Anais Vii Sempem - 2007

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Ano 1 - Nmero 1 - 2007 Verso On-line

VII SEMPEM Volume 1 - n.1 - 2007 ISSN 1982-3215Universidade Federal de Gois Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao Escola de Msica e Artes Cnicas Programa de Ps-Graduao em Msica VII SEMPEM Seminrio Nacional de Pesquisa em Msica Coordenao Cientifica do VII SEMPEM Prof. Dr. Edward Madureira Brasil (Reitor) Profa. Dra. Divina das Dores Cardoso (Pr-Reitora) Prof. Dr. Eduardo Meirinhos (Diretor) Prof. Dr. Anselmo Guerra (Coordenador) Prof. Dr. Anselmo Guerra (Coordenador Geral) Prof. Dr. Carlos Costa (Coordenador Artstico) Profa. Dra. Sonia Ray e Profa. Dra. Fernanda Albernaz do Nascimento Accio Piedade - Udesc Adriana Giarola Kayama - Unicamp ngelo de Oliveira Dias - UFG Anselmo Guerra de Almeida - UFG Cristina Caparelli Gerling - UFRGS Diana Santiago - UFBA Eliane Leo - UFG Fausto Borm de Oliveira - UFMG Fernanda Albernaz do Nascimento - UFG Lucia Barrenechea - Unirio Mrcio Pizarro Noronha - UFG Marco Antnio Carvalho Santos - CBM Maria Helena Jayme Borges - UFG Marisa Fonterrada - Unesp Marli Chagas - CBM Paulo Cesar Martins Rabelo - UFG Rafael do Santos - Unicamp Ricardo Dourado Freire - UnB Rita de Cssia Fucci-Amato - Fac. Carlos Gomes/SP Rogrio Budasz - UFPR Sergio Barrenechea - UNIRIO Silvio Ferraz - Unicamp Sonia Albano de Lima - Fac. Carlos Gomes/Unesp Sonia Ray - UFG Werner Aguiar - UFG Anselmo Guerra e Sergio Veiga (Criao) Ilustrao: Detalhe de Black Angels de G. Crumb Franco Jr. Sonia Ray e Anselmo Guerra Grfica e Editora Vieira Profa. Dra. Sonia Ray e Prof. Dr. Anselmo Guerra

Consultores Ad-Hoc

Capa

Capa e Editorao Grfica Reviso Acabamento e Impresso Editores dos Anais do VII SEMPEM

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Anais do VII Sempem

A presentAo

com enorme satisfao que anunciamos mais um SEMPEM. O Seminrio de Pesquisa em Msica da UFG foi criado em 2001 e tem sido realizado anualmente desde ento, sempre tendo como seus principais objetivos proporcionar reflexes sobre msica na contemporaneidade, ampliar o intercmbio entre programas de ps-graduao e incentivar a produo cientfica e artstica do corpo docente e discente do Programa de Ps-graduao da Escola de Msica e Artes Cnicas da Universidade Federal de Gois, alm de promover a difuso de trabalhos cientficos e artsticos. Esta stima edio do SEMPEM prope dar continuidade s discusses dos seminrios anteriores, contando com a participao de pesquisadores nas reas de performance musical, musicologia, educao e sade, composio e tecnologia aplicada msica. As atividades consistem em recitais, mini-cursos, master classes, palestras, mesas-redondas, comunicaes e apresentao de psteres. Assim, nosso programa de ps graduao prossegue empenhado na consolidao de suas reas de concentrao, bem como na ampliao de sua insero social, como o caso da publicao destes Anais, tanto aqui na forma impressa, como na forma eletrnica, disponibilizada em nosso site. Esta inovao, aliada ao recente Banco de Dissertaes On-line certamente dar maior visibilidade e acessibilidade s nossas pesquisas e aos demais trabalhos aqui apresentados. Este seminrio no seria possvel sem a valiosa colaborao de nossos colegas do Comit Cientfico, do Comit Artstico, pelos nossos mestrandos voluntrios e, sobretudo, pelo apoio irrestrito da direo da Escola de Msica e Artes Cnicas e da Pr-reitoria de Pesquisa e Ps-graduao da UFG. Agradecemos tambm CAPES pelo apoio financeiro.

Goinia, 12 de novembro de 2007

Anselmo Guerra

Preliminres

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PROGRAMAO DO VII SEMPEMSegunda 12/11 8:00 Recepo (Saguo) 9:00 Abertura (Teatro EMAC) 9:15 Recital Teatro EMAC Sonia Ray - contrabaixo Mal Mestrinho - canto Marina Machado - piano 10:30 Conferncia de Abertura Escuta musical: sentidos e identidades Yara Caznok (Unesp) Mini-auditrio 12:00 Almoo 14:00 Recital Mini-auditrio Yuka de Almeida Prado - canto Ftima Corvisier - piano Tera 13/11 Comunicaes Mini-auditrio Recital Teatro EMAC Duo Corvisier Piano a quatro mos Sesso Pblica de Psteres Saguo do Teatro Emac Comunicaes Mini-auditrio Almoo Recital Mini-auditrio Quarta 14/11 Comunicaes Mini-auditrio Recital Teatro EMAC Fabiano Chagas - violo Cezar Traldi - percusso Duo Paticump Comunicaes Mini-auditrio

Almoo Recital Mini-auditrio Grupo de Msica Eletroacstica da UFG Anselmo Guerra - direo

Beatriz Pavan - cravo Cindy Folly - violino Rosana Rodrigues - flauta Larissa Camargo - fl. doce Shirley Gonalves - piano 15:00 Palestra Palestra Diagnstico, Estratgias e Unita Multiplex, por uma Caminhos para a Musicologia musicologia integrada Histrica Brasileira Disnio Machado Neto (USP) Pablo Sotuyo Blanco (UFBA) 16:50 Mini-auditrio Coffee break 17:00 Mini-cursos Mini-auditrio e salas A, B, C, D,E 20:00 Mini-auditrio Coffee break Mini-cursos Mini-auditrio e salas A, B, C, D, E

Palestra Msica Eletroacstica na Universidade Conrado Silva (UnB)

Mini-auditrio Coffee break Mini-cursos Mini-auditrio e salas B, C, D, E Sesso de encerramento Mini-auditrio Z do Choro e Grupo

Palestrantes convidados: Profa. Dra. Yara Caznok (UNESP) - Psicologia da Msica Prof. Dr. Disnio Machado Neto (USP) - Musicologia Prof. Dr. Pablo Sotuyo Blanco (UFBA) - Musicologia Prof. Ms. Cristiano Figueir (UFBA) - Tecnologia Musical Prof. Conrado Silva (UnB) - Composio Prof. Dr. Mario Ulhoa - violo1 Prof. Dr. Edelton GLoeden - violo1 Prof. Dr. Jodacil Damaceno - violo1

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evento paralelo: 2. Semana de Violo da EMAC/UFG.

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Anais do VII Sempem

MINI-CURSOS Mini-Curso (A): A Escuta Musica: Construo e Histria. Profa. Dra. Yara Caznok. RESUMO: O curso focaliza a escuta musical, examinando algumas posturas auditivas que vm sendo praticadas pela cultura ocidental desde a Idade Mdia at hoje. Apresenta um breve histrico do relacionamento obra/pblico, ilustrado com exemplos musicais, e prope discusses a partir de experincias auditivas dos participantes. Reala o problema do afastamento do pblico do repertrio musical contemporneo, acompanhando como o distanciamento entre as partes comeou a se dar a partir do sculo XVIII neoclssico, at chegarmos situao do sculo XXI. Na anlise das transformaes ocorridas entre pensamento esttico-musical e comportamento auditivo sero includos aspectos das artes visuais, da filosofia, da cincia e da psicologia. Mini-Curso (B): O sistema administrativo colonial brasileiro e a gerao de fontes primrias para a pesquisa em msica. Prof. Dr. Disnio Machado Neto. RESUMO: Neste curso mostraremos como onde se localiza, dentro da malha administrativa colonial, documentos que revelam atividades musicais. Para tanto, falaria da estrutura do exerccio da msica e sua formalizao. Mini-Curso (C): Recursos normativos e informticos para catalogao de documentos musicais histricos. Prof. Dr. Pablo Sotuyo Blanco. RESUMO: recursos normativos e informticos para catalogao de documentos musicais histricos. Mini-Curso (D): Curso introdutrio de Pure data. Prof. Ms Cristiano Figueir. RESUMO: O Pure data (Pd) um programa para composio de msica interativa aliando as possibilidades computacionais de sntese sonora e processamento de udio a um ambiente grfico de programao voltado interao sonora em temporeal. Se trata de um programa grfico com interface amigvel, multi-plataforma, com o cdigo fonte aberto, e com formato no proprietrio. O objetivo oferecer um curso introdutrio desse programa onde alm de demonstrar as possibilidades e limitaes dessa ferramenta o participante adquira uma autonomia de estudo mais aprofundado do programa. Alm disso, entender os conceitos e tcnicas bsicas de sntese sonora na prtica do programa, entender as possibilidades e limitaes da interao em tempo-real entre msico e computador, aprender os conceitos de programao em Pd e como us-lo num projeto composicional. Mini-Curso (E): Elaborao de projetos de pesquisa em msica. Profa. Dra. Sonia Ray. RESUMO: O mini-curso direcionado a alunos de graduao e ps-graduao com conhecimentos bsicos em pesquisa (que tenham cursado pelo menos 1 semestre da disciplina (Fundamentos da Pesquisa em Msica). Num primeiro momento, ser feita uma breve reviso de aspectos gerais relacionados a elaborao de projetos como terminologia acadmica na rea de msica, partes componentes do projeto, temas pertinentes na atualidade e fontes de referncia. A segunda parte tratar da formatao e uso de normas da ABNT e cumprimento a editais de fomento a pesquisa (CNPq, Capes, etc.). A terceira e ultima parte tratar da construo das partes do projeto enfatizando a coerncia entre as partes. A leitura prvia do material disponvel na pasta da professora (Xrox da EMAC) indispensvel para o bom acompanhamento do curso. Preliminres

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PROGRAMAO PARALELA2 Semana de Violo da EMAC/UFG - 12 a 15/11 14h00 s 16h00 - A Origem do Violo e sai Evoluo no Brasil (Jodacil Damaceno) 16h00 s 18h00 - Master Class de Violo (Mrio Ulhoa e Edelton Gloeden)

