até o cérebro. Esse percurso, também descrito

mecanicamente, já não será de natureza ótica, mas fisiológica. Trata-se da

transmissão dos "impulsos" captados pelo nervo ótico, que espalha suas

terminações pelo fundo do olho e que transmite, por meio do comportamento

cinético de seus filamentos, a "imagem" ao cérebro.

Aqui duas observações são importantes. A primeira é a seguinte: dado o

número muito elevado de filamentos que compõem o nervo ótico e que se

espalham no fundo do olho, cada um desses filamentos em sua extremidade é

atingido por um conjunto de raios luminosos provenientes de um único ponto

do objeto visto, de modo que, para cada ponto do objeto, um único ponto do

nervo ótico é acionado e, assim, o nervo ótico é atingido em locais diferentes

por movimentos diferentes. Essa configuração é transmitida por ele até o

cérebro, de sorte que, na superfície interior desse órgão, se forma uma espécie

de pintura de algum modo semelhante à imagem produzida na retina e,

portanto, ao objeto visto. Contudo – e essa é a segunda observação – essa

pintura ou configuração de dados não é mais de natureza ótica, mas

cinemática; portanto, sua semelhança com o objeto exterior não pode ser mais

em termos de imagem propriamente dita, mas de outro tipo, uma espécie de

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configuração formada pelo conjunto dos movimentos realizados pelos diversos

filamentos cuja outra extremidade se localiza no cérebro.

Depois disso, essa configuração cinemática é transmitida até o centro

das atividades cerebrais, onde se localiza a glândula pineal ou o conário, que é

o lugar do senso comum. Nessa glândula se dá a relação entre o corpo e a

alma, e é nesse local que a alma recebe as informações provenientes de fora e

as interpreta. Mas ela não pode receber informações de natureza cinemática

ou outra qualquer que ocorra do ponto de vista material, uma vez que a alma

não é material. Evidentemente, há aqui o problema da relação entre corpo e

alma, o problema de como essas entidades heterogêneas influenciam-se

mutuamente. Mas isso é um outro problema que será deixado de lado.

O que importa é o seguinte. Em primeiro lugar, a teoria da percepção

visual mostrou – e isso vale, mutais mutandis, para a percepção em geral – que

tudo o que ocorre na parte ótica e na parte fisiológica da visão são ações e

reações puramente mecânicas, são processos mecânicos, são movimentos

corporais numa relação entre causa e efeito.

Em segundo lugar, a relação causal se mantém como tal na passagem

entre a parte ótica e a parte fisiológica, sem que seja necessário que se

mantenha a idéia de semelhança ou imagem-cópia nesse processo. A relação

causal é distinta e independente da relação de semelhança entre objeto e

percepção do objeto.

Em terceiro lugar, não há descontinuidade causal entre o processo que

se passa no interior do meu corpo e o que se passa exteriormente, isto é, do

objeto exterior até mim. Isso significa que a causalidade se mantém desde o

objeto externo, como o Sol, por exemplo, até o fundo do olho e depois até o

cérebro, onde a alma interpreta os dados. Não há, portanto, diferença de

natureza dos objetos e processos envolvidos nesse percurso todo, sejam

internos ou externos a mim.

Em quarto lugar, não nos envolvemos com qualidade alguma nesse

processo todo; o processo de percepção, dentro do seu percurso restrito ao

âmbito corporal, ou seja, até o momento em que a alma entra em cena, nada

tem a ver com as supostas qualidades dos objetos exteriores. As supostas

qualidades não entram em jogo em momento algum.

Page 61: Anaiais Encontro Filosofia Parana

César Augusto Battisti 60

Agora, nada impede que a alma perceba determinadas qualidades. Ou

melhor, que ela interprete o movimento dos nervos no cérebro como

significando determinada qualidade sensível, como, por exemplo, a cor. Assim,

no caso do sentimento da luz, "é preciso pensar que nossa alma é de tal

natureza que a força dos movimentos que se encontram nos lugares do

cérebro de onde provêm os filamentos dos nervos óticos lhe faz ter o

sentimento da luz; e o modo desses movimentos, aquele das cores" (AT, VI, p.

130-131), da mesma forma como os movimentos dos nervos nos ouvidos lhe

fazem sentir os sons e os nervos da língua lhe fazem sentir os sabores, assim

por diante.

Ademais, a alma procede deste modo sem que seja preciso que haja

semelhança entre as idéias que ela concebe e os movimentos que as causam,

tal como ocorre com as palavras, com as lágrimas ou outros signos. E,

efetivamente, diz Descartes, não há semelhança entre o que ocorre no mundo

material e as qualidades que a alma percebe nas coisas. A luz, por exemplo, é

uma ação que, seguindo as leis do movimento, é exercida pelo Sol sobre as

partículas do ar, que, por sua vez, a transmite ao olho. No nervo ótico, o raio

causa um movimento fisiológico que é transmitido ao cérebro. É somente aí

que a alma interpreta esse conjunto de movimentos como sendo a sensação

da luz.

Por sua vez, as cores são oriundas dos movimentos rotacionais

diferenciados que as partículas da matéria sofrem ao transmitirem a luz, cada

cor representando um movimento diferente. Assim, para cada conjunto de

movimentos rotacionais diferentes, a alma sente uma cor. Em outras palavras,

a cor é um sentimento que nada corresponde no objeto, sob o ponto de vista

da semelhança entre o sentimento da cor e o objeto colorido. É verdade que o

autor afirma que a cor possibilita a diferenciação entre as partes de um corpo,

uma vez que denuncia a diferença de movimento de uma parte do corpo em

relação à outra, uma vez que denuncia uma propriedade real dos corpos. Mas,

mesmo assim, a tudo o que há nela, enquanto sentimento, nada de real existe

de semelhante nos corpos.

Podemos concluir, portanto, que o nosso processo de percepção

sensitivo é totalmente mecânico, não negociando em nenhum momento com as

Page 62: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A natureza do mecanicismo cartesiano 61

qualidades secundárias dos corpos. Ele denuncia a natureza mecânica de

nosso corpo, mas também, por refluxo, a natureza mecânica do mundo exterior

e de todos os corpos exteriores. Finalmente, a origem das qualidades se dá na

interpretação que a alma faz da configuração mecânica fornecida pelo corpo,

cuja significação é apenas subjetiva.

c) O mecanicismo do ponto de vista físico:

Para terminar essa exposição, seguem abaixo alguns elementos que

caracterizam a perspectiva física por meio da qual o mecanicismo é instituído.

Para tal, serão usados os capítulos iniciais do Mundo.

Os primeiros capítulos do Mundo ilustram magistralmente o modo pelo

qual Descartes, aos poucos, deixa emergir sua concepção física e seu

mecanicismo. Como eles fazem isso e quais suas etapas principais?

A primeira etapa desse processo consiste na desvinculação entre a

relação causal existente na origem de nossas percepções sensíveis, por um

lado, e a suposta relação de semelhança entre os objetos externos e tais

percepções. Como diz Descartes, "embora cada um comumente se persuada

de que as idéias que temos em nosso pensamento sejam inteiramente

semelhantes aos objetos dos quais procedem, não vejo, contudo, razão alguma

que nos assegure de que assim o seja" (AT, XI, p. 3). A relação que há entre a

sensação que tenho e o objeto físico que supostamente a causou não é ou não

precisa ser uma relação entre original e cópia, ainda que admitamos a relação

causal. Ela pode se reduzir apenas a uma relação entre significante e

significado. Em outras palavras, a representação que tenho de um objeto físico

não me remete necessariamente a algo que lhe seja semelhante, mas

estabelece somente uma relação de significação, cujo fundamento, ainda que

não seja totalmente arbitrário, ao menos não nos autoriza a querer conhecer

imediatamente a realidade física. Da mesma forma que as lágrimas e o riso

significam a tristeza e a alegria, do mesmo modo que as palavras significam

algo determinado arbitrariamente pelos homens, assim também, afirma

Descartes, nossas sensações significam algo, mas não funcionam como cópia

do objeto que as causa. E, portanto, da relação causal existente entre objeto

exterior e sensação não podemos derivar a relação de semelhança entre

Page 63: Anaiais Encontro Filosofia Parana

César Augusto Battisti 62

ambos. Os dados que dispomos não nos permitem examinar nossas

percepções do ponto de vista da semelhança, mas no máximo do da

significação. As nossas sensações podem ser apenas signos das coisas

externas, sem representá-las a nós.

Em outras palavras, nós temos sensações, a sensação da luz, por

exemplo. E disso estamos certos. Porém, não podemos disso derivar

imediatamente o que seja o objeto físico luz.

Essa primeira etapa da análise cartesiana é de fundamental importância.

Ela desautoriza a utilização dos sentidos, por si mesmos, para a determinação

da natureza dos objetos físicos. Ela quebra a vinculação aceita acriticamente

entre a relação causal do objeto físico com a idéia que dele temos e a relação

de semelhança de nossas percepções com tais objetos.

Na verdade, essa primeira reflexão sobre as sensações nos conduz a

uma outra: a de que algo ocorre fora de nós, algo ocorre no mundo. Se há

sensações, há uma mobilização externa que nos afeta.

Mas o que Descartes entenderá por isso? O que devemos supor, como

mínimo necessário, para que qualquer alteração do mundo físico seja possível?

Responde o autor: "quanto a mim, que temo me enganar se supuser algo mais

que o que vejo aí (no mundo) dever existir necessariamente, me contento em

conceber o movimento de suas partes" (AT, XI, p. 7), o movimento das partes

da matéria.

E, aqui, a resposta do autor é clara: ele se contenta em supor a

existência do movimento no mundo e apenas isso. De sua parte, para

Descartes, se houver alguma alteração de determinada configuração do

mundo, isto é, se houver algum fenômeno físico, é suficiente pressupor que

haja alguma espécie de movimento dos objetos físicos. Diz ele: "considero que

isso sozinho poderá provocar-lhe todas as mesmas mudanças que se observa"

(AT, XI, p. 7) em determinado fenômeno. Mas, se não houvesse movimento,

não poderia haver fenômeno físico algum e, portanto, jamais poderíamos ter

sensação algumas, pois a sensação é resultado de uma modificação em

nossos sentidos provocada por uma alteração na configuração do mundo físico

(AT, XI, p. 21-22).

Page 64: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A natureza do mecanicismo cartesiano 63

Em outras palavras, o único pressuposto absolutamente necessário para

que um determinado fenômeno ocorra é que haja alguma alteração de

determinada configuração no mundo físico, isto é, que haja movimento. A

existência de movimento é o pressuposto fundamental para a ocorrência de

qualquer fenômeno físico. Se admitirmos qualquer tipo de mudança ou

alteração no mundo físico, temos de admitir o movimento; por outro lado, se

não admitimos o movimento, não podemos falar em física ou em mundo físico.

E isso um filósofo da tradição aristotélica também aceitaria, sem problemas,

com a diferença de que, para Descartes, o movimento não é mais um tipo de

mudança, dentre outras; é a mudança que se reduz ao movimento. E, assim, o

elemento mais básico constituinte de qualquer fenômeno físico é o movimento

da matéria, o seu deslocamento.

Pressupor o movimento é pressupor o movimento diferenciado entre as

partes da matéria, pois não há movimento se toda a matéria, todo o universo

físico, se mover em bloco para determinada direção: não há movimento se

existir apenas um corpo no universo e nada mais. Assim, há diferentes

movimentos no mundo e, para tal, a matéria precisa ser divisível, incorporar

esses movimentos diferentes. Portanto, para que haja qualquer fenômeno

físico, é necessário que haja no mínimo mais de um movimento e, portanto,

divisibilidade da matéria. Mas, se houver mais de um movimento, haverá na

verdade inúmeros, em razão do choque entre as duas grandes partes do

universo (que, no mínimo, deve haver), cujo resultado é a fragmentação da

matéria e a distribuição do movimento em escala cada vez maior.

Dessa forma, se examinarmos um fenômeno qualquer, como um pedaço

de madeira em chamas, quais são as condições mínimas que se deva admitir?

A resposta de Descartes é esta: que haja movimento de partículas. Com efeito,

se um fenômeno ocorrer na natureza – e nossas sensações, sem dizer em que

ele consiste, detectam a sua ocorrência –, é preciso que haja, no mínimo,

alguma movimentação de algo no mundo, algum movimento. Além disso, a

noção de movimento é muito simples e clara e consegue explicar várias

sensações, como o calor e a dor – e também a luz –, apenas pelo movimento

das partículas.

Page 65: Anaiais Encontro Filosofia Parana

César Augusto Battisti 64

Dito isso, Descartes pode concluir que "há um meio de explicar a causa

de todas as mudanças que acontecem no mundo e de todas as variedades que

aparecem sobre a Terra" (AT, XI, p. 12). A tese exposta acima contém

potencialmente, portanto, toda a física; e, assim, da análise da sensação da luz

emerge aos poucos as principais teses do mecanicismo cartesiano.

A título de exemplo, podemos apresentar algumas delas, como a tese da

inexistência do vazio e a da existência de três diferentes tipos de partículas ou

de aglomerações mínimas de matéria, das quais outras são concebidas quase

que imediatamente, como a da identidade entre matéria e extensão.

Quanto à questão do vazio, Descartes não apresenta aqui o seu

argumento mais forte sobre a sua inexistência, como fará nos Princípios (Parte

II, art. 16): o de que o vazio é um conceito contraditório, uma vez que é uma

coisa (substância) que não é nada e que não tem propriedades. Logo, não

pode existir. No Mundo, o autor se centra mais no problema da origem do

conceito. O vazio é um conceito oriundo do uso indevido dos sentidos: como

muitas vezes não sentimos nada, pensamos que não há nada. Mas os sentidos

só servem para detectar algo, se este algo se manifestar, isto é, se houver uma

alteração externa. Da mesma forma que o ar estático não pode ser detectado,

assim também não sentimos o peso de nosso corpo ou de nossas roupas.

Desse modo, nasce a noção de vazio, novamente sob a pressuposição da

relação de semelhança entre o que sentimos e os objetos externos. Conclui-se

disso que o vazio é um conceito infundado e, como tal, não há razão para

estipular a sua existência.

Admitida a inexistência do vazio, é preciso explicar como o movimento

pode ocorrer sem que surja entre as partículas um espaço sem partículas.

Como o movimento não necessita de pequenos espaços vazios para ocorrer?

A explicação cartesiana – que anuncia a famosa teoria dos turbilhões –

consiste na distinção entre a tendência retilínea de cada corpo e seu

movimento real circular, de modo que, ainda que toda partícula tenda a

percorrer o movimento mais simples (o reto) e ter, portanto, por si mesma, um

comportamento inercial, na realidade, seu movimento real é sempre circular; e

isso evita a necessidade do vazio, a exemplo do que ocorre com peixes que

Page 66: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A natureza do mecanicismo cartesiano 65

nadam em um tanque sem que provoquem um espaço sem água (vazio) ao se

deslocarem dentro dela.

A tese da existência dos três tipos de partículas está ligada ao que

acaba de ser dito. Por um lado, Descartes descreve como os três tipos

surgiram imediatamente do choque entre os blocos de matéria inicialmente

existentes, de onde surgiram três tipos de corpos no universo: o Sol e as

estrelas, de onde provém a luz; os céus, que a transmitem; os planetas e os

cometas, que são opacos. Por outro lado, os três tipos de partículas dão conta

do movimento sem a necessidade do vazio. Essas partículas não são átomos,

mas formas mínimas de agregação da matéria sempre passíveis de divisão.

E, finalmente, uma vez tudo isso exposto, não resta senão concluir pela

identidade entre matéria e extensão. Não havendo vazio e não podendo a

matéria se comprimir ou se rarefazer (para formar corpos mais sólidos e mais

líquidos, uma vez que o que determina um corpo ser duro ou líquido é a

diferença de movimento existente entre as suas partes componentes), não há

espaço que não seja material e, portanto, não há diferença entre extensão e

matéria.

Estas são algumas características da física cartesiana. E, mais uma vez,

na análise da sensibilidade, na sua crítica e ultrapassagem, Descartes

descobre o universo mecânico-geométrico que tanto marcou o período

moderno e o firmou certamente como o maior representante do que Paolo

Rossi chamou de uma "filosofia mecânica".

Bibliografia

DESCARTES, René. Oeuvres. Publicadas por Charles Adam e PaulTannery. Paris: Vrin, 1996. 11 vol.

KEPLER, J. Les fundaments de l’optique moderne: Paralipomènes àVitellion. Tradução de Catherine Chevalley. Paris: Vrin, 1980.

ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru,SP: EDUSC, 2001.

Page 67: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As origens da Óptica de Kepler

Claudemir RoqueTossatoPós-doutorando em filosofia/USP

Resumo: O texto a seguir, “A óptica de Kepler: o funcionamento do olhohumano no ato da visão – Primeira parte: a situação da óptica no final doséculo XVI” forma, junto com a segunda parte “O modo pelo qual se faz avisão”, uma reconstrução da principal contribuição de Kepler para a ciênciaóptica, a saber, o seu tratamento acerca do funcionamento do olho humanosemelhante a um artefato mecânico, a câmara escura, obtendo, comoprincipal resultado, que a visão se forma na retina. Considerar o olho comoum artefato mecânico permitiu a Kepler fundamentar a óptica geométrica,demarcando o campo de atuação da óptica.

PALAVRAS-CHAVE: Óptica. Visão. Câmara escura. Kepler.

No prefácio à sua primeira obra sobre óptica, Ad Vitelionem

paralipomena, quibus astronomiae pars optica traditur, a qual pode ser

traduzida para a nossa língua como Suplementos a Vitélio, nos quais a parte

óptica da astronomia é ensinada, escrita durante o ano de 1603 e editada no

início de 1604, Kepler esboça uma pequena estrutura da ciência astronômica.

Esta estrutura é composta basicamente por quatro partes, que são: 1) teórica,

2) prática, 3) óptica e 4) física. As duas primeiras são as mais importantes para

a astronomia, pois “a primeira consiste na pesquisa e estudo da forma dos

movimentos e revela, sobretudo, o exame filosófico; a segunda, depende da

primeira e investe no reparo das posições dos astros para qualquer movimento,

satisfazendo a prática ao dar os fundamentos da arte de prognosticar” (Kepler,

1980, p. 99). À primeira parte cabe a utilização da geometria, pois podemos

deduzir a partir de primeiros princípios os fenômenos celestes, mais

especificamente, os movimentos planetários; quanto à parte prática, a

aritmética serve como linguagem condutora para a elaboração de tabelas e

auxilia tanto o prognóstico quanto a revisão dos movimentos coligidos. A quarta

parte, a parte física da astronomia, reserva-se ao estudo das causas

(eficientes, materiais ou formais) envolvido na explicação dos movimentos

planetários. Enfim, quanto à terceira parte, acerca da utilização da ciência

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 68: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As origens da Óptica de Kepler 67

óptica, diz Kepler:

Finalmente, porque toda observação do céu se faz por meio da luz ou da sombra,pois os meios entre as estrelas e os olhos são afetados diferentemente, e porqueobservamos nos céus movimentos – a retrogradação, as estações etc. – e tambémos arcos, isto é, os ângulos dados à visão, e os corpos luminosos, e como tudo istoestá ligado às considerações da ciência óptica, a terceira parte da astronomia queapresentamos aqui é a óptica (Kepler, 1980, p. 100).

A óptica é entendida por Kepler como a ciência da luz e da visão. Ela é

uma ciência necessária para entender a problemática envolvida nos

movimentos planetários. A óptica não estipula teses explicativas para a

astronomia (pois isto cabe à parte física), nem elabora tabelas dos movimentos

(função exercida pela parte prática) e nem trata dos princípios metafísicos, ou

dos valores cognitivos, necessários para a construção de uma teoria

astronômica (tratados pela parte teórica). A função da óptica está justamente

no entendimento da relação objeto-sujeito mediado pelo meio que os separa,

quando o sujeito observa (vê) esse objeto. Se observarmos um planeta ou uma

estrela quaisquer, veremos uma imagem do mesmo, mas não ele próprio; esta

imagem será o resultado da ação da luz, que é emitida ou refletida pelo objeto,

sendo alterada (refratada) pelo meio até chegar ao olho do sujeito; este sujeito,

finalmente, perceberá essa ação de acordo com as suas faculdades cognitivas

(sensação, imaginação, entendimento etc.) e representará o objeto real. Dessa

maneira, a óptica torna-se uma ciência fundamental para que as observações

astronômicas obtenham um grau suficientemente seguro e confiável. Ligada à

parte prática da astronomia, mas não subordinada à ela, a óptica é um dos

alicerces da astronomia, necessária para fundamentar as observações e

determinar, a partir dessas, bases seguras para a construção do edifício

astronômico, provendo as condições necessárias para a elaboração de

descrições e de explicações acerca dos fenômenos celestes.

Essa estrutura kepleriana da ciência astronômica em quatro partes não é

fortuita. Para podermos entendê-la, devemos remeter a uma analogia que o

próprio Kepler utilizou para expressá-la. Ele considera a construção da ciência

astronômica semelhante à construção de uma casa (Kepler, 1980, p. 100–1).

Uma casa, para ser bem construída, deve satisfazer dois pontos básicos: por

um lado, ser funcional e, por outro, conter linhas de beleza e harmonia; os

Page 69: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Claudemir RoqueTossato 68

quartos, a cozinha, a sala, enfim, todos os compartimentos devem ser práticos,

funcionais, mas também unidos, correlacionados, de um modo harmônico que

expressem uma espécie de conforto, bem estar, beleza e satisfação. Um

possível morador dessa casa deve sentir-se confortável, e isto representa que

qualquer parte da casa deve funcionar adequadamente e, também, ser

agradável – do que notamos que, para Kepler, uma casa e, por analogia, uma

teoria astronômica não devem apenas determinar bons resultados, isto é, ser

apenas uma casa prática ou uma teoria que forneça somente bons

posicionamentos dos planetas; além disso, elas devem conter “beleza e

harmonia”1. Tanto uma casa quanto uma teoria devem ser boas, funcionais,

mas também elegantes, que expressem, reciprocamente, segundo Kepler, a

beleza e a perfeição da construção e a beleza e a perfeição do mundo.

Mas beleza e harmonia junto com operacionalidade não completam a

construção de uma casa ou de uma teoria astronômica; deve haver união com

bons fundamentos entre esses conceitos. Para se obter uma casa prática,

confortável e bela, os fundamentos devem ser seguros, confiáveis e duráveis.

Se os fundamentos não são seguros, todo o edifício tende a ruir, causando

danos nos compartimentos internos da casa. Se uma teoria astronômica não

tem bons fundamentos, a analogia com a casa alerta, os prognósticos

apresentar-se-ão falhos em algum sentido. Deste modo, pensando em tal

analogia, os fundamentos de uma teoria astronômica dependem das teses

metafísicas admitidas (que no caso da astronomia kepleriana podemos

entender como as teses heliocêntricas), dos objetivos (que em Kepler são

causais, isto é, a determinação das causas dos movimentos planetários) e

práticos, quando temos boas observações que, juntamente com a parte teórica,

determinarão bons prognósticos. Neste sentido, pode-se entender o papel da

1 Obviamente, uma teoria, assim como uma casa, não deve ser “bela e elegante” parasatisfazer apenas exigências estéticas. Os critérios de beleza e elegância significam, emKepler, compromissos com a verdade do cosmo, pois, segundo os critérios metafísicos deharmonia e de perfeição, Deus não desejou construir um universo deselegante, isto é, semrelações simétricas entre as suas partes, e nem feio, ou seja, um monstro em que suas partesnão têm relações entre si e com o todo. Sobre isso, é interessante consultar o prefácio ao Derevolutionibus, no qual Copérnico utiliza a imagem de monstro para denunciar a falta deunidade matemática dos modelos geocêntricos.

Page 70: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As origens da Óptica de Kepler 69

óptica: ela é uma ciência que vem auxiliar a parte prática da astronomia,

dando-lhe bons fundamentos para a construção bela e harmônica do mundo.

O interesse de Kepler pela óptica não é o de um cientista que trabalha

especificamente nesse campo, mas o de um estudioso que, interessado em

resolver problemas de uma outra ciência, a astronomia, procura na óptica

recursos para melhorá-la. Os estudos ópticos feitos por Kepler inserem-se

completamente na construção da sua teoria astronômica, mais

especificamente, na obtenção de dados mais seguros para os seus estudos

sobre os movimentos planetários.

Porém, um ponto que deve ser considerado é que, para Kepler, apesar

da óptica ser necessária para a astronomia, ela é uma ciência autônoma, isto

é, ela não é simplesmente uma parte da astronomia, voltada unicamente para

determinar bons resultados acerca das observações astronômicas, mas uma

ciência que contém o seu campo próprio de atuação e seus objetos próprios de

pesquisa.

Tendo-se isso em vista, pode-se afirmar que Kepler foi importante para a

história da óptica pelo estudo de três aspectos básicos, que podem ser

apreciados segundo as suas próprias palavras:

Pode-se considerar na astronomia óptica tanto os objetos próprios que seapresentam à visão, e dos quais pode-se examinar as espécies, isto é, a luz e assombras, quanto o meio que a luz atravessa contendo suas espécies e que é a causada luz nos parecer refratada, quanto também, enfim, o instrumento da visão, o olho(Kepler, 1980, p. 101).

O primeiro aspecto é o estudo da natureza da luz e das sombras que se

apresentam à visão. O segundo é o estudo da refração e das suas causas. O

terceiro é o estudo do funcionamento do olho humano enquanto instrumento

que forma imagens do objeto visto. Mas o que se apresenta como mais

importante nos trabalhos ópticos keplerianos é a ordem lógica de estudos. Para

conhecer como se forma a refração dos objetos e a natureza da luz é

necessário, antes, conhecer como se forma a imagem dos objetos na visão,

isto é, o estudo sobre o funcionamento do olho humano antecede os estudos

acerca da refração e da natureza da luz. Neste sentido, as pesquisas

conduzidas nos Paralipomena antecedem não apenas cronologicamente a

Dioptrice, de 1611, mas também os temas tratados. O estudo de como se

Page 71: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Claudemir RoqueTossato 70

origina a visão torna-se condição necessária para o estudo da refração. Assim,

nossa principal preocupação neste texto é a função, segundo Kepler, do olho

humano no ato de ver, seu funcionamento e função.

Os primeiros interesses de Kepler pela óptica2 deram-se quando da

ocorrência de um eclipse solar em 30 de junho de 1600. Sobre tal eclipse,

Kepler ficou intrigado com o seguinte problema: o que leva o diâmetro da Lua

diminuir quando da ocorrência de um eclipse solar, quando medido à mesma

distância durante a Lua cheia? Em outros termos, por que o diâmetro da Lua

diminui quando ela passa frente ao Sol, quando há uma conjunção, e, quando

estão em oposição, o seu diâmetro é maior? Esse fenômeno abalou os

astrônomos da época, tanto que Brahe mediu tal diminuição, utilizando-se de

uma câmara escura, e a estipulou em 1/50 partes. Para explicar esse

fenômeno, Brahe assegurou que a Lua sofre uma dilatação periódica, e que,

quando ela passa pelo Sol durante um eclipse, isso se mostra mais claro para

um observador localizado na Terra. Kepler não se satisfez com essa explicação

de caráter físico de Brahe, e a negou (cf. Kepler, 1980, p. 152). Portanto, uma

nova explicação deveria ser obtida. Mas para se chegar a uma tal explicação,

mostrava-se necessário, segundo Kepler, reformular o conjunto explicativo

formulado pelas teorias ópticas do final do século XVI, pois essas eram

inadequadas, algo a que Kepler se propôs. O resultado foi os Paralipomena a

Vitelio. Na verdade, os Paralipomena não foram o projeto inicial de Kepler, sua

ambição era maior, a de elaborar uma obra chamada “Hiparcus”, que conteria

as suas pesquisas sobre óptica aliadas à astronomia, mas que, contudo, não

se realizou plenamente. O resultado foi menor, que é aquele contido nos

Paralipomena.

As obras completas de Kepler, infelizmente, não contêm uma

monografia escrita por Kepler em 1600, na qual são relatados os primeiros

estudos keplerianos sobre óptica. Mas, por outro lado, tal monografia foi

2 Acerca das origens das preocupações keplerianas sobre óptica, conferir Chevalley (1980, p.11- 23) e Caspar (1959, p. 142 –6). Estas duas obras, em especial a primeira, apresentaminformações relevantes sobre como Kepler veio a se interessar pela óptica.

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As origens da Óptica de Kepler 71

descoberta na cidade de Leningrado3 e tornada pública pelo pesquisador Frans

Hammer. Esse manuscrito mostra as dúvidas que Kepler passou quando da

ocorrência do eclipse solar de 1600. Intrigado pela, como dissemos, diminuição

aparente do diâmetro da Lua, quando observado numa câmara escura durante

a ocorrência do eclipse, Kepler procurou construir um instrumento de medição

astronômica voltado para obter uma melhor definição, tal instrumento é descrito

por Hammer do seguinte modo:

A peça central era um eixo pivô ao redor de um ponto fixo, no azimute, no pontomáximo de sua altura. Sobre esse eixo, encontram-se discos fixadosperpendicularmente, com uma distância determinada um do outro, o mais alto tendouma abertura circular, enquanto que o mais baixo serve como placa. Se se volta oeixo em direção ao Sol, então a luz tomba circularmente sobre a abertura e a placa.Os movimentos do eixo, o diâmetro da imagem e as grandes características doeclipse são facilmente medidos por essas disposições especiais (Hammer apudChevallier, 1980, p. 16).

Esse instrumento criado por Kepler procurou diminuir um pouco as

aberrações das imagens provindas pelo uso da câmara escura. Esta criava

uma imagem dos cantos do Sol, da sua circunferência, enfraquecida e

arredondada, comparada à observação direta do Sol; assim, o instrumento

descrito acima procurava diminuir essas aberrações, permitindo uma melhor

medição do diâmetro do Sol e da Lua durante os eclipses.

Porém, Kepler não obteve dados satisfatórios quando da utilização do

seu invento. Mas, em contrapartida, esse instrumento o levou a questionar as

bases teóricas da óptica de sua época. A sua inquietação deu-se quando ele

comparou a figura formada na placa do instrumento com a imagem formada

quando se observa diretamente o céu (a olho nu), isto é, quando se observa o

fenômeno real; dessa comparação, Kepler notou que a superfície iluminada da

imagem formada na placa é distorcida e proporcionalmente maior que a

imagem real (cf. Chevallier, 1980, p. 16–17). Dessa comparação, Kepler

construiu 17 proposições (contidas também no manuscrito de Pulkovo), que

formaram a base para os seus futuros desenvolvimentos da óptica contidos nos

Paralipomena. Não vamos reproduzi-los aqui, pois essas proposições tratam

33 Esses manuscritos keplerianos foram comprados pela Czarina Catarina II, em 1773, eficaram guardados na cidade de Leningrado, a partir dessa época. Esses manuscritos ficaramconhecidos como “manuscritos de Pulkovo”.

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Claudemir RoqueTossato 72

diretamente da refração e da natureza da luz, enquanto que o nosso tema

primário neste texto é a função do olho no ato de ver. Mas isso nos conduz

para as preocupações básicas de Kepler sobre os fenômenos ópticos. O

fenômeno da diminuição do disco lunar durante um eclipse não pareceu a

Kepler um problema físico, ou eminentemente astronômico, mas um problema

óptico, pois essa diminuição lhe pareceu um problema causado não pela

diminuição real do disco lunar, mas pelo modo que o olho humano capta esse

fenômeno, isto é, um problema relativo ao funcionamento do olho humano

quando observa o eclipse.

Kepler apontou dois conjuntos básicos de problemas da ciência óptica

de sua época que deveriam ser reformulados. O primeiro refere-se à refração.

O segundo é que “se produz na visão um certo engano, que nasce em parte do

procedimento de observação” e que “a ocasião desse erro da visão deve ser,

portanto, pesquisado, e isso pela confirmação das funções próprias do olho”

(Kepler, 1980, p. 303). Os erros concentravam-se na falta de uma delimitação

do escopo da óptica e o que se devia entender como “visão”; esta é um

processo anatômico e fisiológico, ou é um processo psicológico (isto é, um

processo no qual o erro se dá pelo julgamento do que se vê, e não

propriamente da imagem formada no olho)? Além disso, perguntou Kepler,

como aplicar a geometria nesses estudos e determinar o grau de erro da

visão? A reformulação da óptica pretendida por Kepler passa diretamente pela

delimitação do campo de estudo dessa ciência.

O problema de Kepler foi, portanto, reformular a ciência da óptica de sua

época e, para tanto, inicialmente, entender como o olho humano funciona,

como ele produz a visão. Isso conduz diretamente para a situação dessa

ciência no final do século XVI e início do século XVII, seja em relação às

concepções filosóficas, anatômicas e geométricas em voga, seja em relação

aos problemas específicos que ela tinha.

Bibliografia

CASPAR, M., 1959, Kepler, New York, Dover Publications.

CHEVALLEY, C., 1980, Introdução a Les fundaments de l’optiquemoderne: paralipomènes à Vitellion, Vrin, Paris, p. 1 – 85.

Page 74: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As origens da Óptica de Kepler 73

KEPLER. J., 1980, Les fundaments de l’optique moderne:Paralipomènes à Vitellion, tradução de Catherine Chevalley, Vrin,Paris.

Page 75: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista doséc. XVIII

Eduardo Salles O. BarraDepartamento de Filosofia/UFPR

Resumo: Reconstrução histórica e conceitual das doutrinas ontológicas eepistemológicas acerca da aplicabilidade da matemática ao mundo empíricono período pós-mecanicista, ao longo do séc. XVIII, notadamente nas obrasde Leibniz, Berkeley, Hume e Kant. O mecanicismo galileu-cartesiano haviasustentado a aplicabilidade da matemática na identidade substancial entrematéria e extensão, admitindo largamente que o modelo geométricoeuclidiano seria suficiente para descrever a natureza intrínseca dos objetose mecanismos naturais. A pesquisa propõe-se a investigar o quãodeterminante foram as divergências daqueles autores com os padrõesexplicativos mecanicistas para que recusassem a sua explicação particularda aplicação da matemática. A hipótese é que um papel mais decisivo foidesempenhado pela revisão das próprias práticas matemáticas, queincorporam progressivamente considerações sobre ordens de grandezainfinitesimais e refinaram a compreensão do contínuo matemático. Se assimo for, a repercussão do surgimento do cálculo infinitesimal poderia ter sidotão importante para as revisões da filosofia mecanicista empreendidas porLeibniz, Berkeley, Hume e Kant quanto o foram os seus respectivosdiagnósticos negativos sobre os méritos propriamente metafísicos daidentidade entre matéria e extensão.

Palavras-Chave: mecanicismo; aplicabilidade da matemática; cálculoinfinitesimal.

A ciência moderna surgiu da certeza de que "o mundo está escrito em

linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras

figuras geométricas."1 A máxima de Galileu, que orientou sua revolucionária

reconstrução da ciência mecânica, encontrou sólida fundamentação metafísica

na identidade entre matéria e extensão sustentada por Descartes.2 Desde que

a natureza comporte somente entidades materiais, suas únicas qualidades

seriam aquelas suscetíveis ao tratamento matemático.3 Nisso consistiu a

filosofia do mecanicismo, que proporcionou às então recentes conquistas da

revolução científica do séc. XVII a sustentação metafísica e epistemológica

aguardada desde a ruína do aristotelismo escolástico.

1 Galileu, Il Sagiotore (1623), citado por Blay (1998:1).2 Descartes (1989, Parte I, Arts. 8 e 53).3 Descartes (1989, Parte IV, Art. 187).

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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Ao contrário do que normalmente se costuma supor, e apesar de inspirar

e promover todas as mais importantes conquistas científicas que se seguiram à

era de Galileu e Descartes, a certeza sobre a aplicabilidade da matemática aos

problemas da ciência da natureza declinou fortemente nas primeiras décadas

do séc. XVIII. A razão mais aparente para esse declínio foi, provavelmente, a

crescente vaga de críticas metafísicas ao mecanicismo, ao qual o uso

generalizado das matemáticas na ciência da natureza passara a ser

freqüentemente associado – embora, bem entendido, os vínculos entre

mecanicismo e matemática fossem contingenciais e eletivos, de tal modo que o

emprego da última não acarretam formalmente compromissos filosóficos com o

primeiro.4 As várias tentativas de formular alternativas ao sistema metafísico

cartesiano tiveram que se confrontar com o mesmo problema: como tornar

inteligível o sucesso explicativo obtido pela aplicação da matemática aos

problemas da ciência da natureza? Se o mundo e, consequentemente, a

matéria fossem algo mais que simplesmente extensão geometricamente

definida, ele ainda assim poderia ser considerado suscetível a uma genuína

descrição numa linguagem matemática?

Antigas questões sobre o conhecimento, a linguagem e a ontologia dos

objetos e propriedades naturais foram repostas à luz das diferentes tentativas

de solucionar esse problema. Para fins desta pesquisa, serão destacadas as

contribuições de Berkeley, Hume, Leibniz e Kant. Os dois primeiros – notáveis

representantes do empirismo britânico do séc. XVIII – aderiram a um certo

nominalismo lingüístico, para o qual nenhum termo geral ou abstrato (cujos

exemplos incluem os termos que nomeiam objetos matemáticas) denota

propriamente senão meros indivíduos.5 'Triângulo', por exemplo, não é o nome

de qualquer objeto, pois o que existe e merece esse nome é um triângulo ou

obtuso ou escaleno ou isósceles.6 Berkeley e Hume são particularmente

críticos da doutrina do abstracionismo matemático, recusando-se a admitir que

os termos gerais ou abstratos refiram-se a genuínas entidades reais ou

mentais, resultantes da abstração das características comuns a determinados

4 Ver, por exemplo, Leibniz (1979:171) e Kant (1985b:533).5 Cf. Berkeley (1989, Introd. §§ 11 e 18) e Hume (1978:17).6 Cf. Berkeley (1989, Introd. §§ 13 e 16).

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indivíduos. Ao contrário, eles defendem que pontos matemáticos, por exemplo,

são necessariamente entidades espaciais e, como tais, dotadas de todas as

propriedades indispensáveis a qualquer entidade fenomênica (extensão e

impenetrabilidade).7 Se a matemática tem qualquer aplicação aos fenômenos,

ela deve ter a sua origem e fundamento nos próprios fenômenos. Não deve

haver distinção real entre os fundamentos e o uso das matemáticas.

Entre as conseqüências do nominalismo berkeley-humeano está o

profundo ceticismo acerca do papel desempenhado pelos raciocínios

matemáticos e apriorísticos na obtenção e justificação de explicações acerca

dos mecanismos e relações entre objetos do mundo real. Berkeley entendeu

que os "princípios matemáticos" (como aqueles que fundamentam a ciência

newtoniana) jamais poderiam ser considerados explicações verdadeiras do

mundo real e fenomênico. O fenomenalismo berkeleyano foi imediatamente

recebido como uma defesa radical do anti-realismo científico.8 Hume manteve

o mesmo ceticismo a respeito do papel desempenhado pelas evidências

demonstrativas e intuitivas na ciência da natureza,9 embora proponha-se

também a investigar as fontes alternativas da necessidade que habitualmente

associamos às supostas regularidades das operações naturais.

Uma segunda linha de reação ao mecanicismo cartesiano foi articulada

por Leibniz e Kant. O primeiro articulou uma versão particular do

abstracionismo matemático. A metafísica leibniziana incorpora três níveis de

análise: monádico, fenomênico e ideal.10 As entidades matemáticas pertencem

essencialmente ao terceiro nível, cujos componentes resultam, via de regra, de

um processo de abstração do nível fenomênico anterior.11 Muito embora seja

apenas o processo inverso da abstração, a aplicação da matemática aos

fenômenos nunca seria suficiente para descrever todas as suas propriedades.

Os objetos fenomênicos estabelecem entre si determinadas relações dinâmicas

7 "[S]e a idéia de extensão realmente pode existir, como somos conscientes de que realmenteocorre, suas partes também devem existir; e, para isso, elas devem ser consideradas comocoloridas e tangíveis." (Hume, 1978:39)8 Cf. Newton-Smith (1985) e Buchdahl (1988:285).9 Cf. Hume (1998, §27).10 A sugestão de distinguir esses três níveis (metafísico, fenomênico e ideal) na metafísicaleibniziana do espaço e do tempo é de Hartz & Cover (1988:503-513).Cf. também Buchdahl(1988:407).

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(por exemplo, causa e efeito), cujos substratos ontológicos devem ser

buscados no nível mais fundamental (monádico) e, portanto, não são

explicáveis mediante o mesmo princípio que fundamenta os raciocínios

matemáticos – os primeiros são regidos pelo princípio de razão suficiente,

enquanto os últimos, pelo princípio de identidade.12

Kant herda da metafísica leibniziana a concepção de um mundo

tripartido, composto de númenos, fenômenos e entidades matemáticas. Mas o

idealismo transcendental kantiano, na medida em que considera o mundo a

partir das condições da sua representação, procura determinar as formas pelas

quais a mente humana possa transitar legitimamente de um nível ao outro.

Entidades puramente mentais, como são as entidades matemáticas, não

podem ser representadas como reais (ou, no vocabulário kantiano, como

dotadas de realidade objetiva), a menos que sejam aplicáveis aos fenômenos –

algo que Kant considerava possível de ser demonstrado a priori, mediante

aquilo que chamou de "construção na intuição pura".13 Por outro lado, tudo o

que puder ser considerado como pertencente aos fenômenos tomados

individualmente deve ser suscetível de uma descrição matemática. Toda

intuição empírica é acima de tudo uma determinação empírica do conceito a

priori de quantidade.14 Portanto, para Kant, podemos admitir que as

proposições matemáticas sejam dotadas de significado, verdade e objetividade,

sem que isso acarrete qualquer revisão da crença no seu caráter a priori.

Conhecimento apriorístico e fenomênico não se opõem, antes se

complementam.

Mas Kant estava longe de corroborar integralmente a máxima galileana

de que "o mundo está escrito em linguagem matemática." Além dos fenômenos

tomados individualmente, o mundo é composto das suas relações mútuas.

Nem os raciocínios matemáticos nem qualquer outra fonte de evidência

apriorística seriam suficientes para revelar os mecanismos pelos quais os

11 Cf. Leibniz (1979:201-2003).12 Cf. Leibniz (1979:176, 193-194).13 Cf., por exemplo, Kant (1989, A223/B271).14 "todos os objetos exteriores do mundo sensível devem necessariamente coincidir de modopreciso com as proposições da geometria, porque a sensibilidade, graças à sua forma de

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fenômenos são interrelacionados.15 Tampouco, na avaliação de Kant, a

estrutura inteligível do mundo é transparente a uma mente que se mova

exclusivamente por intermédio de raciocínios apriorísticos. A experiência – e

somente ela – pode nos informar acerca do real "encadeamento dos

fenômenos". Mas a experiência também deve cumprir algo que, em princípio,

deveria ser possível de obter pelo método transcendental de construção na

intuição pura. Trata-se fundamentação metafísica dos esquemas empíricos dos

conceitos a priori constitutivos dos aspectos qualitativos dos fenômenos:

realidade, negação e limitação. Os esquemas empíricos desses conceitos são

as "forças essenciais da matéria", justamente aquelas que, na física

newtoniana, ocupam um lugar central na explicação dos fenômenos do

movimentos naturais: as forças de atração e repulsão.16 A solução que Kant

apresenta para tornar metafisicamente aceitável o emprego de tais conceitos

na ciência da natureza é a conversão do conceito de "forças essenciais da

matéria" na idéia de "forças fundamentais da natureza".17 E, uma vez que as

idéias da razão têm função exclusivamente regulativa – admiti-las como

constitutivas seria justamente sucumbir à "ilusão transcendental", o erro crasso

das metafísicas tradicionais –, amplia-se a distância entre a ontologia da

natureza e a ontologia dos objetos matemáticos, a ponto de tornar

irreconciliável as nossas condições para as suas respectivas cognições.

Foram, portanto, muitos os modos como os filósofos do séc. XVIII

recusaram-se a dar o seu assentimento aos pressupostos metafísicos e

epistemológicos do mecanicismo herdado do século anterior. No entanto, a

intuição externa (o espaço), de que o geômetra se ocupa, torna possível aqueles objetosenquanto simples fenômenos." (Kant, 1988, §13; cf. também Kant, 1989, A165-166/B206)15 Para isso os princípios matemático-transcendentais (particularmente, os Axiomas daIntuição, referido na nota anterior) são insuficientes, e serão necessários também os princípiosdinâmico-transcendentais, particularmente as Analogias da Experiência, que "nada mais são doque princípios da determinação da existência dos fenômenos no tempo." (Kant, 1989,A215/B262)16 Na medida em que a inteligibilidade a priori das forças essenciais da matéria possui limitesintransponíveis, estabelecidos a priori e necessariamente, elas deverão ser consideradasgenuínas "forças fundamentais", isto é, conceitos que já não se pode derivar de nenhum outroe cuja possibilidade "jamais se pode discernir." (Kant, 1985b:524) A incompreensibilidadeintrínseca das forças essenciais da matéria está dada pelo seu próprio modo de representaçãocomo esquematizações dos conceitos transcendentais de qualidade (realidade, negação elimitação).17 Cf. Kant (1989, A206-207/B252; A648/B676;A650/B678 e A648/B676)

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dificuldade comum a todos eles foi encontrar uma explicação alternativa para o

fato da aplicabilidade da matemática ao mundo. Isso apenas parecia ser

possível se envolvesse uma restrição problemática do estatuto cognitivo e

ontológico da matemática, que comprometeria ora o seu caráter apriorístico –

e, consequentemente, a necessidade que se confere às suas conclusões – ora

a sua própria aplicabilidade. A conseqüência mais imediata dessa atitude foi o

abandono das antigas convicções galileu-cartesianas de que a real natureza

das coisas pudesse ser descrita e compreendida mediante princípios e

raciocínios geométricos. Nas suas interpretações mais extremadas, as

soluções empirista berkeley-humeana (a matemática é ontologicamente

vácua), abstracionista leibniziana (a matemática é uma mera idealização de

relações ou propriedades fenomênicas) e transcendental kantiana (a

matemática contém apenas os esquemas transcendentais do nosso modo de

representar empiricamente os aspectos quantitativos dos objetos) parecem

conformar-se às interpretações formalistas ou instrumentalistas da matemática,

que a atribuem a tarefa de apenas construir sistemas coerentes de axiomas,

princípios e conceitos a partir dos quais se retiram conclusões a serem

confrontadas com a experiência.18 A crítica metafísica ao mecanicismo

cartesiano parece responder satisfatoriamente à pergunta pelas razões que

levaram a um abandono tão radical do legado galileu-cartesiano. Contudo, a

hipótese desta pesquisa é que uma segunda e, talvez, mais decisiva razão

deve ser acomodada à resposta anterior. Trata-se de uma mudança ocorrida

nos próprios métodos matemáticos empregados pelos cientistas ativos na

investigação da natureza. Refiro-me ao cálculo infinitesimal, cujo surgimento

provocou o abandono progressivo dos métodos construtivos, geométricos e

mecânicos inspirados no modelo geométrico euclideano e sua substituição por

métodos algébricos, sujeitos a um procedimento regular e uniforme.

Com efeito, as questões que conduziram à progressiva substituição do

modelo geométrico do século XVII, em particular no seu caso de aplicação

mais fundamental, qual seja, a geometrização do movimento, surgiram de

18 Cf. Steiner (1992).

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dificuldades extremas que remontam aos paradoxos que Zenão de Eléia

enunciara há mais de dois milênios: em que consiste o começo e o final do

movimento? Como eles podem ser explicados geometricamente? Como a

continuidade do movimento pode ser apreendida? O movimento é realmente

contínuo ou, ao contrário, é uma combinação de movimento e repouso? Como

a soma de todas as velocidades (contidas no movimento) deve ser

compreendida? Todas essas questões tinham um ponto em comum: para

respondê-las, é imprescindível lidar com o infinito, seja na forma de séries ou

somas infinitas seja na forma de divisões infinitas – problemas surgidos ao

longo dos séculos e parcialmente obscurecidos durante do séc. XVII pela

ênfase no processo de geometrização na busca de uma ciência que

penetrasse a própria natureza das coisas. Em vista dos propósitos iniciais da

geometrização, as investigações sobre indivisíveis e a composição do

contínuo, além de impor incontornáveis dificuldades tipicamente matemáticas,

implicam um compromisso ou com a introdução do infinito no mundo ou com a

presença de um infinito intramundano, mas ambos essenciais para que aqueles

propósitos pudessem ser integralmente realizados. Como se poderia conceber

um infinito real, presente no mundo, quando é exatamente a concepção do

infinito que se supõe estar reservada ao Criador do mundo – quando o atributo

da infinitude está reservado somente a Deus, cuja natureza nunca chegamos a

compreender inteiramente?19

A finitude do pensamento humano, confrontada com a infinitude do

Criador, impede que o projeto de geometrização seja inteiramente realizado, na

medida em que se mostra impossível ao mesmo tempo ler e compreender o

infinito na natureza – e, portanto, apreender completamente a natureza das

coisas. O progressivo abandono da geometria euclideana e a emergência do

cálculo infinitesimal – sobretudo com a enorme repercussão dos trabalhos de

Newton (1999) e Leibniz (1995) – acarretam revisões dramáticas nas antigas

crenças mecanicistas sobre a identidade ontológica entre as entidades

matemáticas e objetos naturais e na transparência dos mecanismos naturais a

uma mente apta a dominar os métodos construtivos, geométricos e mecânicos

19 Cf. Descartes (1989, Parte I, Arts. 26 e 27).

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inspirados no modelo geométrico euclideano.20 O objetivo central desta

pesquisa é investigar a amplitude dessa revisão, em particular averiguar se ela

implicou, nas palavras de um importante comentador, "a renúncia de todas as

pretensões com respeito a propósitos ontológicos fundacionistas", de tal modo

que o projeto de matematização da natureza se tornou "somente um discurso

bem-construído" que, por "não falar mais sobre da realidade das coisas e se

desprender delas, poderia livremente empregar os procedimentos da geometria

infinitesimal e do cálculo integral e diferencial: porque esses procedimentos

desde então não eram mais do que métodos, técnicas, meros auxiliares do

cálculo e da investigação, cujo reflexo direto não se poderia mais pretender

encontrar na realidade."21

Em princípio, poder-se-ia perguntar se, ainda que interpretações como a

de Blay apreendam com precisão aquilo que pode ser considerado o consenso

pós-newtoniano sobre a atitude própria a cientistas naturais e matemáticos

ativos,22 também apreendem o que concomitantemente ocorreu na filosofia do

séc. XVIII após o aparecimento dos primeiros prodígios descritivos dos novos

métodos infinitesimais? Dito de outro modo: o problema da aplicabilidade da

matemática ao mundo, ainda que esvaziado dos seus apelos ao fundacionismo

e ao realismo típicos do platonismo matemático, deixou de oferecer material às

reflexões filosóficas no campo da ontologia e da epistemologia, reduzindo-se a

uma questão pragmática da investigação dos eventos naturais? Esta pesquisa

pretende reconstruir as análises que autores como Berkeley, Hume, Leibniz e

Kant dedicaram a esse problema. Pergunta-se ainda se mesmo a

despretensiosa posição nominalista de Berkeley e Hume com respeito ao

estatuto ontológico das entidades matemáticas não deveria ser acomodada à

preocupação de seus contemporâneos (entre eles, evidentemente, Leibniz e

Kant) de tornar inteligível o modo como os raciocínios matemáticos se ajustam

às inferências a partir da experiência. As questões emergidas com surgimento

do cálculo infinitesimal poderão sugerir um roteiro talvez ainda pouco

20 Em particular, esse fato parece desempenhar um papel central no tipo de argumentação queconduziu Kant a concluir a não-construtibilidade numa intuição pura das grandezas intensivas(ou qualidades) da matéria (cf. Kant, 1989, A 170/B 211-212; Barra, 2000:225-266).21 Blay (1998:10). Cf. também Urbaneja (1992:36) e Duhem (1981, p.44).

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explorado, tanto por historiadores da filosofia quanto por historiadores da

matemática, para reconstruir as conversações reais ou imaginárias que esses

personagens mantiveram entre si e esclarecer o significado das diferentes

posições que assumiram diante do problema anterior.

Por fim, duas últimas observações sobre o alcance dos resultados desta

pesquisa. Em primeiro lugar, é importante notar que o problema dos limites e

das condições da aplicabilidade da matemática continua a ser ainda hoje uma

questão epistemológica e ontológica da maior relevância, e ocupa um lugar de

destaque em várias das principais filosofias da matemática contemporâneas.23

Sendo assim, espera-se que os resultados desta pesquisa possam auxiliar no

esclarecimento dos antecedentes históricos do problema, o que poderá

favorecer uma melhor avaliação das soluções e das discussões atualmente em

curso. Em segundo lugar, a orientação geral desta pesquisa coincide com o

princípio meta-filosófico de que as análises metafísicas e epistemológicas são

– ou, numa versão normativa, deveriam ser – estruturadas pelas crenças

substantivas sobre o mundo e sobre os melhores meios de que dispomos para

conhecê-lo. No campo específico da epistemologia, essa tese ficou conhecida

como "epistemologia naturalizada" ou naturalismo epistemológico, que

normalmente privilegia as crenças científicas como instâncias estruturadoras

das análises epistemológicas.24 Na medida em que aborda as revisões das

explicações mecanicistas galileu-cartesianas para aplicabilidade da matemática

ao mundo a partir das inovações técnicas e conceituais introduzidas pelos

métodos algébricos do cálculo infinitesimal, esta pesquisa poderá fornecer uma

instância de avaliação da cogência e da eficácia interpretativa do naturalismo

epistemológico, num campo ainda muito pouco explorado, embora decisivo

para as suas pretensões sobre o caráter não-apriorista das análises

epistemológicas.

22 Para uma defesa dessa perspectiva, ver Cohen (1980:109 e 254-255)23 Ver, em particular, Steiner (1998), mas o mesmo tipo de preocupação pode ser tambémencontrada em Benacerraf & Putnam (1983), Hand (1993), Hodes (1990), Kitcher (1984),Parsons (1990), Resnik (1988), Shapiro (1983 e 1989) e Tymoczko (1991).24 Para a discussão dessa posição meta-epistemológica, ver, por exemplo, Bonjour (1994),Feldman (1999), Foley (1994), Goldman (1992), Kim (1988), Kitcher (1992), Kornblith (1994 e1999), Laudan (1996), Mafffie (1990), Quine (1969 e 1990) e Stich (1990).

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A história da arte como história da ciência: homenagem aPierre Francastel no seu centenário

José Carlos CifuentesDepartamento de Matemática e Programa de Pós-graduação em Educação/UFPR.

Leônia Gabardo NegrelliDoutoranda em Educação (Educação Matemática)/UFPR.

Marlene PerezDoutoranda em Educação (Educação Matemática)/UFPR.

Resumo: Neste artigo é esboçada uma linha de pesquisa que visafundamentar vários momentos da história e filosofia da ciência na história daarte, especialmente em relação ao problema da matematização danatureza. Foco principal desse estudo são as diversas concepções de“espaço” possíveis de serem identificadas em manifestações artísticas e emtrabalhos teóricos de dois momentos importantes no desenvolvimento daciência e seu correlato na arte: 1) o início do Quattrocento italiano, omomento da descoberta do espaço moderno pelo homem, onde o adventoda perspectiva linear, como técnica de representação do espaço, pode serconsiderada um antecedente, através da leitura de Alberti e Leonardo,dentre outros, da matematização da natureza mediante sua imitação pelaarte; e 2) a segunda metade do século XIX, o momento da descoberta dohomem no espaço, com o advento do impressionismo francês, antecedenteartístico de concepções de espaço a partir da subjetividade formuladas porPoincaré e Piaget na primeira metade do século XX. Para o estudo deambos os momentos será fundamental a análise crítica de PierreFrancastel.

Palavras-chave: Matematização da natureza; Concepções de espaço;Perspectiva linear; Renascimento italiano, Impressionismo francês.

Descobrir o espaço e descobrir-senele, representa para cada indivíduouma experiência a um só tempopessoal e universal (0strower 1983, p.30).

1 Introdução

Fayga Ostrower, na citação que inicia este artigo, levada do âmbito do

individual para o âmbito do social, sugere-nos dois grandes momentos na

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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José Carlos Cifuentes, Leônica Gabardo Negrelli, Marlene Perez 88

história da humanidade: o do descobrimento do espaço pelo homem e o da

percepção do homem como parte constituinte do espaço. Representativo do

primeiro momento será considerado, neste artigo, o início do Quattrocento

italiano com o advento da perspectiva como “técnica” de representação do

espaço, considerando-a um antecedente da matematização da natureza

através da sua imitação pela arte, em especial pela pintura; e o segundo, será

situado na segunda metade do século XIX e primeira do XX, em relação aos

estudos do matemático francês Henri Poincaré (1854-1912) e do filósofo e

biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) sobre a geometria e a psicofisiologia da

percepção espacial, considerando, o advento do impressionismo francês, como

um antecedente de suas concepções na arte.

Para Pierre Thuillier, “foi em Florença, no início do século XV (o

Quattrocento) que pintores e arquitetos formularam a primeira teorização da

perspectiva, teorização que teria mais tarde inúmeras repercussões sobre o

pensamento científico” (Thuillier, 1994, p. 57). Para Pierre Francastel, ao

Renascimento, com uma inabalável fé no poder da razão, interessava a

estabilidade, a objetividade, a permanência. De fato, a perspectiva imobiliza os

objetos salientando as suas relações de posição. No entanto, a representação

espacial moderna é representação baseada na análise de reflexos, é

representação psicofisiológica e não mais óptica como o foi no Renascimento

(Francastel, 1967, p. 48). Hoje interessa aos artistas o ritmo, a velocidade, as

deformações, a plasticidade, etc., o que estaria ligado a uma concepção de

espaço diferente, baseada nos movimentos e para a qual é mais importante a

dinâmica dos impulsos corporais, como observaram Poincaré e Piaget.

Nos estudos tradicionais de história e filosofia da ciência, o problema da

matematização da natureza é colocado como parte fundamental do processo

de racionalização da ciência, especialmente da física, a partir de Galileu e

Descartes no século XVI. Porém, pouco se tem reparado em seus

antecedentes renascentistas mais ligados à história da arte, especialmente em

relação à pintura. De fato, desde o século XV, e tal vez um pouco antes, há

uma mudança de mentalidade que envolve uma nova concepção de mundo

centrada no homem e que dá um papel de relevância à natureza. Alberti, no

século XV, concebe a natureza como o maior artista: ela trabalha nas suas

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A história da arte como história da ciência 89

construções com ferramentas ou princípios de ordem matemática (e também

estética) como harmonia, proporção, simetria (Blunt, 2001, p. 31-32).

Alberti trata de dar uma fundamentação científica à pintura (e à

arquitetura) no início de suas obras, no caso da pintura no Della Pittura de

1435, sendo essa forma de pensamento decorrente de seu humanismo

renascentista, pois considera a ciência como o melhor fruto da razão humana

no estudo da natureza. Como observa Thuillier (1994), Alberti e seus

contemporâneos, apesar da mudança de mentalidade já apontada, não podiam

se afastar totalmente de uma concepção teológica do mundo, na qual a luz,

fonte e fundamento da óptica e da perspectiva, foi a primeira criação divina,

como descrita na Bíblia. Segundo esse autor, “... esta geometrização do

espaço óptico, de acordo com uma longa tradição, tem um significado religioso.

No século XIII, vários teólogos afirmavam o caráter privilegiado da luz: por um

lado, ela é uma das mais puras criações de Deus, por outro, evoca a maneira

pela qual a Graça divina se propaga no mundo” (Thuillier, 1994, p. 65). E

acrescenta: “Analisar as linhas, os ângulos, as superfícies e os volumes, com o

auxílio de Euclides, é uma forma de perceber melhor como a sabedoria divina

se manifesta no mundo visível” (p. 70). Reparemos que “mundo visível” refere-

se ao mundo exterior.

Neste artigo é esboçada uma linha de pesquisa desenvolvida pelo

primeiro autor em colaboração com doutorandos do Curso de Pós-Graduação

em Educação da Universidade Federal do Paraná, mais precisamente da área

de Educação Matemática, e encaixa-se em um projeto mais amplo que visa

analisar as relações entre o racional e o sensível na matemática ao longo da

história.

Um dos focos desse estudo é o conceito de “espaço” tal como

apresentado em textos relevantes para a história e filosofia da ciência, e ele se

dá em duas vertentes:

a) as concepções de espaço possíveis de serem identificadas em

manifestações artísticas e, principalmente, em trabalhos teóricos do início

do Renascimento italiano como os de Filippo Brunelleschi, Leon Battista

Alberti, Leonardo da Vinci e Paolo Pino, dentre outros, trabalhos que podem

ser considerados antecedentes estéticos da arte e da ciência modernos,

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onde a matematização da natureza já é refletida na matematização da

pintura, considerada ainda imitação da natureza, através do

desenvolvimento da perspectiva. Complementaremos esse estudo com a

análise da crítica dessas concepções no século XX em autores como Pierre

Francastel e Erwin Panofsky;

b) as concepções modernas de espaço, tanto matemáticas (os espaços curvos

por exemplo) como psicofisiológicas, e os processos de construção, pelo

sujeito, das estruturas subjacentes à noção de espaço e subseqüente

geometria, investigados por Poincaré e por Piaget, como uma recuperação

do sensível em matemática à luz dos desenvolvimentos modernos da

psicologia e da epistemologia. Poremos em evidência, também, seus

antecedentes na revolução artística do século XIX iniciada com o

impressionismo francês.

Este estudo (mais a formulação de um projeto de pesquisa do que um

trabalho terminado) tem uma vertente, como em Francastel, na sociologia da

ciência, pois vai lidar com a concepção de espaço como parte do imaginário

cultural das épocas mencionadas.

2 A Matematização da Natureza na Arte Renascentista

O conceito de “espaço” faz parte do desenvolvimento das civilizações e

de suas atividades culturais, manifestando-se na criação de sistemas para

melhor representá-lo. Já a distinção entre o racional e o sensível a respeito da

noção de “espaço” aparece na antigüidade clássica, especialmente em Platão,

para quem a idéia de “espacialidade” pode ser expressa por dois termos: chora

(espaço como noção independente da matéria que o ocupa) e topos (lugar,

dependente da matéria que o ocupa), o segundo com um grau de concretude

maior do que o primeiro.

O processo da descoberta do espaço levou um longo tempo, não

apenas para o ser humano individual, mas para a humanidade que percorreu

um longo caminho para descobri-lo, e para descobrir-se como parte integrante

desse mesmo espaço.

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A história da arte como história da ciência 91

O questionamento teórico sobre o que é o espaço está presente em

obras de vários autores que estudaram as formas de representação artísticas

nas mais diversas perspectivas.

Pesquisadores como Francastel (1999), Thuillier (1994) e Crosby (1999)

são unânimes em situar o final da Idade Média e o Renascimento como um

período em que se desenvolveu um novo modelo de realidade e, ao mesmo

tempo, uma nova concepção de espaço, influenciando a arte e a ciência.

Interessam-nos particularmente as mudanças, no período citado, quanto

às concepções de espaço e de natureza em relação à pintura, pois conforme

Thuillier (1994, p. 58), para que as teorias de Galileu e Newton pudessem se

desenvolver, “as noções de tempo e espaço já deviam ter adquirido um certo

rigor. Só sob esta condição tornava-se possível uma física ao mesmo tempo

matemática e experimental”. Assim, pretendemos mostrar nestas linhas que o

caminho dos homens de ciência foi aberto pelos artistas e arquitetos do início

do Renascimento italiano, que elaboraram, segundo Francastel, um novo

sistema transmissível de figuração do mundo.

A arte diferencia-se da ciência em relação ao método de matematização

da natureza. Os sistemas do mundo, percebido e representado, tem de ser

canalizados pelo discurso, e o Renascimento usa um discurso plástico para tal

fim. A representação artística é um código e como tal guarda uma informação

codificada sobre o mundo ou a natureza. Essa representação é uma forma de

matematização, pois envolve uma organização e ordenação das informações.

A matemática que a arte usa para representar a natureza é mais de caráter

qualitativo que quantitativo, digamos, mais geométrica que algébrica. “As

fórmulas são explicações e não fontes de inspiração. A obra viva sai da

imaginação e não do cálculo” (Francastel, 1967, p. 37).

A linguagem das imagens, ainda insuficientemente estudada segundo

Francastel, serve de base ao estudo das condições de figuração plástica do

espaço. Os avanços na perspectiva e na anatomia, por exemplo, são

instrumentos para esse estudo.

A perspectiva refere-se ao processo matemático para obter a

profundidade e uma escala quanto às dimensões dos objetos e da distância

entre eles, de uma forma lógica. Foi no final da Idade Média, ainda no séc. XIV

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que se tem indícios sobre a utilização da perspectiva linear, sobretudo na

arquitetura e na pintura, formalizada por Leon Battista Alberti. Mas outros tipos

de perspectiva também fazem parte da história universal da arte e todos são o

resultado do esforço do homem no sentido de compreender e representar o

espaço e os objetos que o povoam em cada época em função dos hábitos

sociais, científicos, econômicos e políticos.

A pintura no Renascimento, tanto quanto qualquer teoria científica, na

sua função de descrever o mundo, a natureza, tratou de incorporar técnicas

matemáticas (qualitativas) para esse fim, e nisso se adiantou à ciência.

Na pintura, a mudança deu-se com a percepção da luz e da sombra,

com a concepção de extensão e de espaço e com a representação do espaço

no plano, isto é, com a reprodução de representações de temas tridimensionais

no bidimensional. A representação do espaço pelos artistas através da

perspectiva, ainda no espírito de imitação da natureza, está na base dos

processos de matematização da natureza pela ciência, a qual concretiza-se a

partir do século XVI, talvez em decorrência do aprimoramento da linguagem

matemática (algébrica) devido a Viète e outros.

Essas mudanças não aconteceram repentinamente no Renascimento;

elas se deram como resultado de descobertas e invenções que vinham

ocorrendo já na Idade Média e que já ocorriam entre os gregos, com base nos

tratados sobre óptica de Euclides e de Ptolomeu.

Um dos pintores que contribuiu significativamente para a nova

concepção do espaço foi Giotto (1267-1337) que, em suas pinturas, sem usar

ainda a perspectiva renascentista, promoveu a idéia de profundidade através

das linhas de direção do olhar de suas personagens. Crosby (1999, p. 166),

relata que “os contemporâneos de Giotto, impressionavam-se com a

organização rigorosa que havia em seus quadros, com sua combinação de

intensa emoção e extrema dignidade, e com os indícios da terceira dimensão”.

O arquiteto florentino Filippo Brunelleschi (1377-1446), influenciou

significativamente a nova forma de representação do espaço, provando que

conhecia o suficiente de geometria para entender os problemas de perspectiva,

ao conseguir projetar e dirigir a construção da abóboda da catedral de sua

cidade, a igreja de Santa Maria Del Fiore. O projetar a obra antes de construí-

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A história da arte como história da ciência 93

la, que se iniciou com Brunelleschi na arquitetura, deve ter sido uma das

fontes, na mentalidade renascentista, do pensar numa estrutura subjacente à

natureza.

Outra característica desse período é o tratamento dado ao espaço vazio;

a pintura medieval nos oferece um “espaço agregado, isto é, um espaço onde

os objetos são justapostos sem que as suas relações espaciais sejam levadas

em conta” (Panofsky apud Thuillier, 1994, p. 58).

Brunelleschi conseguiu superar essa visão do espaço para um sistema

que reproduz um modelo imaginário que permite a todas as regiões do espaço

se comunicarem entre si através de planos que se interceptam. Francastel

(1990, p. 11), escreve a esse respeito:

[...] a importância atribuída às relações concretas e mensuráveis que existem entreobjetos aparentemente distanciados e estranhos uns aos outros, a descoberta do fatode que as linhas não definem apenas o limite das superfícies contínuas, mas que aintersecção dos planos se prolonga e se projeta no vazio, dando-lhe forma,constituem decerto uma lição infinitamente preciosa para os pintores.

Outra contribuição para a nova concepção do espaço vem do pintor

Masaccio, que por volta de 1425 pintou, na igreja de Santa Maria Novella de

Florença, o afresco A Trindade, que segundo Thuillier (1994) é considerado

como a primeira aplicação rigorosa do “ponto de fuga”. Mas, nem Brunelleschi

e nem Masaccio deixaram qualquer explicação sobre suas técnicas. Coube a

Leon Batista Alberti (1404-1472), que se destacou como arquiteto, urbanista,

arqueólogo, cientista, cartógrafo, matemático e adepto da mensuração,

escrever sobre a teoria da perspectiva que é exposta em 1435 e impressa em

1511, que é o seu tratado Da Pintura.

Alberti (1999, p. 75) inicia o livro primeiro desse tratado colocando que

irá escrever sobre pintura e para que a redação seja clara vai tomar dos

matemáticos as noções que estão ligadas ao assunto e que só então falará

sobre a pintura, partindo dos princípios da natureza. E completa: “peço, porém,

ardentemente, que durante toda a minha dissertação considerem que escrevo

sobre essas coisas, não como matemático, mas como pintor”.

Alberti define, com base na geometria euclidiana, o ponto, a reta e a

superfície. A esta última dá um tratamento especial: “a superfície é uma parte

extrema de um corpo, que é conhecida, não por sua profundidade, mas tão-

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somente por seu comprimento, largura e, ainda, por suas qualidades” (p. 76).

Esse estudo sobre a geometria, onde as qualidades substituem a profundidade,

e algumas noções sobre a óptica, servem-lhe de base para a análise da

perspectiva.

As qualidades da superfície são divididas em qualidades permanentes e

qualidades mutáveis. As qualidades permanentes são as que constituem a

superfície propriamente dita tais como as linhas e os ângulos do seu contorno,

assim como o seu dorso que a classifica como plana ou esférica (convexa e

côncava). As qualidades mutáveis fazem com que as superfícies variem de

acordo com a mudança do lugar: mudando o lugar, as qualidades que ficam à

superfície parecem maiores, com outro limite ou com cores diferentes. Isto

acontece porque as superfícies são medidas por raios visuais que levam aos

sentidos a forma daquilo que vemos.

Os autores consultados divergem em suas opiniões sobre a importância

da perspectiva linear, la construzione legittima, para as artes visuais.

Panofsky (1999, p. 58) compara o método de Alberti com o método

utilizado pelos Lorenzetti, que tinham preservado, no Trecento, o rigor da

convergência matemática das ortogonais, não existindo ainda um método que

medisse as distâncias em profundidade, o que apareceu com o método de

Alberti.

Granger (2002, p. 99-100) se manifesta afirmando que o Quattrocento foi

original no sentido de “colocar em destaque a construção de um espaço plano

destinado a figurar o espaço tridimensional” e que as soluções geométricas

propostas não foram adotadas por todos ou pela maioria dos artistas da época,

porque as soluções do problema da representação “são de natureza tecno-

estética-matemática”. Essa transposição do espaço para o plano é muito

complexa e levou a uma renovação da própria geometria, com Desargues

(1591-1661), através do conceito de espaço projetivo.

Segundo Francastel (1990, p. 20-24), para os homens do começo do

Quattrocento, “a perspectiva dita renascentista – ou seja, a perspectiva linear

segundo as fórmulas de Alberti – não era em absoluto a mais difundida, nem,

sem dúvida, que melhor parecia dar conta dos aspectos correntes do universo”.

A etapa vencida por volta da metade do século XV, por alguns pintores e por

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A história da arte como história da ciência 95

Alberti, é a da adoção do sistema de representação considerado “verdadeiro”

do mundo exterior por meio da perspectiva linear. O método vai exigir daí em

diante “que as imagens se inscrevam dentro da janela de Alberti como se fosse

o interior de um cubo aberto de um lado” (p. 23). Francastel considera que a

idéia de que o Renascimento representa uma abordagem no sentido da

representação “verdadeira” em relação ao mundo exterior, é falsa. Admitir essa

idéia seria admitir que o espaço, para toda a humanidade, é permanente e que

apenas os modos de o representar é que mudam. É como se o universo fosse

dado a conhecer de uma vez por todas e o homem apenas precisasse

descobri-lo pela intuição ou pela ciência. E completa: “o espaço não é uma

realidade em si, da qual somente a representação é variável segundo as

épocas” (p. 24).

De fato, a questão do verdadeiro na representação é muito complexa.

Na arte, mesmo para efeitos de imitação da natureza, há uma escolha de

elementos para dotar a obra de beleza. Essa escolha supõe, então, uma

abstração, portanto a representação de uma estrutura: a “estrutura bela” da

coisa. A ciência descreve a “estrutura racional” da coisa.

Representar significa capturar a estrutura de um objeto, seus traços

essenciais, o que implica numa abstração. A interpretação individual que cada

espectador dá à obra, para Francastel, significa o preenchimento do que falta

para tornar, o objeto representado, concreto (Francastel, 1967, p. 37).

Para Alberti e também para Leonardo da Vinci, a pintura é uma ciência

devido ao seu fundamento na perspectiva matemática e no estudo da natureza.

A arte da pintura é um tipo de conhecimento, em particular, para Leonardo, a

pintura traz verdade.

Para Leonardo, segundo Ernst Cassirer, a arte “é permanentemente um

meio autêntico e indispensável para compreender a própria realidade. Em

outros termos, a “visão” de Leonardo contribuiu para preparar a “abstração”

científica, para tornar possível um conhecimento rigoroso das formas naturais

(sejam quais forem) e suas relações” (Thuillier, 1994, p. 110).

Terminaremos esta seção nos referindo a um outro autor, menos

conhecido, mas que trará uma contribuição enorme na compreensão do

período anterior ao século XVI: Paolo Pino. Ele opõe a visão florentina da arte,

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profundamente ligada à geometria e a aspectos matemáticos, à visão vêneta,

que ele defende, caracterizada por uma outra concepção perspéctica, mais

empírica do que a florentina. Em seu Diálogo sobre a Pintura, ele também faz

uma discussão entre beleza natural e beleza artística. Tanto a beleza natural

quanto a beleza artística obedecem a preceitos geométricos, a primeira é

criada pela natureza, a segunda pela abstração do pintor ao imitá-la elegendo,

como Alberti, certas porções de beleza.

3 Poincaré e Piaget: Um recomeço na Relação Arte-Ciência a partir doImpressionismo

Para Ostrower (1983, p. 30), o espaço começa a ser percebido e ao

mesmo tempo ampliado a partir dos primeiros movimentos físicos do corpo,

sendo que esta experiência básica é necessária para todos os seres humanos.

Dessa forma, o conhecimento do espaço é um processo ligado à possibilidade

de percepção e investigação do meio onde vivemos. Assim sendo, “[...] o

espaço constitui o único mediador que temos entre nossa experiência subjetiva

e a conscientização dessa experiência”.

Para Francastel, o espaço é a própria experiência do homem. “Existe aí

um mundo imenso de sensações fundamentais, contatos de nossa pele e de

nossos músculos com a matéria, humana ou não, que enriquece nossa

experiência do espaço. Lembremo-nos que a Psicanálise e a Ciência,

simultaneamente, levam-nos a entrar em contato, cada dia mais, com

realidades somatomentais [e, portanto, do mundo interior] que desempenham

um papel fundamental para nossa compreensão do universo, e que, por outro

lado, vemos desenvolver-se o gosto por novos materiais e novas técnicas [...]

que nos proporcionam experiências positivas – ópticas e táteis – novas”

(Francastel 1967, pp. 49-50). Ainda, segundo Francastel, está se gerando um

novo humanismo, e novamente, como no Renascimento, temos os artistas

como precursores da ciência que, a partir do Impressionismo, salientaram nas

suas obras o mundo interior e a subjetividade na nova visão da natureza.

Essas concepções estão na base do pensamento de Poincaré para

quem a noção de espaço que nós temos é decorrente da possibilidade de

movimento e, portanto, sugerido pela experiência.

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A história da arte como história da ciência 97

Piaget, ao estudar o desenvolvimento da noção de espaço, ou das

inúmeras noções que interferem na representação do espaço pelo sujeito, em

especial pela criança, coloca que são as intuições topológicas elementares que

estão na origem dessa noção, e não as intuições euclidianas de reta, ângulo,

figura, medida, etc. Aquelas intuições topológicas estão relacionadas às

“correspondências qualitativas bicontínuas que recorrem aos conceitos de

vizinhança e de separação, de envolvimento e de ordem, etc., mas ignoram

qualquer conservação das distâncias, assim como toda projetividade” (Piaget e

Inhelder, 1993, p.11).

A elaboração do espaço pela criança passa por uma fase perceptiva e

outra representativa. A primeira acontece desde o nascimento e está ligada à

percepção, à motricidade. A segunda ocorre após o surgimento da imagem, do

pensamento intuitivo e da linguagem. A intuição espacial não se refere apenas

a sensações e intuições, “é a inteligência elementar do espaço, em um nível

ainda não formalizado” (Piaget e Inhelder, 1993, p. 469). Nessa intuição a

imagem e a matéria desempenham o papel de símbolo.

A partir de seus estudos, Piaget conclui que: “a intuição do espaço não é

mais uma leitura das propriedades dos objetos, mas, antes, desde o início, uma

ação exercida sobre eles; e é porque essa ação enriquece a realidade física,

ao invés de extrair dela, sem mais, estruturas completamente formadas, que

ela consegue ultrapassá-la gradualmente, até constituir esquemas operatórios

suscetíveis de serem formalizados e de funcionarem dedutivamente por si

mesmos“ (p. 469).

Até os seis meses de idade, aproximadamente, a criança não tem

consciência do espaço e não se situa nele. Até então o espaço é um produto

das ações tátil, visual, bucal e auditiva da criança. Essa fase, reconhecida

como espaço prático, é um dos elementos constituintes daquele que Piaget

denominou espaço sensório-motor.

O espaço prático de Piaget era o espaço do universo grego. W. M. Ivins

“opõe judiciosamente o universo dos gregos, “tátil e muscular”, ao dos

renascentistas, essencialmente “visual”. No primeiro, cada objeto é

considerado isoladamente, como se a sua forma individual só fosse conhecida

pelo toque; [...] Os objetos representados podem estar justapostos, mas não

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José Carlos Cifuentes, Leônica Gabardo Negrelli, Marlene Perez 98

relacionados uns aos outros por meio de um entrelaçamento matemático ao

mesmo tempo abstrato e onipresente. No segundo caso, ao contrário, os

objetos situam-se e se organizam uns em relação aos outros em um espaço

homogêneo que se prolonga indefinidamente em todas as direções” (Ivins,

apud Thuillier 1994, pp. 77-78).

Para Poincaré, a gênese da noção de espaço além de estar ligada à

visão e ao tato também é determinada pelas sensações musculares que

acompanham os movimento no nosso corpo. E nesse sentido, só podemos

chegar à noção de espaço estudando a leis segundo as quais as nossas

sensações se sucedem.

A base desse espaço seria um contínuo amorfo cujas propriedades,

objeto de estudo da topologia, são “isentas de qualquer idéia de medida”

(Poincaré, 1995, p. 45). O espaço dos geômetras, ou seja, aquele objeto da

geometria, é contínuo, infinito, tem três dimensões, possui todos os seus

pontos idênticos entre si (é homogêneo) e todas as retas que passam por um

mesmo ponto são idênticas umas às outras (é isótropo). No entanto, ele não

apresenta as mesmas características do espaço representativo que é

construído de representações de sensações visuais, táteis e motoras. O

espaço visual, por exemplo, não é homogêneo pois os pontos da retina não

têm o mesmo papel. A imagem formada nesse espaço também não é infinita

pois se apresenta num quadro limitado e apresenta-se em duas dimensões,

sendo que a terceira seria revelada pela convergência dos olhos ou por um

esforço de acomodação. O que representamos então são as impressões que

os objetos produzem em nossos sentidos e não os objetos.

Quando localizamos um objeto no espaço, o que fazemos é representar

os movimentos necessários para se alcançar este objeto. Representar esses

movimentos significa “representar as sensações musculares que os

acompanham e que não têm nenhum caráter geométrico que, em

conseqüência, não implicam, de maneira alguma, na preexistência da noção de

espaço.” (Poincaré, 1988, p. 59).

Assim como Poincaré, Piaget atribuiu aos movimentos o papel de “fontes

de conhecimentos espaciais mais elementares”. Mas, enquanto Piaget

percebeu “a relação geral entre tais movimentos e as operações ulteriores da

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A história da arte como história da ciência 99

inteligência”, Poincaré “descreveu os movimentos em termos de sensações e

manteve ao lado delas um a priori racional encarregado de dirigi-las” (Piaget e

Inhelder, 1993, p. 469). Piaget inclusive utilizou-se dos grupos de

deslocamentos de Poincaré para caracterizar e interpretar as suas

observações (Dolle, 1974).

Segundo Poincaré, o espaço geométrico não seria uma forma imposta a

nossa sensibilidade, como em Kant, pelo fato de percebermos a direção dos

movimentos executados. Não seria apenas uma percepção. “As sensações que

correspondem a movimentos com mesma direção estão ligadas em meu

espírito por uma simples associação se idéias” (Poincaré, 1988, p.58). Essa

associação de idéias é adquirida como um hábito após várias experiências.

Mas não é a experiência que diz, por exemplo, se devemos adotar o espaço

euclidiano ou o não-euclidiano. Nossa intuição fornece idéias de ambas as

geometrias. Adotamos uma ou outra conforme seja mais notável a sua

percepção. Por exemplo, a reta euclidiana difere pouco de objetos naturais

notáveis, ao contrário da reta não-euclidiana. E isso a torna mais notável

(Poincaré, 1995).

Como já foi dito, a elaboração do espaço não começa com as formas

euclidianas simples. Segundo resultados de estudos desenvolvidos por Piaget,

obtidos por meio de várias atividades feitas com crianças, o espaço sensório-

motor desenvolve-se a partir de um espaço topológico em direção a um espaço

ao mesmo tempo projetivo e euclidiano ou métrico.

Todas essas características de uma concepção de espaço a partir da

subjetividade estão implícitas na pintura impressionista, onde a natureza não

se apresenta como é senão como aparece, onde o artista não descreve senão

pesquisa os mistérios da sensação criando uma nova linguagem plástica e,

portanto, um novo código para capturar essa nova realidade que sai do sujeito.

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Page 102: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programaexperimental de Galileo Galilei

Júlio C. R. VasconcelosDepartamento de Filosofia /UEFS

RESUMO: Na primeira metade do século XX, Alexandre Koyré realizou ummarcante trabalho de análise da obra de Galileo que lançou dúvidas sobre alegitimidade do pioneirismo que tradicionalmente se atribuía ao florentino notocante ao desenvolvimento do método experimental da Física Moderna. Asposições de Koyré tornaram-se quase consenso entre os analistas (ThomasSettle, em 1961, aparece como voz destoante, apregoando que suareconstrução do experimento galileano do plano inclinado dera excelentesresultados) até que, em 1973, Stillman Drake trouxe à luz um conjunto demanuscritos não publicados nas Opere – a coletânea de obras que é areferência básica de qualquer estudioso da obra de Galileo – e argumentouque alguns deles deviam ser vistos como anotações de experimentos, amaior parte destes envolvendo o estudo das trajetórias dos projéteis.Imediatamente, iniciou-se um processo febril de produção de textos deanálise desses manuscritos, sendo os mais ativos produtores o próprioDrake e os especialistas Ronald Naylor e David Hill e, mais recentemente,Jürgen Renn, Peter Damerow et al.. Os debates não estão esgotados; aliás,tendem agora a se ampliar com a edição eletrônica dos manuscritos, umainiciativa conjunta do Instituto Max Planck para a História da Ciência, deBerlim, da Biblioteca Nacional Central e do Instituto e Museu de História daCiência, de Florença. Dada a importância desses manuscritos e dasdiscussões que suscitaram e suscitam, a comunicação pretende apresentarreproduções de alguns deles – todos relacionados com a teoria dosprojéteis que Galileo publicou em seus Discorsi e DimostrazioniMatematiche intorno a due Nuove Scienze de 1638 – e descrever asprincipais contribuições para sua interpretação, bem como discutir ascaracterísticas do programa galileano de descoberta e comprovaçãoexperimental da nuova scienza do movimento.

PALAVRAS-CHAVE: Galileu, experimentos, manuscritos, inércia, trajetóriaparabólica.

Fólio 116v : Stillman Drake Reaviva o Galileo Experimentador

Na primeira metade do século XX, Alexandre Koyré realizou um

marcante trabalho de análise da obra de Galileo que lançou dúvidas sobre a

legitimidade do pioneirismo que tradicionalmente se atribuía ao florentino no

tocante ao desenvolvimento do método experimental da Física Moderna. As

posições de Koyré tornaram-se quase consenso entre os analistas (Thomas

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 103: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Júlio C. R. Vasconcelos 102

Settle, em 1961, aparece como voz destoante, apregoando que sua

reconstrução do experimento galileano do plano inclinado dera excelentes

resultados) até que, em 1973, o estudioso americano Stillman Drake trouxe à

luz alguns manuscritos de Galileo preservados na Biblioteca Nacional Central

de Florença no volume 72 dos arquivos referentes às obras galileanas,

manuscritos que, por conterem somente números e diagramas aparentemente

sem conexão com outros do mesmo volume, não foram julgados dignos de

aparecer na monumental compilação feita por Favaro, na virada do século, das

Opere de Galileo. Sobre este volume nos diz Drake:

"A documentação é virtualmente completa porque a partir de quando foi começada,logo após Galileo ter revisado seu trabalho sobre mecânica em 1602, este pretendiacompor um tratado matemático sobre o movimento, que por muitas razões não foicompletado e publicado a não ser no final de sua vida. Assim, mesmo seus papéismais antigos foram guardados e, quando seu livro foi terminado, Galileo ficou cego,de modo que os manuscritos ficaram sob a guarda de um jovem e devotado discípuloe não foram descartados como parece ter sido o caso de papéis relativos a muitosdos livros de Galileo."1

Para Drake, alguns desses manuscritos até então inéditos só podiam ser

entendidos como anotações de experimentos que Galileo teria executado no

período em que trabalhava em Pádua. No artigo em que anunciava a

redescoberta, Drake inicialmente chamava a atenção para o fólio 117r (figura

1):

"No outono de 1608, depois de um verão em Florença, Galileo parece ter seinteressado na questão de se o efetivo retardamento de um corpo que se movehorizontalmente seguiria alguma regra particular. No folio 117r dos manuscritos hápouco mencionados, os números 196,155,121 e 100 aparecem juntos a uma linhahorizontal no meio da página. Eu creio que esta foi a primeira entrada nesta folha, porrazões que aparecerão depois, e que Galileo colocou na posição horizontal seu planocom canaleta e registrou as distâncias percorridas ao longo dele em tempos iguais.Usando um metrônomo, e rolando uma bola leve de madeira de diâmetro 4,5polegadas ao longo de um plano com uma canaleta de largura 1,5 polegadas, euobtive relações similares através de uma distância de 6 pés. As cifras variamenormemente para bolas de diferentes materiais e diferentes pesos e paravelocidades iniciais que sejam muito distintas. Mas é suficiente para minhasfinalidades presentes que Galileo pudesse ter obtido as cifras que anotou através daobservação da desaceleração efetiva de uma bola ao longo de um plano niveladocom a horizontal." 2

1 Drake 1979, p. VIII2 Drake 1973, pp. 293/296

Page 104: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 103

A verdade é que, como veremos, a interpretação do fólio 117r não é o

maior trunfo de Drake. Sua apresentação prossegue lembrando o leitor que a

idéia de que a mais mínima das forças é suficiente para colocar em movimento

um corpo sobre um plano horizontal aparece já na obra juvenil galileana De

Motu. A consequência desta idéia, a crença de que o "movimento assim

induzido seria também perpétuo e uniforme", Drake aduz, era ensinada por

Galileo antes de 1607, a julgar por uma carta de um discípulo daquela data 3.

Assim, a próxima etapa do programa experimental de Galileo naturalmente

seria a de tentar verificar essa crença.

Para nós, pós-newtonianos, a crença de Galileo nos parece indubitável,

quase uma verdade lógica. Mas a inércia nada tem de necessária; seria

perfeitamente possível que a bola acabasse por parar sobre o plano horizontal

devido a um esgotamento natural da sua "força" ou ímpeto, idéias com

defensores importantes no século XVI como, por exemplo, Tartaglia4. Assim, é

compreensível que Galileo buscasse apoio empírico para a sua crença: se

conseguisse eliminar a desaceleração causada pelo atrito com o plano

horizontal e o corpo não tivesse, então, sua "força" diminuída no percurso, sua

idéia ficaria confirmada. Mas como eliminar o atrito com o plano horizontal?

Ora, eliminando o plano:

"Se, então, houvesse algum modo de fazer uma dada bola abandonar o plano emdiferentes velocidades das quais fossem conhecidas as razões, a velha idéia deGalileo de que o movimento horizontal continuaria uniformemente na ausência deresistência poderia ser colocada em teste. Sua lei de queda livre tornava issopossível. As razões entre as velocidades poderiam ser controladas fazendo a bolacair de alturas conhecidas, ao final das quais seria defletida horizontalmente. Asquedas subseqüentes por uma altura dada consumiriam o mesmo tempo do topo damesa ao chão, e as distâncias percorridas horizontalmente seriam proporcionais àsvelocidades adquiridas no topo da mesa.5

3 Ver nota 31, à p. 67.4 A proposição III do seu Nova Scientia, por exemplo, enuncia que "um corpo uniformementepesado em movimento violento irá mais fracamente e devagar quanto mais se afasta docomeço ou se aproxima do fim do movimento" (Drake & Drabkin, p. 78). Drake crê que se podeafirmar que "Tartaglia adotou a idéia da força impressa ou ímpeto auto-exaurível, associada aonome de Alberto de Saxônia, que é oposta à idéia de uma forma de ímpeto que diminuisomente com a resistência externa (ao menos em certos tipos de movimentos), associada aonome de Jean Buridan" (Drake & Drabkin, nota 18, p. 76).5 Drake 1973, p.296.

Page 105: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Júlio C. R. Vasconcelos 104

Uma bola, após rolar por um plano inclinado de altura conhecida, é

projetada horizontalmente do alto da mesa. O "princípio" da independência de

movimentos6 garante que o fato da bola ter velocidade horizontal, seja ela qual

for, não altera o seu tempo de queda pelo ar; se a resistência oferecida por

este é desprezível, a queda da bola tem duração igual à que teria se fosse

simplesmente abandonada do alto da mesa e o alcance horizontal é função

exclusiva da velocidade de lançamento.

