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Análise comparativa entre a peça O Pagador de Promessas e sua adaptação cinematográfica 20/12/2007 Roberta Vanessa Crispim Pinheiro* Nascido como uma espécie de registro da vida cotidiana, o cinema aos poucos descobriu que também podia ser usado para contar historias, embora - diferente da literatura - estas devam ser pensadas como serão vistas na tela. Para isso é preciso elaborar o roteiro (história escrita na língua do cinema com todos os seus termos técnicos). Claro que as técnicas do cinema não surgiram de repente. Foram anos de experimentos que se aperfeiçoavam de diretor para diretor. Desde cedo, os cineastas encontraram na literatura uma vastidão de temas que constituem verdadeira fonte de inspiração para seus trabalhos. Além disso, as obras literárias também atendem a possível carência de roteiros e roteiristas. Mas enquanto não houver o entendimento de que estas duas artes (cinema e literatura) são linguagens diferentes, as adaptações de romances e peças para o cinema serão sempre vistas como um ato de ousadia, visto que é inescapável a cobrança para que os filmes sejam fieis ou o mais parecidos possível com o livro, principalmente por parte dos leitores da obra adaptada. A peça O Pagador de Promessas, do dramaturgo Dias Gomes, foi adaptada para o cinema por Anselmo Duarte, em 1961. Neste artigo, pretendemos analisar o resultado das escolhas do cineasta ao adaptar este drama à linguagem cinematográfica. Para tal, serão aplicados os conceitos de ação e de trágico no decorrer da análise comparativa entre as cenas do drama e do filme. Dias Gomes (Alfredo de Freitas D. G.), romancista, contista e teatrólogo, nasceu em Salvador, BA, em 19 de outubro de 1922. Faleceu em São Paulo no dia 18 de maio de 1999. Eleito em 11 de abril de 1991 para a Cadeira n. 21 da Academia Brasileira de Letras (na sucessão de Adonias Filho), foi recebido em 16 de julho de 1991, pelo acadêmico Jorge Amado. Interessando-se pela literatura e por representações teatrais desde a infância, Dias Gomes escreveu sua primeira peça com apenas 15 anos de idade, intitulada A comédia dos moralistas, que ganhou o 1º lugar no Concurso do Serviço Nacional de Teatro em 1939. Estreou no teatro profissional em 1942, com a comédia Pé-de-cabra, encenada no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio Ferreira, que com ele excursionou por todo o país. Mas a notoriedade de Dias Gomes como autor foi obtida com a peça O Pagador de Promessas (1959) que, ao ser adaptada para o cinema por Anselmo Duarte, obteve grande sucesso e conquistou vários prêmios internacionais. O Pagador de Promessas é uma das peças brasileiras recordistas em traduções e encenações no exterior, sendo encenada várias vezes nos Estados Unidos por diferentes diretores norte-americanos. Os textos do dramaturgo procuram espelhar as angústias da atualidade sem explorar dogmas. Questionando problemas sem a pretensão de apresentar soluções, os evidenciam para chamar a atenção do público sobre determinadas questões sociais, sem a intenção de propagar "mensagens", utilizando-se constantemente da comicidade quando mostra o trágico. A história de O Pagador de Promessa é extremamente simples, narrando o calvário vivido por um simplório chamado Zé, que tenta pagar promessa feita a Iansã

Análise comparativa entre a peça O Pagador de Promessas e ... · síntese – intuitiva ou racional, simbólica ou realista – do aqui e agora que se vive.” (LAJOLO, 1986, pág.65)

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Page 1: Análise comparativa entre a peça O Pagador de Promessas e ... · síntese – intuitiva ou racional, simbólica ou realista – do aqui e agora que se vive.” (LAJOLO, 1986, pág.65)

Análise comparativa entre a peça O Pagador de Promessas e sua adaptação cinematográfica 20/12/2007 Roberta Vanessa Crispim Pinheiro* Nascido como uma espécie de registro da vida cotidiana, o cinema aos poucos

descobriu que também podia ser usado para contar historias, embora - diferente da literatura - estas devam ser pensadas como serão vistas na tela. Para isso é preciso elaborar o roteiro (história escrita na língua do cinema com todos os seus termos técnicos). Claro que as técnicas do cinema não surgiram de repente. Foram anos de experimentos que se aperfeiçoavam de diretor para diretor.