COMUNICAES DIA 13/11 - TeraSala 230 Composio E Musicologia 08h00 Revendo Critica Musical Sobre Hekel 08h15 Novos Rumos para o Som no Teatro 08h30 Do caos ao ritmo o processo composicional como controle do indeterminado em Deleuze Mini-Auditrio Educao Musical e Musicoterapia 08h00 Estudar e trabalhar durante o curso de graduao em msica: delineando a formao de professores de msica 08h15 Comentrios Sobre o Ensino da Musica Popular Autor Samuel Almeida Silva Frederico Macedo Vanessa F. Rodrigues Autor Cntia Thais Morato

Cristiana Miriam Souza

08h30 Msica popular na educao musical um pro- Cristina Grossi; Flvia Narita; jeto de pesquisa-ao Leonardo Bleggi; Uliana Ferlim 08h45 Reflexes sobre formao dos professores e o Denise C. F. Scarambone ensino do piano 09h00 ***** INTERVALO - CONCERTO***** *****

10h30 Vivenciando para ensinar: uma contribuio mu- Fernanda Valentin; sicoteraputica na formao de professores para Cristiane O. C. Rodrigues sries iniciais. 10h45 Arranjos Aplicados ao Ensino Coletivo Gabriel Silva

11h00 Uma anlise da cantata religiosa sobre temas fol- Luana Torres clricos brasileiros de Emmanuel Coelho Maciel. Vladimir Silva 11h15 Indstria Cultural-Indstria Fonogrfica Martha Antonia Reis

11h30 A msica na articulao entre a escola e a ci- Nilceia Protsio Campos dade: a atuao das bandas e fanfarras 11h45 Msica como agenciadora de Subjetividades e Fernanda Ortins Territrios Existenciais. 12h00 Musicoterapia e comunicao pr-lingstica em Orlene Queila de Oliveira deficientes mltiplo surdocego.

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Anais do VII Sempem

COMUNICAES DIA 14/11 QuartaMini-Auditrio Performance 08h00 Influencias da Polca e do Ragtime 08h15 Percusso e recursos visuais 08h30 A Clarineta na Contemporaneidade Autor Jos de Geus Csar Traldi Cleuton Batista

08h45 Os trs cantos de Hilda Hilst de Almeida Prado, Diogo Lefvre breve anlise 09h00 *****INTERVALO CONCERTO***** 10h30 A harmonia no Choro 10h45 A escolha de um repertrio de flauta doce ***** Fabiano Chagas Meygla Rezende

11h00 O uso da viso na performance orquestral com Patricia Vanzella; Glesse Collet; regente: estudo preliminar Ricardo Freire 11h15 O Pianista Preparador como Elemento 11h30 O Sentido da Corpo na Performance Sergio Di Paiva Maria Regiane da Silva

PSTERESArtes Integradas: Ampliando o olhar sobre a teia do conhecimento na contemporaneidade Elaborao de questionrio para o mapeamento do ensino de trompete Chiquinha Gonzaga e o maxixe: a nacionalizao da msica popular brasileira Protocolo para a Observao de Grupos Processos de Movimentao da laringe e suas influncias na produo sonora da clarineta Musicoterapia e Biotica A Ritmica de Dalcroze A Modinha e as Canes de Cmara de Camargo Guarnieri A performance de flauta doce sob uma abordagem semitica O Programa de TV Frutos da Terra Conservatrios de Msica Wagner e Obra de Arte Total Integrao das Funes Solista e Camerista Aline Folly Aurlio Sousa Carla Crevelanti Marclio Claudia Zanini Cleuton Batista Jos Davisdon Dlia Ribeiro Fernando Cupertino Larissa Camargo Martha Antonia Reis Shirley Cristina Gonalves Sylmara Cintra Vivian Deotti Msica e Cultura Ed. Musical Etnomusicologia Musicoterapia Performance Musicoterapia Ed. Musical Performance Performance Msica e Cultura Ed. Musical Msica e Cultura Performance

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PALESTRAS Diagnstico, estratgias e caminhos para a musicologia histrica brasileira II: da musicologia da totalidade musicologia de periferia e de fragmentos Unita multiplex, por uma musicologia integrada

Pablo Sotuyo Blanco .................................................................................................... 3

Disnio Machado Neto ............................................................................................... 14

COMUNICAES A clarineta na contemporaneidade: um panorama de tcnicas a-mtricas A escolha de um repertrio de flauta doce para um grupo de idososCleuton do Nascimento Batista; Anselmo Guerra Almeida .............................................. 31

Meygla Rezende Bueno; Maria Helena Jayme Borges..................................................... 38

A msica na articulao entre a escola e a cidade: a atuao das bandas e fanfarras

Nilceia Protsio Campos ............................................................................................. 46

Arranjos aplicados ao ensino coletivo de violo: uma anlise baseada nos mtodos de Henrique Pinto (1978), Turbio Santos (1992) e Othon Filho (1966)

Gabriel Vieira; Snia Ray ............................................................................................ 53

Comentrios sobre o ensino da msica popular brasileira para a terceira idade Do caos ao ritmo o processo composicional como controle do indeterminado em Deleuze Estudar e trabalhar durante o curso de raduao em msica: delineando a formao de professores de msica

Cristiana Miriam S. e Souza; Eliane Leo...................................................................... 60

Vanessa Fernanda Rodrigues ....................................................................................... 65

Cntia Thais Morato ................................................................................................... 73

Indstria cultural indstria fonogrfica: da sociedade industrial ps-industrial

Martha Antonia dos Santos Reis .................................................................................. 82

Influncias da polca e do ragtime presentes na interpretao do choro segura ele, de Pixinguinha Msica como agenciadora de subjetividades e territrios existenciais Msica popular na educao musical: um projeto de pesquisa-ao

Jos Reis de Geus ..................................................................................................... 89

Fernanda Ortins Silva; Leomara Craveiro de S ............................................................. 96

Cristina Grossi; Flvia Narita; Leonardo Bleggi; Uliana Ferlim ....................................... 103

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Musicoterapia e comunicao pr-lingstica em deficientes mltiplo surdocegoOrlene Queila de Oliveira .......................................................................................... 110

Novos rumos para o som no teatro: a desconstruo do espao cnico e a espacializao do som no espetculo musical contemporneoFrederico Macedo .................................................................................................... 117

O uso da viso na performance orquestral com regente: estudo preliminarPatricia Vanzella; Glesse Collet; Ricardo D. Freire ........................................................ 125

Os trs cantos de Hilda Hilst de Almeida Prado: breve anliseDiogo Lefvre; Edson Zampronha .............................................................................. 132

Percusso e recursos visuaisCesar Traldi; Cleber Campos; Jnatas Manzolli ............................................................ 140

Reflexes sobre formao dos professores e o ensino de pianoDenise Cristina F. Scarambone .................................................................................. 148

Revendo crtica musical sobre Hekel TavaresSamuel Almeida Silva .............................................................................................. 154

Uma anlise da cantata religiosa sobre temas folclricos brasileiros de Emmanuel Colho MacielLuana Ucha Torres; Vladimir Silva ........................................................................... 161

Vivenciando para ensinar: uma contribuio musicoteraputica na formao de professores para sries iniciaisCristiane Oliveira Costa; Fernanda Valentin ................................................................. 171

PSTERES A modinha e as canes de cmara de Camargo Guarnieri e Osvaldo LacerdaFernando Passos Cupertino de Barros ........................................................................ 179

A performance de flauta doce sob uma abordagem semiticaLarissa Camargo Santos; Marlia Laboissire ............................................................... 188

Artes integradas: ampliando o olhar sobre a teia do conhecimento na contemporaneidadeAline Folly Faria ...................................................................................................... 194

Chiquinha Gonzaga e o Maxixe: a nacionalizao da msica popular brasileiraCarla Crevelanti Marclio; A. T. Ikeda .......................................................................... 198

Musicoterapia e biotica: um estudo sobre a utilizao da msica com objetivos teraputicos na rea da sadeJos Davison da Silva Jnior; Leomara Craveiro de S ................................................. 203

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Programa frutos da terra: um agente divulgador da cultura musical regional

Martha Antonia dos Santos Reis; Fernanda Albernaz do Nascimento ............................. 208

Processos de movimentao da laringe e suas influncias na produo sonora da clarineta Protocolo para observao de grupos em musicoterapia: um instrumento em construo Gesamtkunstwerk

Cleuton N. Batista ................................................................................................... 213

Claudia Regina de Oliveira Zanini; Denise Boutellet Munari; Cristiane Oliveira Costa........ 217

Sylmara Cintra Pereira; Mrcio Pizarro Noronha .......................................................... 222

Conservatrio de msica: poder institucional & relaes de fora

Shirley Cristina Gonalves......................................................................................... 229

Elaborao de questionrio para mapeamento do ensino de trompete

Aurlio Nogueira de Sousa; Snia Ray........................................................................ 233

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Anais do VII Sempem

Palestras

DIAGNSTICO, ESTRATGIAS E CAMINHOS PARA A MUSICOLOGIA HISTRICA BRASILEIRA II: DA MUSICOLOGIA DA TOTALIDADE MUSICOLOGIA DE PERIFERIA E DE FRAGMENTOSPablo Sotuyo Blanco - UFBA [email protected]

Apresentao Durante o IV Seminrio Nacional de Pesquisa em Msica - SEMPEM, organizado pelo Mestrado em Msica da Universidade Federal de Gois, dividi com a Prof. Maria Augusta Calado e o Prof. Marshall Gaioso Pinto, uma mesa redonda que debateu o tema A Musicologia no Brasil do Sculo XXI. Fora as lembranas pessoais e as frutferas colaboraes acadmicas que surgiram a partir daquele evento, as idias que ento expusera, junto experincia at hoje acumulada, me conferem a confiana nos novos horizontes se perfilando na musicologia local, regional e brasileira (Cf. SOTUYO BLANCO, 2004). Dentre os tpicos que ento apresentei se encontravam: a) uma reviso do processo histrico da pesquisa musicolgica no Brasil (incluindo a sua possvel periodizao, assim como uma avaliao geral das conquistas e derrotas nesse processo); b) o confronto entre metrpole e periferia, enquanto espaos diferenciados (e diferenciadores) da ao musicolgica e suas conseqncias na prtica e no discurso musicolgico; c) estratgias possveis para o desenvolvimento de aes musicolgicas (e, conseqentemente, da musicologia) nas periferias do Brasil. H trs anos lanamos uma idia simples e provocadora, baseada em perguntas fundamentais como o qu, como, aonde, quanto, quando, porqu e para quem fazer (em) musicologia no Brasil: uma idia focada no desenvolvimento ergonmico da ao musicolgica como fenmeno gerado e gerido localmente, mas com repercusses regionais em curto prazo e nacionais em longo prazo, que foi se alicerando em conceitos tais como patrimnio e bens patrimoniais (cultural, musical, documental, material e imaterial), conjuntamente junto aos seus direitos e obrigaes, organizao territorial (civil, poltica e religiosa), redes de informao, cadeias produtivas e desenvolvimento sustentvel. Tais noes j foram discutidas por cientistas brasileiros como Milton Santos, na sua inovadora definio de espao como conjunto indissocivel de sistemas de objetos e sistemas de aes, das diversas relaes possveis entre centros e periferias, aspectos fixos das redes e seus fluxos de informao, at ao confronto entre globalizao e regionalizao (Cf. SANTOS, 1979; 1982; 1985; 1987; 1994; 2002a; 2002b; SANTOS e SILVEIRA, 2002); Gilberto Freyre, na sua concepo antropolgica do Brasil nas suas diversas relaes internas multifacetadas e as caractersticas idiossincrsicas dos seus diversos agentes integrantes e vetores formadores autctones (Cf. FREYRE, 1933, 1936, 1940, 1941, 1943, 1947, 1958 e 1968); e, ainda, em Paulo Freire, na sua idia da educao focada na excelncia, liberdade e autonomia (Cf. FREIRE, 1974; 1981), dentre outros. Fora a aplicao prtica de metodologias, tcnicas e tecnologias de diversa origem, chegando at o surgimento e fortalecimento de novas reas de ao acadmica musicolgica como o caso da Arquivologia Musical, que deveriam fazer parte da bagagem profissional de qualquer musiclogo brasileiro que queira ou deva lidar com o patrimnio documental. Palestras