Para Drake, no fólio 175v está o esquema do equipamento adequado e

no fólio 116v (respectivamente figura-2 e figura-3) estão as anotações dos

dados experimentais obtidos com um plano inclinado sobre uma mesa com um

defletor em seu término e uma bola.

A mesa tem altura "828 punti"; cada um desses "pontos" mede 169/180

milímetro, a julgar por outro fólio, o de número 166, do qual Drake deduz que

Galileo usou nos experimentos a escala interna de seu compasso proporcional,

preservado no Museu de História da Ciência de Florença; Thomas Settle mediu

essa escala e determinou a proporção acima.

Os números 300, 600, 800 e 1000 numa linha vertical sobre o esboço da

mesa indicam alturas das quais a bola rolou. Na linha horizontal representativa

do chão aparecem os números 800, 1172, 1328 e 1500.

Para Drake, estes últimos números não podem indicar senão a medida

experimental dos alcances horizontais relativos às alturas iniciais de queda

acima citadas. Um quinto alcance, expresso através do número 1340,

relaciona-se, segundo Drake, com uma altura de queda não anotada de 828

pontos, altura idêntica à que Galileo anotou para a mesa.

Acompanhando o número 1172, Galileo escreveu "doveria p rispondere

al po esser 1131 dzia 41 " que Drake interpretou como " should be, to

correspond with the first, 1131, difference 41 ". Mais três "doveria" aparecem,

associados aos números 1328, 1340 e 1500. Deixemos que Drake nos

explique como Galileo obteve esses valores:

6 A independência de movimentos aparece tanto nos Discorsi como nos Principia mas emnenhum deles é declarada como um princípio; sobre isto, ver pp. 65/67.

Page 106: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 105

"Os cálculos de Galileo para as distâncias esperadas foram também efetuados nofolio 116v. Para a conveniência do leitor eu transcrevi na figura 4 (figura 4) as partesessenciais, que estão borradas na reprodução.

"Estes cálculos foram feitos de acordo com a regra de que os quadrados dasvelocidades adquiridas na queda vertical até a mesa são proporcionais às distânciasde queda a partir do repouso, ou V

2

2 : V

1

2 :: S

2 : S

1 7. Uma vez que todas as

distâncias horizontais são percorridas no mesmo tempo (aquele de uma queda livrepor 828 pontos), elas são proporcionais às velocidades adquiridas na queda inicial;portanto, designando as distâncias horizontais pela letra D, nãs temos D

2

2 : D

1

2 :: S

2 :

S1. Tomando D

1 como 800 e S

1 como 300, estes sendo os dados empíricos da queda

mais curta, Galileo tinha D2

2 : 800

2 :: S

2 : 300, a partir do que cada distância horizontal

esperada em outras quedas foi obtida por uma média proporcional, equivalente aextrair a raiz quadrada de (800

2S/300). Para o primeiro caso, no qual S

1 foi

exatamente dobrado, Galileo multiplicou 800 pelo seu dobro e tomou a raiz quadrada,como se vê no alto do fólio 116v. Em todos os demais casos ele multiplicou a quedainicial por 800, dividiu o produto por 300, multiplicou o quociente por 800, e extraiu araiz quadrada do produto. Seus resultados estão resumidos abaixo, em "pontos" deaproximadamente 17/18 milímetro.

Queda até amesa

Mesa parao chão

Projeçãohorizontal

Expectativa calculada por Galileo atravésde sua régua da média proporcional

300 828 800 padrão de comparação600 828 1172 1131800 828 1328 1306828 828 1340 1330(cálculo de Gal.1329)1000 828 1500 1460"8

A projeção medida que mais se distancia da expectativa calculada é a

de valor 1172; notavelmente, mesmo esse maior erro é muito pequeno, de

apenas 3,4%, uma precisão até hoje desejável em experimentos

desbravadores.

Através da análise dos dados de Galileo, Drake estimou que o ângulo de

inclinação do plano com que Galileo trabalhou foi de 64o. Para este ângulo,

considerando a redução de 5/7 devida ao rolamento, calculou a aceleração

como sendo de 630 cm/s2; a seguir determinou teoricamente os alcances ou

projeções, valores que se revelaram muito próximos dos medidos por Galileo

(Ibid, p. 299).

7 Ressalte-se que Drake abrevia por "S" não o comprimento do plano inclinado mas sua alturaaté a mesa.8 Drake 1973, pp. 296/299

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Júlio C. R. Vasconcelos 106

A análise do fólio 116v mostra que Galileo usa o seu conceito de

independência de movimentos num momento em que não necessita fazer

composições matemáticas de trajetórias. É preciso, então, como já apontamos

em outro momento9, não mais se referir à independência e à composição de

movimentos sob o título genérico de "princípio da composição", sob pena de

perder o poder descritivo para os procedimentos e para o aparato conceitual de

Galileo.

Fólio 114v2, Outro Experimento Redescoberto

Apesar da proximidade entre os valores medidos e os valores "doveria"

no fólio 116v, Galileo certamente se decepcionou com o resultado relativo à

queda inicial de altura igual à da mesa, 828 pontos. De acordo com o que

veremos ser demonstrado na primeira parte da quarta proposição da jornada

dos projéteis10, a distância horizontal percorrida após aquela queda deveria ser

exatamente o dobro da altura do plano inclinado e da mesa, ou seja, 2x828 ou

1656.

No mesmo artigo em que revelou ao mundo o conteúdo do fólio 116v,

Drake apresenta também o manuscrito 114v2 (figura 5) em que, a seu ver, está

a tentativa experimental de Galileo de resolver o problema proposto pela

anomalia acima descrita (incompreensivelmente, Drake cita linhas antes das

palavras abaixo a cifra 1531 como a distância teórica esperada, ao invés de

1656):

"Nós sabemos que a fonte básica do problema é o fator 5/7 para o rolamento emcontraposição à queda livre (ou ao deslizamento sem atrito), mas Galileo não sabiadisto. Desse modo, ele foi obrigado a buscar uma possível explicação no único lugaróbvio para ele - na perturbação ocasionada pelo impacto com o topo da mesa. (Emanos posteriores ele mencionou mais de uma vez a perda de movimento emdeflexões angulares.) Foi isto, eu creio, que o levou a um refinamento do experimentoanterior, refinamento do qual temos um registro no fólio 114v2. A idéia era simples: afim de contornar o efeito da deflexão, deixou-se a bola rolar para fora do término doplano inclinado, por uma altura fixa, com várias velocidades cujas razões eramconhecidas. O experimento foi apropriadamente efetuado e os dados empíricosanotados; mas tendo obtido estes, Galileo se descobriu incapaz de fazer os cálculosadequados de modo a obter novas cifras "doveria". Ele facilmente se capacitara paracompor um movimento horizontal com um movimento vertical, mas ele não via como

9 Ver pp. 66/67.10 Ver esquema da p. 132.

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Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 107

lidar com uma velocidade oblíqua impressa em composição com uma queda livre. Éisto o que devemos fazer agora." 11

Drake inicialmente calculou os valores supondo uma inclinação de 30o

para o plano descendente, suposição inspirada pelo próprio esboço de Galileo

no folio 114v2 e obteve "bons resultados". Mas informa, a seguir, que uma

melhor concordância com os dados de Galileo foi obtida por MacLachlan

usando um plano a 450 pontos de altura do chão e com uma inclinação de 26o,

valor que, com satisfação, nota ser o complementar de 64o, o ângulo que

estimou para o experimento do folio 116v. Isto sugeriu a Drake que Galileo

possuía "uma moldura triangular rígida, com uma canaleta ao longo da

hipotenusa, que ele usou nos experimentos deste tipo" (Ibid, p. 302). Vejamos

a tabela que apresenta, relativa à reconstrução empreendida por MacLachlan:Distância derolamento empontos

Movimentohorizontalesperado

Dados de Galileu(fol. 114v2)

Reduçãopercentual daprevisão

200 256 253 1.17400 339 337 0.59600 395 39512 0.25900 454 451 0.661200 499 495 0.801600 543 534 1.662000 579 574 0.86" 13

A diferença entre os dados e os valores calculados não chega a 2%,

sugerindo mais uma vez notável acuidade experimental de Galileo.

Após comentar o fólio 114v2, Drake introduz uma nova idéia

interpretativa, a de que Galileo teria descoberto a forma parabólica da trajetória

dos projéteis devido à observação repetida dos movimentos que registrou

neste fólio e no 116v, e que nos demais esquemas do já citado fólio 117 está a

pioneira análise que associa aquela forma geométrica ao movimento dos

projéteis. Com base neste e em outros manuscritos redescobertos, Drake

reformula sua opinião de que a descoberta da forma da trajetória não teria

ocorrido antes de 1632, transferindo para o ano de 1609 a sua datação.

11 Drake 1973, p. 300.12 Drake cita a cifra 394 na tabela da pagina 302 do artigo, mas a inspeção à reproduçãocontida no seu Galileo's Notes on Motion mostra o número 395, que citei.13 Drake 1973, p. 302

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Júlio C. R. Vasconcelos 108

Por que Galileo não publicou seus experimentos? Para Drake a resposta

é fácil; não o fez porque:

"...nenhum de seus oponentes teria ficado convencido com uma longa sucessão dedados, pois eles não estavam interessados em leis físicas mas nas causas dascoisas, e causas não são reveladas em experimentos. De fato, sua lei de queda livrefoi rejeitada por Descartes como uma mera aproximação, e dois outros físicos14

ostensivamente demonstraram que a verdadeira lei que estava por trás dasaparências meramente sensíveis da regra dos números ímpares de Galileo era umaumento por pulos quânticos das distâncias percorridas na progressão dos númerosnaturais.”15

Drake termina seu artigo sugerindo que se reinstale a visão tradicional,

revigorada pela redescoberta dos manuscritos que acaba de interpretar.

"Talvez seja melhor", diz com ironia certamente endereçada aos que seguem

Koiré, "chamar Galileo de avô da ciência experimental do que reverenciá-lo

como o organizador platônico das especulações matemáticas do século XIV".

As Críticas às Interpretações de Drake

Pouco tempo após a publicação do artigo de Drake que acabamos de

acompanhar, uma verdadeira enxurrada de "papers" surgiu dedicada a

comentar os manuscritos redescobertos. E críticas à interpretação que Drake

lhes deu apareciam na maioria deles.

Em relação ao fólio 117, Ronald Naylor discordou de que os números

196, 155, 121 e 100 representassem anotações experimentais de distâncias

decrescentes num movimento retardado pelo atrito. A seu ver, os números

compõem um estudo teórico da parábola desenhada na parte superior do fólio,

sendo proporcionais aos comprimentos aproximados dos quatro trechos em

que Galileo a dividiu . Abaixo está a transcrição de Naylor para aquela parábola

(Figura 6) e os seus cálculos para os comprimentos dos quatro trechos,

entendidos simplificadamente como segmentos retilíneos, hipotenusas que

Naylor determina pelo teorema de Pitágoras:

RC = / (402 + 10

2) = 41,2

14 Segundo uma nota de Drake à mesma página desta citação, os físicos mencionados sãoBaliani e Fabri.

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Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 109

CS = / (402 + 30

2) = 50,0

ST = / (402 + 50

2) = 64,0

TF = / (402 + 70

2) = 80,6 16

O primeiro desses cálculos aparece no fólio 117, ao lado da parábola

acima esquematizada. Eis a transcrição de Naylor para ele:

1600

100______

4__

41 19__

81__

1700 83

1917

Naylor, a seguir, multiplica as quatro distâncias pelo fator 100/41,2 e

obtém os números 100 , 121,3 , 155,3 e 195,4. A notável concordância com os

números anotados no fólio significa que, provavelmente, Galileo procedeu do

modo sugerido por Naylor a fim de poder lidar com valores mais adequados

para representar as subseqüentes distâncias aproximadas percorridas em

tempos iguais por um móvel em trajetória parabólica.

Ao final do artigo, numa crítica indisfarçável a uma possível pressa de

Drake em atribuir um caráter experimental aos manuscritos que trouxe à luz,

Naylor propõe como método que se cheque sempre possíveis "naturezas

teóricas" para os fólios18.

Outra crítica retumbante a Drake é a que lhe dirigiram William Shea e

Neil Wolf, quanto à sua interpretação do fólio 116v. Estes especialistas crêem

que da análise dos dados do fólio 116v nada se pode concluir sobre o ângulo

15 Drake 1973, p. 305.16 Naylor 1975, pp. 395/396.17 Naylor 1975, p. 395.18 Drake, ao que parece, não rebateu esta crítica e nunca mais voltou a apresentar sua primeiraavaliação do folio 117, aceitando, aparentemente, a interpretação de Naylor para aquelesnúmeros.

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Júlio C. R. Vasconcelos 110

de inclinação do plano e sugerem em seu artigo de 1975 publicado em Isis que

Drake teria usado uma equação fisicamente incorreta para determinar o ângulo

de 64o.

Drake redigiu uma resposta em conjunto com MacLachlan, apresentada

no mesmo número de Isis. Eles rejeitam a acusação: embora Drake reconheça

ter estimado incorretamente o ângulo, afirma tê-lo feito por outras razões que

não o uso da fórmula defeituosa19; além do mais, MacLachlan afirma que para

ângulos muito grandes "haverá deslizamento ao invés de rolamento puro e a

energia rotacional não terá o valor que eles dão a ela", invalidando assim a

afirmação de que qualquer inclinação é possível. Relatam que suas

reproduções aperfeiçoadas dos experimentos em questão deixaram claro que

Galileo empregou um plano inclinado de 30o para obter os dados de ambos os

fólios, o 114v2 e o 116v. Para o primeiro, Galileo teria empregado como altura

final de queda de 500 pontos; para o experimento do fólio 116v a altura final

teria sido de 828 pontos.

Em outro artigo do mesmo ano de 1975, na Scientific American,

encontra-se a descrição dos procedimentos de Drake e MacLachlan; para nós

será suficiente reproduzir a tabela20 (Figura 7) que compara os valores

experimentais de Galileo e os valores teóricos calculados por aqueles

analistas:

Uma unificação muito mais abrangente dos fólios 114v2 e 116v é a que

Naylor nos propõe: segundo ele, a reconstrução que fez mostrou que ambos

tem anotações de experimentos da mesma forma, lançamentos horizontais do

alto de uma mesa de 828 pontos de altura. Relativamente ao fólio 114v2,

afirma, as anotações de Galileo para as alturas das descidas pelo plano

inclinado não chegaram até nós21. Naylor recalculou esses valores perdidos e

os interpolou aos valores do fólio 116v; abaixo estão um esquema de Naylor

que unifica os dos dois fólios e uma reprodução parcial de uma tabela (Figura

19 As razões de Drake e MacLahlan bem como as ponderações de Shea e Wolf podem serencontradas nas pp. 398/401 de Isis, vol. 66, 1975.20 Drake & MacLachlan, p. 109.21 Naylor defende sempre em seus artigos a tese de que o volume 72, ao contrário do quepensa Drake, não contém o conjunto completo das anotações manuscritas de Galileo relativasà ciência do movimento.

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Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 111

8) também encontrada em seu artigo; nesta, as entradas abaixo da linha

pontilhada referem-se ao fólio 116v, as acima da linha ao fólio114v2; os valores

30-150, em negrito, são os interpolados por Naylor:Alturas

"H"(pontos)

Alcances"D"

(pontos)30 25350 33770 39590 451

110 495130 534150 574

300 800600 1172800 1328828 1340

1000 1500" 22

O leitor pode conferir a justeza da interpolação de Naylor, através da

fórmula D22 : D1

2 :: S2 : S1, que Drake nos apresentou, fazendo "S2" e "S1"

corresponder a duas alturas "H" da tabela acima.

Embora seja excelente o ajuste da reconstrução de Naylor aos valores

anotados no fólio 114v2, o estudioso David Hill não a aceita. Apóia-se na

própria evidência do fólio, cujo desenho sugere lançamentos oblíquos e não

horizontais. Para uma inclinação de 12,5o do plano e uma distância de queda

deste até o chão de 329,5 pontos, Hill faz um experimento efetivo e uma

simulação em computador para os valores ideais obtendo a seguinte tabela:

Rolamento peloplano

Pontos deGalileu

Pontos de Hill Pontos Ideais

400 253 253 254800 337 340 345

1200 395 405 4111600 451 453 4632000 495 495 5062400 534 533 5442800 573 564 577"23

Hill afirma que sua reconstrução dos supostos lançamentos oblíquos do

fólio 114v2 oferece valores que, em média, diferem somente 0.8% dos dados

de Galileo; esta proximidade excelente, entretanto, não é decisiva pois é

22 Naylor 1976, pp. 405-406.23 Hill 1988, p. 661.

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Júlio C. R. Vasconcelos 112

surpreendentemente idêntica à oferecida por Naylor supondo lançamentos

horizontais. Mas a interpretação de Hill tem duas grandes vantagens: a

primeira é o aparecimento de distâncias de rolamento em proporção idêntica à

dos inteiros 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7, "a mais simples das relações, que Galileo podia

facilmente lembrar sem um registro escrito"24. Além de explicar porque não se

tem uma anotação de Galileo para aquelas distâncias, Hill consegue também

uma sugestiva unificação, entre o experimento do fólio 114v2 e o de outro fólio

dedicado ao estudo de lançamentos oblíquos, o fólio 81r: a inclinação de 12,5o

do plano e a distância de 329,5 pontos de queda deste até o chão seriam as

mesmas empregadas para obter alguns dados anotados neste outro

manuscrito.

É com uma breve apresentação das principais características do fólio

81r que iniciaremos o capítulo seguinte. Mas já temos um fato inegável: hoje,

depois da redescoberta em 1973 dos manuscritos que acabamos de analisar,

estamos distantes da posição extremada de Koyré em desmerecer totalmente

a atividade experimental de Galileo. Ainda que alguns analistas como Naylor

tentem preservá-la numa versão atenuada, em que o Galileo experimentador

convive com um Galileo pedagogo que propõe versões idealizadas e

simplificadas de seus experimentos para os leitores dos Discorsi25, tornou-se

hoje impossível deixar de atribuir à Galileo o pioneirismo no uso do moderno

método experimental e é curioso que um projétil provavelmente tenha

constituído o próprio tiro inicial desta tradição, como sugerem as interpretações

acima e as que veremos no próximo capítulo.

As Interpretações para o Fólio 81r

Curiosamente, o fólio 81r escapou aos olhos de Drake. E é o maior

crítico de sua avidez por experimentos, Naylor, que apresenta ao mundo esta

nova prova da existência de um verdadeiro e muito cuidadoso programa

experimental galileano. A seguir, estão uma transcrição de Hill para o fólio

24 Hill 1988, p. 661.

Page 114: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 113

(Figura 9) - mais detalhada e mais legível que a de Naylor em seu artigo

pioneiro de 1975 - e a reprodução parcial deste (Figura 10).26

Para Naylor, as distâncias 81, 121, 170 e 250 no desenho do fólio são

alcances horizontais de lançamentos oblíquos a partir de um plano inclinado de

20.5o. As distâncias correspondem respectivamente às alturas de queda pelo

ar de valores 53, 106 (no fólio, 53 + 53), 183,5 (106 + 77,5) e 329,5 (183,5 +

146).27

A distância 250 é a primeira que Galileo estabelece, fazendo-a ocorrer

exatamente neste valor após tentativas em que varia a extensão do rolamento

pelo plano. Estabelecida esta, ele então faz subir do chão um apoio horizontal,

diminuindo as alturas de queda e mede, na ordem, as distâncias 170, 121 e 81.

A seguir Galileo, por razões que explicaremos a seguir, diminui o ângulo

de inclinação para 10o, segundo Naylor, e aumentando a distância de

rolamento pelo plano faz ocorrer o alcance horizontal 500 para uma queda pela

maior altura, a de 329,5 pontos. Galileo não anota o novo alcance mas sim a

diferença entre ele e o primeiro através de uma segunda cifra 250. Procede

então como anteriormente, fazendo diminuir as alturas e anotando os alcances

obtidos, agora sempre pelas diferenças - 177,5, 130,5 e 87,5 - com os alcances

correspondentes da série anterior de medidas.

A última curva de queda também tem os alcances anotados pelas

diferenças com os anteriores. Para obter dados equivalentes em sua

reconstrução, Naylor experimentou com dois ângulos de inclinação, o primeiro

de 7o

e, em outro momento, um ângulo de 3,5o, conseguindo a seguinte tabela

de alcances horizontais (aqui anotados integralmente e não pela diferença):

7o 3,5o 81r750 750 750,0533 528 525,5

25 A esse respeito, recomenda-se o excelente "Galileo: Real Experiment and DidaticDemonstration" de Naylor; ao leitor interessado indicamos ainda as pp. 176/197 do La Física deGalileo..., de José R. Feito.26 A transcrição se encontra em Hill 1988, p. 647 e a reprodução do fólio em Drake 1979, p. 93.27 Naylor 1975, p. 1; para não ser acusado de cometer o pecado de avidez por experimentosque ele próprio critica, Naylor argumenta exaustivamente, em vários trechos do artigo, que osnúmeros do desenho não podem ser ajustados a nenhum esquema teórico, sendo legítimo,portanto, entendê-los como anotações experimentais.

Page 115: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Júlio C. R. Vasconcelos 114

380 386 382,5250 258 257,5 28

O maior problema de Naylor, entretanto, não é decidir pelo ângulo

correto mas sim explicar como Galileo fez um lançamento tão longo utilizando

um plano tão pouco inclinado, pelo qual seria necessária uma enorme distância

de rolamento. Naylor resolveu o problema usando um plano curvo (figura 11)29

e propondo que Galileo tenha feito o mesmo.

Hill oferece uma outra interpretação para o fólio 81r, interpretação que

se apóia na seguinte idéia: embora a forma do diagrama sugira incrementos de

250 na linha-base, até o valor máximo de 750, "uma rápida reflexão revelará

que se Galileo tivesse desejado registrar três curvas, cada uma de linha-base

250, teria sido mais simples usar este formato do que desenhar três curvas

separadas com três eixos separados, repetindo os números em cada caso.

Embora confuso para os intérpretes posteriores, o diagrama teria sido claro

para Galileo"30.

A proposta interpretativa de Hill tem uma vantagem considerável:

eliminando o alcance de 750, faz desaparecer a necessidade do plano curvo

postulado por Naylor, uma suposição sem nenhum apoio documental e uma

complicação inédita nos até então elegantemente simples esquemas

experimentais de Galileo.

Hill faz simulações em computadores e propõe que o primeiro ângulo de

lançamento deva estar entre 24o e 26

o, o segundo entre 12

o e 13

o, e o terceiro

seja de 11o. Como já dissemos31, o segundo ângulo e uma queda vertical de

329,5 "punti" pelo ar também são parâmetros do experimento anotado no fólio

114v2, que Hill, assim, junta ao 81r num mesmo "contexto experimental".

28 Naylor 1975, p. 165.29 Naylor 1975, p. 165.30 Hill 1988, p. 655.31 Ver p. 101 do capítulo anterior.

Page 116: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 115

A Descoberta da Trajetória Parabólica

Não se pode postergar mais a busca da resposta à seguinte questão:

por que razão Galileo estaria buscando, no experimento do fólio 81r, ângulos

cada vez menores para os lançamentos?

Hill e Naylor têm a mesma opinião, a de que Galileo está procurando nos

experimentos anotados no fólio 81r confirmar ser parabólica a trajetória dos

projéteis. A redução do ângulo é necessária para que a linha traçada pelo

projétil se aproxime de uma semiparábola que tenha o vértice no alto da mesa,

onde o lançamento se inicia. A progressiva diminuição das inclinações do plano

vai tornando a trajetória parabólica cada vez mais reconhecível pois, na

situação limite em que o vértice da semiparábola coincide com o ponto de

lançamento, os alcances horizontais e as alturas de queda medidas a partir da

mesa se relacionam através das propriedades demonstradas por Apolônio e

por Galileo que foram comentadas no quarto capítulo deste trabalho.

Se no fólio 81r está a confirmação da forma das trajetórias dos projéteis,

resta ainda a questão de como Galileo a teria descoberto . Hill rejeita a opinião

de Drake e MacLahlan, que pensam que a descoberta se deu quando da

realização do experimento anotado no fólio 116v - pois o crê posterior ao fólio

81r, como veremos a seguir - e dá uma curiosa sugestão:

"Entretanto há uma outra interessante possibilidade, que inicialmente me foi sugeridaem conversa por James MacLachlan. Fluxos de água freqüentemente traçam arcosde parábola, e qualquer um que fosse familiarizado com as propriedades deparábolas poderia facilmente reconhecer isto - se questões a respeito de trajetóriasestivessem em algum lugar de sua mente. MacLachlan, eu creio, estava pensandoem fontes e drenos. Um exemplo muito mais comum é a urina masculina...32

Um processo possível - e muito mais elegante - nos é sugerido pelo

próprio Galileo, na segunda jornada dos Discorsi. Lá, na primeira das "novas

ciências", as linhas parabólicas também aparecem, não em trajetórias, mas

delimitando contornos da "forma que um sólido deveria ter para que todas as

suas partes tivessem igual resistência, de modo que não fosse mais fácil

quebrá-lo por intermédio de um peso que atuasse em seu centro ou em

32 Hill 1988, p. 667.

Page 117: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Júlio C. R. Vasconcelos 116

qualquer outro ponto.33". Uma vez que este sólido é obtido mediante um corte

parabólico num prisma, Sagredo ressalta que "seria importante para os

artesãos possuir uma regra fácil e rápida para poder traçar essa linha

parabólica sobre o plano do prisma". Salviati lhe dá duas regras, uma das quais

é a seguinte:

"...Tomo uma bola de bronze, perfeitamente redonda, não maior que uma noz; esta,lançada sobre um espelho de metal, colocado não perpendicularmente ao horizontemas um pouco inclinado de modo que uma bola possa rolar sobre sua superfície,pressionando-a levemente no movimento, deixa uma linha parabólica muito nítida eprecisa, mais larga ou mais estreita segundo o ângulo de projeção seja mais oumenos elevado. Mediante essa experiência evidente e sensível vemos também que omovimento dos projéteis se dá por linhas parabólicas: efeito que foi primeiramenteobservado por nosso amigo, o qual aporta também a demonstração em seu livrosobre o movimento que examinaremos em nosso próximo encontro. Para que a bolapossa descrever as parábolas do modo indicado, é necessário que ela seja aquecidacom as mãos e um pouco umedecida, para que possa assim deixar mais aparentesseus vestígios sobre o espelho..."34.

Dificilmente se tem aqui uma experiência de pensamento, a julgar por

estas últimas indicações de Galileo para tornar mais visíveis os "vestígios" da

bola. Não é improvável, e as palavras acima aliás o sugerem, que este tenha

sido o modo pelo qual Galileo primeiramente visualizou a forma da trajetória de

um projétil.

Invertendo a opinião de Drake, Naylor, Hill e a maioria dos analistas hoje

crêem que a descoberta da trajetória parabólica antecedeu a descoberta da lei

correta da queda dos corpos35 e que o experimento confirmador está

preservado no fólio 81r. Após a confirmação da forma da trajetória dada pelo

fólio 81r, Galileo teria planejado os experimentos dos fólios 114v2 e 116v,

nesta ordem, para verificar a lei de queda dos corpos e sua teoria dos projéteis

a ela associada36.

Hill e Naylor, assim, discordam de Drake relativamente à sua

interpretação da finalidade do fólio 116v, que seria a de confirmar a chamada

inércia horizontal37. Para Naylor, por exemplo, Galileo "concluiu de suas

33 As explicações e as demonstrações de Galileo para essa forma ideal estão às pp. 137/144de Duas Novas Ciências.34 Galileo 1988a, p. 144.35 Ver, por exemplo, Hill 1988, p. 662.36 Naylor 1990, pp. 701/703.37 Ver capítulo anterior, pp. 91/95.

Page 118: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Os manuscritos redescobertos em 1973 e o programa experimental de Galileo Galilei 117

investigações que somente se a inércia horizontal fosse conservada (sic) a

trajetória seria parabólica"38. Assim, não é a lei de queda que é tomada como

premissa nos experimentos dos fólios 114v2 e 116v a fim de testar a inércia

horizontal; ao contrário, Naylor e outros pensam que Galileo não vê

necessidade de confirmar experimentalmente esta última, e se apóia nela para

verificar sua lei de queda.

Naylor e Hill nos ensinam que embora as propriedades dos projéteis

sejam, na ciência do movimento que Galileo nos apresenta nos Discorsi,

subordinadas à teoria do movimento naturalmente acelerado, no contexto de

descoberta elas vêm primeiro. Se eles estão corretos - e tudo indica que sim - a

descoberta e a confirmação da forma da trajetória dos projéteis foram as

grandes impulsionadoras da saída de Galileo daquilo que Isabelle Stengers

chama de "labirinto" conceitual39: de posse desse dado seguro, Galileo pode

superar as dificuldades de sua herança medieval - como por exemplo a falta de

um conceito de velocidade instantânea - rejeitar a crença inicial na

proporcionalidade da velocidade à distância de queda e estabelecer, por fim, a

lei correta da queda dos corpos. Estando na base do prolífico programa

experimental de Galileo, a descoberta e a confirmação das trajetórias

parabólicas dos projéteis marcam também o início da moderna Física

Experimental; se outra razão não houvesse para que se dedique maior atenção

à quarta jornada dos Discorsi, esta bastava.

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Page 121: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre ocandor lunar

Marcelo MoschettiProfessor Assistente/UNICENTRO

Resumo: A tese galileana sobre a luz secundária observada na Lua quandopróxima da conjunção com o Sol remonta a1610, data de publicação doSidereus Nuncius. Ela é retomada nas cartas Sobre as manchas solares(1613) e no Diálogo sobre os dois máximos sistemas de mundo: ptolomaicoe copernicano (1632). Sua importância se deve tanto ao caráter decisivodessa interpretação das imagens celestes na controvérsia cosmológicacausada pelo modelo heliocêntrico de Copérnico quanto às próprias regras– geométricas – que permitiram tal interpretação. Dessa maneira, o estudoda polêmica tardia (1640) pode incrementar a compreensão de um dosfatores apontados por parte significativa dos estudiosos - a geometrizaçãoda Física.

Palavras-Chave: Galileu Galilei (1576-1642), Filosofia da Natureza, Históriada Ciência.

Muitos dos escritos de Galileu são marcados pela discussão, em geral

pouco amistosa, com seus contemporâneos. No Diálogo (1632) e nos Discorsi

(1638) o conjunto de seus opositores é representado pelo interlocutor

Simplício, cuja capacidade intelectual mostra claramente o pouco apreço que o

filósofo tinha por eles. Já no Ensaiador (1623) e nas cartas sobre as manchas

solares (1612-13) os adversários são citados diretamente. É esse também o

caso da carta a Leopoldo de Médici de 1640, sobre a luz secundária observada

na Lua, conhecida como “Sobre o candor Lunar”. A vítima, dessa vez, é

Fortúnio Liceti, um defensor da tradição aristotélica que havia publicado, no

ano anterior, o Liteosphoro, sobre uma pedra fosforescente encontrada em

Bolonha décadas antes. Essa obra contém um capítulo dedicado à

contraposição da explicação galileana sobre a tênue iluminação que se

observa na parte escura do disco lunar no período próximo à conjunção com o

Sol.

Desde o advento do Liteosphoro, a resposta de Galileu passou a ser

cobrada por seus correligionários, como antes havia acontecido com a

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 122: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 121

discussão sobre os cometas que culminaria com a publicação do Ensaiador.

Em resposta à solicitação de seu empregador, o príncipe Leopoldo de Médici, o

autor escreveu a primeira versão da carta que é objeto deste trabalho.

Segundo Favaro, editor das Opere de Galileu, “Galileu não apenas se

apressou, como era natural, em mandar cópia à S. A. [o príncipe Leopoldo],

mas divulgou-a por toda a Itália, e enviou exemplares manuscritos também

para o exterior”1.

Diante da divulgação da carta, Liceti solicitou permissão para publicá-la

junto com sua tréplica, o que aconteceria em 1641. Nesse ínterim, Galileu

reformulou o texto, diminuindo a aspereza com que tratava o adversário e

adicionando, segundo suas próprias palavras, algumas “consideraçõezinhas”2.

Graças a Favaro, que fez um primoroso trabalho de apresentação dessa obra

com base em diversos manuscritos, pode-se reconstituir diversas etapas dessa

reformulação. Optei por trabalhar apenas com a última versão, a que foi

publicada por Liceti, cuja tradução devo concluir nos próximos meses. Meu

propósito, nesta comunicação, é analisar algumas passagens da carta que

podem contribuir na discussão de um dos principais temas galileanos: a

geometrização da natureza.

Antes de chegar à carta propriamente dita, é necessário compreender a

polêmica em que ela está envolvida. A luz secundária, ou candor, é uma

importante arma de Galileu em seu ataque à cosmologia aristotélica. O

problema cosmológico estava colocado desde Copérnico, pois a remoção da

Terra do centro do universo era incompatível com o cosmo hierarquicamente

ordenado de Aristóteles, que diferenciava céu e Terra. Para o último, a matéria

celeste e as leis a que ela estava submetida eram completamente diversas da

matéria e das leis do mundo terrestre3. Aceitar o modelo copernicano, no qual a

Terra passou a ser considerada um planeta como os outros, e o centro do

universo passou a ser ocupado pelo Sol, significava abandonar a tradição, e

1 FAVARO, A. (ed.). Le Opere di Galileu Galilei. Edizione Nazionale. Florença: Barbèra, 1968,v. VIII, p. 470. As referências seguintes às Opere conterão simplesmente Ed. Naz., volume epágina.2 Ed. Naz., VIII, 472.3 O rompimento de Galileu com a distinção aristotélica entre céu e Terra foi o tema de minhadissertação de mestrado.

Page 123: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Marcelo Moschetti 122

ainda não havia uma nova teoria física capaz de sustentar a novidade. Por

isso, a história da defesa de uma cosmologia heliocêntrica se confunde com a

do nascimento da ciência moderna.

Ao lado desse rompimento com a distinção entre céu e Terra, e

intimamente ligada a ele, como ressalta Alexandre Koyré, está a geometrização

da natureza – a nova maneira de compreender o mundo característica da

ciência moderna. Por isso, Galileu Galilei foi um dos protagonistas desse

processo, ao recusar o dualismo cosmológico tradicional a partir do

questionamento da coerência lógica dos princípios da Filosofia Natural

aristotélica e com base em suas observações telescópicas, bem como ao

estabelecer a matemática como a linguagem necessária para a compreensão

do “livro da natureza”.

A passagem mais conhecida (e certamente uma das mais importantes)

da obra galileana está contida no parágrafo sexto do Ensaiador (1623):

“...A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que aí está aberto continuamentediante dos olhos (isto é, o universo), mas não se pode entendê-lo se primeiro não seaprende a entender a língua e conhecer os caracteres nos quais está escrito. Ele estáescrito em língua matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figurasgeométricas, meios sem os quais é humanamente impossível entender-lhe sequeruma palavra; sem estes trata-se de um inútil vaguear por um obscuro labirinto...”4

Para Galileu, os dados sensíveis sobre o mundo podem e devem ser

expressos matematicamente. Anteriormente, ao analisar as imagens obtidas a

partir da observação telescópica, Galileu já havia aplicado essa idéia à

interpretação de dados visuais. No parágrafo 48 do Ensaiador, a idéia é

radicalizada para todo o sensível, a matemática passa também a ser a base do

conhecimento a respeito de qualidades como odores e sabores, as

(posteriormente) chamadas “qualidades secundárias”. A astronomia

matemática tradicional já havia mostrado, desde a antigüidade, que o

movimento é passível de tratamento quantitativo. Com sua tese sobre a

percepção e as qualidades primárias e secundárias Galileu supera o problema

da heterogeneidade entre os dados da experiência sensível e a matemática. Ao

4 Ed. Naz., V, p.232. Utiliza-se nesta passagem a tradução de C. A. R. Nascimento, apudNASCIMENTO, C. A. R., De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1988,p. 176.

Page 124: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 123

atribuir as qualidades secundárias à percepção, e ao supor fatores

quantificáveis não percebidos imediatamente no objeto, o autor define as

condições do conhecimento da natureza, conforme havia estabelecido no

parágrafo sexto: a leitura do livro escrito em caracteres matemáticos.

Especificamente no que se refere aos dados visuais, a aplicação da

geometria é bastante evidente: é ela que permite compreender imagens

celestes e terrestres segundo os mesmos critérios e demonstrar as

semelhanças entre a Terra e os astros. A partir das observações do Sol, da

Lua e dos planetas, interpretadas geometricamente, o autor demonstra a

existência de diversas alterações e imperfeições no céu, o qual, conforme a

tradição, deveria ser perfeito e inalterável. Isso abre espaço para que todo o

universo seja interpretado segundo as mesmas leis, contrariando as teses

cosmológicas tradicionais.

Um dos principais argumentos empíricos a favor da semelhança entre

céu e Terra obtido por Galileu provém da observação da luz secundária na Lua,

que mostra que nosso planeta ilumina seu satélite assim como é iluminado por

ele. A questão era tão importante e de difícil aceitação para os tradicionalistas

que, em 1640, trinta anos após sua divulgação e fundamentação no Sidereus

Nuncius, o autor ainda respondia a objeções naquele que foi seu último escrito

científico: a carta em resposta ao Liteosphoro de Fortunio Liceti.

A tese principal de Liceti, no capítulo L do Liteosphoro, é a seguinte:

“...essa tênue iluminação não é a luz solar que, refletida na Terra, atinge a superfícielunar [...] ela há de ser o conjunto formado pela débil luz nativa da Lua e pela luz doSol repercutida na mesma e refletida nas partes altas do éter que circunda o corpolunar...”5

O autor do Liteosphoro considera dupla a origem do candor observado:

1) a Lua absorve a luz do Sol quando é iluminada por ele e,

posteriormente, mostra-se fracamente luminosa, como a pedra bolonhesa,

durante um certo tempo;

2) no momento em que a luz secundária é observada, quando o satélite

está mais próximo do Sol (conjunção ou lua nova), o ambiente reflete a luz

5 Ed. Naz., VIII, 483.

Page 125: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Marcelo Moschetti 124

solar para sua face voltada para a Terra, da mesma maneira que a Terra se

mantém iluminada algum tempo após o desaparecimento do Sol no horizonte.

A estrutura da resposta de Galileu é bastante simples: o autor apresenta

a tese do adversário, e depois um breve resumo da sua própria, para então

discutir pontualmente o capítulo em que é criticado por Liceti. O primeiro ponto

examinado é o subtítulo de tal capítulo, “digressão físico-matemática”. Galileu

se detém sobre a palavra digressão e a interpreta como uma confissão de que

o capítulo é desnecessário. Ironicamente ele compara o Liteosphoro a um

banquete, que não é melhor ou pior devido à presença do que é necessário,

isto é, comida e bebida, mas em função do que há além do necessário. Tal

passagem é um dos mais belos exemplos da retórica galileana, ainda que não

seja de tão grande interesse para este trabalho quanto a discussão do restante

do subtítulo: físico-matemática. Diz Galileu:

“...E porque ele procede como matemático e físico, seguirei examinando comofilósofo, se é que o sou, e como matemático, as suas oposições, fazendo tambémalgumas poucas considerações acerca da forma de argumentar que ele por vezesapresenta quanto à sua conformidade aos preceitos dialéticos postos porAristóteles...”6

Durante toda a carta, como veremos, Liceti será ironizado por sua

ignorância em matemática (ainda que Galileu não esteja se referindo

exatamente aos conhecimentos matemáticos comuns à maior parte dos

eruditos seus contemporâneos). Além disso, como notou o professor Pablo

Mariconda7, que recentemente traduziu e comentou uma carta de Galileu a

Liceti envolvida nessa mesma polêmica, também a conseqüência lógica da

argumentação licetiana é questionada (concordo com Mariconda que a mais

tradicional lógica aristotélica é considerada por Galileu uma necessidade para a

aquisição do conhecimento filosófico e científico).

Embora todo o texto da carta seja extremamente interessante e rico, a

discussão a seguir será limitada a algumas passagens particularmente

interessantes em vista do meu interesse nesta comunicação, a geometrização

da natureza: a resposta a um argumento do adversário que afirma que, se

6 Ed. Naz., VIII, 495-496.7 MARICONDA, P. “Lógica, experiência e autoridade na carta de 15 de setembro de 1640 deGalileu a Liceti”. In: Scientiae studia, 1, 1, 2003, p. 63-73.

Page 126: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 125

Galileu estivesse correto, o centro do disco lunar dever-se-ia mostrar mais

iluminado que a periferia. Segundo Liceti:

“...se o candor da Lua derivasse do reflexo da luz terrestre, ele deveria ser maisluminoso no centro de sua face escura que na região mais próxima da margemextrema...”8

Isso ocorreria porque, sendo a Lua uma esfera, o centro de sua face

voltada para nós estaria mais perto da Terra, origem dessa iluminação. Liceti

usara o mesmo princípio em uma objeção anterior, no mesmo texto, que

permitiu a Galileu atacar a coerência lógica do discurso licetiano. Ora, no que

se refere à luz secundária, o disco lunar se mostra iluminado de maneira

praticamente uniforme na conjunção, e não mais iluminado no centro que na

periferia. Liceti pretende que isso refute a opinião do adversário. Não

examinarei aqui toda a resposta, mas apenas uma questão que venho

mapeando através da obra de Galileu: a diferença entre o reflexo da luz em

superfícies opacas e em espelhos. Para Liceti, como para outros aristotélicos, a

perfeição que estes atribuíam ao céu incluía, além da ausência dos diversos

tipos de mudança, a esfericidade perfeita, ou seja, a superfície dos astros era

considerada lisa e polida como um espelho. Essa questão é recorrente no

debate de Galileu com os tradicionalistas, e mostra de uma maneira

interessante o que é, para Galileu, dicorrer físico-matematicamente. Quanto à

iluminação uniforme do disco lunar, Galileu nota que

“...Isso dificilmente aconteceria se o globo lunar fosse polido e liso como um espelho,mas ele é tão irregular quanto a Terra, se não for mais; e sobre ele não receber maioriluminação que a periferia extrema, muito claramente o mostra a própria lua, quando,na oposição [lua cheia], plena de luz do Sol, mostra igualmente luminosa, semnenhuma diferença entre o centro e a extremidade, o que prova sua irregularidade e ofato de os raios solares não se desviarem para a circunferência extrema, a qual, sefosse polida como um espelho, jamais seria vista pelos homens, como demonstreilongamente algures...”9

Diferentemente da maioria de seus opositores, Galileu conhecia a

maneira como a luz é refletida em espelhos e em superfícies mais rugosas. A

referência que ele faz a essa discussão é, provavelmente, à primeira jornada

8 Ed. Naz., p.484.9 Ed. Naz., VIII, 518.

Page 127: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Marcelo Moschetti 126

do Diálogo10, onde, com uma longa enumeração de observação do reflexo da

luz em diferentes superfícies polidas e rugosas, o autor mostra que, ao

contrário dos mais diversos espelhos, as superfícies mais ásperas são mais

aptas a se iluminar igualmente. Devido às irregularidades presentes em uma

parede, por exemplo, ela reflete os raios luminosos igualmente em todas as

direções, o que causa o efeito observado. Diversamente, um espelho convexo

iluminado pelo Sol mostra uma imagem do astro bastante reduzida, no centro,

enquanto a periferia do mesmo não se ilumina. Tais explicações, decorrentes

da consideração geométrica da reflexão da luz em cada tipo de superfície, não

surgiram pela primeira vez no Diálogo, mas o autor multiplicou-as no mesmo

após décadas de dificuldades em explicar esse ponto aos eruditos seus

contemporâneos.

O autor continua, na carta, citando espelhos côncavos, pois Liceti lhe

atribui erroneamente a tese de que as crateras lunares são como tais espelhos:

“...exposto um de nossos espelhos côncavos aos raios solares, que luz eles refletem?Seguramente nenhuma; e, todavia, é verdadeiro o refletir vigorosamente de tais raiose os mesmos são verdadeiramente potentes ao iluminar corpos opacos, maispotentes que a própria luz solar; mas é necessário pôr, na cúspide do cone, oupróximo a ela, alguma matéria densa e opaca, a qual, em contato com tais raios,deverá iluminar e machucar a vista mais que o próprio Sol, mormente se o espelho forgrande [...]que os raios refletidos por um espelho côncavo não vão unir-se em figurade cone senão a uma pequena distância desse espelho e que sua vivacíssima luznão pode ser vista senão em alguma matéria densa e opaca... ”11

Galileu admite que um espelho côncavo reflete poderosamente os raios

de luz, como pretendia Liceti. Ainda assim, nota que, se não houver uma

superfície áspera no ponto exato para onde a luz é refletida, esse reflexo

sequer será visto. Ele conhece as características dessa reflexão, a formação

do cone de luz, e as leis que determinam o foco da reflexão. Uma atenção à

experiência sensível já mostra a diferença do reflexo em um espelho e em uma

superfície áspera. Galileu vai além, e mostra o motivo disso, com base na

consideração geométrica do comportamento da luz.

Essa discussão ilustra perfeitamente o que é para Galileu discorrer

físico-matematicamente. Decerto ele não nega que a lógica é necessária para

10 Ed. Naz., VII, 94-105.11 Ed. Naz., 520.

Page 128: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A matemática e os dados visuais na carta de Galileu Sobre o candor lunar 127

o correto raciocinar. A divergência para com os tradicionalistas é a respeito de

outras coisas. Concordo novamente com Mariconda a respeito da importância

da cuidadosa observação da natureza no método galileano. A experiência

sensível é fundamental, para o autor, para que se alcance algum conhecimento

sobre a natureza. Em princípio, não era isso que o diferenciava dos defensores

de Aristóteles. Os dados sensíveis também eram fonte de conhecimento para

os aristotélicos, chamados de “físicos puros” em oposição ao discurso físico-

matemático de Galileu. Eis outro trecho da carta, muito breve, no qual o autor

defende tal discurso:

“...O discurso matemático serve para superar aqueles obstáculos com os quais àsvezes o puro físico corre o risco de chocar-se e se quebrar...”12

Para Galileu, além da lógica e da experiência sensível, é a matemática

que permite, a partir da experiência, compreender aquilo que não é

imediatamente dado na mesma. Como diz C. A. R. Nascimento, “não basta a

experiência nua. Esta deve ser integrada num saber e num saber

geométrico”13. Enquanto para os aristotélicos, “puros físicos”, o discurso

matemático é no máximo uma digressão, para Galileu ele é condição

necessária para o conhecimento da natureza.

Os apontamentos feitos acima são a respeito do que é discorrer físico-

matematicamente na obra galileana. Certamente o tema é mais amplo e

complexo: dever-se-ia considerar também outros aspectos da obra, em

especial o tratamento que é dado ao espaço nas discussões sobre o

movimento. Isso levaria a diversas outros textos, principalmente os Discorsi. Os

objetivos aqui são mais modestos. Pretendo apenas ter lançado alguma luz

sobre a geometrização das imagens visuais, telescópicas ou não. Estas

mostram que, apesar de Galileu não ter desenvolvido uma teoria da ótica

geométrica, suas análises de tais imagens são importantes exemplos do que é

a física matemática. Não era necessário que ele o fizesse, pois os princípios de

que se utiliza não eram novidade no séc. XVII. Ao contrário, remontam à

Perspectiva, ciência intermediária medieval, devedora de Euclides. Já a

12 Ed. Naz., 521.

Page 129: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Marcelo Moschetti 128

familiaridade de Galileu com tais princípios, ignorados total ou parcialmente

pela maioria de seus adversários, parece ter uma origem menos acadêmica: as

conquistas da pintura italiana, baseadas na geometria euclidiana e

sistematizadas em diversos tratados renascentistas, como o Da Pintura, de

Alberti, são uma importante chave para compreender a geometrização dos

dados visuais. A relação de Galileu com a pintura é um tema que exige um

trabalho de mais fôlego. É necessário dizer que tal tese não está, de maneira

alguma, demonstrada nesta comunicação. Trata-se de um tema mais amplo,

em vista do qual a carta a Liceti é particularmente esclarecedora (por ora basta

dizer que a expressão “luz secundária” é um termo oriundo da pintura

renascentista, com exatamente o mesmo sentido que ela tem na referência à

Lua).

13 NASCIMENTO, C.A.R. De Tomás de Aquino a Galileu. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998,p. 171.

Page 130: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Continuidade e movimento em Bradwardine

Márcio Augusto Damin CustódioDepartamento de Filosofia/UFBA

Em seu tratado conhecido como De continuo1 (circa 1325-1343),

Bradwardine estabelece uma correspondência entre o contínuo geométrico

(linha, plano e figura) e o contínuo físico (por exemplo, o calor, a brancura e,

fundamentalmente, o movimento local) com o intuito de dar suporte

epistemológico à medição do movimento, e o faz aderindo à crítica de

Aristóteles ao atomismo, o que lhe traz dificuldades: Como medir o contínuo

sem numerá-lo? Ou é possível numerá-lo? Como utilizar pontos para medir a

natureza sem admitir a existência de indivisíveis? Meu objetivo, nesta

comunicação, é detalhar a estratégia argumentativa de Bradwardine que,

acredito, foi concebida para ajustar a medida do movimento às teses sobre o

contínuo e o indivisível de Aristóteles.

O De continuo não possui um caráter puramente matemático, como já

fica claro pelos termos definidos em sua primeira parte: contínuo, superfície,

linha, ponto, instante, mas também corpo, movimento, motum esse, sujeito de

movimento e grau de movimento. Assim, de acordo com as definições, o termo

contínuo pertence tanto ao domínio da matemática quanto ao da filosofia da

natureza, como se esclarece na suposição 120:

1 O tratado de Bradwardine sobre o contínuo pode ser descrito como um texto polêmico, contraos que afirmam que o contínuo é composto por partes indivisíveis. Alguns historiadores daciência defendem que seria uma resposta direta a Ockham. Como o De proportionibus (1328),o De continuo também está escrito em forma axiomática, com definições e suposições queforçam o leitor a acatar as conclusões do texto. Apesar dessa estrutura prevalecer, há seçõesnas quais Bradwardine simplesmente apresenta uma contra-hipótese ao assunto tratado, aqual segue uma série de conclusões com o mote “se isto for assim, então...”, ou seja, se acontra-hipótese fosse verdadeira, então, seguir-se-ia tal conclusão que, no esquema deargumentação, ou seria falsa ou seria impossível. Estas seções têm o objetivo de reduzir ascontra-hipóteses ao absurdo. Já as partes estritamente axiomáticas do De contínuo são asprimeiras e encontram-se divididas em definições, suposições e conclusões preliminares, àsquais se seguem duas partes negativas escritas ao modo dialético, lançando-se mão de contra-hipóteses sobre relações de indivisíveis com o contínuo, todas reduzidas ao absurdo. Naseqüência, o texto encerra com duas partes axiomáticas: a primeira afirma que todas ashipóteses que sustentam que o contínuo é composto por indivisíveis são falsas, e a segundaconclui que indivisíveis não existem, mas que o contínuo existe.

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 131: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Márcio Augusto Damin Custódio 130

Assuma que dois líquidos se unem para formar um contínuo. Então, dois indivisíveis,que eram anteriormente o término dos dois corpos líquidos, não serão nemcorrompidos nem outros serão gerados a partir deles. Assim, eles permanecemimediatos e também os pontos de quantidade situados neles. Desse modo, por[suposição] 30, isto ocorre com todo e qualquer contínuo. (De continuo, 105*-106*/443-444) 2

Ao falar de líquidos, i.e, corpos, Bradwardine não hesita em recorrer à

suposição 30 (“Se um contínuo tiver átomos imediatos, seja ele finito ou infinito,

então cada contínuo deverá possuir tais átomos”),3 puramente matemática, o

que permite afirmar que não parece haver problema, para ele, em passar de

um contínuo matemático para um contínuo-natureza na argumentação. Cabe

ressaltar que essa passagem argumentativa entre a matemática e a filosofia da

natureza não é uma novidade bradwardiniana, embora se dê à revelia da

proibição da metabasis, i.e, da transposição de argumentos de uma ciência

para a outra, respeitada pelo aristotelismo medieval. 4 A relação entre contínuo

e movimento pode ser inferida da própria apresentação que Aristóteles faz, na

Física, da relação entre o movimento e o tempo, este último entendido

enquanto medida ou número do movimento. É da indicação feita por Aristóteles

que Bradwardine sugere extrair seu objeto de estudo, i.e, calcular o movimento,

e também sugere que no texto do estagirita já se encontrava a via a ser

seguida, i.e, geometrizar a definição de contínuo que se aplica na filosofia da

natureza.5 A dificuldade está em estabelecer um arranjo geométrico que dê

suporte para o cálculo do movimento, tal qual se entende “movimento”, sem

alterar o conceito aristotélico, nem pela redução à noção de locomoção ou

movimento local; ou seja, Bradwardine lida com a noção aristotélica de

movimento e de mudança enquanto transição do ato para a potência também

nas categorias da qualidade, da quantidade e da substância, além da categoria

2 Cito sempre a página do manuscrito com um asterisco, seguida da página do texto na tese dedoutorado de MURDOCH. Geometry and the continuum in the Fourteenth Century: aphilosophical analysis of Thomas Bradwardine’s Tractatus de Continuo. Tese de Doutorado.Madison: University of Wisconsin, 1957.3 De continuo, 41*/379.4 Minha abordagem sobre o estatuto da matemática e das ciências intermediárias naclassificação das ciências do aristotelismo medieval foi desenvolvida em: CUSTÓDIO, M.Implicações do problema da interdependência entre a História e a Filosofia da Ciência em ImreLakatos, 1998.5 Na Física, a definição de contínuo aparece seguida por exemplos que se valem de corposextensos, portanto próprios da filosofia da natureza, não da matemática. Vide Física V, 3,226b34-227a16.

Page 132: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Continuidade e movimento em Bradwardine 131

do lugar.6 Para cumprir esse objetivo, Bradwardine trabalhou, separadamente,

em duas frentes: na definição de contínuo e na aplicação da definição em

descrições e explicações sobre o movimento.

Murdoch7 comenta que a dificuldade em definir o contínuo decorre de

duas características que se lhe atribuía: que uma quantidade contínua é aquela

cujas partes têm extremidades comuns, e que uma quantidade contínua é

divisível em partes divisíveis ao infinito. A primeira afirmação sustenta que cada

parte é distinta e, portanto, tem um limite definido, mas, ao mesmo tempo,

também sustenta que cada parte está conectada com a outra, de modo que

seus limites sejam comuns e formem uma unidade. A segunda afirmação, ao

contrário da primeira, designa a multiplicidade do contínuo. Juntas, as duas

afirmações indicam como as partes compõem o contínuo essencialmente uno

e, mesmo assim, divisível em partes.

Aristóteles propôs um caminho para superar o problema, a saber, negar

que pontos ou quaisquer outros indivisíveis possam compor um contínuo.

Todavia, tal proposta não elimina as dificuldades de compreensão da relação

entre o contínuo e suas partes. Por exemplo, o ponto, enquanto um discreto

indivisível, pode ser compreendido como o limite de duas partes contínuas de

um contínuo. Nesse caso, teríamos que afirmar que o ponto está no contínuo, o

que leva a possibilidade de compreensão do contínuo como composto por

indivisíveis. Contudo, não se deve considerar a possibilidade de discretos, i.e,

indivisíveis, como pontos, conectarem-se.8

6 De continuo, prop. 25 (39*/377).7 Vide MURDOCH. 1957, especialmente pp. 1-74; MAIER, A. Kontinuum, Minima und aktuellUnendliches. in: Vorläufer Galileis; DUHEM, P. Leonard de Vinci et les deux infinis. in: Etudessur Leonard de Vinci, Cap. IX.8 Murdoch sustenta que a popularidade do “problema do contínuo” é tal que se tornouobrigatório para qualquer um que escrevesse sobre a Física, as Categorias ou mesmo o Decaelo, ainda que fosse para resolver questões bem diversas daquela que levou Aristóteles aestabelecê-lo. Para os contemporâneos de Bradwardine, o tratamento do contínuo permitirianão somente medir o movimento, mas abordar problemas, contextualmente, mais relevantes,como: Pode um anjo mover-se de um lugar para outro em movimento contínuo? Toda causa é,segundo sua própria natureza, circunscrita por certos limites? Deve-se atentar para estacaracterística do pensamento medieval, ou seja, noções que para nós caracterizam-seunicamente como de interesse da física, bem como de ciências correlatas a ela, eramdiscutidas não apenas no âmbito da filosofia da natureza, mas também no âmbito da teologia.A duas questões são, respectivamente, de DUNS SCOTUS. In lib. II sententiarum. Dist. II, q. 9e RICHARD KILLINGTON. Commentaria sententiarum. Q. 3. Apud MURDOCH, 1957: 15.

Page 133: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Márcio Augusto Damin Custódio 132

Tais dificuldades para compreender a composição do contínuo talvez

sejam um sintoma da dupla definição que se encontra em Aristóteles:

a) “Diz-se que algo é contínuo quando os limites de cada um, que

se tocam, tornam-se um e o mesmo e estão, como a palavra

indica, contidos em cada um” (Física V, 3, 227a11-12);9

b) “Por contínuo eu quero dizer aquilo que é divisível em divisíveis

que são infinitamente divisíveis” (Física VI, 2, 232b24-25).10

Como Murdoch faz notar (1957: 78), a dupla definição de Aristóteles

contraria sua própria proibição da múltipla definição (Tópicos VI, 4, 141b37).

Mais ainda, a definição (b), que as partes do contínuo são infinitamente

divisíveis, tem origem na definição (a): no contínuo, todas as partes estão

conectadas. 11

Bradwardine parte da dupla definição de Aristóteles, mas não esboça

qualquer compreensão da derivação da definição de (a) para (b). Como lembra

Murdoch (1957: 78-79), uma definição derivada de outra não é um princípio, o

que possibilita, ao menos por suposição, que se admita que o contínuo é

composto por indivisíveis, conectados de algum modo. Deve-se, contudo,

impedir a admissão de indivisíveis enquanto componentes do contínuo, o que

leva Bradwardine a retrabalhar sua suposta conexão. Isto porque, enquanto

toda conexão se der por limite comum ou por contato, é necessário admitir que

ambos, limite e contato, requerem indivisíveis. Bradwardine foge dessa

impossibilidade por uma terceira via, que não pode ser encontrada na filosofia

da natureza de Aristóteles. Sua solução reside em lançar mão de um truque,

9 Também: “Uma linha, por outro lado, é uma quantidade contínua, pois é possível encontrarum limite comum no qual suas partes se juntam” (Categoria 6, 5a1-2).10 Vide também De caelo I, 1, 268a6-7 e Física I, 2, 185b10.11 A argumentação que parte de (a) para obter (b) foi assim exposta por Murdoch (1957).Impossibilidade dos Indivisíveis pela noção de limite: Indivisíveis não podem ter limites, poislimite é limite de algo, o que quer dizer que o limite é diferente deste algo que limita,integrando-o como parte; contudo, o indivisível não pode ser dividido em partes; Por nãopossuírem limite, os indivisíveis não podem ser as partes do contínuo, i.e., aquelas quepossuem limites comuns. Impossibilidade dos Indivisíveis pela noção de contato: Todo contatodá-se de três formas: parte com parte; parte com todo; todo com todo; As duas primeiras sãoimpossíveis uma vez que o indivisível não tem partes; Quanto ao terceiro, se as partesindivisíveis do contínuo forem o todo do contínuo, isto implica afirmar que uma parte não serádistinta de outra parte; Se o contínuo é divisível em indivisíveis, estes indivisíveis têm que estarem contato uns com outros; Porém, isto é um absurdo, pois indivisíveis parecem não poderentrar em contato.

Page 134: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Continuidade e movimento em Bradwardine 133

qual seja, o de deslocar para o âmbito da matemática a noção de conexão, de

modo a eliminar a necessidade de indivisíveis. A dificuldade para efetuar tal

deslocamento está na definição dada por Aristóteles, segundo a qual o

contínuo é uma espécie do gênero contíguo.

Algo é contíguo de duas maneiras: primeiro, são contíguas as coisas

que estão em contato, de modo que suas extremidades ou limites estejam

juntas ou estejam em um único lugar; segundo, são contíguas as coisas que

estão em sucessão, i.e, dispostas de modo que uma está após o início de

outra, sem que haja algo do mesmo tipo entre ambas. O contínuo é o segundo

tipo de contíguo, uma vez que suas extremidades ou limites são um. Todavia,

deve-se perguntar como duas coisas podem ter suas extremidades ou limites

comuns, uma vez que, se a extremidade pertence a A, parece estar excluída a

possibilidade de que a mesma extremidade pertença também a B, muito

embora a particularidade do contínuo seja, precisamente, o lugar das

extremidades em contato.12 Emprestando o exemplo da geometria: “Uma linha

não pode ser composta por pontos, sendo a linha contínua e o ponto

indivisível” (Física VI 1, 231a24-231b15).13 Esta é a propriedade que, para

Aristóteles, só pode ser aplicada ao contínuo, i.e, a diferença específica em

relação a outras formas de contigüidade. Então, como as partes, por

suposição, estão contidas no contínuo e como constituem o contínuo? Se as

partes são divisíveis, a solução para as duas questões é a mesma. De uma

parte divisível pode ser dito que ela está contida no e constitui o contínuo, uma

vez que suas extremidades são comuns a outras extremidades de outras

partes. Porém, se as partes em questão forem indivisíveis, como o ponto, i.e,

sem extensão (causa última da indivisibilidade), a resposta se complica.

Embora as partes sem extensão possam estar contidas no contínuo, não

podem compô-lo. Dito de outro modo, embora se possa dizer que essas partes

12 Aristóteles as denomina de “união natural” (προσϕβσις) ou “junção natural” (σβνϕυσις)segundo a tradução de MURDOCH, 1957: 81.13 Pode-se, ainda, compreender essa afirmação considerando que o ponto não tem existênciapor si mesmo, mas que dele pode ser dito existir na linha: “Tome a linha enquanto um contínuoque pode ser dividido em duas partes por qualquer ponto nela. A extremidade das duas partesé um único ponto ou, em outras palavras, eles têm um limite comum” (Metafísica III, 1090b5-13).

Page 135: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Márcio Augusto Damin Custódio 134

indivisíveis existam no contínuo, não se pode afirmar que possuem existência

por si mesmas, i.e, separadas do contínuo.

A resposta sobre como as partes constituem o contínuo só pode ser

dada se se compreende como estão conectadas, i.e, trabalhando a noção de

conexão. Tome como exemplo qualquer ponto que corta uma linha em duas

partes, servindo ao mesmo tempo de limite para ambas. Este tipo de

extremidade, a extremidade comum, é diferente da extremidade de contato dos

contíguos. Ao distinguir claramente entre essas duas extremidades, abre-se a

possibilidade de se distinguir entre o contínuo e o descontínuo, uma vez que

dois segmentos contíguos pedem duas extremidades de contato, com um

lapso, um corte entre ambas, e nem o ponto, nem a linha são o lapso ou o

corte. Em outras palavras, para extremidades de contato, há um salto entre

uma linha de um lado e uma linha de outro. No caso de dois segmentos de um

contínuo, não há lapso, uma vez que os extremos dos dois segmentos são

comuns. Esta propriedade, necessária para a definição de contínuo, fica

evidenciada a partir da noção de ordenação, que se vincula ao tratamento das

extremidades de uma reta, como o antes e o depois do que não é extremidade,

i.e, o meio.

Assim, por exemplo, o ponto, enquanto extremo de dois segmentos

contínuos de reta, ordena o que vem antes e o que vem depois de si. O ponto é

o extremo que vem depois para um segmento, ao mesmo tempo em que é o

extremo que vem antes para o outro segmento, ou seja, ordena, ao mesmo

tempo, os dois segmentos do contínuo. Esta ordenação nada mais é que o

limite ou a limitação do posicionamento espacial: o antes e o depois só

adquirem sentido em relação ao limite, i.e., o ponto. Porém, a continuidade só

se mantém se o limite e o limitado não forem distintos, pois, neste caso, ter-se-

ia algo na reta, o ponto, enquanto algo diferente da reta. Escapa-se desta

objeção por uma redução ao absurdo, uma vez que o ponto, cuja definição é

“sem extensão”, só pode ser dito estar na reta enquanto aquilo que ordena

impondo limite. Em outras palavras, o que limita está no que é limitado não

como constituinte, mas como ordenador. Logo, o ponto como extremidade

comum, compreendido a partir da noção de ordenação, diferencia-se da

extremidade contígua e garante a noção de continuidade.

Page 136: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Continuidade e movimento em Bradwardine 135

O que interessa a Bradwardine, nesta explicação do contínuo, é o

abandono da noção de extremidades (termini) e da adoção das noções de

conexão mútua e de cópula (copulatio). Não fosse a noção de ordenação, não

seria possível o uso de pontos para tratar do contínuo-natureza, sem que estes

representassem indivisíveis na natureza, i.e, átomos democritianos. O que se

pretende é que, por meio da representação do contínuo-natureza no espaço

geométrico, seja possível eliminar a referência a indivisíveis na natureza.

O abandono da noção de extremidade permite pensar a numeração —

entendida como marcação por particionamento — do contínuo por não recorrer

à cópula. Note que da sobreposição de dois, por exemplo, permanecem dois

distintos em quantidade e, por conseqüência, a sobreposição não pode formar

o contínuo, que é uno, nem ocorrer nele, ou seja, se se depende da

sobreposição para marcar e numerar, então se deve concluir pela

impossibilidade de fazê-lo. Isto porque a sobreposição equivale à presença de

duas ou mais quantidades distintas, em ato, no mesmo lugar, enquanto o

contínuo é, em ato, uno e suas partes são potencialmente distintas. A noção de

ordenação aparece, então, como a única escapatória dessa impossibilidade.

Seu truque é transportar tudo que se quer marcar e numerar, em vista de uma

medição, para o plano geométrico, no qual não há “cópula”, somente a

propriedade geométrica que Bradwardine denomina de impostação (impositio),

da qual não participa a noção de extremidade. Impostar é, nesse sentido,

acumular ordenações distintas.

Contudo, se a noção de impostação é compreensível no plano

geométrico, não o é na natureza. Afinal, como é possível “impostar” dois corpos

em um mesmo lugar? Como transportar de volta a noção, para a ciência na

qual se pretende trabalhar, i.e, a filosofia da natureza, sem que se suponha o

indivisível na natureza? Para responder a esta questão, é preciso tipificar o

indivisível. No De continuo encontra-se a seguinte divisão: Indivisível espacial,

A B C D

A DC B

Page 137: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Márcio Augusto Damin Custódio 136

o ponto (Def. 8); Indivisível temporal, um “átomo de tempo”, o “instante” (Def.

9); Indivisível de movimento, motum esse (Def. 10).

O que Bradwardine pretende é adequar a definição de indivisível (Um

indivisível é o que nunca pode ser dividido)14 à filosofia da natureza aristotélica.

Dito de outro modo, pretende-se eliminar os tipos de indivisíveis que a

contrariam. Tais tipos são aqueles que equivalem às interpretações atribuídas

a Demócrito. Ao mesmo tempo, pretende-se salvar o uso de indivisíveis

matemáticos para fins de medição. Deve-se garantir, contudo, que a defesa de

indivisíveis matemáticos não levante a menor possibilidade de compreendê-los

como existentes.

A interpretação atribuída a Demócrito é a que compreende o átomo

como um indivisível corpóreo. A indivisibilidade do átomo democritiano não

decorre deste não possuir partes, mas de ser incapaz de divisão. Em outras

palavras, se o átomo possui partes, estas não podem nunca se atualizar, isto é,

se separar. Logo, pode-se dizer que o indivisível é o que, possuindo ou não

partes, não pode ser dividido.15

Ao refutar tal posição, entretanto, deve-se evitar tratar o indivisível como

um ente não-quantitativo,16 posição que, nos informa Alberto da Saxônia, os

escolásticos muitas vezes tomam, partindo do caráter não-quantitativo do

contínuo, o que inviabiliza a partição, a numeração e a medição. A

argumentação de Bradwardine contra o caráter não-quantitativo do indivisível

parte da proposição que nenhum indivisibilista, segundo ele, pode negar:

“Nenhum indivisível é maior que outro”.17 A proposição é extensivamente

demonstrada, isto é, a conclusão pode ser extraída diretamente das

proposições apresentadas como premissas (De continuo, Sup. 1, def. 7;

conclusão da Prop.1). Contemporaneamente, e com a ressalva de que o

exposto na enumeração abaixo escapa do campo conceitual e histórico de

Bradwardine, poder-se-ia, como mera ilustração, propor a seguinte formulação:

14 De continuo, def. 7, 1*/339. Esta definição é muito semelhante, à primeira vista, às definiçõesAristóteles (Física VI, 1, 231b3) e Euclides (Elements, Book 1, prop. 1).15 Vide: Alberto da Saxônia. Questiones in octe libros physicorum Aristotelis, lib VI, Q1, folio64D, apud MURDOCH, 1957: 99.16 A definição quantitativa de indivisível é dada em um outro texto de Bradwardine, Geometriaspeculativa (Tract I, cap 1).

Page 138: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Continuidade e movimento em Bradwardine 137

1. Se a<b, então há um c tal que a+c=b, sendo c parte de b; ou se a >b,

então há um c tal que b+c=a, sendo c parte de a (Suposição 1)

2. Há um a1 e um b1 para os quais não há c (Definição 7)

3. Logo, a1b1 e a1∑b1, ou seja, a1=b1 (Proposição 1)

Note que a propriedade estabelecida na conclusão (3), isto é, a

igualdade, põe a questão da existência dos indivisíveis, uma vez que (1) e (2)

isolam e igualam um contínuo a outro.18 Quanto a (1), resta a dificuldade de

saber em que medida faz sentido falar de igualdade entre indivisíveis. De

acordo com o aristotelismo, a igualdade e a desigualdade são predicáveis

somente da quantidade e não da qualidade.19 Quando se fala da igualdade ou

da desigualdade das qualidades, se faz por intermédio de uma referência à

quantidade. No que diz respeito à quantidade, a igualdade pode ser de dois

tipos: positiva ou privativa. A igualdade positiva afirma que as duas coisas em

comparação possuem precisamente a mesma quantidade. A igualdade

privativa afirma que as duas coisas são iguais se puderem ser superpostas

sem que uma exceda a outra. Quando a igualdade é privativa,

necessariamente também será positiva, mas com uma ressalva: a propriedade

só pode ser compreendida se a igualdade positiva for entendida como

igualdade de contenção, isto é, igualdade de área. Em outras palavras, a

igualdade privativa apenas iguala no plano geométrico, sem nada dizer sobre a

natureza das coisas em relação, portanto, sem tratar de sua existência material

ou qualidade, posto que a matéria e sua qualidade são domínio da natureza.

Cabe agora investigar como a noção de igualdade pode ser aplicada aos

indivisíveis, primeiro, tratando-os como quantidades e, em seguida, tratando-os

como não-quantidades. Se quantitativos, os indivisíveis podem facilmente

receber a noção de igualdade, bastando para isso que dois indivisíveis

17 De continuo, 12*/350.18 Deste contínuo isolado não se pode postular a existência dos indivisíveis enquanto partes,mas apenas a possibilidade de existência: “se há um a1...”. Isto porque a segunda premissa éuma definição e, enquanto tal, nada diz a respeito da existência do que toma com postulado(os indivisíveis). As definições apenas tratam dos significados dos termos, logo, quanto àexistência, o argumento trata dos indivisíveis por suposição.19 A marca mais característica da quantidade é que a igualdade e a desigualdade lhe sãopredicáveis (...) O que não é uma quantidade não pode, de modo algum, ser nomeado igual oudesigual a qualquer outra coisa... Desse modo, essa é a marca da quantidade, que pode serchamada igual e desigual. (Categorias VI, 6a27-35).

Page 139: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Márcio Augusto Damin Custódio 138

comparados sejam sobrepostos: se houver coincidência, eles são

privativamente iguais. Porém, é ainda mais relevante que entidades

quantitativas possam ser positivamente comparadas, i.e., poder saber se são a

mesma quantidade. Isto é impossível, pois se são quantidades, os indivisíveis

podem ser numerados e, seus números, por sua vez, podem sofrer divisão, o

que, em se tratando de indivisíveis, é absurdo. No caso de indivisíveis não-

quantitativos, suponha a utilização da noção quantitativa de igualdade por

privação, i.e, estabelecida pelo processo de sobreposição, posto que não é

possível encontrar alguma quantidade positiva na entidade não-quantitativa. Se

duas entidades não-quantitativas forem sobrepostas, poder-se-á estabelecer

uma certa relação, de igualdade ou desigualdade (por privação) entre as áreas

das entidades. Contudo, a igualdade por privação é geométrica, i.e., o que

pode ser comparado são as áreas das figuras das entidades não-quantitativas.

Logo, já não se está falando mais de indivisíveis, que só poderiam ser

representados por pontos na geometria, mas de contínuos, i.e, áreas.

A crítica de Bradwardine ataca, desse modo, a possibilidade da

existência de átomos na natureza. Os indivisíveis não são parte constituinte do

contínuo-natureza, posto que isto significaria encontrar uma quantidade — o

indivisível é discreto — no não-quantitativo, o contínuo, o que é absurdo.20 Por

outro lado, Bradwardine defende que o ponto, enquanto indivisível geométrico,

permite comparar contínuos por privação, i.e., comparar a área ou a extensão

da linha e, desse modo, medir a natureza, posto que ela é contínua. Os pontos

necessários para estabelecer os limites da área ou linha comparados, nada

mais são do que ordenadores da medida e em nada se assemelham ao átomo

democritiano. Isto porque a medida ocorre no plano geométrico, no qual os

pontos não representam nada do contínuo-natureza medido. Tudo o que da

natureza é representado, o é por áreas e retas. Os pontos, por sua vez, são

apenas ordenadores do espaço. Deste modo, Bradwardine adere ao

argumento de Aristóteles que o contínuo não é composto por partes

20 A oposição entre Aristóteles e os atomistas é patente em inúmeras passagens, como aseguinte: “Nenhum demente é capaz de se apartar tanto da razão a ponto de supor que o fogoe o gelo são um; somente entre o que é correto e o que parece ser correto pelo hábito, que

Page 140: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Continuidade e movimento em Bradwardine 139

indivisíveis. Quanto ao termo “indivisível”, este só pode ser o próprio ordenador

geométrico da medição do contínuo.

Conclusão

Cabe, contudo, um esclarecimento. O que Bradwardine compreende

como medida ou medição não tem nenhum uso prático, nem envolve

procedimentos experimentais. Não apenas pode-se alegar uma incapacidade

instrumental ou tecnológica para a efetivação da medição, como também uma

compreensão da experiência apenas como um exemplo ilustrativo das

teorias.21 Não se deve compreender, portanto, que a medição, tratada por

Bradwardine, envolve uma intervenção elaborada da experiência, pois o que se

busca é produzir um artifício matemático que responda pela defesa

intransigente da infinita divisibilidade do contínuo e o ataque à impossibilidade

de quantificá-lo, o que é feito tomando como ponto de partida a comparação

por privação quanto à área ou à extensão da linha. Valendo-se da noção de

contínuo, Bradwardine sustenta que há graus no movimento22: “Qualquer um

pode encontrar um movimento local uniforme e contínuo (mais rápido ou mais

lento) em toda e qualquer proporção entre uma reta finita e outra reta finita.”23

Percorrido este caminho, Bradwardine finalmente pode sustentar que, se

o movimento for ordenado segundo sua magnitude, é lícito colocá-lo em

correspondência, um para um, com retas ordenadas de modo similar. Este é o

ponto que se pretendia demonstrar epistemologicamente viável no interior da

filosofia da natureza aristotélica.

uma pessoa é demente o suficiente para não ver diferença” (De generatione et corruptione I, 8,325a17-23)21 Nessa perspectiva, De Libera afirma: “Tais textos não se engajaram em uma confrontaçãocom a experiência ou com a experimentação ativa. Pois não buscavam o conhecimento do reale nem mesmo a verificação de uma hipótese ou de uma conjectura, mas sim a produção denovas regras ou o estabelecimento de novos quebra-cabeças lógicos, os sofismata. Oprogresso se fazia, assim, sobre o terreno da análise lógica e não sobre aquele da induçãocientífica” (DE LIBERA, A. La philosophie médiévale, p. 64). Concordo com De Libera quanto àausência de compromisso com a verificação, pela experiência, do conhecimento. Quanto àdiscussão, em Bradwardine, creio que deve ser compreendida como epistemológica e nãológica, com ênfase, não aos sofismata, mas à geometria.22 De continuo, prop. 21-25 e 32.23 De continuo, prop. 24

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Márcio Augusto Damin Custódio 140

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Page 143: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A influência de Descartes no pensamento médico holandês:alguns exemplos

Marisa C. de O. F. DonatelliDepartamento de Filosofia/UESC

RESUMO: Descartes contará, na área médica, com fervorosos defensoresque darão prosseguimento a sua medicina inacabada. Por meio da análiseda correspondência de Descartes com os médicos holandeses Plempius,Regius e Van Beverwick, e da obra de Van Hogelande, pode ser constatadoque eles lhe escreviam com o objetivo de buscar a sua opinião sobreassuntos ligados à medicina, o que deixa transparecer a importância que ofilósofo teve no cenário médico holandês. O presente estudo volta-se para ainfluência de Descartes no pensamento médico holandês no século XVII,com ênfase em três médicos – Plempiua, Regius e Van Hogelande,destacando os pontos nos quais a influência cartesiana está presente, tantona fisiologia como na patologia.

Palavras-chave: cartesianismo holandês; medicina cartesiana;fermentação, mecanicismo

I

A publicação, em 1637, do Discurso do método, possibilitou a René

Descartes contatos dos mais importantes para a discussão e divulgação de

suas idéias referentes à medicina. Dentre esses contatos, cabe destacar o

estabelecido com o médico católico da Universidade de Louvain, Vopiscus

Fortunatus Plempius1, a quem Descartes encaminhou um exemplar do texto

recém-publicado, com destaque para a exposição sobre a circulação do

sangue.

Em sua obra Fundamenta medicinæ, publicada em 1638, Plempius

expõe a sua concepção referente ao assunto, que se opõe à concepção

cartesiana, e publica as cartas que Descartes lhe escreveu, em resposta às

suas objeções ao exposto no Discurso. Descartes elabora uma explicação

1 Plempius nasceu em Amsterdã, estudou medicina em Leiden, Pádua e Bolonha, ondeconcluiu seus estudos. Em 1633, torna-se professor na Universidade de Louvain, onde se opõeao ensinamento do cartesianismo. Se, inicialmente, ele se opõe à defesa da circulação do

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 144: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 143

mecanicista que não recebe adesão por parte de Plempius, especificamente

quanto à fermentação do sangue que é considerada como invenção2.

Plempius, ainda preso à tradição, defende a existência de uma faculdade

pulsátil como causa do movimento do coração3. Descartes, por sua vez,

constrói sua explicação do batimento cardíaco com sustentação nas leis

mecânicas. A referência ao calor cardíaco, como fundamento do movimento do

coração, recebe uma crítica contundente por parte de Plempius4, que associa

essa interpretação à defendida por Aristóteles. Descartes reconhece a

existência dessa noção em Aristóteles, porém o distanciamento se dá pelo fato

de não haver, no texto do filósofo grego, qualquer menção à rarefação do

sangue. Essa omissão parece distanciar Descartes de Aristóteles e constituir a

sua originalidade. Trata-se de reconhecer que o que está em questão é o

fundamento da explicação adotada por Descartes, e nesse aspecto, nota-se o

constante esforço em transformar concepções tradicionais por meio do modelo

mecânico.

A partir de 1638, Descartes estabelece contato com Regius, professor

de medicina na Universidade de Utrecht que o procura depois de ter estudado

o Discurso do Método e os Ensaios. Em carta de março de 1639, Regius

defende a aplicação dos princípios da filosofia de Descartes na medicina;

princípios estes tirados dos textos de Descartes e das aulas de Reneri5, que

ensina a Regius a filosofia cartesiana. O ensino da filosofia e do método

cartesianos na Faculdade de Medicina provocará, mais tarde, acirradas

discussões em torno da obra de Descartes. A disputa se inicia com a defesa,

por parte de Regius, de teses cartesianas, com base na Dióptrica e nos

Meteoros. Essas teses foram reunidas em um tratado de filosofia natural6 com

a finalidade de difundir a filosofia cartesiana. Esse intento foi alcançado quando

a Regius foi permitido ministrar um curso mais amplo, no qual ele poderia tratar

de questões voltadas para a filosofia cartesiana. A publicação da Physiologia

sangue, mais tarde ele vai se compor com os argumentos expostos por Descartes, ao longo dadiscussão que travaram sobre o assunto.2 AT II, 54 (Plempius a Descartes, mars 1638)3 Plempius defende a participação da alma nas funções orgânicas. Cf. 3.10.374 AT I, 497-499 (Plempius a Descartes, janvier 1638)5 O primeiro divulgador da filosofia natural cartesiana na Universidade de Utrecht.

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Marisa C. de O. F. Donatelli 144

não foi bem recebida pela Universidade de Utrecht, gerando toda uma

discussão que deu início a um debate acirrado, envolvendo a Faculdade de

Teologia e uma acusação contra Regius de ateísmo, além da proibição da

difusão da filosofia cartesiana: as autoridades de Utrecht organizaram um

julgamento público da nova filosofia e retiraram a autorização de Regius para

lecionar filosofia natural.

Regius adota a explicação física e procede à aplicação do método,

segundo os padrões cartesianos, conforme pode ser constatado nas cartas

enviadas a Descartes, nas quais busca orientação do filósofo na defesa das

teses, de forma a serem feitas correções no texto e a ser adotada uma

linguagem precisa. Da carta de 24 de maio de 1640, podem ser extraídas

partes da teoria médica cartesiana que é defendida por Regius, como é o caso

referente ao processo de preparação do sangue a partir da concepção da

matéria composta de partículas em movimento. Ainda nessa carta, pode ser

encontrada a referência à necessidade da experiência e constatado o esforço

constante de Descartes em atualizar os estudos, ao acompanhar as

descobertas na área médica. A discussão por elas engendradas e a

comparação entre duas obras oferecem um testemunho bastante confiável:

L´Homme (1632?) e La description du Corps Humain (1648). Trata-se da

descoberta dos vasos lácteos por Asellius, em 23 de julho de 1622. Na época

em que escreveu o tratado L´Homme, Descartes não tinha conhecimento

dessa descoberta, pois o trajeto do alimento aí exposto está de acordo com a

tese galênica, segundo a qual o alimento passa por um triplo processo de

digestão, sem considerar a existência dos vasos que transportam o quilo para

os intestinos7. Essa ausência mostra que Descartes não tomou conhecimento

dessa descoberta tão logo foi levada a público, em 1627, mas provavelmente

em 1640. Nesse mesmo ano, quando Regius (na carta supracitada) intenta

mencionar os vasos lácteos em suas teses, Descartes desaconselha, uma vez

que pretende repetir a experiência feita por Asellius para constatar a existência

6 As teses foram organizadas e publicadas em 1641 com o título Physiologia.7 No primeiro, a digestão se dá no estômago; no segundo, nos intestinos, sendo transformadoem quilo e voltando a subir, misturado ao sangue, pelas veias mesentéricas até o fígado e, porfim, transforma-se em sangue pelo último processo de digestão.

Page 146: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 145

dos vasos lácteos, o que parece ter sido empreendido pelos dois, pois em uma

carta a Mersenne (30.7.1640), Descartes afirma a existência dos vasos. Porém,

em 1648, na Description du corps humain, a posição do filósofo quanto ao

trajeto do quilo sofre alteração, por conta das descobertas de Jean Pecquet -

cisterna do quilo e vasos linfáticos. Esses dois textos, combinados com as

cartas, constituem o exemplo mais notável da atualização dos estudos

médicos do filósofo.

Um outro médico com quem Descartes manteve correspondência foi Jan

Van Beverwick8. Em 10 de junho de 1643, Beverwick escreve a Descartes

solicitando comentários a respeito da circulação do sangue e do movimento do

coração – questões que estão em destaque nas discussões médicas da época

e que integrarão a publicação das Epistolicæ Quæstiones que estão sendo

preparadas nesse ano. A esse médico, Descartes retoma o Discours, no que

diz respeito ao movimento do coração, e propõe enviar os textos das duas

cartas remetidas a Plempius, em 1638, sobre esse assunto, com a finalidade

de recuperar o seu conteúdo, uma vez que, segundo Descartes, elas foram

publicadas de forma distorcida e incompleta pelo médico de Louvain. Na carta

de 5 de julho do mesmo ano, Descartes deduz esse movimento do calor do

coração e da conformação dos vasos, destacando o processo de evaporação e

condensação do sangue como parte de sua explicação eminentemente

mecânica com respaldo na experiência. Van Beverwick, nessa obra, deu

destaque à palavra de seus interlocutores, sem deixar entrever a sua posição

referente aos assuntos aí tratados. Mas o interesse de Beverwick em incluir as

teses cartesianas em sua compilação, além da adoção da explicação da

circulação sangüínea defendida por Descartes, deixa entrever a importância do

filósofo nas discussões que são travadas no meio médico.

8 Autor de várias obras médicas, dentre as quais merecem destaque um manual de medicinadoméstica e clínica denominado Tesouro da saúde e da doença (1656) e o livro Sobre aexcelência do sexo feminino (1643).

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Marisa C. de O. F. Donatelli 146

II

As cartas de Descartes a Plempius apresentam-se revestidas de

importância no que diz respeito à influência cartesiana no campo da medicina,

pois nelas está exposta a defesa da fermentação, rejeitada por Plempius, na

base do processo do batimento cardíaco. A teoria da fermentação exercerá

influência nas pesquisas na área biológica do XVII, podendo ser encontrada em

Van Hogelande, médico atuante em Leiden, e com quem Descartes manteve

contato. O médico holandês é mencionado em carta a Elisabeth9 como

defensor de seus princípios na construção de suas explicações médicas

contidas em livro publicado em 1646. Van Hogelande adota os princípios

mecânicos em suas explicações acerca dos sentidos e do homem, sob o ponto

de vista médico, bem como refere-se aos vasos lácteos e adota a mesma

exposição referente ao quilo encontrada em Descartes, conforme referência

feita mais acima.

A base da adoção do processo de fermentação como forma de explicar

os processos fisiológicos encontra-se na defesa da distinção entre corpo e

alma, dotando a matéria de autonomia, de forma que ela, por sua conformação

e movimento consiga dar conta de todas as funções que dependam de sua

disposição e do movimento das partículas que a constituem. Assim, nota-se

nas explicações concernentes às funções do corpo que Descartes adota a

fermentação como o processo básico. O corpo, que passa a ser considerado

de forma autônoma como máquina, necessita de um motor que possibilite

todas as funções fisiológicas e esse motor tem por base o fogo cardíaco que,

por um processo semelhante à fermentação, faz com o que o sangue entre em

ebulição e distribua-se pelo corpo por meio das artérias. Tudo se dá da

seguinte forma: o sangue, ao entrar no coração – portador desse calor – dilata-

se. Esse calor cardíaco, além de dilatar e esquentar, torna o sangue mais sutil,

de modo que ele escoará gota a gota pela veia cava, no ventrículo direito, de

onde irá para o pulmão e daí, passará para o ventrículo esquerdo, do qual se

distribuirá por todo o corpo. Assim, o sangue passa por um processo de

9 AT IV, 627 (Descartes a Elisabeth, mars 1647)

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A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 147

destilação no coração, para, depois, passar por um processo de condensação

nos pulmões. Descartes, com essa interpretação,vai contra a explicação

galênica, dominante nos livros de sua época, segundo a qual o sangue se

distribuiria do fígado por todo o corpo por meio das veias.

O calor cardíaco está na origem do movimento do sangue e,

conseqüentemente, de suas partículas mais sutis denominadas espíritos

animais que determinam os movimentos do corpo, a partir do cérebro e de

acordo com a estrutura dos músculos e dos nervos, e compõem a base

explicativa das sensações. Todas as funções do corpo remetem ao calor

cardíaco. Descartes defende essa posição desde o tratado O homem,

rejeitando qualquer explicação que recorra a outro princípio de vida que não

seja o sangue e os espíritos animais:

“(..) não é necessário conceber nela [na máquina corpórea]nenhuma alma vegetativanem sensitiva nem outro princípio de movimento e de vida além de seu sangue eseus espíritos, agitados pelo calor do fogo que queima continuamente em seucoração”.10

Essa posição é reafirmada na Descrição do corpo humano, texto de

1648, no qual Descartes sustenta que o princípio de todos os movimentos do

corpo encontra-se no calor cardíaco11. Aí também se encontra o processo de

fermentação na base explicativa do movimento do coração. Na segunda parte

da Descrição do corpo humano, Descartes se detém na explicação detalhada

do movimento do coração e do sangue, na qual recorre a dois expedientes:

observação anatômica (recurso, aliás, já utilizado no Discurso do método) e

experiência que corrobora a descrição do movimento do coração12. Vamos nos

deter nesse último recurso, pois ele está presente na importante discussão

entre Descartes e Plempius ocorrida em 1637 e referida no início deste

trabalho.

