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AQUINATE, n°. 2, 2006 241 A NÁLISE DO ESTATUTO METAFÍSICO DA D IGNIDADE DA V IDA H UMANA A PARTIR DA NOÇÃO DE LIBERDADE EM TOMÁS DE A QUINO* Prof. Dr. Paulo Faitanin UFF Introdução Contexto Atualmente tenho comentado muitos temas sob a ótica da metafísica. Dentro do contexto da origem e do início da vida humana 1 , tem surgido questões relacionadas às pesquisas com células-tronco embrionárias 2 . O debate assume maior destaque, em razão da aprovação da Lei de Biossegurança 3 . O epicentro da discussão agora é o da dignidade da vida humana 4 . Muitas ciências têm contribuí do para a discussão. Todo o embate seria insuficiente se não levasse em conta o a- porte filosófico, com respeito àquilo que lhe é próprio. De fato, a metafísica, en- quanto é filosofia primeira 5 , pode e deve oferecer subsídios para a discussão. Sua *Texto originalmente publicado sob o título Estatuto Metafísico da Dignidade Humana em: CNBB, A Dignidade da V ida Humana e as Biotecnologias . Brasília: Edições CNBB, 2005, pp. 149- 167. 1 Em outra oportunidade já havia dedicado um estudo sobre a concepção e individuação do embrião humano, desde uma perspectiva filosófico-tomista FAITANIN, P. A concepção e indi- viduação do embrião humano em Tomás de Aquino , Aquinate, nº.1 (2005), 109-149. [www.aquinate.net]. 2 Surgem demandas de viés tecno-científicas: que são células-tronco? para que servem? qual a diferença entre células-tronco embrionárias e as células-tronco adultas? qual a diferença do uso de células-tronco adultas? E demandas de viés filosófico-teológicas: porque é ilícita a manipu- lação de células-tronco embrionárias e aceitáveis o uso das células-tronco adultas? Para estas questões indico: BRANDÃO, DR. D. et alii, V ida: o primeiro direito da cidadania . Goiânia: Editora Bandeirante Ltda, 2005. 3 Lei de Biossegurança, [lei nº. 11.105] da CTNBio, em 24/ 03/ 2005, cujo conteúdo do Capítu- lo I, Art. 5º permite: a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedi mento. Veja a lei em: http://www.ctnbio.gov.br/index.php?action=/content/view&cod_objeto=1297 4 Por dignidade entende-se aqui o valor em si ou a excelência da natureza humana considerada em si mesma. Esta excelência se fundamenta em um princípio metafísico constitutivo da pró- pria natureza humana. 5 ARISTÓTELES, Metafísica, VI, 3. 1005 a 21.

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ANAacuteLISE DO ESTATUTO METAFIacuteSICO DA DIGNIDADE DA VIDA HUMANA A PARTIR DA NOCcedilAtildeO DE LIBERDADE EM TOMAacuteS DE AQUINO

Prof Dr Paulo Faitanin UFF

Introduccedilatildeo

Contexto

Atualmente tenho comentado muitos temas sob a oacutetica da metafiacutesica Dentro do contexto da origem e do iniacutecio da vida humana1 tem surgido questotildees relacionadas agraves pesquisas com ceacutelulas-tronco embrionaacuterias2 O debate assume maior destaque em razatildeo da aprovaccedilatildeo da Lei de Biosseguranccedila3 O epicentro da discussatildeo agora eacute o da dignidade da vida humana4 Muitas ciecircncias tecircm contribuiacutedo para a discussatildeo Todo o embate seria insuficiente se natildeo levasse em conta o a-porte filosoacutefico com respeito agravequilo que lhe eacute proacuteprio De fato a metafiacutesica en-quanto eacute filosofia primeira5 pode e deve oferecer subsiacutedios para a discussatildeo Sua