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Tudo isso, porm, sem outro objetivo do que aquele do confronto com as ideologias supostamente dominantes no Brasil at as suas ltimas conseqncias, resgatando o valor intrnseco do pesquisador nativo qualificado, no apenas pela sua necessria formao acadmica cientfica, mas pelo seu conhecimento tcito, autctone e idiossincrtico, local e regionalmente (Cf. FANDIO, 1998; WAGNER, 1998; VIGOTSKI, 1989a, 1989b), no esforo de tornar ou constituir a musicologia histrica como uma ferramenta de resgate da memria musical local e regional, como tambm para re-haver a prpria identidade cultural histrica. Tal perspectiva constitui ainda mais uma forma de resistncia ao domnio exclusivo do conhecimento formal como mera representao dos conceitos abstratos e tericos, baseado no discurso acadmico e [nas] metodologias preestabelecidas (FANDIO, 1998), tendencioso a um certo cosmopolitismo ideolgico (tipicamente metropolitano), e rebento histrico das polticas centralizadoras presentes em praticamente toda a histria da Amrica portuguesa e do Brasil, para dessa forma, podermos sentar, em termos de igualdade, mesa de discusses sobre uma eventual construo do discurso histrico-musical nacional. Exemplos desse esforo o constituem mais claramente as aes desenvolvidas por pesquisadores no metropolitanos como Jaime C. Diniz (no seu trabalho sobre a Bahia e Pernambuco), Vicente Salles (no que diz respeito ao Par), alm de outros agentes como o Pe. Joo Mohana (no Maranho) e o Mons. Oliveira (em Minas Gerais), ou ainda a prpria Belkiss S. Carneiro de Mendona e Braz Pina Filho (em Gois), fornecendo importantes subsdios para a definio de uma eventual musicologia de fragmentos, isto , aquela mais interessada na compreenso das caractersticas dos processos e produtos locais e regionais, deixando a pretenso da descrio do todo para um segundo momento, no qual estes mesmos fragmentos possam engendrar uma viso geral, a partir da qual, e somente ento, se possa construir uma interpretao terica apropriada.1 Afinal de contas, se levarmos em considerao os problemas conceituais que ainda persistem nos textos de Histria da Msica relativos ao Brasil (Cf. BISPO, 1970), assim como os discursos historiogrficos musicais subjacentes de carter eminentemente totalizador e homogeneizador do pluralismo cultural regional brasileiro, organizados a partir de vises hegemnicas pr-concebidas, moldadas sobre as diversas tendncias polticas e ideolgicas no e do Brasil metropolitano, lembramos Bispo j no inicio da dcada de 1970, ao afirmar que ainda est por ser escrita uma Histria Brasileira da Msica (Cf. BISPO, 1971) que integre num todo coerente os diversos processos histrico-musicais das diversas regies deste pas de propores continentais.

Da musicologia do poder metropolitano ao poder da musicologia de periferia Como adiantvamos em 2004, a Musicologia no Brasil vem aos poucos se preocupando mais com os processos de recepo, re-elaborao e circulao musicais internas, do que com a busca de elementos de validao scio-cultural perante o espelho do primeiro mundo. Neste sentido as novas tendncias em Histria (Nova Histria e Histria da Cultura) e em Musicologia (Nova Musicologia), dentre outras disciplinas, tem corroborado esta perspectiva a partir de elementos discernidores de uma dinmica local e suas especificidades. Mesmo assim, ainda estamos longe de termos um discurso verossmil e completo no que diz respeito nossa prpria histria da msica. Como ento observamos,

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a partir da dcada de 1990 [...], a musicologia histrica passa a ser muito mais reflexiva e crtica, e as aes e eventos comeam a ter, em termos gerais, um carter menos centralizador, mais centrfugo e participativo. [...] A ltima dcada, aproximadamente, foi testemunha do estabelecimento das primeiras aes coletivas de pesquisa e dos primeiros posicionamentos ticos profissionais tambm coletivos, visando transformar definitivamente a musicologia histrica no Brasil em musicologia histrica brasileira. (Cf. SOTUYO BLANCO, 2004)

De forma semelhante, discriminavam-se ento conquistas reconhecveis de derrotas persistentes. Entre umas e outras se listavam:uma srie de conquistas tais como: a) o estimulo a pesquisas novas e descentralizadas; b) o aumento da comunidade acadmica envolvida; c) o crescimento do apio institucional (pblico e privado) aos eventos, aes e pesquisas; d) o aumento no nmero dos eventos da rea; e) o aumento no nmero das publicaes e na divulgao; tendo como resultado, f) uma presena internacional mais constante e forte nos foros e mbitos correspondentes. Mas as derrotas tambm so reconhecveis. O centralismo metropolitano tanto no plano institucional e acadmico quanto no que diz respeito s diversas polticas que atingem as atividades musicolgicas em geral, desenvolveu um certo desrespeito pelas reas no metropolitanas (ou periferias), criando um sistema de privilgios e excluses que amparou o sistemtico deslocamento de fundos documentais (tanto de carter institucional quanto pessoal) de forma arbitraria. (SOTUYO BLANCO, 2004).

De fato, a musicologia no Brasil deixou de ser uma atividade direta ou indiretamente ligada ao poder poltico2 (cujas premissas ideolgicas e/ou pragmticas ainda se percebem em alguns dos seus agentes institucionais e/ou individuais)3 e passou a ser uma atividade mais ligada ao desenvolvimento ideolgico e cognitivo acadmico, fundamentalmente atravs dos programas de ps-graduao no pas. Esta nova situao trouxe necessariamente um novo posicionamento dos seus protagonistas e a re-definio do(s) cenrio(s) envolvido(s) em funo da multiplicao dos agentes participantes, da diversidade plural dos seus posicionamentos e aes, assim como dos meios disponveis para o eventual e salutar intercambio de idias, mtodos e resultados, mesmo que parciais, permitindo assim o inicio de uma conscincia regional e a sua conseqente quebra da hegemonia metropolitana. Desta forma, no sendo possvel uma atividade musicolgica hegemnica desenvolvida em territrio nico, uniforme, e se debruando sobre informao centralizada para a soluo do problema relativo ao discurso histrico, a mesma se polariza em funo de diversos vetores de cunho terico e/ou prtico, poltico e/ou econmico, chegando s vezes a certos confrontos do tipo ao e reao. Mas esta relao polarizada da atividade cientfica acadmica em musicologia, produzindo discursos necessariamente parciais e incompletos, no evita ainda a percepo do confronto subjacente entre as partes do territrio dividido, em constante estado subjacente de luta pela fonte primria da informao e o domnio ideolgico na sua interpretao problematizada. Se por um lado entende-se que o desenvolvimento terico faz parte necessria do desenvolvimento de qualquer disciplina (e nisto a musicologia no diferente), por outro, no podemos deixar de lado os aspectos prticos que qualquer ao musicolgica exige, gerando eventualmente um confronto entre uma musicologia da totalidade (nacional) e uma musicologia de fragmentos (locais e/ou regionais). Neste ponto, cabe refletir qual dos dois caminhos deveria ser estimulado inicialmente. Segundo Beatriz Magalhes Castro observa de forma integradora em nvel subcontinental latino-americano: Palestras

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one needs to question, first, how to establish the balance between the development of a new framework of musicological approach (there included both analytical methods and tools), and the amount of patrimonial and ground work yet to be done towards the preservation of primary sources; and second, whether this framework should (or could) proceed from general views or be drawn and constructed from specific objects of study. [] At first, one could consider a horizontal perspective balancing past and present, aiming towards a constructive approach to music research, dealing simultaneously with preservation of primary sources and a progression towards the inclusion of so-called secondary or fragmented material. A second fundamental question would be how to envision larger scale views grounded on such fragmented documentation, whether it is at all possible, or whether it is at all desirable? This could be seen as a vertical perspective, departing from small compressed and raw nucleus and projecting towards an unfolding knowledge of musical practice. A third question however, could be labeled as an added third-dimensional approach that would relate the dynamics of socially affluent music constructions, to other forms of musicmaking, specially the indigenous and popular genres, juxtaposing and analyzing the type of in loco cultural miscegenation that took place in specific contexts and social structures, such as in colonial and post-colonial societies. (CASTRO, 2005, p. 22-23)