Desde cedo, os cineastas encontraram na literatura uma vastidão de temas que

constituem verdadeira fonte de inspiração para seus trabalhos. Além disso, as obras literárias também atendem a possível carência de roteiros e roteiristas. Mas enquanto não houver o entendimento de que estas duas artes (cinema e literatura) são linguagens diferentes, as adaptações de romances e peças para o cinema serão sempre vistas como um ato de ousadia, visto que é inescapável a cobrança para que os filmes sejam fieis ou o mais parecidos possível com o livro, principalmente por parte dos leitores da obra adaptada.

A peça O Pagador de Promessas, do dramaturgo Dias Gomes, foi adaptada para

o cinema por Anselmo Duarte, em 1961. Neste artigo, pretendemos analisar o resultado das escolhas do cineasta ao adaptar este drama à linguagem cinematográfica. Para tal, serão aplicados os conceitos de ação e de trágico no decorrer da análise comparativa entre as cenas do drama e do filme.

Dias Gomes (Alfredo de Freitas D. G.), romancista, contista e teatrólogo, nasceu

em Salvador, BA, em 19 de outubro de 1922. Faleceu em São Paulo no dia 18 de maio de 1999. Eleito em 11 de abril de 1991 para a Cadeira n. 21 da Academia Brasileira de Letras (na sucessão de Adonias Filho), foi recebido em 16 de julho de 1991, pelo acadêmico Jorge Amado.

Interessando-se pela literatura e por representações teatrais desde a infância, Dias

Gomes escreveu sua primeira peça com apenas 15 anos de idade, intitulada A comédia dos moralistas, que ganhou o 1º lugar no Concurso do Serviço Nacional de Teatro em 1939. Estreou no teatro profissional em 1942, com a comédia Pé-de-cabra, encenada no Rio de Janeiro e depois em São Paulo por Procópio Ferreira, que com ele excursionou por todo o país.

Mas a notoriedade de Dias Gomes como autor foi obtida com a peça O Pagador de

Promessas (1959) que, ao ser adaptada para o cinema por Anselmo Duarte, obteve grande sucesso e conquistou vários prêmios internacionais. O Pagador de Promessas é uma das peças brasileiras recordistas em traduções e encenações no exterior, sendo encenada várias vezes nos Estados Unidos por diferentes diretores norte-americanos.

Os textos do dramaturgo procuram espelhar as angústias da atualidade sem

explorar dogmas. Questionando problemas sem a pretensão de apresentar soluções, os evidenciam para chamar a atenção do público sobre determinadas questões sociais, sem a intenção de propagar "mensagens", utilizando-se constantemente da comicidade quando mostra o trágico.

A história de O Pagador de Promessa é extremamente simples, narrando o

calvário vivido por um simplório chamado Zé, que tenta pagar promessa feita a Iansã

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pela cura de seu burro, o qual ele considera como um amigo. Para a revolta de sua esposa Rosa, Zé também promete dividir suas terras com os lavradores mais pobres e depositar uma pesada cruz de madeira no altar de uma igreja de Santa Bárbara. O que Zé e Rosa não imaginavam, era que só encontrariam tal igreja a sessenta léguas de casa e que o padre não permitiria sua entrada por não considerar que Iansã e Santa Bárbara eram a mesma mediadora do milagre feito ao burro. Zé-do-Burro não desiste, pois é movido pela fé, honestidade e obstinação, embora isso o leve à morte.

O paulista Anselmo Duarte iniciou sua carreira no cinema, no Rio de Janeiro, após

ler um anúncio de Orson Welles selecionando pessoas para participar do filme It's All True, em 1942. Anselmo trabalhou como ator, produtor, roteirista, editor e diretor em diversas produções nas décadas de 50 a 80.