Texto originalmente publicado sob o tiacutetulo Estatuto Metafiacutesico da Dignidade Humana em CNBB A Dignidade da V ida Humana e as Biotecnologias Brasiacutelia Ediccedilotildees CNBB 2005 pp 149-167 1 Em outra oportunidade jaacute havia dedicado um estudo sobre a concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano desde uma perspectiva filosoacutefico-tomista FAITANIN P A concepccedilatildeo e indi-viduaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 [wwwaquinatenet] 2 Surgem demandas de vieacutes tecno-cientiacuteficas que satildeo ceacutelulas-tronco para que servem qual a diferenccedila entre ceacutelulas-tronco embrionaacuterias e as ceacutelulas-tronco adultas qual a diferenccedila do uso de ceacutelulas-tronco adultas E demandas de vieacutes filosoacutefico-teoloacutegicas porque eacute iliacutecita a manipu-laccedilatildeo de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias e aceitaacuteveis o uso das ceacutelulas-tronco adultas Para estas questotildees indico BRANDAtildeO DR D et alii V ida o primeiro direito da cidadania Goiacircnia Editora Bandeirante Ltda 2005 3 Lei de Biosseguranccedila [lei nordm 11105] da CTNBio em 24 03 2005 cujo conteuacutedo do Capiacutetu-lo I Art 5ordm permite a utilizaccedilatildeo de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias obtidas de embriotildees humanos produzidos por fertilizaccedilatildeo in vitro e natildeo utilizados no respectivo procedimento Veja a lei em httpwwwctnbiogovbrindexphpaction=contentviewampcod_objeto=1297 4 Por dignidade entende-se aqui o valor em si ou a excelecircncia da natureza humana considerada em si mesma Esta excelecircncia se fundamenta em um princiacutepio metafiacutesico constitutivo da proacute-pria natureza humana 5 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 3 1005a 21

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colaboraccedilatildeo pode ser pautada numa proposta de fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da dignidade da vida humana

Justificaccedilatildeo

Justifica-se uma proposta de anaacutelise metafiacutesica quando insurgem no inte-rior destes embates cientiacuteficos maacute-interpretaccedilatildeo duacutevida e negaccedilatildeo da dignidade da vida humana Eis algumas questotildees que aparecem

que o conceito de dignidade eacute desprovido de conteuacutedo entitativo [diriam que tal conceito eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute aleacutem de ser vazio por estar desprovido ou natildeo deitar raiacutezes ou se fundamentar na realidade do homem]

que natildeo haacute a existecircncia de uma natureza humana presente desde a concepccedilatildeo da vida embrionaacuteria [diriam que o conceito de natureza seria outra inven-ccedilatildeo dos filoacutesofos e dos teoacutelogos e proporiam uma des-naturalizaccedilatildeo da vida humana]

que natildeo haacute dignidade na vida humana embrionaacuteria [diriam que natildeo eacute vida digna porque neste estaacutegio em que satildeo feitas tais manipulaccedilotildees mediante as pesquisas com ceacutelulas-tronco o blastocisto natildeo seria ain-da vida de pessoa humana mas um conglomerado de ceacutelulas amor-fas6]

Natildeo satildeo muitos os que assim procedem mas poucos que fazem muito ba-rulho Contudo parecem argumentar muito mais motivados por interesses poliacuteti-co-econocircmicos que envolvem as pesquisas com ceacutelulas-tronco a partir da mani-pulaccedilatildeo da vida humana embrionaacuteria do que pelo vigor e coerecircncia cientiacuteficos Natildeo raro evidenciam-se tratar-se de argumentos

(a) sofistas [pois enganam por natildeo dizerem toda verdade e natildeo di-zem ou por natildeo saberem ou por omissatildeo7]

6 PEREIRA LV A ameaccedila da bioseguranccedila Galileu Ediccedilatildeo 152 -marccedilo de 2004 ver em httprevistagalileuglobocomGalileu06993ECT688101-172600html 7 Algueacutem jaacute teve conhecimento do nuacutemero de riscos que tal atividade pode trazer para a vida e sauacutede humanas Dr Robert Lanza nos diz que o ideal da medicina generativa natildeo seria traba-lhar com Cts mas encontrar uma forma de ativar esse tipo de desdiferenciaccedilatildeo controlada de tecido adulto - em essecircncia transformar uma ceacutelula terminalmente diferenciada em ceacutelula-tronco Muitos pesquisadores estatildeo procurando as moleacuteculas maacutegicas capazes de produzir tal