Para Descartes, quando o coração está alongado e desinflado, só há,

em suas concavidades, um pouco de sangue que restou daquele que se

rarefez anteriormente. Esse pouco de sangue rarefeito, que aí restou, ao se

10 AT XI,p.20211 AT XI, p. 22612 AT XI, pp. 241-243.

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misturar com o que entra, comporta-se como uma levedura, fazendo com que

ele se aqueça e se dilate rapidamente. Assim, o coração enrijece, dilata-se e

distribui o sangue pelo corpo por meio das artérias. Com a saída do sangue

rarefeito, o coração se alonga e desinfla. Em resposta às críticas de Plempius

ao calor cardíaco, Descartes recorre à descrição do experimento com peixes,

cujo coração extraído pulsa por muito mais tempo do que o coração de um

animal terrestre. A pulsação, após a extração, é explicada pela penetração de

um pouco de sangue de uma parte do coração em uma outra um pouco mais

quente. Isso significa que o coração é impelido a continuar a pulsar, por uma

força mínima; afinal, quanto menor é a quantidade de qualquer humor – e o

sangue é um tipo de humor - tanto mais facilmente pode ele se rarefazer,

provocando a dilatação. O exemplo, pautado em analogia, ao qual Descartes

recorre, para justificar essa afirmação, é o de licores que, ao se misturarem a

outros, se aquecem e inflam. Da mesma forma, no coração reside algum humor

equivalente a um fermento, com o qual um outro humor, ao se misturar, dilata-

se13. Assim, convém esclarecer, a rarefação à qual Descartes se refere, aqui,

consiste na manutenção da forma do licor e aumento de seu volume,

distinguindo-se da outra maneira, quando o licor transforma-se em fumo e

muda a forma. Plempius, em sua objeção, na carta de janeiro de 1638, refere-

se a este último tipo de rarefação, que não é considerado por Descartes na

explicação do movimento do coração, uma vez que não há ar nos ventrículos

do coração, mas somente sangue. Esse modo de rarefação, que se dá em um

momento, considerado pelo filósofo na explicação do movimento cardíaco,

implica o aumento de volume do sangue, adquirindo, portanto, novo

movimento, figura ou situação, de forma que suas partículas necessitam de um

lugar mais amplo. É assim que a diástole será defendida como se dando em

um momento e não de forma gradativa.

“Quando o sangue aumenta de volume no coração, a maior parte dele irrompe pelaaorta e pela veia arteriosa, mas ainda fica uma outra parte em seu interior quepreenche os ventrículos. Aí, atinge um novo grau de calor e uma certa natureza comoa do fermento: imediatamente depois, enquanto o coração desinfla, faz com que,misturando-se muito rapidamente ao novo sangue, que escorre para dentro atravésda veia cava e da artéria venosa, infla-se rapidamente e sai pelas artérias, depois de

13 AT I, pp. 521-534 (Descartes à Plempius, 15.2.1638)

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A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 149

ter deixado para trás uma parte qualquer de si que funciona como um fermento.”(AT I,p.530)

A fermentação também é defendida por Descartes no processo de

digestão. A explicação mecanicista, ao se voltar para os movimentos que

dependem de peças menores, invisíveis, adotará uma ordem, e cada

movimento representará uma função. Essas funções serão explicadas por meio

da intervenção de líquidos, separação, agitação e calor das partículas,

fermentação, destilação, disposição dos poros e desigualdade entre as

partículas, como é o caso da digestão. A digestão, assim, está baseada no

processo que pode ser comparado com a ação de líquidos sobre a cal e de

ácidos sobre o metal. O líquido presente no estômago, e que está na base da

digestão, provém do sangue e atua como ácido junto aos alimentos,

dissolvendo-os, como ocorre em todas as fermentações14.

Primeiramente, os alimentos são digeridos no estômago dessa máquina pela força dealguns líquidos que, ao se introduzirem entre suas partes, separam-nos, agitam-nos eos esquentam: assim como a água comum faz com as partes da cal viva, ou a água-forte com aquelas dos metais. Além do fato de que esses líquidos, sendo trazidosrapidamente do coração pelas artérias, como vos direi mais adiante, não podemdeixar de ser muito quentes. E mesmo os alimentos são tais, normalmente, quepoderiam se corromper e esquentar sozinhos: assim como faz o feno nas granjas,quando é recolhido antes que esteja seco. E sabei que a agitação que as pequenaspartes desses alimentos recebem ao esquentar, junto àquela do estômago e dosintestinos que as contêm, e à disposição dos pequenos filetes que compõem osintestinos, faz com que, à medida que elas são digeridas, desçam pouco a pouco peloconduto por onde as mais volumosas dentre elas devem sair, e que, entretanto, asmais sutis e as mais agitadas encontrem aqui e ali uma infinidade de pequenascavidades, por onde elas escoam nas ramificações de uma grande veia que as levapara o fígado e em outras que as levam para outros lugares, sem que haja nada alémda pequenez dessas cavidades que as separa das mais volumosas. (AT XI, 121)

Nota-se, então, que para Descartes os alimentos têm o poder de

fermentação, a exemplo do que ocorre com o feno quando é colhido antes de

estar seco. O mesmo processo adotado na explicação do batimento cardíaco

encontra-se na base explicativa da digestão. Aliás, a digestão necessita do

calor cardíaco enviado pelas artérias juntamente com os líquidos que são

mencionados nesse processo de fermentação que caracteriza a digestão, ou

seja, os alimentos dotados daquele poder, juntamente com as partes fluidas

levadas pelo sangue, que facilitam todo o processo, possibilitam a dissolução

14 AT IX, 250-1

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Marisa C. de O. F. Donatelli 150

que ocorre no estômago15. Por meio da adoção da fermentação como causa do

calor, que está presente nos dois processos mencionados, que podem ser

explicados pelo mecanicismo, sem recurso às faculdades, Descartes reforça o

distanciamento em relação a Galeno e Aristóteles no que diz respeito às

explicações sobre a atuação do calor na digestão.

A importância da fermentação no funcionamento do corpo vivo situa-se

no fato de ela estar presente em processos fisiológicos fundamentais para o

bom andamento da máquina corporal. Assim, os dois aspectos fundamentais

de sua fisiologia – movimento do coração e digestão – adotam essa teoria na

base de suas explicações, como extensão da adoção do mecanicismo na

compreensão dos processos fisiológicos.

III

A obra de Hogelande, dedicada a Descartes, intitula-se Pensamentos

nos quais a existência de Deus, a espiritualidade da alma e sua união com o

corpo são demonstradas, com uma breve descrição da economia do corpo

animal e sua explicação mecânica16 e volta-se, na primeira parte, para

questões concernentes à existência de Deus e a defesa de sua bondade.

Curioso notar que em sua demonstração da existência de Deus, Hogelande

recorre à circulação do sangue, como expressão da suma sabedoria. A

segunda parte volta-se para a explicação da união entre alma e corpo. Nesse

aspecto, Hogelande apresenta uma interpretação bastante original, ao traçar

uma analogia entre a união da alma ao corpo e a de um vapor no líquido. O

processo de fermentação do sangue no coração está na base dessa união, de

tal forma que, segundo o médico holandês, a alma tem que se acomodar à

forma do corpo, participando de tudo o que lhe acontece, estando como que

encarcerada no sangue, sendo liberada – sendo dissolvida a união, portanto -

quando o calor cessa. Hogelande refere-se à matéria sutil que, pela

fermentação, envolve-se em uma matéria mais grosseira; porém, essa matéria

15 AT VI,5316 CORNELIUS VAN HOGELANDE, Cogitationes, quibus Dei existentia et animæ spiritalitas, etpossibilis cum corpore unio, demonstrantur : necnon brevis historia œconomiæ corporisanimalis proponitur, atque mechanique explicatur, Amsterdam, 1646.

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A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 151

sutil é corpórea, e todo o movimento que recebe é atribuído a suas partes, o

que constitui um problema em relação ao paralelo traçado com a alma, uma

vez que ela é considerada como imaterial17. A exemplo de Descartes,

Hogelande dá destaque ao papel da glândula pineal no processo de separação

dos espíritos do sangue.

Quanto à terceira parte de sua obra, referente à economia do corpo

animal, o autor se volta para a ação dos líquidos no corpo, com ênfase no

papel da fermentação, que está na base do processo de digestão, a exemplo

do que Descartes defende no tratado O homem e na Descrição do corpo

humano. No que concerne à patologia, a febre (a doença mais discutida na

época) será considerada como conseqüência da fermentação dos humores,

além da acidez do sangue. Nesse ponto, o distanciamento em relação a

Descartes se dá pela desconsideração do aspecto geométrico das cavidades

pelas quais os humores escoam. Os acessos de febre são explicados por

Descartes, não só a partir da consideração da mistura, ao sangue, do humor

corrompido que se aquece e se dilata, o que constitui o processo de

fermentação, mas também com base no mecanismo de abertura das cavidades

por onde escoa essa matéria corrompida que causa o aumento do calor, além

do caráter geométrico das partículas de matéria no sangue. Descartes atribui

e, nesse ponto, seguindo a tradição18, o aumento da temperatura do corpo e a

pulsação acelerada ao aumento do calor cardíaco. Sabendo que esse calor

cardíaco – fogo sem luz – é mantido pelo sangue, a causa da febre pode ser

atribuída ao fato de haver no sangue algo que provoque uma alteração nesse

calor: a matéria corrompida que faz com que esse calor se intensifique. Ora

esse elemento mórbido é formado por meio da putrefação que ocorre quando

os humores param de se mover. Dessa forma, a explicação da origem da febre

é construída a partir do movimento da matéria, e as diferenças entre a

periodicidade dos acessos de febre são atribuídas ao tempo necessário para a

maturação do humor, de forma que ele possa se misturar ao sangue e entrar

no coração. Quanto aos acessos, afastando-se da tradição, Descartes

17 AT V, 48 (Elisabeth à Descartes, mai 1647)18 Cf. Fernel, Pathologia.

Page 153: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Marisa C. de O. F. Donatelli 152

recorrerá à sua física para fundamentar a sua explicação. Os acessos ocorrem

quando os poros, que fecham a cavidade que contém a matéria corrompida,

cedem à pressão, expurgando a parte abundante. A diversidade dos acessos

será atribuída à diversidade do caráter geométrico das cavidades que

contiverem aquela matéria e que é variável entre os homens. Dessa forma,

ocorre uma transposição da explicação de caráter físico-geométrico para a

explicação dos seres vivos.

A explicação física da febre se dá a partir do movimento da matéria e do

recurso aos elementos, presentes nos Princípios da Filosofia. Além de

considerar o mecanismo de abertura das cavidades por onde escoa a matéria

corrompida, Descartes, em suas Cogitationes circa generationem animalium,

recorre ao caráter geométrico das partículas de matéria no sangue.

“No sangue, há quatro principais gêneros de partes [de matéria]: pequenas e lisascomo o espírito do vinho, pequenas e ramificadas como o óleo, espessas e lisascomo a água e o sal, espessas e ramificadas como [as partículas] de terra ou ascinzas.” (AT XI, p.536)

Esses gêneros de partes de matéria do sangue apresentam

configurações diferentes que serão importantes para a atribuição de causas

aos diferentes tipos de febre: os sintomas serão esclarecidos pelo recurso à

geometria dessas partículas. Assim como nos Princípios, Descartes recorre à

diversidade de configuração das partículas de matéria para explicar os

fenômenos da natureza, na patologia, especificamente no caso das febres, o

mesmo ocorre:

“As pequenas e lisas causam a febre intermitente (que dura um ou mais dias) aoestarem retidas e se deteriorando nas extremidades dos vasos por causa dainterrupção da transpiração insensível. As espessas e lisas causam a febre cotidiana,ao se deteriorarem no estômago e nos intestinos. As pequenas e ramificadas causama [febre] terçã, ao se deteriorarem no reservatório da bílis. As espessas e ramificadascausam a [febre] quartã ao se deteriorarem no baço.” (AT XI, pp.536-537)

Um outro ponto a ser considerado na explicação cartesiana dos acessos

de febre, além do caráter geométrico das cavidades e das partículas do

sangue, e que também se vale da física, está relacionado ao movimento

circular da matéria, conforme a segunda lei da natureza exposta nos

Page 154: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 153

Princípios19. Isso porque a circulação do sangue será responsável pela

transmissão da febre a todo o corpo. Em uma carta a Newcastle, de 164520, ao

tratar dos tremores que acompanham o início do acesso das febres como

conseqüência do “frio da febre”, Descartes afirma que o acúmulo de humor

corrompido em alguma parte do corpo, ao fim de um, dois ou três dias 21 corre

nas veias e, ao se misturar com o sangue, indo ao coração, impede que ele se

aqueça e se dilate como de costume e, conseqüentemente, constitui um

impedimento para aquecer o resto do corpo. Como isso só se dá no início do

acesso, depois que esse humor mistura-se ao sangue, aquece-se e dilata-se

mais que o sangue no coração. Isso provoca o calor do acesso que dura até

que esse humor corrompido se evapore ou seja reduzido à constituição natural

do sangue.

Apesar de Descartes, na patologia, se valer do conhecimento

proveniente da experiência dos médicos que costumava acompanhar, no que

diz respeito à etiologia, o filósofo recorre constantemente à explicação física, a

partir dos princípios estabelecidos por meio da razão, que evocam o

movimento da matéria e a configuração das partes que compõem a matéria. O

mesmo recurso pode ser constatado na fisiologia, porém, nesse ponto, pode

ainda ser notada a importância heurística da experiência.

IV

É conhecida a influência do mecanicismo cartesiano no pensamento

médico, especificamente, no que concerne à explicação do funcionamento do

corpo. A influência do pensamento de Descartes nessa área, porém, agrega

uma outra teoria, decorrente do mecanicismo: a fermentação apresenta-se

como uma teoria importante e muito usada nas explicações médicas do século

XVII, como pode ser constatado em Harvey, ao explicar a diástole, e em Van

Helmont, ao explicar o processo de digestão. Descartes, ao tomar por base a

distinção substancial entre alma e corpo, estrutura suas explicações sobre as

19 No que concerne a essas leis, há uma alteração na ordem que consta no Mundo.20 AT IV, 188-19221 Tempo necessário para sua maturação torná-la fluida, por isso a febre é designada comocotidiana, terçã e quartã.

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Marisa C. de O. F. Donatelli 154

funções do corpo em operações materiais. Desta forma, a digestão e o

movimento cardíaco são compreendidos por meio dessas operações materiais

que estão na origem das fermentações.

Essa ênfase na fermentação, comum no século XVII, é devida,

principalmente, aos estudos realizados por Jean-Baptiste Van Helmont22 no

que diz respeito ao processo de digestão. Segundo esse autor, a digestão pode

ser compreendida a partir da ação de um fermento ácido proveniente do baço.

Ao lado desse fermento, outros concorrem para o andamento do processo,

assim como o fermento do fel e o fermento do fígado. Dessa forma, todo o

funcionamento do corpo está regulado pela ação de fermentos, e o processo

de digestão apresenta-se como central por fornecer princípios nutritivos aos

outros órgãos.

Descartes, por sua vez, adota o princípio da fermentação e a concepção

do fogo cardíaco adaptando-os aos princípios da mecânica. A adoção de

recursos tirados de seus estudos de química, mencionados em carta a

Mersenne em 163023, na explicação concernente ao funcionamento dos

corpos, em conjunção com a teoria física do mecanicismo, possibilita a

Descartes a composição de uma teoria médica que abrange todos pontos

necessários para a compreensão dos processos fisiológicos, sem que seja

preciso recorrer a elementos que ultrapassem a esfera daquilo que pretende

explicar. A sua cosmologia com a teoria dos turbilhões, na qual três elementos

atuam, compondo um universo sólido e contínuo, em que o vazio é impensável,

está na base de toda a explicação física concernente aos fenômenos da

natureza. O arranjo que se dá entre os três elementos será responsável pelo

surgimento dos mais variados fenômenos que podem ser entendidos, portanto,

como conseqüências das reações que surgem dessas combinações. Nesse

contexto, a fermentação, que alia o aspecto químico ao físico, se apresenta

dotada de importância pelo fato de dar conta do principal processo, qual seja o

de aquecimento do sangue no coração que está na origem de todos os outros

processos fisiológicos.

22 Médico e químico belga que viveu de 1557 a 1644.23 AT I, 137 (A Mersenne, 15 avril 1630)

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A influência de Descartes no pensamento médico holandês: alguns exemplos 155

Da mesma forma, Hogelande vai se valer das idéias cartesianas de

turbilhões e matéria sutil, mas o destaque maior em sua obra é dado à teoria

da fermentação, tal qual encontramos em Descartes. No entanto, a exemplo do

que pode ser encontrado em Van Helmont, a interpretação do médico holandês

dará maior abrangência à atuação da fermentação, de forma que ela está

presente na maior parte de sua obra anteriormente citada, podendo ser

apontada como fundamental para a compreensão do funcionamento do corpo

humano. Assim, pode ser notado que Hogelande, ao se apropriar de algumas

idéias de Descartes, cria uma interpretação própria que respeita as

peculiaridades do sistema cartesiano, ainda que trabalhe com elementos

provenientes de um autor que não pode ser considerado, exatamente, como

próximo dos parâmetros adotados por Descartes, como é o caso de Van

Helmont e seu princípio imaterial denominado arqueu.

Nesses contatos mantidos com médicos, pode ser notada a importância

dada à experiência, o distanciamento da tradição e a adoção de princípios

mecânicos na explicação do funcionamento do corpo humano. Além disso, a

participação de Descartes nas discussões médicas deixa entrever o seu papel

de consultor. A análise da correspondência que Descartes manteve com os

médicos possibilita a constatação de que eles lhe escreviam com o objetivo de

buscar a sua opinião sobre assuntos ligados à medicina, e não para

estabelecer correções e impor juízos, o que deixa transparecer a importância

que o filósofo teve no cenário médico holandês.

Bibliografia Primária

DESCARTES, R. Oeuvres de Descartes, publiés par Charles Adam &Paul Tannery (AT). Paris: Vrin avec le concours du Centre National duLivre, 1996.

VAN BEVERWICK, J. Epistolicae questiones cum doctorumresponsis. Rotterdam: Arnoldi Leers, 1644.

VAN HOGELANDE, C. Cogitationes, quibus Dei existentia et animæspiritalitas, et possibilis cum corpore unio, demonstrantur :necnon brevis historia œconomiæ corporis animalis proponitur,atque mechanique explicatur, Amsterdam, 1646.

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Marisa C. de O. F. Donatelli 156

Bibliografia Secundária

AUCANTE, V. “Os médicos e a medicina”. Cadernos de História eFilosofia da Ciência, Campinas, série 3, v. 8, n.1, 1998, p.59-78.

BERTHIER, Auguste-Georges. “Le mécanisme cartésien et la physilogieau XVIIe siècle”. Isis, 1920-21, p.21-58.

BLOCH, Ernest. “Die chemischen Theorien bei Descartes un denCarrtesianern”. Isis. t.1, fasc. 4, 1914, p.590-636.

DIBON, Paul. Regards sur la Hollande du siècle d’or. Napoli: Vivarium,1990.

SCHAMA, Simon. O desconforto da riqueza: a cultura holandesa naépoca de ouro.São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

TATON, René. (dir..). História geral das ciências. São Paulo: DifusãoEuropéia do Livro, 1960. (t. II, v. 2 e 3)

ZUMTHOR, Paul. A Holanda no tempo de Rembrandt. São Paulo:Companhia das Letras, 1989.

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criaçãocientífica1

Michel PATYCentre National de la Recherche Scienfique (CNRS); Equipe REHSEIS; Université Paris 7;

Departamento de Filosofia/USP

RESUMO: Propomos uma introdução ao tema da “filosofia da criaçãocientífica” tomando o caso da descoberta, ou melhor, da invenção da novateoria da relatividade (restrita e geral) por Einstein no inicio do século XX.Este caso é particularmente adequado para conceber como novas idéiascomo estas, que deviam transformar a física, fizeram sua aparição nocampo do conhecimento no decorrer de um processo mental dentro de umsujeito singular, guiado em suas questões pela preocupação pelo inteligível,concebido como sendo acessível através da racionalidade. Einstein elemesmo estava consciente de que tais processos de formação de formas ede conteúdos novos de conhecimento correspondem literalmente a“criações pela mente”, além de, ao mesmo tempo, serem elementosobjetivos de uma representação do mundo. Na sua filosofia doconhecimento, ele baseava sua concepção da descoberta e da invençãocientífica, concebidas como um processo criador, sobre a “livre escolha” deconceitos e idéias teóricos por parte do pensamento (sua concepção, a esterespeito, era parente daquela do matemático e físico Henri Poincaré). Essa“liberdade lógica” com relação aos dados factuais se estabelece, na suaperspectiva, sobre a crítica humeana da indução, sobre a recusa doempirismo puro e sobre uma concepção da inteligibilidade racional tributáriade Kant, ao mesmo tempo em que sobre a crítica do apriorismo kantiano.

PALAVRAS-CHAVE: criação científica; epistemologia; filosofia; física;racionalidade; relatividade.

O conhecimento científico é geralmente estudado pelos filósofos através

da consideração (no melhor dos casos) das proposições da ciência

estabelecida, na sua verdade parcial e provisória, no seu valor de verdade pela

sua submissão aos testes experimentais (para as ciências da natureza), na

estrutura das suas teorias, nos conteúdos “semânticos” de seus conceitos…

Raramente, ele é considerado nos processos de sua elaboração, onde ele se

apresenta na diversidade e, muitas vezes, na precariedade e na instabilidade

de suas elaborações. As tendências dominantes da filosofia do século XX

1 Conferência baseada em argumentos apresentados no artigo “A criação científica segundoPoincaré e Einstein”, tradução de Sérgio Alcides, Estudos Avançados (São Paulo, Br), 15, n°

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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Michel Paty 158

excluíam de fato a descoberta e a invenção científica do campo legítimo das

investigações da filosofia do conhecimento (veja, em particular, Reichenbach

[1938], Popper [1935, 1972]). Porém, estudos de casos, o testemunho de

alguns cientistas-filósofos do século passado e suas tentativas de auto-analíse

dos seus próprios processos de pensamento, fornecem elementos precisos

que nos permitem enfrentar esta proibição consensual. Tudo mostra, com

efeito, que o pensamento criativo de novas idéias científicas não escapa, numa

parte bem significativa, do campo do pensamento racional. Sem estudar aqui

este problema na sua generalidade (“é possível uma filosofia da criação

científica?”), contentaremos aqui em tomar como estudos de casos dois

momentos de aparição de novos conhecimentos como efeito de criação

científica, casos acerca dos quais existem dados bastante seguros que nos

permitem acompanhar os processos de pensamento e remetê-los a uma

procura de caráter racional: as invenções, pelo físico Albert Einstein, das

teorias da relatividade restrita e geral. Depois da descrição destes casos nítidos

de criação, evocaremos as próprias concepções de Einstein sobre os

processos do pensamento e sobre o problema da criação científica,

considerado filosoficamente. Concluiremos apelando à filosofia para que

retome em toda a sua extensão este tema de tamanha importância, que foi

indevidamente deixado de lado e, com ele, toda uma dimensão fundamental do

pensamento e da atividade científica.

Criação científica ao vivo: Einstein e a teoria da relatividade restrita

Einstein formulou sua teoria da relatividade em dois momentos, que

correspondem a duas formas, a teoria da relatividade restrita, alcançada em

1905 (mas “ruminada” ao longo de quase dez anos), e a teoria da relatividade

geral, cuja primeira idéia lhe ocorreu em 1907, e que foi apresentada em sua

forma acabada em 1915.2 Essas duas etapas de sua teoria, que correspondem

41 (jan-abr.), 2001, 157-192. Reproduzo aqui, para os Anais do Encontro, com algumasmodificações, extratos deste artigo concernentes a Einstein, conforme o título da palestra.2 Os textos fundadores dessas teorias foram republicados na edição crítica das obrascompletas de Einstein atualmente disponível: Einstein [1987-1998], vols. 2, 3, 7. Para uma

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 159

de fato a duas teorias distintas, ainda que a segunda possa ser vista como um

prolongamento ou uma radicalização da primeira, constituem invenções

científicas no pleno sentido da expressão. Não pretendemos aqui analisá-las

completamente, enquanto tais, dando conta do processo de sua gênese em

toda a sua complexidade: seria tarefa difícil, quiçá impossível, se a

pretendêssemos; seria exaustiva, e os aspectos psicológicos, em particular,

permaneceriam inacessíveis. Limitar-nos-emos a investigar aí os elementos

significativos da racionalidade própria a esse trabalho do pensamento, bem

como o “salto lógico” que constitui a criação científica3.

A criação, mesmo quando ocorre no domínio científico, transcende a

racionalidade linear tanto quanto a lógica, e mesmo somente a partir dos

pontos de vista filosófico ou epistemológico, não devemos nos ater a estas da

maneira como as poderíamos reconstituir depois – com todos os sedimentos

de interpretações e reestruturações teóricas. O aporte do trabalho de Einstein

nos dois casos era, tal como os problemas que ele estudava, de natureza

racional, como o foi também a sua resposta particular (e o mesmo vale, em

geral, para as invenções científicas de outros pesquisadores). Toda a questão

está em saber se o caminho da criação que vai da formulação do problema até

sua solução é também, e até que ponto, dessa natureza, bem como se é

possível seguir o fio dessa racionalidade.

No que diz respeito à gênese da relatividade restrita, da qual sabemos

ter sido elaborada a partir de dificuldades da teoria eletromagnética, ainda que

seu aporte tenha mais tarde ultrapassado essa teoria em particular, o próprio

Einstein apresentou diversas vezes preciosas indicações, não exaustivas, mas

coerentes entre si. Em suas “Notas autobiográficas”, redigidas em 1946, ele

indica como “na época em que [ele] era estudante, o tema que mais [o]

tradução francesa dos textos principais, ver Einstein [1989-1993], vols. 2, 3. Consulte-se aindaa correspondência, distribuída em vários volumes dessas edições.3 Paralelamente ao trabalho de Einstein sobre o que ia ser chamado posteriormente a teoria darelatividade restrita, assinalamos as contribuições de H.A. Lorenz em 1904 e de H. Poincaréem 1905, próximas pelos seus resultados do trabalho de Einstein, mas diferentes por variasimplicações fundamentais: em particular as teorias de Lorentz e de Poincaré correspondem auma dinâmica electromagnética, e deixam de lado a questão dos conceitos de tempo e espaçona sua generalidade (não há confronto entre estes conceitos na sua forma na dinâmicaelectromagnética e na mecânica clássica). Veja Paty [1993a], chap 2, 3, Paty [1996a, 2005].

Page 161: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Michel Paty 160

fascinava era sem dúvida a teoria de Maxwell”.4 Desde seu segundo ano no

Polytechnicum de Zurique, ele “reencontr[ou] o problema da luz, do éter e do

movimento da Terra”, problema que nunca mais o abandonaria. Também se

sabe, através de outra reminiscência, mais antiga e de difusão restrita (trata-se

de uma conferência pronunciada em 1922, em Kioto, no curso de sua viagem

ao Japão, e só publicada em inglês há bem pouco tempo), como lhe ocorreu a

idéia da teoria da relatividade. “Foi há cerca de dezessete anos”, declarou ele

em 1922, “que a idéia de tentar desenvolver o princípio da relatividade me

ocorreu ao espírito”.5 Essa idéia originou-se “no problema da ótica dos corpos

em movimento”. Tratava-se do problema do éter e da possibilidade de

demonstrar o movimento da Terra com relação a este.

Dispomos, além disso, de alguns raros testemunhos contemporâneos

diretos, através de cartas a amigos guardadas ou redescobertas, que

confirmam essa preocupação: podemos acompanhar nessa correspondência, a

partir de setembro de 1899, a Mileva Maric, sua futura esposa, depois em 1901

a seu colega Marcel Grossmann, em seguida a Michele Besso, o amigo do

Bureau des brevets, o interesse constante de Einstein pelos problemas que o

conduziram à teoria da relatividade restrita em 1905.6 Aludindo mais tarde a

esse período, ele ressaltaria a convicção que tinha na época de que, em face

dos problemas da eletrodinâmica, “somente a descoberta de um princípio

formal para o movimento”, a exemplo da termodinâmica, poderia conduzir “a

resultados seguros”.7

Também sabemos que um fenômeno físico específico tem um lugar

estratégico na reflexão e no encaminhamento das idéias de Einstein: “O

fenômeno da indução eletromagnética me permite formular o postulado de um

princípio de relatividade (restrita)”.8 A importância desse fenômeno em seu

pensamento é confirmada por outros textos:9 ele constitui uma espécie de

4 Einstein [1946], p. 32. Ela devia seu caráter revolucionário, comenta Einstein, ao fato de fazera passagem da idéia de ação à distância à de campo.5 Einstein [1922].6 Einstein [1987-1998], vol. 1, Einstein & Besso [1979]. Cf. Paty [1993a], cap. 2.7 Einstein [1946], grifo meu, M. P.8 Einstein [1946], grifo meu, M. P.9 Em particular o manuscrito Einstein [1920]. Para uma análise correspondente, ver Paty[1993a], capítulos 2 e 3.

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 161

arquétipo da relação entre os fenômenos eletromagnéticos e a relatividade dos

movimentos. Em resumo, o campo magnético e o campo elétrico exercem um

sobre o outro uma ação recíproca cujo efeito resultante é sempre o mesmo,

não importando qual dos dois é posto em movimento e qual permanece em

repouso. No entanto, observou Einstein, a teoria eletromagnética então

disponível – a de Maxwell e Lorenz – explicava o surgimento de uma corrente

no circuito eletromagnético fechado por dois processos diferentes segundo

cada um dos casos: o éter em repouso absoluto, lugar e apoio suposto desses

campos, introduzia de fato uma assimetria na natureza dos fenômenos

(indução magnética num caso, força eletromotriz no outro).

“A idéia de que estivessem em jogo dois casos essencialmente distintos

era para mim insuportável”, escreveu Einstein:10 não podia ser senão uma

diferença de pontos de vista, e não uma diferença real. A seus olhos, a teoria

tratava de fenômenos físicos reais, e não deveria partir de um ponto de vista

particular sobre eles. Sua formulação do problema teórico estava, portanto,

orientada por um programa de objetividade que, num certo sentido,

sobredeterminava o seu pensamento físico em relação a uma simples

preocupação com os dados empíricos e as equações (quer dizer, com aquilo

que hoje é freqüentemente chamado de uma modelização). Mas nem por isso

ela deixava de pertencer ao campo da racionalidade. O confronto entre a

exigência metateórica (que, de fato, entranha a sua concepção mesma da

teoria) e o estado de coisas encontrado fazia com que ele assim explicitasse

duas idéias teóricas correlatas e expusesse o seu caráter fundamental: o de

um princípio de relatividade estendido da mecânica ao eletromagnetismo, e o

de uma invariabilidade das leis dos movimentos relativos. Não se nota aqui

nada além de uma linha de raciocínio conscientemente percorrida, que

estabelece as condições de uma formulação particular – original – das

dificuldades da teoria eletromagnética:11 a saber, em final de contas, o

confronto entre duas proposições físicas de cunho teórico tomadas como

princípios: o princípio da relatividade e o da constância da velocidade da luz

10 Einstein [1946].11 Sobre o que está epistemologicamente subjacente à formulação de uma “dificuldade” (e não,por exemplo, uma “anomalia”), ver Paty [1993a, 1996b].

Page 163: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Michel Paty 162

(expressão, para Einstein, daquilo que a teoria eletromagnética de Maxwell tem

de mais fundamental).

Do confronto das duas proposições surgiu a solução, que consiste em

reformar o espaço e o tempo. O fio de uma racionalidade direta já não parece

suficiente, aqui, para guiar sozinho o movimento do pensamento: a dificuldade

era de fato um obstáculo real, que demandava, para que se seguisse adiante,

um verdadeiro salto conceitual. Einstein nada mais nos disse a esse respeito, e

sem dúvida não teria sabido reproduzir exatamente a seqüência de reflexões

que acompanhou a tomada de consciência da dificuldade. Não conhecemos

senão o momento da saída: o espaço e o tempo, que servem para exprimir os

fenômenos físicos e os movimentos dos corpos, deviam ser concebidos como

grandezas plenamente físicas, portanto submetidas elas mesmas aos dois

princípios, o que deveria conduzir à mudança da sua definição.

Como a reflexão de Einstein passou do enunciado da dificuldade a uma

tal solução, que corresponde, de fato, à inversão do problema? Deixando de

considerar os dois princípios como irreconciliáveis (a velocidade da luz,

enquanto estremecimento do éter, não poderia ser a mesma em todos os

referenciais de inércia, o que contrariava o princípio da relatividade), ele os

admitiu como fundamentais e reconstruiu sobre eles toda a física. Ou melhor,

toda a teoria do movimento enquanto tal, ou seja, toda a cinemática, e as

modificações da física propriamente dita (pois não se tratava nesse momento

de uma reconstrução, mas de um ajuste) viriam em seguida.

É que os dois princípios irreconciliáveis não estavam sozinhos, mas

constituíam um complexo conceitual com as propriedades que os

acompanhavam. O obstáculo que se erguia perante o pensamento pode ser

visto como um nó de conceitos imbricados, no qual nada permite à primeira

vista a identificação dos fios que possibilitam a resolução do novelo

embaraçado. Somente um tipo de apreensão sintética imediata, mais intuitiva

do que analítica, deu a ver, de súbito, depois de várias semanas de esforços

infrutíferos, uma via de saída, os fios a serem puxados.

Entre as propriedades que sustentavam os dois princípios, uma saltou à

vista, proposição implícita que os estreitava. Einstein a indica em suas

retrospectivas: era a regra de adição galileana das velocidades. A partir daí,

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 163

não havia mais apenas duas, e sim três proposições que, tomadas em

conjunto, eram irreconciliáveis. Tal foi o fio que permitiu o desfecho: se fosse

suprimida a regra das velocidades, os dois princípios poderiam ser conciliados,

mediante uma outra regra de composição a ser buscada. Era preciso ter a idéia

mencionada acima da inversão de perspectiva teórica, e também pensar no

espaço e no tempo como grandezas físicas, contrariamente a suas definições

absolutas admitidas por Newton. Eis aí toda uma rede de reflexões, incluindo a

crítica dos conceitos físicos (e a influência, entre outras, da análise de Mach),

que deve ter tido um papel relevante, por meio de um apelo sintético da

intuição. No trabalho teórico sobre essas grandezas, uma vez ultrapassado o

obstáculo, o lugar ocupado pela questão da simultaneidade e pela crítica de

seu caráter absoluto é revelador da complexidade dessas noções em conjunto,

ligando-se além disso à tomada de consciência da impossibilidade de ações

instantâneas à distância.

Podemos identificar com bastante precisão o que foi, em Einstein, o

momento da invenção de sua solução (solução da dificuldade identificada), que

determinou sua descoberta da teoria da relatividade. Esta comporta, a partir da

ordenação das relações entre os conceitos físicos, e em primeiro lugar entre os

espaços e os tempos, uma parte de dedução (as equações de transformação

que fazem a passagem de um referencial de inércia a outro), depois do

momento de intuição sintética que abriu o caminho, e a reconstrução das

grandezas no percurso desse caminho a partir de então balizado.

Mas onde se situa o ato propriamente criador? Bem se nota que ele

caracteriza todo o movimento do pensamento, desde a própria fixação de um

alvo para si, pela escolha de suas próprias razões, através de uma formulação

dos problemas condicionada por uma certa exigência de inteligibilidade, depois

a identificação das dificuldades a superar, em seguida a formulação de um

princípio de uma solução, até as modalidades do trabalho mais comum (no que

ele tem de essencialmente demonstrativo e dedutivo) de estabelecimento das

relações de grandezas que são o corpo da teoria. Esse trabalho de criação se

utiliza do raciocínio (que não encerra apenas dedução, mas é também

construtivo ao constituir os objetos) tanto quanto da intuição, termo pelo qual

designamos aqui uma percepção (intelectual) sintética de um complexo de

Page 165: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Michel Paty 164

conceitos. Acrescentemos ainda que o raciocínio, mais explícito, e a intuição,

concebida neste sentido, não são dois modos de pensamento em oposição, já

que na escolha de seus caminhos o raciocínio é freqüentemente guiado pela

intuição (o que é evidente no caso aqui estudado).

Os atos criadores da teoria da relatividade geral.

Pode-se seguir de maneira semelhante a gênese, no pensamento de

Einstein, da teoria da relatividade geral como extensão do princípio da

relatividade e generalização da teoria da relatividade restrita a quaisquer

movimentos. A constituição de tal teoria também comporta diversas fases, que

podemos retraçar mais facilmente que no caso anterior. Cada uma delas foi

pontuada por publicações importantes, e as reflexões e as observações do

autor que acompanhavam seu andamento ou dele faziam a retrospectiva, em

número bem maior, esclarecem certos aspectos característicos de seu

trabalho, em particular as suas intenções programáticas.

Mas tampouco aí isto significaria que uma reconstituição completa seja

possível. Se um fio de racionalidade clara corre ao longo do trabalho de

elaboração dessa teoria de um novo gênero (uma teoria das invariâncias

conducente a uma espécie de geometria da gravitação), ele se perde em

diversas retomadas nos nós complexos que somente uma intuição de gênio e a

aquisição de uma habilidade no manejo do formalismo matemático poderiam

resolver. A criação, talvez aqui mais do que em qualquer outro caso, torna-se

manifesta, e Einstein tinha plena consciência disto.

A consciência desse salto explícito do pensamento criador para edificar,

do início até o fim (ou quase isso) uma teoria física que parecia então

radicalmente nova foi fundamental para seu pensamento físico e

epistemológico. Esta consciência radicalizou sua concepção da natureza do

trabalho teórico e reorientou em parte sua maneira de abordar os problemas

físicos, modificando sua concepção do papel da matemática. Este exprimia a

partir de então melhor que tudo, a seu ver, o salto criador necessário à

representação teórica da realidade física. “É na matemática que reside o

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 165

princípio criador” – chegou ele a escrever, a esse propósito.12 No entanto, esta

fase, cujo sentido não nos deve iludir (o trabalho matemático permite realizar

uma demanda física),13 foi precedida por outras, em que a inteligência criadora

se apoiava, mais classicamente, como a anterior, sobre um pensamento dos

fenômenos, de seus principios e conceitos.

Na origem da teoria da relatividade geral, encontravam-se duas

considerações de natureza conceitual, ambas ligadas com uma crítica da

inércia, propriedade fundamental dos corpos materiais e de seu movimento. A

primeira concernia a natureza dos referenciais de inércia, animados por

movimentos retilíneos e uniformes uns em relação aos outros, aos quais

apenas se aplicava o princípio de relatividade da primeira teoria (relatividade

restrita aos movimentos inerciais). A escolha desse tipo de movimento é

arbitrária, observou Einstein, porque nós é que escolhemos os movimentos

inerciais dentre todos aqueles que existem na natureza. Reencontra-se aqui a

exigência de objetividade para as teorias: com essa diferença frente à anterior

(a indução eletromagnética no caso da relatividade restrita), sem o apoio de

qualquer evidência dada pelos fenômenos. Para Einstein, ela não deixava de

corresponder a uma exigência fundamental, filosófica, sobre a natureza e sua

representação. Seguia-se daí a necessidade de estender o princípio de

relatividade a quaisquer movimentos, superando o “privilégio” concedido aos

movimentos inerciais.

A outra consideração, formulada ao mesmo tempo que a primeira,

tratava do conceito de massa inercial, que caracteriza, de fato, tal como a

relatividade restrita o estabelecia, não somente os corpos mas também as

trocas de energia: apesar de o laço que estabelece entre a energia e a inércia,

a teoria da relatividade restrita se calava acerca da relação entre a inércia e o

peso. O efeito desse questionamento foi a formulação do princípio da igualdade

da massa inercial e da massa gravitacional (o “princípio de equivalência”).

Na gênese das idéias de Einstein, esta segunda razão parece ter sido a

que mais suscitou a sua reflexão, fazendo com que ele tomasse consciência do

12 Einstein [1933].13 Ver Paty [1993a], capítulo 5.

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Michel Paty 166

caráter imperativo da primeira (todos os fenômenos podiam ser tratados no

quadro da relatividade restrita, exceto a gravitação, devido à sua ligação com

os movimentos acelerados). Ela se traduzia para ele numa “experiência de

pensamento” (“Gedenkenexperiment”), que ele próprio qualificou mais tarde

como “o pensamento mais feliz da [sua] vida”, resumido na seguinte frase: “Se

alguém cai num movimento de queda livre, ele não sente o próprio peso”.14

Isso eqüivale a transcrever a igualdade (a identidade) da massa inercial e da

massa gravitacional numa equivalência entre um campo de gravidade, ou de

gravitação, homogêneo, e um movimento uniformemente acelerado. Einstein

assim se dava conta de que não se tratava tanto de incorporar o campo de

gravitação à teoria da relatividade (restrita), mas sobretudo de utilizá-lo como

meio de ultrapassar a covariância privilegiada dos movimentos inerciais,

generalizando-a a todos os tipos de movimentos. Ele esperava que tal

generalização lhe “fornecesse de um só golpe a solução do problema da

gravitação”.15 A essência da teoria da relatividade geral se encontrava,

portanto, nesse pensamento, e o artigo de 1907 esboçava, em conclusão ao

que fora exposto da teoria da relatividade restrita, o programa de sua pesquisa

nessa direção.

É possível seguir quase que passo a passo seus esforços para realizar

esse projeto até a instauração da teoria da relatividade geral no final do ano de

1915.16 Mencionemos aqui apenas, ainda que não o possamos detalhar, o

primeiro “momento matemático” da invenção, que data de 1912: Einstein

percebia então a insuficiência do espaço euclidiano e a necessidade de uma

formalização matemática do problema da covariância geral sobre o modo do

espaço-tempo (relativista) de Minkowski, estendido com a ajuda do cálculo

tensorial absoluto de Ricci e Levi-Civitta.17 Era-lhe agora necessário “criar pela

matemática”,18 chegando às equações que em todos os pontos do espaço-

14 Einstein [1922, 1946]. Esse pensamento lhe ocorreu em novembro de 1907, segundoAbraham Pais (Pais [1982], p. 178).15 Einstein [1946].16 Ver Pais [1981], e a coleção Einstein Studies, organizada por Don Howard e John Stachel(em particular Howard & Stachel [1989], Eisenstaedt & Kox [1992]).17 Ver Paty [1993a], capítulo 5.18 Ver acima.

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 167

tempo apresentavam a métrica não-euclidiana em função do campo de

gravitação nesse ponto.

Reflexões de Einstein sobre o pensamento e sobre a criação científica

Einstein concebia a experiência da criação científica como uma forma

particular da experiência mais geral do pensamento. Segundo ele, o ato de

“pensar” põe em jogo, além das imagens resultantes das impressões dos

sentidos, os conceitos, “todo o nosso pensamento [sendo] um jogo livre com os

conceitos”.19 Entretanto, embora o pensamento de um indivíduo se forme

graças ao aprendizado e ao uso social das palavras,20 ele julgava, por

experiência própria, que o pensamento conceitual “se desenrola em larga

medida sem fazer uso de signos (palavras)”. E também considerava, em

consonância com o que dizia Poincaré sobre a invenção científica, que ele se

efetua “de fato, num grau elevado, de maneira inconsciente”.21

Além disso, ele ligava o pensamento científico, seja em se tratando de

sua formação no indivíduo ou da criação, à experiência do espanto, tal como

ele relata ter experimentado na infância, aos quatro ou cinco anos de idade, ao

ver girar a agulha de uma bússola; ou ainda, mais tarde, ao descobrir num livro

as demonstrações da geometria de Euclides.22 O filósofo Baruch de Espinosa,

cerca de três séculos antes, tivera uma experiência semelhante de iluminação

de sua inteligência a propósito da média proporcional.23

A experiência do conhecimento, para Einstein, era ao mesmo tempo a

da aquisição da intuição:24 a intuição física para aquilo que lhe dizia respeito,

que constituía o que ele ainda denominava seu “instinto científico”, que ele

evocava freqüentemente a propósito do sentido de tal conceito, assim como a

propósito dos debates sobre a direção que deveria tomar, a seus olhos, a teoria

física. Essa intuição, à qual ele requeria, desde seus anos de estudante, que

“distinguisse claramente o que é importante do ponto de vista fundamental, por

19 Einstein [1946], p. 6-7.20 Einstein [1941].21 Einstein [1946], p. 6-7.22 Ibid., p. 8-11.23 Ver o seu Breve tratado (Espinosa [1656]). Cf. Paty [1986], p. 294.

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Michel Paty 168

meio do que se pode assegurar as bases, daquele resto de erudição mais ou

menos supérflua”, opera na racionalidade, no estágio da invenção como no da

avaliação e no da crítica (por exemplo, sobre a física quântica).25 Em todo

caso, antes da análise vem o estágio da invenção propriamente dita, onde a

intuição desempenha o papel principal.

Trabalhar com as idéias é sempre, para Einstein, trabalhar com a

racionalidade. Não se pode, no entanto, fazer da intuição, e da invenção na

qual desempenha um papel tão grande, uma descrição normativa: ela advém

da experiência singular, e se liga à atividade mental em geral. É uma visão

imediata, a partir da qual se pode reconstituir logicamente as razões, mas que

repousa sobre as experiências anteriores do pensamento, e os processos

mentais relativos à atenção a um problema seguem geralmente um caminho

indireto.26 Sua experiência, acima evocada, mostra que o importante, neste

sentido, é estar impregnado da consideração do problema, tê-lo volvido e

revolvido até chegar a uma formulação racional que porte em si a virtualidade

da solução.

Pois o pensamento é guiado por uma certa maneira de dispor seus

elementos de informação: chegar à solução de um problema é formar uma

imagem clara ao final do processo, escolhendo entre os elementos deixando-se

guiar pela intuição. Vale o mesmo para os conceitos, que fazem o pensamento,

e a partir dos quais se forma uma representação inteligível do mundo, e para

as palavras da linguagem: tais signos são ligados às impressões sensíveis por

certas regras, segundo uma correspondência relativamente estável.27 Na

ciência, o sistema de conceitos que visa a uma representação das experiências

dos sentidos é, “no que concerne à lógica”, “um jogo livre com os símbolos

segundo as regras do jogo dadas arbitrariamente (quanto à lógica)”. O mesmo

se pode dizer também sobre o “pensamento de todos os dias”.28

24 Em alemão, “Einfuhlung”. Einstein [1946c], p. 14-15.25 Paty [1994, a sair].26 Ver, para indicações detalhadas, Paty [1993]. p. 383.27 Einstein [1936, 1941].28 Einstein [1944]. Ver a observação antes feita, no mesmo sentido, por Helmholtz, em texto de1894 sobre “A origem e a interpretação correta das impressões dos nossos sentidos”: “Asimagens memorizadas das impressões dos sentidos podem tornar-se elementos na

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 169

A experiência do pensamento dos conceitos, em particular do

pensamento científico, faz intervir um pensamento ao mesmo tempo consciente

e semiconsciente, para o qual o conceito funciona como um signo particular,

sem se identificar a uma palavra. “Não é necessário”, indica Einstein, “que um

conceito seja relacionado a um signo (uma palavra) perceptível pelos sentidos

e reprodutível; mas quando é o caso, o pensamento se torna comunicável”.

Para ele, o “pensamento se desenrola em larga medida sem fazer uso de

signos (palavras), de fato, num grau elevado, de maneira inconsciente”.29

Analisando seu próprio caso, ele assinalou, ao responder ao

questionário de Jacques Hadamard sobre “a psicologia da invenção no domínio

matemático”,30 que “as palavras e a linguagem, escritas ou faladas, não

parecem desempenhar o menor papel no mecanismo do meu pensamento”.31

Sobre o funcionamento deste, ele ofereceu então as seguintes informações:

“As entidades psíquicas que servem de elementos ao pensamento são certos

signos ou imagens mais ou menos claras, que podem ser reproduzidas e

combinadas ‘à vontade’”, e que estão em relação com conceitos lógicos do

problema posto. A atividade mental, o “jogo bastante vago” sobre esses

elementos ou signos (que, no caso, são “de tipo visual e às vezes motor”), é

sustentada emocionalmente pelo “desejo de enfim atingir os conceitos

logicamente relacionados”, e o jogo sobre os elementos em questão “visa ser

análogo a certas conexões lógicas que estamos pesquisando”. Somente num

estágio secundário, quando as associações encontradas entre os elementos

são bastante estáveis e podem ser reproduzidas à vontade, partimos “a custo”

em busca “de palavras ou outros signos convencionais” que possam exprimir a

solução nos termos do problema.32

O lingüista Roman Jakobson assinalou a concordância entre a descrição

feita por Einstein do gênero dos signos que entram no processo de

pensamento e aquela que ele mesmo poderia propor, a saber, que “os signos

combinação de idéias, embora tais impressões não possam ser descritas pelas palavras, eportanto conceitualizadas” (ver Helmholtz [1971]).29 Einstein [1946].30 Hadamard [1945].31 Einstein [1945].32 Einstein [1945].

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Michel Paty 170

são um apoio necessário do pensamento”, e que “o pensamento interior,

sobretudo quando é criador, prefere [à linguagem comum] os sistemas de

signos que são mais flexíveis, menos padronizados do que a linguagem e que

dão mais liberdade e dinamismo ao pensamento criador”.33

Outros elementos sobre o tema filosófico da criação científica

O tema da criação científica, tal como o encontramos na experiência

vivida de cientistas que também foram filósofos como Einstein (e como

Poincaré), parece ligado, portanto, de um lado a processos de pensamento em

que a racionalidade, mesmo se não for total, permanece essencial e passível

de ser apreendida em diversas seqüências, entre uma problematização inicial e

a obtenção de resultados e, de outro lado, a problemas epistemológicos

fundamentais sobre a constituição e a natureza do conhecimento científico. É

assim natural que esse tema pertença de direito ao domínio da investigação

filosófica e que não possamos nos contentar em remetê-lo à psicologia ou ao

estabelecimento de consensos sociais cristalizados em “paradigmas”.

Sobre o primeiro aspecto, mesmo nos momentos em que o fio de um

raciocínio não se deixa ver, e quando ele se perde nos nós complexos que o

pensamento parece vencer a saltos, tudo indica que a atividade inconsciente

do espírito é dirigida por uma atenção, um esforço, uma vontade.

Poincaré atribuía ao inconsciente a tarefa de estabelecer as

combinações de idéias que são úteis, por eliminação e por escolha.34

O matemático Jacques Hadamard retomando, no seu livro sobre a

“psicologia da invenção” no campo da matemática, uma comparação feita por

Poincaré entre as idéias elementares se choqueando dentro da mente e os

átomos entregues ao acaso, imaginou o espírito, em sua primeira reflexão

sobre um problema, discutindo os elementos de idéias, e estes últimos, no

período inconsciente, continuando seu percurso de maneira desordenada :

“Essa desordem pode ter grande valor, porque os raros confrontos que são

úteis, sendo de natureza excepcional e produzindo-se entre idéias que são

33 Jakobson [1980].34 Poincaré [1908c], in [1908a] ed. 1918.

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 171

muito afastadas, serão provavelmente os mais importantes”.35 É uma imagem

que se aproxima da idéia de parentescos profundos, mas não aparentes, entre

elementos conceituais distanciados, que recobrem as analogias matemáticas

no sentido desenvolvido em varias oportunidades por Poincaré. Elas serão aqui

apreendidas em seu próprio movimento. A elegância matemática é a forma

daquilo que dá, nos termos de Poincaré, a “harmonia” e a “beleza intelectual”,36

que correspondem à instantaneidade da evidência, à qual se liga, afinal, para

Poincaré bem como para Einstein, assim como para Descartes três séculos

atrás,37 a inteligibilidade.

Os psicólogos Paul Souriau e F. Paulhan, que se interessaram pela

invenção, citados por Hadamard, defendiam a esse respeito pontos de vista

contrários: Souriau considerava que ela se produzia por acaso,38 enquanto

Paulhan nela via, mais classicamente, o efeito da reflexão.39 Para Hadamard, a

atividade mental inconsciente, a seu ver essencial para o processo, não se

efetua de modo algum por acaso: “A descoberta”, escreveu ele, “depende

necessariamente da ação preliminar mais ou menos intensa do consciente”,

assinalando o que Poincaré tinha dito sobre a ação diretora da consciência

sobre o inconsciente, definindo “mais ou menos a direção geral na qual o

inconsciente deve trabalhar”.40

Essa diretividade do consciente sobre o inconsciente é traçada por

outros filósofos nos termos mais precisos de um tipo de esquema geral dos

processos do pensamento. Théodore Ribot propunha uma espécie de

algebrização dos signos mentais em função do problema considerado em seus

termos racionais: resolve-se um problema supondo-o já resolvido, e busca-se

qual é a combinação de elementos que permite a solução: chega-se primeiro

ao resultado, depois volta-se atrás para estabelecer o fio que a ele conduziu.41

Retomando essa idéia em sua reflexão sobre o “esforço intelectual”, Bergson

acrescentou que “o todo se apresenta como um esquema”, e “a invenção

35 Hadamard [1945], ed. francesa, p. 52-53.36 “Le choix des faits”, in Poincaré [1908a], ed., 1918, p. 15-17.37 Paty, [no prelo, a].38 Souriau [1881].39 Paulhan [1904]40 Hadamard [1945].

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Michel Paty 172

consiste precisamente em converter o esquema em imagem”, e a imagem

contém “os meios pelos quais o efeito foi atingido”.42 Transcrevendo nesses

conceitos a observação do psicólogo Paulhan43 de que a invenção literária e

poética vai “do abstrato ao concreto”, Bergson escreveu que a invenção,

artística ou científica, vai “do todo às partes e do esquema à imagem”.

Para Bergson, o esforço mental supõe “elementos intelectuais em vias

de organização”, com uma tendência ao “monoideísmo”, que é um estado

característico da atenção: a unidade (mas não a simplicidade) assim traçada é

a de uma “idéia diretriz comum a um grande número de elementos

organizados”. Ele acrescenta: “é a própria unidade da vida”. Esse esforço

intelectual sobre as imagens que não têm em entre si senão “semelhança

interior”, como uma “identidade de significação”,44 lembra as analogias

matemáticas de Poincaré.

Num sentido bem parecido, Emile Meyerson se interrogava sobre os

esquemas que a razão segue ao constituir as imagens da realidade, tais como,

por exemplo, as da física, ou pelo menos sobre as “tendências a que o espírito

do pesquisador obedece”, e que “a razão procura fazer com que

prevaleçam...”45 Ele relacionava sua enquete à insuficiência das concepções

apriorística e empirista no que concerne à aquisição das ciências, em particular

da matemática, e ao conhecimento dos “verdadeiros domínios da reflexão

matemática”. Se ele os via, por sua vez, num movimento do diverso em direção

ao idêntico, isso não representa uma reconstituição ou uma redução às formas

da racionalidade que nos parecem familiares com a ciência atual, e seu

propósito de interrogar as formas históricas do conhecimento era similar, para

ele, ao dos antropólogos que se preocupam em compreender a lógica própria

da “mentalidade primitiva” (como os esquemas de participação de Lévy-

Bruhl).46 Sob a diversidade das formas de raciocínio ele descobria um esquema

41 Ribot [1900].42 Bergson [1919], in [1959], p. 947.43 Paulhan [1901].44 Bergson [1919], in [1959], p. 958.45 Meyerson [1931], vol. 1, p. xix. Ver Meyerson [1921].46 Meyerson [1931], vol. 1, p. 81.

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A teoria da relatividade de Einstein como exemplo de criação científica 173

comum a qualquer pensamento humano. Seja qual for a teoria envolvida, o

problema assim abordado fica posto.

As descrições dos filósofos mencionados – e singularmente as de

Bergson – tendem então igualmente a mostrar a importância epistemológica

dos processos do pensamento criador. (Não menciono aqui, referindo a outro

trabalho, as concepções dos filósofos empiristas e pragmaticos como Ernst

Mach, Charles S. Peirce e William James, que contribuem a questão da

criação, porém obviamente sem referência forte a racionalidade, e num cunho

essencialmente psicológico47). Afinal de contas, é por meio de tais criações que

os objetos do pensamento são postos, como representações do mundo, por

mais provisórias que sejam, e é também por isso que a ciência existe. Parece

claro, deste modo, que não basta analisar as formas sob as quais ela é

comunicada e ratificada, mas que também importa saber como os elementos

do conhecimento surgem com a novidade daquilo que, até então inexistente, é,

num certo momento, inventado e criado.

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Page 180: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas

Osvaldo Pessoa Jr.Departamento de Filosofia/USP

Resumo: A partir de uma metafísica naturalista, examina-se a questão decomo exprimir o fisicalismo redutivo, que é distinguido de tesesconcernentes a um reducionismo teórico. Isso é feito a partir de uma “sondaepistemológica”, um observador abstrato com propriedades bem definidas.Para caracterizar diferentes afirmações do fisicalismo, define-se um“demônio escalar”. Exploram-se também possíveis simetrias entre espaço,tempo e escala. A abordagem alternativa do “método das cópias” também éapresentada.

Palavras-chave: fisicalismo, naturalismo, emergência, escala, redução,realismo

1. Introdução Terminológica: Fisicalismo

O materialismo é a tradição segundo a qual tudo que existe são

entidades materiais. Concebe-se que a matéria é desprovida de alma ou de

uma racionalidade intrínseca. Além disso, não haveria uma finalidade ou

propósito na natureza. Isso resulta numa valorização da causação eficiente, e

na concepção de mundo conhecida como “mecanicismo”, cujas nuanças

iremos evitar. Dois grandes problemas do materialismo, desde sua origem

entre os atomistas gregos, têm sido explicar a perfeição da vida e explicar a

alma (Lange, 1875).

Hoje em dia, a tradição materialista desembocou no que tem sido

chamado fisicalismo, ou mais precisamente “fisicalismo realista”. Isso porque a

física contemporânea se funda não só no conceito de matéria, mas também em

conceitos como energia, entropia, campos, etc. Há inclusive versões do

fisicalismo realista que não são materialistas, como o energeticismo do séc.

XIX, que considera que o que chamamos matéria é fundamentalmente uma

forma de energia.

Por “realismo” entendem-se visões de mundo que postulam teses a

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 181: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Osvaldo Pessoa Jr. 180

respeito da realidade, independentemente da presença ou não de um

observador. Na passagem para o séc. XX, o materialismo, que fora reanimado

pelos avanços na fisiologia e na biologia evolutiva, passou a ser ofuscado pela

postura “descritivista” da tradição positivista, que considera que a ciência só

deve atribuir realidade para aquilo que é observável. A questão sobre a

natureza última da realidade, questão própria de uma metafísica da natureza,

não teria importância dentro da tradição positivista.1

Um termo que pode ser usado para englobar tanto os fisicalistas quanto

parte dos sensacionistas, como Hume, é naturalismo. Esta é uma atitude de

valorização da nossa experiência, que se referiria a um mundo que possui uma

certa unidade e segue leis, e não sofre ingerências de entidades

antropomórficas como almas voluntariosas. É uma atitude que valoriza o

conhecimento científico contemporâneo, levando em conta, por exemplo, os

resultados da psicologia ao estudar problemas filosóficos (Lacey, 1995). O

naturalismo é consistente com o ateísmo, o agnosticismo, o panteísmo (Deus

se identificado com essa natureza) e com o deísmo (Deus não interfere na

natureza). Uma metafísica naturalista buscaria entender a constituição do

sujeito epistemológico a partir da natureza, opondo-se (mas sem

necessariamente excluir) a uma metafísica do sujeito, que se fundamenta em

intuições primeiras.

2. Reducionismo

Para o fisicalismo realista, um ser humano é basicamente um

amontoado de moléculas, organizadas de maneira complexa, e interagindo

com um ambiente complicado. Mas o termo “basicamente” esconde uma

ambigüidade. Será que somos “apenas” isso? O “fisicalismo emergentista” vai

dizer que não: além de sermos feitos de moléculas, há propriedades novas que

1 Dentro do movimento do positivismo lógico, buscou-se inicialmente reconstruir a ciência apartir de uma linguagem “fenomênica”, referente apenas às observações ou dados sensoriais(“sensacionismo”), mas depois considerou-se aceitável utilizar uma linguagem que se refira acoisas e a suas propriedades, linguagem essa que se chamou “fisicalista”. Esta acepção dotermo fisicalismo é um tanto diferente da anterior, e poderia ser nomeada “fisicalismodescritivista”. Ela introduz uma tese metafísica mínima, a de que os objetos do mundo se

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Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 181

emergem da complexidade, como a vida e a consciência, que vão além das

possibilidades de compreensão da físico-química. Tais propriedades não

seriam redutíveis às propriedades das ciências físicas, e mesmo aspectos de

nossa consciência não seriam redutíveis às leis da biologia. Mas o que significa

“ser redutível”?

Existem vários usos do termo “reducionismo”. Em geral, designa a

situação em que um domínio de fenômenos pode ser assimilado a um outro

domínio aparentemente distinto (Dupré, 2000). A epistemologia dos positivistas

lógicos buscava a “redução” de todas as proposições significativas a relatos de

observações. Outro exemplo, no início do séc. XX, foi o projeto de “reduzir” a

matemática à lógica. E na física, fala-se por exemplo em “reduzir” as leis dos

gases às leis que regem os choques entre moléculas.

Em todos esses exemplos, o reducionismo é tomado como uma relação

entre proposições lingüísticas, entre teorias, e não entre entidades reais.

Reservemos pois o termo “fisicalismo” (dentro da concepção realista) para nos

referirmos à realidade, às coisas-em-si, aos entes do mundo, independente da

existência de seres humanos. Nesse sentido, estaria no domínio “ôntico”, que

se distingue do propriamente “ontológico” (segundo a acepção de Heidegger,

1971, nota 14, p. 76).

Retomemos o exemplo da física, que é um exemplo prototípico de

redução: a “micro-redução” da termodinâmica à mecânica estatística. O

conceito de temperatura, no nível macroscópico, seria redutível ao de energia

cinética de moléculas, no nível microscópico, de tal forma que leis

macroscópicas, como a equação dos gases, poderiam ser deduzidas de leis

microscópicas (Nagel, 1961, pp. 338-45). Nos exemplos de micro-redução, em

geral há muitos micro-estados que correspondem a um único macro-estado. O

termo “estado” é antes de tudo uma construção teórica, e nesta acepção o

termo “redução” se aplica. Porém, quando se quer exprimir a situação que

ocorre de fato no mundo (no nível ôntico), fala-se em diferentes realizações

comportam como coisas, ou seja, como objetos da física clássica (tese desafiada pela físicaquântica).

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Osvaldo Pessoa Jr. 182

físicas (microscópicas) do (referente do) macro-estado (ver por exemplo Kim,

1998, p. 19).2

3. Ontologia Geral

A distinção terminológica entre ontológico e ôntico pressupõe uma

postura realista. A atitude “descritivista” de um positivista identificaria esses

dois domínios. Aceitando a distinção, o problema que surge é como seria

possível fazer referência ao ôntico sem pressupor uma visão de mundo ou uma

teoria (em termos das quais a referência seria “ontológica”). Como falar sobre a

coisa-em-si?

Uma solução é admitir que nada pode se falar sobre o ôntico, mas, para

todos os efeitos, colocar em seu lugar uma ontologia geral que seja consistente

com as ontologias particulares das teoria físicas contemporâneas. O

fisicalismo, então, referir-se-ia a esta ontologia geral, ao passo que

considerações sobre reducionismo fariam referência explícita a ontologias de

teorias científicas particulares.

Como então construir uma ontologia geral, esse “simulacro do ôntico”?

Não podemos simplesmente importar a ontologia de nossas melhores teorias

científicas porque não há um consenso sobre qual seja tal ontologia. Apesar de

as teorias físicas contemporâneas terem comprovado sucesso prático, há uma

subdeterminação das interpretações ontológicas dessas teorias com relação às

próprias teorias. Por exemplo, a física quântica admite um interpretação realista

2 O exemplo que acabamos de ver pode ser classificado como um exemplo de reducionismoteórico ou entre teorias (SEARLE, 1997, p. 165; RUSE, 1995, p. 750): as leis e fenômenosdescritos segundo uma teoria científica (como a termodinâmica) seriam explicáveis em termosde outra teoria (a mecânica estatística). Neste procedimento de redução, no entanto, afirma-sea identidade entre entidades de uma teoria e outra (no exemplo visto, entre temperatura eenergia cinética média). Nesse sentido, alguns caracterizam tal procedimento como umreducionismo ontológico (Horgan, 1995): a tese de que as entidades, os tipos, as propriedades,os fatos postulados por uma teoria científica são idênticos a entidades de uma outra teoria.SEARLE (1997, p. 164), em sua classificação de cinco sentidos do termo “redução”, reserva otermo “redução ontológica de propriedades”. O que ele chama de “redução ontológica” (assimcomo RUSE, 1995), por exemplo a tese de que “cadeiras são nada exceto coleções demoléculas”, parece recair mais no domínio ôntico, de forma que reservaremos o termofisicalismo redutivo para esta tese. Outro sentido importante do reducionismo, na ciência, é oreducionismo metodológico: independente de se de fato é possível efetuar um reducionismoontológico detalhado, por exemplo entre processos psicológicos e neurológicos, a tese

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Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 183

ondulatória, em que as entidades fundamentais são ondas, mas também uma

interpretação realista dualista, em que as entidades fundamentais são ondas e

partículas (sem falar da interpretação positivista, que associa quadros

ontológicos sem comprometimento com sua existência) (ver Pessoa, 2005).

Qual seria então a ontologia geral a ser adotada em discussões sobre o

fisicalismo?

A descrição da ontologia geral deve deixar em aberto questões

subdeterminadas pelas teorias físicas. Além da questão da natureza

corpuscular/ondulatória, outro ponto que não deve ser fechado é a suposição,

geralmente feita em reconstruções conjuntistas da realidade (Hellman &

Thompson, 1975), de que existem elementos básicos (Ur-elementen) na

realidade. Mesmo reconhecendo que quarks, léptons e bósons de interação

são entidades fundamentais do Universo, há evidências de que existe física

interessante em níveis mais microscópicos ainda, quando a gravitação se

unificaria com as interações forte e eletrofraca.

Outra questão em aberto é se a natureza é determinista ou estocástica.

A própria definição de “determinismo” é de difícil formulação. Brevemente, é a

tese de que o estado do Universo em um instante fixa ou determina o estado

do Universo em qualquer instante futuro. As dificuldades desta definição

envolvem estabelecer o que se entende por estado e como se dá a citada

determinação. Poder-se-ia, por exemplo, dizer que o determinismo permite que

em princípio se possa prever o estado futuro do universo, mas o que significa

“em princípio”?

4. Espaço, Tempo e Escala

Tendo em vista as limitações mencionadas, postularemos como

ontologia geral para nosso Universo a existência de entidades (cuja natureza

não será especificada) distribuídas no espaço e no tempo. Além disso,

consideramos a existência de diferentes escalas no espaço e no tempo. Para o

espaço, a escala designa diferentes tamanhos: microscópico, macroscópico

metodológica recomenda que o cientista, em sua prática, deva buscar descobrir tais conexõesredutivas (RUSE, 1995).

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Osvaldo Pessoa Jr. 184

etc. Para o tempo, a escala denota diferentes taxas de mudança (velocidades):

rápida, lenta etc. Uma idéia heurística é considerar as escalas espacial e

temporal como dimensões adicionais da física.

Temos assim uma ontologia geral com propriedades bem pouco

específicas. Como podemos nos referir a esta realidade de uma perspectiva

que não envolva um observador humano? Uma solução seria postular a

existência (nessa realidade) de um sujeito abstrato, que observaria o mundo

sem afetá-lo de maneira nenhuma.

5. Sondas Epistemológicas

Chamaremos tais observadores abstratos de sondas epistemológicas,

cujas propriedades devem ser definidas de maneira precisa (em termos de um

Universo que segue uma certa ontologia geral).

Um exemplo famoso seria o “demônio de Laplace”, que é utilizado para

que se dê sentido à expressão “previsibilidade em princípio” usado na definição

de determinismo. O demônio de Laplace teria as propriedades de “onisciência

instantânea” (conhece o estado de todo o Universo em um instante temporal

com resolução e acurácia perfeitas), “erudição científica” (conhece com

exatidão as leis que regem o Universo – no caso, a mecânica clássica),

“superinteligência” (é capaz de calcular, quase instantaneamente, fazendo uso

da onisciência e da erudição, o estado de um Universo determinista em

qualquer outro instante de tempo) e “não-distúrbio” (a existência da sonda não

afeta de forma alguma o funcionamento da realidade).3

3 Uma sonda epistemológica poderia ser usada para aumentar o poderio do “critérioverificacionista de significado”, dos positivistas lógicos. A afirmação “há um tiranossaurodormindo no terreno ao lado” teria significado porque há uma receita para verificar sua verdadeou falsidade (qual seja, passear pelo terreno com os olhos abertos). Mas teria sentido aafirmação “havia um tiranossauro dormindo no terreno ao lado há exatamente 100 milhõesanos atrás”? Ora, se supusermos um Universo determinista, poderíamos definir uma “sondatemporal”, com as propriedades de observação local e de não-distúrbio, que viaja para opassado, observa a situação no referido terreno, e retorna para o presente com a informaçãosolicitada (tal caracterização teria que ser refinada para impedir viagens ao futuro ou paracontemplar Universos indeterministas). A sonda temporal poderia nos auxiliar a exprimirdiferentes hipóteses a respeito do início do tempo: segundo a teoria de Hawking-Turok, nossasonda poderia rumar o quanto quiséssemos para o passado, antes de retornar. Umamodificação da sonda temporal poderia ser útil também para exprimir propriedades de históriascontrafactuais, em um mundo indeterminista. Suporíamos que esta “sonda contrafactual”

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Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 185

À medida que os “poderes” de semelhantes sondas forem se

aproximando das capacidades humanas reais, chegaremos a sondas

epistemológicas reais, como uma nave que ruma aos confins do Sistema Solar

enviando-nos sinais de rádio.

6. Demônio Escalar

Podemos definir um “demônio escalar”, que resulta de uma restrição na

propriedade de onisciência do demônio de Laplace. Suporemos que tal

demônio escalar possa sondar diferentes escalas espaciais e temporais por

meio de um “filtro”, que focaliza sua atenção numa escala específica, barrando

qualquer informação concernente às outras escalas, acima e abaixo daquela

sendo enfocada.4 Para nossos propósitos, consideraremos que o demônio

escalar possa observar duas escalas espaciais diferentes ao mesmo tempo, ou

duas escalas temporais diferentes na mesma região espacial (alegoricamente,

cada olho poderia usar filtros diferentes).

Um aspecto adicional de tal demônio envolve a quantidade de

informação necessária para descrever o Universo em uma certa escala.

Intuitivamente, é razoável considerar que a quantidade de informação

necessária para descrever o Universo numa escala mais microscópica (ou

numa escala temporal mais rápida) é maior do que a quantidade de informação

necessária para descrevê-lo em uma escala mais microscópica (numa escala

temporal mais lenta).

O que chamaremos fisicalismo redutivo afirma que a informação no nível

mais baixo é suficiente para que o demônio possa computar o estado do

mundo em um nível mais alto, no mesmo instante de tempo. O fisicalismo

pudesse ir para o passado de nosso mundo factual, até uma certa data inicial, e de lá elarumaria para uma história diferente, até a data de hoje. De lá, então, ela poderia voltar para adata inicial; um problema seria que marcador ela usaria para encontrar novamente o nossoramo histórico, trazendo-nos informações sobre mundos possíveis.4 O “demônio de Maxwell” utiliza semelhantes óculos para poder ver com resolução fotônica aposição de moléculas de um gás que se aproximam de uma portinhola, que ele controla semdissipar energia. Uma propriedade essencial desta sonda epistemológica é que ela nãoconsegue observar o mundo sem provocar um distúrbio ou, se conseguir, terá que apagarinformações passadas em sua memória. Em ambos os casos, ela dissipa energia, o que énecessário para que possa adquirir informação sobre o mundo e diminuir a entropia do gás emquestão.

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Osvaldo Pessoa Jr. 186

emergentista negaria esta tese, mesmo considerando que o demônio escalar

teria acesso ao Universo todo em cada escala particular (em outras palavras, o

conhecimento do Universo todo numa escala microscópica não seria suficiente

para sua superinteligência computar o estado do Universo em uma escala

macroscópica).

7. Estruturas Temporais e Escalares

A idéia de considerar as escalas espacial e temporal como dimensões

coloca o problema de se a estrutura das coisas, vistas sob as perspectivas das

diferentes dimensões, são semelhantes. Um exemplo de semelhança ocorre

para a relação de determinação entre eventos ou estados5. No tempo, a

determinação entre eventos é a “causação” entre um evento anterior e um

posterior; na escala, podemos tomar a “realização física” (refletida, na teoria

científica, como um reducionismo ontológico) como a relação de determinação

de um nível inferior para um superior. Essa simetria entre causação e redução

pode ser estendida para estruturas mais complicadas.

Por exemplo, existe uma estrutura temporal de causação conhecida

como “condição INUS” (Mackie, 1965; ver Fig. 1). Um certo efeito E pode surgir

a partir de um conjunto suficiente de causas {A,B,...} ou também de um

conjunto suficiente {C,D,...}. Isso é estruturalmente semelhante à

“superveniência”, envolvendo realização múltipla, tanto na escala espacial

quanto temporal. Na Fig. 1, o macro-estado E pode ser realizado tanto pelo

conjunto de micro-estados {A,B,...} quanto por um outro conjunto {B,C,...}.

Porém, há também diferenças entre as duas situações, já que a relação

de redução envolve uma mudança na quantidade de informação (medida pelo

demônio escalar), ao contrário da causação – pelo menos em um mundo

“reversível”.

5 O termo “determinação” não deve ser confundido com “determinismo”. O primeiro é maisgeral, exprimindo a situação em que o estado de uma região espaço-temporal-escalarrestringe, mesmo que fracamente e probabilisticamente, o estado de outra região.“Determinismo” é uma situação de determinação forte e não-probabilística entre diferentesregiões temporais, ou seja, é um tipo de causação forte.

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Figura 1: Comparação entre a estrutura causal INUS e as diferentes realizaçõesfísicas de um mesmo estado macroscópico.

O demônio escalar permite que se caracterize a tese da “causação

descendente” sem comprometimentos essencialistas com a noção de

“causalidade” (comprometimento este presente por exemplo na importante

noção de causa como “capacidade”, Searle, 1997, p. 166). Consideremos um

Universo estocástico (não-determinista). O demônio escalar, em posse agora

da propriedade de erudição científica, observa um nível microscópico do

Universo e computa o estado microscópico para o dia seguinte, com uma certa

probabilidade p1 de acerto. Suponha agora que, além de observar inicialmente

o estado microscópico, ele também observasse o estado macroscópico inicial.

Se ao computar o estado microscópico do dia seguinte a probabilidade de

acerto p2 for maior do que p1, então esta situação confirmaria a tese da

causação descendente. Em suma, defender ou negar a tese da causação

descendente implica diferentes cenários para um Universo contendo um

observador abstrato que satisfaz as propriedades do demônio escalar. Está

claro que não temos como decidir qual dos dois cenários corresponderia à

verdade, mas ao menos estipulamos um critério teórico para distingui-los.

8. Método das Cópias

A postulação de sondas epistemológicas pode ser vista como um

artifício para se definir conceitos referentes a uma realidade para além da

observação humana. Ela não exclui a fecundidade de outras estratégias de

definição de conceitos, como o “método das cópias”.

Considere a definição de determinismo. Ao invés de postular o demônio

de Laplace, pode-se proceder da seguinte maneira. Imagine que uma cópia

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Osvaldo Pessoa Jr. 188

perfeita do Universo seja feita, e que esses dois Universos evoluam

temporalmente de maneira independente. Se em qualquer instante posterior

esses dois Universos estiverem sempre no mesmo estado, então a evolução é

dita determinista.

Como procederíamos no caso da definição de fisicalismo redutivo?

Teríamos que imaginar que fosse feita uma cópia do Universo que fosse

idêntica apenas em uma certa escala espacial microscópica, e em todas as

inferiores. Neste caso, os dois Universos seriam necessariamente idênticos nas

escalas superiores? Se sim, teríamos uma situação consistente com o

fisicalismo redutivo, ao passo que a negação desta identidade seria uma forma

forte de fisicalismo emergentista. É interessante considerar uma tese

emergentista mais fraca que fosse consistente com a identidade dos dois

Universos: ela argumentaria que propriedades emergentes são determinadas

pelas escalas inferiores, mas que mesmo assim estas propriedades seriam

“novas” em relação às propriedades microscópicas.

A possibilidade de que os dois Universos considerados sejam diferentes

seria o análogo escalar (espacial) ao indeterminismo na dimensão temporal.

Tal situação de não-redutibilidade não parece ser contemplada pela física

estatística clássica, que se utiliza de uma concepção bastante simples a

respeito de como se dá a passagem de propriedades mais microscópicas para

as mais macroscópicas, envolvendo médias e procedimentos de “grão grosso”

(coarse graining). Em outras palavras, o demônio escalar se utilizaria destas

leis de mudança de escala para computar o estado macro a partir do micro.

Mas será que essas leis são verdadeiras? Será que elas não dependem da

natureza última do espaço, por exemplo, se tal espaço tem a estrutura descrita

pela análise matemática standard (que é o caso da física estatística clássica)

ou se ele tem uma estrutura fractal, ou mesmo quântica (em um sentido a ser

definido)? A princípio, tais leis de passagem de escalas parecem consistentes

com o fisicalismo redutivo, mas seria interessante explorar logicamente a

negação desta tese.

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Fisicalismo redutivo e sondas epistemológicas 189

Agradecimentos

Este trabalho beneficiou-se dos comentários críticos de André Leclerc,

Charbel El-Hani, Irinéa Batista, Julio Vasconcelos, Paulo Abrantes e Pim

Haselager. Agradeço também aos organizadores do III Encontro da Rede

Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência pelo excelente

fórum de discussão.

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Page 192: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Matéria e substância segundo Leibniz

Patricia Coradim SitaDepartamento de Ciências Sociais/ UEM

Resumo: Leibniz alia uma leitura mecanicista da natureza à uma substânciateleologicamente orientada. A relação entre matéria e substância se tornaelemento fundamental da sua concepção de mundo e exige um esforço deadequação que se realiza com o estabelecimento de uma substânciaimaterial (mônada) como “requisito” da matéria.

Palavras-chave: matéria, substância, causa eficiente, causa final

A teoria leibniziana das substâncias pode ser adequadamente

investigada a partir da discussão sobre o estatuto da matéria. Não que Leibniz

colocasse em dúvida a existência da matéria componente do mundo real, ou

que tivesse se dedicado a uma prova de como é possível que haja algo

material. A discussão que encontramos nos seus textos se dirige para um

esclarecimento sobre a natureza da matéria.

Essa explicação pode ser notada na tentativa do autor em conciliar a

idéia de mônada à da causa eficiente. A mônada é uma substância simples, ou

seja, imaterial1, enquanto a causalidade eficiente é sempre uma causalidade

mecânica, própria do domínio das partículas físicas. Como aliar a causalidade

mecânica a um universo constituído de substâncias simples imateriais, voltadas

para um determinado fim? Leibniz compartilha da concepção mecanicista de

que todos os processos físicos, materiais, podem ser mecanicamente

explicados. Mas isso não implica que eles não possam ser, também,

teleologicamente explicados. Podemos evidenciar essa conciliação através da

distinção das substâncias simples e compostas e suas respectivas

características: sobre os corpos materiais estão atuando as leis referentes às

causas eficientes, sobre as substâncias simples agem as causas finais. Trata-

se portanto de assumir um mecanicismo que não é absoluto, uma vez que se

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 193: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Patricia Coradim Sita 192

pretende conciliá-lo com a teleologia, mas lógico.

Leibniz pretende demonstrar que as causas finais e as eficientes não

são contraditórias, mas conciliáveis de tal modo que não houvesse a

necessidade de escolher entre as explicações mecânicas ou naturezas

incorpóreas (Discurso de Metafísica, 22). O sentido teleológico, entretanto,

subordina os atos das criaturas e os atos do conhecimento uma vez que o que

ocorre no mundo e o que conhecemos do mundo só são possíveis graças a

existência da finalidade. Essa finalidade pode ser entendida, portanto, como

uma perfeição que reside em Deus, através da qual tiveram início tanto as

criaturas quanto o saber que elas possuem. Trata-se, portanto, de um mesmo

conjunto de princípios apresentado como conjunto de atos: atos de Deus, do

mundo natural, do conhecimento. Atos cujo princípio é teleológico. Seu

transcurso ocorre em função destes aparentes extremos – a natureza e o

conhecimento – que, entretanto, são os mesmos na unidade do ser supremo –

Deus.

As causas eficientes são, portanto, parte das causas finais, como

instâncias de um ato que transcorre no mundo segundo uma finalidade. A

monadologia é o sistema que possibilita a Leibniz conciliar essas causas. Para

o filósofo as leis mecânicas respondem necessariamente a uma finalidade

como sua razão última. Essas leis mecânicas são contingentes, ou seja, é

possível conceber um outro mundo regido por outras leis naturais. Como se

explica que sejam essas e não outras as que regem nosso mundo? Pela

liberdade de Deus que, como ocorre com toda liberdade, implica uma

finalidade, já que não pode haver liberdade naquilo que é indiferente.

Essa divisão das causas não seria apropriada para Leibniz se implicasse

em níveis independentes: eles devem constituir uma unidade harmônica2. A

reunião de concepções conflitantes engendra no bojo do sistema leibniziano a

possibilidade dessa harmonia entre os opostos. A harmonia perpassa sua

1 Ora, onde não há partes, não há extensão, nem figura, nem divisibilidade possíveis, e, assim,as Mônadas são os verdadeiros Átomos da Natureza, e, em uma palavra, os Elementos dascoisas. (Monadologia, 3)2 As almas atuam por apetições, fins e meios, segundo as leis das causas finais. Os corpos,segundo as leis das causas eficientes ou dos movimentos. E ambos os reinos o das causaseficientes e o das causas finais, são harmônicos entre si. (Monadologia, 79)

Page 194: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Matéria e substância segundo Leibniz 193

filosofia sobretudo na maneira pela qual formula a concepção de mundo: todas

as partes produzem um conjunto de acordes que soa como música a Deus3.

Não podendo existir outro mundo capaz de reproduzir os mesmos acordes,

Leibniz conclui que este é o melhor dos mundos possíveis.

Um dos problemas envolvidos nessa discussão é como aliar a matéria

inerte ao movimento dos corpos. Na terceira carta de Leibniz lemos: “Sou de

opinião que toda substância criada é acompanhada de matéria.”

A relação entre a matéria e a substância é discutida em vários textos de

Leibniz sem, contudo, ser conclusiva. Na primeira carta de Leibniz ele afirma

que “Na minha opinião, a mesma força e vigor subsiste sempre, passando

somente de matéria em matéria, conforme as leis da natureza e a bela ordem

preestabelecida.”

Considerada como designando o constituinte passivo de tudo o que

existe, a matéria supõe a existência das formas ativas, como a alma. Cada

porção de matéria exprime todo o universo, mas se considerada à parte de

todas as almas, de todas as forças ativas, ela é apenas uma abstração. Unida

a uma alma, forma uma única substância. Em um texto intitulado Reflexões

sobre o progresso da verdadeira metafísica e particularmente sobre a natureza

da substância explicada pela força, de 1694, Leibniz afirma que

para esclarecer essa noção (de substância), aqui direi que a reflexão sobre o conceitode força é de grande auxílio para a compreensão da natureza da substância. Essaforça ativa é diferente da faculdade dos escolásticos, que consiste apenas em umapossibilidade aproximada de ação e que nela mesma está morta, por assim dizer, einativa, a menos que seja excitada por algo exterior a ela. Mas a força ativa envolveuma enteléquia, ou uma atividade; está a meio caminho entre uma faculdade e umaação, além de conter em si mesma um certo esforço ou conatus. É levada à ação porsi mesma sem qualquer necessidade de auxilio, desde que nada a impeça. (4)

3 Segundo Deleuze (2000) o uso do termo harmonia é pertinente à teoria musical: “Duas razõespodem levar a acreditar que a referência musical é precisa e concerne ao que se passa naépoca de Leibniz. A primeira é que a harmonia é sempre pensada como preestabelecida, o queimplica precisamente um estatuto muito novo; e, se a harmonia opõe-se ao ocasionalismo, évisto que a ocasião desempenha o papel de uma espécie de contraponto que ainda pertence auma concepção melódica e polifônica da música. É como se Leibniz estivesse atento ao queestava em via de nascer com a música barroca, ao passo que seus adversários permaneciamligados à antiga concepção. A segunda razão é que a harmonia relaciona a multiplicidade nãoa uma unidade qualquer, mas a uma certa unidade que deve apresentar caracteresdistintivos.”( p. 213-4)

Page 195: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Patricia Coradim Sita 194

Há que se notar que Leibniz defendia a idéia de força como uma

entidade última cuja quantidade deveria ser constante. A força ativa entendida

como força metafísica primitiva é constituída, portanto, como a forma. Assim

como há a força ativa temos a força passiva que constitui a matéria e pode ser

entendida como a resistência (impenetrabilidade ou inércia) de um corpo.

A resistência, essa força passiva, é o que constitui a essência da

matéria. Diferentemente de Descartes que considerava a extensão como a

propriedade essencial dos corpos, Leibniz acredita que a extensão não pode

constituir a essência dos corpos (Discurso de Metafísica, 12). Extensão é uma

propriedade de uma coisa, que ela leva consigo de um lugar para o outro.

Segundo Russell, a extensão é a única qualidade comum a todas as

substâncias criadas e se repete sempre, sendo, por fim, aquilo que identifica

uma coisa, na medida em que ela é indiscernível. Ele afirma que

como não há duas coisas realmente indiscerníveis, a extensão implica a abstraçãodaquelas qualidades nas quais elas diferem. Assim uma coleção de mônadas só éextensa quando pomos de lado tudo exceto a materia prima de cada mônada e apropriedade geral da atividade, e consideramos apenas a repetição dessasqualidades. (p. 103)

A materia prima de que fala Russell é o repetido tomado per se, aquilo

que é pressuposto pela extensão como repetição, puramente passiva, diferente

da materia secunda, dotada da força ativa.

A noção de substância expressa logo no início da Monadologia (1 e 2) é

indicativa do tratamento que o autor dispensará a essa idéia: “Visto que há

compostos, é necessário que haja substâncias simples, pois o composto é

apenas a reunião ou agregatum dos simples.” Ora, Leibniz está pressupondo

neste momento que a substância não é um conceito que precise ser

problematizado. Ele é claro por si mesmo. Ainda que a Monadologia não possa

ser considerada um bom referencial para a investigação deste conceito, uma

vez que é um texto da maturidade (1714), e ainda que não estejamos aqui

defendendo uma identidade conceitual entre o conceito de mônada e o de

substância individual, notamos que já em 1686, no Discurso de Metafísica, a

primeira menção do autor à substância (artigo 8) nos oferece uma definição

que abrange seu aspecto lógico, cuja base está fundada na estrutura das

proposições categóricas constituídas por sujeito e predicado: “É correto,

Page 196: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Matéria e substância segundo Leibniz 195

quando se atribui grande número de predicados a um mesmo sujeito e este

não é atribuindo a nenhum outro, chamá-lo substância individual.”

É pressuposto que uma substância se define através dos seus

predicados: “A natureza de uma substância individual (...) consiste em ter uma

noção tão perfeita que seja suficiente para compreender e fazer deduzir de si

todos os predicados do sujeito a que se atribui esta noção.” (Discurso de

Metafísica, 8)

Uma dificuldade encontrada nessa caracterização é que do fato dos

predicados constituírem a essência do sujeito (uma vez que a soma de todos

os predicados presentes e futuros faz de uma substância aquilo que ela é) não

segue que a substância seja o conjunto dos seus predicados. Todo predicado é

predicado de algo, predicado de um sujeito. A substância, entendida como

sujeito lógico da predicação, não é dependente de nada e subsiste, portanto,

inteiramente independente dos seus atributos.

Podemos afirmar que os predicados nada mais são do que atributos

que, como tais, devem ser atributos de uma substância. Assim, todo predicado,

sendo necessariamente predicado de um sujeito, e considerando a figura

desse sujeito como substrato ao qual os predicados devem estar referidos, o

sujeito pode ser entendido como a contraparte lógica da substância.

Segundo a ontologia leibniziana, infinitas possibilidades subsistem no

intelecto divino. Não cabe a Deus conceber os conceitos das substâncias que

serão criadas mas apenas eleger entre os entes possíveis aqueles que serão

convertidos em entes reais. Antes mesmo da criação do mundo real os seres já

subsistem enquanto possibilidades e, ainda como mero possível, já possui

todos os seus atributos caracterizadores. O ser tornado real atualiza seus

atributos como predicados. Qualquer que seja o possível tornado real, todos os

estados dessa substância já estão presentes em seu próprio conceito, o que,

afinal, possibilita que haja uma livre escolha divina. Isso implica em que, se

uma substância sofre alterações em seu desenvolvimento através do tempo,

que nada mais pode ser senão alterações em seus atributos originários, deve

haver, necessariamente, além desses atributos que se alteram e sucedem, um

elemento de permanência tal que funcione como identificador da substância.

Page 197: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Patricia Coradim Sita 196

Se uma substância sofre alterações ao longo do tempo ela permanece a

mesma, embora modificada. A questão é que a substância deve trazer um

elemento de permanência que a identifique apesar da mudança sofrida. Ora, os

predicados de uma substância são aquilo que ela possui de mais particular,

distintivo do que ela não é e que não permite que outra seja tomada como

idêntica a ela.

Estruturar esse aspecto lógico implica também em fazer dos princípios

da não-contradição e da razão suficiente um dos elementos definidores do

papel de Deus na determinação das substâncias. No opúsculo Sobre a

liberdade e a possibilidade (1680-82) Leibniz afirma que “não há nada sem

razão, isto é, não há proposição na qual não exista conexão entre o sujeito e o

predicado, ou seja, nenhuma proposição que não possa ser demonstrada a

priori”. Ao postular uma certa hierarquia onde possibilidade e existência são

categorias ontológicas fundamentais, Leibniz mantém a independência das

substâncias em relação ao que é exterior.

Bibliografia

DELEUZE, G. A dobra: Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B. L. Orlandi.Campinas: Papirus, 2000.

BELAVAL, Y. Études leibniziennes. Paris: Gallimard, 1993.

LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica. Correspondência com Clarke.Monadologia. Trad. Marilena Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1975.(Col. Os pensadores)

ROBINET, A. (ed.) Leibniz, G. W: Correspondance Leibniz-Clarke.Paris: 1957.

RUSSELL, B. A filosofia de Leibniz: uma exposição crítica. São Paulo:Editora Nacional, 1968.