A partir da peça de Dias Gomes, Anselmo Duarte traçou uma narrativa coerente,

tratando de temas como sincretismo religioso e manipulação ideológica. Era um filme polêmico, mas sem os recursos técnicos de vanguarda valorizados na época. Leonardo Villar e Glória Menezes (atores que representaram os protagonistas da peça), emocionaram com a história de Zé do Burro, que morre para pagar uma promessa.

O filme O Pagador de Promessas foi exibido na Casa Branca, em 17 de

dezembro de 1962 e entusiasticamente aplaudido pelo presidente Kennedy, diplomatas e jornalistas. Foi o primeiro filme brasileiro a concorrer ao Oscar, sendo indicado a categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Embora não tenha recebido a “estatueta”, o filme foi premiado em vários festivais, destacando-se a Palma de Ouro por Melhor Longa-metragem no Festival de Cannes, França. E após o recebimento do prêmio em Cannes, o diretor e a equipe do filme que viajou para o festival foram recebidos com um desfile público em carro aberto ao desembarcar no Brasil.

Daí seguiu-se vários prêmios nacionais e internacionais, como: Prêmio Governador

do Estado de São Paulo, SP, em 1962 por Melhor Filme, Produtor (Oswaldo Massaini), Diretor, Ator (Leonardo Villar) e Argumento (Dias Gomes); Melhor Filme, Diretor, Ator (Leonardo Villar) e Atriz (Glória Menezes), Troféu Cinelândia, Rio de Janeiro, em 1962; Prêmio Darius Milhau e Melhor Música (Golden Gate), em 1962; Melhor Filme no Festival Internacional de São Francisco, EUA, 1963; entre outros.

Claro que o sucesso do filme não se deve apenas ao brilhantismo do diretor, mas

do próprio autor da peça, que participou da produção do filme escrevendo todos os diálogos.

Literatura e cinema: a arte milenar como base da arte secular Arte milenar, a literatura adotou um caminho próprio que só previa adaptações

para o teatro e cuja estética não é a estética da imagem. A literatura é uma arte autônoma e sua criação é pessoal. Costumamos pensar a literatura apenas como ficção, onde tudo é possível. De fato o é, mas a literatura é um objeto social simbólico. De acordo com Marisa Lajolo, podemos dizer que a literatura é uma forma de expressar a visão de mundo de quem escreve, exercendo assim um papel transformador.

“É desse cruzamento do mundo simbolizado pela palavra em estado de literatura

com a realidade diária dos homens que a literatura assume seu extremo poder transformador. Os mundos fantásticos criados pelo texto não caem do céu, nem têm gênese na inspiração das musas. O mundo representado na literatura, simbólica ou realistamente, nasce da experiência que o escritor tem de uma realidade histórica e social muito bem delimitada. O universo que autor e leitor compartilham, a partir da criação do primeiro e da recriação do segundo, é um universo que corresponde a uma

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síntese – intuitiva ou racional, simbólica ou realista – do aqui e agora que se vive.” (LAJOLO, 1986, pág.65)

Enquanto a literatura é independente, o cinema exige a colaboração de vários

profissionais e baseia-se em outras artes como a pintura e a música para enriquecer a história contada.

O cinema nasceu em 28 de dezembro de 1895, durante uma apresentação no

Grand Café do boulevard des Capucines, em Paris, onde o público viu, pela primeira vez, filmes como La Sortie des ouvriers de l'usine Lumière (A saída dos operários da fábrica Lumière) e L'Arrivée d'un train en gare (Chegada de um trem à estação), que na verdade, não passavam de breves testemunhos da vida cotidiana. Esta façanha foi feita pelos irmãos franceses, Louis e Auguste Lumière, que criaram o cinematógrafo, invento equipado com um mecanismo de arrasto para a película e com o qual era possível projetar imagens ampliadas numa tela.

Estes filmes dos irmãos Lumière tinham um caráter muito mais de documentário,

visto que não contavam uma historia, apenas registravam cenas da vida cotidiana, em um curto espaço de tempo (um minuto).