Segundo comentamos anteriormente, parece que, enquanto a musicologia da totalidade tem sido desenvolvida a partir de vises unilaterais do Brasil e de maneira centralizada, homognea e metropolitana (ou cosmopolita, se preferirem), a de fragmentos parece ter melhor chance, pois re-define, no espao local e regional, as premissas do processamento do patrimnio cultural musical com o auxilio insubstituvel do conhecimento autctone, idiossincrtico e tradicional do contexto local e regional, trs conceitos aparentemente bvios, mas que devem ser claramente articulados entre si. Articulando conceitos I: o espao regional ou das periferias como novos centros Uma possvel abordagem da dimenso hierrquica espacial diz respeito ao poder. Comeando pelo poder econmico, em tempos em que este poder no tem fronteira nem bandeira, a sua concentrao se visualiza nos locais onde administrado ou regulado, de alguma forma coincidindo com o poder poltico, meditico e/ou industrial. No caso do Brasil, a assero anterior pode se observar com clareza em cidades como So Paulo, Rio de Janeiro e Braslia. No por acaso que a maior bolsa de valores do Brasil (com poder e alcance nacionais) no est localizada em Macap, no Acre ou no serto nordestino! Compreendendo que o significado da dimenso espacial est contido na formao econmico social, Milton Santos defendia a inseparabilidade das realidades e das noes de sociedade e de espao inerentes categoria da formao social (SANTOS, 1979, p. 19). Segundo ele, o espao fundamentalmente social e histrico, evolui no quadro diferenciado das sociedades e em relao com as foras externas, de onde mais freqentemente lhes provm os impulsos (SANTOS, 1979, p. 10). Ainda destaca que todos os processos que juntos formam o modo de produo (produo propriamente dita, circulao, distribuio, consumo) so histricos e espacialmente determinados num movimento de conjunto, e isto atravs de uma formao social (SANTOS 1979, p. 14). Desta forma Santos chega redefinio da relao entre centros e periferias e, da, correlao entre espao e globalizao (sempre ambicionada pelo poder poltico-econmico e apenas possvel pelo desenvolvimento tecnolgico), cuja eventual realizao precisa impor, para Santos, a fora do local que, por sua dimenso humana, eliminaria os efeitos nocivos da globalizao. A globalizao atingiu de maneira ousada o mbito da informa-

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o e do conhecimento, tendo merecido comentrios de Santos, relativos globalizao informacional. Nesse contexto as redes de informao so constitudas por duas matrizes complementares: a que apenas considera o seu aspecto, a sua realidade material, e uma outra, onde tambm levado em conta o dado social (SANTOS, 2002a, p. 262).As redes so a condio da globalizao e a quintessncia do meio tcnico-cientfico informacional. Sua qualidade e quantidade distinguem as regies e lugares, assegurando aos mais bem dotados uma posio relevante e deixando aos demais uma condio subordinada. So os ns dessas redes que presidem e vigiam as atividades mais caractersticas deste nosso mundo globalizado. (SANTOS, 2002b, 82)

Na relao entre realidade material e dado social, isto , entre o concreto e o imaterial das matrizes das redes, surgem novos aspectos que requalificam os espaos e suas relaes. A fim de se tentar no ficar subordinado ao atendimento dos interesses dos atores hegemnicos da economia, da cultura e da poltica [...] incorporados plenamente s novas correntes mundiais (SANTOS, 2002a, p. 239), mesmo reconhecendo que O meio tcnico-cientfico informacional a cara geogrfica da globalizao (SANTOS, ibidem), pode-se contrapor a prpria informao como contrapeso intencional focalizando a produo e sua localizao.Neste perodo, os objetos tcnicos tendem a ser ao mesmo tempo tcnicos e informacionais, j que, graas extrema intencionalidade de sua produo e de sua localizao, eles j surgem como informao; e, na verdade, a energia principal de seu funcionamento tambm a informao. (SANTOS, 2002a, p. 238).

No confronto entre regies luminosas e opacas ao dizer de Santos e Silveira, isto , entre as regies que mais acumulam densidades tcnicas e informacionais, ficando assim mais aptos a atrair atividades com maior contedo em capital, tecnologia e organizao (SANTOS e SILVEIRA, 2002, p. 264) e aquelas carentes dessas caractersticas, dever-se-ia entender que a posse da fonte de informao (o patrimnio documental e musical) e o seu devido processamento (com a esperada gerao de produtos) so a chave para equilibrar o fluxo da informao e dos padres metropolitanos e cosmopolitas dominantes. Articulando conceitos II: da construo e finalidades do conceito de patrimnio Embora parea um conceito simples, a idia de patrimnio acumula definies advindas da rea jurdica com conseqncias em outras reas da atividade social. Dentro da rea jurdica, a definio de patrimnio no mbito do Direito Civil inclui o conjunto de relaes ativas e passivas de que titular uma pessoa fsica ou jurdica apreciveis em valor econmico (Cf. BEVILQUA, 1975). Isto se traduz, na rea econmica, como o conjunto dos bens, direitos e obrigaes de uma pessoa, instituio ou sociedade. Enquanto os bens (relaes ativas) incluem qualquer coisa tangvel, os direitos e obrigaes (relaes passivas) incluem tanto os valores que pertencem ao detentor do patrimnio, por natureza, mas que esto com outra pessoa (direitos, por exemplo, na venda feita a prazo, no depsito e/ou no emprstimo) quanto os valores que no lhe pertencem, mas que ainda so retidos pela pessoa (obrigaes, por exemplo, de entregar, fornecer ou devolver o patrimnio que lhe foi alienado). Ainda, o Direito Penal inclui os bens de valor apenas afetivo, que representem utilidade, inclusive moral, para o proprietrio (Cf. HUNGRIA, 1978). Palestras

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Ainda, no mbito do patrimnio cultural documental, mesmo mantendo as caractersticas anteriores, tem sofrido ao longo do tempo alteraes significativas de sentido (LIRA, 1999) num certo processo de, por assim dizer, patrimonializao cujos protagonistas e vetores reguladores tem mudado ao longo do tempo. Nesse processoos museus tm tido uma influncia considervel, uma vez que quase sempre tm sido entendidos (alm de outras eventuais funes) como repositrios de objectos considerados to importantes que merecem salvaguarda. Muitas vezes a deciso do que deve ser preservado e do que no merece tal ateno no dependeu directamente dos museus; por vezes a poltica nacional relativa ao patrimnio, vertida na lei, orientou, restringiu e definiu o que os museus deviam, e no deviam, manter. Ainda assim, coube sempre aos museus uma parcela de autonomia e s pessoas que os dirigiam uma poro de deciso autnoma. (LIRA, 1999)

Essa poltica museistica e intrinsecamente colecionista que o Brasil tambm desenvolveu durante muito tempo, inclusive dentro da atividade musicolgica, gerou inmeros problemas prticos (a prpria limitao do espao de guarda nas metrpoles) assim como ideolgicos (decidir o que vale a pena guardar e o que no) cujas diversas conseqncias ainda ressentem a pesquisa em msica. Em tempo, o processo assim iniciado pelo poder poltico metropolitano buscou em outras foras sociais a soluo para os ditos problemas. Tanto a descentralizao da administrao quanto o apelo iniciativa privada tm marcado o perfil mais evidente da segunda etapa nesse processo. Reconhecendo que tal construo valorativa do patrimnio, em termos mais amplos, um fenmeno social inserido numa dada circunstncia histrica e conforme o quadro de referncias de ento (SILVA, 2007), ele apresenta aspectos de legitimao social e cultural que conferem comunidade que o possui, e de forma concomitante, uma identidade de diferenciada de outras comunidades. Evitando a aqui desnecessria anlise do valor de representao simblica do patrimnio, Silva continua:Como um artifcio idealizado com finalidades de identificao no espao e no tempo, como elemento de referncia, o patrimnio representa, para a sociedade actual, uma verdadeira necessidade. De tal forma que o patrimnio se converteu, nos ltimos anos, num verdadeiro culto popular e tambm, numa etiqueta extraordinariamente extensiva a uma enorme quantidade de elementos e objectos, do individual ao colectivo, do material ao intangvel, de um passado mais remoto a um passado mais recente. Por outro lado, e apesar da manifesta homogeneizao de diversos aspectos do quotidiano, verifica-se hoje uma reafirmao das identidades colectivas face s tendncias da uniformizao individual. Por todo o lado observam-se [...] reaces locais aos efeitos da globalizao. Estas preocupaes traduzem-se num aumento da importncia atribuda preservao do patrimnio, como elemento de afirmao das singularidades locais. Este sentimento colectivo de nostalgia fez aparecer um mercado patrimonial e lgica da singularidade do objecto acrescenta-se a lgica da sua valorizao comercial. O patrimnio tornou-se uma componente essencial da indstria turstica com implicaes econmicas e sociais evidentes. A explorao turstica dos recursos patrimoniais permite inverter a forte tendncia de concentrao da oferta turstica junto ao litoral, dispersando o turismo para o interior, para as pequenas cidades, com uma distribuio mais eqitativa dos seus benefcios, funcionando assim como factor de criao de emprego e de revitalizao das economias locais. Representa tambm benefcios evidentes no que concerne aos custos de preservao do patrimnio, que muitas vezes no podem ser assegurados pelos poderes locais. Por outro lado, com freqncia se reclama a utilizao do patrimnio para fins tursticos para se fazer face a um turismo massificado que ameaa as identidades locais. (SILVA, 2007)

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Refletindo ao redor da advertncia anterior, embora o uso do patrimnio como fonte de renda turstica seja hoje uma realidade, no caso especfico do patrimnio documental musical, devemos lembrar que, mesmo concordando com Silva no que diz respeito imprudncia da expropriao fsica do patrimnio, pois se se venderem ou comprarem, todo o sentido ltimo subjacente expresso cultural dos povos ser expropriada (SILVA, 2007), existe a possibilidade de estabelecer regras e limites de convivncia, rendimento econmico e desenvolvimento social, cultural e educacional, entre eles. Qual seria a eventual soluo para tal situao em benefcio de uma possvel histria brasileira da msica? No mago dessa questo, permita-se nos sugerir aqui a prpria definio de ao musicolgica e a sua organizao. O que uma ao musicolgica? Entendendo ao musicolgica como o conjunto das vrias iniciativas ligadas ao patrimnio musical brasileiro, tanto no mbito acadmico, como no plano da ao cultural ligada a agentes pblicos e privados (COTTA e SOTUYO BLANCO, 2005, p. 346), fica evidente a necessria discusso relativa sua organizao, desde a definio do objeto-alvo das iniciativas at os seus resultados. Dentre os objetos-alvo acima mencionados se encontra o patrimnio documental como objetivo de iniciativas desenvolvidas implicitamente por seres humanos entendidos aqui como agentes, acadmicos ou no. Considerar o patrimnio documental de qualquer local, regio ou Estado como integrante dos bens patrimoniais locais (cultural, material, imaterial, musical e/ou contextual), junto aos seus direitos e obrigaes, significa evidenciar o seu valor de matria prima no apenas para a construo do discurso acadmico musicolgico, mas tambm de diversas cadeias de produo ligadas a ela. Se observarmos qualquer cadeia produtiva, vemos que qualquer produto assim chamado de manufaturado possui um valor de mercado maior que aquele no manufaturado. Esse valor acrescido pela manufatura passa em grande parte pela aplicao de processos de elaborao e processamento das matrias primas do produto finalmente distribudo. Se aplicados tais conceitos ao mbito do patrimnio musical documental, fica claro que quando se elabora, processa e distribui a matria prima documental (isto , se investiga, se desenvolve e se dissemina conhecimento atravs de publicaes editoriais ou fonogrficas), esta vira fonte de renda direta para o local, para a instituio e para as pessoas que realizaram tais atividades. Eis o valor econmico intrnseco do patrimnio cultural documental. Neste sentido a ao musicolgica conferir valor econmico acrescido ao patrimnio documental autctone, permitindo contribuir para o desenvolvimento sustentvel do local, pela viabilizao comercial dos seus produtos na industria editorial e/ou fonogrfica, alm de ser elemento fundamental para a congregao de pesquisadores, cujas eventuais visitas (organizadas em eventos de maior ou menor porte, como o presente SEMPEM) movimentar diretamente a economia local em diversas formas. Para isto, as periferias devem, necessariamente, comear a agir como novos centros e, segundo afirmamos anteriormente, atravs do desenvolvimento ergonmico de aes musicolgicas geradas e geridas em nvel local, regional ou estadual, visar a sua legitimao cientfica, acadmica e social nos nveis macro-regional e nacional. A quaPalestras