Page 198: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Mersenne e o debate em torno do copernicanismo

Paulo Tadeu da SilvaDepartamento de Filosofia/UESC

Resumo: O debate acerca do copernicanismo ainda se apresenta como umaspecto de grande importância na história da ciência desenvolvida ao longodo século XVII. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho consiste emapresentar uma análise da postura assumida por Marin Mersenne frente aocopernicanismo. Para tanto, a exposição estará circunscrita aos tratadospublicados pelo autor em 1634 e a algumas correspondências do mesmo,particularmente as cartas enviadas a Antoine de Rebours (novembrode1633) e a Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (28 de julho de1634). A partirdesses elementos pretende-se mostrar em que sentido a postura deMersenne frente ao problema em questão não pode ser entendida apenasdo ponto de vista internalista (isto é, levando-se em conta apenas oselementos de ordem epistemológica), mas deve levar em consideraçãoaspectos de ordem religiosa, teológica e social. A reticência de Mersenneem defender clara e abertamente a verdade das hipóteses copernicanasnão está fundamentada apenas na ausência de provas cabais em prol dosistema em questão, mas em grande medida nos entraves relacionadoscom a teologia e com a hierarquia eclesiástica.

Palavras-chave: Copernicanismo, Ciência, Mersenne, Cosmologia.

O debate acerca do copernicanismo é um dos aspectos centrais da

ciência no século XVII, principalmente se tomarmos como referência a figura de

Galileu Galilei. Como sabemos, em 1632, Galileu publica o Diálogo sobre os

dois máximos sistemas do mundo, cuja temática gira em torno de dois sistemas

astronômicos: o ptolomaico e o copernicano. Ainda que a defesa do

copernicanismo esteja fortemente associada a essa obra, não pretendo

desenvolver aqui qualquer comentário substancial sobre a mesma. Ainda

assim, cabe indicar o interesse de Mersenne pelo trabalho desenvolvido por

Galileu. Além das referências que podemos encontrar na correspondência do

padre Mersenne, é preciso indicar ainda duas outras: Les Méchaniques de

Galilée (1634) e Les nouvelles pensées de Galilée (1639), traduções de textos

de Galileu feitas por Mersenne. Dito isso, façamos algumas advertências

iniciais quanto ao posicionamento do filósofo francês com respeito ao

copernicanismo. Se, por um lado, Mersenne não encontra argumentos

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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Paulo Tadeu da Silva 198

decisivos em favor do copernicanismo, notamos que ele se vale de algumas

estratégias utilizadas por Galileu para mostrar que os argumentos físicos

elaborados contra esse sistema não se sustentam. Nesse sentido, meu objetivo

consiste em avaliar a postura de Mersenne frente ao sistema copernicano.

Para tanto, utilizarei algumas passagens dos tratados publicados 1634 e

algumas cartas do terceiro e quarto volumes da Correspondance.

Em 1º de setembro de 1631, Mersenne escreve uma carta a Jean Rey1

comentando uma obra publicada pelo último, a saber: os Essays. No segundo

parágrafo desta carta Mersenne se refere a uma das teses defendidas por Rey,

segundo a qual, a Terra, em virtude de seu peso, localiza-se no centro do

universo. Ao apontar a tese em jogo, Mersenne lembra que vários autores,

entre eles Copérnico e alguns astrônomos ilustres, sustentam que a Terra se

move ao redor do Sol e, além disso, que ela não está no centro do Universo.

Ainda que a passagem em questão não aponte para uma postura clara em

defesa do copernicanismo, ela parece indicar alguma inclinação de Mersenne

com respeito ao sistema em questão.

Em outra carta, enviada a Antoine de Rebours em novembro de 1633, é

possível notar não somente o cuidado com que Mersenne discute a hipótese

copernicana, mas também as dificuldades com as quais o autor está envolvido.

Num primeiro momento, temos a impressão de que Mersenne está inclinado a

reconhecer a veracidade do sistema proposto por Copérnico. Todavia, alguns

parágrafos depois, nota-se que ele recua frente a um problema crucial, a saber:

a fé.

Solicitando a avaliação de Rebours quanto aos argumentos em prol do

movimento terrestre, Mersenne passa a expor as razões que, segundo ele,

obteve em uma discussão com um homem de bem (infelizmente não temos

qualquer referência quanto à identidade de tal personagem). O primeiro

argumento abordado por Mersenne diz respeito à ordem do universo tendo em

vista o princípio de harmonia. Ele relata o que segue:

“Ele toma a primeira da bela ordem que é observada entre todos os grandes corposdo mundo, cujos movimentos são tanto mais velozes quanto eles são menores, pois a

1 O documento encontra-se em MERSENNE, M. Correspondance, Vol. 3, p. 186.

Page 200: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 199

Lua faz seu curso em 29 dias, Mercúrio em 80 dias, Vênus em nove meses, o Sol emum ano, Marte em dois, Júpiter em doze e Saturno em trinta anos, de sorte que ostempos dos circuitos que fazem esses corpos vão sempre aumentando na proporçãode suas grandezas, e conseqüentemente o céu das estrelas deve ser imóvel, oumover-se muito lentamente, a fim de preservar a mesma ordem dos outros céus, eem nada perturbar na harmonia do universo. O que não pode ocorrer se a Terra nãose move em vinte e quatro horas.”(MERSENNE, M. Correspondance, Vol. III, p. 570)

Em primeiro lugar, é preciso notar que Mersenne considera uma

determinada ordem harmônica no movimento dos orbes celestes. Segundo o

princípio aqui invocado, o período necessário para que cada um percorra seus

respectivos circuitos (isto é, suas circunferências) varia de acordo com o

tamanho dos mesmos (ou seja, de seus circuitos). Assim, quanto menor for o

circuito mais rapidamente ele será percorrido. Desse modo, segue-se que a

esfera das estrelas fixas deve manter-se imóvel ou mover-se muito lentamente.

Ora, o que Mersenne conclui é que essa harmonia não seria preservada se a

Terra não se movesse em vinte e quatro horas. Isso significa que o dia e a

noite não deveriam ser tomados como resultado do movimento da esfera das

estrelas fixas, mas da Terra. Desse modo, para que essa ordem seja

preservada é preciso que a Terra esteja em movimento e não parada. Assim,

parece imprescindível reconhecer o movimento diurno da mesma, uma vez que

negá-lo significa negar os requisitos de ordem e harmonia da natureza.

Outro argumento levantado na carta diz respeito ao lançamento de uma

bala de canhão em direção ao ocidente com velocidade igual a da Terra. De

acordo com aqueles que negam o movimento terrestre, a bala permaneceria

parada, visto que ela estaria sujeita a dois movimentos de igual intensidade e

direções opostas. Ora, como isso não ocorre, conclui-se que a Terra está

parada. Entretanto, é preciso levar em conta que todos os corpos terrestres

participam do movimento realizado pela Terra, assim, é como se ele não

existisse. Vale lembrar que isso não diz respeito apenas aos corpos

inanimados presentes na natureza: nós também participamos do movimento

terrestre. Assim, uma vez que também partilhamos do mesmo movimento, não

conseguimos, enquanto habitantes deste planeta, perceber o movimento que o

mesmo realiza.

Além desses dois aspectos, Mersenne levanta ainda o seguinte:

Page 201: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Paulo Tadeu da Silva 200

“Há muito tempo afirmamos que é certo que a Terra se move em vinte e quatro horasem torno de seu eixo, se o Autor da natureza fez todas as coisas pelo caminho maiscurto de todos os possíveis, e que é mais fácil e mais curto dar uma volta sobre o altodas torres de Notre Dame para ver toda a cidade de Paris do que se a cidade semovesse, e o olho permanecesse sempre em um mesmo lugar.”(MERSENNE, M.Correspondance, Vol. III, p. 571)

O argumento utilizado está relacionado com o princípio de simplicidade:

é muito mais simples fazer a Terra girar em torno de seu eixo no período de

vinte e quatro horas do que obrigar todo o universo girar em torno dela.

Portanto, se Deus, ao criar o mundo, optou pelo caminho mais simples

possível, a Terra deve necessariamente realizar o movimento de rotação

sustentado pelo copernicanismo.

Todavia, nem mesmo a soma de todos esses argumentos parece

suficiente para que Mersenne opte definitivamente pelo sistema copernicano.

Podemos afirmar que existem, aos olhos do autor, boas razões em prol do

copernicanismo, contudo, elas não provam definitivamente a verdade do

mesmo. A proposta copernicana deve ser tomada como plausível, mas não

como verdadeira. O que está em jogo não diz respeito apenas ao campo

estritamente científico, mas leva em conta a fé. Segundo Mersenne, Deus

poderia, em virtude de sua onipotência e inteligência suprema, ter mantido a

Terra imóvel e fazer com que o restante do universo estivesse em movimento.

Dada a finitude da razão humana, não nos é possível compreender os motivos

que levaram Deus a escolher este ou aquele caminho. De fato, é precisamente

isso que encontramos no seguinte trecho da carta a Rebours:

“Mas não teremos nem ciência nem revelação da maneira segundo a qual Deusregulou os movimentos do Universo, pois ainda que ele não faça qualquer coisainutilmente, e que não haja nada de supérfluo em suas obras, entretanto, ele pode tergrandes razões, pelas quais faz girar o firmamento deixando a Terra imóvel. É poresse motivo que me parece mais apropriado suspender nosso julgamento do que sedeixar levar por conjecturas que se levantam em favor dessemovimento(...)”(MERSENNE, M. Correspondande, Vol. III, p. 571)

Os aspectos abordados até aqui revelam uma postura bastante

cautelosa de Mersenne. Tal posicionamento pode ser igualmente detectado

nos tratados publicados em 1634. Podemos destacar seis momentos nos quais

Mersenne está diretamente envolvido com a hipótese do movimento da Terra.

Page 202: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 201

Questão 11 das Questions Inouyes: “Podemos saber se a Terra se move

todos os dias em torno de seu eixo, e a cada ano em torno do Sol, e se há

habitantes nos Astros”.

Questão 34 das Questions Théologiques, Physiques, Morales et

Mathematiques 2: “Que razões temos para provar, e para persuadir do

movimento da Terra, em torno de seu eixo, no período de vinte e quatro

horas?”.

Questão 37 das Questions Théologiques: “Que razões podemos ter para

crer que a Terra se move em torno do Sol, e que ele está no centro do

mundo?”.

Questão 44 das Questions Théologiques: “O que há de mais notável nos

Diálogos que Galileu fez sobre o movimento da terra? Esta questão contém

todo o seu primeiro Diálogo”.

Questão 45 das Questions Théologiques: “O que há de notável no

segundo Diálogo de Galileu”.

Vejamos inicialmente o que Mersenne sustenta na proposição 11 das

Questions Inouyes:

“Visto que nós não podemos formar qualquer conclusão demonstrativa sem um meiotermo que serve como um elo necessário ao atributo e ao sujeito, e que este meiotermo nos falta neste assunto, não é possível saber se a Terra se move, ou se elaestá imóvel, enquanto o Sol, e as Estrelas se movem, de modo que podemos explicartodos os fenômenos que tem ocorrido até o presente tanto pelo movimento da Terra,quanto pelo movimento dos Astros. Entretanto podemos dizer que ela se move emtorno de seu eixo, se Deus seguiu o caminho mais curto de todos os possíveis dentroda ordem e dos movimentos de todas as partes do Universo.” (MERSENNE, M.Questions Inouyes, Prop. 11, Ed.Fayard, p. 37)

Essa passagem nos mostra uma situação muito parecida com aquela

encontrada na carta remetida a Antoine de Rebours. Encontramos aqui dois

aspectos bastante claros. O primeiro diz respeito à impossibilidade de decidir

entre a hipótese ptolomaica e a copernicana. Segundo Mersenne, não

dispomos de elementos suficientemente fortes para optar definitivamente por

uma das duas hipóteses. Note-se que Mersenne confere o mesmo peso aos

dois sistemas, como se eles tivessem o mesmo valor instrumental. O segundo

aspecto está relacionado mais uma vez com o princípio de simplicidade. Se

Page 203: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Paulo Tadeu da Silva 202

Deus escolheu o caminho mais simples, então a Terra gira em torno de seu

próprio eixo.

A mesma situação comparece na proposição 34 das Questions

Théologiques. Os argumentos arrolados em favor do movimento da Terra têm

em vista a mesma simplicidade e ordem pressupostas no final do primeiro

parágrafo da proposição 11 das Questions Inouyes. Além disso, de modo

análogo ao que foi dito naquele momento, Mersenne não vê razões

inquestionáveis para afirmar o movimento ou o repouso da Terra. Além desses

aspectos é preciso chamar a atenção para o famoso problema da queda dos

corpos. Seguindo a mesma linha de Galileu, o que, vale lembrar, será

retomado no segundo livro do Harmonie Universelle (1636/37), Mersenne

afirma que esse fenômeno não acarreta qualquer prejuízo para a hipótese

copernicana. Para ambos, todos os objetos presentes na Terra participam do

movimento realizado por ela. Portanto, esteja ela em movimento ou não, os

movimentos em seu interior não sofrerão qualquer alteração.

A questão 37 das Questions Théologiques, diferentemente das questões

precedentes, não discute o movimento da Terra em torno de seu eixo, mas a

possibilidade de seu movimento anual em torno do Sol. Os argumentos

apresentados, embora relacionados com outro tipo de movimento, estão

igualmente fundamentados nos princípios de ordem e simplicidade. No caso do

movimento anual, a situação permanece inalterada: não é possível afirmar

definitivamente que a Terra gira em torno do Sol.

As questões 44 e 45 das Questions Théologiques são dedicadas a uma

rápida sinopse das duas primeiras jornadas do Diálogo de Galileu. A meu ver,

elas não alteram o quadro exposto até aqui.

Com vimos a postura de Mersenne é extremamente cautelosa quando o

assunto em discussão diz respeito à defesa do copernicanismo. Dada a sua

condição, o padre Mersenne não sustenta definitivamente a doutrina de

Copérnico. Tal posicionamento merece algumas considerações.

Em primeiro lugar, é preciso notar que Mersenne, ao longo de algumas

passagens dos tratados de 1634 e em algumas proposições do segundo livro

2 A partir desse momento esse texto será indicado como Questions Théologiques.

Page 204: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 203

do Harmonie Universelle (principalmente as proposições 3, 4, 16, 17, 19 e 20)

separa a defesa do copernicanismo de determinados resultados físicos obtidos

por Galileu. Assim, parece-me que Mersenne separa a cosmologia da

mecânica terrestre e defende que é possível sustentar uma série de inovações

concernentes à segunda, sem que seja necessário sustentar, por isso, a

verdade de determinadas suposições cosmológicas. Este é o caso, por

exemplo, do problema da queda dos corpos. Por outro lado, é importante

lembrar que embora não se possa, aos olhos de Mersenne, sustentar que o

sistema copernicano revela a real estrutura do universo, ele pode, do ponto de

vista instrumental, ser utilizado para efeito de cálculo.

Em segundo lugar, Mersenne, seguindo a mesma linha de Galileu,

procura mostrar que determinados argumentos levantados contra o sistema

copernicano não têm qualquer efeito. Em vários deles deve-se ter em mente a

idéia de que todos os corpos presentes na Terra participam de seu movimento.

Portanto, como dito algumas vezes ao longo da presente exposição, a

influência desse movimento é nula para os eventos em questão. Mesmo

supondo, como Mersenne o faz no segundo livro do Harmonie Universelle, que

a trajetória de um objeto em queda livre não seja retilínea (imaginando-se que

ela fosse vista por um observador fora da Terra, enquanto esta, supostamente,

se move em torno de seu eixo), para nós, habitantes dela, o curso realizado

pelo objeto continua a ser visto como uma reta.

Em terceiro lugar, Mersenne se mantém fiel ao seu propósito de conciliar

ciência e fé. Como nos alerta Lenoble, em seu livro Mersenne ou la Naissance

du Mecanisme, Mersenne dedicou grande parte de sua vida a combater a

filosofia naturalista, as práticas ocultistas e as chamadas pseudociências. Tal

projeto tem como conseqüência a construção de um modelo de ciência que ao

mesmo tempo fortaleça o projeto mecanicista e, além disso, preserve a fé. O

que notamos com respeito à hipótese copernicana é que esses dois campos

estão em jogo. Se, por um lado, é preciso considerar os aspectos científicos

concernentes ao problema em questão, por outro, é preciso lembrar que

Mersenne quer, seja em virtude de sua estreita relação com a Igreja, seja por

conta das conseqüências advindas de uma eventual defesa do

copernicanismo, preservar o outro pilar de sua filosofia, qual seja, a fé. É

Page 205: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Paulo Tadeu da Silva 204

justamente nesse terreno que encontramos alguns elementos adicionais para

uma avaliação mais profunda do problema da defesa do copernicanismo em

Mersenne.

A reticência do filósofo em sustentar a verdade do sistema copernicano

está fundamentada em dois planos distintos: o epistemológico e o teológico.

Seguindo os mesmos cânones presentes em outros autores do século XVII,

Mersenne entende que a ciência deve ser erigida por meio de experiências

bem conduzidas e expressa em linguagem matemática. Ora, o primeiro

requisito, quando associado aos eventos celestes, nos conduz à necessidade

de que nossas afirmações estejam fundamentadas em dados observacionais.

É a partir deles e da matemática que podemos, em alguma medida, constituir

uma ciência sobre os movimentos celestes. Contudo, nem a observação nem a

matemática fornecem, para Mersenne, razões suficientemente fortes e

incontestáveis para que possamos afirmar categoricamente a verdade das

hipóteses aventadas por Copérnico. Assim, como vimos anteriormente, o que

nos resta é tratar tais hipóteses sob uma perspectiva meramente instrumental.

Não há como asseverar a sua realidade efetiva.

Por outro lado, a cautela de Mersenne não está fundamentada

unicamente nesses motivos. É também em virtude de razões teológicas e

religiosas que o autor abre mão de qualquer compromisso realista com respeito

ao copernicanismo. A fim de tornar isso mais evidente, é preciso recorrer mais

uma vez à correspondência do autor. Na carta enviada a Nicolas-Claude Fabri

de Peiresc em 28 de julho de 1634 encontramos o seguinte:

“Eu vos envio os três pequenos tratados que fiz, a fim de que possais receber algumcontentamento entre vossas ocupações mais sérias.

Eu vos peço que envieis ao Monsenhor Doni, quando por alguma ocasião oencontrar, aqueles nos quais seu nome está. Neles, as Questions Morales,mathematiques etc. são diferentes das vossas, uma vez que existem razões para omovimento da Terra sem refutação, para as quais eu coloquei a sentença doscardeais como remédio, como vós vereis. Mas uma vez que me foi dito que houvealgum barulho entre os doutores da Sorbonne em virtude das razões que eu nãorecusei, suprimi todas as questões as quais se poderia formalizar, e coloquei outrasque vós vereis no livro para o Monsenhor Doni, que serão mais próprias para Roma.Contudo, se não vos agradar de vê-las ali, enviá-las-ei separadas.”(MERSENNE,Correspondance, vol. 4, p. 267)

Page 206: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 205

Esse trecho da carta contém dois elementos importantíssimos. Em

primeiro lugar, Mersenne reconhece que existem razões sem refutação em

favor do movimento terrestre. Tal afirmação se opõe justamente àquilo que o

autor afirma em uma passagem da carta enviada a Rebours. Com efeito, nela

podemos observar claramente que Mersenne não se compromete com a

verdade da hipótese copernicana; mais do que isto, ele diz que não existem

razões suficientemente fortes para asseverar a verdade da hipótese em

questão. Todavia, e aqui podemos provavelmente encontrar a raiz do

problema, Mersenne afirma, nesse mesmo momento da carta a Peiresc, que

suprimiu as questões diretamente relacionadas com a hipótese em jogo (ou

seja, com a hipótese do movimento terrestre), as quais poderiam gerar algum

tipo de acusação. Além disso, ele informa Peiresc de que introduziu a sentença

dos cardeais (a saber, a sentença contra Galileu) como atenuante às razões

que ele mesmo não havia recusado. Ora, tudo isso indica a forte influência dos

aspectos teológicos e religiosos na postura adotada pelo autor. É em virtude da

autoridade eclesiástica que Mersenne expurga de alguns exemplares das

Questions Théologiques as questões 34, 37, 44 e 45, substituindo-as por

outras nas quais não encontramos qualquer referência ao copernicanismo que

pudesse ser tomada como uma defesa da verdade de tal sistema. Os

enunciados das questões que substituem as originais, anteriormente indicadas,

são os seguintes: questão 34, “Saber se podemos estabelecer uma nova

ciência dos sons, que seja nomeada psofologia ou com outro nome que se

queira.”; questão 37, “Saber quanto se deve estar elevado sobre a superfície

da Terra, ou sobre outros corpos que se queira, maiores ou menores, para ver

um espaço dado.”; questão 44, “Qual deve ser a força da voz para ser

transportada e estendida até a Lua, ao Sol e ao firmamento, seja naturalmente

ou por artifício?”; questão 45, “É permitido ensinar nas Escolas que a Terra é

imóvel?”.

Ora, como se vê, há uma clara limpeza do terreno. Ao substituir as

questões 34, 37, 44 e 45, Mersenne retira das Questions Théologiques os

elementos a partir dos quais ele poderia, em princípio, receber algum tipo de

censura. É importante notar que a questão que substitui a de número 45 não se

afasta totalmente da astronomia e da cosmologia. Contudo, a posição

Page 207: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Paulo Tadeu da Silva 206

assumida pelo autor nos indica a sua filiação com um instrumentalismo

vinculado ao expediente de salvar os fenômenos. Nela lê-se o seguinte:

“Mas é preciso enfatizar que não é intenção da censura impedir o cálculo dos eclipsese dos astros pelo método de Copérnico, visto que esta operação não causa qualquerdano à Escritura, e que ela não se opõe a seu julgamento.”(MERSENNE, QuestionsInouyes, 1634, p. 425)

Essa passagem nos mostra um aspecto interessante. Nota-se que

Mersenne defende a utilização instrumental do sistema copernicano sem

comprometer-se com uma interpretação realista do mesmo. Nessa perspectiva,

não entra em jogo a verdade do sistema, mas que tipo de utilidade ele teria

para determinados cálculos. Utilizado nesses termos, o copernicanismo não

entra em conflito com a Escritura justamente porque não se coloca em questão

a sua verdade. Vale lembrar ainda que Mersenne, nesse mesmo momento, diz

que se os cientistas agissem com discrição e discernimento, não estariam

sujeitos a censura e não teriam que se retratar. Evidentemente isso é uma

clara referência ao caso de Galileu.

A carta remetida a Peiresc permite, portanto, compreender a natureza e

as razões do expurgo em questão: a decisão de Mersenne é um claro resultado

de seus compromissos religiosos e da hierarquia eclesiástica à qual ele estava

submetido. Nesse sentido, acredito que é justamente em virtude de tais

motivações que podemos encontrar uma outra justificativa para a hesitação de

Mersenne em defender clara e abertamente a verdade do sistema copernicano.

Os aspectos aqui abordados nos mostram que a ciência não se encontra

imune a fatores de ordem social. O envolvimento de Mersenne com o debate

em torno do copernicanismo indica claramente em que medida motivações de

ordem teológica e religiosa, vinculadas à hierarquia e à autoridade

eclesiásticas, desempenham um papel decisivo na defesa de teorias

científicas. Tudo isso mostra que a investigação da história da ciência não

pode, em alguns casos, restringir-se a uma interpretação estritamente

internalista, levando-se em consideração tão somente os aspectos de ordem

epistemológica. Com efeito, a fim de entender alguns episódios da história da

ciência é preciso ter em vista os aspectos externos ao jogo estritamente

científico. A meu ver, Mersenne é um bom exemplo disso.

Page 208: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Mersenne e o debate em torno do copernicanismo 207

Bibliografia

HINE, W. L. “Mersenne and copernicanism”. Isis, 64, 1, 1973, p. 18-32.

HUMBERT, P. “Marin Mersenne et les astronomes de son temps”. Revuedes Sciences et leur applications, 2, 1, 1948, p. 29-32.

LENOBLE, R. Mersenne ou la Naissance du Mécanisme. Paris: LibrairiePhilosophique J. Vrin, 1943.

MERSENNE, M. Correspondance du Père Marin Mersenne. Paris: CNRS,1933.

MERSENNE, M. Harmonie Universelle (1636-37). Paris: CNRS, 1975.

MERSENNE, M. Questions Inouyes (1634). Paris: Fayard, 1985.

Page 209: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton

Alex CalazansMestrando em Filosofia/UFPR

RESUMO: Mesmo conquistando um relativo sucesso entre váriosmatemáticos modernos, o método newtoniano das fluxões, quando surgiu,foi alvo de inúmeras criticas. Berkeley foi um dos seus críticos mais ativos. Én’O Analista que ele acusa Newton de assumir conceitos problemáticoscomo fundamento do método das fluxões. Esses conceitos colocariamdúvidas relevantes quanto ao então inquestionável rigor demonstrativo damatemática. O principal conceito ao qual Berkeley refere-se é o denominadopor Newton como momentos: são quantidades matemáticas geradas emintervalos de tempo infinitamente pequenos. Ataca-se os momentos porduas vias: a primeira é uma crítica epistemológica, sustentada por umcritério sensível de evidência e estruturado com um vínculo entre sentidos eimaginação. O outro caminho refere-se às contradições provocadas pelosmomentos nas demonstrações, ou seja, são problemas metodológicos quenão são evitados porque Newton estaria se apoiando em algo que é, antesde tudo, epistemologicamente defeituoso. Há, portanto, um vínculo entreesse dois lados da crítica de Berkeley. Em nossa investigação, apósapresentar essa mão dupla da crítica berkeleiana, pretende-se compreendercomo tal controvérsia reprova o rigor demonstrativo do método de Newton,mas, em um âmbito mais amplo, não se torna uma eliminação por definitivoda possibilidade de qualquer demonstração no campo da matemática. Alémdo mais, procura-se discutir essa questão à luz da filosofia da matemáticaacarretada pela doutrina do esse est percipi (ser é ser percebido),apresentada na obra de Berkeley Tratado Sobre os Princípios doConhecimento Humano..

Palavras-Chave: Fluxões; Momentos; Percepção; Inteligibilidade

Introdução

Newton, ao elaborar o método das fluxões, possuía como principal

objetivo solucionar matematicamente questões que envolvessem o movimento.

Apesar de não ter sido o pioneiro, ao propor soluções a essas questões e

incluir o movimento na matemática, Newton obteve um sucesso extraordinário

com respeito a diversos problemas matemáticos, entre eles o problema de

determinar com rigor e precisão a velocidade de um ponto em um instante de

tempo de uma dada trajetória. Com efeito, o método das fluxões tornou-se a

principal ferramenta matemática de Newton, a ponto de permear quase todo o

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 210: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 209

seu trabalho científico. Em sua obra central, por exemplo, Princípios

Matemáticos da Filosofia Natural (1687), Newton utiliza-se do método das

fluxões para resolver questões de mecânica, o que se constitui como uma

grande novidade.

Todavia, Berkeley colocou o método das fluxões, n’O Analista (1734),

como principal alvo de uma crítica. Tal método, para Berkeley, necessitou

passar por uma investigação, mesmo que muitos matemáticos o tenham

tratado como um pretenso avanço na resolução de problemas no campo da

geometria, isto é, mesmo que o método das fluxões tenha sido considerado

“...a chave geral a auxiliar os modernos matemáticos a destrancar e revelar os

segredos da geometria e, consequentemente, da natureza” (Analista.§3).

Nessa investigação, Berkeley apontou para problemas que atingem

diretamente o rigor demonstrativo do método das fluxões. Isso acontece,

porque Berkeley se apoia em conteúdos sensíveis para decidir sobre a

inteligibilidade das coisas. Assim, encontraram-se no método newtoniano

fundamentos que não resistem a tal critério apresentado; fundamentos que

pretendem possuir uma característica que está além do que é sensível. Dessa

maneira, surgem dúvidas razoáveis sobre as demonstrações realizadas a partir

de tais princípios demonstrativos.

Berkeley ao rejeitar o método das fluxões, baseando-se no sensível

como critério de inteligibilidade, necessitou incluir em sua crítica uma

possibilidade para se realizar demonstrações dos teoremas matemáticos. É

com isso que propriamente chegamos ao objeto de investigação. Como é

possível estruturar um critério de inteligibilidade fundamentado no conteúdo

sensível (que se restringe ao particular e ao singular), sem eliminar toda

possibilidade de demonstração geométrica, que necessariamente refere-se ao

universal?. Assim, quando for necessário, tomaremos paralelamente o texto

Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano (1710) para esclarecer

a questão acima apresentada.

Page 211: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alex Calazans 210

I

O que necessitamos fazer, em princípio, é compreender alguns

fundamentos do método das fluxões. O principal deles é o conceito de

momento. Para entendê-lo devemos, primeiramente, aceitar que o movimento

é capaz de produzir quantidades matemáticas: “...linhas são geradas pelo

movimento de pontos, planos pelo movimento de linhas...” (Analista,§3)1. Além

disso, devemos aceitar que existe um tempo matemático2 (absoluto) que

sempre acompanha e é comum a todos os movimentos. Dessa forma, por

causa dos movimentos ocorrem em função de um mesmo tempo, i. é, por

possuírem um elemento comum entre si, há a possibilidade de compará-los e

diferenciá-los.

Mais precisamente, é a partir de dois pontos de vista que a diferenciação

se evidencia. O primeiro é da observação da própria quantidade matemática

maior ou menor, produzida no mesmo intervalo de tempo. O outro modo de

diferenciar o movimento se constitui a partir da observação das velocidades

com que a produção das quantidades geométricas se estabelecem. Entenda-se

velocidade como sendo a produção de quantidades matemáticas em função do

tempo. Assim, um movimento torna-se diferente de outro pelas diferentes

velocidades e quantidades produzidas em um mesmo intervalo de tempo.

No método das fluxões as “...velocidades são chamadas fluxões

[fluxions]; enquanto que as quantidades [matemáticas] geradas são chamadas

quantidades fluentes [flowing quantities]” (Analista.§3). Para Newton, fluxões e

quantidades fluentes surgem em partes muito pequenas de tempo, pois há a

possibilidade dividi-lo infinitamente até chegarmos a um instante de tempo3. É

1 Newton não foi o primeiro a tratar o movimento como produtor de magnitudes geométricas.Josseph afirma que outros matemáticos, inclusive contemporâneos de Newton, jáconsideravam esse tratamento muito comum. “Essa concepção cinemática não é uma inovaçãonewtoniana; isso é dominado nas Lectiones Geometricae de Barrow e pode ser igualmenteencontrado em outros escritos” (Josseph, p.143).2 Newton expressa essa noção de tempo da seguinte maneira: “O tempo absoluto, verdadeiromatemático, por si mesmo e da sua própria natureza, flui uniformemente se a relação comqualquer coisa externa...” (Principia, Escólio das definições, I). Assim, segundo Cohen, o tempoconsiderado dessa maneira passa a ser para Newton o “pano de fundo domovimento”(Cohen,I.2002, p.452).3 Um instante é a quantidade infinitamente pequena de tempo com a qual as fluxões equantidades fluentes são geradas. Nas palavras de Newton: “Fluxões são aproximadamente

Page 212: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 211

aqui que chegamos ao conceito de momento: considera-se momento tanto as

fluxões instantâneas como, também, as quantidades fluentes geradas nesse

mesmo instante de tempo. Isso fica melhor explicitado nas próprias palavras de

Newton: “[os] incrementos ou diminuição momentâneos [das quantidades

matemáticas] são o que eu chamo de momentos (...) O mesmo ocorre se em

lugar de momentos se tratar das velocidades dos incrementos (que também

podem chamar-se movimentos, mutações, fluxões de quantidades) ou bem de

qualquer quantidade finita proporcional a ditas velocidades”(Principia, II, Lema

II). Portanto, momentos são esses dois elementos citados produzidos em um

instante de tempo e determiná-los é o objetivo do método das fluxões.

Há dois últimos aspectos importantes da noção de momento que

devemos apresentar. O primeiro é a interpretação que coloca os momentos

como as quantidades com as quais os movimentos se iniciam ou finalizam.

Porém, não se deve concebê-los como quantidades finitas, i. é,

desconsideram-se as magnitudes dos momentos, pois são quantidade que se

localizam entre o nada e uma quantidade finita4 e, assim, são compreendidos

como princípios que geram quantidades finitas (Analista,§4). O outro aspecto

refere-se à possibilidade de se determinar momentos de outras ordens. Isso

significa que se pode obter uma nova fluxão instantânea a partir de uma

primeira. O que possibilita isso é o tempo matemático, pois ele é comum a

todos os movimentos a ponto de ser reutilizado na obtenção da velocidade

instantânea com que um primeiro momento é produzido. Tal velocidade

instantânea constitui-se um momento de um primeiro momento. No entanto,

esse processo pode ir ao infinito: “...das citadas fluxões existem outras fluxões,

sendo estas fluxões das fluxões chamadas de segundas fluxões. E as fluxões

dessas segundas fluxões são chamadas de terceiras fluxões, e assim

sucessivamente, quarta, quinta, sexta etc., ad infinitum” (Analista, §4).

como os Aumentos dos Fluentes gerados em partes iguais, mas infinitamente pequenas, doTempo” (Newton. De quadraturam curvarum. Publicado por: Whiteside, 1964, vol.1.p.141)4 Newton não considera os momentos como quantidades finitas geradas em um tempoinfinitamente pequeno, provavelmente, para evitar que as quantidades matemáticas sejamcompostas de indivisíveis: “...como a hipótese dos indivisíveis parece um tanto obscura (...)optei por reduzir as demonstrações (...) à primeiras e últimas somas e razões das quantidadesnascentes e evanescentes...” (Principia.I.I.escólio).

Page 213: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alex Calazans 212

II

Com essa apresentação (sucinta) podemos tratar agora da controvérsia

de Berkeley que é dirigida, principalmente, aos momentos. Para mostrar como

eles são problemáticos e afetam rigor do método das fluxões, percorrem-se

dois caminhos. Um deles refere-se à questão de quão inteligível é o conceito

de momento. O outro caminho incide sobre as demonstrações, baseados nos

momentos.

Quanto à inteligibilidade, os momentos tornam-se suspeitos em virtude

da maneira como as faculdades mentais estruturam-se e têm acesso aos

conteúdos. As faculdades em questão são os sentidos e a imaginação,

conforme se observa na seguinte afirmação de Berkeley sobre tais faculdades

em relação com os momentos.

“...assim como nossos sentidos, ficam exauridos e intrigados com a percepção deobjetos extremamente diminutos, também a imaginação, faculdade que deriva dossentidos, fica sumamente exaurida e intrigada para conceber idéias claras daspartículas mais diminutas do tempo, ou dos ínfimos incrementos aí gerados; e muitomais ainda para compreender os momentos, ou incrementos das quantidadesfluentes em statu nascenti, em sua origem ou começo primeiríssimos da existência,antes de se tornarem partículas finitas” (Analista.§4)5.

Aqui, há um duplo comprometimento apresentado. Um deles, é

considerar os sentidos como a faculdade que primeiro acessa os conteúdos

mentais, ou seja, há uma seqüência para obtenção dos conteúdos, tendo nos

sentidos o ponto de partida. Em segundo lugar, trata-se do vínculo entre tais

faculdades. Entende-se que a imaginação “deriva” dos sentidos, supostamente,

porque quem fornece o conteúdo para imaginação é a própria faculdade dos

sentidos. Desse modo, sem o vínculo a imaginação não atuaria ou, até mesmo,

não existiria. Assim, o vínculo não só possibilita a atuação da própria

imaginação, como, também a limita a produzir objetos que nunca ultrapassarão

as características dos objetos fornecidos pelos sentidos. Imaginar é trabalhar

com o que é primeiramente sensível. Assim, Berkeley atribui somente a essas

duas faculdades o papel de determinar se algo é compreensível ou não.

5 A sublinha é minha.

Page 214: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 213

É nesse sentido que os momentos são considerados como conceitos

ininteligíveis; eles não resistem ao critério apresentado. Como os momentos

são quantidades sem magnitudes, geradas em um fluxo temporal infinitamente

pequeno, assim, encontram-se além da própria capacidade de percepção dos

sentidos. Por outro lado, também, nem mesmo a imaginação fornece

inteligibilidade a esses objetos, porque isso está fora de sua capacidade. O

conteúdo que é imaginado incide no mesmo campo do conteúdo dos sentidos:

o do finito. Dessa maneira, com tal critério, tudo o que diz respeito ao conceito

de momento fica inteiramente rejeitado. Por exemplo, recusa-se o processo de

se obter fluxões instantânea de outra, ou momento de outro momento ad

infinitum. Pois, a “...celeridade incipiente de uma celeridade incipiente, o

aumento nascente de um aumento nascente, isto é, de uma coisa que não tem

magnitude, (...), ao menos que eu me engane, se revelará impossível...”

(Analista,§4). Logo, enquadrar-se à percepção, tanto dos sentidos quanto da

imaginação, é a base do que Berkeley, entende, n’O Analista, como algo

compreensível.

III

Passemos à recusa de Berkeley às demonstrações que se baseiam

nessa teoria de momentos. O que Newton demonstrou, como sendo o

momento gerado pelo movimento nascente de duas quantidades fluentes

multiplicadas, enquadra-se inevitavelmente na problematização berkeleyana.

No Lema II, Livro II dos Principia, uma quantidade fluente A multiplicada por

outra B produz o retângulo AB. Como, em um movimento nascente, o lado Apossui um momento a e o lado B possui o momento b, Newton apresenta em

sua demonstração que o incremento produzido desse retângulo é

compreendido como: aB + bA6. O problema que Berkeley encontra na

61ª Demonstração: “Um retângulo, como AB, aumentando por um fluxo contínuo, quandoainda faltava dos lados A e B metade de seus momentos (½)a e (½)b, era A – (½)a vezes B –(½)b, ou AB – (½) aB – (½)bA + (¼)ab; todavia, assim que os lados A e B são aumentadospelos outros meio momentos, o retângulo transforma-se em A + (½)a vezes B + (½)b, ou AB+ (½)aB + (½)bA + (¼)ab. Subtraia-se desse retângulo o retângulo anterior e restará o excessoaB + bA. Portanto, com a totalidade dos incrementos a e b dos lados gera-se o incremento aB+ bA do retângulo. Q.E.D.” (Principia. II, II).

Page 215: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alex Calazans 214

obtenção desse resultado, é Newton considerar os momentos, no início da

demonstração, como uma quantidade deficiente (como faltando ½ a e ½ b),

justo em um movimento que nasce ou que aumenta a partir de um limite

determinado. Isso é uma manifesta contradição, pois o que se pretende é

encontrar a fluxão instantânea de um movimento nascente e não evanescente.

O procedimento da demonstração não justifica, segundo Berkeley, esse

tratamento negativo do conceito de fluxão instantânea; muito menos o

tratamento de momentos como quantidades finitas que podem ser dividias em

partes, ou seja, tratar os momentos como “½ a e ½ b”, algo considerado

inteiramente estranho. “Afirma-se que a magnitude dos momentos não é levada

em conta, mas supõe-se que esses mesmos momentos se dividam em partes.

Isso não é fácil de conceber...” (Analista, §11). O que Berkeley está apontando

é a necessidade de Newton dispensar ab, porque são quantidades “variáveis e

indeterminadas” (Principia, Lema II, Livro II). Isto é, por se tratar de duas

quantidades sem magnitude, assim, está implícito a falta de possibilidade de

determiná-las.

“Nada se pode fazer enquanto não se descarta a quantidade ab. Para tanto, a noçãodas fluxões é alterada e iluminada sob formas diversas: aspectos que deveriam serclaros como princípios fundamentais tornam-se confusos, e termos que deveriam serusados de maneira constante torna-se ambíguos” (Analista, §10).

Portanto, segundo Berkeley, Newton ao tentar descartar ab realiza um

procedimento que não condiz com uma verdadeira demonstração, porque

muda suposições iniciais aceitas, a saber: primeiro, o movimento como

nascendo; segundo, que os momentos não são quantidades finitas ( algo que

contrasta quando Newton divide-os na metade, característica aceita somente

para as magnitudes finitas).

No entanto, Berkeley apresenta a demonstração que realmente

considera verdadeira. Isto é, se tratarmos o movimento como nascente, sem

considerar alguma quantidade como faltando, muito menos dividida pela

metade, mas sim como sendo acrescentada, obteremos como momento o

seguinte resultado: aB + bA + ab7. Aqui não há contradição, pois “...isso é

7 2ª Demonstração: “Mas está claro que o método direto e verdadeiro para obter o momentoou incremento do retângulo AB é considerar os lados aumentados por seu incrementos inteiros

Page 216: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 215

universalmente válido para as quantidades a e b sejam elas o que forem,

grandes ou pequenas, finitas ou infinitesimais, incrementos, momentos ou

velocidades” (Analista, §9). Aqui, portanto, o que é interessante ser observado,

é a aceitação de Berkeley de um possível padrão demonstrativo.

Dessa forma, vemos que há um vínculo da crítica à inteligibilidade dos

momentos com a crítica ao rigor demonstrativo. Isso acontece quando Berkeley

apresenta que é a necessidade de se descartar ab que leva às contradições. É

no próprio conceito de momento que Newton se baseia e se justifica para

descartar ab, ou seja, no conceito que considera o momento como uma

quantidade indeterminada; como princípio nascente de quantidades finitas, por

se localizar entre o nada e uma quantidade finita. Assim, objetos ininteligíveis,

como os momentos, só produziram um conceito impreciso; e os passos

baseados em tal conceito só promovem erros e contradições em uma

demonstração.

Isso basta para esclarecer as razões de Berkeley para suspeitar do rigor

do método das fluxões. É aqui que surge a questão a ser resolvida. Podemos

reformulá-la, desmembrando-a em outras questões, da seguinte maneira: como

devemos compreender o vínculo entre sentidos e imaginação ao ponto de

impor restrições aos conceitos matemáticos? Como se sustenta que realmente

há esse vínculo, visto que n’O Analista não se mostra isso adequadamente?

Por outro lado, vimos Berkeley sugerir a aceitação de uma demonstração

geométrica, assim, cabe-nos questionar: se o padrão de inteligibilidade é o

sensível, qual é a geometria que resiste a esse padrão? Ou melhor, ao se

apegar ao sensível, que se restringe ao particular e ao singular, o padrão de

inteligibilidade não estaria eliminando a própria possibilidade da demonstração

geométrica, que necessariamente refere-se ao universal?

e multiplicá-los um pelo outro, A + a vezes B + b, cujo produto AB + aB + bA + ab será oretângulo aumentado; donde, se subtrairmos AB, o resto aB + bA + ab será o verdadeiroincremento do retângulo, ultrapassando o obtido pelo método anterior, ilegítimo e indireto, naquantidade ab”. (Analista, §9).

Page 217: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alex Calazans 216

IV

Uma possível resposta para essas questões pode ser formulada ao se

compreender qual o objeto do conhecimento humano apresentado no Tratado

sobre os Princípios do Conhecimento Humano. Nessa obra (anterior a’O

Analista) sustenta-se que as “idéias” percebidas são o único objeto que produz

conhecimento. Como isso é possível? Para Berkeley, há três possíveis origens

para nossas idéias, isto é, tudo o que é idéia diz respeito somente ao conteúdo

fornecido por estas três maneiras (Pri.§1). A primeira, é recebê-las impressas

de forma atual nos sentidos (como: cor, cheiro e vários sons). A segunda, trata-

se das idéias que sentimos a partir das paixões e operações do espírito (são

excitações como amor, alegria e tristeza, que se sentem quando as sensações

da primeira maneira atingem o espírito). E, a terceira e última maneira, são as

idéias que surgem com o auxílio da memória e da imaginação ao compor,

dividir ou representar as idéias surgidas pelas outras maneiras. São somente

esses três tipos de origem das idéias que Berkeley aceita, havendo, todavia,

entre elas uma ordem para que as idéias atinjam o espírito, onde o ponto

inicial de todas são os sentidos.

Contudo, como algo pode vir a ser considerado um genuíno objeto do

conhecimento na filosofia berkeleyana? Berkeley argumenta contra a

possibilidade de haver um mundo independente do que seja percebido pelos

sentidos. “E que percebemos nós além das nossas próprias idéias ou

sensações? E não repugna admitir que alguma ou um conjunto delas possa

existir impercebido?” (Pri.§4). Ao apontar essa impossibilidade,

necessariamente, identifica-se a idéia como o objeto do conhecimento. Todo o

conteúdo que pode ser conhecido não vai além das percepções ou das idéias

adquiridas pelos três modos acima citados; isso resulta, obrigatoriamente na

negação de idéias ou conhecimentos inatos. Nada surge na mente sem que

tenha uma relação com a percepção obtida por algum dos órgãos dos sentidos.

Assim, falar de algo, inclusive sobre a existência, que não possua o respaldo

no fato de ser percebido é, para Berkeley, falar coisas sem sentido algum. “O

que se tem dito da existência absoluta de coisas impensáveis sem alguma

relação com o seu ser–percebidas parece perfeitamente ininteligível” (Pri.§3).

Page 218: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 217

Fica evidente que pensar é possuir idéias e possuir idéias é, antes de tudo,

possuir percepções. O objeto do conhecimento não pode possuir outra forma

que não seja idéia. É esse o significado da doutrina contida na expressão latina

do esse est percipi,8 “ser é ser percebido”(Idem).

Berkeley, nos Princípios, também apresenta o vínculo entre os sentidos

e a imaginação ao acessarem o objeto do conhecimento. Como se consegue

sustentar esse vínculo? Ele observa que todas as idéias que a imaginação

produz podem de alguma maneira se reduzir a uma idéia vinda pelos sentidos.

“...por mim tenho realmente a faculdade de imaginar ou representar-me idéias decoisas particulares e de variamente as compor e dividir. Posso imaginar um homembicípite ou a parte superior de um homem ligada a um corpo de cavalo; possoconsiderar a mão, os olhos, o nariz separado do resto do corpo. Mas olho e mãoimaginados terão forma e cor particulares. Igual mente a idéia de homem imaginadotem de ser de homem branco ou preto ou moreno, direito, curvado, alto, baixo oumediano” (Pri.Int.§10)

Berkeley sustenta a sua tese ao indicar que os exemplos produzidos,

tanto pela composição, como pela separação, sempre possuem algo que é

particularmente percebido. Mesmo a composição de idéias, como no exemplo

da ligação da parte de um corpo humano ao de um cavalo, não retira a

característica de que cada parte ligada pode realmente ser percebida pelos

sentidos. Portanto, a imaginação necessariamente deve atuar com o que é

sensível.

Voltando à matemática, para Berkeley, a geometria deve possuir suas

raízes no esse est percipi por encerrar pretensos objetos do conhecimento. E,

é com base nas idéias percebidas que, nos Princípios, rejeita-se a divisibilidade

infinita da extensão (infinito potencial) e a extensão como contendo infinitas

partes (infinito atual). Quanto à extensão, o que unicamente se percebe são

quantidades finitas e isso é percorrer uma quantidade enumerável de partes.

Todavia, qualquer interpretação de infinito considera a extensão como

detentora de quantidades inumerável de partes, o que é uma manifesta

contradição (Pri.§124). O que está por trás da recusa desses infinitos, é evitar

que a geometria seja uma ciência da abstração: proposta da doutrina das

8 Aqui não nego que Berkeley, nos Princípios, se compromete com uma ontologia ao expressaressa máxima. Porém, suspendo por enquanto essa interpretação e retenho o critério de

Page 219: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alex Calazans 218

idéias abstratas. Berkeley apresenta dois tipos de abstração pertencentes a

essa doutrina. A primeira, trata-se da separação de qualidades sensíveis que

não são realmente encontradas juntas. A outra, diz respeito a possibilidade de

formar noções ou idéias gerais abstratas das coisas (Pri.Int.§10). O

matemático, baseando-se nessa doutrina, poderia “...convencer-se (pense-se o

que se pensar dos sentidos) de que a extensão em abstrato é infinitamente

divisível” (Pri.§125). Berkeley, rejeita terminantemente essa doutrina, porque

ela contradiz o esse est percipi.

A noção de universalidade que estamos procurando, para permitir as

demonstrações, poderia ser fornecida por uma idéia geral abstrata. Porém,

Berkeley admite que se pode construir o universal sem apelar à doutrina das

idéias abstratas. A resposta encontra-se na relação que se pode fazer entre os

particulares. Uma idéia particular torna-se universal quando nela existem as

propriedades que podem ser relacionadas a todas as possíveis idéias

particulares com iguais propriedades. Assim, é da relação essas idéias que a

universalidade surge e não da apreensão de idéias abstratas independentes e

isoladas dos particulares. Dessa maneira, os particulares atuam como

representativos de outras idéias particulares9. Há, para Berkeley, assim, idéias

gerais, porém não abstratas. É com isso que se chegamos à universidade

necessária às demonstrações. Com a relação entre os objetos geométricos

particulares é que se estabelece a universalidade das demonstrações, ou seja,

uma linha é usada na demonstração como representativa de outras, incluindo

maiores. “por outras palavras, o geômetra abstrai da sua grandeza – sem

implicar que ele forme uma idéia abstrata, mas apenas que ele não cura da

grandeza particular...” (Pri.§126). A linha é vista como um símbolo para outras

linhas, o que nos leva a concluir, que nos Princípios o objeto geométrico

constitui-se não somente em atualmente percebido mas, também, em possíveis

percebidos.

inteligibilidade que se faz ai presente.9 Esse processo acontece semelhantemente na linguagem: “...se quisermos atribuir sentido àsnossas palavras e falar somente do que podemos conceber, concordaremos – creio eu – queuma idéia particular (...) torna-se geral quando representa todas as idéias particulares damesma espécie” (Pri.Int.§12).

Page 220: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A crítica de Berkeley ao método das fluxões de Newton 219

Podemos facilmente assumir que toda essa filosofia da matemática dos

Princípios conservou-se n’O Analista, o que resolveria definitivamente as

questões propostas? Há uma dificuldade muito grande para fazer isso, porque

nos Princípios a filosofia da matemática está comprometida como o esse est

percipi. É sabido, que nessa máxima, além do critério de inteligibilidade,

Berkeley está apresentando uma ontologia para as idéias. A existência para

uma idéia consiste em ser percebida. Em contrapartida, n’O Analista, não se

apresenta o critério de inteligibilidade vinculado a um comprometimento

ontológico. Assim, como podemos resolver esse impasse para permitir a

aproximação das filosofias dos dois textos e solucionar a questão proposta?

Essa é a problemática que ainda está em fase de pesquisa. No entanto, no

decorrer das investigações, tentaremos mostrar que o impasse somente

poderá ser resolvido quando compreendermos como a exposição do critério de

inteligibilidade, n’O Analista, assume, antes de tudo, um caráter estratégico:

para criticar a crença, de outros matemáticos, de que a inteligibilidade das

quantidades infinitamente pequenas é garantida primeiramente pela

imaginação. E isso será melhor sustentado com a investigação da

possibilidade de uma postura instrumentalista da matemática n’O Analista.

CONCLUSÃO

Ao levantarmos a crítica berkeleiana n’O Analista ao método das fluxões

– tanto à inteligibilidade dos momentos quanto ao rigor demonstrativo – nos

deparamos com a questão de quais eram as considerações filosóficas para as

demonstrações matemáticas que estavam sustentando tal crítica. No entanto,

nos referimos aos Princípios como um recurso para responder essa questão. E

ficou estabelecido que na doutrina do “ser é ser percebido” encontra-se a

fundamentação de como a imaginação deriva dos sentidos. Pois, essa

faculdade, mesmo sendo ativa, sempre produz idéias que necessariamente

possuem características do que é sensível. Nada do que é imaginado vai além

da finitude do conteúdo sensível, o que impede, segundo Berkeley, colocar a

imaginação como a faculdade que teria o papel de fornecer aos momentos a

inteligibilidade. Assim, apegando-se ao sensível, Berkeley tenta excluir da

Page 221: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alex Calazans 220

matemática a noção de infinito e qualquer outra noção que possua as

características de idéias abstratas pertencente à doutrina da abstração.

É desse ponto de vista que os conhecimentos da matemática devem se

construir. No entanto, evita-se a impossibilidade da demonstração geométrica –

no sentido da demonstração ser algo universalizado ou generalizado – com a

apresentação de um conceito de universalidade, mesmo mediante critérios

sensíveis. Isto é, Berkeley apresenta a universalidade como conseqüência da

relação entre os particulares. Um particular torna-se universal quando contém

as propriedades que podem referir-se a todos os demais na relação. Assim,

surge o símbolo ou termo geral. Na geometria esse símbolo é usado para

fornecer o caráter de universalização da demonstração. Um linha nesse

sentido, torna-se não só representado do que poder ser atualmente percebido

mas também do que pode ser possivelmente percebido. No entanto, o conceito

de relação, necessário para o conceito de universalidade e indispensável para

qualquer demonstração, é apresentado nos Princípios. Vimos que aproximar os

dois texto de Berkeley não se mostra uma tarefa fácil e imediata, pois cabe-

nos ainda saber da postura de Berkeley diante da problemática ontológica n’O

Analista. Essa é a fase que ainda está em andamento.

BIBLIOGRAFIA

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WHITESIDE, D. T. (1964) (ed.) The Mathematical Works of Isaac Newton.2 vols. New York/London: Johnson Reprint Corporation.

Page 223: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A relação entre inferência e conexão necessária no Tratado daNatureza Humana de David Hume

Claudiney José de SousaMestrando em Filosofia/UFPR

Resumo: Neste breve artigo pretendo discutir o problema da causalidadeem Hume a partir de dois temas centrais do primeiro livro do Tratado: ainferência e a conexão necessária. Neste sentido, o artigo visa,modestamente, analisar em que medida estes dois temas estãointimamente relacionados por conta do mesmo tipo de necessidade. Seinterdependem na medida em que ao analisar o problema da inferência –visando resolver o problema da conexão necessária – Hume acabadescobrindo que o fundamento da mesmainferência é a própria transiçãoresultante da união habitual das idéias em nossa mente, que nada mais éque a própria conexão necessária.

Palavras-chave: causalidade, inferência, conexão necessária, hábito,crença, qualidade.

Na terceira parte do Tratado, ao se perguntar pelo fundamento da

causalidade, Hume analisa um exemplo da relação de causa e efeito e observa

que a hipótese de que a idéia de causalidade talvez pudesse derivar das

qualidades dos objetos, deve ser imediatamente descartada (Cf. T.I.iii.2, p. 75).

Não sendo, segundo ele, uma qualidade particular dos objetos então ela deve

derivar de relações que possam ser consideradas essenciais à causalidade tais

como a contigüidade espaço-temporal dos objetos e a sucessão, ou seja, a

prioridade temporal da causa em relação ao efeito. No entanto, estas duas

relações, embora essenciais à causalidade, não nos dão uma idéia completa

da mesma, ou seja, embora sejam “condições necessárias”, não são

“condições suficientes” para a exata compreensão da idéia que ele está

investigando1 (Cf. T.I.iii.2, p. 75-76). Segundo Hume,

1 Segundo Dicker, “Hume pretende fazer aquilo que os filósofos contemporâneos chamam deuma análise da causalidade: uma definição que especifique, de maneira não circular, todasaquelas afirmações que devem ser verdadeiras para uma relação causal ser obtida, ou que dê

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 224: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A relação entre inferência e conexão necessária 223

um objeto pode ser contíguo e anterior a outro, sem ser considerado como causadele. Há uma CONEXÃO NECESSÁRIA que deve ser levada em consideração e queé uma relação muito mais importante [ou mais abrangente] do que aquelas outrasduas acima mencionadas (T.I.iii.2. p. 77; maiúsculas e itálicos do autor).

Sendo assim, precisaríamos passar então a investigar a natureza dessa

conexão e colocar a questão pela sua origem ou a questão pela impressão da

qual ela deriva, já que ela parece poder fornecer-nos uma resposta última a

respeito da idéia de causalidade. No entanto, Hume percebe a abrangência do

tema e a problemática em que se envolve com a análise de tal idéia e acredita

que talvez possa minimizar o problema analisando, antes, outras questões que

possam conduzi-lo com mais segurança a esse tópico fundamental. Abandona,

portanto, a investigação direta sobre a natureza dessa conexão, desdobrando o

problema a respeito da necessidade em dois outros problemas contidos nas

seguintes questões:

[i] Por que razão nós afirmamos ser necessário que cada coisa, cuja existência tenhaum começo, deva também ter uma causa? [e ii] Por que nós concluímos que taiscausas particulares devem necessariamente ter tais efeitos particulares; e qual é anatureza da inferência que fazemos de um ao outro e da crença que nós depositamosnela? (T.I.iii.2 p. 78; itálicos do autor).

Estas duas questões são, em última instância, duas maneiras distintas

de resolver um e mesmo problema, qual seja, o de esclarecer o fundamento da

idéia de conexão necessária. A segunda questão, como afirma Barra, enquanto

refere-se ao problema da indução, se apresenta apenas como uma possível

solução – posteriormente descartada – na tentativa de resolver a primeira

questão, que diz respeito ao problema da causalidade2 (Cf. Barra, 2000, p. 86).

Hume inclusive destaca o conceito de necessidade em ambas as questões,

como se elas fossem apenas desdobramentos de um problema maior. Mas

observe que outros dois conceitos também são destacados, a saber, inferência

as condições necessária e suficiente para a afirmação de que X causa Y” (Dicker, 1998, p. 99;itálicos do autor).2 Vale ressaltar que minha análise estará, em grande medida, fundamentada na concepção deBarra, segundo a qual estas duas questões colocadas por Hume, dizem respeito,respectivamente, aos problemas da causalidade e da indução. Acredito que a sugestão deBarra a esse respeito é bastante clara e de fato resolve alguns problemas de interpretaçãoacerca das ásperas discussões da parte III do Tratado. Segundo Barra, “enquanto o primeirodiz respeito às condições de existência das coisas [problema ontológico], o segundo dizrespeito às suas condições do conhecimento (crenças e inferências) [problemaepistemológico]” (Barra, 2002, p. 85).

Page 225: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Claudiney José de Sousa 224

e crença, e isso sugere que a exata compreensão da conexão necessária

dependerá da análise anterior destes conceitos. O próprio autor afirma que a

investigação do tema da inferência é relevante porque talvez ele acabe

revelando que “é a conexão necessária que depende da inferência em lugar de

a inferência depender da conexão necessária” (T.I.iii.6. p. 88).

Hume aborda rapidamente e parcialmente a primeira questão (ou

problema da causalidade) – apenas na seção 3 da parte III do Tratado –

limitando-se a refutar argumentos de alguns filósofos que visam legitimar a

necessidade da causa3, passando logo em seguida, à análise da segunda

questão relativa à inferência causal, ou problema da indução, ao qual farei uma

rápida menção, com o objetivo de discutir alguns pontos que esclarecem o

problema referente à idéia de conexão necessária.

Uma das primeiras constatações de Hume a respeito dessa discussão é

a de que a inferência que fazemos da causa ao efeito não deriva do exame de

seus objetos nem de sua essência, ou seja, “não há nenhum objeto que

implique a existência de outro se considerarmos esses objetos em si mesmos e

nunca olharmos para além das idéias que formamos deles” (T.I.iii.6, p. 86-87 ).

Então, é somente pela experiência que podemos inferir a existência de um

objeto da existência de outro. A experiência revela-nos que em todos os casos

de conjunção entre causa e efeito particulares, os dois objetos são percebidos

pelos sentidos e recordados e que, quando raciocinamos, apenas um é

percebido ou lembrado e o outro é suprido pela experiência.

Com isso, Hume acaba também por descobrir uma nova relação

essencial à causa e efeito. Além da contigüidade e sucessão, a conjunção

constante também se apresenta enquanto estritamente essencial para a

constituição desta relação. No entanto, esta nova relação não implica nada

além do fato de que “objetos semelhantes têm sempre sido colocados em

iguais relações de contigüidade e sucessão” (T.I.iii.6. p. 88). Esta multiplicidade

de casos semelhantes que percebemos na conjunção constante de objetos não

3 Hume rejeita, por exemplo: i) as objeções de Hobbes de que deve haver uma causa, capazde determinar o ponto do espaço e do tempo em que a coisa começa a existir; ii) a concepçãode Clarke, segundo a qual, sem uma causa, a coisa teria de produzir-se a si própria e iii) as

Page 226: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A relação entre inferência e conexão necessária 225

nos revela nenhuma idéia nova como é a de conexão necessária que estamos

investigando.

Além disso, é preciso saber ainda, em que está fundada a própria

inferência a partir da experiência, se no entendimento ou na imaginação, ou em

outras palavras, saber se a inferência pode ser realizada pela razão ou por

uma associação e relação de idéias. Segundo o autor, “se fosse a razão, ela

procederia sob o princípio de que aqueles casos de que não tivemos

experiência devem se assemelhar àqueles casos de que tivemos experiência, e

que o curso da natureza continua sempre uniformemente o mesmo (T.I.iii.6 p.

89; itálicos do autor). No entanto, os argumentos para fundamentar esta

proposição (sejam eles demonstrativos ou prováveis) nos conduzem a uma

circularidade. Sendo assim, a única alternativa seria a de que a inferência é

produzida pela imaginação ou associação de idéias.

Dessa forma a imputação de regularidade à natureza depende

intrinsecamente das operações da imaginação. Trata-se de uma relação

naturalmente introduzida pelos próprios objetos. Segundo Hume, o que ocorre

é que existem algumas relações ou associações que nos fazem passar

naturalmente de um objeto a outro, mesmo sem haver uma razão para a

transição. Assim, “podemos estabelecer como regra geral que, sempre que a

mente, constante e uniformemente, faz uma transição sem nenhuma razão, ela

está sendo influenciada por estas relações [semelhança, contigüidade e causa

e efeito] (T.I.iii.6, p. 92; itálico meu). Então, a passagem da idéia ou impressão

de um objeto à idéia de outro (inferência) é determinada por princípios que

produzem a união dessas idéias na imaginação (conexão).

Se as idéias não tivessem mais união na fantasia do que os objetos parecem ter noentendimento, nunca poderíamos realizar uma inferência das causas aos efeitos, nempoderíamos depositar nossa crença em qualquer questão de fato. A inferência,portanto, depende unicamente da união das idéias (T.I.iii.6, p. 92).

A experiência da conjunção constante cria em nós uma disposição para

passar de um objeto a outro, mas a criação desta disposição não é produto da

razão ou do entendimento, mas da imaginação. É em razão desta união na

afirmações de Locke de que, se não houvesse causa, a coisa teria de ser produzida pelo nada(Cf. T.I.iii. 2-3, p. 79-82).

Page 227: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Claudiney José de Sousa 226

imaginação que, nas relações de causa e efeito partindo da experiência,

concluímos algo que ultrapassa os casos de que tivemos experiência. Somente

a imaginação poderia ampliar nossa experiência passada na direção da

experiência futura. Por isso Hume pode concluir que,

Ainda que a causalidade seja uma relação filosófica, que implica contigüidade,sucessão e conjunção constante, é apenas enquanto relação natural, que produzuma união entre nossas idéias, que somos capazes de raciocinar sobre ela ou extrairdela alguma inferência (T. I.iii.6. p. 94; itálicos do autor).

Mas como afirma Barra, “os raciocínios de causa e efeito não envolvem

apenas a concepção imaginária de um objeto ausente aos sentidos. Além de

concebe-los (...) é preciso também acreditar na sua existência” (Barra, 2000, p.

89), ou seja, é preciso concebe-los uma maneira diferente, mais intensa, forte e

vivaz. É nisto que consiste a crença; ela é uma “IDÉIA VIVAZ RELACIONADA

OU ASSOCIADA A UMA IMPRESSÃO PRESENTE” (T.I.iii.7, p. 96).

Por fim, é preciso considerar que, embora esta força e vivacidade da

crença lhe sejam transmitidas pela impressão dos sentidos, ela depende do

COSTUME ou HÁBITO para ser produzida, pois, somente depois de termos

observado a mesma impressão em circunstâncias passadas, aparecendo

constantemente conjugada a outra impressão que a sucede ou que a antecede,

é que podemos dar origem a este sentimento que é a crença. Dessa forma,

somente o hábito poderia nos levar a fixar nossa crença num evento futuro,

pois, mesmo após a observação da conjunção constante de objetos, não temos

razão para fazer a inferência. Ele é, portanto, o único princípio de determinação

dos eventos futuros.

No entanto, conforme afirma Barra, “o hábito somente pode oferecer

uma solução promissora para o problema da indução se puder também

fundamentar a idéia em que se baseiam todas as nossas expectativas acerca

da regularidade da natureza” (Barra 2000, p. 91). Dessa forma nos envolvemos

propriamente com o problema da idéia de conexão necessária, uma vez que,

somente ela pode fornecer uma base sólida para tais expectativas.

Investiguemos, portanto, esta idéia, com o intuído de esclarecermos este

problema.

Page 228: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A relação entre inferência e conexão necessária 227

Fiel a seu método de análise, o autor acredita que, se temos essa idéia

de necessidade, devemos investigar, em um caso qualquer de causa e efeito, a

impressão correspondente a essa idéia. No entanto, nas relações de causa e

efeito percebemos apenas contigüidade e sucessão entre os objetos e nunca

uma terceira relação ou conexão necessária entre eles. Da mesma forma, a

observação de vários exemplos semelhantes em relações semelhantes de

contigüidade e sucessão não ajuda muito na descoberta da conexão

necessária, pois, “a reflexão sobre várias instâncias apenas repete os

mesmos objetos e, portanto, nunca pode fazer surgir uma nova idéia”

(T.I.iii.14, p. 155), que é o que estamos procurando.

No entanto, embora a repetição não gere uma nova idéia, ela produz

uma nova impressão que, conseqüentemente, deve ter uma idéia

correspondente A esta “impressão nova” deve corresponder também uma

“idéia nova”.

Depois de uma repetição freqüente, descubro que, quando um dos objetos aparece, amente é determinada pelo costume a considerar seu acompanhante usual e aconsidera-lo de um modo mais intenso, por causa de sua relação com o primeiroobjeto. É esta impressão, então, ou determinação, que me fornece a idéia denecessidade (T.I.iii.14, p. 156; itálicos do autor)

Então, esta determinação é que promove a inferência da causa ao

efeito, ou seja, fazemos uma passagem fácil em decorrência desta

determinação. E o mais importante, esta é a mesma determinação responsável

pela idéia de conexão necessária que estamos investigando.

Com isto percebemos que ambos os problemas, da causalidade e da

indução, parecem desembocar em uma única resposta. Ambos são resultado

desta determinação da mente, ou nova impressão gerada pelo costume. É por

este motivo que Hume se priva de uma investigação direta da impressão

correspondente à idéia de necessidade nas primeiras seções da parte III do

Tratado. Era preciso investigar a fundo uma série de outras questões que

pudessem nos conduzir com segurança ao tema da causalidade. Dessa forma,

Hume espera mostrar que há uma cumplicidade ou interdependência entre

Page 229: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Claudiney José de Sousa 228

causalidade e indução4. A explicação da idéia de necessidade depende de uma

compreensão de como se dá a inferência. Em suma, era preciso compreender

primeiro a inferência baseada na relação para somente depois compreender a

própria relação de causa e efeito (Cf. T.I.iii.14, p.169). Além disso, podemos

concluir que a resposta para ambos os problemas, da causalidade e da

indução, surge da experiência como afirma Barra.

Se a partir da experiência pudéssemos inferir indutivamente regularidadesnecessárias entre duas idéias, isso nos obrigaria, então, a conecta-las de modonecessário mediante uma relação de causa e efeito, pois, não temos nenhuma idéiade necessidade que não seja derivada dessa relação. Todavia, por outro lado, nãotemos nenhuma idéia de conexão necessária que não seja ela mesma tambémderivada da experiência (Barra, 2000, p. 86).

A partir daqui nos deparamos com um novo problema: já vimos que a

causalidade não é uma qualidade particular dos objetos e também que a

análise dela enquanto mantendo as relações de contigüidade, sucessão e

conjunção constante, não nos ajudou a esclarecer o problema da conexão

necessária. Hume acredita ser preciso, então, proceder a uma investigação

sobre a própria noção de poder e eficácia5 atribuídos à relação de causa e

efeito. Tema que tem intrigado muitos filósofos antigos e modernos por ser,

como afirma o próprio Hume, um dos problemas centrais da filosofia.

No entanto, não é meu objetivo fazer aqui uma reconstrução exaustiva a

respeito da opinião destes filósofos quanto à origem da idéia de poder. Basta

lembrar apenas que Hume rejeita: i) a explicação de Locke de que esta idéia

seria obtida raciocinando-se sobre a observação das diversas novas produções

na matéria; ii) as propostas da filosofia Antiga e Medieval, que apelam para

princípios tais como formas substanciais, matéria etc. que não se reduzem a

nenhuma propriedade conhecida dos corpos, sendo totalmente ininteligíveis e

inexplicáveis; iii) a tese cartesiana de que, como a matéria é destituída de

4 Esta seria uma das razões para não se pensar que Hume estabelece uma divisão, em suadiscussão sobre a causalidade, entre uma fase puramente negativa e outra positiva. SegundoSmith, “uma vez mais se manifesta que não cabe distinguir, na economia interna do textohumeano, entre uma parte negativa e cética, baseada no princípio da cópia, e outra positiva enaturalista, baseada nas associações da imaginação ou instintos naturais” (Smith, 1995, p. 97).5 Cabe lembrar que Hume inicia esta análise esclarecendo que “os termos eficácia, ação,poder, força, energia, necessidade, conexão e qualidade produtiva são quase sinônimos”. Seé assim, não se pode definir qualquer deles por meio dos demais, como fazem erroneamentealguns filósofos.

Page 230: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A relação entre inferência e conexão necessária 229

poder, Deus seria a fonte última e imediata de todo o poder; iv) a hipótese dos

newtonianos que sustentam a idéia da chamada eficácia das causas segundas,

atribuindo “à matéria um poder e energia derivados mais reais” (T.I.iii.14, p.

193); v) a concepção de que a idéia de poder provenha da observação de

casos individuais das operações da mente sobre os corpos ou sobre as idéias

ou de que talvez tenhamos uma idéia geral de poder (Cf. T.I.iii.14. p. 157-162).

Segundo Hume, nas explicações sobre a idéia de poder dadas acima, as

expressões “força”, “poder” ou “eficácia”, acabaram perdendo seu significado

verdadeiro ao serem erroneamente aplicadas, por isso, precisamos proceder a

uma nova aplicação destas idéias, conferindo-as um significado ao analisá-las

de acordo com o método experimental de raciocínio.

Para Hume, somente depois da conjunção constante é que começamos

a atribuir uma conexão necessária entre os objetos. No entanto, objetivamente

não há diferença entre um único par de eventos e uma grande quantidade de

pares de eventos semelhantes. A observação de uma multiplicidade de pares

de eventos semelhantes não acrescenta nada aos objetos. O que ocorre é que

os casos semelhantes não produzem uma nova qualidade nos objetos que

possa ser o modelo dessa idéia, mas “a observação dessa semelhança produz

uma nova impressão na mente; e esta impressão é seu modelo real” (T.I.iii.14,

p. 165; itálicos do autor). Então a necessidade é uma impressão interna da

mente, nascida da observação da semelhança. Isso ocorre porque a

observação da semelhança, em vários casos, cria uma determinação na mente

para passar de um objeto ao que usualmente o acompanha. Ao multiplicar

nossas idéias, a repetição faz com que sofram um acréscimo em relação ao

que são quando da observação de um caso isolado. Essa determinação é o

único efeito da semelhança e, segundo Hume, deve ser a mesma coisa que a

idéia de necessidade (Cf. T.I.iii.14, p. 163-164).

A multiplicidade, embora não acrescente nada aos objetos externos,

acrescenta algo à mente do observador. A observação de muitos casos

similares da relação de causa e efeito adiciona à mente um sentimento de

expectativa ou antecipação. Este sentimento é a impressão da idéia de

conexão necessária, que no Tratado, recebe o nome de impressão de

Page 231: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Claudiney José de Sousa 230

reflexão6. A única impressão interna que pode dar origem à idéia de conexão

necessária é essa “propensão produzida pelo costume, a passar de um objeto

à idéia de seu acompanhante usual” (T.I.iii.14, p. 165). Sendo assim, o autor

pode concluir que “a necessidade é algo que existe na mente e não nos

objetos” (T.I.iii.14, p. 165). Enfim, se ela não é uma qualidade dos corpos, não

pode ser outra coisa senão uma determinação do pensamento, ou uma

qualidade presente em nossa mente, que possibilita a conexão entre os

objetos.

Com esta resposta a respeito da origem da idéia de necessidade, Hume

consegue, inclusive, descobrir o fundamento da inferência causal, ou seja, “o

fundamento de nossa inferência é a transição que surge da união habitual”

(T.I.iii.14, p. 165) ou seja, é a própria conexão necessária.

De posse desses argumentos, Hume pode então dar uma definição

clara de causa. Uma definição de causa enquanto comparação de idéias

(definição filosófica) e enquanto associação de idéias (definição natural) na

tentativa de diferencia-las, embora, para ele esta seja apenas uma

consideração diferente sobre os mesmos objetos (ou eventos). Mas antes

disso, o autor lembra ainda que somente depois de toda essa análise

poderíamos dar uma definição precisa da relação porque a natureza da

relação depende da natureza da inferência, ou seja, tínhamos que examinar

primeiro a inferência baseada na relação (problema da indução) para somente

depois poder explicar a própria relação de causa e efeito (problema da

causalidade), o que fica claro agora com as duas definições de causa.

Podemos dar duas definições dessa relação, que diferem apenas por apresentaremuma opinião diferente do mesmo objeto, fazendo-nos considera-las como umarelação filosófica, ou como uma relação natural; como uma comparação de duasidéias, ou como uma associação entre elas. [i] Nós podemos definir uma CAUSAcomo um objeto precedente e contíguo a outro, em que todos os objetos semelhantesao primeiro são colocados em iguais relações de precedência e contigüidade com osobjetos semelhantes ao último (...). [ii] Uma CAUSA é um objeto precedente econtíguo a outro e tão unido a ele que a idéia de um determina a mente a formar aidéia do outro, e a impressão de um a formar uma idéia mais vívida do outro”(T.I.iii.14, p. 170; itálicos e maiúsculas do autor).

6 Segundo Dicker, este é também “o ponto de contato entre a teoria da causalidade de Hume esua explicação psicológica do raciocínio causal e indutivo” (Dicker, 1998, p. 107). Eu diria, oponto de contato entre os problemas da causalidade e da indução.

Page 232: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A relação entre inferência e conexão necessária 231

Observe, a partir destas duas definições7, que o exame de um caso

isolado de causa e efeito revela apenas que objetos semelhantes estão em

relações semelhantes de contigüidade e sucessão. Até aqui temos todos os

elementos para descrever uma relação filosófica de causa, ou seja, uma mera

comparação entre idéias. A primeira definição pode ser interpretada enquanto

uma definição de causa como ela ocorre objetivamente na natureza,

independente de uma mente que a observa. Mas quando percebemos que a

relação de conjunção constante só opera sobre a mente por meio do costume,

que determina a imaginação a fazer uma transição da idéia de um objeto à

idéia daquele que o acompanha usualmente, e da impressão de um a uma

idéia mais vívida do outro, temos aí os elementos para uma definição natural

de causa. Observemos ainda que a primeira definição não faz nenhuma

referência a conexão necessária entre objetos. A conexão necessária é própria

da segunda definição de causa. A primeira definição envolve apenas conjunção

constante entre eventos.

Por outro lado, a diferença entre estas duas definições está pautada na

diferença entre concepção e crença, que está na maneira de concebermos as

idéias. A diferença entre comparação e associação é, dessa forma,

determinada em grande medida, pela crença. Para alterar de algum modo a

idéia de um objeto particular, a única coisa que podemos fazer é aumentar ou

7 Segundo Dicker estas duas definições de causa tem chamado bastante a atenção doscomentadores, principalmente pelo fato de serem definições diferentes de um mesmo objeto,como afirma Hume. Para ele, de acordo com estas duas definições, “um par de eventos podesatisfazer (...) [a primeira] sem satisfazer (...) [a segunda], e reciprocamente, um par de eventospode satisfazer (...) [a segunda] sem satisfazer a primeira” (Dicker, 1998, p. 114). Para ilustrareste caso, utilizemos um exemplo do próprio Dicker: “suponhamos, por exemplo, que todos oseventos similares a E1 [evento 1] são eventos macroscópicos que nós freqüentementeobservamos e eventos similares a E2 [evento 2] são eventos microscópicos que a ciência nãotêm entretanto descoberto. Então, pode ser verdadeiro que eventos como E1 são sempreseguidos por eventos como E2, mas falso que eventos como El sempre levam-nos a esperareventos como E2” (Idem). Neste caso, apenas a primeira definição de causa seria satisfeita.Está claro, portanto, que as duas definições não são equivalentes. A respeito dasinterpretações diante da equivalência ou não entre as duas definições, Dicker acha importanteressaltar que “alguns comentadores tem argumentado que apenas a primeira definiçãorepresenta sua real opinião [opinião de Hume] (veja Robinson, 1962). Alguns têm argumentadoque ele tem duas teorias diferentes que podem ser integradas em uma única (Beauchamp eRosemberg, 1981). Stroud (1977:89) está seguro de que Hume nunca teve a intenção,estritamente falando, de dar uma definição da causação. Recentemente, Don Garrett (1997:107-17) tem argumentado que as duas definições de Hume podem ser interpretadas de talmodo que voltem a ser equivalentes” (Idem).

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Claudiney José de Sousa 232

diminuir sua força e vividez. E é exatamente o que proporciona a crença,

presente na associação de idéias, ou seja, na segunda definição de causa. É

por isso também, que a relação ou associação com uma impressão presente é

determinante para a crença, fazendo-a tornar-se uma idéia vívida. A impressão

confere à idéia a mesmas qualidades existentes nela; qualidades as quais

Hume atribui nomes tais como firmeza, solidez, força, vividez ou mesmo

conexão necessária. Por isso a conexão necessária passa a ser uma qualidade

adicionada a mente do observador mediante a crença proporcionada pelo

hábito.

Bibliografia

BARRA, E. S. O. De Newton a Kant: a Metafísica e o Método daCiência da Natureza, Tese de Doutoramento, FFLCH/USP:2004

DICKER, Georges. Hume’s Epistemology and Metaphysics: anintroduction. London and New York:Routledge, 1998.

HUME, D. A Treatise of Human Nature. [ed. L. A. Selby-Bigge and P. H.Nidditch]. Oxford: The Claredon Press, 1978..

SMITH, Plínio Junqueira. O Ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola,(coleção filosofia; 32), 1995.

Page 234: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Descartes e Newton: a questão de conciliar a descontinuidadeda matéria e a continuidade do espaço.

Veronica Ferreira Bahr CalazansMestranda em Filosofia/UFPR

Resumo: A questão de conciliar a descontinuidade da matéria e acontinuidade do espaço serve-nos, aqui, como fio condutor para umadiscussão que, para além de um enfoque puramente mecânico, pretendeevidenciar a relevância das conseqüências mecânicas da questão para aestruturação de elementos importantes da modernidade. As soluçõespropostas por Descartes e Newton para tal questão não apenas fornecemfundamentos para os sistemas de ambos os autores, como apontam paradiferenças significativas entre eles. Interessa-nos investigar o alcance detais diferenças, especialmente no que diz respeito ao caráter metodológicoa às bases metafísicas de cada um dos sistemas.

Palavras-Chave: espaço, matéria, movimento, atração, vazio.

Um dos elementos importantes que marca o início da modernidade é,

sem dúvida, o surgimento da chamada nova ciência. Esta caracteriza-se por

uma autonomia, no que diz respeito aos seus métodos e critérios,

fundamentada no ideal de que a razão deve “apoiar-se nela mesma” e, assim

procedendo, é capaz de “formular juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo que

se lhe apresenta” ( Descartes, 1999; Regra I). Uma das principais pretensões

dessa nova ciência é a de abandonar os métodos baseados em critérios de

qualidade para adotar aqueles que se sustentam em critérios de quantidade,

possibilitando, assim, a matematização dos fenômenos.

Embora possamos encontrar, já em Kepler, Galileu e outros autores,

explicações de fenômenos que se pautam por essa pretensão, é somente com

Descartes que ela alcança o estatuto de um modelo sistemático do mundo

físico, analisado a partir de um ferramental matemático e contendo leis

matematicamente estruturadas.

Entretanto, o sistema mundi cartesiano foi alvo de críticas que

evidenciaram dificuldades insuperáveis, do ponto de vista da mecânica; a

principal delas foi dirigida por Newton. Porém, a relevância dessa crítica não

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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Veronica Ferreira Bahr Calazans 234

reside apenas nas conseqüências mecânicas. Levando em conta a afirmação,

de Newton, de que “o ensinamento (de Descartes, no que diz respeito a

definições cruciais, como lugar e movimento) é confuso e contrário à razão”,

por incorrer em contradições e produzir conseqüências absurdas; vemos ser

alvejada, igualmente, a pretensão cartesiana de oferecer um sistema em que o

mundo físico é explicado, em sua totalidade, a partir dos preceitos da razão.

Muitas foram as questões que conduziram as investigações da nova

ciência. Optamos por tratar, aqui, de uma questão que se mostra relevante na

medida em que as soluções propostas para ela fornecem as bases para os

sistemas de ambos os autores; e, principalmente, apontam para diferenças

viscerais entre eles. Trata-se da questão de conciliar a evidente

descontinuidade da matéria e a continuidade do espaço, ditada pela razão. Tal

questão nos servirá como “fio condutor” para uma discussão que não pretende

limitar-se às suas conseqüências mecânicas, mas sim evidenciar a relevância

dessas conseqüências para a estruturação de elementos importantes da

modernidade. Então, nesse projeto, pretendemos investigar de que modo o

ideal de a razão “formular juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo que se lhe

apresenta” leva à solução cartesiana da questão; e, por outro lado, em que

medida poderíamos considerar que a solução apresentada por Newton abala

essa pretensão de, através da razão, tudo explicar. Para tanto, dois textos

serão fundamentais: os Princípios da Filosofia de René Descartes e os

Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de Isaac Newton.

O tratamento dado por Descartes à questão pode ser exposto em três

premissas que servem de fundamento para a sua solução. Primeiramente,

devemos considerar que Descartes estabelece uma supremacia cognitiva do

pensamento sobre os sentidos: não é possível apreender a natureza das

coisas através dos sentidos. As percepções sensoriais fariam parte da relação

entre o espírito e o corpo a ele ligado. Por isso mesmo, por fazerem parte de

um composto de corpo e espírito, as percepções sensoriais não podem gerar

um conhecimento que dê conta da natureza das coisas, um conhecimento que

cabe, ipso facto, ao espírito como tal e somente a ele. Descartes estabelece

claramente essa supremacia do espírito sobre os sentidos no seguinte trecho

da Sexta Meditação:

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Descartes e Newton 235

“Mas essa natureza me ensina realmente a fugir das coisas que causam em mim osentimento da dor e a dirigir-me para aquelas que me transmitem algum sentimentode prazer; porém, não vejo que, além disso, ela me ensine que dessas diferentespercepções dos sentidos devêssemos concluir alguma coisa acerca das coisas queexistem fora de nós, sem que o espírito as tenha analisado cuidadosamente. Pois é,ao espírito, e não ao composto de espírito e corpo, que cabe conhecer a verdadedessas coisas”. (Descartes, 1973, 6ª metitação)

Fica evidente que aos sentidos cabe o conhecimento prático destinado à

conservação da vida, restando ao entendimento, e somente a ele, conhecer a

natureza das coisas. “Depois dessa reflexão facilmente abandonamos todos

os preconceitos fundados nos sentidos, e só nos serviremos do entendimento

para examinar a (...) natureza...” (Pr II 3).

Em segundo lugar, o pensamento apreende o espaço como um “corpo

contínuo” com extensão em comprimento, largura e altura, enquanto que os

sentidos percebem uma matéria descontínua. Neste ponto, põe-se,

propriamente, a questão de conciliar um espaço contínuo com a matéria

descontínua que ele contém. Mas, o que é isso que, na matéria, os sentidos

percebem? Ora, no que diz respeito às qualidades da matéria, não seriam a

dureza, o peso, a cor e outras tantas, qualidades apreendidas pelos sentidos?

Portanto, porque elas não são conhecidas pelo entendimento, nenhuma delas

– ou quaisquer outras qualidades às quais temos acesso através dos sentidos

– faz parte da natureza da matéria. “Sua natureza consiste apenas no fato de

ser uma substância que tem extensão” (Pr II 4). Isso significa que é possível

pensarmos um corpo desprovido de qualquer uma das demais qualidades, mas

nunca desprovido de extensão. Desse modo, a extensão é reconhecida como

atributo essencial da matéria, o que a torna essencialmente contínua. Por outro

lado, os sentidos a apreendem de maneira descontínua, ou seja, apreendem

aquelas qualidades não-essenciais.

Como terceiro ponto, destacamos que, segundo Descartes, ao

examinarmos a idéia que temos de corpo, consideramos que se trata de “uma

substância extensa em comprimento, largura e altura” (Pr II, 11), coincidindo,

então, com a idéia de espaço. Assim, é somente pelo pensamento que espaço

e corpo se diferem, pois a extensão, que constitui o corpo, do mesmo modo

constitui o espaço, ou seja, a natureza de ambos é a extensão. Fica, portanto,

Page 237: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Veronica Ferreira Bahr Calazans 236

estabelecida uma identidade entre a matéria e o espaço, visto que

compartilham a extensão, como atributo essencial.

Do que dissemos até agora, podemos concluir que, para Descartes, a

descontinuidade da matéria não faz parte da sua natureza, mas apenas da

percepção que temos da matéria, por intermédio dos sentidos.

Entretanto, de que modo essa matéria que é essencialmente contínua,

na medida em que compartilha com o espaço seu atributo essencial, pode

manifestar-se aos sentidos de maneira descontínua? Ou seja, o que permite

aos sentidos a apercepção daquelas qualidades não-essenciais da matéria?

Segundo Descartes, o movimento.

Da identificação entre espaço e matéria segue-se uma impossibilidade

de que um ocorra sem o outro. Então, se todo o espaço é matéria, não pode

haver nele aquilo que se chama de vazio. Consequentemente, o movimento

torna-se condição para a divisibilidade da matéria, na medida em que, para

dividir duas partes quaisquer, é necessário separá-las. Além disso, a matéria é

una; pois, ao se considerar qualquer porção de matéria – ou qualquer outro

possível mundo material – será necessário admitir que em sua essência ela é

puramente extensão, como tudo aquilo que é material, e por isso, porque toda

matéria compartilha da mesma essência, não seria possível conceber nenhuma

outra matéria. “Logo, só há uma matéria em todo o universo e só a

conhecemos porque é extensa” (Pr II 23). Se é assim, a matéria, por essência,

é contínua; entretanto, ela se manifesta indiscutivelmente de forma

descontínua; o que somente é possível através do movimento e da

divisibilidade: “todas as propriedades que nela (na matéria) apercebemos

distintamente apenas se referem ao fato de poder ser dividida e movimentada

segundo as suas partes e, por conseqüência, poder receber todas as afecções

resultantes do movimento dessas partes” (Pr II 23). Ou seja, o movimento – e

consequentemente a divisibilidade – é o mais direto responsável pela

diversidade de estados em que a matéria se encontra disposta, garantindo que

esses estados possam ser apreendidos separadamente.

Estrutura-se, então, um sistema composto de dois elementos, quais

sejam, a extensão e o movimento, que evidenciam-se como “princípios claros e

distintos”. A partir deles, e somente desses dois, deve-se poder explicar todos

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Descartes e Newton 237

os fenômenos do mundo físico. Porém, se é o movimento que permite a

descontinuidade, mas ela não faz parte da natureza da matéria; cabe-nos

perguntar se o estatuto do movimento, nesse sistema, não se reduziria ao de

mera aparência. Se assim não for, o que nos impede de considerar a

descontinuidade, garantida por ele, tão essencial quanto a própria extensão?

Além disso, a solução proposta por Descartes, para essa questão de

conciliar espaço contínuo e matéria descontínua, produz uma outra dificuldade,

no que se refere à definição de movimento que se segue dessa solução.

Tocamos, aqui em um dos pontos vitais da crítica que Newton dirige ao sistema

mundi cartesiano. Descartes define o movimento como “a translação de uma

parte da matéria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe são

imediatamente contíguos” (Pr II 25). Newton expõe diversas conseqüências do

ensinamento de Descartes no que concerne à essa definição. Entretanto,

apresentaremos apenas duas, visto que cada uma delas, por si só, evidencia o

absurdo de tal ensinamento. E, justamente essas conseqüências, segundo

Newton, “evidenciam ao máximo o absurdo da posição de Descartes”, que nos

“leva a concluir que um corpo em movimento não tem nenhuma velocidade

determinada (primeira conseqüência) e nenhuma linha definida (segunda)”

(Newton, 1979:216). O que se segue daí é ainda mais grave, por abalar

diretamente as duas primeiras leis cartesianas do movimento: “não se pode

afirmar que a velocidade de um corpo que se move sem resistência seja

uniforme, nem se pode dizer que é reta a linha na qual se efetua o seu

movimento” (idem). Isto posto, a questão que se impõe é a de saber em que se

sustentam essas afirmações de Newton.

Primeiramente, é preciso considerar a noção cartesiana de lugar. Este, é

determinado pela posição da vizinhança contígua ao corpo que se está

considerando. Nesse caso, como é possível determinar o ponto de partida do

movimento desse corpo? Newton responde: é simplesmente impossível. Ao

iniciar-se o movimento, aquela vizinhança que circundava o corpo,

anteriormente, é desfeita. E, mesmo que se pretenda determinar o lugar de

início do movimento a partir de corpos distantes (seguindo a concepção

vulgar), o problema se mantém; já que, no sistema cartesiano, pode-se dizer de

todos os corpos que, mesmo que não estejam verdadeiramente em movimento,

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Veronica Ferreira Bahr Calazans 238

participam do movimento de outros corpos. Então, pode-se dizer que o lugar

existe apenas enquanto os corpos mantêm as mesmas posições. Pois bem, em

se tratando do movimento de um corpo, assim que ele deixa o seu lugar de

origem, esse lugar deixa de existir, e portanto, não pode mais ser determinado.

Disso decorre que não é possível determinar o espaço percorrido por um

corpo, visto que não se consegue encontrar seu ponto de origem. Ou seja, não

há como saber qual o comprimento, qual a distância percorrida. Vale notar que

a velocidade de um corpo é obtida pela distância percorrida em um certo

intervalo de tempo. Por isso mesmo – porque a velocidade depende da

distância percorrida – , Newton conclui que “o movimento cartesiano não é

movimento, pois não tem velocidade” (Newton, 1979: 217).