E mesmo dando um enorme passo para o surgimento de uma nova linguagem,

Louis e Auguste Lumière não davam credibilidade ao cinematógrafo, que para eles não passava de “uma invenção sem futuro”. Porém, houve quem discordasse como o francês George Mélies (1861-1938), que comprou um cinematógrafo. Mélies era mágico e diretor de teatro e introduziu à invenção dos irmãos Lumière, um elemento por eles ignorado: a magia. E por aí se inicia a busca do cinema pela fantasia, deixando de ser apenas uma forma de registro da vida real.

Libertando-se da idéia de documentário, o cinema passa a incorporar outros

recursos para atrair o público, até chegar à literatura. E este ponta-pé inicial foi dado pelo próprio Mélies, que teria sido o primeiro fundador de uma produtora, a Star Film. Em 1902, Mélies produziu o filme Viagem à Lua, obra considerada a primeira ficção cientifica do cinema, com duração de 13 minutos, inspirada nos romances de Júlio Verne.

Levando em consideração o dilema vivido por diversos diretores em ser fieis a obra

adaptada, ou apostar na autoria, ou seja, personalizar recriando o livro a partir de suas idéias, mostra que levar um romance as telas não é tarefa fácil. Essa dificuldade se dá a comparação entre película e livro. Depois de roteirizado e filmado o texto literário fica bem diferente do que vemos no livro. E isso pode ser justificado até mesmo pelas próprias limitações da linguagem cinematográfica. Por exemplo: nos romances, a descrição de uma paisagem é muito longa, enquanto no cinema a mesma paisagem é facilmente descrita, uma vez que cinema é basicamente imagem. Por outro lado, é muito mais fácil mergulharmos no consciente, ou quem sabe inconsciente, de uma personagem através da literatura do que no cinema, já que este embora possa usar de seus planos e ângulos, pode não ser entendido pelo telespectador.

No Brasil, a partir da década de 60, a literatura foi fundamental para o cinema

nacional. Grandes obras de nossa literatura foram transpostas para a linguagem cinematográfica como por exemplo: Vidas Secas (Graciliano Ramos/Nelson Pereira dos Santos), em 1963; Menino de Engenho (José Lins do Rego/Walter Lima Jr.) em 1965; A Hora e a Vez de Augusto Matraga (Guimarães Rosa/Roberto Santos), em 1966 e Macunaíma (Mário de Andrade/Joaquim Pedro de Andrade), em 1969.

A adaptação cinematográfica do drama

Segundo Martin Esslin, “o drama mecanicamente reproduzido dos veículos de

comunicação (o cinema, a televisão, o rádio), muito embora possa diferir

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consideravelmente em virtude de suas técnicas, também é fundamentalmente drama”, palavra grega que significa ação, a qual através de mimésis representa o comportamento humano, fazendo com que a platéia reflita sobre determinadas situações.

Embora o drama transposto para o cinema não permita o feedback entre a platéia

e os atores – fator este que influencia na atuação do elenco - , o cinema pode dar maior destaque a determinadas ações através de sua linguagem e montagem. O drama no cinema tem muito mais realismo em suas ambientações, uma vez que estas são limitadas pelo espaço físico do teatro.

Esslin nos chama a atenção para uma diferença marcante entre o drama teatral e

drama cinematográfico: o uso do microfone e da câmera, que seriam a extensão dos ouvidos e olhos do diretor, o que lhe permite controlar o ponto de vista da platéia. Enquanto no teatro o quadro é o mesmo para todos e cada um olha para o que quer, no cinema o diretor chama a atenção de toda a platéia para um único ponto, através de planos (gerais, médios ou closes), cortes de um lugar para outro e movimentos de câmera. Ou seja, o público vê apenas o que o diretor deseja mostrar e da forma como quer mostrar.

Semelhanças e distanciamentos: o filme de Anselmo Duarte Um agricultor ingênuo chamado Zé do Burro, que recorre a um terreiro de Iansã,

como última alternativa para salvar a vida de seu burro de estimação que sofreu um acidente, e cujo ferimento, médicos nem rezas conseguem curar. Considerando que Iansã é Santa Bárbara, Zé promete a “santa”, que se esta curar seu burro, dividirá suas terras com os lavradores mais pobres que ele, e carregará uma cruz tão pesada quanto a de Cristo, até a Igreja de Santa Bárbara e depositará a cruz no altar mor.