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(b) pseudo-cientiacuteficos [pois natildeo informam claramente acerca do perigo que tais pesquisas podem trazer para a seguranccedila da vida e sauacutede humanas8 natildeo comprovam se sua eficaacutecia e viabilidade satildeo me-lhores do que a utilizaccedilatildeo de ceacutelulas-tronco adultas]

(c) preconceituosos [pois denominam retroacutegados medievais natildeo cientiacute-ficos e fundamentalistas religiosos9 todos os que se dizem a fa-vor do respeito agrave vida humana em qualquer etapa e contra a ma-nipulaccedilatildeo da vida embrionaacuteria para tais fins]

(d) iliacutecitos [pois nem a Constituiccedilatildeo Federal que no Art 5ordm decreta a inviolabilidade do direito agrave vida nem o Coacutedigo Penal que no Art 121 qualifica de homiciacutedio simples matar algueacutem culposo no Art 122 II com aumento de pena se a viacutetima eacute menor ou tem diminuiacuteda por qualquer causa a capacidade de resistecircncia

am-param legalmente tal aborgadem10]

transformaccedilatildeo e alguns ecircxitos de caraacuteter bastante preliminar foram relatados recentemente Entretanto a regeneraccedilatildeo terapecircutica por meio da desdiferenciaccedilatildeo ainda estaacute muito distante de ser realidade e provavelmente viraacute de uma compreensatildeo muito mais profunda das proacuteprias ceacutelulas-tronco tanto adultas como embrionaacuterias e de sua qualidade de tronco LANZA R Ceacutelulas-tronco obstaacuteculos no caminho que leva da promessa terapecircutica aos tratamentos

reais em seres humanos Scientific American Brasil Ediccedilatildeo nordm 26 -julho de 2004 8 Fulvio Mastropaolo destaca certeiramente que a toleracircncia de uma atividade que natildeo tenha o caraacuteter de risco descrito mesmo que de forma geneacuterica que prejudique a vida ou a sauacutede do homem mesmo a de um uacutenico homem eacute inadmissiacutevel MASTROPAOLO F A bioeacutetica do embriatildeo Satildeo Paulo Edusc 1999 p 22 9 PEREIRA LV A ameaccedila da bioseguranccedila Galileu Ediccedilatildeo 152 -marccedilo de 2004 ver em httprevistagalileuglobocomGalileu06993ECT688101-172600html 10 O que declara a Lei de Biosseguranccedila [lei nordm 11105] da CTNBio no que se refere ao direito agrave vida defendido na CF Art 5ordm eacute inconstitucional porque natildeo encontra amparo legal consti-tucional e penal De fato esta lei surge de uma maacute interpretaccedilatildeo do que se afirma acerca do direito agrave vida na CF pois o Art 5ordm natildeo deixa de fora de sua interpretaccedilatildeo e previsatildeo a inviola-bilidade da vida humana em qualquer etapa seja seu iniacutecio ou seu desenvolvimento e portanto na forma de lei ela se aplica

e deveria ter sido aplicada

nalgum momento agrave vida dos em-briotildees humanos que foram produzidos por fertilizaccedilatildeo in vitro e natildeo utilizados no respectivo procedimento e esta aplicaccedilatildeo eacute vaacutelida mesmo agora porque sua aplicaccedilatildeo eacute retroativa agrave vio-laccedilatildeo originaacuteria e eacute eficaz na forma de puniccedilatildeo mesmo agora em que o material geneacutetico de embriotildees congelados por natildeo terem sido utilizados no respectivo procedimento tendo sido disposto sob o amparo da lei de biosseguranccedila para ser utilizado na pesquisa de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias Ningueacutem duvida de que se fosse observado e respeitado o curso proacuteprio e natu-ral da fecundaccedilatildeo humana e se natildeo fossem congelados tais embriotildees a partir deles se gerariam seres humanos e neles se manifestariam a vida humana pois o que fora fecundado in vitro natildeo