Pelas mesmas razões, assim como não se pode determinar o lugar do

movimento, também não se pode encontrar seus pontos intermediários. Assim,

tendo em vista as duas primeiras leis do movimento, ambas estão

comprometidas. A primeira, porque não se pode afirmar que a velocidade de

um corpo, que se move sem resistência, é uniforme; uma vez que, como já

vimos, o corpo nem mesmo tem velocidade. A segunda, pela impossibilidade

de se obter a localização dos pontos intermediários do movimento, o que

evidentemente impediria a qualquer um de afirmar que um corpo se desloca

em linha reta.

Escolhemos estas duas conseqüências porque elas evidenciam um

problema que, segundo Newton, é crucial para provar o absurdo do sistema

cartesiano: a definição de lugar. Até agora está provado que essa definição de

lugar tem como produto uma concepção de movimento que gera, por sua vez,

conseqüências absurdas. Entretanto, esta definição está firmada em certas

bases que, por isso, serão o alvo da crítica, daqui em diante. Isso fica claro ao

levar-se em conta que o problema da definição de lugar é que ela se estrutura

a partir de corpos que, de um modo ou de outro, estão constantemente em

movimento. É preciso que se encontre algo destituído de movimento a que se

possa referir a definição de lugar e, assim, possibilite uma coerente atribuição

de movimento aos corpos. Dito isto, qual seria o melhor candidato para assumir

essa condição? O espaço, a extensão por si mesma, diria Newton. E, para

Page 240: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Descartes e Newton 239

tanto, seria imprescindível distinguir o espaço, destituído de movimento, dos

corpos, como coisas móveis.

Distinguindo espaço e matéria, Newton começa a estruturar um sistema

mundi diferente do cartesiano, concebido como composto de três elementos: a

matéria, descontínua e móvel; o espaço, contínuo e imóvel; e o movimento.

Esse sistema, então, vê-se obrigado a reconhecer uma matéria descontínua,

não apenas na aparência, e distinta do espaço contínuo. Tal distinção introduz

o vazio como condição para que o movimento newtoniano escape às criticas

dirigidas a Descartes. Contudo, a introdução do vazio conduz a uma outra

dificuldade: impõe-se a necessidade de estabelecer um elemento capaz de

conferir a esse sistema uma unidade física e intelectual, visto que, com o vazio,

ele não pode mais contar com aquela pressão que todo corpo exercia sobre o

outro, no sistema cartesiano, por contato. Poderíamos reformular essa questão

nos seguintes termos: o que impede que essa matéria, que se movimenta

livremente no vazio, torne-se um aglomerado sem ordem, caótico, de partículas

de matéria isoladas? Trata-se, aqui, de perguntar pelo elemento que confere a

ordem ao sistema, ou seja, que faz dele propriamente um sistema.

A resposta oferecida por Newton não oferece menos dificuldades que a

própria questão. Segundo ele, todas as partículas de matéria estão unidas por

uma lei matemática: a lei da atração. Assim, cada uma delas se relaciona com

todas as demais, “desempenhando seu papel” no sistema. Portanto, a atração

é estabelecida como esse elemento que confere unidade ao sistema,

contrastando e unindo, ao mesmo tempo, a continuidade do espaço e a

descontinuidade da matéria. Porém, são inúmeras as dificuldades implicadas

nessa concepção, primeiramente em virtude de que ela supõe uma ação à

distância, não menos problemática que a própria existência do vazio.

Então, por um lado, a atração permite que todos os movimentos do

universo possam ser explicados pelas mesmas leis, matematicamente

estruturadas. Isso nos permitiria afirmar que, em certo sentido, Newton cumpre

aquele ideal de um modelo sistemático do mundo físico, em que todos os

fenômenos podem ser reduzidos a elementos quantitativos comuns e

explicados matematicamente. Entretanto, esse elemento que confere unidade

ao sistema não é, ele mesmo, explicado pelo pensamento em uma cadeia de

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Veronica Ferreira Bahr Calazans 240

razões, conforme as pretensões cartesianas. Isso é evidenciado ao máximo

pela consagrada frase Hipoteses non fingo, em que, tratando do problema de

estabelecer uma causa para a lei da atração gravitacional, Newton afirma que

qualquer que fosse a causa para as propriedades da atração, ela deveria ser

tratada como hipótese, assim como tudo aquilo que não pode ser deduzido dos

fenômenos. Por isso, a própria investigação da causa da atração não teria

lugar na filosofia experimental: “Nessa filosofia, as proposições particulares são

inferidas dos fenômenos e, posteriormente, generalizadas por indução”

(Newton, 1999: 155).

Com esse breve desenvolvimento da questão de conciliar a matéria

descontínua e o espaço contínuo que a contém, pretendemos ter apontado

para a relevância de tal questão no que se refere a um importante elemento da

modernidade: o ideal de um modelo sistemático que explique,

matematicamente, todos os fenômenos.

O tratamento dado por Descartes à questão está perfeitamente em

acordo com sua pretensão de reduzir os fenômenos naturais a princípios

implicados na natureza matemática da matéria (extensão e movimento). Desse

modo, embora houvesse uma metafísica da natureza conferindo

sustentabilidade metodológica a esse sistema, suas conseqüências mecânicas

apresentaram dificuldades insuperáveis.

Através da crítica, ao empenhar-se em evidenciar essas dificuldades,

Newton estabelece um sistema que, finalmente, é capaz de explicar, pelo

mesmo conjunto de leis matemáticas, todo o universo; mas que, por outro lado,

não dispõe de uma metafísica da natureza capaz de conferir inteligibilidade ao

elemento que estabelece a unidade do próprio sistema: a atração.

Tendo em vista este percurso, o sistema mundi evidencia um critério

radicalmente distinto, daquele oferecido por Descartes, para a filosofia natural.

Ao considerar a afirmação de que : “Nessa filosofia (filosofia experimental), as

proposições particulares são inferidas dos fenômenos e, posteriormente,

generalizadas por indução”, poderíamos dizer que ela aponta para uma

dissociação metodológica entre a ciência e a metafísica ? Caberá, assim, a um

desenvolvimento posterior, a tarefa de investigar até que ponto o tratamento

dado por Newton, à questão aqui tratada, compromete o ideal cartesiano de um

Page 242: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Descartes e Newton 241

critério, para as ciências, sustentado sobre as bases de uma metafísica da

natureza.

Bibliografia:

COHEN, I. B. & WESTFALL, R. S.(2002) NEWTON: Textos, Antecedentese Comentários. [Trad. Vera Ribeiro]. Rio de Janeiro: Contraponto

DESCARTES, René Princípios da Filosofia [Trad. João Gama] Lisboa:Edições 70.

DESCARTES, R. (1973) Meditações [Trad., J. Guinsburg e B. P. Junior]São Paulo: Abril (Col. Os Pensadores).

DESCARTES, R. (1999[1628]) Regra para a Orientação do Espírito [Trad.Maria E. Galvão] São Paulo: Martins Fontes.

KOYRÉ, A. (2001) Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. [Trad. D. M.Garschagen] Rio de Janeiro: Forense Universitária.

NEWTON, I. (1999 [1687]) The Principia: Mathematical Principles ofNatural Philosophy [Trad. I. B. Cohen and A. Whitman; white a guideby I. B. Cohen] Berkeley: University. of Califonia Press.

NEWTON, I. (1979) Princípios Matemáticos; Óptica; O peso e os equilíbriodos fluidos. [Trad. C. L. de Matos, P. R. Mariconda e L. J. Baraúna)São Paulo: Abril Cultura (Col. Os Pensadores)

WHITESIDE, D. T. (1964) (ed.) The Mathematical Works of Isaac Newton.2 vols. New York/London: Johnson Reprint Corporation.

WHITESIDE, D. T. (1960) “Patterns of Mathematical Thought in LaterSeventeenth Century” Arc. Hist. Exact. Sci. 1: 179-388.

Page 243: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As manchas solares de Galileu Galilei

Felipe RibasGraduando em Filosofia/UNICENTRO

Resumo: A referida comunicação analisa o papel das manchas solares nahistória da filosofia natural, sua função empírica na comprovação dacorrupção do universo torna-se uma prova irrefutável do pensamentogalileano que direcionava-se estritamente contrário à cosmologiaaristotélica. Assim sendo, serão apresentados os esforços de Galileu emcomprovar as suas idéias acerca das manchas solares tentando refutar,simultâneamente, o pensamento aristotélico representado pela figura dopadre Scheiner.

Palavras-chave: manchas solares; cosmologia; Galileu

As manchas solares poderiam representar, na história da filosofia

natural, um fato interessante para aqueles que acreditavam que poderia haver

corrupções no céu ao contrário do que pregava a ciência tradicional que

baseava suas teorias no modelo cosmológico aristotélico. Galileu (1564-1642)

concebia o universo uma maneira muito mais quantitativa, ou seja, de uma

forma mais matemática onde o cosmo era organizado racionalmente, através

da geometria. Desse modo, os representantes do aristotelismo não poderia

conceber e explicar de uma maneira mais completa os fenômenos que

passaram a ser observados por Galileu quando este apontou seu telescópio

para o céu.

O telescópio de Galileu passou a funcionar como um sentido mais

apurado da visão humana, uma maneira de poder perscrutar o céu e

desvendar seus mistérios. A aparição das manchas solares acabaria

acarretando uma grande discussão acerca do modelo cosmológico em vigor,

afinal, sua presença muito além do mundo supra-lunar provaria que as idéias

tradicionalistas poderiam estar erradas e que o heliocentrismo de Copérnico

poderia ser, ao menos, cotado como possível. Esta idéia revolucionária acabou

transformando a questão do aparecimento das manchas numa discussão

acalorada entre Galileu e um padre da Companhia de Jesus chamado Cristoph

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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As manchas solares de Galileu Galilei 243

Scheiner (1577-1615) que encarnava a figura do tradicionalismo.

Apesar de Galileu ter registrado de uma maneira mais completa e

detalhada o fenômeno das manchas solares no conjunto de suas três cartas

enviadas a Welser em 1612 sob o título de Istoria e Dimostrazioni Intorno alle

Macchie Solari, Kepler, um ano antes, já havia realizado estudos sobre as

manchas. Entretanto, sua teoria pregava que as manchas aparentes do sol

nada mais eram do que a passagem de um dos planetas até aquela época

conhecidos, no caso Mercúrio, “acima” do disco solar. Algum tempo depois, já

no ano de 1610, Galileu também veio a realizar as observações das manchas,

entretanto seus registros deixam claro que elas não eram formas permanentes

cujo movimento mostrava-se sempre uniforme e contínuo sem alterações em

sua figura, afinal, se as manchas fossem realmente planetas sua disposição

não seria esta, ou seja, as manchas do sol não obedeciam a um padrão que

confirmasse sua origem como sendo o de planetas transitando sobre o disco

solar.

As manchas solares não apresentam um movimento sistêmico e

ordenado, ou seja, elas agregam-se e se desagregam sem seguir um

movimento uniforme e não obedecem a um padrão constante e perene,

mostrando-se algumas vezes dispersas e em outros casos agrupadas,

rumando em intervalos regulares de forma cíclica ou em ligeiras aparições

visíveis no corpo solar. Assim sendo Galileu afirma que:

“... figuras vão mudando continuamente, algumas com rápida e diferentíssimamutação, outras com breve e menor variação (...) outra a desordenar-se nummovimento particular, de agregar-se e desagregar-se, condensar-se e rarefazer-se...”(Ed. Naz., Vol. V:1968)

O telescópio de Galileu permitiu que fossem observadas de uma

maneira mais completa as manchas do sol. Contrariando a idéia do transito de

planetas, Galileu, em seus gráficos, pôde demonstrar que as manchas podiam

ser observadas em hemisférios e ângulos diferentes na superfície solar, ou

seja, elas não surgiam apenas num único plano dentro do círculo do astro,

mas sim, agrupadas e separadas em diferentes localizações dentro dos seus

hemisférios. Caso as teorias de planetas em interposição com o sol fossem

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Felipe Ribas 244

reais, elas pareceriam manchas únicas, num ciclo transitório retilíneo através

do sol (ou em torno dele) e não agrupadas em corpos separados.

A discussão entre Galileu e Scheiner é o início das discussões referente

à aparição das manchas no sol. É exatamente nesta discussão que a tradição

aristotélica de incorruptibilidade do céu poderá encontrar seu fim, as manchas

acabam evidenciando alterações numa regiao celeste nobre, ou seja, na região

lussidíssima e purrísima do sol. Como afirmado anteriormente, a principal

divergência era a respeito da inalterabilidade celeste. As observações de

Galileu não produziram qualquer efeito sobre Scheiner que, confiante na

ciência tradicional, acreditava serem as manchas uma agregação de planetas e

não mudanças geradas no disco solar, apesar de que o padre concordava com

Galileu quanto ao fato de que as manchas não estavam localizadas abaixo da

esfera lunar.

Nas primeiras páginas da segunda carta sobre as manchas solares,

Galileu, através de suas observações e ilustrações geométricas, praticamente

comprova a impossibilidade de as macchie oscure do disco solar serem apenas

a sombra gerada pela transição de planetas. Galileu afirma que as manchas

não estão tão distantes do sol e que elas encontram-se separadas dele por um

intervalo não tão grande, com isso ele atesta que devido a distância entre a

Terra e o Sol este intervalo é imperceptível. Assim sendo: “... não estão

altamente distantes da superfície dele (Sol), entretanto lhes são contíguas;

separadas, assim, por pouco intervalo que é, em suma, imperceptível...”

(Saragat, 1968, p. 117).

Todavia, tal observação já poderia proporcionar a idéia de que as

manchas observadas eram oriundas do próprio corpo solar e estavam

contiguas a ele graças a curta distância em que se encontravam ou, que

poderiam ser fenômenos que se originavam mais próximos do sol. Mas uma

coisa é certa, as manchas já não poderiam incorporar a idéia de uma

agregação de planetas como afirmou Scheiner, afinal, os planetas pertenciam a

uma ordem elíptica que transitava em uma órbita muito mais afastada do Sol

do que as observações de Galileu demonstravam a respeito da proximidade

das manchas com o corpo solar. Tal proximidade anulava também a idéia de

que as manchas se encontravam abaixo da esfera lunar, causando assim o

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As manchas solares de Galileu Galilei 245

efeito da paralaxe. A afirmação de Galileu a respeito da grande proximidade

das manchas no disco solar elevava a hipótese de perturbações e fenômenos

que geravam a alteração e a corrupção do cosmo numa região muito superior à

esfera lunar, contrariando visivelmente a doutrina aristotélica da inalterabilidade

do céu.

Ainda na 2ª Carta sobre as manchas solares destinadas a Marco

Welser, Galileu praticamente liquida a possibilidade de que tais manchas

sejam, na realidade, um ajuntamento de planetas em trânsito pela região solar,

como insistia em afirmar o Padre Scheiner. Na referida carta, Galileu expõe o

fenômeno como sendo corpos que alternam suas durações num movimento

que pode variar em velocidade e em grau de aparição e de posicionamento.

Galileu descreve os aparecimentos das manchas em intervalos diferentes,

desse modo as manchas podem surgir num espaço de “... breve duração,

como de um dois ou três dias, ou de outra (duração) mais longa, como de 10,

15 e, creio eu, agora de 30 e 40 (dias) e mais...”(Saragat, 1968, p. 117).

Esta irregularidade do pensamento do jesuíta impossibilita o mero

trânsito de planetas, já que esta situação, devido à ordem de movimento das

esferas das estrelas fixas, definiria o aparecimento das manchas solares como

um movimento regular graças a evolução dos planetas, há ainda a descrição

da irregularidade das formas físicas no aparecimento das manchas. Galileu

observa uma mutação constante nas projeções das manchas, algumas

sofrendo uma mutação acelerada e diferenciada e outras obedecendo a um

padrão mais tardio e de menor variação em sua constituição física; mesmo o

seu movimento aleatório apresenta um padrão de agregação e desagregação

das manchas. E em outro aspecto apresenta um padrão ordenado e uniforme

numa linha paralela ao corpo solar. Todavia, nesse modo ordenado de

apresentação das manchas não se pode afirmar que, neste caso específico, se

trate da transição de planetas, afinal, como dito anteriormente, as manchas não

obedecem à um padrão retilíneo e uniforme constante.

Galileu contraria a idéia de que as manchas no sol poderiam ser da

mesma natureza daquelas que forma observadas na lua e que ele próprio

relatou no seu Sidereus Nuncios, afinal, as manchas escuras que surgiram na

superfície lunar não eram formadas por qualquer presença de um corpo alheio

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Felipe Ribas 246

à própria Lua, pairando sobre sua superfície, mas sim pela iluminação da sua

superfície repleta de irregularidades. Apesar de Galileu descartar a

possibilidade de uma semelhança entre as manchas solares com as manchas

apresentadas na lua, ele não acreditava que as manchas fossem mais escuras,

afinal, a luz do sol impede a observação da lua, bem como a observação das

estrelas fixas e também dos planetas, entretanto sua luz não impede a

observação das manchas. Este fato levou Galileu a crer que as manchas

solares apresentavam-se de uma forma mais clara, elas só pareciam mais

escuras devido a forte luminosidade emanada pelo sol. Assim sendo, Galileu

passou a crer que as manchas solares não tinham, necessariamente, que

obedecer ao mesmo padrão de matéria que os planetas, ou seja, de uma

matéria com maior grau de densidade ou mais opaca. A comparação das

manchas às nuvens afirma também o principio pelo qual os corpos mais

escuros são vistos com mais dificuldade do que corpos mais claros quando

apresentados sob uma luminosidade mais intensa. Desse modo Galileu atribui

a obscuridade das manchas ao contraste do brilho intenso do sol.

A teoria galileana de que as manchas são mais semelhantes a nuvens

pode ser confirmada ainda na 1a carta, segundo Galileu:

“... não é necessário que a matéria dessa mancha seja muito opaca e densa, a qualse deva razoavelmente estimar que seja (a mesma) da Lua ou de outro planeta; masuma densidade opaca similar aquela de uma nuvem já é suficiente, numainterposição entre o Sol e nós, para (parecer) escura e ngra.” (Ed. Naz., Vol. V,1968)

Com isso, é possível concluir que a aparição das manchas e suas

observações por parte de Galileu, levataram novas conceções contra a

doutrina aristotélica, afinal, as manchas solares acabaram trazendo algumas

dúvidas quanto à inalterabilidade do céu. Todo o cuidado que Galileu teve em

observar as manchas nos mesmos horários e seus gráficos desenhados com

extrema cautela levantam outras questões; se ele se valeu de um método

experimental de interrogar a natureza ou se a discussão sobre as manchas foi

conduzido através de um sistema observacional, todavia, estas questões não

serão discutidas nesta comunicação. O que de fato busca-se salientar aqui, é a

importãncia das manchas solares dentro das revolução científica dos séculos

Page 248: Anaiais Encontro Filosofia Parana

As manchas solares de Galileu Galilei 247

XVI e XVII, afinal, a discussão acerca de sua existência acabou possibilitando

novos caminhos sobre a visão natural do mundo.

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Page 249: Anaiais Encontro Filosofia Parana

EIXO TEMÁTICO 2:TELEOLOGIA NA BIOLOGIA

Page 250: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza eorigem da vida

João Carlos M. MagalhãesDepartamento de Genética, SCB/UFPR

Resumo: A noção de “vida” não tem uma definição clara em biologia. Nãohá concordância sobre quais são características mínimas que um objetodeve ter para ser considerado vivo, nem se é possível definir vida destamaneira. As teorias sobre a origem da vida refletem as concepções de seusautores sobre a natureza da vida. Alguns dos principais problemas dafilosofia da biologia estão implicados nesta discussão. Na concepçãopredominante atualmente, a vida teria se desenvolvido a partir de algum tipode molécula capaz de se reproduzir e posteriormente teria surgido a célulaprimitiva. A seleção natural, juntamente com as leis da física e da química,seria suficiente para explicar a origem da organização biológica. Teoriasalternativas propõem a precedência de agregados de moléculasorganizadas em redes autocatalíticas. S. Kauffman preconiza a necessidadede novos princípios biológicos, referentes à complexidade e auto-organização. Nesta comunicação discute-se alguns aspectos de duasdiferentes concepções sobre o que é vida e como se deu sua origem, com ofim de relaciona-las às questões da teleologia e do reducionismo na biologiacontemporânea.

Palavras-chave: filosofia da biologia; teleologia; reducionismo; definição devida.

“[...] a metafísica é fundamental emtodo ramo da ciência. A metafísica nãoé um campo de estudos bem definido,um fundamento básico e único emcima do qual erigimos uma estruturaescalonada para a física, química,biologia, psicologia, sociologia, etc.,senão, melhor dizendo, algo queparticipa de cada campo, quecondiciona o pensamento de cada umde nós de forma sutil e diversa, e doqual nem sempre somosconscientes”.D. Bohm, 1968

Introdução

Embora intuitivamente todos saibam identificar os seres vivos, as noções

de “vida” e “organismo” são extremamente vagas em biologia. Não há acordo

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 251: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 250

sobre o significado preciso destes conceitos. A concepção adotada influi na

abordagem de problemas científicos relevantes acerca da origem da vida,

distinção entre o animado e o inanimado, busca de vida em outros planetas,

possibilidade de criação de vida artificial, etc. Esta discussão remete a alguns

dos principais problemas da filosofia da biologia: o significado de conceitos

como indivíduo e organização, a natureza das relações entre o todo e as

partes, a possibilidade de redução das teorias biológicas à física e à química e

também à questão da teleologia.

Conceito biológico de vida

Existe uma vasta literatura sobre a natureza e origem da vida, tanto

trabalhos científicos propriamente ditos, como discussões de caráter histórico e

filosófico acerca do assunto.1 De um modo geral, pode-se dizer que alguns

pressupostos parecem estar implícitos na concepção biológica de vida, tal

como se pode depreender dos textos correntes:

1. Os fenômenos vitais podem ser explicados em termos científicos.

Segundo Oparin (1948), pioneiro das teorias modernas sobre a origem

da vida, “vida é uma forma superior de organização da matéria”. De acordo

com a postura fisicalista contemporânea, os seres vivos pertencem ao mundo

da natureza e todos os fenômenos relativos a eles podem ser explicados

cientificamente, ao menos em princípio. Não se recorre a concepções místicas

ou vitalistas.

2. Embora obedecendo às leis da física e da química, a vida só pode ser

explicada por intermédio de leis próprias da biologia.

A tendência atual parece ser a de negar a possibilidade de redução da

biologia a ciências mais básicas. Na prática, a pesquisa biológica em

bioquímica, genética e biologia molecular, entre outras áreas, emprega

largamente métodos emprestados da física e da química para investigar

aspectos particulares dos fenômenos relativos aos seres vivos, não

distinguindo as explicações propriamente biológicas das demais.

Conscientemente ou não, isto é estendido à concepção sobre a natureza da

Page 252: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 251

vida. Defende-se a autonomia da biologia, mas assume-se na prática uma

posição “reducionista”. Para entender esta aparente contradição é preciso

recordar algumas noções elementares da biologia, o que será feito mais

adiante.

3. A vida é uma propriedade global de certos sistemas físicos complexos

(organismos) os quais apresentam uma coleção de propriedades que os

caracterizam como vivos. Utilizando este conjunto de propriedades como

critério é possível distinguir os objetos “animados” (vivos) dos “inanimados”

(não vivos).

Apresentar um conjunto de propriedades que caracterize os seres vivos

seria dar uma definição nominal de vida, o que pode não ser suficiente, porém,

se for compatível com os diversos ramos da biologia contemporânea,

equivaleria a delimitar o objeto mais fundamental desta área de conhecimento.

Não há, entretanto, concordância sobre quais seriam estas propriedades (cf.

Rizzotti, 1996). Qualquer lista de propriedades reflete concepções subjetivas

sobre a natureza da vida e também sobre o caráter da biologia como ramo

particular da ciência. Na verdade, não há sequer clareza quanto à atribuição do

status de “ser vivo” a certas entidades, como é o caso dos vírus, do próprio

planeta Terra, ou sua biosfera, (a hipótese de “Gaia” é vista por muitos como

mais do que mera analogia) ou ainda de “criaturas virtuais” em computadores,

por exemplo.

A seguir veremos algumas daquelas propriedades, sem pretensão de

esgotar o assunto, mas apenas para situar a discussão.

1. Individualidade

Não são os materiais que constituem um organismo em um dado

momento que o caracterizam e o distinguem do meio, mas a sua organização.

O ser vivo é um conjunto complexo de partes e relações. Mesmo no organismo

mais elementar, a célula ou molécula primordial, a organização já estaria

presente. Encontramos assim outra propriedade relacionada à primeira:

2. organização.

1 Estes e outros assuntos relacionados são tratados em uma coletânea publicada recentemente(El-Hani e Videira, 2000).

Page 253: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 252

Obviamente, trata-se de um tipo particular de organização. A vida pode

ser vista como uma propriedade emergente, ou coletiva, do conjunto das partes

do organismo e de relações dinâmicas entre elas. Cada ser vivo existe durante

certo tempo e em um meio do qual não pode ser isolado e permanecer vivo.

Para isto utiliza matéria e energia do meio nos processos inerentes à sua

existência. Devemos considerar, portanto, outra propriedade:

3. metabolismo,

isto é, o conjunto de reações químicas implicadas nas transformações

de matéria e energia necessárias à manutenção da organização dinâmica,

característica dos seres vivos. Estes seres são sistemas termodinamicamente

abertos que mantém sua ordem interna dissipando energia livre do meio (cf.

Prigogine e Stengers, 1997).

Estas propriedades (1-3) ainda não bastam. Para entendermos o que é

vida somos forçados a recorrer à noção de adaptação, no sentido filogenético

do termo, isto é, o ajuste das características dos indivíduos, das populações e

das espécies ao ambiente onde vivem. Esta idéia, que fundamenta boa parte

da biologia, é provavelmente o principal traço distintivo desta ciência em

relação à física e à química.

A adaptação parece implicar em finalidade na natureza, p. ex. a

embriogênese de um órgão que só funcionará em uma etapa posterior do

desenvolvimento do organismo ou a evolução filogenética, que em muitos

casos parece tender para um certo fim. Aceitando-se que conceitos como

adaptação e função biológica não são apenas metáforas, como explica-los sem

cair em uma concepção teológica (em que tudo foi previamente projetado por

um deus), ou em uma concepção teleológica em que causas finais (de

qualquer natureza) determinariam eventos anteriores?

É preciso, pois, considerar como surge a adaptação, tanto no nível

individual como em relação ao conjunto das formas vivas. Para isto é

necessário considerar outros processos, também relacionados entre si:

4. Reprodução.

Com exceção de algum organismo primordial, todos os demais surgem a

partir de outros seres vivos; isto implica em herdar a informação necessária

Page 254: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 253

para gerar a organização característica da espécie, mas este processo não é

exato.

5. Variação.

A reprodução dos ácidos nucléicos é sujeita à “erros de cópia”

(mutações) que, embora causem desorganização ou perda de informação

(entropia), podem gerar variações transmissíveis. Além da mutação aleatória,

outros processos associados à reprodução, como a recombinação gênica,

podem gerar variação hereditária. Importa ressaltar que podemos distinguir

dois tipos de entidades associadas: o interactor (p. ex. uma bactéria) e o

replicator (p. ex. o seu genoma). Nada impede que em alguma situação

particular um interactor e um replicator sejam a mesma entidade.

6. Evolução.

Na ausência de restrições externas, a reprodução tende a aumentar

exponencialmente o número de organismos e isto implica em uso crescente de

recursos do ambiente. Caso alguma variação hereditária aumente a chance de

sobrevivência ou a eficiência reprodutiva da entidade que a contém, tenderá a

se apresentar em maior freqüência nas gerações posteriores. Este seria, em

resumo, o mecanismo da seleção natural. O processo garante a existência de

um fluxo de “informação” do meio para o organismo, ou melhor, para seu

replicator, um processo histórico no qual as espécies “aprendem” a lidar com o

meio, ou seja, adaptam-se.

Assim temos fenômenos relativos a organismos individuais (organização

e metabolismo) e processos relativos a grupos de organismos (reprodução,

variação e evolução no sentido adaptativo).

Uma crítica recorrente à teoria da evolução é que a seleção natural pode

mudar uma estrutura orgânica pré-existente, mas não poderia criar adaptações

inteiramente novas ou órgãos complexos. Tomando o exemplo do olho, sua

função só seria possível com o órgão completo, isto seria tomado como

evidência de design. Evidências filogenéticas, modelos teóricos e simulações

tem demonstrado que este argumento não tem procedência. É preciso

destacar que algumas mutações aumentam a quantidade de DNA, permitindo o

surgimento de novas características e eventualmente gerar estruturas

orgânicas complexas com funções inteiramente novas.

Page 255: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 254

7. Composição.

Um último critério em nossa lista é a composição material. Para muitos a

vida é necessariamente baseada no carbono e só é possível porque este

elemento forma moléculas complexas e combina-se com outros elementos,

como nitrogênio, hidrogênio e oxigênio. A composição química é um critério

importante, entre outras coisas, para a busca de vida em outros planetas.

Talvez seja possível a existência de vida baseada em outros materiais, como

silício, que também pode formar polímeros. Pode-se pensar em uma

concepção mais abstrata de vida, que privilegie a organização

independentemente de uma base material específica. Esta poderia incluir, por

exemplo, os programas de simulação em computadores conhecidos como “vida

artificial”. A questão é saber se entidades deste tipo seriam vivas (em algum

sentido aceitável) ou apenas modelos analógicos de fenômenos referentes aos

seres vivos que são o objeto tradicional da biologia.

Com isto terminamos nossa lista. Diferentes autores selecionam,

classificam e apresentam as propriedades dos seres vivos de modo diverso,

mas o que foi apresentado acima toma por base noções bem estabelecidas

que podem ser encontradas em qualquer manual introdutório à biologia e isto

resume a questão para o que segue.

Na verdade, qualquer definição de “vida” baseada nas características

dos “seres vivos” nos coloca na mesma situação de quem pretenda definir algo

como, por exemplo “mesa” a partir de uma conjunção de propriedades

partilhadas por todas as mesas. Provavelmente não encontraremos uma lista

de propriedades necessárias e suficientes para isto. Podem existir mesas que

não possuem todas as propriedades listadas, ou objetos que são mesas, mas

que não são identificados a partir da lista. Pode-se, entretanto, pensar definir

“mesa” a partir de suas funções, mas isto teria suas próprias dificuldades. A

seleção de propriedades dos seres vivos acima indica o conjunto de objetos

que estamos tratando, embora de forma um tanto vaga. Como qualquer outra

lista de propriedades, não fornece critério consensual e adequado para definir o

que é um ser vivo.

Maturana e Varela propuseram uma outra abordagem para a definição

de vida, introduzindo a noção de organização autopoiética (cf. Maturana e

Page 256: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 255

Varela, 2001). Uma organização deste tipo caracteriza-se por: ser um sistema

autônomo; seus componentes são relacionados por uma rede contínua de

interações; os componentes são produzidos pela própria rede; o sistema é e

separado do meio por alguns de seus componentes (como a membrana

celular). A autopoiese forneceria uma definição de vida: os seres vivos são

sistemas que produzem continuamente a si próprios (confere também

Emmeche e El-Hani, 2000).2 A alegação de que esta concepção supera de

plenamente a confusão de critérios não parece procedente. Apenas prioriza

alguns critérios (autonomia, organização em rede, metabolismo) em detrimento

de outros.

Teorias sobre a origem da vida

O problema da distinção entre o vivo e o não vivo está intimamente

ligado ao problema da origem da vida. Em algum momento da história evolutiva

algum sistema físico passou a apresentar as características mínimas dos seres

vivos, sejam lá quais forem estas características. Vamos considerar

brevemente esta questão.

Pode-se distinguir dois grupos de teorias sobre a natureza e origem da

vida:

(i) as que enfatizam os processos elementares referentes às moléculas

orgânicas.

(ii) as que enfatizam a organização e o funcionamento do ser vivo como

sistema complexo.

A corrente contemporânea predominante (ver p. ex. Orgel, 1985)

defende a hipótese que primeiro ente biológico seria uma molécula auto-

reprodutora, o replicon primitivo. Esta visão tornou-se quase hegemônica nas

últimas décadas e inspirou muita pesquisa teórica e experimental, com

resultados importantes.

2 Segundo Kauffman, concepções semelhantes e mais antigas podem ser encontradas emdiversos autores, incluindo Kant (cf. Kauffman, 1995, p. 274).

Page 257: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 256

É importante ressaltar que o replicon seria um polímero orgânico (não

importa discutir aqui a natureza química desta molécula) que, embora não

tendo um metabolismo autônomo, apresentaria uma estrutura (seqüência de

subunidades) e variação. Esta variação influiria em sua capacidade de

“sobrevivência” e de reprodução. Apresentaria, portanto, um valor adaptativo

(fitness), sendo sujeita à seleção natural.

As propriedades que versam sobre a reprodução, origem e transmissão

da informação (variação e suas leis) podem ocorrer na própria molécula, a qual

em interação com o meio e com outras moléculas semelhantes, teria dado

origem ao processo evolutivo. A célula, isto é organismo delimitado e

estruturado de modo a manter seu metabolismo autonomamente, teria surgido

em um estágio posterior. Esta vertente está bastante avançada existindo,

inclusive, teorias quantitativas que visam explicar como a molécula auto-

reprodutora permitiu gerar maiores níveis de organização, como a teoria dos

hiperciclos de Eigen (cf. Michod,1999).

De qualquer modo, nesta visão as leis fundamentais já estariam dadas.

Restaria esclarecer detalhes sobre a composição e história geológica da Terra

primitiva, e proceder a modelagem dos processos que possivelmente

ocorreram. A teoria da seleção natural, acrescida da química dos compostos

orgânicos, forneceria base suficiente para esta modelagem. Note-se que a

ênfase é posta na competição entre entidades biológicas elementares que,

num primeiro momento seriam moléculas e só mais tarde agregados de

moléculas e células individualizadas.

Existem teorias alternativas para a origem da vida que defendem a

primazia da organização e metabolismo, isto é, do todo, vertente similar à de

Oparin (1956). Entre os autores atuais que partilham esta visão destacam-se

Margulis (cf. Margulis e Sagan, 2002), Maturana e Varela (2001), Kauffman

(1997, 1995) e de Dyson (1999). De acordo com Kauffman, por exemplo,

conjuntos de moléculas originadas aleatoriamente no oceano primitivo surgiram

espontaneamente, separados do meio externo por uma membrana. Esta

primeira célula incluiria redes de processos fisiológicos, reações bioquímicas

em que todas as moléculas seriam formadas, uma reação sendo catalisada

pelo produto de alguma outra. A vida, o funcionamento desta rede metabólica

Page 258: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 257

autocatalítica, seria uma propriedade emergente do sistema. O proto-

organismo sofreria um tipo primitivo de reprodução por divisão aleatória, sem

necessidade de alguma molécula portadora da memória biológica. Tal molécula

teria sido integrada posteriormente. Na fase inicial da evolução, o conjunto do

sistema funcionaria como o genótipo do mesmo. Além da seleção natural, para

Kauffman, haveria necessidade de considerar novas leis biológicas, referentes

à origem da complexidade e auto-organização, irredutíveis a leis e teorias mais

elementares.

Este holismo contemporâneo é genuinamente científico; as conjecturas

de Kauffman baseiam-se em argumentos plausíveis e permitem a derivação de

modelos quantitativos e previsões testáveis experimentalmente. Não tem

qualquer relação com concepções místicas, como o chamado design

inteligente. Não implica em privilégio especial de algum “todo” previamente

estabelecido, uma vez que o primeiro ser vivo teria resultado do acoplamento

de partes pré-existentes, conforme leis naturais. Implica apenas antecedência

temporal do organismo (ou sistema autopoiético) sobre a molécula portadora

da informação. A própria pesquisa biológica poderá refutar ou corroborar esta

hipótese.

A origem de outros níveis de organização

Uma das críticas ao pensamento biológico contemporâneo é que em

genética e biologia molecular raramente se leva em conta o papel ativo do

organismo; o que importa é a sua composição, genes, caracteres e processos,

considerados, até certo ponto, isoladamente. Os organismos são vistos como

simples conjuntos destes elementos. Esta visão identificada com o

reducionismo em biologia, mas o termo está sendo usado de forma vaga e, no

presente caso, não implica em negar a existência de leis biológicas referentes

à seleção natural. Para autores comprometidos com a visão sistêmica,

entretanto, mesmo assim seria uma limitação que se estenderia para as teorias

sobre a origem da vida e da organização biológica.

Os entes biológicos estão organizados em diferentes níveis, desde

moléculas até ecossistemas. Diferentes disciplinas e programas de pesquisa

Page 259: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 258

abordam estes níveis com teorias e métodos particulares. Assim, no estágio

atual de desenvolvimento científico, “organismo” e outros conceitos biológicos

são definidos, ou especificados de algum modo, dentro do contexto de

disciplinas particulares. Esta idéia não é inteiramente satisfatória, pois se

conceitos tão importantes apresentam diferentes significados, tendem a

confundir as relações interdisciplinares.3

Partindo da teoria molecular da origem da vida, em uma abordagem,

matematicamente sofisticada, Michod (1999) generaliza a teoria da seleção

multinível, de modo a dar conta da origem dos níveis superiores da

organização biológica. Tanto a individualidade como a organização em níveis

pode ser explicada a partir da noção de fitness. Ao contrário da visão

tradicional da seleção natural, que toma os genes como unidade de seleção

enfatizando apenas a competição entre estas unidades, sua síntese explora a

idéia de cooperação, a qual permitiria a emergência de novas unidades de

seleção. Falando por alto, o relaxamento da competição entre as unidades de

um certo nível (p. ex. genes) permitiria o surgimento de unidades superiores de

organização (p. ex. células), cujas partes cooperariam entre si. Haveria assim

uma transferência de fitness entre níveis. Embora a teoria de Michod possa ter

profundas implicações para a concepção de vida, o que importa no momento é

sua afirmação do conceito de fitness como conceito central da biologia

(Michod, op.cit.).

Conclusão

Como seria de se esperar, a concepção que se tem sobre a natureza da

vida continua influindo nas teorias sobre a sua origem e evolução. Devido ao

caráter altamente especulativo destas teorias, tal influência torna-se

problemática.

É possível conceber o fenômeno vital como conseqüência exclusiva das

leis físico-químicas, e neste caso as noções tipicamente biológicas como

3 Conforme Lewontin, Rose e Kamin (1984), o reducionismo, enquanto doutrina, leva aconfundir nível de organização orgânica com nível de explicação, isto é, a confundir aspectosontológicos e epistemológicos.

Page 260: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Alguns pressupostos subjacentes às teorias sobre a natureza e origem da vida 259

organismo, adaptação, função biológica etc., seriam apenas formas de

descrever uma realidade físico-química complexa. Aceitando-se este ponto de

vista, as noções teleológicas seriam apenas metáforas. Esta é uma concepção

reducionista de fato e parece indicar resquícios do mecanicismo em biologia.

Uma outra posição, predominante hoje em dia, concebe a seleção

natural como princípio independente que se sobrepõe (ou que é superveniente)

às leis da física e da química, não podendo ser obtido a partir destas leis. Este

princípio seria necessário para explicar os fenômenos biológicos, como a

origem e evolução da vida, porém sem necessidade de outros princípios

biológicos fundamentais. Assim, o raciocínio teleológico, inerente à biologia,

teria encontrado sua justificação definitiva. A própria noção de teleologia

poderia ser substituída pela de teleonomia, convenientemente explicada em

termos de seleção natural (ver Monod, 1970). Neste caso, um conceito

fundamental é fitness e pode-se pensar em construir uma definição de vida a

partir deste conceito.

A posição de Kauffman, e de outros que adotam visão sistêmica, embora

minoritária, é também razoável. No que diz respeito à origem de sistemas

biológicos complexos, em particular a primeira célula viva, não se pode

descartar de antemão a possibilidade de princípios explicativos adicionais.

Aceitando esta idéia, a organização biológica seria fruto de dois tipos de leis:

as referentes à seleção natural e as referentes à auto-organização, embora

estas ainda não estejam totalmente esclarecidas (cf. Kauffman, 1995).

Também neste caso não está claro se tais leis seriam independentes, não

dedutíveis a partir das leis da química e da física. Note-se que esta dúvida

pode perdurar mesmo na eventualidade de que a teoria de Kauffman venha a

ser corroborada experimentalmente e aceita pela totalidade da comunidade

científica.

Sobre a questão da definição de vida, é preciso considerar ainda que

uma definição científica terá um sentido preciso apenas em referência a um

sistema teórico construído em uma linguagem adequada e com seus

fundamentos claramente apresentados. Partes da teoria biológicas têm sido

estudadas desta maneira (ver, p.ex. Magalhães e Krause, 2000, e bibliografia

que se encontra naquele trabalho). Como é bem estabelecido mesmo em uma

Page 261: Anaiais Encontro Filosofia Parana

João Carlos M. Magalhães 260

teoria construída formalmente nem todos os conceitos poderão ser definidos,

alguns terão de ser introduzidos como primitivos. Isto significa que para definir

vida teremos que lançar mão de outros conceitos, tomados como primitivos no

sistema.

A não ser no interior de disciplinas específicas como a genética de

populações e a sistemática filogenética, a ciência biológica parece

desenvolver-se mais por tentativa e erro do que por procedimentos analíticos,

ressentindo-se da falta de uma linguagem unificada que permita uma

abordagem quantitativa e integrada. É de se esperar que a análise da estrutura

lógica das teorias da biologia (independentemente da abordagem utilizada para

se fazer isto) tenha importância não apenas para a filosofia da ciência,

podendo contribuir para uma progressiva unificação de áreas da biologia que

hoje se desenvolvem mais ou menos separadamente. Este tipo de estudo,

entretanto, poucas vezes influiu efetivamente sobre o que pensam e fazem os

cientistas (cf. Papavero, 1989). Talvez, devido ao imenso desenvolvimento de

áreas como a biologia molecular ocorrido nos últimos anos, esta percepção

possa estar mudando entre os biólogos (ver p. ex. Lazebnik, 2002). De

qualquer modo, não existe uma teoria abrangente dos sistemas biológicos que

permita atualmente uma definição de vida válida para todos os ramos da

biologia.

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Teleologia e ciências da vida na época das luzes: o finalismona teoria da geração de Maupertuis

Maurício de Carvalho RamosPós-doutorando em Filosofia/USP

Resumo: No presente estudo, discuto o problema da teleologia nas ciênciasda vida a partir de certas controvérsias desenvolvidas nos séculos XVII eXVIII em torno do problema da geração orgânica. Primeiramente, examino aarticulação de certos elementos das teorias da geração de Descartes e deMalebranche com o problema da causalidade final na explicação dosfenômenos naturais e, a seguir, introduzo as concepções de Maupertuiscomo caso particular de tratamento do tema na época das Luzes. Apósexpor as idéias centrais de sua teoria, concluo retomando a questão dateleologia e propondo uma avaliação da posição de Maupertuis diante dodilema entre acaso e finalidade na produção dos fenômenos de geraçãoorgânica.

Palavras-chave: Teleologia. Finalismo e Mecanicismo. Geração.Epigênese. Preexistência. Maupertuis.

O debate acerca do papel do finalismo nas explicações científicas tem

como um de seus temas fundamentais a crítica da concepção mecanicista em

biologia. As primeiras aplicações dos princípios da ciência mecânica ao estudo

dos fenômenos biológicos podem ser localizadas no século XVII, tendo

Descartes como um de seus primeiros expoentes. A partir de então, as

controvérsias que marcaram o desenvolvimento de boa parte dos principais

conceitos e teorias biológicas passaram, direta ou indiretamente, pela crítica à

aplicação do mecanicismo para explicar os fenômenos biológicos. Tal crítica,

por sua vez, teve como elemento recorrente e central o que pode ser

sinteticamente designado como "o problema da teleologia nas ciências da

vida". Minha contribuição para o debate da questão será feita através do exame

de certas controvérsias desenvolvidas nos séculos XVII e XVIII em torno do

problema da geração orgânica. Primeiramente, tratarei da formulação da teoria

da preexistência dos germes a partir da crítica à embriologia cartesiana e, em

seguida, desenvolverei certos aspectos da teoria da geração dos corpos

organizados do astrônomo e geômetra francês Pierre-Louis Moreau de

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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Maupertuis, cuja obra é representativa do pensamento francês do século XVIII.

Descartes toma como fundamento de sua embriologia a teoria

hipocrática da dupla semente: os progenitores produzem líquidos seminais que,

misturados no ato da cópula, estabelecem as condições iniciais para a

geração. Interpretando mecanicamente esse processo, as partículas seminais

masculinas e femininas contidas nos dois semens, produzem o embrião

segundo as leis gerais do movimento. A matéria seminal é da mesma natureza

que a matéria ordinária que compõe os demais corpos naturais, ou seja, é

inerte e não exibe qualquer qualidade vital especial. Para garantir a diversidade

das formas a serem geradas, Descartes postula uma grande variedade de

formas para os corpúsculos envolvidos no processo. O elenco inicial básico de

corpúsculos necessário para a formação dos embriões é mais ou menos o

mesmo encontrado na produção do Universo, da Terra e de suas partes.

Mesmo que seja necessário postular uma maior diversidade de formas para dar

conta da complexidade orgânica, elas são sempre mais simples do que o

organismo que formarão; ou seja, não há estruturas preformadas. Os

movimentos necessários para a localização precisa dessas partes na estrutura

orgânica são regidos pelas leis mecânicas. Em resumo, trata-se de uma

epigênese mecânica.

Essa concepção da geração é coerente com a concepção de caráter

essencialmente matemático da natureza que prioriza os atributos geométricos

da matéria e que procura interpretar a ordem total da natureza como o

resultado da atuação de leis quantitativas. A ordem orgânica do animal adulto

pode ser deduzida da ordem orgânica da semente e vice-versa. Como as leis

são imutáveis, para um conjunto inicial de condições materiais obtém-se

sempre o mesmo resultado final: em princípio, no plano biológico, as leis do

movimento garantem o aspecto conservativo da reprodução que resulta na

constância temporal das espécies. Isso significa que, sendo as leis invariáveis,

a produção da diversidade biológica depende da diversidade das condições

iniciais presentes nas sementes.

Temos aqui uma primeira dificuldade diretamente ligada às explicações

teleológicas dos processos vitais. Esta dependência das condições iniciais

revela a incapacidade da teoria cartesiana explicar a especificidade do

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processo, ou seja, é necessário partir de uma ordem orgânica inicial específica

para a geração das diferentes espécies de organismos cuja origem a teoria não

explica. A crítica de Cudworth, por exemplo, incide justamente sobre este

ponto. O autor afirma que o De la formation du foetus, onde aparece a

embriologia de Descartes, é “precário e contestável em toda sua extensão; não

faz uma aplicação às diferenças existentes nos vários Animais, nem oferece a

menor razão do porquê um Animal de uma espécie não poderia ser formado a

partir da semente de uma outra” (apud Pyle, 1987, p. 233). A explicação da

diferença específica da geração e, até certo ponto, o isolamento reprodutivo,

deverá contar, além de matéria e do movimento, com algum tipo de princípio

organizador ou diretivo. Se para Descartes as leis naturais podem gerar

sempre o mesmo universo a partir de uma condição caótica inicial, o mesmo

não se aplicaria à geração dos organismo. A semente do universo pode ser

qualquer uma, mas a dos organismos deve contar com alguma forma de pre-

organização ou preformação que também deve ser explicada.

As tentativas de resolver os problemas oriundos da embriologia

cartesiana geraram uma profusão de teorias de difícil sistematização; mas,

mesmo assim, podemos identificar duas classes de teorias em função da

resposta dada às dificuldades que apresentamos anteriormente. Primeiramente

há as teorias que conservam a idéia do animal-máquina e as linhas gerais do

esquema mecanicista cartesiano, mas recusam sua epigênese mecânica. Os

mecanicistas posteriores a Descartes substituirão essa epigênese pela teoria

da preexistência dos germes. A segunda classe, menos uniforme que a

primeira, inclui teorias que recusam o animal-máquina e aceitam a epigênese,

mas trata-se agora de uma epigênese dinâmica que explica o formação do

embrião por meio de forças de atração ou forças análogas. A teoria da geração

de Maupertuis adotou este caminho explicativo e, antes de passarmos ao seu

exame, discutiremos brevemente alguns detalhes acerca do vínculo da

epigênese mecânica e da preexistência com o problema da teleologia.

Segundo Hutchison (1983), o advento da filosofia mecânica no século

XVII levou a uma concepção sobrenaturalista do mundo físico. Despojando a

matéria de suas formas, qualidades e virtudes naturais a ela atribuídas pela

filosofia naturalista tradicional, a atividade da matéria passou a ser entendida

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como o efeito imediato da ação de Deus. Em um estudo do papel das teorias

biológicas na revolução científica do século XVII, Pyle (1987) confere maior

precisão à tese de Hutchinson. Ele entende que os autores envolvidos na

primeira fase de desenvolvimento da filosofia mecânica expressaram

concepções sobrenaturalista apenas no âmbito metafísico de suas teorias. Já

os mecanicistas da segunda geração, como Malebranche, teriam

comprometido-se com uma visão sobrenaturalista integral, a saber, para os

âmbitos físico e metafísico da realidade. Resumindo a tese de Pyle, ele propõe

como elemento central desse processo de sobrenaturalização a adoção da

teoria da preexistência dos germes. Estabelecida filosoficamente por

Malebranche, esta teoria afirma que todos os organismos foram gerados

diretamente por Deus no instante da criação. Quando nasce uma planta ou

animal não ocorre uma nova produção na natureza, mas há apenas o

crescimento de germes preexistentes. As leis mecânicas e o esquema geral do

mecanicismo cartesiano poderiam ser adaptados de modo a explicar apenas o

crescimento do germe. Contudo, todos os germes existentes, em todos os

tempos, foram diretamente causados por uma ação milagrosa ou sobrenatural.

Tornando-se capaz de explicar a complexidade e a especificidade da geração

bem como o isolamento reprodutivo das espécies, a teoria preexistência foi

incorporoda às teorias embriológicas oficiais dos séculos XVII e XVIII.

Colocando essa interpretação histórica na perspectiva do problema da

teleologia nas ciências da vida, podemos acrescentar que a filosofia natural

pré-cartesiana aceitava a existência de causas finais intrínsecas e, com elas,

produzia explicações teleológicas internalistas dos processos gerativos. Mas as

simpatias, almas, virtudes e qualidades ocultas da tradição, cujo poder ativo

sustentavam a existência de uma causalidade final interna na natureza, foram

eliminadas pelo programa cartesiano que passou a considerar como legítimas

apenas as explicações mecânicas. Esta é a interpretação corrente que leva à

conclusão de que o mecanicismo cartesiano abandonou todo recurso à

teleologia. Porém, se considerarmos o desenvolvimento do cartesianismo de

maneira mais ampla, como fizeram os autores antes citados, perceberemos

que o mecanicismo e a teleologia não foram concepções que se excluiam

mutuamente. As concepções originais de Descartes teriam supostamente

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abandonado o recurso à causalidade final intrínseca da filosofia natural

tradicional, mas o vínculo metafísico que as leis mecânicas possuem com uma

fonte divina permite identificar em Descartes a operação de uma finalidade

extrínseca sobrenatural. O recurso a esta forma de finalidade abre a

possibilidade para explicações teleológicas externalistas e este seria o caráter

das explicações de Descartes para a geração do universo, do sistema solar e

dos corpos organizados terrestres. Porém, como bem mostrou Martínez (1998)

em um estudo sobre o tema, esta dependência de uma causa primeira

sobrenatural revelaria uma ambigüidade na concepção de lei natural em

Descartes: a explicação de fenômenos históricos por leis seria ou bem uma

ilusão ou estas leis teriam um poder intrínseco de gerar uma ordem e, assim,

teriam o mesmo caráter teleológico intrínseco das entidades dinâmicas que o

cartesianismo pretendeu banir da filosofia. Porém esta ambigüidade

desaparece em seu posterior desenvolvimento no que diz respeito a

formulação da preexistência dos germes. Como parte do processo de

sobrenaturalização da física ao qual se refere Pyle, a teoria da preexistência

incluiu a origem dos próprios embriões explicitamente no âmbito dos milagres

e, portanto, excluiu-a do âmbito da física e da explicação por leis. Com isso, ela

adere a uma clara concepção teleológica externalista.

Nosso próximo e último passo é, então, aplicar essa mesma análise do

problema da telelologia à epigênese dinâmica que, como vimos, constitui uma

segunda alternativa às insuficiências da embriologia de Descartes. Contudo, ao

invés de uma análise geral, discutiremos a teoria da geração de Maupertuis e,

assim, passaremos diretamente a um caso particular que ilustra de modo

exemplar a maneira pela qual a época das luzes enfrentou as dificuldades em

torno da geração orgânica herdadas do século XVII.

As concepções de Maupertuis sobre a geração dos organismos

aparecem principalmente em duas de suas obras, a Vénus Physique, de 1745

e o Système de la Nature, de 1752. Referências importantes ao tema também

aparecem em seu Essai de Cosmologie de 1750. A teoria da geração

desenvolvida na Vénus Physique é uma típica epigênese dinâmica. A geração

orgânica ocorre a partir da mistura dos líquidos seminais paterno e materno

que contém partes próprias à geração dotadas de forças especiais de atração

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na forma de afinidades químicas. As diferenças de afinidades entre as partes

seminais são determinadas por sua origem no corpo dos pais. Partes oriundas

de um determinado órgão terão maior afinidade, se atrairão com maior

intensidade e, desse modo, no processo gerativo o embrião reproduzirá a

disposição orgânica dos progenitores. Tal conjectura é apresentada juntamente

com uma crítica às inconsistências empíricas da teoria da preexistência, mas o

ponto que nos leva diretamente ao problema da teleologia é a crítica que

Maupertuis dirige ao próprio fundamento filosófico e metodológico da noção de

preexistência. Segundo o autor, se atribuirmos uma causa sobrenatural à

produção dos germes ou embriões, estamos eliminando do âmbito da física o

verdadeiro problema ou objeto a ser investigado. A pesquisa autêntica sobre a

geração deve explicar como se forma o próprio embrião, ou seja, a explicação

de sua formação deve sair do âmbito sobrenatural tanto quanto seu

crescimento.

Esta crítica mantém-se na elaboração da segunda versão de sua teoria

que aparece no Système de la Nature. Nesta obra a epigênese dinâmica

baseada na atração newtoniana perde sua prioridade. O autor passa a

entender que sendo a atração "uma força uniforme e cega espalhada por todas

as partes da matéria", é incapaz de explicar a regularidade exigida para a

formação dos organismos, ou seja, a força de atração, tomada em sua

formulação geral, não pode, sozinha, explicar o caráter teleológico da geração.

Também não mais considera satisfatória a utilização das afinidades químicas.

Sendo elas atrações que seguem outras leis, seriam necessários tantos tipos

de atrações quantas fossem as partes diferentes da matéria que participassem

da formação do organismo.

Com tais posição, Maupertuis afasta-se do projeto de elaboração de

uma embriologia epigenética fundada exclusivamente na química newtoniana e

atribui à matéria, juntamente com suas propriedades físicas, propriedades

psíquicas capazes de atuar na ordenação dos corpos. Maupertuis afirma que o

problema da geração somente será explicado se atribuirmos às partículas

seminais os atributos de desejo, aversão e memória. No processo de formação

do embrião a atração espalhada por todas as partes da matéria não será mais

uniforme e cega: a intensidade dessa força poderá variar segundo a aversão

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ou o desejo dos elementos materiais por estabelecer certas interações e a

direção da ação dessa força será orientada por uma memória capaz de restituir

às partes orgânicas a disposição conforme à sua espécie. Com sua teoria

reformulada, Maupertuis enfrentou todas as dificuldades que a geração dos

organismos colocava para a ciência mecânica de sua época. Não pretendemos

discutir aqui, mesmo resumidamente, suas explicações para cada caso. O que

faremos é passar diretamente para o exame da relação de sua teoria com o

problema teleológico.

Atribuir propriedades psíquicas à matéria para orientar a geração

orgânica e, com isso, garantir a especificidade do processo, parece ser um

apelo direto à causalidade final. A ordem das condições iniciais da geração já

está parcialmente garantida pela origem somática das partes seminais, mas o

"encaixe" destas partes conta ainda com a ação coordenadora do desejo, da

aversão e da memória. Assim, pareceria que tal diretividade do processo

implicaria um finalismo intrínseco e o cerne das explicações da teoria de

Maupertuis teriam um caráter teleológico internalista. Em linhas gerais, esta

conclusão está correta, mas é preciso torná-la ainda um pouco mais precisa;

para tratar com mais algum detalhe da questão, precisamos incluir em nossa

discussão certos aspectos de seus estudos em física.

O desenvolvimento da obra física de Maupertuis possui muitos paralelos

com o desenvolvimento de sua teoria da geração. Inicialmente o autor constrói

uma teoria física e astronômica baseada na filosofia natural de Newton mas,

posteriormente, passa a procurar por um princípio ainda mais geral que a

atração, capaz de reduzir todas as leis físicas até então consideradas como as

mais fundamentais. Tal princípio vincula-se metafisicamente a uma concepção

de Deus como produtor de leis capazes de garantir a estrutura do universo tal

como revelam os fenômenos, e fisicamente a uma lei de conservação das

ações envolvidas na produção destes mesmos fenômenos. Tal lei é o princípio

da mínima ação: quando ocorre alguma mudança na Natureza, a quantidade

de ação necessária para tal mudança é a menor possível. Com a expressão

matemática deste princípio Maupertuis deduziu as leis da óptica, do repouso e

do movimento dos corpos e, acreditando ter encontrado o grande invariante da

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natureza, utilizou-o na formulação de uma prova da existência de Deus

baseada nas leis gerais da física.

A noção metafísica que fundamenta o princípio físico da mínima ação e

que estabelece a relação de Deus com a natureza que Maupertuis utilizou em

sua prova é a seguinte: todas as coisas estão de um tal modo ordenadas que

uma Matemática cega e necessária executa aquilo que a inteligência mais

esclarecida e mais livre prescreve. A utilização de um tal princípio de economia

claramente implicaria re-introduzir as causas finais na física, problema sobre o

qual Maupertuis esteve bem consciente: "Eu conheço a repugnância que vários

Matemáticos têm pelas causas finais aplicadas na Física e mesmo aprovo-a

até certo ponto" (Maupertuis, 1965, p. 20). A utilização de hipóteses finalistas

na física deve, segundo o autor, restringir-se ao âmbito das leis mais gerais e

não podem ser utilizadas para explicar o detalhe dos fenômenos. Em outras

palavras, Maupertuis adere, no âmbito de sua física, a um finalismo intrínseco

restrito às leis naturais.

A sustentação dessa forma de finalismo associada à sua prova científica

da existência de Deus contou com a crítica de outras provas alternativas que

visavam obter o mesmo resultado. Maupertuis criticou particularmente as

provas oferecidas por Newton e seus seguidores, tiradas da uniformidade e da

conveniência das diferentes partes do Universo. Além de não aceitar como

suficiente o argumento baseado na necessidade de uma escolha para o

estabelecimento da direção do movimento dos planetas, atacou duramente as

provas oriundas da conveniência refletida nas partes dos animais, o que nos

leva de volta ao problema da geração. Nestas provas cada detalhe da estrutura

dos organismos é vinculada a uma função vital específica e, assim, a perfeição

com que todas as necessidades dos organismos são satisfeitas provaria a ação

da Providência divina nos mínimos detalhes da natureza. Maupertuis

considerou as provas deste gênero, comuns entre os físico-teólogos ingleses,

ingênuas e ridículas, mais capazes de encorajar o ateísmo do que de

proporcionar uma prova racional da existência de Deus. De certa forma,

Maupertuis devolve à Teologia Natural de inspiração newtoniana a acusação

de ateísmo imputada ao mecanicismo cartesiano.

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Contudo, apesar de sua firme posição a este respeito, Maupertuis

conhece claramente o risco envolvido no ataque à Teologia Natural. O

argumento que se apresentava para refutar o emprego deste finalismo

exagerado ia na direção totalmente oposta, ou seja, apelar para o acaso e para

a ausência total de finalidade na natureza. Maupertuis apresenta como

exemplo de tal posição uma passagem do livro IV do Rerum Natura de

Lucrécio nos seguintes termos: "a utilidade não foi de modo algum o objetivo,

(...) ela foi a conseqüência da construção das partes dos Animais (...) o acaso

tendo formado os olhos, as orelhas, a língua, serviu-se deles para ver, para

escutar e para falar" (Maupertuis, 1751, p. 24). Em resumo, temos aqui um

dilema entre duas posições extremas associadas à relação entre forma e

função dos organismos. Segundo o atomismo de Lucrécio, a forma, produzida

casualmente, precede e determina a função e, assim, não haveria sentido em

atribuir quaisquer desígnios ou finalidades aos seres vivos. Mas a conveniência

generalizada observada na natureza entre as formas e as funções orgânicas

reclama o oposto: a função ou utilidade é anterior à forma que lhe está

associada e deve provir de algum projeto. A posição de Maupertuis diante

deste dilema nos oferece os detalhes adicionais que buscávamos acerca do

papel preciso da teleologia em sua teoria da geração. O que entrará aqui em

questão será o problema da origem dos primeiros organismos.

Há dois contextos distintos nos quais Maupertuis explica a geração dos

primeiros corpos organizados sobre a Terra. Dentro do que chamamos o

quadro físico das origens o autor afirma o seguinte "na combinação fortuita das

produções da Natureza (...) o acaso, diríamos, teria produzido uma multidão

inumerável de indivíduos; um pequeno número encontrar-se-ia construído de

maneira que as partes do animal pudessem satisfazer suas necessidades; em

um outro infinitamente maior, não havia nem conveniência nem ordem e todos

pereceram: animais sem boca não podiam sobreviver, outros que careciam de

órgãos para a geração não se podiam perpetuar; os únicos que restaram são

aqueles onde se encontravam a ordem e a conveniência: e essas espécies que

vemos hoje são apenas a mínima parte daquilo que um destino cego havia

produzido" (Maupertuis, 1751, p. 24). Esta conjectura, aparentemente muito

semelhante à explicação atomista, parece eliminar qualquer finalidade ou

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precedência da função sobre a forma na geração dos primeiros organismos.

Porém, acreditamos que temos aqui uma diferença sutil, capaz de garantir uma

certa fidelidade à explicação atomista e, ao mesmo tempo, de evitar um apelo

irrestrito ao acaso. As estruturas produzidas de modo fortuito não satisfazem

automaticamente as necessidades orgânicas; a maioria delas não se fixa no

tempo através da geração por não exibir a combinação de partes ou de órgãos

capaz de garantir o desempenho necessário à sobrevivência. O acaso pôde

produzir seres orgânicos, mas não é ele que estabelece quais serão as

estruturas funcionalmente viáveis e, assim, deve existir algum tipo de

predeterminação com relação à composição funcionalmente conveniente de

órgãos capaz de engendrar e de manter um organismo vivo. Tal

predeterminação é encontrada no segundo contexto em que Maupertuis explica

a origem dos primeiros organismos. No interior do que designamos como

quadro metafísico das origens, o autor afirma que "Deus, ao criar o mundo,

dotou cada uma das pequenas partes de matéria com alguma propriedade

semelhante àquilo que em nós chamamos desejo, aversão e memória; a

formação dos primeiros indivíduos sendo milagrosa, aqueles que lhes

sucederam não são mais do que os efeitos dessas propriedades" (Maupertuis,

1965a, p. 183). As propriedades psíquicas presentes nas partes seminais,

fundamento de sua última teoria da geração, possuem uma origem

sobrenatural, cuja atuação no âmbito físico, desde a origens dos primeiros

organismos, vem regulando e selecionando as combinações fortuitas. Desse

modo, produz como resultado o fato de que os organismos pertencentes a

todas as espécies existentes exibam uma perfeita combinação de forma e

função que se realiza na construção de estruturas que atendam a

necessidades. Assim, concluindo nossa discussão, vemos que há claramente

na teoria da geração de Maupertuis uma finalidade intrínseca operando na

produção dos fenômenos por meio de um princípio gerativo fundamental que,

apesar de não possuir o mesmo estatuto legiforme do princípio físico de

mínima ação, guarda relações muito semelhantes com uma fonte sobrenatural

e extrínseca de organização.

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Referências bibliográficas

HUTCHINSON, K. R. Supernaturalism and the mecanical philosophy.History of Sciences, 2, p. 297-333, 1983.

MARTÍNEZ, S. F. Sobre la relación entre historia y causalidad en labiología. In: BARAHONA, A. & MARTÍNEZ, S. (Org.). Historia yexplicación en biología. México: Univ. Nacional Autónoma deMéxico/Fondo de Cultura Económica, 1998. p. 23-41.

MAUPERTUIS, P.-L. M. de. Essai de cosmologie. [s.l.], 1751.

________. Oeuvres. Hildesheim, Georg Olms, 1965a. v. 2.

________. Oeuvres. Hildesheim, Georg Olms, 1965b. v. 4.

PYLE, A. J. Animal generation and the mechanical philosophy: some lighton the role of biology in the Scientific Revolution. History andPhilosophy of Life Sciences, 9, 2, p. 225-54, 1987.

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Notas sobre evolução e teleologia no pensamento de CharlesS. Peirce

Max Rogério VicentiniDepartamento de Filosofia/UEM

Resumo: A tese central investigada neste trabalho é a de que a lei damente elaborada por Charles S. Peirce pode ser vista como uma formadiferenciada de causalidade que procura explicar como certos fenômenos,bastante disseminados no universo, mas particularmente pertinentes à vidae à mente, podem ocorrer. Procura-se-á, com este intuito, realizar umainvestigação conceitual que esclareça o significado deste princípiopeirceano de aquisição de hábitos, ou lei da mente, como é denominado emalgumas passagens, e dessa maneira indicar que a abordagem peirceanacoloca e sugere aspectos que ainda permanecem estranhos ao contexto dediscussão atual, mas que, segundo o autor, são de profunda relevância parao delineamento de uma visão adequada do crescimento da ordem nouniverso e para a explicação da origem e aumento de complexidade dossistemas.

Palavras-chave: teleologia, cosmologia, evolução, causalidade, acaso, lei.

“Genesis is production from ideas.”Charles S Peirce

Em um universo temporalmente estruturado, no qual o futuro é

assimétrico ao passado, uma inteligência, que aprende com a experiência,

desenvolve um padrão de comportamento que visa responder eficientemente

aos diversos desafios que o surgimento de novidades estabelece.

Esse desenvolvimento, que para Peirce é bem caracterizado pelo termo

crescimento, molda, dentro de sua concepção cosmológica, todos os

elementos constituintes de nosso universo, desde o mais rígido dos elementos,

até aqueles mais voláteis; desde um diamante, até a própria mente humana.

Esse universo em crescimento encontra no acaso seu constituinte fundamental,

como uma decorrência lógica necessária do princípio que manda não postular

o incognoscível no seio da natureza (CP 6, 64), e que Peirce assume como

uma máxima do agir científico. Na passagem do acaso primordial ao universo

ordenado e regido por leis interfere um princípio que o autor denomina de lei da

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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mente ou princípio de aquisição de hábitos.

O processo de crescimento, ou evolução, dirá o autor, deve ser

explicado como estando submetido aos mesmos princípios a que todos os

demais fenômenos estão, assim, faz-se necessário encontrar uma lei que

tenha na sua aplicação o motor de seu fortalecimento, ou seja, uma lei que

possa crescer devido a sua própria natureza: esta é a lei da mente. Como

afirma Peirce: “a única tendência que pode crescer por sua própria virtude, a

tendência de todas as coisas a adquirirem hábitos” (CP 6,100).

Peirce descreve a lei da mente como o fato de que as “idéias tendem a

se dispersar continuamente e a afetar certas outras que permanecem em uma

relação peculiar de afetabilidade com relação a elas. Nesta dispersão elas

perdem intensidade, e especialmente o poder de afetar as outras, mas ganham

em generalidade e se tornam amalgamadas com outras idéias” (CP 6, 104).

É natural atribuir a uma lei o caráter de absoluta, como o atribuído às leis

da física; a lei da mente, entretanto, não requer uma exata conformidade na

produção de seus efeitos. Como afirma Peirce, “a conformidade exata estaria

em conflito inequívoco com a lei, uma vez que isso cristalizaria

instantaneamente o pensamento e impediria as formações posteriores de

hábitos” (CP 6, 23). A lei da mente apenas torna um certo sentimento mais

provável (likely). Em outras palavras, podemos dizer que a lei da mente inclina

o curso futuro dos eventos a uma certa direção sem, contudo, determiná-lo.

Como afirma Peirce, “a causa final não determina de que modo particular algo

se realizará, mas unicamente que o resultado terá um certo caráter geral” (CP

1, 220). É a causa final, diz Peirce, que atribui existência a um objeto de uma

classe. Não devemos, todavia, entender essa atribuição como algum tipo de

produção miraculosa. É o próprio autor que esclarece em que sentido preciso

ele entende essa atribuição: “o que eu entendo pela idéia conferindo existência

aos membros individuais de uma classe, é que ela lhes confere o poder de

produzir resultados neste mundo, que ela lhes confere, equivale dizer,

existência orgânica, ou, em uma palavra, vida” (CP 1, 220).

Seguindo na explicação dessa idéia, Peirce elabora uma distinção entre

um indivíduo e a matéria que o compõe. Essa distinção se cristaliza na frase

“um homem é uma onda, mas não um vórtice” (CP 1,220). Ainda que ele seja

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Notas sobre evolução e teleologia no pensamento de Charles S. Peirce 275

indissociável das partículas que o compõe, nem todas as propriedades que

podem ser atribuídas ele são adequadas a elas. Tomemos o exemplo fornecido

por Peirce:

Tome um cadáver: disseque-o, mais perfeitamente do que jamais foi dissecado.Tome todo o sistema de veias sanguíneas, como nós o vemos desenhado nos livros.Trate o sistema de nervos espinal e simpatético, o sistema alimentar com os seusadjuvantes, o sistema muscular, o sistema ósseo, da mesma maneira. Coloque-otodo em uma cabine de tal modo que de um certo ponto de vista, cada um aparecesuperposto ao outro em seu lugar próprio. Este seria um espécime singularmenteinstrutivo. Mas chamá-lo de homem seria algo que ninguém faria ou sonharia nemmesmo por um instante. Mas a melhor definição que poderia ser elaborada seria umadissecação similar. Ele realmente não atuaria no mundo como o objeto definido faria.Ele nos habilita a ver como as coisas funcionam, na medida em que nos mostra acausa eficiente. A causa final, que é o que caracteriza o definitum, não é abordada.(CP 1, 220).

A partir deste exemplo, Peirce esclarece a distinção entre causa

eficiente e causa final que aqui discutimos. A causa eficiente é aquela na qual

as partes compõem o todo, enquanto que na causa final percebemos o todo

chamando por suas partes.

Com essas considerações em mente, Peirce conclui que a causa

primária atuante no universo em crescimento deve ser a causa final, não

ignorando, contudo, que “causa final sem causa eficiente é inócua (helpless);

um mero chamar por partes é o que qualquer homem pode fazer, mas elas não

virão sem a causa eficiente. Causa eficiente sem causa final, entretanto, é pior

do que inócuo, é mero caos, e o caos não é nem mesmo caos sem causa final;

é um nada vazio” (CP 1, 211). Como indica Silveira (1985), “o que o cosmo

evolucionário exige para se efetivar na organização crescente que o define, é a

presença de duas causas cujo modo de operar é reciprocamente inverso:

causa final e causa eficiente” (Silveira, 1985, p. 8). Assim, sob a atuação da lei

de aquisição de hábitos ou da mente, há um contínuo crescimento da

uniformidade a partir das formas diferenciadas. Mas “as mudanças divergentes

à lei estão agindo perpetuamente a fim de aumentar a variedade do mundo, e

são controladas por um tipo de seleção natural ou de qualquer outro tipo (pois

Peirce julga que a seleção natural não seja, por si só, suficiente) de tal forma

que o resultado geral deve ser descrito como ‘heterogeneidade organizada’ ou

melhor ‘variedade racionalizada’”. (CP 6, 23).

Page 277: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Max Rogério Vicentini 276

A idéia, ou causa final, atuaria, desse modo, como um atrator para a

realização de um determinado curso de eventos, inclinando acontecimentos

que se processariam em função de um ser in futuro. Dizer que o futuro não

influencia o presente é uma doutrina inaceitável, afirma Peirce (CP 2, 86). A

defesa desta doutrina negaria a possibilidade da existência de causas finais e

fins atuando na constituição do cosmo. Certo é, contudo, que a maneira do

futuro atuar sobre o presente se distingue daquela efetuada pelo passado. O

passado atua de maneira direta, dualista, enquanto o futuro necessita de um

meio, ou uma maquinaria, como diz o autor, através do qual possa exercer sua

influência. Silveira (1985) esclarece que “enquanto esta última [causa eficiente]

atualiza-o pela força, a primeira [causa final], muito mais genuína, faz derivar o

próprio cosmo de uma idéia, antecipa o todo às partes, cabendo à causa

eficiente a composição efetiva – e, de algum modo, defectiva – do todo pela

ação recíproca das partes” (Silveira, 1985, p. 8).

Os exemplos da atuação da causa final são muitos. No que tange ao

pensamento, particularmente em sua atividade teórico-criativa, a presença do

ser in futuro, como um atrator, é inequívoca. Procedemos à verificação de

nossas candidatas a leis gerais por meio de experimentos. Variamos

gradualmente as condições de nossos experimentos para constatar o que

acontece. Se estivermos no caminho errado, uma enfática negativa fará com

que reconsideremos nossas hipóteses, de tal modo que, em um longo prazo (a

long run), elas se tornem cada vez mais adequadas e corretas. Ou seja, “isto

equivale a dizer, que conjeturamos as leis bit por bit” (CP 1, 86).

Um leitor atento poderá, nesta altura, julgar por meio da descrição

oferecida da lei da mente, ou causa final, que a sua aplicação restringe-se ao

âmbito dos fenômenos mentais, particularmente os humanos. A fim de evitar

esse equívoco, fazem-se necessárias algumas palavras a respeito da distinção,

elaborada por Peirce, entre causa final e propósito. A causa final possui uma

abrangência muito maior do que o propósito, sendo este apenas o tipo de

causa final que estamos mais habituados. Em um texto de 1902, Peirce

esclarece que “um propósito é um desejo operativo” (CP 1, 205). Ainda que

para os seres humanos o propósito se apresente como uma condução

autocontrolada que mira um certo ser in futuro que aparece como desejável,

Page 278: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Notas sobre evolução e teleologia no pensamento de Charles S. Peirce 277

quando consideramos a atuação da causa final em seu sentido mais amplo,

constatamos que o significado do termo não retém nada de sua interpretação

psicológica.

Para melhor ilustrar a atuação da causa final no cosmo podemos

lembrar que a atuação da causa final não é outra coisa que a evolução (cf. CP

2, 86). Nota-se, na formulação peirceana, um alargamento das fronteiras

tradicionalmente consideradas como limitantes da ação da evolução. Não só o

reino orgânico cresce com a evolução, mas todo o cosmo assim procede.

Peirce procurará montar um quadro teórico no qual a evolução é o aspecto

marcante de todos os acontecimento, nos mais variados campos.

Em uma formulação geral Peirce distinguiu três tipos de evolução: a

evolução por variação fortuita, denominada de evolução ticástica, ou ticasmo,

a evolução por necessidade mecânica, denominada de evolução anancástica,

ou anancasmo e a evolução por amor criativo, denominada de evolução

agapástica, ou agapasmo.

Os três modos de evolução são compostos pelos mesmos elementos

gerais, diz Peirce. Os pais passam uma quantidade de “talentos”

espontaneamente para a geração seguinte e esta possui a disposição de

apanhá-los e desenvolvê-los e, dessa maneira, servir a um propósito geral.

Esses elementos mostram-se mais claramente no agapasmo, mas também

estão presentes de maneira diversa no ticasmo e no anancasmo. Essas duas

formas podem ser vistas como formas degeneradas de agapasmo, afirma o

autor.

A evolução agapástica, que por ser mais representativa da atuação da

causalidade final, interessa-nos, aqui, mais de perto. Este tipo de evolução

considera que a própria idéia possui uma força de atração que conduz o

pensamento para si. Como afirma Peirce:

O desenvolvimento agapástico do pensamento é a adoção de certas tendênciasmentais, não totalmente descuidadas como no ticasmo, nem completamente cegadaspela mera força das circunstâncias ou da lógica, como no anancasmo, mas por umaimediata atração da própria idéia, cuja natureza é adivinhada depois que a mente apossui, pelo poder da simpatia, isto é, por virtude da continuidade da mente... (CP 6,307).

Page 279: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Max Rogério Vicentini 278

Quando Peirce refere-se ao pensamento, este deve ser entendido como

“o princípio primordial para a compreensão não só dos fenômenos do espírito,

mas da totalidade do cosmo” (Silveira, 1989, p. 75). A matéria, afirma Peirce,

... em obediência ao princípio, ou máxima, da continuidade, de que devemos assumirque as coisas são contínuas tanto quanto possamos, urge que devamos supor umacontinuidade entre os caracteres da mente e da matéria, de tal forma que a matérianão seria mais do que mente, que tendo hábitos de tal modo empedernidos é levadaa agir com um grau particularmente elevado de regularidade mecânica ou rotina (CP6, 277).

Em decorrência da aceitação da idéia de continuidade entre a mente e a

matéria, Peirce se autodenomina em algumas passagens de idealista objetivo,

afirmando a sua diferença com relação ao monismo materialista, indica que “o

[monista materialista] faz da lei da mente um resultado especial das leis da

matéria, enquanto que o [idealista objetivo] faz com que as leis da matéria

sejam um resultado especial da lei da mente” (N 1, 200).

A partir de 1890, tendo conseguido vários avanços no estabelecimento

das categorias da experiência, Peirce oferece uma interpretação da noção de

hábito na qual lhe é conferido um estatuto ontológico, distanciando-se, dessa

maneira, tanto da noção humeana, como daquela utilizada pelos psicólogos do

início do século XX, como afirma Bortolotti “o hábito passa a ser a categoria

universal da lei, dotado de objetividade” (Bortolotti, 2003, p. 1). Segundo

Peirce, “um hábito não é uma afecção da consciência, é uma lei geral da ação,

de tal forma que em um certo tipo geral de ocasião um homem será mais ou

menos apto a agir de um certo modo geral” (CP 2, 148). Como uma lei geral, o

hábito se entranha na própria constituição do cosmo.

O princípio de aquisição de hábitos, ou lei da mente, é tomado por

Peirce como o modo pelo qual as leis do cosmo se constituíram. Em outro

momento, o filósofo dirá que “está claro que nada a não ser o princípio do

hábito, ele mesmo devido ao crescimento de uma tendência infinitesimal do

acaso em direção à aquisição de hábitos, é a única ponte que pode ligar o

abismo entre o acaso do caos e o cosmo da ordem” (CP 6, 263). Segundo

Santaella “para Peirce, a tendência do universo a adquirir novos hábitos,

tendência esta que tem seu expoente na mente humana, é aquilo que permite

o contínuo crescimento da potencialidade da idéia” (Santaella, 2004, p. 248-9).

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Notas sobre evolução e teleologia no pensamento de Charles S. Peirce 279

No plano da evolução cosmológica o hábito, ou a lei, inclina a um

desenvolvimento do universo que tem como meta torná-lo mais razoável.

Peirce afirma que “lei é par excellence a coisa que quer uma razão” (CP 6,12).

O incremento da razoabilidade do universo não é, contudo, um processo

que se desenvolva sem tropeços. Para bem compreendermos esse

desenvolvimento faz-se necessário uma incursão, ainda que breve, devido aos

limites dessa exposição, na teoria das inferências que Peirce desenvolveu, em

particular, no tipo de inferência denominado de abdução ou retrodução, termos

que traduzem o vocábulo apagoge empregado por Aristóteles.

Nos trabalhos produzidos entre 1865 a 1901, vemos Peirce aprofundar e

desenvolver suas análises e concepções do processo de produção de

inferências, culminando com a distinção de três tipos de raciocínios que se

integram e concorrem para a realização do conhecer: a indução, a dedução e a

abdução. O problema de se determinar a origem das premissas de qualquer

raciocínio foi uma constante a conduzir suas investigações nesse período.

Conforme ressalta Santaella (2004), a interpretação da abdução tem sido um

tópico polêmico entre os comentadores da obra de Peirce. O que distingue

esse processo inferencial é o fato de ser, ao mesmo tempo, um processo

instintivo e ter a natureza de uma inferência lógica. É por meio da abdução,

deixa claro Peirce, que as novidades são introduzidas no processo evolutivo da

natureza e do homem. A dificuldade do tratamento e compreensão desse

conceito fundamental é bem sintetizada por Santaella ao se perguntar: “se as

hipóteses são frutos da maravilhosa faculdade imaginativa humana, como

podem elas se acomodar dentro da forma de uma inferência lógica?”

(Santaella, 2004, p. 109).

A intuição, entendida como flash de criatividade, é a base do processo

de abdução que terá como finalidade a produção de uma nova idéia ou forma,

que poderá dar lugar a uma inclinação geral ou hábito. Em uma leitura rápida, é

tentador compreender esse flash como sendo de natureza intuitiva. Nada mais

equivocado, se levarmos em conta que a principal crítica que Peirce endereça

a Descartes refere-se justamente ao conceito de intuição. Para Peirce, toda

cognição possui uma base inferencial, como é bem conhecido a partir dos

textos de 1898-99. Se não há a possibilidade de uma cognição sem a

Page 281: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Max Rogério Vicentini 280

existência de uma cognição que a preceda, como entender o surgimento da

novidade que a abdução põe em cena?

A solução parece derivar do caráter habitual do instinto. Peirce afirma

que todo instinto tem o caráter de um hábito e, dessa forma, distingue a ação

por ele produzida da reação bruta e cega. São derivados da própria evolução a

que está submetido o cosmo e o homem como uma parte integrante. Santaella

aponta que “do instinto peirceano germina a abdução, fonte de todas as

iluminações e criações humanas, mas também o mais frágil de todos os

raciocínios, o mais falível, sem nenhum poder de comprovação, necessitando

da dedução e da indução para que possa ter qualquer valor de verdade”

(Santaella, 2004, p. 113-14).

A utilização de explicações que envolvam causalidade final tem sido

insistentemente evitada pela filosofia e ciência contemporâneas. Essas

abordagens tentam reduzir as explicações teleológicas a explicações baseadas

unicamente em causação eficiente. Mesmo certos biólogos. Como aponta

Menno Hulswit, até mesmo certos biólogos evolucionários mantêm que, a

biologia não possa ser feita sem a linguagem teleológica, as explicações dos

processos biológicos não podem ser baseadas em nada além do que a

causação eficiente.

Uma caracterização da causação final, que na visão desses filósofos e

cientistas é problemática, possui ao menos as três seguintes características,

segundo Hulswit:

• Referência a um evento individual futuro.

• A influência do evento individual futuro sobre o evento presente.

• A determinação completa do curso do evento em direção ao estadofinal do processo.

A abordagem que Peirce propõe da causalidade final não apresente

nenhuma dessas características, insistir na presença dessas três propriedades

é um equívoco de entendimento. A compreensão da formulação peirceana

envolve vários aspectos de sua teoria, que são por si sós de difícil exposição,

centraremos nossa atenção aqui na maneira que Peirce realiza a

caracterização do ser in futuro que atrai e direciona o acontecimento dos

Page 282: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Notas sobre evolução e teleologia no pensamento de Charles S. Peirce 281

eventos. Ou seja, de que maneira podemos compreender o fim a que se dirige

o curso dos eventos.

Peirce insiste que o ser in futuro é uma idéia e como tal possui um

caráter geral. Ora, o que é geral não pode ser um evento, uma vez que esses

são individuais e concretos. Como aponta em CP 1, 341, os fins não são mais

do que ‘desejos operativos’. E aqui não podemos evitar a linguagem

antropomórfica, pois é a única a nossa disposição, segundo Peirce. Alguma

coisa desejada é sempre de um certo tipo. Desejamos um certo tipo de sorvete

e não um específico. É claro que há graus de especificidade nos desejos, mas

eles são sempre gerais. Desse modo, a causa final é geral, não concreta.

A maneira como a causa final atua sobre os eventos presentes na

concepção de Peirce também difere da caracterização acima oferecida. A sua

influência, como já foi apontado acima, é apenas uma inclinação; não existe em

concreto no futuro, mas é apenas um horizonte de possibilidades. Sob certas

circunstâncias, ela determina um curso de acontecimentos com o objetivo de

que o fim seja obtido, sob outras, o curso dos acontecimentos é alterado. Como

aponta o autor: “A causação final não determina de que modo particular algo

será alcançado, mas unicamente que o resultado terá um certo caráter geral”.

(CP 1, 211). Desse modo, é um tipo de causação eminentemente falível.

Menno Hulswit refere-se a ela como sendo “não uma coisa concreta, mas um

tipo, uma mera possibilidade; nada mais que um estado final ideal para o qual

um processo tende” (Hulswit, p.4). Desse modo, a concepção peirceana de

causalidade final evita os principais problemas vistos pela ciência moderna

como obstáculos à sua utilização.

É desse modo, portanto, que podemos concluir que a grande lei atuante

na constituição do cosmo ordenado é a lei da mente ou princípio de aquisição

de hábitos, que atuando por meio de uma idéia que permanece como um ser in

futuro, atrai os acontecimentos de forma a incrementar o grau de razoabilidade

no universo. Essa lei, que rege um processo eminentemente falível recebe na

descrição Peirceana sua melhor definição: “uma força gentil que comumente

prevalece” (CP 2, 389).

Page 283: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Max Rogério Vicentini 282

Bibliografia

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HULSWIT,M.Teleology.In:http://www.digitalpeirce.fee.unicamp.br/hulswit/p-telhul.htm.Consultado em 13/11/2003.

PEIRCE, C. S. Collected Papers of Charles S. Peirce. Vol. I-VI. Editedby Charles Hartshorne and Paul Weiss. Cambridge, MA: The BelknapPress of Harvard University, 1934.

____________. Collected Papers of Charles S. Peirce. Vol. VII-VIII.Edited by Arthur Burks. Cambridge, MA.: The Harvard UniversityPress, 1958.

____________. Contribution to the Nation. In: Past Masters, C-romdatabases. InteLex Corporation, 1992.

SANTAELA, L. O método anticartesiano de C. S. Peirce. São Paulo:Editora Unesp, 2004.

SILVEIRA, L. F. B. da. “Cosmo evolutivo e plano da criação na filosofiapeirceana” Trans/Form/Ação, nº 8, 1985, p. 1-24.

____________________. “Charles Sanders Peirce: ciência enquantosemiótica” Trans/Form/Ação, nº 12, 1989, p. 71-84.

Page 284: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Sobre a importância do objeto em Descartes, o número e aordem das paixões na II parte das Paixões da Alma

Gustavo PiovezanGraduando em Filosofia/UEM

Resumo: A relação estabelecida entre sujeito e objeto, a partir damodernidade, pode ser observada e estudada em Descartes,particularmente, nas Paixões da Alma, obra na qual dedicamo-nos umtempo maior ao desenvolver deste. Ao instaurar a teoria das paixões, oautor, reafirma o seu mecanicismo, visto que o surgimento de uma ou outrapaixão qualquer só se dá devido ao movimento que os espíritos animaisrealizam em torno da glândula pineal. Tal movimentação destes espíritosfaz com que a admiração, independentemente de qualquer outrosentimento, seja a primeira paixão a existir no sujeito, e desta última, surgeas outras demais, entretanto, é todo este processo não se faz de uma formaque não a mecanicista, através dos processos fisiológicos da circulaçãosangüínea, respiração e digestão, básicos e necessários à maquinahumana.

Palavras-chave: paixões, glândula pineal, espíritos animais e objeto.

I – Introdução:

O presente trabalho tem a finalidade de esclarecer sobre a importância

do objeto, concernente à relação com as paixões que afetam a alma; o número

e a ordem em que elas podem ser produzidas na alma. Tema este, tratado na II

parte das Paixões da Alma, de Descartes. Para uma melhor compreensão do

tal conteúdo, entretanto, nos é necessário o uso da obra Tratado do Homem do

mesmo autor, pelo fato de que nas Paixões da Alma a exposição da fisiologia

do corpo humano é feita de uma forma mais sucinta e, que ao ver de Descartes

está intimamente ligada ao surgimento das paixões em nós.

O Tratado do Homem é a obra onde o autor estabelece uma explicação

minuciosa da fisiologia do corpo demonstrando seu mecanicismo. Também,

faremos o uso das Meditações de Filosofia Primeira onde será declarada a

união entre alma e corpo como uma verdade e, também, como, através desta

união, nos diferenciamos dos animais e máquinas. E como objetivo deste faz

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 285: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Gustavo Piovezan 284

parte, ainda, demonstrar como se dá a enumeração e a ordem das paixões

dentro do segundo capítulo das Paixões da Alma.

II – As Meditações de Filosofia Primeira e a união entre corpo e alma:

É interessante como Descartes elabora sua argumentação para chegar

à verdade da união entre corpo e alma nas Meditações: na primeira meditação

elabora o princípio da dúvida hiperbólica; na segunda parte para a natureza do

espírito humano a partir da conquista do cogito a primeira verdade, que, no

entanto, é garantida pela verdade da existência de Deus, declarada na terceira

meditação; já a quarta traz o critério de verdade: a clareza e distinção; na

quinta meditação encontramos a prova ontológica de Deus como real e

possível e, por último, tem-se a sexta meditação que trata da existência das

coisas matérias e da distinção real entre a alma e o corpo humano.

Digo ser interessante a argumentação do autor, pelo fato de que apesar

de ser explanados vários e diferentes temas nas Meditações, são abordados e

encadeados, de modo a tornar a constituição da obra una. Prova disso, é a

forma com que elucida os dois principais temas da sexta meditação, a qual nos

deteremos um pouco mais.

Primeiramente Descartes analisa a questão da existência das coisas

materiais e, no que concerne a estas afirma-se, de antemão, que tudo o que é

concebido clara e distintamente é possível que exista, uma garantia disso é a

imaginação que “nada mais é que uma aplicação da faculdade que conhece ao

corpo que lhe é inteiramente presente e, portanto, que existe”1. No entanto, a

faculdade de imaginar não é a mesma coisa que a pura intelecção ou a

concepção, esta última, se dá, ao exemplo do autor, em abstrair um triângulo

como um polígono constituído de três linhas. Já a imaginação, se dá na

consideração destas três linhas pela força e aplicação interior do espírito, ou o

simples ato de, mentalmente, imaginá-lo.