Tendo o pedido atendido, Zé reparte suas terras e carrega sua cruz por sete léguas

ao lado de sua esposa Rosa, até a Igreja citada. Porém, ao contar ao Padre Olavo o motivo da promessa e como esta foi feita, Zé é proibido pelo sacerdote de entrar na igreja e assim realizar o seu objetivo.

O pagador se depara ainda com vários personagens inescrupulosos que se

aproveitam de sua ingenuidade, tentando destruí-lo. A imprensa tenta vendê-lo como um novo Messias, enquanto tudo o que Zé do Burro quer é acertar as contas com a Santa. Sua morte evidencia a tragicidade da peça, dando um encerramento, cruel, triste e extremamente belo.

Tanto no texto original quanto em sua adaptação, o sofrimento de Zé-do-Burro

suscita grande empatia no público, favorecendo o pathos. O filme provoca uma reação de compaixão ainda maior, visto que as outras personagens tem suas má intenções em relação a Zé, ainda mais acentuadas.

Inclusão de eventos Em seu texto, Dias Gomes apresentou Zé-do-Burro e Rosa logo no início do

primeiro quadro, chegando à igreja. Anselmo Duarte optou por mostrar ao espectador, o motivo de todo o sofrimento de Zé, ou seja, a promessa feita a Iansã. Pensando assim, o diretor decide iniciar o filme com Zé fazendo sua promessa no candomblé de Maria de Iansã.

Em seguida, Anselmo mostra o pagador e sua esposa deixando sua roça. Há uma

casa pegando fogo, o que nos leva a imaginar que Zé ao dividir as terras, incendiou a própria casa. Enquanto são exibidos os créditos iniciais do filme, vemos toda a peregrinação de Zé com a cruz nas costas, sendo, em um determinado momento,

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seguido por algumas pessoas em romaria – fato só comentado por Rosa durante conversa com Bonitão, ainda no primeiro quadro.

Originalmente, Zé e Rosa descem a ladeira sem que haja nenhuma referência a

algum movimento na rua, ou seja, segundo a peça, não há ninguém na rua fora eles dois. Porém no filme, ao descerem a ladeira, um grupo de pessoas que parecem ter passado a noite em farras, zombam do protagonista, rindo e chamando-o de palhaço. Nesse momento, já vemos Bonitão olhando para Rosa, que o encara como se este fosse mais um a rir de seu marido.

A saída de Rosa e Bonitão para o hotel é feita debaixo de chuva. Enquanto

procuram se abrigar da chuva, Rosa conta como conheceu o marido e fala como que num desabafo, mas Bonitão não está interessado, prova disso, é que ela tenta beija-la, mas Rosa se desvencilha e fingi que não notar as intenções de seu acompanhante. Chegando ao hotel, Bonitão não só a leva ao quarto, mas entra e fecha a porta.

Anselmo inclui o repórter chegando a redação do jornal onde trabalha e recebe a

notícia sobre a peregrinação de Zé como pauta, e cujo dialogo mostra que a sua função é fazer sensacionalismo.

Já no segundo quadro do primeiro ato, depois da apresentação dos personagens

Dedé, Minha tia e Galego, o diretor acrescenta pequena cena de Padre Olavo perguntando ao sacristão, após a missa, se o pagador da promessa ainda está lá fora, tentando justificar sua atitude de proibi-lo de entrar na igreja. Em seguida vemos mulheres vestidas de baianas lavando a escadaria da igreja, cena que não faz parte da peça, mas que serve de passagem para a cena de Zé com o guarda, visto que o primeiro sai de onde está e vai para a rua, onde encontra o guarda.

No primeiro quadro do segundo ato, Rosa sai do hotel, que ao iniciar sua

caminhada de volta a igreja, parece perdida pelas ruas da cidade. Ela começa a correr. A trilha passa a idéia de tensão. Logo após, vemos o guarda dentro da sacristia conversando com o padre sobre a situação de Zé. O padre parece preocupado, sem saber o que fazer.