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lificao profissional acadmica do pesquisador nativo se torna indispensvel para que tal acontea. No se afirma aqui que a construo do discurso histrico-musical em nvel regional no possa ser realizada por pesquisador estranho regio ou local, seno que tal discurso ser muito melhor problematizado e, conseqentemente, desenvolvido e contextualizado se contar, alm da necessria formao acadmica cientfica em Musicologia, com a carga de bom senso de quem possui o conhecimento autctone e idiossincrtico do pesquisador nativo local e regional. Segundo Fandio, tal conhecimentoadvm das experincias coletivas e individuais que podem alterar vises e comportamentos, [...] construdo no s do processo cognitivo formal mas, tambm, da realidade vivienciada [...]. [...] o conhecimento do contexto que aborda valores e normas implcitas compartilhados internamente, que aceitos como eficazes na soluo de problemas pelo grupo, so introjetados como pressupostos, os quais passam a influenciar no s o comportamento mas, tambm todo sistema de percepes, convices e avaliaes dos indivduos. [...] O saber tcito no faz oposio ao saber formal. Em realidade, devido s caractersticas do primeiro serem formadas, em ciclo contnuo, no cotidiano do trabalho levando-o a constante reciclagem de acordo com as exigncias do ambiente. A resultante do somatrio de ambos tem efeito alavancador da capacidade de interpretao dos indivduos, bem como, da criatividade no seio organizacional. [...] Esta modalidade de conhecimento envolve indivduos e grupos, unidos pela comunicao perpetradas no cotidiano das organizaes (culturas locais); inclui, desta forma, [...] elementos cognitivos, esquemas, modelos mentais, assim como valores, crenas que definem a percepo sobre a realidade e os elementos tcnicos que formam o contexto. (FANDIO, 1998, p. 3)

Uma rpida lembrana da experincia frente do projeto institucional de pesquisa O Patrimnio Musical na Bahia (doravante PMBa) poderia fornecer elementos mnimos suficientes para exemplificar a integrao desses conhecimentos numa ao musicolgica especfica. Havendo j apresentado em 2004 o processo detalhado do citado projeto organizado em 4 anos ou etapas (Cf. SOTUYO BLANCO, 2004), cabe lembrar, ento, que na condio de estrangeiro recm-chegado foi necessrio me familiarizar o mximo possvel no apenas com os diversos processos histricos do Brasil como um todo, mas da Bahia e do Nordeste com o maior cuidado. Foi nesses anos de trabalho local que percebi a importncia do conhecimento tcito nativo e, na tentativa de suprir a minha carncia especfica, estimei importante dobrar a dosagem de respeito, tato e bom senso, procurando acompanhar o domnio do conhecimento formal com estratgias que estimulassem as parcerias locais. Nesse mesmo sentido apresenta-se aqui e agora uma previso do que seria a aplicao prtica de aes semelhantes em territrios perifricos como o goiano. Perspectivas para a pesquisa musicolgica em gois Uma reviso da produo bibliogrfica acerca da histria da msica em Gois com base em fontes documentais nos remete a uns poucos autores. Nomes tais como Belkiss S. Carneiro de Mendona, Maria Augusta Calado, Braz Wilson Pompeu de Pina Filho, Marshall Gaioso Pinto, Ana Guiomar Rgo Souza e Maria Lucia Roriz sejam, talvez,

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os mais relevantes. Dentre eles, porm os ainda atuantes so Gaioso Pinto, Calado, Rgo Souza e Roriz. No Estado de Gois, dispor de apenas quatro pesquisadores em musicologia, parece muito pouco do ponto de vista da eventual diversidade de pesquisas musicolgicas a serem realizadas em to vasto territrio. Porm, o fato de serem musiclogos nativos pode lhes conferir um valor especial inestimvel, segundo j foi discutido anteriormente. Porm, os seus trabalhos s conseguem se relacionar e fazer parte de um corpo goiano nico de conhecimento musicolgico coeso quando observados atravs dos processos histricos de organizao espacial, social e urbana da regio. Uma perspectiva vivel para o inicio de qualquer ao musicolgica em Gois, necessariamente passa pela prognose arquivstica relativa msica, isto , tentar estabelecer qual o nmero e tipo de arquivos eventualmente disponveis ao pesquisador. Iniciando pelos arquivos das orquestras, bandas e coros na capital e no interior do Estado, se considerarmos que nos 246 municpios em que atualmente se organiza politicamente o Estado, contam-se 246 arquivos municipais, alm do Arquivo Pblico do Estado e a rede de bibliotecas e casas da cultura municipais, sem contar os foros cartoriais, ter-se-iam mais de 300 fundos documentais a serem pesquisados no mbito civil. Ainda, dentro do mbito religioso catlico, a Arquidiocese de Gois e suas 7 dioceses possuem um mnimo de 8 arquivos histricos a mais para serem investigados, fora os arquivos das irmandades, confrarias e ordens religiosas ativas na histria de Gois, alm dos arquivos gerados pelas outras religies presentes no Estado. Se, alm disso, forem acrescentados os arquivos no institucionais relativos msica em posse de pessoas fsicas, Gois deveria contar com um mnimo de 500 arquivos como fundamento documental para as pesquisas musicolgicas locais. Considerando o processo histrico de organizao territorial dever-se-iam tambm considerar reas conexas como o Distrito Federal e, pelo menos, parte do Estado de Tocantins. Dessa forma o pesquisador teria ao seu dispor documentao musical e contextual mnima suficiente para assim no apenas reavaliar o lugar ocupado por Gois na Histria da Msica Colonial Brasileira (PINTO, 2004, p. 65), mas integr-lo de vez no discurso necessariamente poli-facetado da Histria Brasileira da Msica. Como j adiantvamos em 2004, o Estado de Gois precisa urgentemente de aes neste sentido. Rico e importante o seu patrimnio musical (tradicional, material e imaterial), tendo experimentado (e ainda hoje continua a vivenciar) vicissitudes semelhantes as que a Bahia vivenciou por muitos anos. A musicologia histrica deve-se estabelecer neste Estado e ser desenvolvida por goianos. E nenhum mbito parece ser mais propicio para tal iniciativa que o Mestrado em Msica da Universidade Federal de Gois (SOTUYO BLANCO, 2004). Notas1

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Agradeo colega e amiga Profa. Dra. Beatriz Magalhes Castro (docente e pesquisadora da UnB) pela troca de idias e subsdios importantes na conceituao da Musicologia de Fragmentos, assim como pela reviso deste texto. Dentre os exemplos possveis fora do mbito poltico oficial, se tem o caso da Academia Brasileira de Msica fundada no dia 14 de julho de 1945, por Heitor Villa-Lobos, nos moldes da Academia Francesa, e inicialmente integrada apenas por compositores e musiclogos. Essa instituio foi reconhecida de Utilidade Pblica por Decreto Federal de 7 de novembro de 1946 e instituda como rgo Tcnico Consultivo do Governo Federal por Decreto de 6 de junho de 1947 no governo de Eurico Gaspar Dutra (Cf. ACADEMIA, 2007). Atualmente a ABM no exerce mais dita funo, tendo-se adaptado s novas situaes polticas, sociais e acadmicas.

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Exemplo disto se encontra ainda no funcionamento de entidades como a Sociedade Brasileira de Musicologia (SBM), fundada em 1981 e cujos estatutos em vigor desde 1982 impedem a real e efetiva participao dos scios mais distantes de So Paulo (sede da SBM) nas assemblias e na Diretoria Executiva, afastados assim dos rgos de governo da que poderia ter sido a entidade de classe por excelncia do musiclogo brasileiro (Cf. SOCIEDADE, 1982). Enquanto a ABM conseguiu acompanhar a mudana que os tempos exigiam, a SBM continua sem resolver a falta de atualizao dos seus estatutos, nem a sua eficaz representatividade da classe musicolgica pelo Brasil afora.

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UNITA MULTIPLEX, POR UMA MUSICOLOGIA INTEGRADADisnio Machado Neto - ECA-USP [email protected]