Tem-se após isso, uma análise da sensação e “quais são as coisas que

até aqui considerei [Descartes] como verdadeiras, tendo-as recebido pelos

1 Descartes. Meditações de Filosofia Primeira. P. 130.

Page 286: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Sobre a importância do objeto em Descartes 285

sentidos”2. Ora, às vezes os sentidos podem oferecer conclusões verídicas,

mas, também, falsas a respeito de determinado objeto. Então, igualmente

confiamos desconfiando de nossos sentidos, uma vez que eles não podem ser

um critério do qual obteremos a certeza a respeito de qualquer investigação

científica. E assim,

“... começo a melhor conhecer a mim mesmo e a descobrir mais claramente o autorde minha origem, não penso, na verdade, que deva temerariamente admitir todas ascoisas que os sentidos parecem ensinar-nos, mas não penso tampouco que devacolocar em dúvida todas as coisas em geral”.3

Afora isso, Descartes começa sua argumentação sobre a distinção entre

alma e corpo. Tanto um quanto o outro subsiste intimamente ligados4, de forma

a estabelecerem um composto de duas substancias: (1ª) a pensante (2ª) e a

extensa. Nos Principia Descartes afirma de uma forma mais clara a respeito da

distinção entre alma e corpo:

“Que existe um determinado corpo que está mais intimamente ligado a nossa mentedo que qualquer outro é evidente, a partir do fato de nosso claro reconhecimento deque a dor e outras sensações nos atingem de maneira inteiramente inesperada. Amente está ciente de que estas sensações não provêm apenas dela mesma e nãopodem pertencer a ela, simplesmente em virtude de ela ser uma coisa pensante. Aocontrário, elas só podem pertencer em virtude de a mente estar ligada a algodiferente dela mesma, que é extenso e móvel, e ao qual chamamos corpo humano.”5

Contudo, nas Meditações, a união de fato entre corpo e alma se dará

quase no final da sexta meditação, quando Descartes, após mencionar que os

nossos desejos e apetites, por exemplo, a fome, a sede, etc. “nada são exceto

maneiras confusas de pensar que provêm e dependem da união e como que

da mistura entre espírito e corpo”6.

2 Ibidem: p. 131.3 Ibidem: p, 134.4 A respeito deste assunto o que garante a união de fato da alma e do corpo, como das outrasdemais verdades é Deus. Lebrun afirma que “É o elemento essencial da prova da distinção:Deus não pode deixar de fazer o que eu concebo clara e distintamente. Só este princípio bastapara invalidar todas as conclusões derivadas da união de fato entre a alma e o corpo.” (LEBRUN, G. In: Descartes.p. 134. nota 164.).5 Descartes. Principia. II, art. 2. In: Gaukroger, p. 157.6 Descartes. Meditações. P. 136.

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Gustavo Piovezan 286

III – A fisiologia de Descartes no Tratado do Homem

Segundo Descartes, então, somos este composto de corpo e alma, o

corpo sem a alma seria apenas uma máquina funcionando para alguma

determinada função:

Vemos os relógios, as fontes artificiais, os moinhos e outras máquinas semelhantes,que, sendo feitas só pelos homens, não deixam de ter a força de se mover por simesmas de diversas maneiras; e eu não poderia imaginar tantas espécies demovimentos que supondo sejam feitos pelas mãos de Deus, nem lhe atribuir tantoartifícios que não se possa imaginar que essa máquina não os possua ainda.7

Ora, assim como o homem produz máquinas diversas, os relógios,

moinhos, etc., e estas, por sua vez, devido às suas estruturas, funcionam

sozinhas, Deus, também, "produziu", ou melhor, criou o homem, ainda que

tenha dado a ele uma alma que possui a capacidade de sentir e de pensar,

entre tantas outras. No entanto, se Deus não tivesse dado ao homem a alma,

como mencionamos acima, o seu corpo funcionaria apenas mecanicamente.

E desenvolvendo este tema, do homem como máquina, o autor falará,

primeiramente, de que maneira se dá nessa máquina o processo digestivo, em

seguida o respiratório e, por último, o circulatório e, é neste último processo

fisiológico onde situa-se a teoria dos espíritos animais, imprescindível para a

compreensão do surgimento das paixões. Primeiramente, tem-se o corpo e o

coração, onde em sua concavidade direita há um fogo8, que sem luz, infla e

dilata o sangue que aí, necessariamente, tem de passar9. Passando pelo

coração, este sangue segue para o pulmão e o restante do corpo. Contudo, no

pulmão, que refrescado pelo ar recebido do meio externo, através da

respiração, o sangue condensa-se novamente para retornar ao coração, depois

de passar pelo restante do corpo e órgãos, e, o processo da circulação

sangüínea recomeçar.

7 Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem.8 O diferencial entre os homens e animais é a alma, pois o fator caracterizador da vida, tantonos homens, bem como nos animais, é este fogo que produz calor e, no entanto, não possuiluz.9 Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem. p.143.

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Sobre a importância do objeto em Descartes 287

Este sangue que faz uma "circulação perpétua"10 em nosso corpo é

composto por algumas partes, e estas partes, Descartes dirá que vão ter ao

baço, à vesícula biliar, às artérias, estômago, intestino, etc.

E, em todos estes lugares, é somente a situação, a configuração e a pequenez dosporos por onde elas [as partículas do sangue] passam que faz que umas passemantes do que as outras e que o resto do sangue não as possa seguir (...) Mas o que énecessário observar principalmente, aqui, é que todas as partes mais vivas, maisfortes e mais sutis deste sangue vão ter às cavidades do cérebro (...)11

Na passagem supracitada tem-se, de uma forma ainda implícita, sobre a

teoria dos espíritos animais, que é fundamental para o desenvolvimento e

realização das paixões em nós. Tanto que tal teoria é retomada nas Paixões da

Alma, no I capítulo, para depois, a partir do II Descartes começar a discussão

sobre as paixões em geral.

Rotuschuh, ao comentar sobre, esboça uma breve explicação desta

teoria cartesiana sobre os spiritus animalis cotejando-a com a tradição antiga:

A tradição antiga desde Galeno, falava de "spiritus naturalis", formados no fígado,que, no coração, tornam-se "spiritus animalis", cuja a característica é a leveza e afineza de sua estrutura. Fernel explica o espirito vital como "corpus aetherum calorisfacultatem sedes viniculum", o espirito vital "in aeris prope mutantur"e o espiritonatural como "vaporis speciem animalem" (Universia Medicin, Phisiologia, liber IV).Descartes prefere somente usar os espíritos animais que não são produzidos nocérebro mas sim comprimidos nos poros dos vasos sangüíneos. São de naturezamaterial, móveis e semelhantes a uma chama. Por causa de sua natureza corpóreanão podem ser considerados intermediários entre corpo e alma.12

No Tratado do homem, esta teoria desenvolve-se da seguinte forma:

temos no cérebro a glândula pineal que é envolta por minúsculos vasos

sangüíneos onde não passam as partes "mais volumosas" do sangue, uma vez

que tais partes podem perder a sua agitação. Mas, passam, somente, aquelas

partes que são como que "um certo vento muito sutil, ou, antes, uma chama

10 Ibidem., p. 146. Rotschuh afirma que Descartes conhecia a teoria de Harvey sobre acirculação sanguínea e seguia tal teoria por ela encaixar-se em seu sistema, contudo, segundoa carta a Mersene, Descartes só teria lido sobre tal teoria após já escrita a obra do Tratado dohomem. O que seria diferenciado na teoria cartesiana com relação à de Harvey é o papelpassivo do coração que move-se em conseqüência do sangue esquentado. Posto que “naverdade o coração movimenta-se na sístole e impulsiona, de maneira ativa, o sangue”(Rotschuh., apud. Marques, J., p. 144).11 Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem., p.147.12 Rotschuh., apud. Marques, J., p. 147.

Page 289: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Gustavo Piovezan 288

muito viva e muito pura, que é chamada de espíritos animais"13, estes espíritos

animais por serem muitos sutis e puros não perdem a sua agitação, diferindo,

assim, daquelas partes mais volumosas.

E, enfim, quando houver alma racional nesta máquina [o corpo humano], ela terá asua sede principal no cérebro e será nela como que o encarregado da fonte, quedeve estar nas aberturas onde vão ter todos os tubos dessa máquina, quando quiserexercitar, impedir ou mudar de algum modo seus movimentos.14

IV – A teoria das paixões:

Sendo a existência de Deus uma verdade clara e distinta e que, desta

verdade podemos conceber as outras demais verdades é estabelecido que há

uma união entre alma e corpo, como demonstramos mais acima. Todavia,

desta união resulta um problema: a alma sem o corpo vive, mas vive pelo fato

de ser imortal enquanto criada por Deus para essa infinitude, já o corpo não

vive sem a alma porque “é apenas uma coisa extensa e que não pensa”, ou

seja, uma máquina como os demais animais, que assim o são considerados

por não possuírem alma15.

E, esta alma sendo racional, na medida que se relaciona com os objetos

que lhe são apresentados pode, devido ao movimento dos espíritos animais na

glândula pineal, despertar em nós uma ou outra determinada paixão16:

Mas isso não é suficiente para podermos diferenciá-las umas das outras [as paixões],é necessário procurar suas fontes e analisar suas primeiras causas, mas, ainda quepossam algumas vezes ser causadas pelas ações da alma, que se determina aconceber estes ou aqueles objetos, e também pelo exclusivo temperamento do corpoou pelas impressões que se encontram acidentalmente no cérebro (...)17

Ernesto Faria traz em seu Dicionário Escolar Latino Português o

significado do termo objeto, que advindo do latim, obiectus, significa: (1º) ação

13 Descartes, Tratado do homem. In: Marques, J., Descartes e sua concepção de homem., p.148.14 Ibidem., p. 150.15 Conferir acima a nota nº 8.16 O corpo por si só, ou seja, sem a presença de uma alma, não pode ser afetado por algumapaixão, porque, como dissemos, ele é “apenas uma coisa extensa e que não pensa”, logo, oque determina o afetar de alguma paixão em nós é a racionalidade que a alma possui, mas ficaclaro que o corpo está unido à alma e, é desta união que também surgem as paixões: a almasofre com as paixões e estas se dão por um processo fisiológico que acontece no corpo (omovimento dos espíritos animais).

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Sobre a importância do objeto em Descartes 289

de pôr adiante, barreiras, obstáculo. (2º) objeto [algo] que se oferece à vista de

alguém, espetáculo18.

Dentre essas duas concepções trazidas pelo dicionário, ambas podem

ser aplicadas ao estudo das Paixões da Alma de Descartes, e procuramos

ressaltar o termo obiectus, pelo fato de que ele parece ter uma grande

importância dentro dessa obra de Descartes, no tocante a como se dão as

paixões em nós. Pois um obstáculo, uma barreira, [1ª definição] que se oferece

aos nossos olhares independentemente se ele seja algo material, como, por

exemplo, a escada de um edifício a qual temos de subir para chegar aos

apartamentos, ou algo imaterial, como Deus19. Tanto um quanto outro objeto,

material como imaterial, são apresentados a nós como espetáculos [2ª

definição], não no sentido contemplativo que o termo pode oferecer, mas, no

sentido de chamar a nossa atenção àquele objeto com o qual estabelecemos

uma relação.

A partir disso, podemos, também, lançar a noção de objeto em

Descartes, que não seria outra coisa senão tudo, ou melhor, todas as coisas

que afetam a alma, produzindo nela esta ou aquela paixão. Estas definições

que admitir do dicionário, fez com que tornasse mais óbvia a noção cartesiana

a respeito do objeto. Ora, uma “barreira, um obstáculo, algo que se oferece à

visão ou, ainda, um espetáculo” são coisas que, cartesianamente falando,

afetam a nossa alma.

Esta relação primeira que estabelecemos com o objeto, simplesmente o

fato de vê-lo, já é uma determinada paixão, a primeira de todas as outras,

chamada de admiração. É a primeira, pelo fato de que quando alguém entra

em contato com algum objeto, esta pessoa não pode, por exemplo, amá-la ou

odiá-la sem antes admirá-la, é como que automático, ao estabelecer uma

17 Descartes, Paixões da Alma. Art. 51.18 FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino Português/Ernesto Faria, revisão de RuthJunqueira de Faria. Brasília: FAE, 1994. P. 367.19 Deus se oferece ao olhar não no sentido literal da expressão, até mesmo porque ele é umser que não possui corpo, e, por isso, não pode ser oferecido aos nossos olhares, mas, sim,enquanto um objeto o qual se estabelece uma relação, por exemplo, um monge, Deus, nafigura de um monge, é o principal objeto de sua busca e relacionamento; nesse sentido, então,ele é oferecido aos nossos olhares, como um objeto.

Page 291: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Gustavo Piovezan 290

relação com um objeto, e este, devido à sua raridade, provocar a admiração,

afetando, deste modo, a alma.

Vimos como os espíritos animais são descritos dentro do Tratado do

homem, tais espíritos20, também, são mencionados no I livro das Paixões,

ainda que de uma forma mais simples, para as pessoas que não leram a sua

obra a respeito da fisiologia do corpo humano não encontrem dificuldades de

compreensão acerca do assunto em questão e, novamente explica, que,

quando o sangue sai do coração vai diretamente ao cérebro, e dentro deste

sangue, existem partes mais vivas e delicadas, no entanto, ao direcionarem-se

ao cérebro por serem as veias deste em demasia pequenas o sangue não

consegue adentrar em sua totalidade, por isso somente aquelas partes

minúsculas, ou “aqueles elementos mais agitados e tênues”21 lá penetram,

estas partes como sabemos são os espíritos animais.

Afora isso, dirá ainda, dentro da primeira parte, que as funções da alma

são os nossos pensamentos, que podem dar-se de duas formas: a primeira é

através das ações da alma e a segunda é através de suas paixões 22, as ações

da alma provêm de sua vontade, mas as paixões provêm dos objetos que

estão fora de nós, no mundo exterior. Descartes define-as:

(...) julgo que podemos em geral defini-las por [1ª] percepções, ou sentimentos, ouemoções da alma, [2ª] que atribuímos particularmente a ela, e que são provocados,sustentados e fortalecidos por algum movimento dos espíritos.23

20 No corpo humano temos: os órgãos, os músculos, os membros, etc. Sabemos, hoje em dia,que a interação dos músculos com os ossos constitui o sistema motor, no entanto são osmúsculos a principal causa do movimento de nossos membros. Para Descartes, o quechamamos de movimentos de contração e relaxamento dos músculos se dão por causa dosespíritos animais, que circulando em nosso sangue através das artérias e veias chegam aocérebro, onde as veias vão cada vez mais se estreitando até o ponto de somente passaremestes espíritos animais e quando chegam à glândula pineal, onde se situa a sede da alma,partem para os músculos ou os nervos devido ao comando da glândula, de modo que causamo inflar (contrair) do músculo, por exemplo, quando contraímos o nosso bíceps os espíritosanimais de uma tamanha rapidez saem do cérebro e do restante do corpo onde estão inflandoo músculo, o mesmo acontece com uma queimadura, quando colocamos a mão sobre o fogo,os espíritos, da mesma forma com que acontece com os músculos, saem do cérebro e dorestante do corpo fazendo-nos sentir a sensação do queimar. A este último processo, o dofogo, podemos perceber uma grande semelhança aos processos de transmissãoneurofisiológicas.21 Descartes, Paixões da Alma. Art. 10.22 Idem. Art. 17.23 Idem. Art. 27.

Page 292: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Sobre a importância do objeto em Descartes 291

Percepções no sentido de não serem constituídas de ações ou vontades

da alma; sentimentos, por causa da relação dos objetos com os sentidos e

emoções pelo fato de que, “de todas as espécies de pensamentos que ela

pode ter, não existem outras que a agitem e a abalem com tanta violência

quanto essas paixões”24. Descartes diz que são atribuídas a ela (a alma)

porque a alma é diferente de todos os objetos e coisas que existem.

É interessante, da mesma forma, notarmos o que diz Guenacia a

respeito de como se dá a definição das paixões:

(...) a questão da natureza ou da origem das paixões não é a principal aos olhos deDescartes, e que a única e a verdadeira resposta a uma paixão da alma (que é umaação do corpo) é uma ação da alma (e logo uma “paixão” do corpo, se assimpodemos dizer, pois para “padecer” é preciso ser consciente). As ações da alma sãosuas vontades. Mas uma vontade não poderia se opor ao involuntário, como são osmovimentos corporais.25

Descartes estabelece que a alma não tem, ou melhor, não é constituída

de matéria, ela está intimamente ligada ao corpo, todavia, se por acaso ocorrer

de perdermos um braço ou uma perna não perderíamos uma parte da alma.

Sendo a alma unida ao corpo, deve haver alguma parte na qual uma reação do

organismo causa em nós os diferentes sentimentos. O autor dirá que esta parte

do organismo é uma glândula que está situada bem no meio do cérebro, a

glândula pineal, porque é nela que estão reunidos os demais comandos das

atividades do corpo.

Descartes cria de tal maneira que essa era a sede das paixões a ponto

de dizer que aí é o lugar da alma e, deste lugar ela “ilumina” todo o restante do

corpo com suas paixões através da impressão dos objetos na tal glândula, que

gerará em nós alguma reação sentimental.

A grande dificuldade está em que a alma pode produzir sentimentos os

quais nós muitas vezes não desejamos e é aí que entra o papel fundamental

da vontade, pois, por exemplo, se obtemos um sentimento de alegria ao ver

uma pessoa que estava longe de nós há muito tempo e tal pessoa nos é muito

querida, é obvio que não queiramos tão rapidamente sair de sua companhia

sem satisfazer antes a nossa de saudade.

24 Idem. Art. 27.25 Guenancia, P., p. 118.

Page 293: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Gustavo Piovezan 292

Essa saudade descrita no exemplo acima é determinada senão apenas

pela vontade, pois é esta que nos faz desejar a presença da pessoa que

sentíamos saudade. Todavia, a vontade não pode ser coagida, por isso

somente as ações da alma estão sob sua regência, já as paixões não.

Feito uma breve exposição do que é a glândula, quando movida pelos

espíritos animais produz em nós alguma paixão, e, também, no que consistem

estes espíritos animais, partiremos agora para uma lista das paixões e no que

cada uma delas constituem.

Descartes enumera quarenta tipos de paixões, a saber: a admiração, a

estima, o desespero, a generosidade, o orgulho, a humildade, a torpeza, a

veneração, o desdém, o amor, o ódio, o desejo, a esperança, o temor, o ciúme,

a segurança, o desespero, a indecisão, a coragem, a ousadia, a emulação, a

covardia, o pavor, o remorso, a alegria, a tristeza, a zombaria, a inveja, a

piedade, a satisfação, o arrependimento, o favor, o reconhecimento, a

indignação, a cólera, a gloria, a vergonha, o fastio, o pesar e a alegria.

Feita a enumeração, Descartes, dirá que ela difere das existentes até

então porque os que vieram antes dele em suas enumerações não abrangiam

todas as paixões como a enumeração. No mais, fica estabelecido que seis são

as paixões primitivas, as outras demais ou derivam destas ou são suas

espécies, elas são: (1ª) a admiração, (2ª) o amor, (3ª) o ódio, (4ª) o desejo, (5ª)

a alegria e (6ª) a tristeza.

(1ª) A admiração, como dito anteriormente é obtido através do contato

que se obtém com algum objeto, esta paixão não provoca nenhuma mudança

no corpo, pois só tem a finalidade do conhecimento do objeto com que está em

contato. E,quando a alma está ‘possuída’ por essa paixão de uma forma

excessiva tem-se já, não mais esta paixão e, sim, uma outra, o espanto.

O motivo é que pelo fato de não ter nem o bem nem o mal por objeto, mas apenas oconhecimento da coisa que é admirada, ela não se relaciona ao coração e ao sangue,dos quais depende todo o corpo, mas somente ao cérebro, onde se localizam osórgãos dos sentidos que auxiliam nesse conhecimento.26

(2ª e 3ª) O amor assim como o ódio, provêm do modo com que nos

relacionamos com os objetos: se os desejamos a nós, temos o amor que pode

Page 294: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Sobre a importância do objeto em Descartes 293

ser de dois modo: o amor de benevolência e o de concupiscência, por exemplo,

quando nos apaixonamos, e nossa paixão é correspondida, temos o anseio de

ver tal pessoa, que nesse caso representa o objeto com o qual estamos

estabelecendo uma relação, pela qual o sentimento da paixão está florescendo,

esta forma de amor é a de concupiscência por causa de querermos ela (a

pessoa) conosco, a forma da benevolência também pode ser dada neste

exemplo, mas quando se deseja apenas o bem à pessoa amada; já, se

repelimos o objeto, temos o ódio, a aversão, por exemplo, o que algumas

pessoas sentem ao experimentarem o jiló [objeto] pode vir a ser uma forma de

ódio.

(4ª) O desejo é a sensação que temos ao querer possuir algo (um

objeto) o qual nos parece bom e proporciona-nos algum benefício, podemos

utilizar o exemplo da paixão, quando nos apaixonamos, a pessoa pela qual

estamos apaixonados, se não nos corresponde, faz como que os espíritosamimais movam-se em nossa glândula pineal provocando em nós o

sentimento do desejo.

(5ª e 6ª) A alegria é produzida na alma quando está em contato com

algum objeto que lhe traga a sensação de bem. Todavia, Descartes, deixa claro

que esta alegria só é paixão quando não é produzida intelectualmente, através

da própria alma, mas, sim com relação a algo fora dela, por exemplo, o

sentimento obtido por meio da relação com algum objeto que sentíamos o

desejo de nos apropriar, pode provocar em nós ou a alegria ou o amor, esta

alegria que pode ser produzida em nós é a alegria como paixão, a alegria

intelectual diz Descartes,

“Chega à alma pela própria ação da alma, e que se pode considerar uma agradávelemoção excitada em si própria, na qual consiste o gozo que ela frui do bem que seuentendimento lhe representa como seu. É verdade que quando a alma está unida aocorpo, essa alegria intelectual não pode deixar de acompanhar a outra, que é umapaixão; pois, tão logo o nosso entendimento percebe que possuímos algum bem”27

Ou seja, mesmo sendo uma alegria intelectual, o fato de estarmos

unidos à nossa alma, faz com que essa alegria intelectual produza em nós a

26 Descartes, Paixões da Alma. Art. 71.27 Ibidem: 91.

Page 295: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Gustavo Piovezan 294

alegria enquanto paixão; já a tristeza é produzida quando a alma se encontra

indisposta e recebe algo mal, por exemplo: quando entramos em contato com

um objeto e o admiramos, essa admiração pode acarretar em nós a tristeza

caso a alma encontre-se indisposta, e também, se intelectualmente nos

sentimos tristes essa tristeza intelectual, pode, do mesmo modo como a alegria

intelectual gera a alegria como paixão, gerar em nós a tristeza como paixão.

V – Conclusão.

E desta forma, se dão a enumeração e a ordem das paixões em

Descartes, seis são as paixões primitivas, todas as outras só o são em função

destas, ou como derivação ou, como a forma com que os espíritos animais se

movem na glândula pineal, provocando uma ou outra paixão. Mas, qualquer

que seja a paixão gerada em nós, elas só podem ser geradas devido aos

objetos que nos são apresentados, pois somente através do contato com tais

objetos é que sentimos ou deixamos de sentir algo.

Bibliografia

DESCARTES, René. As Paixões da Alma. Introdução de Giles-GastonGranger, prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinrburge Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1993.

DESCARTES, René. Meditações. Introdução de Giles-Gaston Granger,prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução de J. Guinrburg e BentoPrado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1993.

DESCARTES, René. O Tratado do Homem. In: Marques, Jordino.Descartes e sua concepção de homem. São Paulo: Loyola, 1993.

GUENANCIA, Pierre. Descartes. Tradução de Lucy Magalhães. Rio deJaneiro, Jorge Zahar Editor, 1991.

GAUKROGER, Stephen. Descartes uma Biografia Intelectual.traduçãode Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 1999.

FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino Português/Ernesto Faria,revisão de Ruth Junqueira de Faria. Brasília: FAE, 1994.

Page 296: Anaiais Encontro Filosofia Parana

EIXO TEMÁTICO 3:CIÊNCIA: CRITÉRIOS E VALORES;

PÓS-MODERNISMO NA CIÊNCIA

Page 297: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Complejo de valores, cambio social y estrategia cognitiva: lapropuesta de Hugh Lacey revisada

Fernando Tula MolinaUNQ – CONICET (Argentina.)

En este trabajo quiero destacar la importancia de las reflexiones de

Hugh Lacey sobre la discusión sobre la neutralidad valorativa de la ciencia, y al

mismo tiempo poner en evidencia los puntos débiles de su propuesta.

La obra de Lacey (p.e. Is Science Value Free?, 1999) ha enriquecido la

discusión vinculada a la presencia y efectos de los valores en la ciencia gracias

a la introducción de distinciones significativas y relevantes. Tal es el caso de la

distinción entre valores personales y sociales. En los primeros el componente

de deseo personal y el componente de creencia están ligado a la identidad

personal y al objetivo de desarrollar una vida plena. En sus diversos modos

pueden estar presentes en la conciencia, articulados en palabras, pero

fundamentalmente manifestados en el comportamiento (pp. 23-24). Para lograr

credibilidad no debe haber una brecha muy grande entre las predicciones que

podemos inferir a partir de la articulación en palabras, y los valores

manifestados en la práctica (p.25). Los cinco modos de reestablecer el

equilibrio son ajuste, resignación, creatividad marginal, búsqueda de poder y

transformación desde abajo. Nos son excluyentes pero reflejan lo que la

persona es y cuáles son sus valores más fundamentales (p. 39).

Los valores personales pueden lograr institucionalizarse en instituciones

sociales, convirtiéndose en valores sociales. Estos últimos, en la medida que

adquieren peso legal o son altamente aceptados en la sociedad, limitan los

valores personales. Lo que puede ser articulado en palabras es una función de

los recursos lingüísticos disponibles en la sociedad, los que reflejan en cierta

medida las condiciones de bienestar que son dominantes y se refuerzan en la

sociedad (p. 26). Estos también tienen diversos modos. Pueden encontrarse

manifestados en programas, leyes y políticas sociales, como expresados en las

prácticas cuyas condiciones provee y refuerza (p.28). Es importante tener en

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 298: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Complejo de valores, cambio social y estrategia cognitiva 297

cuenta que toda brecha entre articulación y manifestación de los valores

sociales, será interpretado de modo diferente por los diferentes grupos, dando

lugar a los diferentes discursos políticos (p. 28).

También es relevante la distinción entre valores (considerados

aisladamente) y los complejos de valores (el total de los valores mantenidos de

modo simultáneo por personas o instituciones) con relación a ciertos supuestos

sobre la naturaleza humana, lo que constituye el bienestar y las

potencialidades del hombre – en principio, todos sujetos a escrutinio empírico

(p. 43) - que le permiten defender ciertos objetivos (vinculados al yo o a la

sociedad) como valiosos (p. 40), y dignos de esfuerzo para concretar su

manifestación plena. Finalmente, también es preciso notar que no todos los

complejos de valores son viables, por lo que es necesario distinguir aquellos

que lo son de aquellos que no.

Pero aún más fundamental, para la comprensión de la práctica científica

y del abordaje propuesto por Lacey, es la distinción entre valores sociales y

valores cognitivos. Cuando aquello que es valorado es una creencia o una

teoría, estamos en presencia de valores cognitivos (p. 45). Una creencia es una

actitud proposicional que, junto con deseos, intenciones y objetivos, pueden

tener un papel causal en la generación de acciones. Una creencia es

verdadera, si su contenido proposicional es verdadero, por lo que su evaluación

crítica es idéntica a un abordaje cognitivo sobre ella (p. 46). Cuando estas

creencias se consolidan se convierten en conocimiento. De todos modos, no

siempre es racional actuar de acuerdo a las mejores creencias disponibles,

dado que nuestros objetivos deben adecuarse primeramente a nuestros

valores. La evaluación de las creencias, pertinentes para la planificación de la

acción dependen tanto del ideal de verdad, como de su relevancia, i.e. ser

apropiados para orientar acciones tendientes a obtener nuestros objetivos (p.

48) (debe ser consistente con el conocimiento científico).

El desacuerdo entre las creencias puede deberse a diferentes factores:

a) los diferentes orígenes que las causan (social, psicológico, experiencial), b)

la defensa de diferentes valores cognitivos, 3) el compromiso con diferentes

prácticas de obtención de creencias (p. 52). Ante tal desacuerdo, la posibilidad

de la tesis de la neutralidad valorativa de la ciencia depende de que las teorías

Page 299: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Fernando Tula Molina 298

científicas puedan ser propiamente evaluadas (en tanto que teorías científicas)

(p. 55). Para tal fin, Lacey hace otra distinción de interés al separar reglas de

valores. Lacey asocia la evaluación a través de reglas al proyecto

metodologista de procurar la objetividad a través de la aplicación de un

conjunto finito de pasos formales (cuyo caso ideal se cumpliría en la

matemática), y – salvo el falsacionismo - al objetivo central de una alta

confirmación. Este proyecto enfrenta dos dificultades principales; la primera

referida al escaso acuerdo sobre la naturaleza de las reglas (inductivas,

deductivas, hipotético deductivas, probabilísticamente formalizadas) y la

segunda vinculada al escaso desarrollo de la teoría de la confirmación. Ante

tales dificultades su estrategia apuesta a defender la imparcialidad de la ciencia

en función de la evaluación de los valores cognitivos que éstas manifiestan (p.

57). Estos valores cognitivos serán: adecuación empírica, poder explicativo y

de unificación, posibilidad de encapsular posibilidades, consonancia,

conectividad y holismo respecto de otras teorías, solución de problemas,

simplicidad, entre otros (pp. 58-60).

Es posible estimar el grado de manifestación de tales valores a través de

criterios generales y criterios vinculados con la adecuación empírica. Entre los

últimos (E) encontramos: representatividad, pertenencia a fenómenos

característicos del dominio de explicación, relevancia para confrontar

críticamente teorías alternativas y confiabilidad (por el rigor de los métodos

utilizados en su obtención). Entre los generales encontramos: testabilidad

comparativa, comprensividad comparativa, fuerza local comparativa,

comparabilidad con las teorías mejor establecidas, capacidad de respuesta a

las críticas (pp. 62-66).

De modo más general, su análisis divide el problema de la neutralidad

valorativa en tres subtesis vinculadas a la imparcialidad (juicios basados

exclusivamente en valores cognitivos), neutralidad (consistente con todo juicio

de valor, sin consecuencias valorativas y no tendenciosa) y autonomía (el

objetivo propio de la ciencia es procurar teorías imparciales y neutrales, sin

interferencia exterior) (cap. 4)

Si bien hay al menos cuatro tipos diferentes de consideraciones

relevantes para determinar si el criterio utilizado está asociado a valores

Page 300: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Complejo de valores, cambio social y estrategia cognitiva 299

cognitivos (i.e. a partir de teorías generales del conocimiento, de

consideraciones de epistemología genética y evolutiva, de su posibilidad o

imposibilidad y referidas a si sirve o no a los objetivos de la ciencia), Lacey se

concentra exclusivamente en la consideración referidas as los objetivos de la

ciencia (p. 93)

Estas distinciones, vinculadas con el aspecto más análitico de su trabajo,

en pos de una mayor precisión conceptual, se vinculan con distinciones de

mayor peso relacionadas con su propio posicionamiento frente al problema y a

las soluciones posibles. Ejemplo de ello es su distinción entre dos modos

diferentes de comprensión: la comprensión amplia (basada en el

reconocimiento de objetos y sistemas compatibles con sus principios y leyes –

así como de las condiciones particulares que dan cuenta de las diferencias) y la

comprensión plena (que busca la comprensión del objeto o sistema en sus

múltiples aspectos y niveles tanto hacia lo más general como hacia lo más

particular). Esta distinción ya afecta al tipo de estrategia que debe seguir la

investigación científica.

Según Lacey a partir de las obras de Fracis Bacon y Galileo Galilei se

impuso una estrategia de conocimiento que denomina materialista (en general

cuantitativa y matemática, aplicada a partir de mediciones, intervención

instrumental y operaciones experimentales). En su opinión, a partir de allí ese

fue el modo privilegiado de investigación científica. Y dado que la estrategia

materialista es compatible con el carácter homogeneizante de la comprensión

amplia y no con el carácter multifacético de la comprensión plena, se ha

argumentado frecuentemente que esta última nada tiene que ver con los

objetivos de la investigación científica sistemática. Ante tal argumento, la

respuesta de Lacey es que existen estrategias alternativas (a la materialista)

que pueden guiar la actividad científica.

Este último punto es importante porque se vincula directamente con la

discusión sobre cuáles son los objetivos de la ciencia. Cada estrategia

involucra un valor constitutivo que regulará los criterios aceptables de

aceptación de teorías y, consecuentemente, tanto las teorías aceptables y la

elección final entre ellas. La estrategia materialista se preocupará sólo por

explorar las posibilidades materiales de los objetos y sistemas, dejando de lado

Page 301: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Fernando Tula Molina 300

sus restantes dimensiones. La propia idea de avance científico estará asociada

a ir agotando (o actualizando) al máximo tales posibilidades, y las mejores

teorías serán las que encapsulen y permitan el abordaje a un número mayor de

las posibilidades materiales de los objetos y sistemas. Dentro del planteo de

Lacey, es en este punto donde la discusión sobre los valores cobra su mayor

importancia, porque sólo un cambio de los valores que constituyen la estrategia

materialista, pueden conducir a que el interés y el objetivo de la ciencia esté

puesto en explotar otra clase de posibilidades.

De todos modos, un cambio de este tipo no es en ningún caso sencillo,

dado que cada estrategia se encuentra en una relación dialéctica de mutuo

refuerzo con un conjunto particular de valores sociales, por lo que las

condiciones de realizabilidad de las posibilidades, indentificadas bajo una

determinada estrategia, incluye estructuras sociales (institucionales) que se

identifican con tales valores. En el caso de la estrategia materialista, el valor

con el que interactúa (y que, a su vez, la refuerza), es el valor de control de la

naturaleza, que habría comenzado – según Lacey – con la ciencia baconiana y

galileana.

En mi opinión, este es el primer punto que debe ser discutido y revisado,

dado que el tratamiento histórico que hace Lacey del núcleo central de la obra

de Bacon y de Galileo, es absolutamente insuficiente, esquemático y

completamente funcional a sus tesis. Para resaltar el contraste, opone el valor

de control de la naturaleza con el de armonía con el todo, que a su juicio sería

el valor dominante en la Edad Media. Esta exageración no sólo borra de un

plumazo la ciencia renacentista, sino que supone una idea lineal de progreso,

donde los tiempos previos a la Edad Media, estarían todavía más alejados del

valor moderno de control, por lo que no merecen consideración alguna. Nada

más lejos de la realidad histórica en el caso de la medicina del Corpus

Hipocrático, toda la obra científica de Aristóteles, la astronomía alejandría y

musulmana, la ingeniería romana, sólo por citar algunos ejemplos. En todos

esos casos el valor de control de la naturaleza fue central para garantizar la

eficacia, y objetivo central de la investigación sistemática de la naturaleza.

De todos modos, no es mi intención que esta crítica al aspecto histórico

de su propuesta quite mérito a la reflexión filosófica sobre el problema de los

Page 302: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Complejo de valores, cambio social y estrategia cognitiva 301

valores en la ciencia. A mi juicio, el aspecto más interesante de la propuesta de

Lacey, y por lo cual creo que merece una consideración y reflexión detenida, es

la idea de posibilidades perdidas (lost possibilities). Mientras la ciencia se

mantenga dentro de una estrategia materialista, serán únicamente las

posibilidades materiales de los objetos y sistemas que motivarán la curiosidad

científica, y las capacidades de implementación tecnológica. Creo que este es

de algún modo un avance ciego, guiado más por objetos que por objetivos, por

meras posibilidades que por posibilidades vinculadas a valores. El punto central

es que las posibilidades que deben investigarse en primer término son aquellas

que sean relevantes para la realización de nuestros valores.

El capítulo dedicado a los movimientos populares es plenamente

ilustrativo de este punto. En lugar de preguntar “¿cómo maximizar la

producción bajo condiciones materiales optimas?” La pregunta es “¿cómo

puedo producir de tal modo que las personas de cierta región tengan acceso a

una dieta bien balanceada en un contexto que aumente la participación local y

sustente el medio ambiente?” Esta segunda pregunta no presupone que las

problemas del orden social se subordinan a la implementación de nuevos

controles; no considera a la biología, ecología y sociología separadamente. Se

pregunta: ¿cuáles son las condiciones socio-económicas y los efectos sociales

de la producción agrícola? ¿quién controla tal producción? ¿qué uso se hace

de ella? ¿cómo se distribuye? ¿cómo afectan las condiciones socio-

económicas de producción a las de la distribución, y viceversa? ¿cuáles son los

efectos sobre la salud y la ecología? La investigación sobre la producción no se

hace solamente en función de variables materialistas más generales, sino

también de las variables sociales dentro de las cuales las materiales son en sí

mismas una función.

Este abordaje presta atención a lo local y lo particular. Concuerdo con

Lacey cuando agrega: “Este es el tipo las cosas que debemos investigar si

aspiramos a dar nueva forma al mundo de la vida y experiencia cotidiana de

modo que el control debe de ser el valor hegemónico, sino contenido por la

existencias de valores iluminados por el desarrollo auténtico.” En mi opinión

esta discusión debe considerar como contexto epistemológico lo que en algún

momento se denominó contexto de implicación: ¿qué implica lo que estoy

Page 303: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Fernando Tula Molina 302

haciendo (investigando) para los demás, el medio ambiente y las generaciones

futuras?

Desde el punto de vista epistemológico, un punto que en mi opinión

perjudica la propuesta de Lacey es el hecho de arrastrar el problema de la

inconmensurabilidad, lo cual queda en plena evidencia en el capítulo dedicado

a Kuhn. Es esta perspectiva la que lo conduce a esquematizar las estrategias

en la forma A vs. B y a sostener, que para que pueda darse un cambio de

estrategias debe darse previamente un cambio social, que a su vez posibilite

un cambio de valores y de rumbo para la actividad científica. A mi juicio, el

aspecto central y más rico de su perspectiva se beneficiaría de desligarse

definitivamente de tratar de solucionar, al mismo tiempo, el viejo problema de la

inconmensurabilidad.

Es muy ambigua la noción de mundo social en su propuesta y en

general está asociada a los aspectos que cobran significado y relevancia en el

mundo cotidiano. En mi opinión, la propuesta de Lacey requiere mayor detalle

en cuanto a qué quiere decir con “cambio de estrategia”. Si con ello quiere

decir que se produzca un cambio efectivo, sin ninguna duda que previamente

deben mudarse los objetivos de las instituciones y sus relaciones con el resto

del cuerpo social. Sin embargo, creo que el cambio efectivo sólo puede ser

consecuencia del cambio teórico, de la discusión reflexiva y crítica sobre dónde

deben invertirse los enormes recursos materiales e intelectuales relacionados

con la actividad científica; y, por supuesto, sobre cuáles son los mejores

medios de alcanzar tales objetivos.

Sea como fuere, la propuesta de Lacey mantiene el mérito de señalar

que debemos discutir al mismo tiempo el problema de los valores cognitivos

con el de los valors culturales. Y ello sin caer en relativismo de ninguna índole

dado que, “sin importar la estrategia utilizada, las afirmaciones de conocimiento

deben estar basadas en virtud de cuán bien manifiestan valores cognitivos; no

sólo en virtud de su potencial significado para el complejo de valores adoptado.

Page 304: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Sentenças protocolares e a construção de um sistemacientífico.

Gelson ListonDepartamento de Filosofia /UEL

Resumo: O presente trabalho visa apenas apresentar uma proposta dediscussão sobre o debate entorno das sentenças protocolares ocorrido nadécada de 30 entre os principais integrantes do Círculo de Viena, a saber,Neurath, Carnap e Schlick.

Assim como Carnap, Neurath procura estabelecer os fundamentos da

ciência unificada por meio de uma linguagem unificada, a saber, a linguagem

fisicalista. Contudo, Neurath se distancia do fenomenalismo carnapiano

defendido no Aufbau, e sua tese fisicalista revisionista se apresenta como uma

crítica ao fundacionalismo advogado por Carnap. A posição de Neurath,

posteriormente aceita por Carnap, é de que a linguagem da ciência unificada,

devido ao progresso do conhecimento, se apresenta numa situação de

contínuo desenvolvimento.

A posição fisicalista de Neurath não é reducionista. Para ele o

importante é que a linguagem, na qual a ciência unificada é expressa, permita

fazer predições sobre qualquer tipo de evento que ocorre na natureza, sem,

contudo, ter de ser reduzida a algum tipo de nível de objetos, por exemplo à

objetos autopsicológicos ou físicos, como é o caso do sistema construcional

fenomenalista de Carnap. Tampouco Neurath se refere a objetos no sentido

carnapiano, pois o que realmente interessa, em seu modo de tratar a ciência

unificada, são as leis que possibilitam predizer algum tipo de fenômeno

cientificamente relevante. Apenas as predições devem ser redutíveis a

enunciados de observação. Se esses objetivos forem alcançados de forma

bem sucedida, então podemos afirmar que encontramos correlações funcionais

entre leis e fenômenos em estruturas no espaço e no tempo. A interpretação de

Neurath sobre as leis é instrumentalista, ou seja, leis são sistemas para se

fazer predições bem sucedidas.

O modo pelo qual Neurath pensa a unidade lingüística da ciência

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 305: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Gelson Liston 304

unificada sem reducionismo é sustentado pela idéia de que não é necessário, e

tampouco possível, a redução dos sistemas de leis a uma única linguagem tida

como ideal, no caso a linguagem física, mas que esta linguagem sirva para

fazer predições sobre qualquer evento da natureza. O que esses sistemas de

leis, de diversas áreas, têm em comum é uma espécie de jargão universal

[universal slang] que possibilita a comunicação, sem a necessidade de

tradução, mesmo que qualquer termo da linguagem ordinária fisicalista possa

ser substituído por termos da linguagem da ciência avançada e esta, por sua

vez possa ser formulada, ou explicada com o auxílio da outra. No jargão

universal não existe sentenças primitivas. Com isso, Neurath apresenta sua

posição em relação à linguagem fisicalista e aos fundamentos da ciência

unificada com a tese de que não há nada que possa gozar de uma posição

absoluta e conclusiva, pois qualquer enunciado, mesmo as sentenças

protocolares básicas, que são sentenças factuais como quaisquer outras, é

passível de revisão. Esta parece ser a mensagem de Neurath em sua famosa

metáfora do barco e evidencia sua oposição à postura de Carnap em relação

aos enunciados protocolares que, segundo este, não requerem verificação

(isso já em sua fase fisicalista).

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Page 306: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Racionalidade e incomensurabilidade científica: uma reflexãosobre o relativismo cognitivo

Robinson GuitarrariIBMEC-SP e UniFECAP

Resumo:O debate atual sobre a racionalidade científica tem envolvido umatomada de posição quanto ao relativismo epistemológico. Um dos focos dodebate consiste na superação do relativismo presente em pronunciamentosde Thomas Kuhn sobre a escolha científica. Procurando libertar-se de umrelativismo kuhniano nas justificações de escolhas científicas, Hilary Putname Larry Laudan apresentam estratégias bastante distintas. Putnam vêincoerências autodestrutivas em tal relativismo, especialmente por duasrazões: sua formulação seria auto-refutante e, quanto aos atributoscognitivos, essa posição não permitiria distinguir o homem de qualqueroutro ser. Laudan procurou desmistificar os efeitos que aincomensurabilidade kuhniana teria causado para uma visão deracionalidade dirigida por regras metodológicas e, além disso, buscoumostrar a falta de poder explicativo do relativismo decorrente dela. Opresente trabalho investiga se há razão para considerar que o relativismogerado pela incomensurabilidade kuhniana constitui uma ameaça àracionalidade científica.

Palavras-chave: Thomas Kuhn; incomensurabilidade; relativismoepistemológico; relativismo cognitivo; racionalidade científica; mudançacientífica.

No presente trabalho, procuro resumir os resultados das análises que

procedi em minha tese de doutorado (GUITARRARI, 2004) acerca das

conseqüências da defesa da incomensurabilidade entre paradigmas rivais para

a avaliação da racionalidade de uma escolha científica, à luz dos

pronunciamentos de Kuhn e das críticas que Putnam e que Laudan lhe

dirigiram.*

Concentro a análise no que Doppelt chamou de ‘incomensurabilidade

epistemológica’: a tese que afirma a existência de conjuntos rivais de

problemas, estratégias e padrões de avaliação compartilhados por parte

significativa da comunidade científica, mas que nega a existência de um

conjunto neutro de problemas, de estratégias e de padrões de avaliação ao

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 307: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Robinson Guitarrari 306

qual cada membro da comunidade científica poderia ter acesso em uma

situação de escolha.

Dentro desse quadro, procurei responder aos seguintes problemas: (i) a

incomensurabilidade epistemológica impede a formulação de juízos de

superioridade epistêmica de um paradigma em relação a outro? (ii) Se não

impede, é o caso de um juízo ser tão relevante quanto qualquer outro? (iii) E,

por fim, se não vale tudo, quais as limitações que a defesa da

incomensurabilidade epistemológica acarretaria?

Putnam vê incoerências autodestrutivas no relativismo kuhniano,

especialmente por duas razões: a sua formulação seria auto-refutante e,

quanto aos atributos cognitivos, essa posição implicaria a falência da

capacidade cognitiva humana, pois não preservaria qualquer noção objetiva de

correção, isto é, não haveria como distinguir o paradigma que penso ser o mais

racional de ser aceito do que de fato é mais racional de aceitar.

Para Laudan, a incomensurabilidade seria um caso raro e o relativismo

decorrente dela faria da formação do consenso uma coincidência cósmica.

A questão que se coloca é se a posição kuhniana padece de tais

problemas.

Sobre Kuhn defendo os seguintes pontos:

1. Em primeiro lugar, que, de uma perspectiva kuhniana, a

incomensurabilidade epistemológica não impede que sejam formulados

juízos de superioridade epistêmica ou pragmática de um paradigma em

relação ao seu rival. (De fato, a incomensurabilidade epistemológica

kuhniana, por ser entre paradigmas, garante que há divergências em que

ambas as escolhas são racionais. Porque a noção de paradigma exige que

parte significativa da comunidade científica tenha sido agregada em função

de realizações sem precedentes: cada parte da comunidade científica que

se confronta tem boas razões para afirmar que a sua decisão é a mais

racional.)

* Sou muitíssimo grato ao meu professor Caetano Ernesto Plastino, que orientou a minha tesede doutorado, por ter discutido comigo, de maneira detalhada, todos os passos do trabalho,pelas diversas sugestões e por ter concedido parte fundamental do material bibliográfico.

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Racionalidade e incomensurabilidade científica 307

2. Em segundo lugar, defendo que não se pode afirmar afirmar que uma

alternativa é tão racional quanto qualquer outra, porque a

incomensurabilidade nega a existência de padrões neutros exigidos em um

tal juízo.

3. Em terceiro lugar, defendo que não é necessário adotar uma visão anti-

relativista para que se possa proceder a uma avaliação racional. Pois, no

caso de Kuhn, as escolhas podem ser consideradas racionais se e

somente se elas estão apoiadas em boas razões reconhecidas pela

comunidade científica, isto é, na capacidade do paradigma em solucionar

problemas, na sua simplicidade, no seu poder explicativo e preditivo, na

sua precisão, na sua fertilidade, na sua consistência interna e externa, por

exemplo.

As restrições de um modelo kuhniano de racionalidade implicam que as

justificações de escolha científica gozam de virtudes epistêmicas e pragmáticas

(em sentido estrito), reconhecidas pela comunidade científica. Contudo, tais

razões não são compulsivas porque os conjuntos de problemas, estratégias de

solução e valores não são igualmente compartilhados pelos defensores de

paradigmas rivais. Tais razões justificam uma preferência, mas não são

capazes de impô-la a todo participante da comunidade científica. É que, por

outro lado, é possível também haver boas razões para fazer outra escolha. Em

particular, os problemas que só o paradigma a que se deu preferência resolve,

ou o modo de se compreender certos valores para tal escolha ou ainda o

conflito entre os pesos que foram atribuídos para os valores compartilhados

pelas comunidades rivais constituem, cada um por si e conjuntamente, razões

para compreender que legitimamente dois cientistas de comunidades rivais

podem adotar diferentes paradigmas com base em boas razões.

Isso significa que as boas razões (pragmáticas em sentido estrito e

também epistêmicas), reconhecidas por parte da comunidade científica, são

condições necessárias e suficientes para julgar se uma certa escolha pode ser

dita racional.

Contudo, o fato de uma mudança ser racional não é suficiente para que

a mudança se dê: as boas razões são estratégias eficazes de persuasão, mas

não implicam a conversão do cientista.

Page 309: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Robinson Guitarrari 308

Com essa reconstrução de Kuhn, é possível mostrar os seguintes

pontos:

1. Que as objeções de Putnam não se aplicam ao relativismo kuhniano.

1.1. Em primeiro lugar, o relativismo kuhniano não é auto-refutante;

isto quer dizer que a suposição de que ele é verdadeiro não implica

a sua falsidade. Para mostrar isso, notemos que dois juízos

diferentes sobre qual dos paradigmas em competição é mais

racional aceitar não são contraditórios se formulados de

perspectivas diferentes. Mas também é preciso ver que a exigência

de interpretação para que haja compreensão e comunicação é, de

certa forma, satisfeita pelo quadro kuhniano.

1.2. Em segundo lugar, a acusação de que o relativismo nega a

existência de padrões de correção, pode ser refutada à medida que

mostramos que, dentro do modelo kuhniano, um cientista pode

distinguir o que se pensa ser uma decisão racional do que é

considerado racional pela comunidade científica.

2. Quanto às objeções de Laudan pode-se notar uma limitação do

relativismo kuhniano. Mas os seus argumentos contra as evidências de

incomensurabilidade não são convincentes para passarmos a acreditar

que o seu modelo reticulado, muito mais do que permitir, ele é capaz de

explicar a formação de consenso.

De acordo com o modelo reticulado, proposto por Laudan, os

compromissos da investigação científica são divididos em três classes: a

metodológica, a teórica e a axiológica. Tal modelo prescreve que não deve

haver hierarquia alguma entre tais classes de compromissos. Todas estão em

pé de igualdade. Além disso, o reticulado de Laudan afirma que a maior parte

das mudanças é gradual e se caracteriza por procurar maximizar o equilíbrio

epistêmico do reticulado. Ora, com essa visão, não é à toa que ele procurará

minimizar o impacto da incomensurabilidade epistemológica.

2.1 Como mencionei, para Laudan, o modelo kuhniano não explica a

formação de consenso. Quanto a esse aspecto, concordamos com

Laudan. Mas a razão para isso é que dentro do relativismo kuhniano

a racionalidade não implica o consenso, ou seja, as boas razões não

Page 310: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Racionalidade e incomensurabilidade científica 309

são compulsivas. Já Laudan pensa que o relativismo kuhniano

impede que o consenso seja alcançado por razões científicas. Para

ele, o modelo tornaria o debate científico inconclusivo por envolver

um solipsismo que estaria sempre sendo reforçado. Defendo, contra

a interpretação de Laudan, que o relativismo kuhniano não promove

um solipsismo nem torna o debate inconclusivo.

Para tanto, ele colocou o cientista individual como o agente-

parâmetro de ação racional e enfatizou o papel das motivações

subjetivas presentes nas decisões individuais. Ao contrário, destaco

a comunidade científica como o agente-parâmetro de ação racional

e ressalto a relevância dos padrões notadamente epistêmicos e

pragmáticos (em sentido estrito) para a aceitação de um paradigma.

A nossa posição é a de que, embora a caracterização de uma

mudança como racional não seja suficiente para gerar consenso, tal

racionalidade é condição necessária para o consenso, isto é, o

consenso não é alcançado sem boas razões; portanto, a obtenção

do consenso não acontece por acaso. Além disso, as boas razões

levantadas no confronto entre defensores de paradigmas rivais

possuem um forte apelo persuasivo, embora não tenha o poder de

conversão imediata de toda uma comunidade científica; portanto,

não é o caso de que o debate científico será sempre inconclusivo.

Por fim, como devemos analisar o comportamento da comunidade

científica, está excluída a idéia de que se trata de um solipsismo que

se reforça.

2.2 Além disso, para Laudan, a incomensurabilidade epistemológica é

um caso raro na história da ciência. Em seu propósito de minar suas

evidências favoráveis, Laudan ataca a tese de que as regras

metodológicas são ambíguas, de que os pesos que os defensores

de paradigmas rivais lhes atribuem são diferentes, de que com as

revoluções científicas há perdas de epistêmicas e de que as

revoluções científicas são caracterizadas por mudanças em blocos

covariantes de compromissos científicos.

Page 311: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Robinson Guitarrari 310

Para Laudan, as regras decisivas não são ambíguas, o conjunto

de regras não apresenta conflito, as perdas de explicação, ocorridas

nas mudanças teóricas, não são perdas epistêmicas, e, por fim, ele

defende que as mudanças científicas tipicamente acontecem aos

poucos, e não em blocos covariantes.

As críticas de Laudan à incomensurabilidade epistemológica

abordam os quatro casos.

[Casos 1 e 2] Notamos que foram bastante artificiais as réplicas

de Laudan aos casos de ambigüidades de padrões e das

determinações conflitantes geradas pelos diferentes pesos que

esses padrões podem assumir para cada parte da comunidade

envolvida na disputa: Kuhn não precisa afirmar que todas as regras

são ambíguas; também não precisa mostrar que todo conjunto de

regras apresenta conflito.

[Caso 3] Quanto ao caso das mudanças acontecerem aos poucos

e não em blocos covariantes, devemos ressaltar que o argumento de

Laudan não estabelece o seu ponto: se, por meio de alguns

exemplos, Kuhn não poderia sustentar a tese de que na história da

ciência as mudanças ocorrem em blocos covariantes, devemos notar

que esse recurso também não sustenta a tese defendida por Laudan

segundo a qual as mudanças científicas são freqüentemente

graduais.

[Caso 4] Por fim, quanto ao caso das perdas de problemas

resolvidos nas mudanças de exemplares, notamos que, para superar

a incomensurabilidade epistemológica, Laudan teria de mostrar que,

na maior parte dos casos históricos, todas as perdas de explicação

não constituem perdas de apoio empírico.

(Notemos que, para que o modelo reticulado explique o consenso

em ciência, Laudan precisa mostrar que a incomensurabilidade

epistemológica é um caso raro.)

Assim, podemos notar que os argumentos de Laudan que

dependem de uma pesquisa histórica não mostram que a da

incomensurabilidade é um caso raro. As teses de que são raros os

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Racionalidade e incomensurabilidade científica 311

casos de perdas epistêmicas e também de que a maior parte das

mudanças não ocorre em blocos covariantes não foram

estabelecidas. Além disso, faltou a Laudan a apresentação de regras

claras, não ambíguas, imparciais e decisivas para afastar o

argumento de Kuhn em favor de que os padrões de avaliação

podem ser interpretados de maneira diversa, como também que

eles, em paradigmas rivais, podem assumir pesos conflitantes.

Mesmo sem saber a freqüência com que a incomensurabilidade

epistemológica ocorre, a nossa análise da perspectiva kuhniana mostra que,

embora a formação de consenso não seja explicada apenas por fatores

científicos, (i) o consenso em ciência não se faz sem uma boa razão, (ii) que

existem padrões de correção, (iii) que o relativismo kuhniano não implica a sua

falsidade e, por fim, (iv) que o relativismo kuhniano não implica que o debate

entre defensores de paradigmas rivais seja inconclusivo.

Com isso, podemos dizer que, ainda que não tenha o poder explicativo

desejado por muitos, um modelo kuhniano de racionalidade não representa o

pior dos mundos possíveis, como muitas objeções supõem.

De uma perspectiva kuhniana, a autoridade da comunidade científica

não implica que o poder e o interesse sejam determinantes de uma escolha.

Embora aceite que o interesse, o poder e a autoridade cumpram um papel

significativo na negociação em ciência, Kuhn discorda da tese extrema

segundo a qual “o poder e o interesse é tudo o que existe” (KUHN, 1992).

Kuhn jamais procurou questionar o valor cognitivo da ciência. Mesmo

que a pesquisa científica não busque o mundo ele mesmo, “independente da

mente ou da cultura”, o status cognitivo da ciência fica preservado com a

prática de resolver quebra-cabeças.

Com essa maneira de compreender a escolha científica, a objetividade e

a racionalidade passam a ter outro significado (KUHN, 1977a, 337-338). Nessa

interpretação, os interesses individuais e de grupos rivais também podem pesar

em uma escolha, mas, para poderem imperar, jamais estarão dissociados dos

interesses intersubjetivamente compartilhados que estão relacionados com a

capacidade de solucionar quebra-cabeças considerados relevantes. Nos casos

de mudanças científicas, quase sempre há confronto sobre qual é o conjunto

Page 313: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Robinson Guitarrari 312

de problemas relevantes, e como atacá-los. Por isso, embora a racionalidade

não implique consenso, é necessário que a mudança científica esteja baseada

em boas razões.

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Page 319: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, suahistória e epistemologia: do renascimento à novageografia

Emerson Vizzotto de BarrosGraduando em Geografia/UEL

Rosana Figueiredo SalviDepartamento de Geociências/UEL

Introdução

A Terra é o palco onde se desenrola a atividade dos homens. O seu

aspecto atual á apenas uma simples fotografia instantânea em relação às

constantes modificações que ela apresenta. Mais móvel e mais variável se

revela ainda a atividade humana.

Os agrupamentos humanos são os infatigáveis aproveitadores do Globo,

através do qual, para os mais diversos fins, eles multiplicam as suas viagens.

Assim, os cominhos poeirentos da Ásia foram, a séculos de distância, pisados

pelos soldados de Alexandre, percorridos pelas caravanas dos mercadores,

martelados pelos cascos das hordas mongólicas, calcados pelas rodas dos

automóveis; os homens utilizaram-nos sucessivamente para satisfazer o seu

gosto de risco e aventura.

Ora a aventura – qualquer que seja o seu motor: lucro, curiosidade,

necessidade – é, de fato, o prólogo, a primeira etapa da Geografia. É, para

além do horizonte habitual, a beleza movediça do mar, o silêncio parado das

estepes abrasadas de sol, a pitoresca constituição das gigantescas montanhas;

é a teimosa e dura vontade do pioneiro, a penosa marcha do explorador

obstinado, a inflexível confiança do navegador impelido para o largo.

Esta ida constante às “regiões estranhas” é, para nós, a herança

implícita da instável humanidade primitiva.

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 320: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 319

Porque, bem antes dos périplos gregos ou dos grandes descobrimentos

marítimos do século XV, já os primeiros homens exploraram a superfície do

Globo.

Entretanto, a onipresença do homem sobre a terra, a universalidade das

suas deslocações em grupos não provocaria forçosamente o enriquecimento

do patrimônio comum da humanidade, a fisionomia das regiões percorridas ou

habitadas. E foi esta a obra dos sábios gregos que não só revelaram a forma

da Terra, mas realizaram uma representação regional da superfície terrestre

com o auxílio de medições astronômicas, do cálculo das latitudes, assim como

da utilização das coordenadas terrestres.

Contudo, por mais importantes que fossem estas aquisições, elas eram

apenas um esboço. A etapa decisiva seria vencida no século XIX; é então que

a Geografia atinge o seu pleno significado, transferindo o seu campo de estudo

da descrição para a compreensão dos fatos localizados.

É a Europa e à civilização européia que a Geografia deve o lugar

privilegiado que ocupa entre os principais ramos do saber humano.

Até ao século XV, os europeus consertaram-se, segundo a expressão de

Platão, como rãs acocoradas à beira do Mediterrâneo. Depois, bruscamente,

abandonaram o berço demasiado rígido deste mar fechado e singram para o

mar alto à descoberta dos oceanos e dos continentes (CLOZIER, 1950).

Observando este caráter histórico do desenvolvimento de uma ciência,

Thomas Kuhn, em sua obra A estrutura das revoluções científicas, sugere que

talvez a ciência não se desenvolva pela acumulação de descobertas e

invenções individuais. Estabelecendo uma perspectiva histórica para a análise

do desenvolvimento de uma ciência, Kuhn observa que os estudos dos

Historiadores da Ciência começaram a traçar linhas diferentes, freqüentemente

não-cumulativas, de desenvolvimento para a ciência; um estudo que procurou

apresentar a integridade histórica da ciência, a partir de sua época.

Esses estudos históricos sugerem a possibilidade de uma nova imagem

da ciência. Desta forma Kuhn visa, em sua obra A Estrutura das Revoluções

Científicas, delinear essa imagem ao tornar explícitas algumas das implicações

da nova historiografia.

Para isso Kuhn divide o processo científico em:

Page 321: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 320

• Período de Ciência Normal, que se dá pautado noParadigma – conceito este criado por Kuhn.

• Período de Crise na ciência, que acontece porconseqüência das Anomalias que surgem no Paradigma.

• Revolução Científica, que ocorre com o estabelecimentode outro Paradigma que melhor explique as Anomalias.

• Restabelecimento do período de Ciência Normal.Veremos, com mais detalhes a partir de agora, como se deu o

desenvolvimento dos conhecimentos geográficos e a formação da Geografia

como ciência constituída levando em conta a visão de kuhniana de como a

ciência se desenvolve, caminha, analisando como se dá esse processo em

cada uma das categorias delineadas por Kuhn e aplicando esta visão ao

desenvolvimento dos conhecimentos geográficos e à formação da Geografia

como ciência.

A pré-história da Geografia Física

Até ao século XV, os europeus consertaram-se, segundo a expressão de

Platão, como rãs acocoradas à beira do Mediterrâneo. Depois, bruscamente,

abandonaram o berço demasiado rígido deste mar fechado e singram para o

mar alto à descoberta dos oceanos e dos continentes. (Clozier, 1950)

Para a Geografia, como para quase todos os setores do saber humano,

o Renascimento significou uma época de renovação e de febril atividade. É o

tempo das grandes viagens, que revelam mundos desconhecidos, das grandes

descobertas científicas, que fornecem novas bases a todos os conhecimentos

e dos avanços tecnológicos que possibilitam a navegação em alto mar, devido

ao aparecimento da bússola e do astrolábio e a criação da caravela de largo

velame e de bordas altas, que reduz a insegurança dos navegantes.

Os conhecimentos acompanham esse avanço técnico: a Geografia de

Ptolomeu foi traduzida em latim em 1409, já em 1436, o veneziano Andréa

Blancho apresentava o portulano que trazia as últimas descobertas

portuguesas. Em 1484, o cosmógrafo de Nüremberg Martim Behaim constrói o

globo que tomou o seu nome. Eram conhecimentos de natureza geográfica,

ligados a expansão mercantil, ampliando o chamado “mundo conhecido”. Essa

ampliação atinge seu limite maior quando, no fim do século XV, Vasco da

Page 322: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 321

Gama chega à Índia abrindo roteiros que, no século seguinte, se tornarão

conhecidos. É a época em que Colombo chega a América e Cabral chega ao

Brasil. Fernão de Magalhães dá a volta ao mundo. A cartografia acompanha

essa expansão. Cartógrafos como Ortelius e Mercator registram esses

conhecimentos. Copérnico liquida a concepção ptolomaica do nosso sistema

planetário, difundindo o heliocentrismo, desde a publicação de sua obra, em

1543, De Revolutionibus Orbium Coelestium.

Os chamados descobrimentos prosseguem no século XVII e as

invenções são aprimoradas, assim os pesados galeões, mais longos e mais

largos, substituem as caravelas; o cálculo da longitude se aproxima da

exatidão; a velocidade dos navios pode ser medida; aparecem os relógios

marítimos e os cronômetros; Torricelli inventa o barômetro. As viagens se

multiplicam, em todos os mares e, nos fins do século XVII, começam a assumir

caráter científico, ou pelo menos a tê-lo como presente. A informação era,

assim, abundante, mas caótica, pois descrevia a tudo aquilo peculiar a

Geografia como o que se referia às plantas, aos animais, ao clima, aos mares,

aos rios. O particular assumia proporções inumeráveis. Fazia falta o geral. Mais

ainda o universal. No século XVII surgiram duas obras gerais: a Introdução a

Geografia Universal, de Cluverius, de 1626, e a Geographia Generalis, de

Varenius, de 1650. Em Varenius a Geografia tem um de seus maiores

pioneiros. No final do século XVII, G. Sanson publica a sua Introduction à la

Géographie, desenvolvendo as idéias de Varenius.

Sodré (1987) considera encerrada, no fim do século XVIII, a “pré-

história” da Geografia, ou seja, o seu processo preliminar, preparatório para a

formação dessa ciência.

A Geografia esboça as suas grandes linhas no século XVIII, afirmando-

se e definindo-se, compondo contribuições de diversas origens. Ao fim do

século XVIII, a Geografia havia reunido condições para emancipar-se. Podia

compor seus elementos, espalhados nos mais diversos campos do

conhecimento, e sistematiza-los. Esses mesmos conhecimentos, que

pertenciam a outros domínios, seriam tratados pela Geografia de maneira

específica.

Page 323: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 322

A Formação da Geografia Moderna: Caracterizando a Natureza daGeografia Física na sua Vertente Tradicional

De acordo com Sodré (1987), no ano de 1845, quando Humboldt iniciou

a publicação do Cosmos, as condições haviam amadurecido para uma síntese

do conhecimento geográfico acumulado.

Os méritos de Humboldt são altíssimos. Fundou os métodos de

observação de quase todos os setores da Geografia Física. É ainda ele que

deve ser considerado o criador da Geografia Botânica.

Nenhum outro viajante se lhe compara como observador. A Humboldt

pertence incontestavelmente o mérito de, em primeiro lugar, ter formulado e

aplicado os dois princípios essenciais que fazem da geografia uma ciência

original.

Karl Ritter, na Ciência Comparada da Terra, adota os princípios

apresentados por Humboldt. Ao passo que Humboldt era um sábio e um

viajante, servido por um notável sentido da observação, Ritter possuía uma

cultura histórica e filosófica; com o primeiro, as ciências naturais tinham sido

postas ao serviço da Geografia, com o segundo é a História que vem em seu

auxilio. A Ciência Comparada da Terra procura discernir as relações do homem

com o solo e a influência das condições naturais sobre o desenvolvimento das

sociedades.

Pode-se concluir que os fenômenos que as outras ciências dissociam,

pela análise ou pela experimentação, a Geografia trata na ordem concreta das

coisas, na sua diversidade complexa, na sua realidade em constante mudança,

pois a natureza, como declara Ritter, não é uma mecânica morta. Deste modo

a Geografia acaba por usar os resultados das ciências da natureza e do

homem, a servir-se dos dados da Geologia, da Botânica, da Meteorologia, da

História, da Estatística, etc.

É este o significado da obra de Humboldt e de Ritter.

Com efeito, a definitiva formação da Geografia não podia tardar mais. A

germinação das sementes lançadas por Humboldt e Ritter teve lugar assim que

surgiram as condições políticas e ideológicas favoráveis, no último terço do

século XIX, na Prússia (futura Alemanha). Após a constituição do estado

Page 324: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 323

alemão, onde as primeiras cadeiras de Geografia foram criadas, em 1870,

surge Ratzel com a Antropogeografia.

Discutindo as concepções formadoras da Geografia Física Tradicional eos seus paradigmas fundadores

A Geografia desenvolveu-se de modo bastante diverso, três

pensamentos e formas de se fazer Geografia distintos constituem os três

grandes paradigmas da Geografia Tradicional. São eles: o determinismo, o

possibilismo e o idiográfico-nomotético.

Estes três pensamentos se constituíram nos três grandes paradigmas da

Geografia Tradicioal porque forneceram aquilo que Kuhn define como essencial

função de um paradigma: proporcionar os fundamentos, os métodos, para a

prática posterior de uma ciência. Nas palavras de Kuhn:

A Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de Newton,a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell – esses emuitos outros trabalhos serviram, por algum tempo, para definir implicitamente osproblemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para as geraçõesposteriores de praticantes da ciência. Puderam fazer isso porque partilharam duascaracterísticas essenciais. Suas realizações foram suficientemente sem precedentespara atrair um grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas deatividade científica dissimilares. Simultaneamente, suas realizações eramsuficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas para seremresolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência” (KUHN, 1962, p. 29).

Aos trabalhos, teorias que possuem as duas características essenciais

descritas por Kuhn, a saber, suas realizações foram suficientemente sem

precedentes para atrair um grupo duradouro de cientistas e, simultaneamente,

suas realizações foram suficientemente abertas para deixar toda a espécie de

problemas para serem resolvidos pelo grupo de praticantes da ciência, Kuhn

chama de “Paradigma” e comenta que “a aquisição de um paradigma e do tipo

de pesquisa mais esotérico que ele permite é um sinal de maturidade no

desenvolvimento de qualquer campo científico” (KUHN, 1962).

Segundo Kuhn (1962), quando um paradigma se estabelece, quando um

indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos

praticantes da ciência, este paradigma passa a implicar uma definição nova e

mais rígida do campo de estudos. Define-se melhor as características da

“matriz disciplinar” em que se ira respaldar para produzir o conhecimento.

Page 325: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 324

Após o estabelecimento do paradigma, a ciência entra no período

“normal” ou de “ciência normal”, onde, a partir daí, as pesquisas se nortearão

pelo paradigma vigente. Sendo assim, podemos inferir que a Geografia

Tradicional inicia o seu período de “ciência normal” a partir da constituição do

primeiro dos seus três paradigmas, o Paradigma Determinista.

A Visão Ratzeliana de Geografia

A obra pioneira de Friedrich Ratzel constituiu a ponta inicial do longo fio

do determinismo ambiental, primeiro paradigma da Geografia Tradicional.

Nela procurava mostrar que a distribuição do homem na superfície da

Terra havia sido mais ou menos determinada pelas forças naturais,

descrevendo, no volume final, a distribuição existente.

Em sua outra obra intitulada Geografia Política, que tinha como produto

as investigações comparativas das relações entre o Estado e a superfície da

Terra, Ratzel procura difundir que o aspecto geográfico do Estado reside na

sua relação necessária com o solo; nesse solo, evolui na mesma medida em

que crescem os seus recursos.

De acordo com Sodré (1982) o determinismo geográfico é fruto de uma

concepção metafísica e mecanicista da natureza. Esta interpretação

mecanicista da natureza foi embrionária desde a época da Idade Média, e seu

amadurecimento coube a Descarte e a Newton. Seus trabalhos e idéias

ajudaram na criação de um quadro completo da concepção científica do Mundo

baseado nos princípios da Mecânica que regiam, na época, as interpretações

da ciência.

Pode-se concluir que, a partir de Newton, se estabeleceu, segundo Kuhn

(1962), o primeiro paradigma para as ciências, o “paradigma mecanicista”. A

Geografia, como ciência constituída, herda grande parte da idéia mecanicista

de Mundo elaborada por Newton.

A idéia de evolução da natureza foi lentamente elaborada e mais

lentamente aceita, nos anos 40 do século XIX, a ciência passa a desenvolver

leis específicas dos diferentes domínios da natureza e a considerar a existência

de laços entre eles. De empírica tornou-se teórica. Criou as condições

Page 326: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 325

necessárias para o abandono da estrutura metafísica e mecanicista dos

séculos XVII e XVIII, formulando leis mais gerais de desenvolvimento da

natureza e estabelecendo a concepção dialética e materialista da natureza

(Sodré, 1982, p.79).

A obra de Darwin suscitou, na comunidade científica, a aceitação do

caráter dialético da natureza.

A Visão Lablachiana de Geografia

Vidal de La Blache, reconhecendo a relação dialética entre homem e

natureza, colocou com clareza, do ponto de vista geográfico, a noção de meio.

Nas palavras de Vidal de La Blache:

“Sob este nome de meio, caro à escola de Tainá, sob o de vizinhança, de empregofreqüente na Inglaterra, ou mesmo sob o de ecologia, que Haeckel introduziu nalinguagem dos naturalistas, termos que, no fundo, se referem à mesma idéia, asempre e mesma preocupação que se impõe ao espírito, à medida que se descobremais a íntima solidariedade que une as coisas e os seres. O homem faz parte dessacadeia e, em suas relações com o que o cerca, ele é, ao mesmo tempo, ativo epassivo, sem que seja fácil determinar, na maior parte dos casos, até que ponto ele éuma coisa ou outra (...) . Do ponto de vista geográfico, o fato da coabitação, isto é, douso comum de um certo espaço, é o fundamento de tudo” (LA BLACHE, 1948, p.104,apud SODRÉ, 1982).

La Blache mostrou ainda a importância do esforço do homem, em sua

relação com o meio:

“Vê-se como, espontaneamente, independentes uns dos outros, em pontos muitodiversos, organizaram-se gêneros de vida. Forçando a tirar partido dos recursosfornecidos pelo meio, não podendo fazer sua vida depender dos laços fracos ealeatórios do comércio, o homem concentrou o seu engenho em um número porvezes muito restrito de materiais e soube aplicá-los a uma extraordináriamultiplicidade de serviços” (LA BLACHE,1948, p.131, apud SODRÉ, 1982).

Pouco a pouco, cresce a corrente que inclui o homem na paisagem e lhe

concede papel ativo em relação ao meio geográfico.

La Blache colocou o problema desta forma:

“Devemos partir da noção de que a Terra é um reservatório que contém energiasadormecidas, cujas sementes foram plantadas pela natureza, mas cujo uso dependedo homem. É ele quem, modelando-as à sua feição, demonstra sua individualidade.O homem estabelece a sua ligação entre elementos díspares, colocando umaorganização significativa das forças em lugar dos efeitos incoerentes da circunstâncialocal. Desse modo, a região adquire identidade e se distingue de outras, tornando-se,no curso do tempo, como uma medalha fundida à imagem de um povo” (LA BLACHE,1908, p.8, apud SODRÉ, 1982).

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Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 326

La Blache preocupou-se então com o estudo da relação do homem e o

meio físico, passando a admitir que o meio exercia alguma influência sobre o

homem, mas que este, dependendo das condições técnicas e do capital que se

dispunha, podia exercer influência sobre o meio. Daí o surgimento da

expressão “Possibilismo” que, posteriormente, tornou-se a denominação de um

dos paradigmas da Geografia Tradicional, em oposição ao Paradigma

Determinista.

Surge aqui uma das grandes vertentes da Geografia, a Geografia Física,

pois a geografia proposta por La Blache era concebida como o estudo da

paisagem. Conforme Moraes (2003), Vidal fundou a corrente que se tornou

majoritária no pensamento geográfico. Pode-se dizer que, após suas

formulações, o núcleo central dessa disciplina estava constituído.

A Visão Hartshorniana de Geografia

A Escola Geográfica Norte Americana desenvolveu-se a partir da

segunda metade do século XIX e o seu grande foi Richard Hartshorne, que foi

muito influenciado pelo pensamento do geógrafo alemão Alfred Hettner.

Ele desenvolveu as teses do mestre alemão a quem seguia e especulou

sobre a análise das inter-relações entre os fenômenos, admitindo duas formas

de estudá-los: ou partir do particular, da região – o que ele chamou de

Geografia Idiográfica, que seria uma geografia regional; ou de forma

generalizadora - a que ele denominou Geografia Nomotética, que seria uma

geografia geral.

Na proposta de Hartshorne a Geografia teria sua individualidade e

autoridade decorrente de uma forma própria de analisar a realidade. O método

especificamente geográfico viria do fato dessa disciplina trabalhar o real em

sua complexidade, abordando fenômenos variados, estudados por outras

ciências. Para Hartshorne, o estudo geográfico não isolaria os elementos, ao

contrario trabalharia com suas inter-relações.

A proposta de Hartshorne pode ser considerada como um terceiro

paradigma - o Paradigma Idiográfico - Nomotético - para a Geografia

Page 328: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 327

Tradicional, que se estabelece concomitantemente com o Paradigma

Determinista e o Paradigma Possibilista

Os Fundamentos Teórico – Metodológicos da Geografia Física Tradicional

Com o objetivo de cada vez mais incluir a Geografia no rol das ciências

naturais, a própria definição de Geografia muda diversas vezes. Clozier a

define da seguinte forma:

“A Geografia estuda a fisionomia do Globo, isto é, os aspectos que resultam doclima, do relevo, das associações vegetais, dos agrupamentos humanos, assim comoas forças físicas e humanas que presidem à sua formação no espaço e no tempo; elaprocura explicar a sua correlação, quer no conjunto terrestre que as condiciona atodas, quer nos quadros regionais em que elas se localizam” (CLOZIER, 1950, p.87).

Observa-se então que a Geografia nasce física, sendo esta, descrições

do clima, do relevo, da hidrografia, da vegetação e do homem como simples

habitante de diferentes paisagens. Dada essa característica da Geografia

Tradicional, a distinção entre os termos Geografia Física e Geografia não será

relevante no presente trabalho.

Com uma visão geral, a Geografia procura observar, descrever,

enumerar, classificar e explicar os diferentes fenômenos da natureza, como o

clima, o relevo, a hidrografia e a vegetação. Cada um desses elementos era

visto separadamente. A visão regional procura observar, descrever, classificar

e comparar as inter-relações entre os elementos da natureza, somando as

ações humanas.

Segundo Clozier, a Geografia Tradicional já não se contenta em ser um

simples catálogo de fatos localizados; pelo contrário, pretende dar deles uma

explicação científica, a autonomia da Geografia está definida:

“As suas investigações incidem, ao mesmo tempo, sobre fatos que observadiretamente e sobre resultados que outras ciências obtiveram aplicando aos fatos aobservação e a experiência. Mas a Geografia não utiliza estes resultadosisoladamente; restabelece-os no seu ambiente natural, coloca-os na ordem concretadas coisas; precisa, portanto, a inesgotável variedade das combinações de queresultam as paisagens morfológicas, as paisagens botânicas, os gêneros de vida dosgrupos humanos” (CLOZIER, 1950, p.93).

Observa-se a constante presença, na Geografia Tradicional, de fatos de

ordem climática, biológica, histórica, etc. Para Clozier, essa capacidade de

Page 329: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 328

convergência dos fatos é que dá à investigação geográfica sua originalidade e,

principalmente sua utilidade (Clozier, 1950).

Com esses fatos, a Geografia Tradicional lida através, principalmente,

da observação e da descrição, reflexo direto do positivismo no campo

Geográfico, resultado do contexto que cercou o surgimento da Geografia e da

influência das Ciências Naturais, mais especificamente, da Física Newtoniana e

da visão mecanicista de Mundo que esta disseminou através da comunidade

científica, o que propiciou, a princípio, o estabelecimento do Paradigma

Newtoniano sobre todas as ciências.

Conforme Clozier (1950), a descrição e a localização são, se não a

tarefa essencial, pelo menos os primeiros passos da Geografia. Aquele que

pode melhor exemplificar o papel e o valor da descrição em Geografia é Paul

Vidal de La Blache, o fundador da escola geográfica francesa. É na obra

Quadro da Geografia da França que melhor aparece o estilo de La Blache.

Neste livro, La Blache procura sempre colocar a paisagem num conjunto mais

vasto, situando-a em relação às grandes unidades regionais. Procura, com a

descrição, ressaltar os traços típicos e evocadores e explicitá-los de forma que

todos possam percebê-los.

Deste modo, em Vidal de La Blache, a descrição tem, como o fato

geográfico, a sua originalidade numa forma de convergência; todos os traços,

qualquer que seja a sua natureza, concorrem para precisar a fisionomia dos

lugares. Ao mesmo tempo, porém, esta descrição é seletiva; elimina certos

traços e junta outros, pois no fundo, ela orienta-se segundo um determinado

pensamento. É uma descrição científica e, por conseqüência,

esquematizadora. A descrição de Vidal de La Blache esquematiza, por ser

dirigida, por se orientar para a explicação. É, sem dúvida, um retrato que

pretende traçar, mas um retrato cujas linhas evoquem as forças que

modelaram a fisionomia de uma região.

Utilizando-se de vasta documentação, Vidal de La Blache discerne os

fatores físicos de uma região, mas também, a intensidade das transformações

que esta região sofreu pela intervenção humana. Traçando a evolução de uma

dada região, a Geografia de La Blache se encontra impregnada de História.

Page 330: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 329

Na visão de Clozier (1950), a descrição geográfica é científica e,

portanto, seletiva. Teoricamente, deveria analisar todos os elementos da

paisagem, mas na prática elimina certos traços explicativos:

1 – Porque situa a paisagem num quadro que corresponde a um

conceito pré-estabelecido: montanha, planície, etc.

2 – Porque é guiada por um pensamento que procura certos traços

típicos em vista de uma explicação.

Entretanto, não há descrição geográfica sem a explicação que lhe dá

sentido.

A descrição da “face da Terra” é, ao mesmo tempo o princípio e o fim do

trabalho geográfico.

A explicação geográfica parte da descrição e, para demonstrar que se

encontra bem fundamentada, utiliza dois meios de investigação que, segundo

Clozier (1950), são: a observação e o documento cartográfico.

Clozier explica que para substituir a experiência, o geógrafo utiliza os

documentos cartográficos. Em suas palavras:

“As cartas, sobretudo as cartas de grade escala, são, para o geógrafo, ao mesmotempo o complemento e a correção da observação. O complemento, porque, por maisvasto que seja o campo de visão, a paisagem percebida é estritamente limitada. Acarta vem então substituir o exame direto e enriquecer a observação; (...). A correçãotambém, porque uma carta, mesmo de grande escala, é sempre um esquema, isto é,uma interpretação simplificada da realidade; ela elimina os traços secundários econstitui, deste modo, um incentivo para a generalização e, portanto, para aexplicação; (...)” (CLOZIER, 1950, p.101).

A leitura inteligente de uma carta permite assim a visão indireta da

superfície e que dela se extraiam os elementos de uma descrição explicativa.

A observação e o documento permitem a passagem da descrição à

explicação. A partir dos fatos observados através de múltiplos estudos locais e

regionais, são estabelecidas leis gerais.

Para se chegar a estabelecer leis gerais, o geógrafo tradicional utiliza

dois processos:

1 – O processo de extensão ou de localização.

2 – O processo de comparação ou de analogia.

Nos dois processos acima comentados, a descrição e a generalização

são sempre dominadas pela explicação causal.

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Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 330

Como já dito, a Geografia segue as sugestões das analogias para ir dos

fatos às leis. Esta regra é aplicável à Geografia Geral e também à Geografia

Regional, pois é o meio de observar o encadeamento natural dos fenômenos e

a sua extensão. Entretanto, conforme Clozier (1950), a Geografia não se utiliza,

para isso, do método indutivo. Ela procede por identificação de complexos de

mesma ordem por confrontação dos fenômenos situados num mesmo plano;

utiliza, portanto, o raciocínio dedutivo. Entretanto por vezes, a dedução fica

ligada a proposições intuitivas na Geografia, adquirindo um caráter legitimo no

processo científico.

A análise geográfica pode conduzir, portanto, a uma teoria, isto é, a uma

organização de conceitos em sistemas coerentes. A hipótese de trabalho se

torna semelhante a um postulado matemático, isto é, a uma proposição a priori,

saída de sugestões baseadas na observação, sem que uma demonstração

direta seja possível. Daí as variações nas explicações e no método geográfico

que resultam, ao mesmo tempo, da sensibilidade do geógrafo e do assunto

estudado.

A Geografia Tradicional existiu, hegemônica, até os anos de 1950.

Durante este período de 105 anos, que, segundo Sodré (1985), se iniciou em

1845, quando Humboldt publicou Cosmos, a Geografia Tradicional deixou uma

ciência elaborada, um corpo de conhecimentos sistematizados, com relativa

unidade interna. Elaborou um rico acervo empírico, fruto de um trabalho

exaustivo de levantamento de realidades. Esse acervo veio a se constituir um

substantivo material para pesquisas posteriores devido a sua minúcia e

fidedignidade à realidade, para tanto, desenvolveu-se finas técnicas de

descrição e representação. A Geografia Tradicional elaborou conceitos como

território, ambiente, região, habtat, área, gênero de vida, que estão presentes

nas discussões geográficas até hoje. Deixou fundamentos que delimitaram um

campo geral de investigações, articulando uma disciplina autônoma. Elaborou

um temário válido, identificou problemas e levantou questões relevantes.

Page 332: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 331

O Corte Epistemológico a e Mudança de Paradigma na Geografia:Geografia Tradicional X Nova Geografia

A Geografia Tradicional foi uma das ciências mais promissoras de sua

época, de seu “mundo”. Entretanto, com o advento da II Guerra Mundial, o

“mundo” mudou. Esta guerra provocou a destruição da economia e das cidades

da maior parte dos países europeus; velhos valores sociais e morais

desapareceram e a destruição material provocou a necessidade de

reconstrução. Os administradores, os políticos, os cientistas, os professores e o

povo em geral se perguntavam o que reconstruir e como reconstruir. Surge,

neste cenário, os estudos designados Amenagenent du Territoire, na França,

procurando dar ao planejamento uma dimensão ao mesmo tempo histórica e

geográfica por fazer o diagnóstico da situação existente e desenvolver a

prospectiva, projetando o crescimento para o futuro estabelecendo etapas a

curto e longo prazo.

Todo esse contexto em que se encontrava o Mundo influenciou

profundamente e provocou grandes mudanças nos setores científico,

tecnológico, social e econômico.

Moraes (2003) cita quatro pontos em que estas mudanças afetaram a

concepção dos geógrafos sobre a Geografia Tradicional, quatro pontos que

Kuhn (1962) chamaria de anomalias do Paradigma Tradicional da Geografia:

1 – Mudança da base social e econômica.

A realidade havia mudado, deixando defasado aquilo que não

acompanhou o ritmo da mudança, os fundamentos e as formulações da

Geografia Tradicional estavam engendrados com uma configuração social que

já não se apresentava mais.

O desenvolvimento do modo de produção capitalista contribuiu muito

para esta modificação social. O capitalismo havia entrado na era monopolista,

não se tratava mais de múltiplas empresas médias concorrendo no mercado,

mas sim dos grandes trustes, do monopólio e do grande capital.

Uma revolução tecnológica entrepunha-se aos dois momentos.

O Estado passou a influenciar na ordenação e regulação da economia

devido ao fato de que, com a crise de 1929, as teses de livre iniciativa, da

ordem natural e auto-regulação do mercado haviam caído por terra, suscitando

Page 333: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 332

a necessidade da intervenção estatal na economia. O planejamento econômico

foi estabelecido como uma arma de intervenção do Estado e, com ele, o

planejamento territorial, com a proposta de ação deliberada na organização do

espaço.

A realidade do planejamento colocava uma nova função para a

Geografia e, para desempenhá-la, havia a necessidade do desenvolvimento

técnico e tecnológico no meio geográfico.

A geografia Tradicional não apontava nessa direção.

2 – Mudança na organização do Espaço e crise das técnicas tradicionais

de análise geográfica.

O desenvolvimento acentuado do Capitalismo proporcionou grandes

mudanças tanto nas paisagens urbanas como rurais. A urbanização atingiu

graus nunca antes observados, apresentando fenômenos novos e complexos,

como as megalópoles.

Com a mecanização e industrialização da atividade agrícola as

comunidades locais tenderam a desaparecer articulando-se à redes intrincadas

e complexas de relações mundializadas proporcionadas pelo desenvolvimento

tecnológico dos transportes e comunicação. A realidade local passou a ser

apenas como um elo de uma cadeia que articulava o mundo inteiro.

Isto defasou o instrumental de pesquisa da Geografia. Estes não davam

mais conta nem da descrição e representação dos fenômenos da superfície

terrestre. Criados para explicar situações simples, não conseguiam apreender

a complexidade da organização atual do espaço.

3 – Crise do fundamento filosófico da Geografia Tradicional.

O positivismo clássico, sobre o qual se fundamentava a Geografia

Tradicional havia sofrido crises internas e renovações, entretanto a Geografia

permanecia como baluarte deste. O desenvolvimento das ciências e do

pensamento filosófico já havia ultrapassado em muito os postulados positivistas

que passaram a figurar por demais simplistas. A própria complexidade da

realidade e dos instrumentos de pesquisa haviam envelhecido o positivismo

clássico.

4 – Problemas internos, questões de formulação, lacunas lógicas e

dubiedades.

Page 334: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 333

Um dos pontos a salientar era a indefinição do objeto de análise da

Geografia Tradicional, que servia de alvo de críticas sobre a autoridade da

Geografia por outras ciências.

Tendo em vista todas essas limitações que a Geografia Tradicional

apresentava, iniciou-se um movimento de mudança, de renovação da

Geografia. Seu intuito geral é o de uma “reformulação metodológica” que de

conta das novas realidades que se apresentaram a Geografia.

Na mudança do período da Geografia Tradicional para o período da

Nova Geografia se constitui o que Kuhn (1962) chamou de Crise no paradigma

vigente.

Quanto às diferenças filosóficas, são fundamentais. Observa-se que não

há encadeamento entre a Geografia Tradicional e a Nova Geografia, mas a

ocorrência de verdadeiras rupturas epistemológicas. As duas concepções

geográficas possuem, conceitos, valores, técnicas, e problemas diferentes.

Segundo Marly Bulcão (1999), ocorre o que Bachelard, em sua obra

Essai sur la Connaissance Approchée, defende como sendo o motor da

revolução científica: a reformulação do pensamento, a retificação.

Neste momento de “corte epistemológico”, a ciência rompe com o

passado, assumindo uma nova trajetória.

Bulcão comenta:

“A nova epistemologia vai romper com a noção de uma Razão imóvel, pois asciências contemporâneas são o testemunho de que o espírito científico está emconstante evolução. Com o aparecimento das novas teorias como a relatividade deEinstein, a mecânica quântica, a teoria ondulatória, as geometrias não-euclidianas,etc, ficou demonstrado que a estrutura da Razão é variável, pois seus princípios semodificaram. Em La valeur enductive de la reletivité, vai ficar bem claro o aspecto denovidade das teorias contemporâneas. Bachelard julga necessário afirmar avariabilidade do espírito científico, mostrando que o desenvolvimento doconhecimento se faz através de retificações que a cada momento renovam osprincípios da Razão. Conforma diz Bachelard: ‘a doutrina de uma Razão absoluta eimutável é uma filosofia superada’”. (BULCÃO, 1999, P.14)

Essa ruptura com o passado e a adoção dessa nova trajetória não

significa necessariamente, segundo Marly Bulcão, uma negação total deste

passado, podendo ser mais bem caracterizada como um englobamento, no

qual o passado passa a ser apenas uma das possibilidades de abordagem.