Dias Gomes não fala na chegada da procissão a Igreja, mas Anselmo mostra Santa

Bárbara carregada por fieis em procissão, subindo a escadaria da igreja. Zé fica tão distraído olhando para a santa que mal percebe Rosa saindo para a venda encontrar com Bonitão. Zé segue a procissão com sua cruz, caminhando ao lado do andor, sem tirar os olhos de Santa Bárbara. Esta é sempre mostrada em contra-plongée e Zé em plongée, nos dando a idéia da pequenez do homem em relação ao sagrado. O que nos chama a atenção é o momento em que ao chegar na porta da igreja, a santa volta-se para Zé-do-Burro, que não pode mais segui-la. Esta entra na igreja de costas para o altar, passando ao lado do padre que não percebe o “fenômeno”. Ainda na mesma seqüência, Zé e Padre Olavo se entreolham, e o primeiro observa o padre obrigando as baianas a se afastarem para o lado e dar passagem aos seus fieis. Marli também acompanha a procissão, mas esta se coloca ao lado de Zé, olha-o, como se igualando ao agricultor na exclusão, depois olha para o padre, abaixa a cabeça e sai. O padre manda fechar a porta atrás do último fiel, enquanto Zé é cercado pelas baianas.

Na venda de Galego, Bonitão compra um jornal e liga para o secreta, pedindo que

este o encontre logo. No filme há um garoto vendendo o jornal que fala sobre Zé. Enquanto isso, Padre Olavo se encontra ao lado do sino da igreja, caminhando de um lado para outro lendo a Bíblia. Ao ouvir o garoto gritando o titulo da manchete do jornal, o padre espia o movimento na rua do alto da igreja. Benzendo-se, ele ajoelha-se reza o Pai Nosso, oração que serve de passagem para a cena seguinte: a reunião de sacerdotes que discutem a situação de Zé-do-Burro. Nesta cena, fica claro que a preocupação dos

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sacerdotes não é Zé e sua promessa, mas a opinião pública, ou seja, a posição da igreja de modo a não ganhar a antipatia do povo.

Após a cena da chegada do monsenhor, vemos que Padre Olavo e Monsenhor

Otaviano conversam no pátio da igreja, sobre que atitude tomar, pensando especificamente no aspecto político.

Na peça só sabemos de um único repórter. No filme, há repórteres de todos os

meios de comunicação (como rádio e tv também). Depois que Zé tenta entrar na igreja, a imprensa o cerca, deixando Rosa nervosa. Na mesma seqüência, aparece uma mulher com um bebê nos braços, pedindo que Zé salve a criança tocando-lhe a testa. O pagador quase atende o pedido da mulher mas se contem e começa a chorar. Muitos doentes e deficientes vem até Zé-do-Burro que se levanta, ergue sua cruz e sai da porta da igreja, mas estes o seguem cantando hinos que se confundem com o som dos berimbaus dos capoeiristas que já começam a se apresentar.

No terceiro ato, o padre está novamente ao lado do sino, e ao ouvir o som da rua,

espia a multidão. Ele está preocupado e nervoso ele começa a bater os sinos que mal são ouvidos por conta dos berimbaus.

Ainda no terceiro ato, na cena em que Rosa e Bonitão sobem a ladeira, Rosa ao ver

a policia chegar, pede que Bonitão impeça a prisão de Zé. Ao perceber que não será atendida, ela o esbofeteia e sai correndo em direção a igreja. Marli assiste a cena e começa a rir. Bonitão também se diverte com a situação e sai de braço dado a Marli. Enquanto isso, o repórter tenta entrar na sacristia mais uma vez, mas a polícia não deixa. O fotográfo comenta que sabia que iam desgraçar a vida de Zé, mas o repórter não se importa, pois segundo ele, manchete é manchete.