Passados mais de quarenta anos do surgimento de Msica na Matriz e S de So Paulo colonial, texto em que Rgis Duprat aproximou a musicologia brasileira da revoluo metodolgica no estudo das cincias humanas, alinhando-a aos paradigmas da segunda gerao da cole des Analles, mais particularmente aos postulados de Fernand Braudel, podemos ainda encontrar conseqncias epistemolgicas evidentes na produo da rea. Persistem ainda idias que separam metodologicamente musicologia (sempre entendida como histrica) e etnomusicologia. Incontveis textos de anlise musical ainda se apresentam isolando o objeto do sujeito criador, reificando o objeto cultural e desconsiderando todas as formas, objetivas e subjetivas, da manifestao do habitus que, em qualquer hiptese, justamente o elo que cria significados (o que Heidegger chama de essncia devorante do clculo). Mais recentemente tornaram-se recorrentes as abordagens crticas que vasculham a formatividade do documento, por estudos codicolgicos, heursticos, arquivsticos, estatsticos, enfim, por elementos redutveis a uma mecnica da medida. Diante desse quadro, proponho-me refletir, neste ensaio, sobre algumas tendncias da produo musicolgica brasileira contempornea e sobre sua situao diante de uma musicologia que considera, a priori, o seu objeto de estudo como um elemento cultural vivo, cuja formatividade obedece a determinaes sobrepostas de interpretaes que se projetam no tempo - sobrepostas porque cada poca vivida pelo objeto se consubstancia por padres diferentes de recepo, no processo circular de interaes e intervenes -, onde o acaso ocorre na tradio, e ambos consubstanciam os dados de anlise. Enfim, uma musicologia que se concebe a partir da condio humana e seu pensiero debole (inclusive seus postulados, textos e metodologias) e, portanto, sempre vinculada conscincia possvel de que forma projeta, identifica e por fim comunica. E por ser sempre viso, estabelece-se na interpretao de um mundo vivido, que opera tanto o objeto como o prprio pesquisador. Em outras palavras, uma musicologia hermenutica. A primeira questo a ser pensada a estrutura paradigmtica do pensamento cientfico com postulados hermenuticos. inquestionvel que no fundamento da cultura humanista o conhecimento se organiza atravs de legislaes sobre o universo natural. A base de articulao de tal paradigma, forjado desde a antiguidade at o final do sculo XIX, a racionalidade cientfica estruturada na concepo metafsica da natureza (uma natureza j organizada que se revela ao homem). Essa forma de pensamento sistematizase pelo encontro de princpios ordenadores universais que tm por causa e efeito dissolver a complexidade pela simplicidade (MORIN, 2000, p. 57). Dessa forma, as cincias se constituram com fronteiras para melhor ordenar, separar, reduzir, enfim, para encontrar lgicas dedutivas e identitrias que fundamentem modelos imperativos universais. No entanto, o sculo XX operou uma verdadeira revoluo no entendimento clssico (entenda-se metafsico) do homem, da natureza e da razo. A questo deveras complexa; o que nos leva a algumas indicaes que glosaremos de alguns autores como Edgar Morin, Boaventura de Souza Santos, Giorgio Agamben, e principalmente de Gianni Vattimo. Primeiramente, esses autores concordam que na medida em que a viso cientfica do mundo se desenvolveu, a concepo de uma ordem unitria e harmnica do universo se desfez paulatinamente. Igualmente dissolveu-se a crena na regncia de um Deus

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violento, controlador da natureza, impulsionando um movimento, consciente ou inconsciente, espontneo ou por exegese, da concepo dialgica entre ordem/desordem e organizao. Unem-se tambm no reconhecimento de que um mesmo fenmeno natural e social pode suscitar uma infinidade de interpretaes. Nesse vrtice das interpretaes possveis as fronteiras entre as reas de conhecimento se dissolvem, intensificando a busca por modelos transversais organizando o pensamento pela ao transdisciplinar. Em outras palavras, qualquer tentativa de entendimento cientfico deveria ignorar o isolamento das disciplinas e a individualidade de seus mtodos. Como afirma Gianni Vattimo, o desentendimento no processo do conhecer, atravs de crises seqenciais dos postulados, tem o seu ncleo no fato de que o ser no pode ser visto como fundamento objetivo e o universo de seus conceitos no pode ser baseado na concepo monoltica da existncia de um mundo onde as idias se encontram, sempre, na sua mais pura essncia (VATTIMO, 2004, p. 11). Essa constatao da inexistncia do determinismo universal inicia-se na destituio do primado da viso eurocntrica e seu modelo evolucionista, onde evoluo significava a convergncia aos valores paradigmticos da tradio judaico-crist e sua crena na transcendncia. O fundamento dessa tese est justamente na diversidade e na constatao de que nenhuma raa biologicamente melhor do que qualquer outra [...]; no h diferenas de potencial mental; nenhuma sociedade de seres humanos vive num nvel puramente animal; e qualquer grupo da humanidade tem capacidade para aprender quaisquer outros padres unitrios de comportamento biocultural (TITIEV, 1969, p. 384). Assim, o conceito determinista e mecnico que a racionalidade cientfica tentou imprimir, baseado na ordenao lgica para a transcendncia, naufragou no reconhecimento de que as leis que manteriam o equilbrio do sistema no eram mais do que produtos histricos, amealhados pela cultura ocidental. Para Vattimo, a descoberta e tolerncia dessas diferentes estruturas culturais, a necessidade do pensamento dialgico, com suas matrizes de valores que realizam ndices prprios de convivncias sociais igualmente estveis comparando-se com a sociedade ocidental, colapsou o pensamento forjado na existncia de um ordenamento nico entendido como racional - do universo. A prpria racionalidade ocidental no conseguiu explicar a existncia de um fundamento definitivo cuja validade ultrapassaria as validades culturais (VATTIMO, 2004, p. 11); esse fundamento definitivo existiria, nas teses metafsicas, em um ltimo estgio da realidade, onde todas as coisas do universo se apresentariam na sua forma pura, ltima, e onde poderamos pensar em Absoluto e Verdade como realidades realizveis. No entanto, a superao do pensamento metafsico deu-se justamente na construo do sentido pelo homem cultural, onde insustentvel a viso do Ser como uma estrutura eterna que se espelha na metafsica objetiva (Ibidem, p. 13). Ainda apoiado no autor acima citado, a dissoluo da estrutura filosfica metafsica ocorreu justamente pela impossibilidade de verificao de um mundo regido por uma realidade objetiva e invarivel. O prprio Ser no seria uma estrutura objetiva e sim projeto, abertura, imprevisibilidade e liberdade (Ibidem, p. 23) que liquida a crena em uma ordem objetiva do mundo que o pensamento deveria reconhecer para poder adequar tanto as suas descries da realidade quanto suas escolhas morais (Ibidem, p. 22), ou seja, a verdade no pode mais ser o reflexo de uma estrutura eterna do real e sim uma mensagem histrica que devemos ouvir e qual somos chamados a dar uma resposta (Ibidem, p. 13). Logo, qualquer enunciado baseia-se em paradigmas que no so universais, mas histricos, construdos pelas possibilidades de experimentao do mundo, realizadas atravs da linguagem (Ibidem, p. 14). Sendo a linguagem um constructo, ela forma o seu sentido por transmisso, por herana, de gerao em gerao. Palestras

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Considerando que s h ser e sentido pelo homem, e sem ser e sentido no h homem (BORNHEIM, 2001, p. 11), torna-se inerente o processo de transformao de significados, e o mediador justamente a percepo histrico-cultural, individual, comunitria e/ou coletiva; um contnuo nasce-morre de sentidos e paradigmas, cuja fora motriz o padro de interpretao possvel. No universo da interpretao, indivduo e coletivo atuam circularmente sobre as estruturas semnticas, formando os ndices de sociabilidade. Esses ndices, posto que nascem sob a gravidade da interpretao, sofrem uma contnua renovao das imagens do mundo devido a no-objetividade do Ser (VATTIMO, 2004, p. 24). Sendo um projeto e no uma estrutura estabilizada por uma realidade ltima, o Ser opera seqencialmente inmeras possibilidades de experimentao do mundo atravs de uma realidade formada de acordo com as possibilidades de efetivao e consubstanciao dos padres conceituais que pode operar. Vattimo chama esse processo de libertao das metforas (Ibidem, p. 26). O sentido metafrico do mundo o processo que leva a uma contnua destruio hierrquica das linguagens, em que cada um associa livremente a um objetivo uma determinada imagem mental e um som (Ibidem, p. 25). Porm, livremente um conceito relativo, pois as estruturas de linguagem dominantes estabelecem uma lngua apropriada e socializante que seria a metfora dos dominadores. No entanto, as instncias de controle e princpios hierrquicos no so suficientes para impedir o processo de libertao dessas metforas dominantes (Ibidem, p. 26). Edgar Morin, chama esse processo de princpio da circularidade, onde a histria afeta tanto o sistema como a menor parte formante (MORIN, 2000, p. 56). A infinita possibilidade de associao dos fenmenos e propriedades do mundo natural, ou seja, a sua infinita interao e, dessa forma processos atomizados de interpretaes retroativas da causa-efeito, constitui a base para a exploso interminvel das imagens do mundo e conseqentemente a formao de novas metforas. Como diz Vattimo, seria a preponderncia do pensamento fraco (pensiero debole), ou seja, a impossibilidade de falarmos sem o uso de metforas, em termos que no sejam objetivos, nem descritivos, que no espelham os estados das coisas (VATTIMO, 2004, p. 30). E esse o sentido fundamental da tese de Vattimo: a dissoluo do entendimento do Ser como fundamento para a construo do sentido do Ser como evento, ou melhor, evento histrico. A eventualidade que consubstancia o prprio Ser justamente obedece no-estabilidade advinda pela eterna qualidade do Ser como intrprete das coisas do universo (Ibidem, p. 32). Esse enfraquecimento opera, como no poderia deixar de ser, na tradio, pois a forma de olh-la obedece ao sentido do Ser eventual, que acontece para ns aqui (grifo nosso) (Ibidem, p. 33). Logo, a formatividade dos conceitos obedece, inexoravelmente, a um tempo-espao especfico. Esse eterno processo de renovao da tradio advinda pelo enfraquecimento do Ser (eventual e no objetivo) o que podemos considerar secularizao. O sculo, ou seja, o tempo-espao que se vive, recoloca todas as coisas atravs dos ndices de sociabilizao daqueles que o experimentam, daqueles que esto. Assim, seria falso pensar que a secularizao atinge a sociedade, pois a prpria sociedade, vista como conjunto de homens que formam o sentido da vida, causa e efeito da secularizao. Em suma, a secularizao no um processo que se inicia com uma ao intencional e sistmica, ela espontnea e indeterminada, atingindo a todos e a tudo em sentidos que nem sempre podemos discernir e controlar. Por fim, Vattimo assevera que essa abertura para outros mundos pode ser vista, por exemplo, no enfraquecimento do sentido de realidade que se produz nas cincias que estudam entidades cada vez mais inconciliveis com as coisas da nossa experincia cotidiana (VATTIMO, 2004, p. 99).