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(e) e imorais [pois depotildee objetiva e claramente contra a moralidade humana11 contra a liberdade e a responsabilidade moral do ho-mem que deve respeitar o outro independente da raccedila cor tempo de vida situaccedilatildeo social financeira etc]

Com suas exposiccedilotildees se colocam contra

1 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela metafiacutesica enquanto a fundamenta em coerecircncia com as verdades da razatildeo nal-gum princiacutepio metafiacutesico constitutivo da natureza do ser humano

2 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela religiatildeo en-quanto a fundamenta em coerecircncia com as verdade de feacute no magisteacute-rio em que se estabelece que a vida humana eacute digna por ser vida queri-da por Deus e na revelaccedilatildeo em que se estabelce que o homem foi cria-do agrave imagem e semelhanccedila de Deus12

Intenccedilatildeo

Todas as dificuldades acima apontadas exigem que se considere o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana Estatuto que fundamenta a dignidade da vida humana que edifique a natureza humana e que defina cada indiviacuteduo de natureza racional como pessoa humana

era material geneacutetico de outra espeacutecie que natildeo da humana portanto era previsto que se geras-sem deste material geneacutetico seres humanos e natildeo ratos pois era material geneacutetico proacuteprio para a geraccedilatildeo do homem Portanto minha ignoracircncia em mateacuteria juriacutedica natildeo anula o senso criacutetico de que algo de inconstitucional pode haver na referida lei nordm 11105 Se na CF inicialmente se previne e se defende o caraacuteter inviolaacutevel do direito agrave vida nenhuma lei poderaacute justificar e per-mitir posteriormente o que se supocircs agrave natildeo observaccedilatildeo da lei magna ou poderaacute sem ser inconstitu-cional 11 Por moral se entende aqui a ciecircncia que decorre do estudo filosoacutefico acerca da boa e da maacute accedilatildeo humana Por moralidade se entende o caraacuteter ou valor moral positivo ou negativo de uma dada accedilatildeo humana Por imoral entende-se o caraacuteter de uma accedilatildeo humana que se reveste de va-lor moral negativo por depor contra agrave proacutepria natureza humana LALANDE A Vocabulaacuterio Teacutecnico e Criacutetico da Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 verbetes MoralMoralidade 12 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1700 A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criaccedilatildeo agrave imagem e semelhanccedila de Deus

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A dignidade se afirma da vida humana e natildeo de qualquer forma de vida E a humana eacute digna porque eacute vida em excelecircncia Este valor eacute a liberdade que eacute per-feiccedilatildeo proacutepria do ser do homem Nela se fundamenta a afirmaccedilatildeo da dignidade da vida do homem Quando se pensa em dignidade subjaz a liberdade13 A digni-dade da vida humana tem seu fundamento na liberdade que eacute perfeiccedilatildeo proacutepria do homem

A dignidade natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute Natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo pois o intelecto elabora este conceito ao abstrair14 nele mesmo de modo univer-sal e comum aquela perfeiccedilatildeo que ele considerou na realidade de muitos indiviacute-duos humanos Natildeo eacute invenccedilatildeo da feacute pois o que afirma a verdade de feacute acerca do homem supotildee existindo a natureza do homem15

O conceito de dignidade natildeo eacute mentira do intelecto nem conceito vazio de conteuacutedo ocircntico Natildeo eacute mentira porque eacute verdadeiro pois se adequa16 entre o que o intelecto produz nele mesmo e o que existe na natureza individual humana Natildeo eacute vazio porque eacute pleno de conteuacutedo jaacute que tem seu fundamento real nal-

13 Entende-se aqui liberdade desde um ponto devista metafiacutesico e originaacuterio de outras concep-ccedilotildees de que dela se podem fazer ulteriormente Metafisicamente falando liberdade eacute o princiacute-pio absoluto e incondicional de si mesmo na medida em que por este princiacutepio eacute capacitado habitualmente a ser senhor de suas accedilotildees Esta perspectiva se pauta na visatildeo aristoteacutelica ARIS-

TOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III 5 1113 b 10 e se amplia na tomista na medida em que a liber-dade embora seja capacidade que emana ao modo de haacutebito de um princiacutepio constituinte e necessaacuterio da natureza humana se realiza e opera livremente e natildeo por necessidade concluin-do a liberdade embora nasccedila de um princiacutepio necessaacuterio da natureza se realiza para o bem da proacutepria natureza poreacutem como haacutebito que natildeo opera por necessidade TOMAacuteS DE AQUINO S S Th I q83 I-II q13 II Sent d24 q1 a2 De Ver q22 De Malo q6 14 TOMAacuteS DE AQUINO S C G 1 44 15 Jaacute se tem dito que feacute e razatildeo caminham juntas JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio Introduccedilatildeo A Feacute e a razatildeo satildeo como as duas asas que o espiacuterito humano se eleva agrave contemplaccedilatildeo da verdade Foi Deus quem semeou no coraccedilatildeo humano o desejo de conhecer a verdade e finalmente de conhececirc-LO para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave plena verdade sobre si mesmo Por isso nenhuma verdade de feacute seraacute por Deus revelada ao homem para o bem de sua natureza se tal revelaccedilatildeo natildeo supor a existecircncia daquilo para o qual tal revelaccedilatildeo se realiza Eacute pautado nisso que os antigos afirmaram que a graccedila revelada ao homem supotildee a natureza do homem pois a graccedila ao ser revelada natildeo a destroacutei nem a inventa senatildeo que a supotildee e a aperfeiccediloa TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q1 a8 ad2 Portanto quando pela feacute se diz que a vida humana eacute digna por expressar em sua natureza alguma perfeiccedilatildeo divina a modo de imagem e semelhanccedila a feacute natildeo contraria a razatildeo pois supotildee que exista na natureza individual de cada homem algum princiacutepio sobre o qual se fundamenta tal afirmaccedilatildeo 16 TOMAacuteS DE AQUINO S De veritate q1 a1c

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gum princiacutepio da proacutepria estrutura metafiacutesica humana Para estabelecer o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana nosso estudo se dividiraacute em trecircs partes

I Fundamento metafiacutesico liberdade

O fundamento metafiacutesico da dignidade humana se encontra na proacutepria natureza racional humana este fundamento eacute a liberdade hu-mana a liberdade eacute perfeiccedilatildeo perfectiacutevel da natureza humana per-feiccedilatildeo perfectiacutevel eacute a que se realiza aperfeiccediloando-se eacute na auto-realizaccedilatildeo da perfeiccedilatildeo que reside a nobreza e excelecircncia humana nenhum outro ser corpoacutereo eacute capaz de auto-realizar-se e aperfeiccedilo-ar-se tendo consciecircncia e responsabilidade sobre os seus atos a li-berdade nasce da razatildeo se manifesta na vondade e se realiza na atua-ccedilatildeo A liberdade eacute a capacidade que torna o homem senhor e res-ponsaacutevel por sua accedilatildeo

II Fundamento moral responsabilidade

O homem eacute o senhor de suas accedilotildees eacute senhor pela liberdade eacute res-ponsaacutevel por suas accedilotildees e eacute no efetivo exerciacutecio de sua responsabili-dade moral que a sua liberdade se manifesta e se realiza plenamente Se a liberdade eacute o fundamento da dignidade a dignidade somente se realiza plenamente atraveacutes do efetivo exerciacutecio da responsabilidade mo-ral enquanto isso aperfeiccediloa a natureza livre Pela respondabilidade moral a pessoa humana eacute apta a adquirir virtudes e ser feliz Natildeo enquanto a felicidade seja a conquista de uma boa vida em qualida-de de vida mas tambeacutem de uma vida boa de vida com qualidade Deste modo apoacutes identificar o fundamento da dignidade na liber-dade se evidencia agora que tal fundamento se manifesta e se reali-za no exerciacutecio pleno da responsabilidade moral