Inclusão de ambientes Os três atos da peça O Pagador de Promessas, de acordo com o texto original

de Dias Gomes, desenvolve-se em uma pequena praça, onde desembocam duas ruas. Uma à direita e outra à esquerda e de frente para a platéia, há uma ladeira. Na esquina da rua da direita há a fachada da pequena igreja de Santa Bárbara. Numa das esquinas da ladeira há um ponto comercial (uma vendola) e na outra esquina, há um sobrado. A versão de Anselmo Duarte rompe com esta unidade de lugar, acrescentando: o candomblé, logo na abertura do filme; a roça de Zé (mesmo que vista bem ao fundo); a estrada e povoados que o pagador percorre durante sua peregrinação; a portaria e o quarto do hotel onde Rosa dorme; o interior da igreja; a sacristia; a torre da igreja onde ficam os sinos; a sala onde os sacerdotes se reúnem para discutir o drama de Zé; o pátio da igreja onde Padre Olavo e Monsenhor Otaviano conversam.

Exclusão de falas Anselmo exclui todo o diálogo em que Bonitão nota a presença de Marli na

escadaria da igreja, após ele ter tomado-lhe todo o dinheiro apurado naquela noite. Ele preferiu mostrar apenas o inicio do dialogo deles antes de encontrar Rosa e Zé nos degraus da igreja. A exclusão das falas de Bonitão se oferecendo para tomar conta da cruz caso Zé decida ir para o hotel com Rosa, torna as intenções de Bonitão em seduzir Rosa mais evidentes.

A conversa do repórter e Rosa onde ela conta sobre a polícia ter sido acionada, diminui no filme a sede de sensacionalismo do repórter.

As falas da beata também são quase todas excluídas, deixando que toda e

qualquer reprovação por parte da igreja seja apenas demonstrada pelo padre. No entanto uma de suas falas é aproveitada e divida para três atrizes.

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Exclusão de fatos Bonitão não volta do hotel como diz na peça. Assim, Anselmo também exclui o

dialogo ente Bonitão e o sacristão. Modificação da leitura dramática do texto Quando Zé-do-Burro diz que tem de levar a cruz para dentro da igreja, Rosa não o

olha com raiva ao dizer que terá de dormir no “hotel do padre” para que o marido não se suje com a santa, como no texto original. No filme, ela olha para o chão, se mostrando obediente, embora inconformada com a situação.

Ao chegar à escadaria avistando Zé e Rosa, Bonitão manda Marli ir embora. Mesmo

tentando continuar ao lado dele, Marli obedece a ordem de Bonitão e se vai, nos fazendo entender que no filme, as mulheres são bem mais submissas. Na peça, Bonitão se intriga com a cruz, sendo esta o motivo de sua aproximação a Zé. Anselmo prefere que o gigolô se aproxime e se apóie na cruz para observar Rosa melhor, uma vez que ele já a tinha visto descendo a ladeira no momento de sua chegada a cidade. Enquanto Zé e Bonitão conversam, Rosa abre os olhos e espia quem é o interlocutor de seu marido, depois volta a dormir sem dar importância à presença de Bonitão. Originalmente, no texto de Dias Gomes, Rosa acorda por sentir que está sendo observada, já na adaptação ela desperta porque Bonitão se aproxima e puxa sua saia para cobrir-lhe a perna que está à mostra.

No texto para o teatro, Zé não percebe o ar culposo de Rosa, nem mesmo quando

ela diz: “Mais do que já aconteceu?”. Ele entende essa frase referindo-se apenas à peregrinação e o conflito com o padre. No filme, ele compreende de imediato o que ela quer dizer, mas não diz uma única palavra.

Diferente da peça, Rosa não se mostra empolgada com a presença da imprensa,

não dá importância nem enxerga na figura do repórter a “ajuda” que ele oferece. Quanto a conversa de Bonitão e Rosa na venda, Anselmo acrescentou dois detalhes: primeiro, a chegada do repórter, que lança um olhar e sorriso significativo para o fotografo após ver o casal conversando; segundo, Marli também chega à venda e escuta a conversa dos dois, o que a leva a ter uma crise de ciúmes. O escândalo de Marli chama a atenção dos que passam na rua, e Zé vem ao auxilio de Rosa. De cabeça baixa, assim como a esposa, ele escuta as palavras de Marli que é arrastada por Bonitão e depois olha para Rosa. Na peça, é neste momento que Zé passa a desconfiar da traição da esposa, mas no filme, essa cena nos parece que ele já não tem mais dúvida alguma.