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Por sua vez, Edgar Morin afirma que justamente essa abertura que torna impossvel a compartimentagem do conhecimento dentro de limites rgidos, pois todo o sistema conceitual suficientemente rico inclui necessariamente questes que ele no pode responder atravs dele mesmo, mas que s pode responder referindo-se ao exterior desse sistema (MORIN, 2000, p. 60). No entanto, o meta-sistema no elimina a fragilidade do pensamento, ao contrrio, amplia-o, pois mergulha o conceito na complexidade e na aleatoriedade advinda da singularidade individual. Crise a palavra que os pessimistas definem para constatar que a cincia biodegradvel e que qualquer modelo interpretativo no passa de uma concepo individual ou comunitria que cria de si para si prprio (Ibidem). Diante dessa questo, Boaventura de Souza Santos (1989) observa que o problema da relao da cincia com a realidade no seria a produo do conhecimento, ou seja, o sistema de integrao dos conheceres para o desenvolvimento humano, mas sim sua aplicao. Assim, leva o debate para questes ticas considerando que a cincia tornou-se um discurso poltico e, portanto, deveria ter a obrigao de dialogar com o senso comum. No entanto, esse dilogo levaria a uma ruptura epistemolgica, pois no haveria sentido continuar a criar um conhecimento novo sem que nele houvesse uma clara vocao para encontrar-se com o senso comum, e mais, transformar-se nele. E justamente nesse ponto que Giorgio Agamben considera um fenmeno interessante da contemporaneidade: um incremento do desejo de controle do estado, por via do estabelecimento de normas (a prpria conscincia cientfica divulgada seria uma norma de socializao e de controle ideolgico). O Estado, transformado no Leviat atual, tem sua essncia na consubstanciao da vida apenas numa condio de sobrevivncia biolgica que no garantida pelo direito da vida e sim pelo interesse do estado (a vida garantida na esfera do soberano), o que ele chama de vida nua. Essa viso formou-se amealhando Hanna Arendt. Em A Condio Humana, a autora aponta que justamente seria o desejo contnuo de produo de bens para satisfazer o prazer imediato a fratura entre o homem social e o homem poltico, transformando-o num prisioneiro de suas necessidades privadas e vtima em potencial dos poderes que manejam a produo. Para Agamben, seria essa busca frentica pelo consumo que tornaria a concepo normativa do Estado um jogo de interesses marcados pela transgresso diante de um interesse maior, o da produo. A transgresso interessada, e legitimada, torna ento o corpo social um corpo matvel. Por fim, desnudo de sua substncia, Agamben afirma que a essncia do homem tornou-se to-somente ser. Nessa situao sua razo passaria a ser determinada exclusivamente pela tica. Em sntese, a cincia contempornea no pode mais ser exercida diante de postulados universais e imutveis, nem distante de uma concepo transversal do conhecimento. Ademais, a eventualidade do ser e sua diversidade cultural a tornam sempre uma mensagem histrica, logo, tambm, um discurso poltico. Assim, sua misso o dilogo, transformar-se em senso comum, exercida por uma tica que garanta a sobrevivncia humana e/ou suas formas de manifestao, at mesmo considerando a fragilidade da conscincia da massa humana, exposta diante do poder poltico do estado e os estados de excees que a contemporaneidade desdobra por conflitos de diversas ordens (religiosos, econmicos, sociais etc.). Antes de estabelecer perspectivas para a musicologia, cabe ainda pensar o aspecto dessa cincia como mensagem histrica e poltica, estabelecendo os seus paradigmas igualmente em bases hermenuticas. Para Keith Jenkins (2001) a Historia constitui um dentre uma srie de discursos a respeito do mundo (p. 23). So estes discursos que do significado ao mundo. No entanto, afirma que passado e historia so coisas diferentes Palestras

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(p. 24): a Historia no o passado, mas um discurso sobre um passado, ou seja, uma interpretao dele. Assim, assevera Jenkins (2001, p. 24) que quando falamos de Histria estamos geralmente usando o conceito de historiografia, ou seja, a Historia escrita por historiadores. Conclui, ento, que estudar Historia no significa estudar o passado, mas o que os historiadores escreveram sobre o passado. (Ibidem, p. 25-6), logo, o que possvel saber e como possvel saber interagem com o poder (Ibidem, p. 31). Estabelece-se assim um primeiro problema: a fragilidade epistemolgica do discurso histrico. Segundo Jenkins, quatro seriam os argumentos que demonstram tal regra: o historiador nunca conseguir observar todos os acontecimentos do passado, at porque a maior parte das informaes sobre o passado nunca foi registrada, e a maior parte do que permaneceu fugaz (Ibidem, p. 31); a histria sempre um relato e no o prprio acontecimento; sendo um relato, as interferncias ideolgicas e culturais dos relatores so inerentes, e esse o terceiro argumento; finalmente, as situaes histricas consideradas relevantes muitas vezes no eram sentidas pelos habitantes do tempoespao estudado, ou seja, pessoas e formaes sociais so captadas em processos que s podem ser vistos retrospectivamente, enquanto documentos e outros vestgios do passado tirados de seus propsitos e funes originais para ilustrar um padro que remotamente tinha significado para seus autores (Ibidem, p. 34). Para Jenkis, a fragilidade epistemolgica estende-se aos processos metodolgicos, j que a histria um discurso construdo pelos historiadores e que da existncia do passado no se deduz uma interpretao nica: mude o olhar, o enfoque, desloque a perspectiva, e surgiro novas interpretaes (Ibidem, p. 35). O princpio ativo do mtodo para Jenkins to-somente a ideologia. Para tanto, os conceitos histricos devem sempre ser historicizados para que suas bases paradigmticas possam ser discutidas face idia que a produziu, e ela prpria um produto do tempo/espao. Em sntese, a historiografia compe-se de epistemologia, metodologia e ideologia. A epistemologia nos mostra que impossvel conhecer o passado e a metodologia falha por que nenhuma modalidade jamais conseguir dispor um discurso objetivo, ou seja, sempre um campo de litgio. Logo, as dominncias recorrem ao campo ideolgico para legitimar o seu discurso, sempre como um exerccio explcito de poder, seja pelo ato velado de incluso e/ou anexao (Ibidem, p. 62). Diante disso, resta-nos a anlise historiogrfica para podermos vislumbrar quais estruturas ideolgicas e em quais circunstancias estabeleceram-se tendncias e dominncias que consolidaram um constructo discursivo que cria uma imagem de um passado, de uma metodologia e, mais ainda, para projetar um indicativo dos padres do pensamento cientfico contemporneos. Assim, alm da diviso entre empiricistas e estruturalistas, o que determinante observar a consubstanciao das semnticas que, no fundo, concretizam zonas de influncia e vias de acesso ao poder, e nesse estgio que se consolida a transformao de um projeto de poder em ideologia dominante. No entanto, esse aspecto no necessariamente depreciativo, como vimos em Jenkins, ele ontolgico na construo historiogrfica. O que passvel de observao a medida que essa historiografia corresponde quilo que consideramos cincia nos ambientes contemporneos e suas diversas relaes que a legitimam como instrumento de interesse humano, desde as questes ticas, suas relaes com o senso comum e, enfim, sua participao nas estruturas que suprem as necessidades do presente e projetam as perspectivas do futuro. Em um texto de 2004, Perspectivas para a Musicologia na Universidade, Rgis Duprat, aps expor a natureza da musicologia, suas reas de abrangncia e possibilidades metodolgicas, indaga se haveria uma musicologia brasileira e, havendo, pergunta-

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se se ela teria desenvolvido seus mtodos prprios de investigao e definido claramente o objeto de seus estudos (2004, p. 33). A construo dessa indagao no era ocasional, j que em inmeros textos Duprat vinha desenvolvendo estudos reflexivos sobre a atividade no Brasil. J em 1972, em Metodologia e pesquisa histrico-musical no Brasil, Duprat observou que a atividade de pesquisa musicolgica no Brasil encontrava um grave obstculo que era a disperso das fontes, associada desorganizao dos arquivos e a falta de especialistas para desenvolver os trabalhos de catalogao e restaurao do material existente. Em 1992, em Memria Musical e Musicologia Histrica, novamente retorna questo do desenvolvimento da musicologia brasileira dando a entender que os problemas apontados em 1972 ainda continuavam os mesmos, agravados, porm, pela ao do tempo. Nesse texto clama pela institucionalizao da pesquisa musicolgica, no sem antes observar quais os padres formativos eram necessrios para o musiclogo, principalmente imaginando que o perodo do trabalho positivista seria suplantado por esforos mais complexos na elaborao de critrios estticos necessrios para interpretaes histricas mais sofisticadas. Paralelamente, em 1989, quando do surgimento da Associao Nacional de Pesquisa e Ps Graduao em Msica, Duprat apontou os problemas da musicologia brasileira para se situar nas questes metodolgicas coevas. Destacou que, para um alinhamento paradigmtico, seria necessrio estudar a genealogia historiogrfica brasileira, sistematizando as obras universais que tiveram influncias sobre o pensamento historiogrfico e, a partir da concretizao desses dois estgios, refletir sobre a historiografia musical brasileira para situar-se dogmaticamente no presente e projetar-se para o futuro. Sobre essa base que, no texto de 2004, Duprat observa que a institucionalizao da pesquisa musicolgica brasileira distanciava-se da preocupao do desenvolvimento paradigmtico da rea. Observa que o ncleo do problema est na prpria formao da comunidade cientfica que se desdobra para a formao dos currculos e a indefinio de campos disciplinares que prejudica a prpria compreenso e o diagnstico e definies de problemas (DUPRAT, 2004, p. 36). Estancados em inmeros paradoxos, observa que o caminho de discusso dos paradigmas da rea musicolgica cristalizou-se, salvo raras excees, nos problemas observados na dcada de 1970, at mesmo em relao ao dilogo com a etnomusicologia que vinha se desenvolvendo desde Mrio de Andrade. Jamary Oliveira, em 1992, tambm observa o fenmeno e igualmente remete formao deficitria, quando no nula, da grande parte dos musiclogos brasileiros. Para Oliveira, o problema se reflete tanto nos estudos histricos, etnomusicolgicos e sistemticos (OLIVEIRA, 1992, p. 6). Essa viso compartilhada por Maria Alice Volpe (2004) ao constatar que a pesquisa musicologia brasileira no tem gerado na comunidade acadmica ou na sociedade mais ampla o mesmo nvel de interesse de outras disciplinas. Continua levantando uma importante questo: cabe indagar aqui, quais seriam os motivos para o relativo isolamento da musicologia brasileira, seu dilogo precrio com as outras disciplinas e a limitao de seu impacto social disponibilizao de produtos sonoros. Respondendo sua prpria indagao, Maria Alice Volpe taxativa quando afirma que o baixo impacto da musicologia brasileira se deve sua desatualizao terico-conceitual e conclama uma ateno maior ao desenvolvimento da musicologia internacional nos ltimos quarenta anos (VOLPE, 2004, p. 101). E essa baliza de quarenta anos sintomtica, pois foi justamente nessa poca a ltima grande atualizao metodolgica e ideolgica ocorrida na musicologia histrica. Vejamos brevemente as bases dessa renovao reiteradamente referida. Palestras