(Bulcão, 1999, p.152)

Page 335: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Emerson Vizzotto de Barros & Rosana Figueiredo Salvi 334

Considerando todo esse conjunto de idéias e de abordagens que se

difundem e se desenvolvem a partir dos anos de 1950, a Geografia sofre uma

grande mudança dando origem a um período que, segundo Christofolleti

(1982), posteriormente, G. Manley chamou, no jornal The Guardian de 17 de

março de 1966, de Nova Geografia.

Conclusão

A Geografia Física Tradicional caracterizou-se, fundamentalmente, por

construir seu aparato teórico – metodológico a partir das grandes descrições

físicas da paisagem formuladas por meio de observações dos aspectos visíveis

do real, valendo-se de um arsenal cartográfico para isso. Seus resultados se

restringiram a este tipo de instrumental que habilitou tecnicamente o

conhecimento geográfico, pautado numa concepção positivista da ciência. Mas

não apenas: os geógrafos tradicionais tinham também uma formação

enciclopedista, demonstrada nas narrativas desenvolvidas por meio da idéia de

ciência de síntese.

Três grandes paradigmas podem ser identificados na Geografia Física

Tradicional: o Paradigma Determinista, o Paradigma Possibilista e o Idiográfico

- Nomotético. Quando esses paradigmas não respondem mais aos problemas

geográficos da ordem vigente, a comunidade geográfica reivindica mudanças,

demonstrando as anomalias do paradigma tradicional que culmina, então,

numa crise. Desta crise emerge um novo paradigma que vem estabelecer,

novamente, um período de ciência normal na Geografia. Este será objeto de

análise em um posterior trabalho.

Bibliografia

BULCÃO, Marly. O Racionalismo da Ciência Contemporânea: UmaAnálise da Epistemologia de Gaston Bachelard. Editora UEL,1999, Londrina.

CLOZIER, René. As Etapas da Geografia. Publicações Europa –América, 1950, Lisboa.

CHRISTOFOLETTI, Antônio. Perspectivas da Geografia. 1982. DIFEL.São Paulo.

Page 336: Anaiais Encontro Filosofia Parana

A visão kuhniana de ciência aplicada a geografia física, sua história e epistemologia 335

DE MARTONE, Emmanoel. Traite de Geographie Physique. In:Panorama da Geografia, Vol I. Edições Cosmos, 1953, Lisboa.

GREGORY, K. J.. A Natureza da Geografia Física. Bertrand Brasil S.A.,1992, Rio de Janeiro.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. Perspectiva,1997, São Paulo.

MORAES, Antônio Carlos Robert. Geografia: Pequena História Crítica.Hucitec Ltda, 2003, São Paulo.

SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução a Geografia: Geografia eIdeologia. 6ª Edição. Vozes, 1987, Petrópolis.

Page 337: Anaiais Encontro Filosofia Parana

EIXO TEMÁTICO 4:ESTUDOS TEÓRICOS-

METODOLÓGICOS EM HISTÓRIA EFILOSOFIA DA CIÊNCIA;

EDUCAÇÃO CIENTÍFICA EMATEMÁTICA

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O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica1

Irinéa de Lourdes BatistaDepartamento de Física/UEL

Resumo: A contribuição da História e Filosofia da Ciência para o Ensinode Física tem sido tema de várias pesquisas preocupadas com a conexãodessas três áreas, particularmente com a explicitação da relação história–filosofia. Nosso trabalho se insere no contexto do desenvolvimento dereferenciais teóricos que auxiliem na criação de instrumentos deaperfeiçoamento de uma capacidade analítica para a implementação deuma aprendizagem de conceitos e teorias físicas de forma estruturada,articulada e integrada. Esse processo envolve a identificação ecaracterização de modelos científicos por uma reconstrução histórico-filosófica que pressupõe a superação dessa modelagem para a obtenção deuma teoria abrangente.

UNITERMOS: História e Filosofia da Ciência; ensino de Física; modelos;prototeoria; estrutura teórico-conceitual.

Abstract: The role of History and Philosophy of Science for PhysicsTeaching has been theme of several worried researches with the correlationof those three areas, particularly with explicit relationship history–philosophy.Our work is inserting in the context of the development of theoreticalreferences for the creation of instruments to improve an analytic capacitywhich implements a learning of concepts and physical theories in astructured, articulated and integrated mode, involving the identification andcharacterization of scientific models by historical-philosophicalreconstruction which presupposes the overcome of that modeling for theobtaining of an universal theory.

Keywords: History and Philosophy of Science; Physics Teaching;models; prototheory; conceptual- theoretical structure.

Introdução

Para ponderarmos a respeito dos vários problemas no ensino da Física,

abordamos como referenciais teóricos aspectos que consideramos mais

1 Esta é uma versão revisada e ampliada de nosso trabalho apresentado no IX EPEF, sendoparcialmente apoiado pela CAPES e Fundação Araucária.

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 339: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 338

relevantes para o nosso trabalho, quais sejam, as estruturas conceituais, as

concepções prévias e a contribuição do enfoque histórico-filosófico para o

ensino da Física. Enfatizamos o papel que a História e a Filosofia da Física

podem desempenhar, como subsídio para a melhoria do ensino de Física, pela

relação que esses domínios de conhecimento possuem e demonstram com as

estruturas de conhecimento e com as concepções prévias, como fonte de

exemplares históricos analiticamente estudados que mostram a estrutura e a

dinâmica da construção de uma teoria, como também fonte de concepções

alternativas (que podem ser competidoras ou não) de explicações e conceitos.

Apresentamos, como resultado, um estudo no qual discutimos a construção de

teorias e explicações científicas e os elementos que as estruturam, articulam e

dinamizam, com enfoque na discussão sobre a enunciação e construção de

modelos como subsídio para o ensino de Física.

Em nossa investigação da busca de uma estrutura para construção de

teorias baseadas em modelos nos deparamos com uma questão

epistemológica no processo de passagem dos modelos construídos para a

nova elaboração teórica, a qual uma vez bem estabelecida é alçada ao

patamar de teoria: como se dá esse processo de passagem? Ele é direto, sem

uma etapa intermediária na qual ocorram reformulações aperfeiçoadoras de

uma síntese conceitual inovadora? Essa seria uma situação que consideramos

imprópria, pois conhecemos ao longo da história da ciência vários processos

construídos de sínteses chegando a atingir o coroamento da coerência teórica.

Assim, pareceu-nos necessário haver uma instância emergente e diferente dos

modelos, um elemento epistemológico (mas com fundamentações filosóficas)

com compromissos ligados à estabilidade teórica, sem amarras a conceitos

anteriores (com independência de suas origens) e propositor de novas

entidades para o estudo científico. Para responder a essa lacuna conceitual

criamos a concepção de prototeoria, etapa intermediária entre o modelo e a

teoria.

Diferentemente dos modelos, que são uma aquisição intelectual

mediada do desconhecido em termos do conhecido, a prototeoria propõe

elementos conceituais novos que deverão ser confirmados, tendo como

conseqüência uma nova teoria propriamente dita. Todavia, a contribuição da

Page 340: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 339

prototeoria não é tão somente a sua potencialidade heurística, mas o fato de

que extraia objetivamente, do processo de investigação de construção e

estruturação de um dado conhecimento, qual é a essência e o próprio vir-a-ser

do período de transição e consolidação de uma nova teoria. A compreensão

desse processo se torna um recurso de análise metodológico, epistemológico,

ontológico, historiográfico e, com as devidas adaptações, em recurso didático.

1. Reflexões sobre o Ensino de Física

Quando nos dedicamos à melhoria do ensino de Física, estamos

grandemente sensibilizados pelos problemas que, em geral, atingem o ensino

de forma global. No entanto, em relação à Física, temos características

especiais quanto às dificuldades de compreensão e fixação de conceitos que

muitas vezes exigem, nesses processos, grande abstração e reflexão para

serem aprendidos pelo aluno.

Os alunos no ensino superior, por exemplo, reproduzem fielmente a lei

da Inércia e demonstram impaciência quando aprofundamos uma explicação

apresentando várias maneiras de esclarecê-la. Dessa forma, muitas vezes eles

implicitamente nos convencem da redundância de tal empreendimento. No

entanto, esses mesmos alunos nos surpreendem com erros conceituais em

exercícios ou discussões que envolvam tal lei. Um exemplo disso é a hesitação

que encontramos nos alunos, em nossa prática em sala de aula, quando

fazemos uma pergunta célebre dos pensadores peripatéticos a respeito do

movimento de rotação da Terra: – se a Terra gira em torno do seu eixo, por que

quando soltamos uma pedra de cima de uma torre, essa pedra cai ao pé dessa

torre e não para trás dela?

Uma outra situação se dá quando é requisitada a análise do movimento

de uma esfera descendo por um plano inclinado, na qual se pede a velocidade

do centro de massa da esfera no fim desse plano, levando-se em conta o

momento de inércia da esfera. Surpreendentemente, ao utilizarem a lei da

Conservação da Energia Mecânica, fazem a transformação da energia

potencial da esfera em energia cinética rotacional, ignorando a translacional (e

as possíveis perdas). É evidente, novamente, que conceitos fundamentais

Page 341: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 340

como os de referencial inercial e coeficientes de inércia estão muito pouco

relacionados com a cultura científica que esses alunos possuem.

O que se pode perceber é que os alunos, apesar de enunciarem uma

determinada lei da Física, não compreenderam todo o seu significado. Por

outro lado, uma vez que eles têm idéias próprias sobre o movimento,

construídas ao longo de suas experiências de vida, vemos também que elas

não sofreram confrontações ou reformulações mediante o ensino escolar,

mesmo que esses alunos tenham obtido sucesso nas etapas escolares. Isso

significa que saber apresentar e operacionalizar o enunciado de uma lei não é,

segundo uma formação que permite uma evolução escolar desse tipo, saber

estabelecer as relações entre conceitos e atingir um todo conceitual. Dessa

forma, os alunos não percebem a estrutura teórico-conceitual, formada por

conceitos, leis e princípios, que explica determinado fenômeno.

Sabemos que a tomada de consciência de tal estrutura não é fácil, uma

vez que a própria estrutura não é simples. Consideramos, como já dissemos, a

Física estruturada a partir de conceitos, leis e princípios, formando teorias que

usam uma linguagem matematizada e possuem o compromisso de

consistências lógicas e empíricas. No entanto, temos na Física, fatores não

lógicos, uma vez que a observação e a percepção são influenciadas pela

cultura dos indivíduos e pelos pressupostos teóricos embutidos nos métodos

experimentais e na análise de dados obtidos.

A investigação científica é um modo de estender nossa percepção do

mundo, e não principalmente um modo de obter conhecimento sobre ele.

Existe, desse modo, uma implicação direta entre o cientista e a

percepção/observação, uma inter-relação entre a percepção/observação e

cultura, dando-nos como produto, a ciência.

Desses primeiros indícios, temos a complexidade na compreensão do

conhecimento físico como processo de construção. Um processo que, como

tal, se dá guardando uma estrita relação com a própria evolução humana, qual

seja, cheio de conflitos, impasses, saltos e cortes conceituais. Essa

complexidade fica majorada se os conhecimentos são apresentados de forma

dogmática, restritos a uma aprendizagem das leis e fórmulas que as exprimem

e, daí, o seu uso, com uma finalidade utilitária de aplicação em uma profissão.

Page 342: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 341

Desse modo, tem-se a impressão de que a ciência está acabada, com nada

mais a se descobrir, quando, na verdade, estamos nos primeiros passos do

conhecimento do mundo exterior.

O que acreditamos é que o ensino das ciências físicas deve dar

significado à evolução humana, para fazer compreender e admirar o grande

esforço coletivo de adaptação e transformação representado pela nossa

ciência. A redução da Física à pura técnica, em certos casos; à técnica

experimental e, em outros, à técnica matemática para a dedução lógica de

conseqüências dos axiomas da teoria, evita questionamentos conceituais no

seu ensino e gera uma formação limitada, estreita e acrítica. Assim, a

investigação e o ensino da Física não devem ignorar simetricamente os

avanços e os contrastes históricos que deram origem às idéias científicas

atuais.

Para ponderarmos a respeito dos vários problemas já levantados no

ensino de Ciências, especificamente da Física, vamos usar como referenciais

teóricos aspectos que consideramos mais relevantes para o nosso trabalho,

quais sejam, as estruturas conceituais, as concepções prévias e a contribuição

do enfoque histórico-filosófico para o ensino da Física. A importância desses

aspectos quanto à tomada de conhecimento de conteúdos e os problemas

decorrentes disso, mais a relação entre esses aspectos, é que vão nortear

nossas análises.

2. As Estruturas no Processo de Aprendizagem e na Construção daCiência

A existência de estruturas conceituais é reconhecidamente importante,

para J. Piaget e D. Ausubel, no processo de aprendizagem e, assumindo esse

pressuposto, é na explicitação dessas estruturas que acreditamos estar uma

maneira de contribuir com a melhoria do ensino da Física. Apresentaremos, de

maneira sintética, uma conceituação de estrutura conceitual e de

aprendizagem significativa concebida por esses dois autores, baseada em

CHIAROTTINO (1980) e MIZUKAMI (1986) para J. PIAGET, e em MOREIRA (1982)

para D. AUSUBEL.

Page 343: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 342

As estruturas mentais de cognição, para Piaget, são resultados de uma

construção realizada pelo indivíduo a partir de sua interação com o meio

fornecedor de informações, desde que esse meio seja realmente interventor e

criador de problemas (ou de estímulos), e que o indivíduo tenha capacidades

endógenas para ser perturbado e responder aos problemas.

O indivíduo – a partir de seus esquemas motores que inicialmente

derivam-se de reflexos a acontecimentos mas, por assimilação e acomodação,

vão ser passíveis de modificação – irá compensar as perturbações, por meio

de adaptação progressiva, até obter a equilibração e com isso construir

estruturas específicas para o ato de conhecer.

A aprendizagem implicará, então, numa estruturação, ou seja, numa

interação das estruturas cognitivas com os novos acontecimentos, atribuindo-

lhes significações, portanto, assimilando-os às estruturas mentais. A educação

consistirá em desenvolver o raciocínio, mediante a proposição de situações de

desequilíbrios, nas quais a ação do indivíduo buscará um objetivo ou fim pré-

estabelecido por ele mesmo. Para Piaget, os domínios mais adequados para

as atividades criadoras seriam especialmente o da Matemática e o das

Ciências, nas quais a atividade de pesquisa e as situações problemáticas

seriam o melhor método para a aquisição de conhecimento e para a construção

da própria inteligência pelo indivíduo.

Em Ausubel, encontramos uma teoria na qual o conceito central é o da

aprendizagem significativa, que é o processo pelo qual uma nova informação

se relaciona com um aspecto relevante da estrutura de conhecimento do

indivíduo, sendo essa estrutura advinda de abstrações de suas experiências e

possuidora de uma hierarquia entre os conceitos. O aspecto relevante com o

qual a nova informação se relaciona tem o nome específico de subsunçor

(idéia-âncora), significando um conceito ou proposição mais ampla, que age

como subordinador de outros conceitos (novos ou não) na estrutura cognitiva e

como ancoradouro no processo de assimilação. Esse processo de subsunção

se explica pelo princípio de assimilação. A interação entre tais conceitos

modifica e diferencia o próprio subsunçor, caracterizando a aprendizagem

significativa.

Page 344: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 343

NOVA INFORMAÇÃO • ⇔ • SUBSUNÇOR

• ANCORAGEM •O processo contínuo de interação que o indivíduo estabelece com os

novos conceitos exige uma preocupação com a programação do conteúdo,

pensando-se especificamente nas questões de ensino. Assim, serão

importantes as formas para proporcionar a diferenciação progressiva, explorar

explicitamente as relações entre proposições e conceitos, chamar a atenção

para diferenças e similaridades, reconciliar inconsistências reais ou aparentes,

entre os conceitos. Desse modo atinge-se a reconciliação integrativa, que é a

antítese à prática usual dos livros-texto (separação de idéias e tópicos em

capítulos e seções). Um dos recursos instrucionais desenvolvidos a partir

desses princípios e, visando uma aprendizagem significativa, é o mapa

conceitual. Ele é, num sentido amplo, um diagrama indicando relações entre

conceitos; neste caso específico, se torna um diagrama hierarquizado que

procura refletir a organização conceitual de um estudo, uma disciplina, ou aula.

Cabe ainda ressaltar que não existe "o mapa conceitual", pois existem várias

maneiras de traçar um mapa, dependendo sempre do entendimento e

interpretação dados pelo sujeito criador.

Em relação à questão da estrutura, há ainda uma outra dimensão

relevante para a compreensão da Física, ou seja, na forma de um produto

complexo de investigações científicas. Tal como apresentado por ROBILOTTA

(1988), o mapa conceitual pode representar um conjunto de relações lógico-

matemáticas de uma teoria e também representar um conteúdo associado à

totalidade de tal teoria. Nesse último caso, um conceito que é essencial a uma

teoria tem seu significado determinado pelo seu contexto, pela sua posição na

estrutura conceitual dada. Dessa forma, temos um jogo no qual o todo dá

significado às partes que, por sua vez, constituem o todo.

No caso da Física, esse jogo acontece porque o conhecimento está organizado emestruturas teóricas que, como quaisquer estruturas, tendem a ser autocontidas e a seauto-explicar.(ROBILOTTA, 1988, p.10)

Queremos com isso enfatizar que a Física é mais do que a soma de

suas várias partes (dinâmica, eletrostática, etc); ela tem uma unidade própria,

Page 345: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 344

tem identidade e estrutura; cada parte desempenha sua função, se articula com

as demais, como as partes de um corpo ou organismo. Essa característica é

importante para se contrapor à visão fragmentada que muitas vezes está

presente no ensino. Tais reflexões sobre o papel da estrutura no processo de

aprendizagem têm por objetivo buscar um referencial para pensar na maneira

pela qual as discussões sobre os conceitos e teorias poderiam contribuir para o

ensino da Física.

3. A Investigação Histórico-filosófica e o Ensino da Física

Além dos dois aspectos apresentados nos itens anteriores,

apresentamos, agora, uma discussão sobre o papel que a História e a Filosofia

da Física podem desempenhar, como subsídio, para a melhoria do ensino de

Física. Esse papel se estabelece com a relação que esses domínios de

conhecimento possuem e demonstram com as estruturas de conhecimento e

com as concepções prévias; como fonte de exemplares históricos

analiticamente estudados que mostram a estrutura e a dinâmica da construção

de uma teoria e como também fonte de concepções alternativas (que podem

ser competidoras ou não) de explicações e conceitos.

A partir de nossa pesquisa sobre a contribuição de uma abordagem

histórico-filosófica no ensino de Física, desenvolvemos um referencial de

trabalho no qual procuramos abordar a construção de teorias e de explicações

científicas e os elementos que as estruturam, articulam e dinamizam, com

enfoque na discussão sobre a enunciação e construção de modelos, mas com

o compromisso (pressuposto) epistêmico de aperfeiçoá-los e mesmo superá-

los.

Como elementos nucleares, explicitamos o perfil estrutural, que mostra

como se dá a construção de um conhecimento específico, que fornece

instrumentos para realizar a análise filosófica do objeto de estudo e, ao mesmo

tempo, subsidia o desenvolvimento de uma estrutura consistente, integradora

de adaptações e transformações didáticas. E apresentamos, também, o perfil

articulador, responsável pela inserção de um determinado conhecimento em

uma teoria mais abrangente e, conseqüentemente, em um corpo maior de uma

Page 346: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 345

ciência, que nos propicia condições para analisar a dinâmica conceitual de um

tema em estudo, bem como o desenvolvimento da conexão entre os conteúdos

estudados e o seu aprimoramento, ressaltando as relações que se

estabeleceram entre eles, além de nos mostrar como articular tais conteúdos

em uma elaboração didática. O desenvolvimento de tal referencial teórico para

análise é resultado da elaboração e aplicação de diversos estudos que

realizamos a respeito da formação inicial e em serviço de professores

Para a nossa exposição crítica sobre a construção de modelos2, faremos

uma reconstrução com base no texto de I. B. NOVIK (in KUZNETSOV, I. V. &

OMEL'YANOVSKII, M. E., 1965, p.381.), do qual retiramos alguns conceitos,

mas realizamos uma formulação e uma sistematização diversas das propostas

por esse autor, principalmente no que diz respeito ao conceito de construção-

de-modelos e na introdução de uma nova conceituação, a prototeoria.

Para NOVIK, o conceito de modelo deve ser generalizado a fim de que a

compreensão de um modelo não seja confinada à interpretação no espírito da

Física Clássica como um sistema pictórico (isto é, mecânico); o modelo deve

ser considerado, no espírito do estágio moderno de investigação, como uma

estrutura lógico-matemática.

Essa abordagem ao modelo-construído é justificada pela importante

regularidade do processo cognitivo moderno, que é associado a um importante

incremento no papel da categoria de relação. Nós podemos compreender a

natureza de microentidades na forma de modelos, mas os modelos neles

mesmos não são pictóricos, ou, de alguma forma, o conceito exato de

ilustração precisa sofrer uma generalização radical.

Assim, acatando a crítica desse autor, se a primeira característica

principal de construção de modelo é a redução nele de elementos de

ilustração, então a segunda peculiaridade em nossa definição é o papel

2 A nossa escolha pela construção de modelos se deu a partir de uma longa conversa comNewton C. A. da Costa a respeito de modelos na Física e as várias imprecisões conceituaispercebidas em textos gerais usados na formação superior inicial, na literatura específica emvários campos do saber, bem como em nossa busca de um esclarecimento mais aprofundado.Agradecemos as contribuições nas análises realizadas, sobre nossa elaboração, por MichelPaty e Pablo R. Mariconda. Há também de se ressalvar a análise de teorias elaboradas porprincípios; nessa perspectiva sugerimos consultar a interessante obra “Princípios: seu papel nafilosofia e nas ciências”, Dutra, L. H. A. e Mortari, C. A. (org.), NEL/UFSC, Florianópolis, 2000.

Page 347: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 346

realçado (na cognição) de modelos consistindo de elementos lógicos. Dotando

esses elementos lógicos com uma relativa independência e considerando-os

como objetos de investigação, os cientistas têm estendido drasticamente as

possibilidades cognitivas de fazer modelos.

A construção de modelos lógicos é um potente acelerador do

conhecimento físico dos dias atuais. Hoje, a compreensão física não presume

uma representação mecânica, pictórica, do processo físico. Nós vemos que

não só o conceito de modelo, mas ainda a idéia de compreensão física é

generalizada na teoria do conhecimento.

Assim, com o objetivo de esclarecer o que enunciamos como o conceito

de modelo, formulamos um conceito generalizado de construção-de-modelos: é

um método de aquisição mediada do conhecimento em que a entidade sob

estudo é investigada via outro objeto, que está em certa correspondência com

o primeiro e é capaz de substituí-lo durante certos estágios do processo

investigativo (cognitivo).

De acordo com essa definição, um modelo é uma entidade natural ou

artificial, relacionada de alguma forma à entidade sob estudo ou a alguns dos

seus aspectos. Esse modelo é capaz de substituir o objeto (entidade) em

estudo (isto é, de servir como uma “quasi-entidade” relativamente

independente), e de produzir (sobre essa investigação) certos conhecimentos

mediados concernentes à entidade sob estudo.

A importância do conceito generalizado de modelo na Física Moderna,

por exemplo, é particularmente evidente quando nos propomos a considerar a

função epistemológica da construção de modelo. Se do ponto de vista

ontológico, construção de modelo é uma correlação de uma nova entidade com

algo já relativamente estudado, então do ponto de vista epistemológico, sua

construção é uma forma de relacionamento entre uma teoria emergente e uma

teoria já estabelecida; isto nos permite raciocinar sobre o desconhecido com

base no conhecido.

Os modelos mecanicistas (pictóricos) servem como uma ligação

conectora entre novos fenômenos físicos e teorias físicas antigas. Um exemplo

de modelo pictórico nesses termos seria o modelo planetário do átomo

baseado na analogia entre o átomo e o sistema solar – plenamente de acordo

Page 348: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 347

com o espírito da Física do século XIX. É um exemplo clássico de um modelo

construído via analogia, raciocinando sobre o desconhecido por meio do

conhecido, mas sem preocupações com peculiaridades ontológicas.

Entretanto, no desenvolvimento da cognição, um “modelo” é empregado

em conexão com um diferente tipo de problema: não está em questão

relacionar novos fatos a velhas teorias, mas em passar de velhas para novas

teorias. Quando um novo fato está estabelecido no conhecimento físico,

primeiro uma tentativa é feita para interpretá-lo nas bases das idéias teóricas

existentes, por meio de uma ligeira modificação sem qualquer suposição

radicalmente nova. Se não há sucesso, recorre-se a novas suposições. Aqui, o

modelo de analogia é substituído por um modelo de hipótese, que é uma forma

preliminar de explicar novos fenômenos que não são explicados pela teoria

antiga. Esse tipo de construção-de-modelo é de grande valor prático e é

particularmente importante no desenvolvimento da Física de Partículas

Elementares, exemplar histórico que apresentaremos como o vir-a-ser de uma

nova teoria.

Na construção de modelo de hipótese temos que a sua elaboração não

é o resultado mas só o ponto de partida do conhecimento lógico. A ênfase é

desviada para o segundo estágio: a investigação do modelo construído, cujo

resultado é a transição para a formulação de uma teoria consistente, coerente,

de uma entidade física definida.

Em síntese, então, um modelo com esses compromissos não é só uma

forma de relacionamento entre uma teoria antiga e uma nova, é também uma

forma de transição para uma nova teoria, uma forma de interpretação

preliminar dos fenômenos físicos novos e também não-familiares que não são

abrangidos pela teoria pré-existente.

Essa visão geral da construção-de-modelo indica que no processo

cognitivo, o ato de modelar é tão inerente quanto a divisão entre conhecido e

desconhecido. A função epistemológica da construção-de-modelo está

intimamente ligada à natureza preliminar do conhecimento na forma de modelo.

O modelo, assim o consideramos, é a primeira forma de compreensão teórica

de novas entidades, que gera freqüentemente contradições aparentes em

nossa compreensão dessas novas entidades à luz da antiga teoria. Por essa

Page 349: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 348

razão, ele é, como era, uma exigência para uma teoria consistente, não-

contraditória, que estimule o desenvolvimento de uma compreensão teórica

sobre o assunto.

Podemos eleger os principais fatores associados a uma interpretação

generalizada do método de construção-de-modelo:

1) a correspondência objetiva entre o modelo e o que está sendo

modelado;

2) um modelo pode figurar como um substituto para o objeto sob estudo

(modelo como quasi-objeto);

3) a natureza da imagem e a natureza do objeto no processo de

construção-de-modelo formam uma unidade, como aspectos de dois estágios

inseparáveis desse processo;

4) a função heurística: uma explicação preliminar do fenômeno que não

tem qualquer outra explicação na antiga teoria.

Para discutirmos o papel dos modelos no processo de formação e

desenvolvimento das teorias, tendo como exemplo a Física das partículas

elementares, podemos dividir os modelos usados no processo cognitivo em

dois tipos:

- modelos ilustrativo-metodológicos (mais clássicos);

- modelos heurísticos (preliminares, incompletos, pontos de partida para

uma explicação).

Dependendo do grau de expressão da natureza da entidade a ser

modelada, julgamos pertinente dividir os modelos heurísticos em

fenomenológicos (descrevem certos aspectos que caracterizam o modo como

um processo físico se desenvolve, mas não explicam por que ele ocorre

precisamente daquela maneira) e tipo-essência (fornece certas interpretações

preliminares das essências e causas do processo físico).

Os modelos fenomenológicos incluiriam modelos classificatórios que

percebem regularidades específicas nas relações das entidades físicas, mas

não são capazes de explicar suas essências. Eles têm seu papel, têm largo

uso (por exemplo, a teoria de Dirac do elétron faz uso de um modelo

representando o elétron na forma de um ponto enquanto que em teorias não-

locais o elétron é visto como uma nuvem difusa), mas têm valor limitado na

Page 350: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 349

elaboração da teoria das partículas elementares, pois não são tão heurísticos

como os modelos de sistematização.

Para caracterizar os elementos que servem como objeto de construção-

de-modelo, os modelos tipo-essência são convenientemente divididos em

lógico-matemáticos e em ontológicos. Os modelos lógico-matemáticos são

sistemas de elementos lógico-matemáticos, cuja estrutura é análoga à

estrutura das entidades físicas; se eles possuem tal estrutura em um grau

inferior, chamamo-los de modelos lógico-matemáticos fenomenológicos e, se

eles a possuem em um grau superior, chamamo-los de modelos lógico-

matemáticos tipo-essência.

Os modelos ontológicos servem como suposições iniciais concernentes

às peculiaridades essenciais de certos domínios da realidade física. O

reconhecimento dessas peculiaridades de existência real permite obter

resultados teóricos importantes.

A matematização da Física exerce um papel inquestionável para o

alcance e a estabilidade de suas teorias, contribuindo para a sua

cognoscibilidade, intersubjetividade e universalização. Sendo assim, em qual

sentido e em quais condições os elementos do aparato matemático podem ser

considerados um modelo na investigação física?

– O aparato matemático deve expressar uma condição de conteúdo

básico: analogia com os respectivos aspectos do processo físico. Tal analogia

é de natureza específica, que não se reduz a uma correspondência elemento-

a-elemento entre o modelo e o objeto sendo modelado.

– Ocorre a presença de um isomorfismo de um tipo especial: a alguns

aspectos do processo físico corresponde uma expressão matemática tomada

com uma certa integralidade que não pode ser decomposta em quaisquer

elementos.

Por exemplo, a estrutura da equação de Dirac, para a eletrodinâmica

quântica (QED) como um conjunto, é uma analogia de certos aspectos

significantes no comportamento do elétron e, por esta razão, quando

investigando a equação, obtemos informação sobre o elétron de forma

mediada.

Page 351: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 350

Empregamos o termo modelo lógico-matemático para assinalar a

diferença essencial entre modelos matemáticos e modelos de símbolos. A

linguagem matemática tem sua própria lógica, que é relativamente

independente da lógica de um processo físico e, por essa razão, reproduz o

conteúdo físico indiretamente. Em contraste, modelos de símbolos gravam

diretamente a estrutura do objeto a ser modelado e não têm sentido fora da

estrutura criada.

A tarefa essencial de um modelo consiste, como já dissemos, em dar

uma interpretação preliminar para um novo fenômeno. Assim, o formalismo

matemático pode ser um desenvolvimento prévio para a elaboração de uma

teoria física consistente e para experimentações decisivas. Nesse caso, o

modelo matemático é construído a partir de um fenômeno cuja natureza física

ainda não foi revelada; tal construção não é feita por analogia mas por uma

extrapolação matemática chamada de método de hipóteses matemáticas.

O formalismo matemático, desse modo, é capaz de dar não somente um

esquema de cálculo para estudos quantitativos de um fenômeno de natureza

qualitativa desconhecida, como também de descrever essa própria natureza

qualitativa para a qual nenhum método consistente de solução quantitativa da

equação apropriada ainda existe. Tal é o caso na Física Moderna com respeito

à não-linearidade das equações, a qual é considerada como uma expressão de

um aspecto qualitativo fundamental das partículas elementares: suas

capacidades de auto-ação e auto-influência. Aqui o formalismo matemático

compreende um aspecto essencial de relação das partículas elementares, mas

os métodos quantitativos de solução de tais equações não são ainda

totalmente satisfatórios.

Os modelos lógico-matemáticos fenomenológicos podem incluir modelos

gráficos, que não objetivam explicar um processo físico, mas produzem um

esquema pictórico conveniente por realizar cálculos e previsões. Exemplo disso

são os diagramas de Feynman, que dão uma representação esquemática do

mecanismo de interação entre partículas elementares.

O segundo tipo de modelo matemático produz uma interpretação do

processo como um conjunto, não somente incorporando suas relações

quantitativas, mas também descrevendo qualitativamente certas relações

Page 352: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 351

essenciais de um dado processo ou fenômeno, e é o mais importante para o

desenvolvimento do conhecimento físico. Este segundo tipo de modelo

matemático, modelos matemáticos tipo-essência, dá uma descrição mediada

da natureza qualitativa do processo físico.

Algumas posições intermediárias podem existir entre os dois tipos: de

um lado, um modelo elabora um padrão fenomenológico de cálculo que não

pressupõe qualquer nova propriedade do processo físico, mas, por outro lado,

de suas relações matemáticas surgem idéias tipo-essência fundamentais (por

exemplo, as relações de dispersão e a invariância relativística).

Assim, a natureza racional da construção de modelos consiste,

primeiramente, no fato de que ela será consistentemente substanciada no

desenvolvimento subseqüente da teoria; posteriormente, ela avança não em

uma estatística simples e arbitrária, do tipo máquina de checar hipóteses, mas

sim pela adição de certas condições objetivas.

Consideramos quatro condições do tipo ontológico para o seu avanço:

1) Um modelo (ontológico) precisa responder às necessidades

existentes racionalmente definidas.

Na Física Moderna, as necessidades matemáticas assumem o papel de

um importante fator teórico que produz um efeito sobre a lógica da pesquisa

física, pois um aspecto característico de um modelo ontológico físico é seu

relacionamento orgânico com um modelo matemático apropriado.

2) As novas idéias que fundamentam um modelo precisam ser

necessárias e suficientes para suplantar – ao menos, de início – as dificuldades

da teoria em questão.

3) Em modelos novos, a quantidade de informação obtida tem de ser

maior que aquelas perdidas pela substituição do modelo aceito.

4) Não introduzir fatores tão exóticos que estejam fundamentalmente

além do escopo da inteligência humana.

Ressaltamos que compreendemos modelos matemáticos, relacionando-

os com a primeira condição, como instrumentos matemáticos com novas

peculiaridades estruturais que freqüentemente envolvem uma rejeição de

axiomas matemáticos “ordinários”.

Page 353: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 352

Em nossa investigação da busca de uma estrutura para construção de

teorias baseadas em modelos nos deparamos com uma questão

epistemológica no processo de passagem dos modelos construídos para a

nova elaboração teórica, a qual uma vez bem estabelecida é alçada ao

patamar de teoria: como se dá esse processo de passagem? Ele é direto, sem

uma etapa intermediária na qual ocorram reformulações aperfeiçoadoras de

uma síntese conceitual inovadora? Essa seria uma situação que consideramos

imprópria, pois conhecemos ao longo da história da ciência vários processos

construídos de sínteses chegando a atingir o coroamento da coerência teórica.

Assim, pareceu-nos necessário haver uma instância emergente e diferente dos

modelos, um elemento epistemológico (mas com fundamentações filosóficas)

com compromissos ligados à estabilidade teórica, sem amarras a conceitos

anteriores (com independência de suas origens) e propositor de novas

entidades para o estudo científico. Para preencher essa lacuna conceitual

criamos a concepção de prototeoria3, etapa intermediária entre o modelo e a

teoria.

Definimos prototeoria como a concepção que nasce de modelos

heurísticos, que têm primeiro uma instância fenomenológica e depois uma

instância tipo-essência, e que deve amadurecer para se tornar uma teoria. Na

instância fenomenológica, tem-se a participação de modelos classificatórios já

sistematizados. Na instância tipo-essência, participam modelos lógico-

matemáticos superiores, cujas estruturas matemáticas estão em analogia com

a estrutura de entidades físicas e que já produzem uma ontologia das

entidades em estudo.

A prototeoria possui, assim, força heurística suficiente para ser testada

racionalmente e pode ser reconstruída historicamente, a partir de uma análise

retrospectiva em que identificamos quais as bases conceituais que levaram a

uma teoria bem-sucedida. É significativo ressaltar que encontramos na

literatura da área científica e da filosofia da ciência uma imprecisão de variado

enfoque a respeito de termos como teoria, hipótese, modelo, enunciado, dentre

3 O termo prototeoria, um neologismo, foi por nós cunhado (em 1996) em semelhança aosignificado de proto-história (protohistoire): período cronológico intermediário entre a pré-história e a história.

Page 354: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 353

outros, muitas vezes apresentados como de mesmo estatuto epistemológico

ou, ainda mais confuso, como sinônimos. Para a nossa análise, considerando

que tal ambigüidade implica em falta de clareza e profundidade para a

compreensão da construção do conhecimento científico, é importante enunciar

o que entendemos por teoria científica, seja ela de alcance específico ou

universal.

Entendemos uma teoria física como uma elaboração que seja coerente

com os aspectos empíricos com os quais ela se relaciona, com o maior grau de

abrangência – no sentido de explicar os dados experimentais já conhecidos e

quaisquer outros novos que vierem a existir – e que seja coerente segundo

uma lógica escolhida, seja ela clássica ou heterodoxa, na sua estrutura

matemática, no seu domínio de aplicabilidade e em um conjunto de regras que

permitam conectar a teoria com uma estrutura lógico-matemática e com o

domínio empírico estabelecido4. Com tal concepção, procuramos não cair em

algum erro epistemológico com uma conceituação excessivamente rigorosa do

que seja uma teoria física.

A diferenciação entre a prototeoria e modelos heurísticos é que

diferentemente destes últimos, que são uma aquisição intelectual mediada do

desconhecido em termos do conhecido, a prototeoria propõe elementos

conceituais novos que deverão ser confirmados, tendo como conseqüência

uma nova teoria propriamente dita. Todavia, o que coloca a discussão da

prototeoria não é tão somente a sua potencialidade heurística, mas o fato de

que extraia objetivamente, do processo de investigação de construção e

estruturação de um dado conhecimento, qual é a essência e o próprio vir-a-ser

do período de transição e consolidação de uma nova teoria. A compreensão

desse processo se torna um recurso de análise metodológica, epistemológica,

ontológica e historiográfica.

Podemos, assim, sistematizar nossas idéias em um quadro de hierarquia

ascendente no qual expomos as relações discutidas:

4 Baseamos nossa definição, com algumas modificações, em DA COSTA (1997, p.107)

Page 355: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 354

Para exemplificar nosso estudo com uma análise e classificação de uma

elaboração teórica, abordamos a chamada Teoria de Fermi para o decaimento

β. Essa formulação é um bom exemplar uma vez que a encontramos na

literatura enunciada como “tentativa de teoria”(Fermi), ou ainda, “hipótese de

interação universal”(Leite Lopes), o que para nós vem demonstrar que existe

um diferencial, uma qualidade inovadora até então não estabelecida. Ela pode

ser identificada como uma prototeoria, um estágio intermediário do

desenvolvimento da compreensão do que se chamará de Teoria das Interações

Fracas, no qual já encontramos elementos fundamentalmente novos, porém

ainda sem uma estrutura teórica totalmente coerente e uma abrangência

empírica de maior grau.

Assim, tal prototeoria tem na sua instância fenomenológica alguns

parâmetros constantes que são determinados experimentalmente, usando

modelos classificatórios do decaimento β já conhecidos, mas que não o

explicam. Nessa instância, ela também utiliza a analogia da criação/aniquilação

do par e-- ν com a criação/aniquilação do fóton na QED, e o modelo n-p de

força nuclear de Heisenberg – que introduz a noção de núcleon.

Na sua instância tipo-essência, tem-se a participação, como modelo

lógico-matemático, do número quântico isospin, da QED de Dirac e do método

da segunda quantização, originando a proposição da interação local entre duas

correntes: a nuclear e a de partículas leves. Tal modelo responde a uma

QUADRO DE SISTEMATIZAÇÃO

MODELOSCLASSIFICATÓRIOS

MODELOSDE SISTEMATIZAÇÃO

MODELOSFENOMENOLÓGICOS

MODELOSHEURÍSTICOS

MODELOSLÓGICO-MATEMÁTICOS

FENOMENOLÓGICOS

MODELOSLÓGICO-MATEMÁTICOS

TIPO-ESSÊNCIA

MODELOSLÓGICO-MATEMÁTICOS

MODELOSONTOLÓGICOS

MODELOSTIPO-ESSÊNCIA

PROTOTEORIA

TEORIA

Page 356: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 355

ontologia sobre os princípios de conservação de energia, de momentos e de

carga.

Por fim, essa prototeoria propõe como elementos conceituais novos a

necessidade de uma nova partícula – o neutrino, cuja existência é inexplicável

em outro contexto teórico, uma nova constante (g) na natureza que mostra a

existência de um novo tipo de interação na matéria – a interação fraca – e uma

forma nova de correntes de interação, que relaciona outras partículas da

matéria (nêutron, próton e anti-neutrino) além do elétron, como já conhecido na

QED.

Como uma prototeoria, a elaboração de Fermi mostrou sua

originalidade, força e eficácia e, também, mostrou suas deficiências e

limitações que implicaram em reelaborações conseqüentes do próprio

desenvolvimento teórico da Física. Concluindo, a prototeoria de Fermi contém

inconsistências segundo a lógica clássica, uma vez que une tratamentos

relativísticos (corrente leptônica) e não-relativísticos (corrente de núcleons). Em

seu próprio arcabouço teórico encontramos problemas físicos uma vez que sua

constante de acoplamento não é renormalizável. No entanto, apesar de suas

limitações, ela responde bem aos resultados experimentais em baixa energia

(por volta de 300 MeV)5.

Exemplar de Análise

5 Para detalhes dos desdobramentos históricos e conceituais dessa proposta de Fermi, verBATISTA (1999 e 2001).

Instância Fenomenológicaanalogia com criação/aniquilação de fótons;

modelo n-p de Heisenberg;classificação de decaimentos de Sargent.

Instância HeurísticaProposição e justificativa qualitativa

da existência da partícula neutra (Pauli).

Instância tipo-essênciaNúmero quântico Isospin;

método da segunda quantização;Princípios de Conservação (E, L, p, Q).

PROTOTEORIA DE FERMIInteração local entre correntes;

constante g; partícula neutrino e suas propriedades;corroboração experimental; interação V–A; etc.

TEORIAELETROFRACA

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Irinéa de Lourdes Batista 356

Com a evolução constante da investigação na área das partículas,

trabalhando com altas energias, foi natural a insatisfação e a busca de

melhoramento dessa prototeoria. Concomitante a isso, o desenvolvimento

contínuo e profícuo do formalismo na Física Quântica de Campos e Mecânica

Quântica instrumentalizou os físicos para reelaborações menos problemáticas.

Contudo, a despeito dos problemas e limites, a idéia emergente e fundamental

das interações fracas entre correntes – uma idéia nova e frutificadora para a

descrição do comportamento quântico da matéria – está nas concepções de

Fermi. Assim, consideramos a prototeoria de Fermi revolucionária não como

produto subseqüente do desenvolvimento normal dos trabalhos da física

quântica vigente, mas como aquela capaz de criar uma nova área de pesquisa

na Física, a Física de Altas Energias, atualmente conhecida como a Física de

Partículas.

4. Contribuição de uma Reconstrução Histórica-filosófica para a Pesquisaem Ensino de Física

Como dissemos anteriormente, objetivamos um trabalho no qual

procuramos abordar a construção de teorias e explicações científicas e os

elementos que as estruturam, articulam e dinamizam, enfocando a enunciação

e construção de modelos, mas também apresentando uma proposta

interpretativa com um elemento adicional (prototeoria) na explicação da

obtenção das teorias. Com a estrutura histórico-filosófica obtida acreditamos

que podemos contribuir na análise a respeito do conhecimento científico, bem

como no processo cognitivo.

O ensino de Ciências por meio de modelos tem sido um tema de

interesse crescente na pesquisa em Educação Científica. No entanto, o termo

modelo tem sido usado com sentidos diversos na literatura tanto na área de

História e Filosofia da Ciência como na área de Educação. Encontramos em

Krapas et al. (1999) uma interessante sistematização de categorias relativas

aos sentidos de modelos encontrados em periódicos internacionais, na qual os

autores destacam

Page 358: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 357

(...) a polissemia do conceito de modelo e a existência de diversos tipos de modelos(mental, conceitual, etc) para os diversos autores; o papel central da analogia naformação dos modelos; a importância pedagógica dos processos de modelagem...(KRAPAS, S. et al, 1999, p. 6)

A importância da discussão sobre modelos para a dimensão cognitiva já

é consensual para a comunidade científica envolvida na pesquisa dos

processos de ensino e de aprendizagem.

Fica então registrada a conseqüente necessidade de, além de mapear os sentidosmais usuais atribuídos ao termo [modelo], (...) explicitar as perspectivas teóricas apartir das quais se investigam modelos em ciências e na educação em ciências.(KRAPAS, S. et al., 1999, p.10)

Concordando com os autores, nosso trabalho se insere nessa

perspectiva de fundamentação e sistematização teórica para a reflexão sobre a

conceituação a respeito de modelos e, sendo esse o enfoque primordial, sobre

a construção de explicações científicas que alcancem o estatuto de teorias. O

conhecimento dessas estruturas conceituais, explicitadas da forma como

elaboramos, implementam e colaboram para a ocorrência da aprendizagem.

Ou seja, para que o estudante aprenda um determinado modelo, não basta que sejaapresentado a ele, senão que deveriam de ser-lhe apresentadas uma série desituações que lhes permitissem perceber os conceitos, relações e propriedades dosmodelos físicos...(GRECA, I. L. & MOREIRA, M. A., 2002, p.22)

Com essa fundamentação, uma discussão com abordagem histórico-

filosófica recria o ambiente contextualizador que permite entender a origem da

problemática, do desafio conceitual e/ou empírico – como se apresentaram as

questões, as hipóteses, os elementos conflitantes – e os desenvolvimentos

subseqüentes, atingindo os conhecimentos procedimentais (os comos) além

dos declarativos (o quê), para uma reestruturação fundamental, no sentido de

ruptura com as bases conceituais originais. Uma elaboração conceitual que

implica em um abandono de um corpo teórico prévio, com a criação de uma

idéia totalmente nova, apresenta a superação de uma estrutura epistemológica-

cognitiva subjacente. Esse rompimento conceitual permite pensar o

desconhecido com os novos instrumentos de análise e, assim, se no início do

processo cognitivo recorremos a analogias, haverá o momento de abandoná-

las em favor de novas estruturas de pensamento.

Page 359: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista 358

Argumentamos que uma abordagem histórico-filosófica apresenta e

contribui para a compreensão do porquê uma proposição é considerada

comprovada, estabelecida como conhecimento, e como ela se relaciona com

outras proposições na Física. Pensamos que o aluno/professor que é

estimulado a pensar mediante uma estrutura epistemológica-cognitiva

relacionada a um dado conteúdo estará mais apto a explicar quaisquer

proposições, conceituações, de maneira integrada e desenvolver, por meio de

sua própria crítica, uma visão ampliada e consistente da atividade científica.

Defendemos, pois, que o desenvolvimento didático – formal e empírico –

do conteúdo físico (e também de outras ciências) deve levar em consideração

a história desse conteúdo e os problemas de interesse epistemológico

(problemas geradores), pois o desenvolvimento de um trabalho que envolva

tais aspectos pode propiciar uma compreensão maior do processo de criação

de conhecimentos físicos, evidenciando o papel da epistemologia histórica da

Física como agente atuante na inteligibilidade das teorias. Ou seja, pensamos

que o processo de ensino e de aprendizagem na educação científica deve

invocar o trabalho com uma abordagem pedagógica que envolva

integradamente a História, a Filosofia e a Ciência.

Buscando uma síntese a partir dos referenciais teóricos apresentados,

nossa discussão apresentou a investigação de um objeto de estudo por meio

da reflexão e da análise filosófica, fundamentada nos perfis estrutural e

articulador dos conhecimentos envolvidos na reconstrução histórica. A função

da estrutura apresentada (instância de modelos prototeoria teoria) para

investigar a construção e consolidação de teorias é explicitar os fundamentos e

os eixos condutores do conhecimento científico, bem como identificar a

dinâmica da articulação desses eixos ao longo da história da ciência estudada.

Assim, propomos tal estrutura como um recurso didático para a organização e

discussão dos conteúdos científicos, tornando-se parte da estrutura para o seu

ensino.

No elenco de nossas preocupações também possuem lugar as

argumentações a respeito da aplicação dos referenciais históricos e filosóficos

no ensino das ciências, tendo na sua essência a pertinência e a necessidade

desses referenciais como elementos de decisão dessa aplicação. Assim,

Page 360: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O ensino de teorias físicas mediante uma estrutura histórico-filosófica 359

sustentamos a nossa proposta pois consideramos que aqui a abordagem

histórico-filosófica funciona como um fio condutor dos raciocínios, como um

elemento na estrutura didática que favorece a cognoscibilidade dos conteúdos,

que justifica racionalmente a coordenação didática desses, estabelecendo-se

no próprio corpo integrado das estruturas de ensino e, como pretendemos, de

aprendizagem.

Desse modo, em função de sua coerente adaptação didática, os

instrumentais obtidos pela análise histórico-filosófica integram-se de maneira a

quase ficarem indiferenciáveis; eles não estarão participando como exemplos

históricos adicionais no ensino ou como elementos buscando uma integração

ciência-tecnologia-sociedade, como podemos encontrar em farta literatura

sobre a contribuição da história e filosofia no ensino de Ciências. Essa

integração relacional e cognitiva é a principal característica que buscamos

evidenciar, com a apresentação de recursos teórico-metodológicos para obtê-la

no ensino, reconhecendo que um dos desafios postos é o pleno entendimento

de que se trata de um processo interdisciplinar, no qual o objetivo norteador

dessa elaboração didática é o ensino de ciências (ou de uma ciência) e é ele

que dita as prioridades das escolhas. Dessa forma, como é de nossa

convicção, fortalece-se a compreensão do conhecimento científico e não se

confunde o seu ensino com o ensino de História e Filosofia da Ciência.

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática: umaproposta de interação entre domínios de conhecimento

Irinéa de Lourdes BatistaDepartamento de Física/UEL

Simone LuccasMestre em Ensino de Ciências e Educação Matemática/UEL

Resumo: Nesse trabalho apresentamos uma abordagem histórico-filosóficacom o objetivo de contribuir para a pesquisa em educação matemática,fundamentada em uma análise de elementos epistêmicos, lógicos,ontológicos e metodológicos da estrutura e das articulações que umdeterminado conhecimento apresenta desde sua criação até odesenvolvimento atual, bem como a habilidade do mesmo em solucionarproblemas. Partindo dos referenciais teóricos elencados, apresentamos umexemplar de aplicação da abordagem, com a reconstrução histórico-filosófica dos conteúdos Sistemas de Equações Lineares e Determinantesencontrados nos trabalhos desenvolvidos por dois matemáticos: TakakazuSeki Kowa (1642-1708) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).

Palavras-chave: Abordagem Histórico-Filosófica; História da Matemática;Educação Matemática.

Abstract: In this paper we presented a historical-philosophical approachwith the aim of contribution to research in Mathematical Education,considering the analysis of epistemological, logical, ontological andmethodological elements of the structure and of the articulations that aspecific knowledge presents from its creation until the current development.Also, we are concerned with the ability of this knowledge presents to solveproblems. Based on theoretical references, we presented an exemplar ofapplication of our approach, with the historical-philosophical reconstructionof the subjects Systems of linear equations and Determinants found in theworks developed by two mathematical: Takakazu Seki Kowa (1642-1708)and Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).

Key-words: Historical–Philosophical approach; History of the Mathematics;Mathematical Education.

1. Introdução

A inclusão da História da Matemática no ensino vem sendo

mundialmente pesquisada e discutida em conferências, congressos, grupos de

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 362

estudos inclusive da internet.

Tal incorporação é defendida segundo uma abordagem mais

abrangente, adequada, consciente e didática que ofereça condições para uma

aprendizagem crítica e reflexiva, uma vez que nos dias atuais há uma grande

carência científica, o que acarreta sérios danos principalmente ao campo

educacional.

Essa realidade nos conduziu a uma busca por opções alternativas tanto

epistêmicas quanto metodológicas de trabalho. Neste sentido, a Educação

Matemática intervém positivamente, possibilitando a reflexão e a análise crítica

no ensino e na aprendizagem, ressaltando aspectos relevantes tanto da

estrutura quanto das articulações existentes entre o conhecimento matemático,

a proposta metodológica e a realidade educacional.

Pudemos constatar, historicamente, que o enfrentamento de problemas,

bem como a busca de suas soluções, têm atuado como uma mola propulsora

para a evolução da humanidade. Assim sendo, cremos que o estudo e a

análise de tais problemas conforme uma abordagem Histórico-Filosófica pode

estimular a ocorrência da compreensão, da aprendizagem e,

conseqüentemente, do desenvolvimento científico. Porém alguns

questionamentos merecem atenção, tais como: Existe fundamento para esta

afirmação? Há evidências históricas de que os problemas realmente fomentam

a evolução científica? E, principalmente, como desenvolver uma proposta

educacional consistente que amenize o quadro acima exposto conforme tal

abordagem?

2. Abordagem Histórico-Filosófica na Educação Matemática

A abordagem Histórico-Filosófica é relativamente recente no meio da

pesquisa em Educação Científica e, até onde pudemos pesquisar, ainda

inexplorada no campo da Educação Matemática. Desse modo, encontramos

alguns pesquisadores que têm discorrido sobre a importância da História da

Matemática ou da Filosofia da Matemática, porém poucos têm abordado a

perspectiva Histórico-Filosófica.

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 363

Dentre tais pesquisadores podemos citar Angel Ruiz Zúñiga. Esse

pesquisador enfatiza que a História da Matemática é fonte de riqueza

metodológica e epistemológica, pois a natureza matemática e também sua

história possuem um vasto campo de experimentações, por meio dos quais é

possível fazer grandes e importantes reflexões e inclusive conduzir a idéias

renovadoras.

Zúñiga comenta que a História da Ciência e, em particular, da

Matemática, já é em si mesma uma fonte de satisfação intelectual e, também

que

[...] na prática matemática a história é um fator essencial para compreensão de seusconceitos e métodos, de suas perspectivas, seus limites e suas possibilidades; uminstrumento valioso para a determinação de estratégias coletivas de evoluçãoconsciente e adequada a nossas condições e recursos (ZÚÑIGA, 1990, p.263).

O pesquisador Antonio Miguel, em sua tese de doutorado realizada no

ano de 1993, abordou a relação que existe entre a História, a História da

Matemática e a Educação Matemática.

Em sua tese, Miguel resgata a História por meio de levantamento,

detalhamento e análise dos diversos papéis pedagógicos atribuídos a ela por

matemáticos, historiadores e educadores matemáticos. Miguel também analisa

o resgate da Educação Matemática na História, recorrendo à História, à

Epistemologia da Matemática e à Filosofia da Educação tentando reconstituir

os paradigmas da Educação Matemática na História. Outro aspecto presente

em seu trabalho é a apresentação de um estudo histórico-pedagógico-temático

sobre os Números Irracionais evidenciando a relação História e Educação

Matemática.

Segundo Miguel a utilização da História no ensino da Matemática pode

ocorrer de várias formas. Dentre elas, as principais levantadas por ele foram o

uso da História como: Motivação, Objetivo, Método, Recreação,

Desmistificação, Formalização, Dialética, Unificação, Axiologia,

Conscientização, Significação, Cultura, e Epistemologia.

Miguel acredita que a História pode e deve desempenhar um papel

subsidiário na Educação Matemática, desde que “devidamente reconstituída

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 364

com fins pedagógicos e organicamente articulada com as demais variáveis que

intervêm no processo de planejamento didático” (1993, p.107).

Outro fator abordado por ele, diz respeito à “desastrosa” apresentação

técnica e aparentemente neutra dos fatos científicos ou matemáticos, isenta de

qualquer tipo de contextualização. Ao seu ver, uma maneira de se contrapor a

tal situação é trabalhando com uma História da Matemática pedagogicamente

orientada, pois ele acredita que

[...] cidadãos matematicamente educados com base numa metodologia histórica quepromova o pensamento independente e crítico e a autonomia intelectual é queestarão melhores preparados para propor, analisar, discutir e votar por medidasemancipadoras referentes ao papel a ser desempenhado no contexto das sociedadesatuais pelas ciências em geral e pela matemática em particular (MIGUEL, 1993,p.114).

Outro pesquisador que também desenvolveu estudos na área de História

da Matemática foi Carlos Roberto Vianna. Em sua dissertação de mestrado

(1995), o autor argumenta que, a partir da década de 1980, tem ocorrido uma

tentativa de abandono da utilização da Matemática Moderna em praticamente

todo o mundo. No Brasil, o autor indica que, principalmente a partir de 1985,

também têm ocorrido propostas de reformulação no ensino e a História da

Matemática tem aparecido de maneira destacada na Educação Matemática.

Tal reformulação conduziu Vianna, em sua dissertação de Mestrado, a

analisar a utilização da História da Matemática em uma coleção de livros

didáticos de 5ª a 8ª série: “Matemática e Vida”, estabelecendo e classificando-a

em quatro categorias: História da Matemática como Motivação; História da

Matemática como Informação; História da Matemática como Estratégia

Didática; História da Matemática como parte Integrante do Desenvolvimento do

Conteúdo (Imbricado).

Vianna constatou que nesta coleção a História da Matemática esteve

presente em 50 momentos, sendo que em 84% destes, ela apareceu nas duas

primeiras categorias de “História” acima citadas. Em sua análise Vianna

lamentou a inclusão da História da Matemática:

Infelizmente não podemos afirmar que, juntamente com esse crescente interesse pelaHistória da Matemática, tenha havido uma sensível melhora na forma deapresentação do conteúdo matemático nos livros didáticos ou que os alunos tenhampassado a mostrar uma melhor compreensão da matemática (VIANNA, 1995, p. 64).

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 365

Michael N. Fried (2001, p.392), outro pesquisador que tem desenvolvido

reflexões neste campo, comenta que têm ocorrido muitas discussões sobre a

inclusão da História da Matemática no ensino, porém pouco tem sido feito nas

escolas. Para ele há três grandes razões para que tal incorporação ocorra, pois

ela humaniza a Matemática, faz com que a Matemática seja mais interessante,

mais compreendida e mais acessível, permitindo uma visão maior dos

conceitos, dos problemas e de suas resoluções (esta última razão, para ele, é a

mais importante de todas).

Segundo Fried, há várias maneiras de introduzir a História da

Matemática na escola; no entanto, em geral, há duas estratégias básicas: a de

Adição (estratégia passiva que só alarga o currículo) e a de Acomodação ou

Ajuste (utiliza o desenvolvimento histórico no ensino) (FRIED, 2001, p.392).

Fried defende que se alguém está disposto a alargar o

comprometimento com o ensino da matemática incluindo a humanização desta,

então certamente a resolução desta dificuldade está em combinar a História e a

Educação Matemática (FRIED, 2001, p.401).

Encaminhando-nos para a discussão no domínio da Filosofia da Ciência,

temos Larry Laudan ressaltando que no século XX, principalmente, observou-

se o crescimento de um grande número de áreas especializadas. Segundo ele,

o surgimento de tantas áreas dificulta a visão do todo, ocasionando um efeito

deletério na história do pensamento: a falta de percepção pelos historiadores

do caráter integrativo dessa história. (LAUDAN, 1977, p. 173).

Laudan contesta este tipo de concepção pois, em seu modo de ver, o

objetivo da Ciência consiste essencialmente na capacidade de resolver

problemas1, e que estes para serem analisados devem estar inseridos em um

contexto de pesquisa (LAUDAN, 1977, p. 11 e 13).

O autor defende também que a evolução das idéias, dos problemas e de

suas soluções, é necessariamente um processo interdisciplinar (LAUDAN,

1 A atividade científica compreendida como resolução de problemas é recorrente na filosofia daciência. Conforme temos em Popper: “... a ciência deve ser vista como o desenvolvimento deum problema para outro – problemas cada vez mais profundos”. E ainda “o problema suscita odesafio de aprender, avançar o nosso conhecimento, experimentar e observar” (POPPER,1982, p.247). A diferença em Laudan é que ele amplia essa compreensão para aspectosfilosóficos que incluem a ontologia e a metafísica desses problemas.

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 366

1977, p. 174). Desse modo, o aumento da especialização das áreas tende não

só a dificultar o desenvolvimento de um conhecimento com tal caráter, como

também o distancia cada vez mais de qualquer tipo de contexto. Tal concepção

inevitavelmente apresenta reflexos na produção de conhecimentos e,

conseqüentemente, no campo educacional.

Outra defesa de Laudan consiste na idéia de que uma concepção teórica

pertence a um contexto histórico e, também, está sujeita às tradições de

pesquisa (LAUDAN, 1977, p. 180-184). Para Laudan uma tradição de pesquisa,

caracteriza-se como “um conjunto de suposições gerais sobre entidades e

processos em um domínio de estudo e sobre os métodos apropriados a serem

utilizados para a investigação dos problemas e a construção de teorias nesse

domínio” (LAUDAN, 1977, p. 81).

A adoção por uma tradição de pesquisa, segundo ele, é feita segundo a

capacidade que esta possui de resolver a maior quantidade possível de

problemas que surgem. Laudan admite também que o poder de argumentação

pode mudar de uma época para outra, dependendo da tradição de pesquisa

atuante, pois os “sistemas de pensamento não são meramente relações lógicas

entre proposições [...], mas também tentativas de resolver o que são

percebidos como problemas importantes”, e que “um sistema de idéias só pode

ser compreendido, quando se conhece, em detalhes, os problemas aos quais

ele foi dirigido” (LAUDAN, 1977, p. 175-176).

Queremos ressaltar, desse modo, a relevância e a pertinência da

existência de uma discussão e proposta pedagógica fundamentada em um

contexto histórico e em uma discussão filosófica, que evidencie o

desenvolvimento e o conhecimento baseado na resolução de problemas de

uma determinada ciência, como observaremos na análise histórico-filosófica

que iremos realizar no próximo item, pois a reconstrução histórica com essa

abordagem filosófica – identificação dos problemas e tradições de pesquisa –

permite o acesso à criação e à evolução do conhecimento em seu contexto

original, bem como à trajetória deste no decorrer do tempo até os dias atuais.

Consideramos que a abordagem histórico-filosófica contribui para a

compreensão dos problemas contemporâneos, uma vez que a análise

epistêmica, lógica, ontológica e metodológica da estrutura e das articulações

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 367

que um determinado conhecimento apresenta desde sua criação até o

desenvolvimento atual, e a habilidade que o mesmo apresenta para solucionar

problemas, caracterizam-se como sendo de fundamental importância para a

evolução da capacidade crítica e consciente do ser humano.

A produção de um trabalho sob uma perspectiva que envolva

simultaneamente a História da Matemática e a Filosofia da Matemática pode

gerar um ambiente ainda mais favorável à análise e à reflexão de objetos de

estudo, com vistas a perceber o processo dinâmico que permeia o

conhecimento.

No campo das Ciências – notadamente na Física – tal abordagem já

vem sendo explorada há algum tempo, com produção de trabalhos e artigos na

área. Citamos como exemplo os estudos de revisão bibliográfica, de pesquisa e

de aplicação de Michael R. Matthews e Irinéa L. Batista.

Matthews ressalta que vivemos atualmente uma larga crise no ensino

contemporâneo de Ciências, corroborada pela evasão tanto de professores

quanto de alunos das salas de aula, e também pelo alto índice de

analfabetismo nas Ciências.

Realizando uma revisão sobre as discussões na área, o pesquisador

comenta que o ensino de ciências desenvolveu-se totalmente separado da

História e da Filosofia, e que nesta última década tem ocorrido uma

reaproximação entre tais áreas. Muitos são os fatores positivos, segundo ele,

ocasionados por tal reaproximação:

[...] podem humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses pessoais, éticos,culturais e políticos da comunidade; podem tornar as aulas de ciências maisdesafiadoras e reflexivas, permitindo, deste modo, o desenvolvimento do pensamentocrítico; podem contribuir para um entendimento mais integral da matéria científica, istoé, podem contribuir para a superação do “mar de falta de significação” que se diz terinundado as salas de aula de ciências, onde fórmulas e equações são recitadas semque muitos cheguem a saber o que significam; podem melhorar a formação doprofessor auxiliando o desenvolvimento de uma epistemologia da ciência mais rica emais autêntica, ou seja, de uma maior compreensão da estrutura das ciências bemcomo do espaço que ocupam no sistema intelectual das coisas (SCIENCE &EDUCATION, 1992, apud CAD.CAT. ENS. FÍSICA, 1995, p.165).

Batista, pesquisadora atuante na área de ensino de Física, defende o

desenvolvimento formal do conteúdo físico que leve em consideração a sua

discussão histórica e seus problemas de interesses epistemológico, lógico e

ontológico, pois o desenvolvimento de um trabalho que envolva tais aspectos

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 368

pode propiciar uma compreensão maior do processo de criação de

conhecimentos físicos, evidenciando o “papel da epistemologia histórica da

Física como agente atuante na inteligibilidade das teorias” (BATISTA, 2000

apud ATAS do VII EPEF).

Com relação ao quadro conceitual da Física Moderna e Contemporânea,

Batista argumenta que uma abordagem Histórico-Filosófica contribui para

[...] a compreensão do porquê uma proposição é considerada comprovada,estabelecida como conhecimento, e como ela se relaciona com outras proposições naFísica. Pensamos que o aluno/professor que é estimulado a pensar mediantealgumas questões epistemológicas sobre um dado conteúdo, estará mais apto aexplicar quaisquer proposições, conceituações, de maneira integrada e desenvolver,por meio de sua própria crítica, uma visão ampliada e consistente da atividadecientífica (BATISTA, 1998 apud ATAS do VI EPEF).

A pesquisadora defende, assim, o trabalho com uma abordagem que

envolva conjuntamente a História, a Filosofia e o conhecimento científico.

Acreditamos que as considerações feitas sobre tal abordagem podem

refletir positivamente também na área da Educação Matemática e que o

desenvolvimento de uma proposta que trabalhe a análise e a reflexão de

conceitos e idéias que permeiam os conteúdos matemáticos, estudados a partir

do conhecimento de fatos colhidos na reconstrução histórica, estabeleça-se

como um frutífero campo para a realização de investigações e como uma

alternativa metodológica eficiente.

Como comentamos anteriormente, no campo da Educação Matemática,

a abordagem de tal enfoque é inexplorada, até onde pesquisamos, haja vista a

hodierna sistematização da Filosofia da Educação Matemática como campo de

investigação teórica que vem sendo produzida a partir da década de 1980.

Partindo dos referenciais teóricos apresentados, desenvolvemos uma

investigação, oferecida como exemplar de aplicação da abordagem, realizando

a reconstrução histórica dos assuntos Sistemas de Equações Lineares e

Determinantes encontrados nos trabalhos desenvolvidos por dois matemáticos:

Takakazu Seki Kowa (1642-1708) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716).

Nessa reconstrução evidenciamos vários aspectos teórico-conceituais, como a

identificação de problemas geradores e a importância de se conhecer as

circunstâncias e as problemáticas que desencadearam o desenvolvimento de

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 369

teorias específicas, relacionadas com os Sistemas de Equações e com os

Determinantes.

Esse processo de reconstrução histórico-filosófica com objetivos

educacionais envolve dois elementos fundamentais que identificamos como

elemento estrutural e elemento articulador, conforme definido por Batista:

Explicitamos o perfil estrutural que mostra como se dá a construção de umconhecimento específico, que fornece instrumentos para realizar a análise filosóficado objeto de estudo e, ao mesmo tempo, subsidia o desenvolvimento de umaestrutura consistente, integradora de adaptações e transformações didáticas. Eapresentamos, também, o perfil articulador, responsável pela inserção de umdeterminado conhecimento em uma teoria mais abrangente e, conseqüentemente,em um corpo maior de uma ciência, que nos propicia condições para analisar adinâmica conceitual de um tema em estudo, bem como o desenvolvimento daconexão entre os conteúdos estudados e o seu aprimoramento, ressaltando asrelações que se estabeleceram entre eles, além de nos mostrar como articular taisconteúdos em uma elaboração didática. (BATISTA, 2004 apud ATAS do IX EPEF).

3. Investigação Histórico-Filosófica sobre Sistemas de Equações eDeterminantes

Inicialmente, apresentaremos estudos baseados no livro The

Development of Mathematics in China and Japan, escrito pelo matemático e

historiador japonês Yoshio Mikami (1875-1950), no ano de 1913, pois em tal

livro encontramos textos do trabalho desenvolvido pelo japonês Seki Kowa

sobre o tema. Outra fonte, também utilizada como base para nosso estudo, foi

o livro de Howard Eves, Introdução à História da Matemática, de 1997.

Num segundo momento, realizaremos a análise de duas

correspondências do alemão Leibniz endereçadas ao Marquês de L’Hospital. O

texto base foi extraído da coletânea de artigos originais Source Book in

Mathematics, editada por David Eugene Smith, no ano de 1929; além deste

livro, trabalhamos também com a coleção Os Pensadores: Leibniz - Novos

ensaios sobre o entendimento humano, v. I e II, 1992.

Neste item pretendemos estabelecer um paralelo entre o trabalho de

Kowa e de Leibniz, que embora inseridos em culturas diferentes, motivados –

inicialmente – por situações distintas e utilizando processos cognitivos

diferenciados, conseguiram desenvolver o mesmo processo para eliminar

valores desconhecidos de um sistema de equações, semelhante ao usado na

atualidade para resolver o cálculo de determinante.

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 370

Queremos destacar que este trabalho corresponde à análise dos

primeiros registros de um método, que hoje é utilizado como uma operação na

teoria dos Determinantes, embora naquela época não se tivesse tal pretensão.

3.1 Takakazu Seki Kowa

Este pensador, estudante de matemática desde a infância, tornou-se um

especialista na criação de métodos de resolução de problemas matemáticos,

desenvolvendo também aplicações na astronomia. No ano de 1683, o japonês

Seki Kowa, em seu manuscrito Kai Fukudai no Ho (Método de Solução de

Questões Secretas), expõe o seguinte problema geométrico:

Há uma pirâmide quadrada truncada de volume conhecido. Dada a soma do ladomais baixo e a altitude, e a soma dos quadrados do lado mais baixo e da altitude, éexigido encontrar o lado superior (KOWA apud MIKAMI, 1913, p.191).

De acordo com Mikami (1913, p.191), Kowa argumenta que esse

problema pode ser resolvido de duas maneiras: a primeira, denominada por ele

shinjutsu ou método direto (substituição direta de valores às incógnitas), e a

segunda identificada como kyojutsu ou método indireto (simplificação de

equações) (MIKAMI, 1913, p.192, grifos do autor).

Sua opção de trabalho neste manuscrito foi pelo segundo método;

Mikami inclusive comenta que a notação usada por Kowa mostra que “a

natureza dos símbolos algébricos usados por Seki aparece manifestadamente”

(MIKAMI, 1913, p.192).

Desse modo, representando o volume, o lado superior, o lado inferior, a

altitude, e as duas somas, como v, u, l, a, s1 e s2, respectivamente, Mikami

(1913, p.192) comenta que “considerando a data do problema

( )2 21v = u + ul + l a3

(2) (1)

sendo ( )1l = s - a , temos:

( ) ( )221 1

1v = u + u s - a + s - a a3 (2)

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 371

ou

( ) ( )2 2 2 31 1 1-3v + s + s u + u a - 2s + u a + a = 0 (3)

sabendo que2 2

2s = l + a (4)

tem-se que

( )2 22 1s = s - a + a (5)

ou

( ) 21 2 1s - s - 2s a + 2a = 0 (MIKAMI, 1913, p.192) (6)

Mikami continua sua explanação afirmando que a equação em (3) terá

resultado para u, quando a incógnita a for eliminada nas equações (5) ou (6),

sendo que tal eliminação pode ser obtida por meio da simplificação de

equações.

Queremos ressaltar que nosso objetivo neste artigo não é explicitar o

procedimento efetuado por Kowa e já analisado por Mikami no que tange à

resolução do problema gerador; por isso, nessa exposição não nos deteremos

nos cálculos da solução do problema geométrico, e sim nas operações que

envolvem a simplificação de equações, pois foi por meio destas que Kowa

desenvolveu a base da teoria dos Determinantes.

Iniciaremos nossa análise a partir do item 12 do capítulo 24: Seki’s

conception of the determinant de Mikami (1913, p. 195). Entretanto, o fator que

mais chamou nossa atenção, foi o aparecimento, provavelmente, do primeiro

registro da operação que conhecemos atualmente como determinante.

Assim, buscando simplificar as equações do problema em estudo, Kowa

desenvolveu uma operação com o intuito de eliminar as incógnitas, por ele

denominadas de “desconhecidos”. Ele explicou que ao se trabalhar com duas

equações do primeiro grau e com um único desconhecido, do tipo:

2 A notação atual do volume de uma pirâmide truncada de base quadrangular é

1v = h(B + Bb + b)

3, sendo que B representa a área da base maior, b a área da base menor e

h a altura.

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 372

B + Ax = 0

D + Cx = 0

têm-se:

Produto de DA, koku

D B

C A

Produto de BC, sei

sei

koku

A operação efetuada para obter os produtos BC e DA, Kowa denominou

de shajo ou “multiplicação cruzada”, representada na segunda coluna da figura

1. Nesta multiplicação, ele distinguiu e nomeou as multiplicações-diagonais: sei

e koku; sendo que sei para ele significava “que dá vida, criativo”, enquanto que

koku significava “que dá morte, destrutivo” (MIKAMI, 1913, p.197, grifos do

autor).

Seguindo em sua explanação, Kowa mostrou como efetuar este cálculo

quando se trata de três equações, como:

C + Bx + Ax2 = 0

F + Ex + Dx2 = 0 (8)

I + Hx + Gx2 = 0

Ele registrou-o, por meio dos diagramas:

Figura 1: Sistema com duas equações

(7)

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 373

I

H

G

F

E

D

C

B

A

Produto de CEG, seiProduto de FHA, seiProduto de IBD, sei

Produto de CHD, kokuProduto de FBG, kokuProduto de IEA, koku

s s s

k kk

Neste registro, Kow

IBD, e os produtos koku

produtos, segundo Mika

aproximação deste proc

processo utilizado atualme

valor do determinante de u

Com o objetivo d

desenvolvido por Kowa, re

que apresentam um mes

equação e com uma (equa

x –

O mesmo aplica-se

ou seja, Kowa desenvolve

elementos de uma determ

múltiplas desta, de tal m

eliminados.

s

Figura 2: Sistema com três equaçõe

a indicou os produtos sei ou positivos: CEG, FHA e

ou negativos: CHD, FBG e IEA, desprezando outros

mi (1913, p.196). É de se destacar o fato da

esso desenvolvido por Kowa, em 1683, com o

nte, denominado “método de Sarrus”, para calcular o

ma matriz de ordem três.

e tornar mais claro o entendimento do processo

lembramos que ao se trabalhar com duas equações

mo valor desconhecido, lida-se de fato com uma

ção) múltipla sua, por exemplo:

3 = 0 e 2x – 6 = 0 (9)

ao trabalho com as três equações do segundo grau,

uma simplificação que implica na combinação dos

inada equação com os elementos de outras duas,

odo que os fatores da combinação acabam sendo

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Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 374

Kowa continua sua explanação, estendendo este trabalho para quatro

equações do terceiro grau, nas quais podemos observar a mudança na

notação dos coeficientes das equações:

A4 + A3 x + A2 x2 + A1 x3 = 0

B4 + B3 x + B2 x2 + B1 x3 = 0

C4 + C3 x + C2 x2 + C1 x3 = 0

D4 + D3 x + D2 x2 + D1 x3 = 0

Kowa dispôs tais equações como na primeira coluna da figura 3. Já no

diagrama da segunda coluna da mesma figura, Kowa apresentou a uma

multiplicação shajo um tanto quanto diferente das anteriores, alternando os

produtos sei e koku numa mesma direção; observe:

Deste shajo, segundo Mikami (1913, p.197), resultam os produtos:

A4 B3 C2 D1, B4 C3 D2 A1, C4 D3 A2 B1, D4 A3 B2 C1,

A4 D3 B2 C1, B4 A3 C2 D1, C4 B3 D2 A1, D4 C3 A2 B1,

A4 D3 C2 B1, B4 A3 D2 C1, C4 B3 A2 D1, D4 C3 B2 A1,

A4 C3 D2 B1, B4 D3 A2 C1, C4 A3 B2 D1, D4 B3 C2 A1,

A4 B3 D2 C1, B4 C3 A2 D1, C4 D3 B2 A1, D4 A3 C2 B1,

A4 C3 B2 D1, B4 D3 C2 A1, C4 A3 D2 B1, D4 B3 A2 C1.

Os produtos que estão em itálico e negrito são frutos da multiplicação

koku, sendo que os outros vêm da multiplicação sei. Entretanto, Mikami (1913,

D4

D3

D2

D1

C4

C3

C2

C1

B4

B3

B2

B1

A4

A3

A2

A1

kk

kk s

ss

s

Figura 3: Sistema com quatro equações

Figura 4: Produtos resultantes do cálculo com quatro equações

(10)

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Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 375

p.197) destaca a existência de produtos, na figura 4, que não são oriundos da

operação realizada com os diagramas das figuras 3; todavia, são considerados

por Kowa. Nota-se então, que ele apresenta, a partir desta quantidade de

equações, uma nova operação, denominada koshiki, e sobre a qual fez uma

breve declaração, mas suficiente para reconhecer a natureza do procedimento:

O koshiki ou permuta de equações. No caso da recolocação de quatro equaçõesderivadas de três; no caso de cinco equações derivadas de quatro; e assim pordiante. Para a substituição de duas ou três equações nenhum koshiki ou permuta énecessário. Ordens regulares e inversas (jun e gyaku) são sucessivamenteaumentadas de 1, e então temos a próxima ordem. Para um número ímpar decolocação de equações todas são regulares; para um número par, o regular e oinverso vêm alternadamente. (KOWA apud MIKAMI, 1913, p.198, grifos do autor)

Esta declaração vem acompanhada das tábuas contidas na figura 5,

sendo que a leitura das mesmas deve ser realizada da direita para a esquerda.

Analisando o koshiki deixado por Kowa para quatro equações, percebe-

se claramente que ele realiza uma permuta entre as posições 2, 3, 4 deixando

fixa a última, de valor 1; entretanto, ele não coloca todas as permutações

possíveis, pois seriam seis no total:

4 3 2 1 3 4 2 1 4 2 3 1

(11) 2 3 4 1 2 4 3 1 3 2 4 1

Acontece, que quando realizado o shajo, ou seja, a multiplicação

cruzada com as quatro equações nestas seis posições, percebe-se que o

resultado obtido da posição 4 3 2 1 é similar ao resultado obtido na posição 2 3

oo oor or

3 2 1

Três equaçõesQuatro equações

Cinco equações

4 3

2

3

4

2 4

3

2 1

1

1

3 5 2 1

3 4 2 5 1

3425 1

14352

4 1

1

1

1

3 5 4 2

5

4

3

3

23

54

2

2

5

4

5

4 3 2 1

3254 1

523

1

14

3 4 52

Figura 5: Operação koshiki para três, quatro e cinco equações

Page 377: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 376

4 1; o mesmo ocorre com as posições 3 4 2 1 e 2 4 3 1; e, com as posições 4 2

3 1 e 3 2 4 1.

Trocando os números 1, 2, 3 e 4 das tábuas pelas letras A, B, C e D,

respectivamente, e completando estas três disposições de modo que seja

possível efetuar o shajo, temos:

D4

D3

D2

D1

C4

C3

C2

C1

B4

B3

B2

B1

A4

A3

A2

A1

B4

B3

B2

B1

D4

D3

D2

D1

C4

C3

C2

C1

A4

A3

A2

A1

C4

C3

C2

C1

B4

B3

B2

B1

D4

D3

D2

D1

A4

A3

A2

A1

Juntando os produtos oriundos da multiplicação cruzada destas três

disposições, encontra-se, finalmente, os produtos dispostos na figura 4. A

disposição apresentada por KOWA tanto na operação koshiki quanto na

operação shajo, em forma de diagramas e principalmente de tabelas, remete-

nos a uma analogia com o que conhecemos atualmente como Quadrado

Mágico, como veremos a seguir.

Note que a tabela de quatro equações do koshiki possui forma

retangular; no entanto, se desconsiderarmos a última coluna da unidade,

teremos um quadrado no qual a soma dos elementos de cada linha e de cada

coluna dará o mesmo valor, ou seja, nove.

4 3 12

2

2

34 1

143

É plausível pensar que Kowa, quando desenvolveu a operação shajo, a

qual conhecemos atualmente pelo nome de “método de Sarrus” (com as

devidas alterações), tenha se inspirado no trabalho realizado com Quadrados

Figura 6: Extensão da operação koshiki de quatro equações

Figura 7: Permutação de elementos

Page 378: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 377

Mágicos3. De acordo com Cajori (1991, p.80), Kowa deu continuidade ao

trabalho desenvolvido por seus predecessores, sistematizando uma regra para

escrever quadrados mágicos abaixo de (2n+1)2 células, e em casos de grande

dificuldade de resolução, ele foi o primeiro a dar uma regra para construir

quadrados mágicos de 42 células, de 4(n+1)2 células e de 16n2 células.

Com relação aos sinais empregados no processo, somente após a

determinação dos produtos sei e o koku é que eles devem ser considerados e

de acordo com as circunstâncias. Enquanto a multiplicação sei conserva os

sinais de seus produtos, a koku inverte todos os seus. Assim, obtém-se a

eliminação desejada que conduz a uma equação que não contém valor(es)

desconhecido(s) (MIKAMI, 1913, p.199).

Embora Kowa tenha concebido este procedimento com um objetivo

inicial diferente do método utilizado atualmente sistematizado pelo francês

Pierre Frederic Sarrus (1798-1861), é inegável o fato de que podemos

estabelecer uma certa analogia entre estes dois processos. Nota-se, também,

que Kowa chega a extrapolar o método difundido por Sarrus, mostrando de

maneira prática como calcular, em termos atuais, o Determinante de uma

matriz de ordem quatro. Segundo Cajori (1991, p.80), além de Kowa ter

desenvolvido um método geral para lidar com n equações, ele também sabia

que um Determinante de ordem n, quando desenvolvido, tinha n! termos, e

que linhas e colunas eram permutáveis.

Nesta análise, não pretendemos verificar se os processos utilizados

atualmente, como o método de Sarrus para Cálculo de Determinantes,

reconhecem no trabalho de Kowa sua origem, tendo em vista que esta

constatação exigiria cuidadosa averiguação na produção científica desse autor

francês. Nossa investigação refere-se à análise do trabalho deste matemático

japonês e à constatação de que o processo desenvolvido por ele assemelha-se

ao processo sistematizado no ocidente, aproximadamente um século e meio

depois.

3 Os Quadrados Mágicos vêm sendo estudados no Oriente desde 2.200 a.C. Tais quadradoscompreendem uma disposição de números em colunas e linhas, sendo o número de colunasigual ao número de linhas, de modo que a soma de cada linha, ou de cada coluna, ou mesmo

Page 379: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 378

Assim, mediante a análise que realizamos no artigo de Mikami,

concluímos que Kowa parece ter usado o conhecimento a respeito dos

Quadrados Mágicos para sistematizar sua operação shajo e utilizado a Análise

Combinatória – especialmente a Permutação – para sistematizar a operação

koshiki. Desse modo, ressaltamos a importância da pré-existência de

elaborações matemáticas no auxílio do desenvolvimento de novas idéias e

resolução de problemas, cujos resultados servirão para outras ainda, como

numa espiral criativa, favorecendo assim cada vez mais a construção do

conhecimento científico.

Queremos ressaltar que no trabalho desenvolvido por Kowa

reconhecemos como elementos teóricos conceituais inovadores a criação de

uma operação matemática que elimina valores desconhecidos de um sistema

de equações (atualmente empregada para encontrar valores desconhecidos de

um sistema de equações, além de apresentar outras finalidades também) e a

utilização dos Quadrados Mágicos e da Análise Combinatória na estrutura do

processo da criação da operação.

No ocidente, o primeiro registro de um método similar ao utilizado

atualmente na Teoria de Determinantes, foi encontrado no trabalho

desenvolvido por Gottfried Wilhelm Leibniz, o qual abordaremos a seguir.

3.2 Gottfried Wilhelm Leibniz

Assim como Kowa, Leibniz, também consegue vislumbrar a idéia

fundamental da operação dos Determinantes a partir de operações realizadas

com equações algébricas, no ano de 1693, ou seja, dez anos depois.

De acordo com Smith (1929, p.267), Leibniz enviou duas cartas a

L’Hospital tratando desse assunto. A primeira, datada de 28 de abril de 1693,

foi publicada pela primeira vez no Leibnizens Mathematische Schriften, editado

por Von C.I. Gerhardt, I e. Abth., Band II, p. 238 – 240, na cidade de Berlim, no

ano de 1850. Já a segunda, foi publicada pela primeira vez no ano de 1863,

num volume subseqüente do trabalho supracitado, ou seja, na 2 e. Abth, Band

III, p. 5 – 6, em Halle.

das diagonais, resulta num mesmo valor, observando que no quadrado não há repetição de

Page 380: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 379

3.2.1 Primeira correspondência

Em sua primeira correspondência, Leibniz fez um comentário sobre a

dificuldade que o Marquês de L’Hospital manifestou em utilizar números em

vez de letras, ao trabalhar com generalizações, argumentando que existem até

algumas vantagens na utilização destes. Ele comentou que ao realizar uma

generalização, é possível utilizar números, como 2 ou 5 em vez de letras a ou

b, desde que estes não sejam compreendidos como números que integram a

operação, ou seja, a operação 2.5 não representa 10, mas sim indicam

simplesmente 2.5, como se fossem a.b.

Leibniz usava com freqüência números em lugar de letras,

principalmente em cálculos longos e difíceis, pois achava mais conveniente

conferir os cálculos deste modo, além de parecer-lhe mais vantajoso para uma

análise das operações. Leibniz inclusive relata no primeiro parágrafo desta

correspondência que a utilização dos números abre caminho para a descoberta

extraordinária da relação entre a magnitude e a sua representação.

Na tentativa de esclarecer melhor sua idéia, Leibniz utiliza o exemplo de

um sistema composto por três equações lineares e dois valores

“desconhecidos”, identificados atualmente como incógnitas (LEIBNIZ apud

SMITH, 1929, p.268).

10 + 11x + 12y = 0

20 + 21x + 22y = 0 (12)

30 + 31x + 32y = 0

Com o objetivo de encontrar uma lei geral que lhe permitisse eliminar os

desconhecidos, ele explica que estes números são na verdade “falsos

números” de dois dígitos, no qual o primeiro deles informa a equação, e o

segundo informa a letra da qual faz parte. Veja que Leibniz expõe a

versatilidade do uso desta sua notação.

O matemático comenta também que realizando os cálculos necessários

para a eliminação dos desconhecidos, é possível perceber certa harmonia nos

numerais.

Page 381: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 380

elementos resultantes: “Assim, levando a cabo o cálculo, nós encontramos uma

harmonia que não só serve como uma prova mas até mesmo nos faz suspeitar,

à primeira vista, de algumas regras ou teoremas” (LEIBNIZ apud SMITH, 1929,

p.268).

Ele justifica essa interpretação mostrando o resultado da eliminação do

desconhecido y da primeira e da segunda equação, e posteriormente com a

primeira e a terceira equação:

10.22 11.22x 012.20 12.21x 0

+ =− − =

10.32 11.32x 012.30 12.31x 0

+ =− − =

(13)

Leibniz manifesta uma busca contínua por regularidades, argumentando

que é fácil perceber que as duas ‘resultantes’4 expostas em (13) diferem num

único aspecto, ou seja, na segunda resultante é possível notar que o termo “3”

ocupa o lugar do termo “2” na primeira resultante.

10. 2 11. 2x 02 2212. 0 1 22. 1x 0+ =

− − = 10. 2 11. 2x 03 3

312. 0 1 32. 1x 0+ =

− − = (14)

Outro fator que ele ressalta é que em ambas resultantes, os primeiros

“números” são semelhantes:

.22 .22x 0.

1120 .21x

102 0121

+ =− − =

.32 .32x 0.

1130 .31x

102 0121

+ =− − =

(15)

Por último, Leibniz chama a atenção para o fato de que os “números”

posteriores apresentam a mesma soma:

10. 11. x 01

22202. 12.

22

2 1x 021

+ =− − =

10. 11. x 01

32302. 12.

32

2 1x 031

+ =− − = (16)

4 Tomamos aqui a liberdade de utilizar o termo ‘resultante’ e não o termo ‘equação’ como usouLeibniz (SMITH, 1929, p.268), pois entendemos que em (13) há duas resultantes de operaçõesefetuada com equações do 1º grau.

Page 382: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 381

Prosseguindo com sua operação, Leibniz elimina o desconhecido x das

resultantes em (13), realizando as simplificações necessárias e chegando ao

resultado:

10.21.32 11.22.30 12.20.31 10.22.31 11.20.32 12.21.30+ + = + + (17)

Esta notação foi utilizada por Thomas Muir em suas notas. Já Smith,

apresenta uma notação diferente em seu Source Book in Mathematics (1929,

p.269):

0 1 2

1 2 0

2 0 1

1 .2 .31 .2 .31 .2 .3

= 0 2 1

1 0 2

2 1 0

1 .2 .31 .2 .31 .2 .3

(18)

Com tal resultado, Leibniz comenta que após um longo processo chega-

se ao resultado esperado, livre dos desconhecidos e que “leva sua própria

prova junto consigo, da harmonia observável” (LEIBNIZ apud SMITH, 1929,

p.269). Comenta também que seria um tanto quanto difícil atingir este resultado

utilizando letras como a, b e c, principalmente se houvesse um grande número

de letras e de equações.

Neste parágrafo acima, é possível notar que pela segunda vez em sua

carta, Leibniz faz referência ao termo “harmonia”. Este é um termo

característico de sua obra, pois sua visão de mundo é fundamentada em uma

concepção filosófica que admitia a possibilidade de existência de diversos

mundos. Porém Deus, ao conceber o nosso, teria escolhido de todos os

mundos possíveis o mais harmonioso, que acolhesse as combinações

perfeitas.Tal concepção pode ser constatada na dissertação Sobre a Arte

Combinatória, publicada em 1666, na qual vinculava a Filosofia à Matemática.