Mestre Coca, de acordo com o texto de Dias Gomes, só toma partido de Zé, ao

chegar à venda do Galego, embora já tenha ouvido o boato de que havia um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e não podia. No filme, ele toma conhecimento do drama de Zé-do-Burro através do jornal e chama os capoeiristas para ir ajudar o pagador.

Originalmente, Rosa ao tentar justificar sua traição, ela também culpa Zé por este

ter insistido que ela fosse com Bonitão. Na adaptação ela culpa apenas a santa. Quando Zé se revolta frente o Secreta e Bonitão, na peça, ele grita pelo padre que não está na praça. No cinema, o padre está entre a multidão que ouve as falas dos três personagens citados. Zé não percebe que o padre está passando, a não ser quando este chega ao alto da escadaria, então o pagador grita pelo padre e sobe alguns degraus para pedir que este o ouça.

Quando o Monsenhor pergunta a Zé se renega ou não a promessa, Minha Tia e

Mestre Coca clamam por Iansã. No filme a carga dramática desta cena é maior, visto que todos se calam, o silêncio geral provoca tensão. O olhar de Zé para Rosa como que buscando a resposta que deveria dar nos causa ansiedade e piedade, visto que ele não

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encontra nos olhos da esposa o apoio que procura. Só depois de dizer que não pode renegar é que Minha Tia e os capoeiristas chamam por Iansã.

Na peça, Bonitão tenta levar Rosa embora após a morte de Zé. No filme esta cena

não existe, pois Bonitão vai embora com Marli antes da confusão na escadaria. No texto original, Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo que avança para a igreja, deixando Minha Tia sozinha na praça. Anselmo prefere não mostrar estes personagens isoladamente, com exceção de Rosa, que fica sozinha na escadaria entrando sozinha na igreja após toda a multidão já ter entrado.

Modificação de falas Anselmo Duarte esclarece melhor o drama de Zé, quando no primeiro encontro do

pagador com o padre, este explica que Iansã e Santa Bárbara não é a mesma coisa dizendo que esse sincretismo vem desde o tempo em que os escravos não podendo adorar seus deuses nagôs, fingiam cultuar santos católicos.

Conclusão As escolhas do cineasta Anselmo Duarte na leitura que se fez sobre os personagens

do drama de Dias Gomes não invalidam o que foi definido pelo autor. A essência dos personagens na adaptação feita por Anselmo de O Pagador de Promessas foi modificada, intensificando as características de alguns personagens.

Podemos dizer que o Zé-do-Burro do cinema é mais desconfiado que na peça, mas

provoca o mesmo nível de empatia independente de ser o drama teatral ou cinematográfico. Rosa não é tão questionadora, nem tão insatisfeita sexualmente como diz na peça. No filme, ela nos parece mais submissa e arrependida. Já Bonitão é na adaptação ainda mais atrevido. O Repórter mais aproveitador e sensacionalista, enquanto o padre mais inseguro, fraco, temeroso com que decisões deve tomar.

A adaptação desta obra não sofreu grandes modificações a ponto de fugir do texto

original. Embora o diretor tenha acrescentado alguns eventos, estes só enriqueceram o drama. Se bem que parte destes acréscimos está no texto original, mas através da fala dos personagens. Não sentimos falta das falas que foram cortadas no filme, mesmo porque, embora a direção e o roteiro sejam de Anselmo Duarte, o dialoguista da adaptação foi o próprio Dias Gomes.

Referências ARISTÓTELES. Poética. Ebook CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995. CHION, Michel. O roteiro de cinema. São Paulo, Martins, 1989. ESSLIN, Martin. Uma anatomia do drama. Rio de Janeiro, Zahar, 1986. GOMES, Dias. O pagador de promessas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2003. LAJOLO, Marisa. O que é literatura. São Paulo, Editora Brasiliense, 1986. LUNA, Sandra. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. João Pessoa: Idéia, 2005. * Roberta Vanessa Crispim Pinheiro é graduada em Radialismo e aluna especial do Mestrado de Letras da UFPB. Este ensaio foi escrito para a disciplina Dramaturgia e Cinema, ministrada pela professora Sandra Luna.

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