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O primeiro grande sistema interpretativo da musicologia histrica forjado no Brasil foi realizado por Curt Lange, e j revelava um alinhamento ideolgico claro, pois a sua interpretao estava fundada nos paradigmas do nacionalismo de sua poca, que consubstanciava projetos de sentidos individuais no vrtice da construo da identidade nacional na perspectiva das raas (fenmeno herdado de uma corrente quase linear que se inicia em Manuel de Arajo Porto Alegre, segue em Slvio Romero, Mrio de Andrade e se encontra na antropologia cultural de Gilberto Freyre). O paradigma era destacar a vocao fundacional do gnero autntico da terra dentro de uma ao libertria que, mesmo diante da opresso de regimes esprios a crtica aos imperialismos era o mote recorrente nos discursos nacionalistas -, atuava mediado por um sentido espiritual de superao; a autonomia dos msicos mulatos era justamente um dos signos da mensagem messinica da raa mestia, apelo fortssimo em tempos de holocausto. Na gerao que se segue a Curt Lange, encontramos em Rgis Duprat a disposio de uma transformao metodolgica que obedecesse a uma ideologia radicalmente oposta. Duprat tratava de consolidar todo um conjunto conceitual que reagia ao determinismo nacionalista e teve como marco pblico o Manifesto de Msica Nova de 1963. Subjazia na inteno dos subscritores a atitude libertria tpica da conscincia poltica de esquerda, de que signatrios do Manifesto, seno todos, muitos eram portadores. O paradigma era reagir pela atualizao do discurso esttico e cientfico, inclusive na formatao da histria da msica brasileira, como deixa explcito uma das propostas trazida pelo Manifesto de 1963: levantamento do passado musical base de novos conhecimentos do homem (topologia, estatstica, computadores, e todas as cincias adequadas), e naquilo que esse passado possa ter apresentado de contribuio aos atuais problemas (MENDES, 1994, p. 73). Como conseqncia dessa renovao metodolgica, Duprat negou o determinismo antropolgico de Curt Lange fundamentado no estudo das estruturas administrativas da msica setecentista, ou seja, ampliou consideravelmente o campo de coleta de dados. A metodologia no era uma intuio. Para revelar esses campos de mediao e suas estruturas internas de negociao que mitigavam a determinao totalitria de qualquer das partes, o musiclogo sofisticou os paradigmas da pesquisa musical atravs de um quadro conceitual que o alinhava com as preocupaes metodolgicas da teoria da histria coeva. Atravs de inmeros textos publicados a partir da dcada de 1960, Duprat imprimiu musicologia nacional uma atualizao com os problemas levantados pela Escola dos Annales, herdado do discipulado com Fernand Braudel. Tais ferramentas possibilitaram afirmaes que modificavam a perspectiva histrica e esttica radicalmente, principalmente na questo do liberalismo que regia os msicos coloniais e lhe emprestavam um alto grau de auto-determinao estilstica. Assim, concomitantemente com revelar fontes documentais da msica colonial paulista, Duprat buscou aplicar a concepo de uma histria baseada no dilogo hermenutico (crcular) entre as estruturas de longa durao (como as questes da administrao eclesistica atravs do padroado) com as de curta durao, ou seja, as acomodaes ideolgicas de cada tempo, que buscavam redimensionar a aplicao do padroado no jogo de poder e influncia entre as esferas laicas e eclesisticas que negavam na prtica os princpios da sociedade estamental. Nesse sentido, seus textos consolidavam uma doutrina que redimensionava o tempo histrico atravs da diviso entre acontecimentos factuais e a conjuntura ideolgica no qual emergia o fenmeno e a estrutura de longa durao que, atravs de vnculos com a tradio, identifica e permite a observao dos pontos de modificao. O estudo

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da histria da administrao colonial tornou-se, ento, fundamental para a concretizao dessas redes de trnsito que envolviam a totalidade do edifcio social, num dilogo em que as foras fluam subordinadas a mediaes nem sempre explcitas, como as ordenaes rgias ou as pastorais eclesisticas. Para tanto, seguindo as conquistas dos Annales, Duprat expandiu as fontes documentais, buscando a diversificao dos dados, porm tratados sempre como agentes histricos e sociais; essa uma fundamental diferena entre Duprat e Lange. Em suma, no cruzamento entre os dois principais musiclogos da segunda metade do sculo XX, conclumos que justamente o alinhamento terico historiogrfico foi o diferencial e marcou um passo significativo na sofisticada sistematizao do passado musical brasileiro. As proposies dos Analles, de anlise de uma documentao mssica e involuntria que pudesse realizar a crtica das fontes oficiais preenchendo lacunas que as intenes nunca revelam, permitiram a Duprat at mesmo antecipar hipteses que s contemporaneamente vieram baila, como as questes da administrao colonial e suas formas de fruio do espetculo do poder. Portanto, Duprat trouxe musicologia uma flexibilizao de fontes que buscava no s o entendimento da organizao social de forma transversal, forjada na crtica do material histrico sem, no entanto, incorrer nos impulsos da Nouvelle Histoire, e sua fragmentao fundada na desacelerao do tempo histrico, onde as estruturas eram vistas a partir de gneros isolados, ou seja, constitudos na micro histria de partculas. No entanto, observando a historiografia musical posterior observa-se quo pouca repercusso alcanou a ao musicolgica vinculada concepo terico-conceitual da rea, atravs da discusso contnua das metodologias, como proposto por Duprat em inmeros textos, desde 1966. O que nas cincias humanas, considerando a brasileira, era um campo de litgio intenso, na nossa musicologia tornou-se um deserto com poucos osis. E a dificuldade da atualizao da musicologia nessas dcadas posteriores se vincula em grande parte a perpetuao de uma ideologia do ensino da msica no Brasil, historicamente vinculado ao ensino de instrumento. Em 1935, Mrio de Andrade j destacava o problema na orao de paraninfo. Dizia:H as disciplinas nascidas das artes que fazem parte do esprito universitrio, como a esttica, a histria comparada das artes, a histria de cada arte em particular, a musicologia. Mas existe nas artes um lado ofcio, um lado ensino profissional da prtica dos instrumentos e do material que em teoria parece aberrar do conceito de universidade. [No entanto], a fuso dos conservatrios na universidade ser praticamente utilssima. O nosso msico precisa da existncia universitria...do exemplo dos outros estudantes...contagiar-se do esprito universitrio, porque a inobservncia do nosso msico quanto cultura geral simplesmente inenarrvel. Esta situao do nosso ambiente musical que me obriga, escudado em voz, senhores diplomandos, a implorar a incluso do nosso conservatrio em nossa universidade. Um conservatrio qualquer. Eu no pleiteio sequer a oficializao dessa nossa casa benemrita. Sem dvida alguma, o conservatrio Dramtico, pelo seu passado, pela sua finalidade bsica precisa, merece, deve, exige, receber o apoio oficial (ANDRADE, 1991, p. 192)

A msica foi incorporada na universidade, como clamava Mrio de Andrade, porm a fora da mentalidade do ensino prtico acabou, como uma ironia ao mentor que a idealizou, adaptando a prpria musicologia s suas necessidades, distanciando-a das questes conceituais que se desenvolvem diuturnamente nas outras reas das cincias humanas. Qual adaptao essa? Desde Curt Lange, que se concentrou no estudo da msica do sculo XVIII, a musicologia brasileira se caracterizou pelas pesquisas de fontes (documentais e musicais), problemas relativos ao arquivamento, transcrio e anlise do material, e divulgao atravs de concertos e/ou fonogramas. Longe de considerar um Palestras

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demrito, essa ao era e uma necessidade e sua vigncia fundamental para o desenvolvimento da rea, porm, a expanso terico-conceitual foi prejudicada por uma ampla cristalizao nesse trip, digamos, prtico. Isso porque ainda persiste o vnculo majoritrio da produo musicolgica com os problemas de catalogao e arquivos, modelos metodolgicos para transcries e edies de partituras, panoramas histrico-sociais e regionais, e anlise musical sobre determinada obra ou literatura para determinado instrumento, geralmente relacionada com a prtica musical do pesquisador. A tendncia pode ser observada empiricamente, ou melhor, precariamente, j que a inteno apenas apresentar um panorama preliminar da produo da rea e, alm disso, o fenmeno por demais marcante, e se revela facilmente pela intensa recorrncia dos assuntos. No entanto, e justamente pela precariedade assinalada acima, cabe o registro de que tal observao no entrou em anlises metodolgicas das pesquisas e nem representa a aplicao de abordagens apuradas de anlise de contedo e de procedimentos estatsticos; somente considerou a leitura de resumos e ttulos das comunicaes onde a ligao com a pesquisa histrica explcita, obedecendo a diviso da rea proposta pela ANPPOM. Dessa forma, trabalhos de etnomusicologia e de sistemas tericos e de anlise musical no foram considerados dentro do elenco inventariado. As fontes dessa pequena pesquisa, absolutamente preliminar, ressaltamos novamente, foram os resumos e ttulos de comunicaes veiculadas nas principais revistas cientficas da rea (Opus, Ictus, Em Pauta, Per Musi, Msica Hodie e Brasiliana), balizada entre 1999 e 2007, assim como os programas dos trs ltimos encontros da Associao Nacional de Pesquisa e Ps Graduao em Msica (ANPPOM), no total de aproximadamente 250 ttulos. Os campos de experincia classificatrios, sempre referentes s questes histricas, foram: Anlise de estilos e de obras e conjunto de obras. Prticas interpretativas relacionadas com o lxico, gramtica e paradigmas do discurso musical histrico. Histria da teoria musical luso-brasileira. Contexto scio cultural (biogrficas e/ou comunitrias). Recepo e disseminao da msica. Crtica Musical. Problemas de edio. Msica e mdias. Arquivologia. Organologia. Teoria da musicologia. Estudos historiogrficos.

O aspecto mais relevante dessa visita informal ao rol de assuntos tratados pelos pesquisadores da rea que aproximadamente 39% da produo se relacionam com o impacto mais imediato da musicologia na dimenso prtica, em trs reas: anlise, edio musical e arquivologia. Primeiramente deve-se destacar a preponderncia absoluta de pesquisas que versam sobre a anlise musical para fins interpretativos (ttulos com a chamada anlise e interpretao uma recorrncia de tal dimenso que mereceria um estudo historiogrfico). Essas pesquisas so geralmente de pequeno alcance como, por exemplo, e majoritariamente, anlises de peas de um determinado compositor realizado por instrumentistas de ofcio; evidentemente o objeto de pesquisa relacionado com o seu instrumento. Diga-se de passagem que tal costume, enraizado na mentalidade monogrfica da musicologia nacional, desconsidera a anlise circunstanciada numa malha maior,

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inter-relacionada, que concretizaria um entendimento estilstico e esttico de um perodo ou mesmo de um compositor mais sistmico e elaborado. No mnimo, essa falta de articulao compromete uma viso mais ntegra e integral e enfraquece no s a prpria compreenso histr