Ainda nesta primeira correspondência, Leibniz chega a enunciar um

teorema geral (grifo do autor), para qualquer número de desconhecidos e de

equações simples, sugerindo que esta busca por coeficientes livres de

incógnitas pode ocorrer em outras situações:

Dado qualquer número de equações que é suficiente para eliminar as quantidadesdesconhecidas que não excedem o primeiro grau:- para a equação final serãolevadas, primeiramente, todas as possíveis combinações de coeficientes, no qual umcoeficiente somente de cada equação entra; num segundo momento, depois queessas combinações são colocadas no mesmo lado da equação final, apresentam

Page 383: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 382

sinais diferentes se eles tiverem muitos fatores semelhantes como é indicado pelonúmero que é subtraído antes que o número de quantidades desconhecidas: o restotem o mesmo sinal (LEIBNIZ apud SMITH, 1929, p.269).

Leibniz enuncia este teorema, fundamentado no resultado obtido em

(17), e não no processo que ele realiza até chegar a este resultado. É possível

perceber também que o teorema apresenta-se um tanto quanto confuso,

principalmente com relação aos sinais. Tal fato, provavelmente o tenha levado

a escrever uma segunda correspondência para L’Hospital, com o intuito de

esclarecer melhor seu teorema geral, dando-lhe uma explicação plausível.

3.2.2 Segunda correspondência

Embora Leibniz tenha enunciado um teorema geral em sua primeira

correspondência, na segunda carta ele enuncia separadamente a regra para

eliminar o desconhecido, e a lei para os sinais. Portanto, reforça o teorema

deduzido na primeira carta, e o deixa mais evidente colocando inclusive um

exemplo.

Leibniz comunica a L’Hospital, o fato de ter encontrado uma regra para

eliminar os desconhecidos de qualquer sistema composto por equações do

primeiro grau, desde que a quantidade de equações exceda em um o número

de desconhecidos, por exemplo, três equações com dois desconhecidos

(LEIBNIZ apud SMITH, 1929, p.269).

Regra:- Faça todas as possíveis combinações dos coeficientes das letras, de talmodo que mais de um coeficiente do mesmo desconhecido e da mesma equaçãonunca apareça junto (isto é, na mesma combinação). Estas combinações sãocolocadas juntas, sendo que seus sinais serão estabelecidos conforme a norma quelogo será dada, e o conjunto de resultado igual a zero dará toda uma equação livre dedesconhecidos (LEIBNIZ apud SMITH, 1929, p.269) .

Lei dos sinais:- Para uma das combinações um sinal será arbitrariamente designado,e as outras combinações que diferem desta primeira com respeito a dois, quatro, seis,etc, fatores levarão o sinal oposto: esses que diferem daqueles com respeito a três,cinco, sete, etc, fatores claro que levarão seu próprio sinal (LEIBNIZ apud SMITH,1929, p.270). Por exemplo, permita

10 11x 12y 0, 20 21x 22y 0, 30 31x 32y 0;+ + = + + = + + = (19)

este resultará

Page 384: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 383

10.21.32 10.22.31 11.20.3211.22.30 12.20.31 12.21.30+ − −+ + −

(20)

Eu também considero como coeficientes esses fatores que não pertencem aquaisquer desconhecidos, como 10, 20, 30 (LEIBNIZ apud SMITH, 1929, p.270).

Em função da análise realizada, não temos dúvida da contribuição de

Leibniz para a Álgebra. Esta afirmação é corroborada por Smith (1929, p.267),

que na primeira correspondência ressalta, o fato deste matemático introduzir

uma nova notação numérica; ao nosso ver, esta afirmação pode ser constatada

em (20). A outra contribuição refere-se ao estabelecimento de uma regra para

escrever a resultante de um conjunto de equações lineares, livre dos

desconhecidos, exposta no final da segunda correspondência. Ressaltamos

também, a existência de uma lei dos sinais (grifo nosso) para as combinações

resultantes da regra.

Queremos destacar além destas, uma terceira contribuição deste

trabalho, no que diz respeito ao estabelecimento que Leibniz faz da relação

entre a Análise Combinatória e os Sistemas Lineares, até então inexistente.

Esta relação fica evidente principalmente quando Leibniz começa a enunciar a

regra, no final de sua segunda correspondência “Faça todas as possíveis

combinações dos coeficientes das letras, de tal modo que mais de um

coeficiente do mesmo desconhecido e da mesma equação nunca se apareça

junto [...]” Nesta passagem, é nítida a necessidade da utilização de um outro

conhecimento matemático, no caso a Análise Combinatória, para a

sistematização de seu teorema.

Com relação aos elementos teóricos conceituais inovadores do trabalho

desenvolvido por Leibniz, o que se destaca é a criação de uma operação

matemática que elimina valores desconhecidos de um sistema de equações e

o reconhecimento da utilização da Análise Combinatória na estrutura do

processo da criação de tal operação.

4. Educação Matemática e o enfoque Histórico-Filosófico

Nossa intenção é buscar metodologias e estratégias alternativas para

trabalhar conteúdos em sala de aula capazes de motivar os alunos,

= 0

Page 385: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 384

envolvendo-os em um clima propício para a aprendizagem do assunto

matemático; de oferecer condições de respostas a questionamentos de como,

onde, por que e quando o assunto estudado estruturou-se; e de entender o

grau de importância de tal assunto no mundo contemporâneo e no âmbito

escolar.

Muitas dessas indagações permanecem no cotidiano das salas de aula.

Provavelmente tal situação exista em virtude do predomínio da concepção

formalista que enfatiza a estrutura e organização lógica dos assuntos

estudados, não oferecendo oportunidade para uma reflexão crítica e uma

análise contextualizada historicamente.

Em conseqüência da influência de tal concepção, grande parte dos livros

didáticos aborda inicialmente o conteúdo de Matrizes, em seguida

Determinantes, e por último apresentam os Sistemas de Equações Lineares.

Entretanto, como pudemos constatar na investigação histórico-filosófica

apresentada, a humanidade, na tentativa de solucionar determinados

problemas que envolviam Sistemas de Equações, desenvolveu generalizações

e métodos para resolvê-los, os quais, posteriormente, solidificaram-se como

teorias matemáticas, das quais destacamos os Determinantes e as Matrizes.

Acreditamos que os motivos que levaram alguns matemáticos do

passado a desenvolverem estudos também possam motivar os educandos

atualmente. O acesso à investigação histórica permite conhecer filosófica e

conceitualmente alguns assuntos matemáticos, tais como o seu surgimento e

desenvolvimento, o processo de sua sistematização, seu(s) criador(es), entre

outros aspectos.

A reflexão, do ponto de vista filosófico, sobre tal investigação permite a

análise crítica tanto por parte do educador quanto do educando. Entender por

que determinado matemático desenvolveu uma teoria e séculos depois esta

mesma teoria contribui de maneira decisiva para a organização e

desenvolvimento de alguns setores da sociedade atual parece ser um estímulo

plausível para conhecê-la histórica e filosoficamente.

O acesso dos educandos à investigação histórica permite a possibilidade

de um estudo de qualidade. No entanto, a orientação do material é de

fundamental importância, o que torna indispensável o trabalho do professor no

Page 386: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 385

sentido de instigar nos educandos a análise crítica e conduzir a reflexão do

estudo em questão.

Mas como trabalhar a investigação histórico-filosófica em sala de aula?

Nosso objetivo não é reconstruir com os educandos todo o processo

desenvolvido pelos matemáticos no decorrer do tempo, mas sim lhes

apresentar situações que os instiguem a buscar um caminho que os conduzam

à solução de questões.

Iniciar o estudo a partir de um problema que contextualize uma situação

corriqueira dos alunos pode estimular a sua curiosidade, levando-os a buscar

uma solução. O enfrentamento de situações desse tipo tem conduzido muitos

estudiosos a produzirem conhecimento matemático no decorrer do tempo para

a humanidade.

É possível vislumbrar a veracidade de tal afirmação em uma rápida

investigação histórica desenvolvida ao constatar a existência de problemas que

datam de dois ou três séculos a. C., os quais abordam questões relacionadas à

agricultura. Como exemplo, podemos citar alguns problemas encontrados em

registros de origem babilônia e chinesa.

Diversos métodos foram criados para solucioná-los, cada um

apresentando características peculiares de acordo com o conhecimento e a

habilidade de seu criador. Alguns desses métodos são bem práticos e,

portanto, viáveis de serem trabalhados em sala. Conhecer o desenvolvimento

histórico de um determinado assunto como, por exemplo, dos Sistemas de

Equações Lineares, pode viabilizar a escolha didática de métodos que melhor

satisfazem aos anseios não só do educador como também dos educandos,

pois a história é fonte de soluções alternativas.

Tendo como objetivo, por exemplo, encontrar a solução de um problema

que culmine num Sistema de Equações Lineares, o método de Comparação

desenvolvido pelo indiano Brahmagupta (598 – 668) e o sistematizado pelo

alemão Karl Friedrich Gauss (1777 – 1855), denominado método de

Eliminação, são métodos práticos, de fácil resolução, e apresentam processos

de resolução parecido com métodos já conhecidos pelos educandos no Ensino

Fundamental. Portanto, apresentam-se como métodos interessantes para

serem trabalhados em sala de aula.

Page 387: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 386

Assim como os métodos acima citados foram criados, outros estudiosos

com o objetivo de eliminar os valores desconhecidos (incógnitas) de um

Sistema de Equações também desenvolveram métodos para tal. O primeiro

matemático a desenvolver esse processo, como vimos na investigação

histórica, foi Seki Kowa, sendo seguido por Leibniz que o fez

independentemente.

Em ambos os casos acima citados (encontrar a solução de um problema

e eliminar valores desconhecidos de um sistema de equações) é possível

perceber que o que impulsiona alguém a produzir um estudo é o enfrentamento

de um problema, tal como é explanado na filosofia da ciência. Podemos

constatar que o resgate histórico da pesquisa é também o resgate do fazer

matemático, com uma explicitação mediante a discussão filosófica.

Acreditamos, assim como Laudan, que a ocorrência do ensino e da

aprendizagem e, conseqüentemente, da evolução da Ciência pode se dar pela

capacidade de resolução de problemas com os quais os educandos e os

educadores se deparam. Assim, os problemas que levaram Seki Kowa e

Leibniz a desenvolverem a mesma operação para eliminar incógnitas de um

sistema de equações, os quais denominaremos de problemas geradores,

tomam lugar de destaque segundo nosso estudo, pois foi a partir do

enfrentamento deles que uma nova concepção teórica surgiu.

Como colocamos anteriormente, Laudan comenta que um conjunto de

idéias só pode ser compreendido quando permite o conhecimento detalhado

dos problemas aos quais ele foi dirigido (LAUDAN, 1977, p. 175-176). A

abordagem Histórico-Filosófica permite o acesso a tal compreensão, pois

possibilita conhecer os problemas geradores, o contexto histórico em que cada

um estava inserido e a tradição de pesquisa (estrutura teórico-metodológica) a

que os matemáticos estavam sujeitos. Desse modo, a abordagem defendida

neste artigo contempla de maneira satisfatória o objetivo não somente de

Laudan, com também das autoras proponentes.

Embora os problemas apresentem contextos diferentes, o conhecimento

da reflexão e da análise que esteve presente no pensamento dos

pesquisadores ao desenvolverem seus estudos séculos atrás, ou seja, o

conhecimento da estrutura e das articulações produzidas pelo pesquisador em

Page 388: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 387

seu estudo pode não somente saciar a curiosidade dos educandos como

também ajudá-los a aprender sobre o que existe, como existe, porque existe.

Este aspecto filosófico, tão ausente das salas de aula atualmente, pode

fundamentar o trabalho desenvolvido pelos educadores. Tal enfoque filosófico

apresenta-se como essencial na estrutura de qualquer atividade produzida,

pois leva a reflexões tais como: Como agir em determinada situação? Como

analisar os dados disponíveis? Alguém já se deparou com uma situação

parecida como esta? Em caso afirmativo, como resolveram a questão? Há uma

solução mais prática atualmente para solucioná-la?

É interessante notar que o fio condutor de tais reflexões começa a ser

tecido pelo educador, então, é de fundamental importância que ele realize

questionamentos como esses. Tal caracterização pode causar inicialmente

uma certa insegurança; porém, é no surgimento de questões como estas e de

reflexões oriundas deste tipo de trabalho que reside a dinâmica do trabalho

educacional.

Na investigação histórica desenvolvida no item anterior é possível notar

que Seki Kowa, envolvido com um problema geométrico e com o intuito de

solucioná-lo, se deparou com uma série de sistemas de equações e,

conseqüentemente, com um novo problema: Como simplificar tais sistemas?

Com tal dificuldade o pesquisador, que havia desenvolvido na mesma época

estudos sobre Quadrados Mágicos, os quais envolvem também a combinação

de elementos, cria uma operação que permite eliminar os valores

desconhecidos de sistemas compostos por várias equações.

Ao submeter a investigação histórica a um olhar teórico-metodológico é

possível perceber que um assunto toma várias formas até sua sistematização.

Em alguns momentos o determinante, entendido como uma operação, foi

reconhecido como uma regra (assim como Cramer descreveu em sua

Introduction à l’analyses dês lignes courbes algebriques), como uma resultante

(assim como Vandermond se referiu em sua Mémoire sur l’elimination) e

também como um método (como afirma Lima em sua obra Álgebra Linear ou

Boldrini et al em sua obra cujo título também é Álgebra Linear) utilizado não só

para resolver sistemas de equações como também para calcular áreas,

volumes, entre outros.

Page 389: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 388

Em função das variadas formas que um assunto toma a partir de sua

criação, a análise ontológica e epistemológica é fundamental para sua

sistematização enquanto teoria matemática. Daí a importância do

conhecimento da estrutura e da análise das articulações estabelecidas para a

constituição do tema estudado.

Conhecendo o trabalho produzido por Kowa, percebe-se que o mesmo

encontra-se estruturado em três assuntos e que a articulação entre eles,

estabelecida pelo matemático, é que resultou na operação que mais tarde

tornou-se conhecida como Determinante.

�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������

�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������

�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������

Problemagerador

Sistema deEquações

AnáliseCombinatória

QuadradosMágicos

Solução doProblema

Esquema 1: Estrutura do trabalho produzido por Seki Kowa

No esquema acima, o problema gerador envolve um assunto da

Geometria Espacial. Ao tentar encontrar o lado superior de uma pirâmide

truncada de base quadrada, Kowa se depara com uma série de sistemas de

equações. Tais sistemas são compostos por várias equações com o mesmo

grau, porém, esses sistemas apresentam graus variados. Ao se deparar com

diversos sistemas de equações, ele procurou simplificá-los ao máximo para

conseguir resolver seu problema inicial.

Como comentamos anteriormente na investigação histórica, Kowa havia

desenvolvido estudos relacionados com Quadrados Mágicos, inclusive

produzindo generalizações para determinados tipos de quadrados. Podemos

constatar que no próprio trabalho com os quadrados é exigida, mesmo que de

Page 390: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 389

maneira intuitiva, a habilidade para combinar elementos que estão envolvidos

numa determinada somatória.

A análise combinatória se faz fortemente presente na obra do

matemático, principalmente, na operação koshiki, em que ele realiza a

permutação de equações.

Portanto, a articulação dos assuntos conhecidos atualmente como

Quadrados Mágicos, Análise Combinatória e Sistemas de Equações, resultou

na operação que conhecemos hoje como Determinante. Evidencia-se, assim,

como uma análise teórico-conceitual (filosófica) dos elementos colhidos na

história é essencial para a explicitação de conhecimentos tácitos que se fazem

presentes na estruturação e na articulação de um conhecimento.

Processo semelhante percebe-se na análise do trabalho desenvolvido

por Leibniz, porém este o estruturou com número menor de assuntos, o que

gerou uma quantidade menor de articulações, mas não menos importante.

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Sistemas deEquações Lineares

AnáliseCombinatória

Problemagerador

Solução doProblema

Esquema 2: Estrutura do trabalho produzido por Leibniz

No caso de Leibniz, o problema gerador é a necessidade de mostrar a

versatilidade da utilização da notação numérica sobre a algébrica. Ao tentar

convencer um amigo, também matemático, Leibniz lança mão de um exemplo,

e para tal, toma um sistema composto por três equações lineares.

Como vimos na investigação histórica, Leibniz tinha uma concepção

filosófica de mundo que envolvia a Análise Combinatória. A seu ver, tudo no

Page 391: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 390

mundo é composto pela combinação de determinados elementos e Deus ao

criá-lo, o fez com as combinações mais perfeitas.

A idéia da combinação de fatores, como podemos ressaltar, se faz

presente no trabalho do matemático. Leibniz aliou a essa idéia à sua habilidade

com cálculos e daí produziu uma regra para eliminar valores desconhecidos de

um sistema de equações lineares, ressaltando nela a combinação dos fatores

envolvidos no sistema e não o cálculo desenvolvido para atingi-la.

Pode-se observar que Leibniz realiza cálculos para eliminar as

incógnitas, deixando registrado o início destes e, posteriormente,

fundamentado no resultado alcançado, ele enuncia sua regra articulando-a com

a Análise Combinatória. Ele, também, consegue detectar a presença da

combinatória universal em sua atividade, porém encontra dificuldade em utilizá-

la diretamente para alcançar seus resultados.

Como pudemos notar na análise da produção de Kowa e de Leibniz,

conhecer as estruturas de um determinado assunto oportuniza o surgimento de

importantes reflexões como: será que toda produção científica se dá por meio

do estabelecimento de articulações? O conhecimento de diversos assuntos dá

ao pesquisador uma oportunidade maior de desenvolver um trabalho não-

convencional? Conhecer diversos assuntos garante, ao pesquisador, a

produção de um trabalho diferenciado, consistente e coeso? A habilidade de

estabelecer articulações favorece a criação e o desenvolvimento de tal

trabalho?

Tais reflexões no âmbito educacional podem exprimir com clareza, a

todos os envolvido no processo, que o fato de conhecer diversos estudos que

resultaram na produção científica atual e, principalmente, de saber estruturá-los

e articulá-los, tem permitido a humanidade avançar e evoluir cientificamente.

O conhecimento da estrutura de uma produção científica como a de

Leibniz ou de Kowa é de grande importância para qualquer pesquisador ou

educador; contudo, há que se refletir sobre a importância de ensiná-la. Se o

objetivo de um educador é centrado somente em como realizar a operação de

determinante ou resolver um sistema de equações lineares, por exemplo, não

vemos necessidade de trabalhar tal estrutura.

Page 392: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 391

No entanto, se o objetivo for o desenvolvimento de um trabalho mais

amplo que envolva o reconhecimento da importância da criação do assunto

estudado ou de qualquer outro para a evolução da humanidade; mostrar como

é possível interpretar e intervir em situações reais utilizando a Matemática e

ressaltar a importância de conhecer a História e a Filosofia da Matemática,

evidenciando a contribuição da criação de conhecimentos matemáticos para a

evolução da sociedade, entendemos que a apreensão da estrutura dos

conteúdos estudados (nos exemplares históricos) assim como da articulação

entre eles é de grande importância, pois atua como uma concretização da meta

que o educador pretende alcançar.

5. Comentários Finais

Nesta investigação pudemos perceber que a reconstrução Histórico-

Filosófica possibilita uma aproximação entre o ato criativo de um conhecimento

científico e o educando por meio do estudo de problemas envolvidos no ensino

e na aprendizagem. Esta aproximação dá-se principalmente pela análise crítica

do processo desenvolvido, tanto com relação à estrutura do conhecimento

sistematizado, como com relação às articulações existentes no processo

cognitivo, realizada no contexto histórico em que o conhecimento foi concebido.

Este fator influencia diretamente a capacidade de resolver um problema sendo

este, de acordo com Laudan, o objetivo essencial da Ciência.

Embora o conhecimento matemático denominado Determinante tenha

sido sistematizado posteriormente à sua criação e utilizado nos dias atuais com

objetivos diferentes do originalmente apresentado pelos matemáticos

analisados neste estudo, podemos afirmar que a Análise Combinatória,

considerada por nós como elemento fundamental da teoria analisada, permeia

e sustenta o método utilizado no cálculo dos Determinantes.

Ao realizar uma análise comparativa entre o trabalho desenvolvido por

Seki Kowa e Leibniz, verificamos que o problema gerador do primeiro trata da

resolução de um problema geométrico, enquanto que a problemática do

segundo matemático refere-se à apresentação da versatilidade do uso da

notação numérica sobre a algébrica. Ambos depararam-se com sistemas

Page 393: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Irinéa de Lourdes Batista & Simone Luccas 392

compostos por equações em seus estudos e estabelecem o mesmo objetivo,

ou seja, eliminar valores desconhecidos das equações que integram os

sistemas.

A partir daí, os dois matemáticos desenvolvem uma operação que

satisfaz tal objetivo, sendo que o primeiro produz sua operação articulando os

assuntos de Análise Combinatória e Quadrados Mágicos e, o segundo, cria sua

operação fundamentada somente no assunto de Análise Combinatória. O

conhecimento desses estudos fortalece o trabalho educacional, tanto no

processo de ensino quanto de aprendizagem, enriquecendo, assim, a

Educação Matemática.

Este caráter dinâmico proporcionado pela reconstrução histórico-

filosófica permitiu, portanto, o acesso à análise das estruturas e das

articulações dos processos desenvolvidos por Seki Kowa e Leibniz, tornando

possível perceber como e o quê levou estes matemáticos, praticamente na

mesma época, a desenvolverem a gênese do pensamento que fundamenta a

teoria conhecida atualmente como Teoria dos Determinantes.

O mundo contemporâneo tem exigido cidadãos cada vez mais

capacitados que possuam uma visão global e que sejam capazes de analisar

seus problemas, de refletir sobre a estratégia mais adequada e de argumentar

criticamente sobre as decisões a serem tomadas, pois podem afetar direta ou

indiretamente não só a comunidade em que estão inseridos, mas a todo o

planeta.

O resgate histórico, quando realizado com enfoque filosófico, propicia a

ampliação de tal visão, pois conhecendo como e por que determinados povos

em determinadas épocas resolveram seus problemas, pode-se compreender

que é intrínseco à capacidade humana superar os problemas e os desafios que

lhes são impostos; todavia, dependendo da maneira como são abordados,

suas soluções podem ser obtidas rapidamente ou demorar séculos para serem

alcançadas.

Concordamos com os autores pesquisados nesse trabalho que

sustentam que uma abordagem histórica feita de maneira apropriada pode

contribuir para que ocorra uma melhora no ensino; contudo, acreditamos que

tal abordagem aliada à filosófica, ou seja, uma abordagem Histórico-Filosófica

Page 394: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Abordagem histórico-filosófica e educação matemática 393

pode contribuir ainda mais para o alcance de um resultado positivo não só no

ensino, como também na aprendizagem.

Procuramos, ao longo das páginas de nossa pesquisa, mostrar que essa

abordagem pode ser considerada tanto um campo de investigação teórica

como uma opção metodológica da qual a área educacional, principalmente a

Educação Matemática, pode dispor para trabalhar.

Acreditamos que a abordagem Histórico-Filosófica pode apresentar

resultados bastante satisfatórios no campo educacional se trabalhada de

maneira adequada5, pois ela é capaz de instigar a curiosidade dos envolvidos

no trabalho, levando-os a conhecer aspectos pertinentes à estrutura do assunto

estudado, reconhecer as articulações que o mesmo estabelece ao efetivar sua

sistematização, funcionar como um fio condutor dos raciocínios, como um

elemento na estrutura didática que favorece a cognoscibilidade dos conteúdos,

que justifica racionalmente a coordenação didática desses, estabelecendo-se

no próprio corpo integrado das estruturas de ensino e, como pretendemos, de

aprendizagem. Esses objetivos alcançados, por meio da análise crítica e

reflexiva, podem conduzir os envolvidos no processo educacional a uma

ampliação ou até mesmo a uma mudança de visão de mundo.

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Page 397: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência

Renato Rodrigues KinouchiPós-doutorando em filosofia/USP

Resumo: Este trabalho pretende examinar as diversas relações históricas econceituais que se dão entre o pragmatismo e a filosofia da ciência.Inicialmente, se mostrará que o pragmatismo clássico foi, de fato, concebidopara lidar com temas relacionados à ciência. Em seguida, serãoapresentadas as diretrizes gerais que nortearão a pesquisa, consistindo emtrês pontos distintos mas correlacionados: i) gênese do pragmatismo, ii)desenvolvimento do pragmatismo clássico e iii) seus posterioresdesdobramentos — sempre se respeitando o recorte conceitual concernenteà filosofia da ciência. No que tange ao formato deste projeto, vale assinalarque foram seguidas as normas exigidas pela FAPESP, por isso, doravante,o projeto está subdividido em seções, a saber: introdução, objetivos ejustificativas, método, plano de trabalho, resultados, cronograma e, por fim,síntese da bibliografia inicial.

Palavras-chave: Filosofia da Ciência, Método Científico, Pragmatismo,Teoria do Conhecimento.

Introdução:

Via de regra, Charles Sanders Peirce (1839-1914) é considerado o

pensador que concebeu e deu um nome à doutrina filosófica do pragmatismo.

Refutar essa afirmação é uma tarefa difícil, porque a segunda figura de maior

destaque no pragmatismo, seu grande divulgador, William James (1842-1910),

teve o cuidado de não deixar dúvidas sobre tal ponto. “[Peirce] é um dos

pensadores contemporâneos mais originais; e eu acredito, cada vez mais, que

o princípio do praticalismo — ou pragmatismo, como ele dizia, na primeira

ocasião que eu o ouvi falar disso, em Cambridge, no começo de 1870 — é a

chave ou bússola com a qual podemos manter nossos passos no caminho

certo” (James, 1898/1992, p. 1079). De passagem, há que se destacar duas

coisas. Primeiro, que é manifesto que a palavra pragmatismo, denominando

estritamente uma doutrina filosófica, foi uma invenção de Peirce. Em segundo

lugar, nota-se que James, quando chama a tal doutrina de praticalismo, já

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 398: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência 397

agrega ao debate um pouco de sua própria interpretação. Por ora, não se

entrará em detalhes sobre essa questão e sobre como as nomenclaturas

utilizadas podem refletir divergências conceituais. Basta que de início se

perceba que não há como duvidar do papel central de Peirce na origem do

pragmatismo.

Posto isso, cabe agora explicitar o pragmatismo em sua formulação

original, o que nos leva diretamente ao cerne deste presente projeto. Sem

meias palavras, originalmente o pragmatismo é uma filosofia da ciência. De

fato, a primeira aparição do pragmatismo em forma escrita, embora tal nome

não seja explicitamente mencionado, acontece em uma série de seis ensaios

coletivamente intitulados de Illustrations of the Logic of Science. Ou seja, os

trabalhos que marcam a origem do pragmatismo são decididamente

concernentes à lógica da ciência. Aliás, não há nada de muito surpreendente

nisso. Se examinarmos a trajetória intelectual de Peirce, veremos que a maior

parte de sua vida foi dedicada a questões ligadas à ciência, tanto no campo

teórico como no experimental. No que se refere ao campo teórico, ele

freqüentemente investigava questões ligadas à matemática e à lógica. Já no

que tange ao campo experimental, Peirce (1905/2000) testifica que

praticamente “morou num laboratório desde a idade de seis anos até bem

depois da maturidade, e tendo toda uma vida relacionada com

experimentalistas, sempre teve a sensação de compreendê-los e de ser por

eles compreendido” (p. 282). O que se quer remarcar é que Peirce não fôra

apenas um filósofo bem informado em ciência. Na verdade, ele foi um

pesquisador profissional que trouxe para a filosofia e para a lógica todo seu

prévio treinamento em física experimental (Nubiola, 2000). E é por isso que é

uma estratégia segura procurar as origens do pragmatismo nos

questionamentos de Peirce em filosofia da ciência. O contrário disso — ou seja,

relevar tais questionamentos — é que levantaria dificuldades. Em outras

palavras, desconsiderar a relevância da filosofia da ciência na gênese do

pragmatismo requer ‘malabarismos’ interpretativos que, no final das contas,

dificultam uma análise histórico-conceitual bem fundamentada; pois teríamos

que desconsiderar o texto peirciano, propriamente dito, bem como sua biografia

(tal como o fato de Peirce ter passado a maior parte de sua vida envolvido com

Page 399: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Renato Rodrigues Kinouchi 398

pesquisas no campo da física experimental). Entretanto, deixemos de lado as

evidências biográficas e passemos agora a examinar os dois principais ensaios

da série Illustrations of the Logic of Sciences, a saber, “The fixation of belief”,

de 1877, e “How to make our ideas clear”, de 1878.

No primeiro desses ensaios, Peirce apresenta sua concepção de que o

pensamento é uma forma de investigação (inquiry). E a investigação consiste,

sumariamente, em pôr fim a uma dúvida colocando em seu lugar uma crença,

de modo que “a irritação da dúvida causa um esforço para se atingir um estado

de crença” (Peirce, 1877/1992, p. 114). São então apresentados quatro

métodos pelos quais uma crença põe fim a um estado de dúvida. O método da

tenacidade consiste em confiar inteiramente nas crenças individuais já

estabelecidas e rejeitar o que venha a abalar a esse sistema crenças. Em

termos prosaicos, trata-se de uma espécie de teimosia individualista. Só que

esse primeiro método, com muita freqüência, entra em conflito com um

segundo, o método da autoridade. Crenças ‘institucionais,’ relativas à vida em

comunidade, em muitos assuntos se opõem à tenacidade individual. Nesse

caso, a dúvida deve ser substituída pela opinião da autoridade. E, não

raramente, os descontentes com tal opinião, os que ainda irritam a autoridade

com suas dúvidas, ou se calam ou correm o risco de perder suas próprias

vidas. Há ainda um terceiro método de pôr fim a uma dúvida — um método

mais racional, que de certa forma compartilha certas características

autoritárias, mas de forma muitíssimo menos cruel. É o método apriorístico,

que consiste em cessar a dúvida adotando-se crenças concordantes com a

Razão. Isso é certamente um avanço, pois são utilizados recursos intelectuais

mais generosos do que os dos métodos anteriores. Mas Peirce nota que tais

crenças racionais não necessariamente concordam com a experiência, e sim

com aquilo que raciocinamos — com nossas verdades racionais. “[O método

apriorístico] faz da investigação algo similar ao desenvolvimento do gosto; mas

o gosto, infelizmente, é mais ou menos uma questão de moda, e assim os

metafísicos nunca chegam a um acordo final, de modo que o pêndulo [das

opiniões], do passado remoto ao futuro longínquo, oscila entre duas filosofias,

uma material e outra espiritual” (Peirce, 1877/1992, p. 119). Ou seja, as

oscilações da opinião racional acabam repercutindo, por assim dizer, a própria

Page 400: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência 399

instabilidade dos ‘gostos racionais’. Para o pragmatista faz-se necessário

acorrer a um quarto método, um que não se baseie na tenacidade individual,

nem na coerção da autoridade, tampouco sobre qualquer questão de gosto,

mesmo que racional.

Nas palavras de Peirce (1877/1992): “Para satisfazer nossas dúvidas é

necessário, portanto, que o método se baseie em algo que cause nossas

crenças mas que não seja humano, algo do tipo de uma permanência externa

— sobre a qual nosso pensamento não tenha influência” (p. 120). Esse quarto

método é, na concepção do pragmatista, o método científico, cuja hipótese

fundamental seria a seguinte: “Existem coisas reais, cujos caracteres são

independentes de nossas opiniões sobre elas; tais realidades afetam nossos

sentidos de acordo com leis regulares, e, embora nossas sensações

[individuais] sejam tão diferentes quanto são nossas relações com os objetos,

ainda assim podemos tomar vantagem das leis da percepção e determinar

racionalmente como as coisas realmente são; e qualquer outro homem, se tiver

experiência suficiente e raciocinar bem sobre o assunto, também será levado à

verdadeira conclusão” (p. 120). A realidade é tomada como ponto de partida da

investigação científica; não obstante, também se leva em conta que há algo de

intrinsecamente perceptual no processo. Não se deve concluir, entretanto, que

a ciência é uma prática absolutamente subjetiva. Pois é dito que qualquer

investigador que bem adotar o método científico, fazendo parte do que se

poderia chamar de comunidade idealmente científica, deve independentemente

convergir em direção à verdade. Ainda assim, a verdade não é, exata e

exclusivamente, aquilo sobre o que os especialistas concordam no momento.

Em linguagem geométrica, se o desenvolvimento do conhecimento fosse

descrito por uma curva, então, no limite, tal curva se aproximaria de uma

assíntota, que representaria a verdade externa permanente. Reconhece-se que

existem divergências atuais, mas isso não exclui a noção convergência futura,

ideal. Aliás, tal convergência, em alguns casos, já é praticamente presente.

Que a água ferve sob determinadas condições de temperatura e pressão é

uma crença que qualquer pesquisador há de concordar, “se tiver experiência

suficiente e raciocinar bem sobre o assunto” (p.120).

Page 401: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Renato Rodrigues Kinouchi 400

O grande lema pragmatista — considere, de maneira prática, os efeitos

sensíveis das idéias — se encontra no segundo ensaio da série Illustrations.

Trata-se do “How to make our ideas clear,” onde se desenvolve a tese de que

para se apreender uma idéia, em toda sua extensão, além dos critérios de

clareza e distinção, típicos do cartesianismo, também se deve levar em conta

seus efeitos, os conseqüentes que uma tal idéia engendra. Note-se que o

filósofo norte-americano não critica Descartes por exigir clareza e distinção das

idéias1. O que acontece é que clareza e distinção são critérios insuficientes, de

modo que um terceiro precisa adicionado. Ou seja, o cartesianismo peca por

falta, não por excesso. O pragmatismo, por sua vez, se apresenta como um

passo ulterior na tentativa de dar clareza às idéias. A máxima pragmática de

‘considerar os efeitos’ serve para que se defina uma idéia tão claramente

quanto possível. Antes de tudo, o pragmatismo é um método para definir o

sentido de conceitos difíceis e obscuros.

Como exemplos de aplicação da máxima pragmática, Peirce

(1878/1992) analisa os conceitos de duro — “aquilo que não é arranhado

[scratched] por outras coisas” (p.132) — o conceito de pesado — “o que cai na

ausência de uma força oposta” (p. 133) — e então o próprio conceito de força

— “aquilo que causa uma aceleração” (p.136) — e finalmente os abrangentes

conceitos de verdade e realidade — “O que chamo de verdade é aquela

opinião que está fadada a ser ulteriormente compartilhada por todos os que

investigam, o objeto representado nesta opinião é o real (...) e a opinião que

finalmente resultará da investigação não depende de como qualquer um de nós

possa de fato pensar” (p. 139). Aqui não discutiremos o mérito dessas análises.

O que se quer assinalar é que são todos exemplos relacionados com a ciência.

Então, que o pragmatismo originalmente engendra questões em filosofia da

ciência, isso é uma interpretação bem razoável — em alguns círculos

acadêmicos, é praticamente canônica.

1 Pelo contrário, clareza e precisão são qualidades que Peirce tinha em alta conta. Na verdade,críticas realmente endereçadas ao cartesianismo, particularmente no que se convencionachamar de filosofia da mente, encontram-se em outros dois ensaios: “Questions concerningcertain faculties claimed for man” e também “Some consequences of four incapacities,” ambosde 1868.

Page 402: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência 401

Aqui cabe uma pequena digressão. Vimos que, no entender de Peirce,

ao considerar os efeitos práticos sensíveis das idéias, passamos a apreender

mais clara e distintamente os sentidos delas. Tal formulação suscita a idéia de

que o pragmatismo é, na verdade, uma teoria do conhecimento, uma

epistemologia, que se aplica não só ao conhecimento científico mas também a

outras formas de conhecimento. Ora, é bem verdade que o pragmatismo

possui uma face epistemológica. Com efeito, se nosso trabalho fosse a

apresentação do pragmatismo como uma filosofia da ciência, exclusivamente,

então estaríamos, em alguma medida, distorcendo tal doutrina filosófica,

relevando seus aspectos epistemológicos mais gerais. Mas note-se que este

trabalho se propõe a investigar o pragmatismo e a filosofia da ciência; com

especial atenção para o fato de que o conectivo ‘e’ indica que há uma

intersecção entre tais assuntos. Destarte, entende-se que o pragmatismo e a

filosofia da ciência são como dois conjuntos que têm elementos em comum.

Aqui, pragmatismo e filosofia da ciência intersectam-se, mas não se reduzem

um ao outro.

Na verdade, até agora o pragmatismo foi apresentado de maneira

bastante ortodoxa, sem concessões. Mas já é o momento de se fazer algumas,

começando por dizer, metaforicamente, que se o pragmatismo teve um pai,

Charles S. Peirce, então também teve um padrinho, William James, e uma

série de outros tutores, tais como John Dewey, Ferdinand C. S. Schiller,

Herbert Mead, Giovanni Papini, Édouard Le Roy, entre outros. Certamente

todos esses pensadores contribuíram, cada qual a seu modo, para o

desenvolvimento do ‘jovem’ pragmatismo. Entretanto, o presente trabalho se

concentrará, por ora, sobre as contribuições de James; pois, se foi Peirce quem

concebeu e deu um nome ao pragmatismo, foi James quem o anunciou ao

mundo. Mas antes de se chegar a tal constatação, algumas preliminares se

fazem necessárias.

James e Peirce se conheceram ainda jovens, por volta de 1861, dentro

do círculo acadêmico da Harvard Scientific School. O calouro William percebeu

que o veterano Charles era “um colega muito ‘esperto’ [smart], com uma

grande personalidade, bem independente, embora um tanto violenta”

(Skrupskelis & Berkeley, 1995, p.43). Logo os dois rapazes se tornaram

Page 403: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Renato Rodrigues Kinouchi 402

amigos, a despeito de acentuadas diferenças de formação. Peirce era bem do

tipo acadêmico, crescido em uma família de scholars. Por sua vez, James era

um noveau riche, crescido em um ambiente mais literário2, que optou por se

dedicar à ciência, especificamente às áreas de medicina, biologia e história

natural. Por sinal, em 1865, aos vinte três anos, James participou de uma

expedição científica à Amazônia, fazendo parte, por oito meses, da equipe do

naturalista Louis Agassiz3. Mas ao regressar da expedição, o jovem

reconheceu que não tinha vocação para o trabalho de campo, e acabou por se

formar em medicina. O que se quer assinalar é que James também foi um

‘homem de ciência,’ embora de uma maneira não tão visceral como seu colega

Peirce.

A propósito, James era um dos rapazes que participava do Metaphysical

Club, o sarau filosófico onde ocorreram as primeiras discussões acerca do

pragmatismo, por volta de 1870 (Menand, 2001). E muito certamente ele leu os

artigos da coleção Illustrations de Peirce, datados de 1877-78. Todavia, por

mais de vinte anos aqueles debates ficaram, por assim dizer, latentes; isto é, o

pragmatismo não foi de imediato reconhecido pela comunidade intelectual de

então. Isso não quer dizer, entretanto, que idéias pragmatistas não circulassem

sub-repticiamente. Com efeito, a psicologia veiculada por James (1890), em

seu The Principles of Psychology, possui fortes traços pragmatistas,

principalmente no tocante a questões metodológicas. Por exemplo, James

julgava que a psicologia deveria adotar pragmaticamente um pluralismo

metodológico que levasse em conta as contribuições da experimentação em

laboratório, da introspecção e da comparação com o comportamento de outras

espécies. É bem verdade que James nutria predileção pelo método

introspectivo. Só que essa sua preferência por tal método não se deve a

questões de tipo fundacionais; isto é, James não postulava que a introspecção

fosse, a priori, uma bem fundamentada ferramenta metodológica. “A única

2 A título de ilustração diga-se que James era afilhado de Ralph Waldo Emerson. Para seimaginar um pouco da atmosfera intelectual em que William James cresceu, basta ler algumromance de seu irmão mais novo, o famoso ficcionista Henry James.3 Maiores detalhes encontram-se na minha tese “Consciência não-linear: de William James aosSistemas Dinâmicos,” trabalho financiado pela FAPESP por meio de bolsa de doutoramentodireto.

Page 404: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência 403

salvaguarda está no consenso final de nosso conhecimento ulterior sobre a

coisa em questão, com visões posteriores corrigindo as anteriores, até que a

harmonia de um sistema consistente seja alcançada” (James, 1890/1983, p.

191). Fica manifesto que o conhecimento em psicologia também é uma meta a

ser alcançada pelo decurso futuro da investigação científica. Para James, aliás,

a psicologia ainda não tinha alcançado o status de uma ciência natural, e, para

tanto, era necessário o entendimento de que:

[As ciências naturais] fornecem expressões que, dados lugares e tempos, podem sertraduzidas em valores reais, ou interpretadas como porções definidas do caos quenos chegam aos sentidos. Assim se tornam um guia prático de nossas expectativas,bem como proporcionam deleite teórico. Mas não vejo como alguém atento aos fatospode chamar a tais sistemas de produtos imediatos da ‘experiência’ no sentidoordinário. Toda concepção científica é antes de tudo uma ‘variação espontânea’ nocérebro de alguém. Para cada uma que se prova útil e aplicável, existem milhares deoutras que perecem em virtude de seu pouco valor. A gênese das concepçõescientíficas é aparentada com os flashes poéticos e os insights de perspicácia, osquais um cérebro instável igualmente promove. Mas enquanto a poesia e aperspicácia (...) bastam por si mesmas, não tendo que se curvar a testes, asconcepções ‘científicas’ devem mostrar seu valor sendo ‘verificadas’ (James,1890/1983, p. 1232-1233).

Ora, James não faz parte dos pensadores que propunham uma

psicologia racional baseada em princípios metafísicos, nem tampouco

procurava erigir uma psicologia baseada exclusivamente no empirismo de

vertente indutivista (Kinouchi, 2001). Para o pragmatista, o conhecimento

científico é sempre uma expectativa para a ação, que, se frustrada, deve ser

forçosamente abandonada. James adere a um tipo de filosofia da ciência onde

o conhecimento é visto como inerentemente falível, “uma variação ‘espontânea’

do cérebro de alguém” (p. 1233), que precisa mostrar seu valor através de seus

efeitos práticos sensíveis4; por exemplo, pela efetivação de suas previsões.

Assim, nota-se que o pragmatismo jamesiano também possui uma faceta

científica. Mas esse ‘pragmatismo científico’ de James se encontra

principalmente nos trabalhos psicológicos do autor — por exemplo, no The

Principles of Psychology.

4 Como exemplo do que se poderia chamar de ‘índole’ pragmatista, James (1907/1975 a)comenta que quando o físico J. C. Maxwell era criança, ele tinha a mania de que lheexplicassem as coisas, e fazia isso impacientemente perguntando “I want you to tell me theparticular go of it!” — o que é uma perquirição tipicamente pragmatista, sem dúvida.

Page 405: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Renato Rodrigues Kinouchi 404

Entretanto, parece que agora se começa a entrar em conflito com as

interpretações usuais acerca do pragmatismo jamesiano. Isso porque, de fato,

nos textos explicitamente concernentes ao pragmatismo, James raramente fala

sobre ciência. Por exemplo, no ensaio que anunciou a doutrina do pragmatismo

ao mundo filosófico — “Philosophical conceptions and pratical results” — o

assunto que ocupa lugar de destaque é a questão sobre o papel

desempenhado pelas crenças religiosas (James, 1898/1992). Neste ponto

precisamos discernir algumas idiossincrasias do pensamento jamesiano.

Primeiro, James sempre teve afinidades com o misticismo, particularmente

porque seu pai, Henry James Sênior, era um seguidor do místico Swedenborg.

Em segundo lugar, James vinha obtendo um grande sucesso editorial com seu

livro The Will to Believe, datado de 1897, o que o motivava cada vez mais a

escrever sobre temas ligados à religião (Simon, 1998). Finalmente, por volta de

1898 — ano em que o “Philosophical conceptions and practical results” foi

apresentado — James fora convidado para a prestigiosa Gifford Lectureship on

Natural Religion, em Edimburgo, o que mais tarde rendeu-lhe a publicação do

celebrado livro Varieties of Religious Experience, de 1902. Em síntese,

questões religiosas cada vez mais ocupavam o já então famoso psicólogo

norte-americano, de modo que seu pragmatismo acabou sendo, em grande

medida, dirigido para o exame de tais questões.

O que se pretende com essas ponderações é mostrar que, sem dúvida,

o pragmatismo jamesiano freqüentemente gira em torno de temas religiosos,

éticos e morais. Só que isso não significa que James não tivesse anteriormente

dirigido seu pragmatismo para temas propriamente científicos. O que

aconteceu é que, no final de sua carreira, James passou cada vez mais a se

ocupar com o que se poderia chamar de temas vitais, ou existenciais. Aqui não

se irá discutir em detalhes o mérito dessa expansão, pois isso nos levaria a

uma enorme digressão. O que se quer remarcar, resumidamente, é que de fato

o pragmatismo jamesiano se expandiu para além dos usuais domínios da

filosofia da ciência; mas também há que se reiterar que, antes dessa expansão,

James vinha sub-repticiamente veiculando uma abordagem pragmatista no

campo da psicologia científica. Enfim, para se encontrar, no pragmatismo

jamesiano, considerações relativas à filosofia da ciência, devemos examinar

Page 406: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência 405

prioritariamente suas obras científicas, e não tanto suas obras de cunho

filosófico geral.

Objetivos:

Inicialmente o objetivo deste projeto consiste em aprofundar certas

considerações tais como as apresentadas na introdução. E um tal

aprofundamento teórico demanda uma confrontação entre as idéias dos

autores pragmatista. Com efeito, é usual nos círculos pragmatistas se dizer que

para se entender bem James é preciso conhecer Peirce, e vice-versa — assim

como para se bem entender Aristóteles é preciso conhecer Platão, e vice-

versa. Por exemplo, em alguma medida o pragmatismo se liga à máxima de

Protágoras, segundo a qual ‘o homem é a medida de todas as coisas’. Mas o

pragmatismo se divide em ao menos dois tipos de interpretação dessa máxima.

Se entendermos que a palavra homem deve ser lida como definindo o gênero

humano, a humanidade em geral, então o pragmatismo seria um tipo de

antropomorfismo, o que é uma tese tipicamente de Peirce (1903/1998). Já se

interpretarmos a palavra homem num sentido mais individualista, então o

pragmatismo engendraria certo tipo de subjetivismo, o que é característico em

James (1907/1975).

Confrontações desse tipo se justificam, antes de tudo, porque se

aprende muito acerca do pragmatismo quando examinamos as divergências de

enfoque entre os autores pragmatistas (Ayer, 1968; Talisse, 2000). Some-se a

essa justificativa uma segunda, o fato de que, no caso particular de James, há

pouquíssimo material em língua portuguesa sobre suas psicologia e filosofia.

Na verdade, pode-se dizer que, no Brasil, James ainda é um ‘ilustre

desconhecido’ 5. Ora, na medida em que o presente candidato conhece de

perto a obra de James — tema principal de sua tese de doutoramento — então

seria possível contribuir para o preenchimento de uma tal lacuna.

Dando prosseguimento, há um outro objetivo que merece atenção.

Nenhum trabalho sobre o pragmatismo pode ser considerado satisfatório sem

5 Uma rara contribuição para a divulgação da obra de James é o volume que lhe foi dedicadona Coleção Os Pensadores, organizado pelo supervisor deste projeto, Dr. Pablo R. Mariconda.

Page 407: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Renato Rodrigues Kinouchi 406

que se contemplem as obras de outros pragmatistas clássicos tais como

Dewey, Mead e Schiller. Neste projeto, que centra foco na intersecção entre o

pragmatismo e a filosofia da ciência, devemos averiguar o que tais autores têm

a dizer. E certamente eles têm o que dizer. Tome-se o caso de Dewey (1981a;

1981b), que nos oferece “uma filosofia da ciência de cunho empirista e

naturalista” (Shook, 2002, p. 211) com consideráveis implicações para o

conhecimento científico6. Aliás, se mostra conveniente também estudar um

pouco da obra de cientistas e filósofos que, embora não fossem de fato

pragmatistas, apresentavam ligeiras afinidades com o pragmatismo — por

exemplo, o convencionalismo de Henri Poincaré e o instrumentalismo de Pierre

Duhem. Há que se analisar, ademais, concepções de autores francamente

críticos do pragmatismo — tal é o caso de uma polêmica envolvendo William

James e Bertrand Russell (1908). Em resumo, nesse segundo momento o que

se pretende é examinar o contexto em que o pragmatismo se formou e os

debates que se travaram na época.

Como justificativa, ponderemos que, embora uma profunda confrontação

‘interna’ entre Peirce e James seja importante, isso ainda não seria de todo

satisfatório. Destarte se faz necessária uma complementação. Ou seja, para

que se possa de fato compor um bom panorama teórico, uma boa

contextualização, há que expandir a análise ora pretendida; com destaque para

John Dewey — por toda sua relevância —, mas também sem negligenciar aos

críticos — não menos relevantes — tais como Russell.

Finalmente, há um terceiro objetivo em vista, que consiste em examinar

as reverberações do pragmatismo no século XX. Esse é o caso de autores tais

como Percy Bridgman (1927), W. V. Quine (1951), Hilary Putnam (1995),

Richard Rorty (1994) e Susan Haack (1998). A propósito, uma dessas

reverberações pragmatistas no século XX se deu no Brasil, em especial na

obra de Anísio Teixeira. Por isso valeria a pena examinar a trajetória desse

destacado deweyano e averiguar o papel que ele atribuía à ciência e, em

específico, ao ensino de ciência (Teixeira, 1955). Por outro lado, também se

6 Adicionalmente também podemos indicar as contribuições de Mead (1938), no ensaioScience and the Objectivity of Perspectives.

Page 408: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O pragmatismo e a filosofia da ciência 407

mostra conveniente considerar as obras de pensadores cujas filosofias, por

assim dizer, correram em paralelo ao pragmatismo. É o caso do behaviorismo

radical de B. F. Skinner (1974), autor que certamente dialoga teoricamente com

James — o que não poderia ser diferente, em vista da influência desse último,

em especial na Universidade de Harvard — e que também retoma certos

elementos do pensamento de Peirce — havendo indícios de que a tríplice

contingência estímulo-resposta-reforçamento pode ser interpretada em termos

das categorias peircianas (Moxley, 1999). Outro caso interessante é o de Karl

Popper, cuja teoria concernente ao método científico foi, segundo Ayer (1968,

p. 15), “em larga medida antecipada por Peirce”, pois é correto dizer que o

pragmatismo é uma lógica da abdução, ou um método hipotético de

investigação (Peirce, 1998a). É bem verdade que Popper (1997) explicitamente

reconhece a importância de Peirce7; mas vale investigar se afirmações como

as de Ayer não são generalizações por demais largas8.

Em resumo, este terceiro objetivo consiste em contemplar a influência do

pragmatismo no que tange a filosofia da ciência do século XX. Isso faria com

que o trabalho tivesse, por assim dizer, um caráter mais orgânico, de modo que

as diversas partes do trabalho dar-se-iam suporte mútuo. Tal objetivo se

justifica na medida em que será o fechamento de toda uma análise histórico-

conceitual. Espera-se, assim, que os escritos resultantes deste projeto possam

compor uma análise bem acabada, um inventário satisfatório dos

desdobramentos do pragmatismo na filosofia da ciência.

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Ayer, A. J. The Origins of Pragmatism: Studies in the Philosophy ofCharles

Sanders Peirce and William James. London: Macmillan Press Ltd, 1968.

7 Por exemplo, no que tange ao debate “determinismo versus indeterminismo,” consultar oensaio “De Nuvens e Relógios”, que faz parte da coletânea Conhecimento Objetivo (1975),São Paulo:EDUSP.8 Aliás, o candidato já vem discutindo tais assuntos, via listas de discussão na Internet, compesquisadores estrangeiros tais como Dr. Howard Callaway da Universidade de Mainz -Alemanha.

Page 409: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Renato Rodrigues Kinouchi 408

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Page 412: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Rudolf Carnap: teorias científicas e predições

Ivan Ferreira da CunhaGraduando em Filosofia/UEL

Rudolf Carnap, em sua obra Testability and Meaning, de 1936/37,

apresenta um novo método, chamado por ele de Confirmacionismo – seguindo

uma evolução pela qual o verificacionismo passava. Segundo o

Confirmacionismo, hipóteses científicas devem ser transformadas em funções-

probabilidade, e cada teste realizado serve para justificar a aceitação (em caso

de confirmação) ou rejeição (em caso de desconfirmação) da hipótese em

questão.1

Inicialmente, Carnap identifica a noção de probabilidade lógica como

sendo um valor numérico, de acordo com a fórmula abaixo, em que temos: c

como o grau de confirmação da hipótese; h como a hipótese; e como o

conjunto das evidências em que a hipótese se fundamenta; r como o valor de

probabilidade.

c(h,e) = r

Entretanto, ele observa que as leis científicas possuem valores de

probabilidade (r) muito próximos de zero, ou seja, a substituição do

verificacionismo pelo confirmacionismo não resolve o problema apontado

anteriormente: ou seja, com o verificacionismo, as leis universais eram

excluídas da ciência. Hipóteses bem-confirmadas, que funcionam bem nos

sistemas científicos passariam a ter, dessa forma, probabilidade quase nula,

pois atuam num sistema infinito, em que a série de testes é limitada.

Na obra Logical Foundations of Probability, de 1950, o problema é

tratado por meio do conceito de Confirmação de Instância Qualificada; Carnap

nos diz que um cientista não deve se ocupar com a probabilidade da lei, mas

com a probabilidade da próxima situação a ser observada. Carnap dá o

exemplo do engenheiro, que utiliza uma determinada lei da física para projetar

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 413: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Ivan Ferreira da Cunha 412

uma ponte; ele não está preocupado em descobrir se tal lei funcionará

eternamente – caso ele estivesse, ele teria que analisar “um número imenso,

talvez infinito, de instâncias dispersas pelo tempo e pelo espaço”2 –, ele quer

simplesmente saber se a lei garante que a ponte projetada funcione bem e de

maneira segura – ou ainda, ele deseja que todas as pontes que ele projete com

base na tal lei funcionem adequadamente. Dessa forma, o grau de confirmação

da lei para o caso chega perto de um, e justifica-se a aceitação da lei com base

na alta probabilidade de que ela funcione.

Assim, então, a hipótese analisada “não é a lei em si mesma, mas

somente uma previsão relativa a uma instância ou a um número relativamente

pequeno de instâncias”.3 Temos que a confirmabilidade de uma lei (l), dadas as

evidências (e), é igual à probabilidade da hipótese (h), ou seja, da próxima

instância observada, dadas as mesmas evidências:

c(l,e) = c(h,e)

Um outro exemplo dado por Carnap é o de um cientista que visa

confirmar uma lei na forma:

∀x(Px → Qx)

O cientista analisará a hipótese de o próximo indivíduo x a ser

observado ter o predicado Q, caso ele tenha a propriedade P; na possibilidade

de tal evento ocorrer, o grau de confirmabilidade da lei acima será aumentado,

caso contrário, será reduzido. Quanto mais exemplos que confirmem a lei

forem encontrados, maior a confiança que se tem nela.

Karl Popper, no artigo The Demarcation Between Science and

Methaphysics, de 1963, apresentou importantes críticas à visão defendida por

Carnap. Popper defende que o que caracteriza a ciência empírica,

diferenciando-a dos outros ramos do conhecimento, não é o método indutivo,

mas sim a “sua capacidade de se submeter a testes experimentais”.4 Deste

1 Uma outra forma de utilização do confirmacionismo apontada por Carnap em 1936/37 utiliza ograu de confirmação de maneira topológica, ou seja, comparando a probabilidade de umahipótese com a de outra; tal técnica funciona para a decisão entre duas teorias concorrentes.2 CARNAP, R. (1967), p. 572. An immense number, perhaps an infinite number, of instancesdispersed through all time and space.3 CARNAP, R. (1967), p. 572. Is not the law itself but only a prediction concerning one instanceor a relatively small number of instances.4 MALHERBE, J. F. (1979), p. 92. Leur capacité à se soumettre à des tests expérimentaux.

Page 414: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Rudolf Carnap: teorias científicas e predições 413

modo, a ciência deve funcionar de acordo com o método falseacionista,

segundo o qual não se justifica a aceitação de uma hipótese, mas somente a

escolha de teorias concorrentes.

Primeiramente, Popper não aceita a transição do Verificacionismo para o

Confirmacionismo da forma como foi feita – para ele, o Confirmacionismo é

uma versão enfraquecida do Verificacionismo – e, dessa forma, aplica ao novo

método carnapiano algumas das críticas que haviam sido feitas anteriormente

– dentre as quais, se destaca a de que o Confirmacionismo não oferece uma

demarcação eficiente entre ciência e metafísica.

Para demonstrar que tal crítica é efetiva, Popper apresenta uma

sentença que ele chama de arquimetafísica e mostra que o Confirmacionismo

aceita uma proposição com tal forma, ou seja, não excluindo efetivamente a

metafísica do pensamento científico. O enunciado proposto por Popper é o

seguinte: “Existe um espírito que é onipresente, onipotente e onisciente”.5 Em

seguida ele traduz a sentença para diversas sentenças em linguagem formal,

mostrando que é possível construir uma proposição arquimetafísica num

sistema lógico de linguagem; Popper, então, nos diz que tal formulação se

encaixa como científica no método carnapiano e que é corretamente eliminada

pelo falseacionismo, pois “não pode ser submetida a qualquer teste científico:

não há qualquer esperança de falsificá-la – de descobrir, caso seja falsa, que é

falsa”.6

Entretanto, Popper parece não ter atentado para o fato de que, pelo

Confirmacionismo, uma hipótese só receberá crédito caso seja confirmada em

alto grau – ou caso forneça segurança na previsão das próximas instâncias. Ou

seja, tal sentença pode ser formulada no método carnapiano, porém ela é

desprovida de significado, não afirma absolutamente nada e não pode ser

considerada falsa ou verdadeira. Para que um significado seja atribuído à

afirmação, ela deveria ser formulada da seguinte forma: Existe um espírito que

é onipresente, onipotente e onisciente e ele estará em tal localização em um

5 POPPER, K. (2002), p. 370. There exists an omnipresent, omnipotent and omniscientpersonal spirit.6 POPPER, K. (2002), p. 372. Cannot be submitted to any scientific test: there is no hopewhatever of falsifying it – of finding out, if it is false, that it is false.

Page 415: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Ivan Ferreira da Cunha 414

determinado horário de um determinado dia. Esta sentença então, no método

carnapiano, pode ser formulada, pode ser submetida a testes, porém não

receberá crédito por não ser confirmada, em outras palavras, por ser falsa, – e

será deixada de lado, dando lugar a outras hipóteses mais adequadas à

pesquisa científica.

Outra crítica apontada por Popper é com relação à Confirmação por

Instância Qualificada – a probabilidade de que a próxima predição esteja

correta. Popper condena tal alteração na metodologia de Carnap por se

caracterizar como uma hipótese auxiliar ad hoc, ou seja, um adendo adicionado

inadvertidamente à teoria de modo a salvá-la dos testes que eventualmente a

falseariam. Popper diz que o grau de confirmação de uma lei é de

aproximadamente zero e que, com o ad hoc de Carnap, tal grau passa a ser de

aproximadamente um e isso não pode ser aceito porque “caso permitamo-nos

a liberdade de introduzir uma nova medida (...) então nós podemos obter para

qualquer sentença, qualquer probabilidade (ou grau de confirmação) que

desejarmos”.7

Ao fazer esta crítica, Popper parece confundir os conceitos utilizados por

Carnap; após a introdução do método de Confirmação por Instância

Qualificada, Carnap se refere às predições que são feitas a partir de uma teoria

qualquer.

Popper apresenta ainda o problema que é o fato de que a busca por

sentenças com alto grau de probabilidade faria com que o conteúdo empírico

fosse reduzido, o que seria paradoxal ou mesmo absurdo, uma vez que se trata

da ciência empírica. “Na verdade, os cientistas preferem as conjecturas

audaciosas e pouco prováveis, mas altamente informativas (e, portanto

altamente falsificáveis) às trivialidades altamente prováveis, porém

insignificantes”.8 Assim sendo, para Popper, o cientista deve objetivar

hipóteses improváveis, porque deve criá-las tendo em vista os testes a que

7 POPPER, K. (2002), p. 381. If we permit ourselves the freedom thus to introduce a newmeasure (…) then we can obtain for any sentence any probability (or degree of confirmation) welike.8 POPPER, K. R. apud MALHERBE, J. F. (1979), p. 84. En fait, led hommes de sciencepréferènt conjectures audacieuses et peu probables, mais hautement informatives (et donchautement falsifiables) à des trivialités hautement probables mais insignifiantes.

Page 416: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Rudolf Carnap: teorias científicas e predições 415

elas serão submetidas, e deve escolher dentre suas teorias aquelas que

poderão ser submetidas aos mais severos testes.

Carnap aproxima a explicação científica – de propor explicações e

respostas aos problemas que o mundo nos apresenta – da explicação

corriqueira, a qual é feita com base em experiências anteriores; Carnap afirma

que não precisamos que as leis tenham alta probabilidade de estarem corretas;

precisamos apenas que a lei tenha uma probabilidade alta o suficiente para

garantir confiança na predição realizada.

Popper critica Carnap neste ponto, dizendo que ele está de volta ao seu

erro verificacionista de eliminar as leis da atividade científica (Cf. Popper, 2002,

p. 382). Contudo, o que Carnap propõe não é que as leis devem ser

eliminadas, ele afirma que “o uso das leis não é indispensável para fazer

predições”,9 afinal criamos expectativas sobre determinados eventos em

nossas vidas cotidianas o tempo todo, sem que precisemos de leis científicas.

Porém, o uso de tais leis “é expediente para estabelecer leis universais em

livros de física, biologia, psicologia, etc”.10

Podemos dizer que Carnap descreve a atividade científica como um

procedimento de previsão de eventos; e justificar as leis e hipóteses científicas

é dizer o porquê de ter confiança em determinadas previsões em detrimento de

outras – e tal justificação se dá por meio da probabilidade lógica, afastando a

suposta irracionalidade do procedimento indutivo e rompendo com a

identificação da racionalidade com a validade da lógica dedutiva.

Alex Michalos, em The Popper-Carnap Controversy, analisa uma

objeção ao Confirmacionismo que ficou conhecida como Paradoxo da

Confirmação. Tal objeção afirma que duas leis logicamente equivalentes

possuem graus de confirmação de instâncias qualificadas – ou graus de

confiabilidade – diferentes, o que supõe que o grau de confirmação de uma lei,

ou hipótese, varia conforme a maneira como a lei é expressa verbalmente. (Cf.

Michalos, 1971, pp.53-4).

9 CARNAP, R. (1967), p. 575. The use of laws is not indispensable for making predictions.10 CARNAP, R. (1967), p. 575. it is expedient, of course, to state universal laws in books onphysics, biology, psychology, etc.

Page 417: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Ivan Ferreira da Cunha 416

O exemplo dado é o da lei (L1) ∀x (Px→Qx), que tem grau de

confirmação de aproximadamente zero e um grau de confirmação de instância

qualificada, ou de confiabilidade, dependente das evidências confirmadoras da

lei e que chamaremos aqui de r. Esta lei pode ser expressa de uma outra forma

logicamente equivalente (L2): ∀x(¬Qx→¬Px), que, assim como a outra, terá

grau de confirmação próximo de zero, e um grau de confirmação de instância

qualificada que, mais uma vez, depende das evidências confirmadoras da lei e

que chamaremos aqui de r’.O paradoxo da Confirmação afirma que os valores de r e de r’ são

diferentes por se tratarem de valores dependentes de evidências diferentes –

fazendo com que a confiabilidade da lei dependa da forma como ela é

expressa, ou seja tornando o método de confirmação de instância qualificada

não-confiável, pois seus valores podem ser facilmente alterados.

Michalos não apresenta uma solução ao paradoxo da Confirmação,

entretanto, na mesma obra, mais adiante, ele afirma que “se h e h’ são L-

equivalentes, então C(h,e) = C(h’,e)”;11 caso considerarmos que as duas

hipóteses abrangem o mesmo conjunto de indivíduos observados, então as

evidências analisadas serão as mesmas e, assim, o paradoxo da Confirmação

será dissolvido.

No exemplo dado por Carnap do engenheiro construindo uma ponte,

temos que ele observa que as pontes construídas segundo a lei P se

comportam de maneira Q, ou seja, são bem sucedidas: ∀x(Px→Qx); e temos

que as pontes que não se comportam da maneira Q, ou seja, não são bem

sucedidas, não foram construídas segundo a lei P: ∀x(¬Qx→¬Px). Dentre

todas as pontes observadas pelo engenheiro, as que são construídas conforme

P e são bem sucedidas e as que não são bem sucedidas e não foram

construídas de acordo com a lei P são exemplos confirmadores; ao passo que

as que foram construídas conforme P e não são bem sucedidas são contra-

exemplos. Assim, as evidências para ambas as leis são as mesmas, pois são

as mesmas pontes observadas – portanto, o grau de confirmação das duas leis

é o mesmo, próximo de zero, e grau de confirmação de instâncias qualificadas

Page 418: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Rudolf Carnap: teorias científicas e predições 417

também é o mesmo e próximo de um. Importante ressaltar que é necessário

despender certa atenção na escolha das evidências que serão levadas em

consideração; caso contrário, exemplos irrelevantes alterarão o resultado da

confirmação; ou seja: devemos escolher as evidências relevantes para testar

uma determinada hipótese.

Conforme mostrado neste texto, o ponto de vista adotado por Popper

não é adequado, pois suas críticas podem ser respondidas pelo método de

Rudolf Carnap – a saber, as críticas à transição do verificacionismo ao

confirmacionismo; à introdução do conceito de instância qualificada, que seria

um ad hoc; à redução do conteúdo empírico da ciência; à suposta eliminação

das leis da atividade científica.

Bibliografia

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________. (1936/37). Testability and Meaning. IN: Philosophy ofScience, volume 3, pp. 420-471; volume 4, pp. 01-40.

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11 MICHALOS, A. (1971), p. 55. If h and h’ are L-equivalent, then C(h,e)=C(h’,e).

Page 419: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Ivan Ferreira da Cunha 418

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Page 420: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito

Joyce Mayumi ShimuraGraduanda em Filosofia/UEM

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo expor a teoria do conhecimentosubjacente nas Regras para a orientação do espírito, de René Descartes. Épossível notar que os preceitos do método expostos no Discurso do Métodosintetizam as regras, anteriormente, desenvolvidas por Descartes nasRegras. As indicações sobre a teoria do conhecimento cartesianaencontram-se nessa obra. Deste modo, faz-se necessário antes de compreenderos preceitos do método, compreender o que Descartes entende por conhecer, já que ateoria do conhecimento, exposta nas Regras, serve de verdadeiraintrodução ao método; e este é o mote desse trabalho. O objetivo deDescartes é criar um método que conduza o espírito, i. e., o intelecto, demodo a permitir que este formule juízos sólidos e verdadeiros, certos eevidentes, sobre todas as coisas. Deste modo, conhecer significa conceber averdade e para se conceber a verdade, Descartes afirma que há doiselementos, os quais, guiam à concepção de certeza: os processos mentais e osobjetos primeiros. Os processos mentais são dois: a intuição e a dedução, e osobjetos primeiros de certeza são as naturezas simples. Estes dizem respeito ascoisas e aqueles concernem aos sujeitos. Há uma relação entre a concepçãode certeza e a teoria do conhecimento, na medida em que só o método permiteintuir o mais simples, conhecendo e determinando as evidências. O objetivo dométodo é estabelecido quando Descartes define o que é o conhecimento,de onde deriva e o que compreende, ou seja, o objetivo do método é aconstrução de um corpo de conhecimento, o qual tem como base a intuiçãoe a dedução que são derivadas da familiaridade do intelecto com asnaturezas simples, originada da luz da razão. Assim, é possível notar que ateoria do conhecimento é inseparável do método, pois somente este pode darao conhecimento o seu objeto, do mesmo modo que o método consiste naordem. Deste modo, a ordem e a ligação do conhecimento constituem umaepistemologia subjacente nas Regras.

Palavras-Chave: Descartes, método, epistemologia.

Este trabalho tem como objetivo expor algumas considerações sobre a

teoria do conhecimento subjacente nas Regras para a orientação do espírito,

de René Descartes. É possível notar que os preceitos do método expostos no

Discurso do Método sintetizam as regras, anteriormente, desenvolvidas por

Descartes nas Regras para a orientação do espírito1. As indicações sobre a

1 Nesse sentido, Guenancia afirma que “Deve-se primeiramente observar que, das Regulae aoDiscurso, o número de regras restringiu-se consideravelmente. O método, no Discurso,consiste apenas em alguns preceitos, ao passo que nas Regulae Descartes expõedetalhadamente o conteúdo de um método que é também uma tentativa de resolução de

BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa emHistória e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005.

Page 421: Anaiais Encontro Filosofia Parana

Joyce Mayumi Shimura 420

teoria do conhecimento cartesiana encontram-se nessa obra2. Deste modo,

faz-se necessário antes de compreender os preceitos do método, compreender

o que Descartes entende por conhecer, já que a teoria do conhecimento,

exposta nas Regras, serve de verdadeira introdução ao método; e este é o

mote desse trabalho.

O objetivo de Descartes é criar um método que conduza o espírito, i. e.,

o intelecto, de modo a permitir que este formule juízos sólidos e verdadeiros,

certos e evidentes, sobre todas as coisas, conforme Descartes apresenta nas

Regras I e II3:

Os estudos devem ter por meta dar ao espírito uma direção que lhe permita formularjuízos sólidos e verdadeiros sobre tudo que se lhe apresenta4. [...] Os objetos com osquais devemos nos ocupar são aqueles que nossos espíritos parecem ser suficientespara conhecer de uma maneira certa e indubitável5.

Deste modo, conhecer significa conceber a verdade e para se conceber

a verdade, Descartes afirma que há dois elementos, os quais, guiam à

concepção de certeza: os processos mentais e os objetos primeiros. Os

processos mentais são dois: a intuição e a dedução, os quais dizem respeito

aos sujeitos, e os objetos primeiros de certeza, ou seja, as naturezas simples

as quais concernem às coisas6.

Descartes afirma que a intuição constitui o ato essencial para o

conhecimento, consiste, ainda, no contato direto do pensamento com seu

problemas particulares, algébricos e geométricos e não apenas um programa contendodiretivas mas não pondo ele próprio nada em prática”. Guenancia, P. Descartes, p. 11.2 Segundo Garber: “A ordem do conhecimento é um tema básico nas Regras”. Garber, D.Descartes’ Metaphysical Physics, p. 31.3 Estas Regras, conforme afirma Garber, foram compostas provavelmente no mesmo período.Período, este, após os sonhos de 10 de novembro de 1619. “A parte das primeiras porções dasRegras, pensadas no meio de novembro de 1619, logo após os sonhos de 10 de novembro.Descartes está certo de que o objetivo do método é a certeza. Deste modo, ele escreveu aprimeira regra [...] E na segunda, provavelmente do mesmo período[...]”.Ibid., p. 31.4 Descartes, R. Regras para a orientação do espírito, p. 1.5 Descartes, R. Regras para a orientação do espírito, p. 5.6 Na Regra XII, Descartes indica que no que se refere ao “conhecimento há apenas queconsiderar dois pontos, a saber: nós que conhecemos e os objetos que estão por conhecer.Em nós, há somente quatro faculdades que podem servir-nos para esse uso: são oentendimento, a imaginação, os sentidos e a memória. Apenas o entendimento, por certo, écapaz de perceber a verdade; todavia, deve ser ajudado pela imaginação, pelos sentidos epela memória [...] Do lado da realidade, basta examinar três coisas, a saber: primeiro o que seapresenta espontaneamente, depois como se conhece através de outro determinado objeto, e,enfim, quais deduções se podem tirar de cada um deles.” Ibid., Regra XII. p. 73 e 74.

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O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 421

objeto, as naturezas simples. Trata-se de um ato racional, do pensamento

puro, que não deriva dos sentidos ou da imaginação, mas nasce da luz natural

da razão, que através de um intelecto puro e atento reconhece as naturezas

simples e suas relações. Já a dedução7 concerne a uma cadeia sucessiva de

intuições, distingui-se da intuição por lançar mão da memória, a qual não se

trata de uma faculdade cognoscitiva. Assim, não há distinções essenciais entre

intuição e dedução.

É possível notar que Descartes não define, claramente, do que se tratam

as naturezas simples, introduzidas na Regra VI8. As naturezas simples estão

ligadas à caracterização de certeza, por não poderem ser decompostas em

noções mais simples. As coisas estão dispostas em uma série e no início

dessas séries se encontram as naturezas simples e puras, ou objetos

absolutos, e em seguida estão os objetos relativos. As naturezas simples são a

causa, o uno, o igual e através destas noções se compreende o efeito o

múltiplo e o desigual, objetos relativos9. Descartes afirma, ainda, na Regra XII,

que as naturezas simples são as noções primitivas10 ou comuns da intuição ou

do conhecimento.

7 Segundo Kujawski: “A dedução tem sentido muito amplo para Descartes, significandoqualquer conclusão, tanto da causa para o efeito, como vice-versa, [...]. Processa-se numasérie de razões encadeadas entre si pela memória. É sucessiva, ao passo que a intuição, avisão intelectual é simultânea, tota simul.” Kujawski, G. de M. Descartes Existencial, p. 62.8 Esta regra é datada do meio de novembro de 1619, assim como as Regras que tratam daintuição e da dedução. Garber, D. Descartes’ Metaphysical Physics, p. 32.9 Na Regra XII, escrita, provavelmente, segundo Garber, em 1626 e 1628, Descartes altera asnoções que concernem às naturezas simples, reconhecendo três tipos de naturezas simples:puramente mental (pensamento, dúvida e vontade); puramente material (forma, extensão,movimento, etc.) e aquelas que pertencem a ambas (existência, unidade, duração). Garber, D.Descartes’ Metaphysical Physics, p. 33. Nesse sentido, Landim afirma que “As noçõesprimitivas mais gerais são as noções de ser, de número e de duração, que convêm a todas ascoisas que podem ser percebidas. O pensamento (percebido somente pelo intelecto puro), aExtensão (percebida pelo intelecto puro, mas, melhor ainda, pelo intelecto puro ajudado pelaimaginação) e a união da alma e do corpo (percebida claramente pelos sentidos) são noçõesprimitivas específicas”. Landim Filho, R. F. Evidência e Verdade no Sistema Cartesiano, p. 39.E, ainda, Kujawski afirma que: “A intuição tem por objeto as naturezas simples e sua relaçõesimediatas. Que são naturezas simples? Descartes não as define. Exemplifica-as nas “noçõesprimitivas”, como as de extensão, de pensamento, de união entre alma e corpo; ou as de ser,de número, de duração, etc. (carta a Elizabeth, 21 de maio de 1643). Outros exemplos: afigura, o movimento, o conhecimento, a dúvida, a volição, a existência, a unidade (v. Laporte, leratinalisme de Descartes, página 104)”. Kujawski, G. de M. Descartes Existencial, p.63.10 Segundo Landim “As Regulae, além de considerar como naturezas simples as noções queposteriormente foram denominadas de noções comuns, não formularam, de maneira precisa, onexo de pressuposição que vincula as idéias que representam os modos com as idéias querepresentam os atributos principais, nem caracterizam as noções que, para ser claramente

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Joyce Mayumi Shimura 422

Nota-se uma relação entre a concepção de certeza e um tipo de teoria

do conhecimento, na medida em que o método permite intuir o mais simples,

conhecendo e determinando as evidências. O objetivo do método somente é

estabelecido na medida em que o conhecimento é definido, ou seja, o objetivo

do método é a “construção de um corpo de conhecimento, fundamentado na

intuição e na dedução, derivado da familiaridade do intelecto com as naturezas

simples, derivado da luz da razão” (Regra IV, p. 19-20). Assim, é possível notar

que a teoria do conhecimento é inseparável do método, pois somente este

pode dar ao conhecimento o seu objeto, do mesmo modo, que o método

consiste na ordem, conforme Descartes afirma na Regra IV e na Regra V:

O método é necessário para a busca da verdade. [...]Quanto ao método, entendo porisso regras certas e fáceis cuja exata observação fará que qualquer um nunca tomenada de falso por verdadeiro, e que, sem despender inutilmente nenhum esforço deinteligência, alcance, com um crescimento gradual e contínuo de ciência, o verdadeiroconhecimento de tudo quanto for capaz de conhecer (Regra IV, p. 19-20.). [...]Ométodo todo consiste na ordem e na organização dos objetos sobre os quais se devefazer incidir a penetração da inteligência para descobrir alguma verdade. Nós lheficaremos ciosamente fiéis, se reduzirmos gradualmente as proposições maissimples, e, em seguida, se partindo da intuição daquelas que são as mais simples detodas, procurarmos elevar-nos pelas mesmas etapas ao conhecimento de todas asoutras. (Regra V. p. 29).

Cabe observar, porém, que o método não é constituído para ajudar nas

atuações da intuição, mas para servir de instrumento que nos guia a desvendar

o conhecimento verdadeiro. Este conhecimento é baseado na intuição e na

dedução que o espírito é capaz de ter sem o método. O método consiste na

organização dos objetos, por meio do qual o intelecto busca ordená-los, de

modo a reduzir as proposições mais complexas às proposições mais simples,

gradualmente. Este processo é chamado, por Descartes, de análise; enquanto

que o processo contrário, o qual, se inicia pela proposição mais simples em

direção à mais complexa, dá-se o nome de síntese11.

compreendidas, não dependem de qualquer outra noção e que, por isso, podem representar aessência das substâncias.” O mesmo aponta que “As noções primitivas são as categoriasbásicas ou elementares do sistema cartesiano [...]. Nas Meditações, as noções primitivas sãodenominadas de idéias primeiras e principais[...].” Landim Filho, R. F. Evidência e Verdade noSistema Cartesiano, p. 39.11 Sobre isso, Garber afirma que embora a regra do método apresente estes dois passos,análise e síntese, esses não fazem sentido. “Contudo, a regra faz pouco sentido, nem,tampouco, está ligada, claramente, com a consideração do conhecimento e certeza nos termosda intuição e da dedução, a menos que nós saibamos o que ele entende aqui por redução ao

Page 424: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 423

Portanto, a ordem e a ligação do conhecimento constitui uma

epistemologia subjacente nas Regras. Na medida em que Descartes define o

que é conhecimento, de onde deriva e o que compreende, ele à conforma com

o objetivo do método. A ordem é um encadeamento de preposições as quais

são ligadas, dedutivamente, umas às outras e fundamentadas na intuição. A

existência do método é permitida, somente, pelo estabelecimento dessa ordem,

pois a partir de uma questão pode-se deduzir outras questões mais simples até

chegar na intuição primeira. É possível, ainda, extrair uma resposta dedutiva

para qualquer questão posta, Garber afirma que este é “um procedimento mais

específico para a solução de questões”12. Deste modo, somente o método

fornece ao conhecimento o seu objeto, assim, a teoria do conhecimento é

inseparável da prática do conhecimento. Isso é possível de ser encontrado,

apenas, na certeza e evidência das demonstrações da ciência matemática13.

Todo conhecimento deve ser derivado da intuição e da dedução. As

questões específicas devem ser ligadas à proposições mais gerais e a partir de

uma cadeia devem ser deduzidas até as questões mais fundamentais. Deste

modo, a ordem e a ligação do conhecimento determina a forma da ciência

cartesiana. Embora, na obra de Descartes não haja nenhuma afirmação sobre

isto, Garber sugere que:

[...]por volta de 1628 ele [Descartes] tenha passado a ver toda a filosofia natural comofundamento de conhecimentos gerais das propriedades corpóreas de extensão,forma, movimento e, todos os ramos mais especializados, dióptrica, meteoros, atémesmo, talvez, a biologia das plantas e dos animais e porções largas de medicinacomo estando no cume dessas fundações, no sentido preciso que a fim de conheceras ciências mais elevadas, no mais estrito sentido deve-se passar através dasdisciplinas mais fundamentais” (GARBER, p.39)

As Regras têm seu fundamento na afirmação de que todo conhecimento

é derivado da intuição e da dedução, e por isso pode ser considerado que

simples, e a construção, ou reconstrução do complexo a partir do simples”. Garber, D.Descartes’ Metaphysical Physics, p. 34.12 Ibid., p.39.13 Nesse sentido Guenancia afirma que “Na época das Regulae, a ciência à qual Descartes serefere é essencialmente a matemática, independente dos domínios a que possa se aplicar.Constando que as matemáticas continuam sendo as únicas ciências em que se encontra acerteza, e lamentando que ainda seja assim, Descartes não se resigna, entretanto, a admitirque as matemáticas sejam as únicas ciências, mas desejaria que toda ciência fossematemática, se não por seu objeto (o que é impossível), ao menos por seu método, a análise epela certeza e evidência de seus resultados”. Guenancia, P. Descartes, p. 13.

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Joyce Mayumi Shimura 424

nessa obra existe uma epistemologia subjacente. Contudo, o que se percebe é

que no início da composição das Regras, Descartes busca tornar claro,

apenas, a sua posição em relação a lógica formal escolástica14; sem

demonstrar muita preocupação em justificar a afirmação de que todo

conhecimento é derivado da intuição e da dedução. Nota-se que somente após

a apresentação do exemplo da linha anaclástica é que Descartes inicia uma

justificativa sistemática acerca do projeto epistemológico existente nas Regras.

Embora, as passagens seguintes sejam extensas, convém citá-las para que se

possa compreender tal afirmação:

[...]suponhamos que alguém procure, dedicando-se apenas às matemáticas, a linhaque em Dióptrica é chamada de anaclástica, ou seja, na qual os raios paralelos serefrangem de tal modo que todos, depois da refração, tenham um único ponto deinterseção. Ele observará por certo facilmente [...]que a determinação dessa linhadepende da relação que os ângulos de refração conservam com os ângulos deincidência. [Porém] essa proposição ainda é composta e relativa; ora apenas dascoisas puramente simples e absolutas é que se pode ter uma experiência certa[...].Também é em vão que suporá entre os ângulos em questão uma relação quesuspeitará ser a mais verdadeira de todas, pois então já não procuraria a anaclástica,mas somente uma linha que seria a conseqüência lógica de sua suposição. Se, deoutro lado, alguém que não se dedica apenas às Matemáticas, mas que seguindo aprimeira regra, deseja buscar a verdade e, tudo que encontra, cair na mesmadificuldade, encontrará também que a relação entre os ângulos da incidência e osângulos de refração depende da mudança deles, em virtude da diversidade dosmeios; que essa mudança, por sua vez, depende da maneira pela qual o raio penetraatravés de todo o [corpo] diáfano e que o conhecimento dessa penetração pressupõeconhecida a natureza da ação da luz; e que por fim, para compreender a ação da luz,há que saber o que é em geral uma potência natural: é finalmente o que há de maisabsoluto em toda essa série. Portanto, depois de ter feito de modo claro e detalhadoesse exame graças à intuição intelectual, ele repassará pelas mesmas etapas [...] ese [...]não puder descobrir a natureza da ação da luz, enumerará [...]todas as outraspotências naturais para que o conhecimento de qualquer outra dessas potências ofaça compreender essa ação, ao menos por analogia (Regra VIII, p. 49-50).

Nesse sentido, Descartes apresenta uma analogia entre o método

desenvolvido e o exemplo do ferreiro15,pois assim como o ferreiro que utiliza,

14 É possível notar isso nos comentários das Regras I, II, III, IV, sobre essa matéria Guenanciaexpõe que “[...] a crítica que Descartes faz da lógica e da silogistica corre sério risco de voltar-se contra um método que se limita a propor outras regras tão gerais quanto aquelas quepretendem substituir, e que assim como estas, não proporcionam o conhecimento de um objetopreciso, isto é, particular. Essa crítica da lógica formal é entretanto um dos traços maismarcantes do cartesianismo; ela revela logo de início a exigência de uma nova maneira defilosofar, que é menos procura de originalidade do que de radicalidade”. Guenancia, P.Descartes, p. 12.15 “Esse método, na verdade, se parece com os das artes mecânicas que não necessitam daajuda dos outros, mas fornecem por si sós o meio de fabricar seus instrumentos próprios. Defato, se alguém quisesse exercer uma dessas artes, por exemplo a de ferreiro, e se estivessedesprovido de qualquer instrumento, seria no início certamente forçado a utilizar uma pedra

Page 426: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 425

primeiramente, de ferramentas provisórias construídas a partir de madeira e

pedra, também aqueles que buscam o conhecimento devem tomar as regras

do método como provisórias. Para tanto, deve-se utilizar as regras do método

já estabelecidas como instrumentos provisórios para a construção de um grupo

homogêneo de instrumentos para a busca da verdade. Desse modo, é possível

observar que Descartes anuncia um projeto epistemológico.

Por outro lado, aqui não pode haver nada de mais útil do que procurar o que é oconhecimento humano e até onde ele se estende. É por isso que, agora, vamos tratardesse assunto numa única questão e pensamos que é preciso examiná-lo primeiroque todas, em virtude das regras já estabelecidas anteriormente. É isso que devefazer uma vez na vida qualquer um que ame um pouco que seja a verdade, uma vezque a investigação aprofundada desse ponto encerra os verdadeiros instrumentos dosaber e do método.16

dura ou algum bloco informe de ferro como bigorna, a pegar uma pedra para martelo, a disporpedaços de madeira em forma de tenazes e a juntar se preciso fosse outros objetos dessegênero. Depois desses preparativos, não se esforçaria de imediato em forjar para o uso dosoutros espadas ou capacetes ou qualquer outro objeto de ferro; mas, antes de tudo, fabricariamartelos, uma bigorna, tenazes e o restante do que lhe seria útil a si próprio. Este exemplo nosensina que no começo, depois de podermos ter encontrado unicamente certos preceitosgrosseiros que mais parecem inatos a nossas inteligências do que fornecidos pela arte, nãodevemos imediatamente tentar com seu auxílio resolver rapidamente os debates dos Filósofosou tirar de apuros os matemáticos; mas temos de utilizá-los primeiro para investigar com maiorcuidado tudo o que é mais necessário para o exame da verdade, sobretudo mesmo quandonão há razão que o faça parecer mis difícil de encontrar do que alguma das questõespropostas comumente em Geometria ou em Física e nas outras disciplinas”. Ibid., p. 52-53.16 Ibid., p. 54. Sobre isso Garber afirma que: “uma parte central da construção de instrumentospara capturar a verdade é a investigação de uma questão epistemológica particular. Nestaspassagens Descartes argumenta que a investigação do conhecimento, seu escopo e suanatureza, constitui uma necessidade preliminar à qualquer aplicação do método a questõescientíficas ( e filosóficas) específica, um prelúdio à investigação científica genuína. Mas, alguémpode questionar, por que a ciência precisa de um tal prelúdio epistemológico? O que é que fazo método, como as pedras e as madeiras do futuro ferreiro, provisório e impróprio parainvestigar questões científicas, e como é que se supõe que uma investigação do escopo e danatureza do conhecimento possa nos ajudar? [...]o método que Descartes esboça nas Regrasdepende essencialmente de uma certa concepção de conhecimento, de uma investigaçãoepistemológica não examinada (lá) de acordo com o qual o conhecimento genuíno éfundamentado na intuição e na dedução. O método, propriamente dito, argumentei, é uminstrumento gerador de tal conhecimento, um mecanismo para construir respostas intuitivas ededutivas para as questões postas. Mas há um problema óbvio aqui: de onde estaepistemologia, o quadro de conhecimento que gera todo o método, surge? E como podemoster certeza que esta epistemologia é um fundamento (base) sólido e apropriado parabasearmos nosso método? Estas, eu acredito, são questões que Descartes está levantandonesta passagem da Regra 8; elas são, eu presumiria, reflexões posteriores sobre o método queele esboçou uns anos antes com ingênuo entusiasmo. É interessante notar(observar) que nãohá nenhuma preocupação cética abstrata aqui. A questão epistemológica neste contextoparece ser um senso comum, quase uma questão prática: tal como o ferreiro deve fazer suasferramentas (instrumentos) antes de se engajar em projetos sérios, do mesmo modo, deve agiro cientista. Antes de nós entrarmos em uma atividade científica genuína, devemos (com aajuda do método provisório, baseado em uma epistemologia provisória) primeiro descobrir

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Joyce Mayumi Shimura 426

Descartes apresenta duas vezes sua investigação epistemológica nas

Regras, a saber, nos comentários das Regra VIII e nos comentários da Regra

XII, nos quais busca explorar a natureza e o alcance do conhecimento.

Segundo o filósofo, devemos lidar com duas classes de coisas: “nós que

somos capazes de conhecimentos, quer às próprias coisas que podemos

conhecer”17, ou ainda, “nós que conhecemos e os objetos que estão por

conhecer”18. Este seria o passo da análise ou redução da questão que

Descartes “ataca” metodologicamente, bem como suas justificações.

A partir deste exame simples das faculdades cognitivas e de seus

objetos, Descartes conclui que “expusemos distintamente e, em minha opinião,

com uma enumeração suficiente, o que no início só pudéramos mostrar

confusa e grosseiramente, a saber, que não há vias abertas ao homem para

conhecer com certeza a verdade afora a intuição evidente e a dedução

necessária” (Regra XII, p. 90-91).

E sobre essa conclusão pode-se afirmar que a mesma é deduzida das

faculdades cognitivas e dos objetos considerados, tornando evidente que todo

o conhecimento é fundamentado em naturezas simples e em suas

combinações, que o intelecto através da intuição e da dedução é capaz de

atingir o conhecimento. Contudo, não é claro como Descartes resolve o

problema do escopo e da natureza do conhecimento ligado ao projeto de

construção de um corpo de conhecimento fundamentado na intuição imediata

da coisas mais simples e gerais do mundo, mas parece que Descartes

entendia ser necessário que esta investigação epistemológica fosse

empreendida antes de qualquer exame.

Referência Bibliográfica

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quais ferramentas tem-se para forjar as verdades, quais são mais confiáveis, à que tipo deverdade cada ferramenta (instrumento) é adequado, e assim por diante; esta é a questão danatureza do conhecimento. Garber, D. Descartes’ Metaphysical Phisics, p.41-42.17 Descartes, R. Regras para a orientação do espírito. Regra VIII, p. 54.18 Ibid., Regra XII, p. 73.

Page 428: Anaiais Encontro Filosofia Parana

O projeto cartesiano nas Regras para a Orientação do Espírito 427

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