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A pessoa humana foi a uacutenica criatura que Deus quis por si mesma e por isso a criou agrave sua imagem e semelhanccedila sendo isso mesmo o fundamento teoloacutegico da dignidade da vida humana E porque a verdade de feacute natildeo se opotildee agrave verdade da razatildeo o que se afirma co-mo verdade da razatildeo na metafiacutesica encontra a sua justificaccedilatildeo no

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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colaboraccedilatildeo pode ser pautada numa proposta de fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da dignidade da vida humana

Justificaccedilatildeo

Justifica-se uma proposta de anaacutelise metafiacutesica quando insurgem no inte-rior destes embates cientiacuteficos maacute-interpretaccedilatildeo duacutevida e negaccedilatildeo da dignidade da vida humana Eis algumas questotildees que aparecem

que o conceito de dignidade eacute desprovido de conteuacutedo entitativo [diriam que tal conceito eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute aleacutem de ser vazio por estar desprovido ou natildeo deitar raiacutezes ou se fundamentar na realidade do homem]

que natildeo haacute a existecircncia de uma natureza humana presente desde a concepccedilatildeo da vida embrionaacuteria [diriam que o conceito de natureza seria outra inven-ccedilatildeo dos filoacutesofos e dos teoacutelogos e proporiam uma des-naturalizaccedilatildeo da vida humana]

que natildeo haacute dignidade na vida humana embrionaacuteria [diriam que natildeo eacute vida digna porque neste estaacutegio em que satildeo feitas tais manipulaccedilotildees mediante as pesquisas com ceacutelulas-tronco o blastocisto natildeo seria ain-da vida de pessoa humana mas um conglomerado de ceacutelulas amor-fas6]

Natildeo satildeo muitos os que assim procedem mas poucos que fazem muito ba-rulho Contudo parecem argumentar muito mais motivados por interesses poliacuteti-co-econocircmicos que envolvem as pesquisas com ceacutelulas-tronco a partir da mani-pulaccedilatildeo da vida humana embrionaacuteria do que pelo vigor e coerecircncia cientiacuteficos Natildeo raro evidenciam-se tratar-se de argumentos

(a) sofistas [pois enganam por natildeo dizerem toda verdade e natildeo di-zem ou por natildeo saberem ou por omissatildeo7]

6 PEREIRA LV A ameaccedila da bioseguranccedila Galileu Ediccedilatildeo 152 -marccedilo de 2004 ver em httprevistagalileuglobocomGalileu06993ECT688101-172600html 7 Algueacutem jaacute teve conhecimento do nuacutemero de riscos que tal atividade pode trazer para a vida e sauacutede humanas Dr Robert Lanza nos diz que o ideal da medicina generativa natildeo seria traba-lhar com Cts mas encontrar uma forma de ativar esse tipo de desdiferenciaccedilatildeo controlada de tecido adulto - em essecircncia transformar uma ceacutelula terminalmente diferenciada em ceacutelula-tronco Muitos pesquisadores estatildeo procurando as moleacuteculas maacutegicas capazes de produzir tal

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(b) pseudo-cientiacuteficos [pois natildeo informam claramente acerca do perigo que tais pesquisas podem trazer para a seguranccedila da vida e sauacutede humanas8 natildeo comprovam se sua eficaacutecia e viabilidade satildeo me-lhores do que a utilizaccedilatildeo de ceacutelulas-tronco adultas]

(c) preconceituosos [pois denominam retroacutegados medievais natildeo cientiacute-ficos e fundamentalistas religiosos9 todos os que se dizem a fa-vor do respeito agrave vida humana em qualquer etapa e contra a ma-nipulaccedilatildeo da vida embrionaacuteria para tais fins]

(d) iliacutecitos [pois nem a Constituiccedilatildeo Federal que no Art 5ordm decreta a inviolabilidade do direito agrave vida nem o Coacutedigo Penal que no Art 121 qualifica de homiciacutedio simples matar algueacutem culposo no Art 122 II com aumento de pena se a viacutetima eacute menor ou tem diminuiacuteda por qualquer causa a capacidade de resistecircncia

am-param legalmente tal aborgadem10]

transformaccedilatildeo e alguns ecircxitos de caraacuteter bastante preliminar foram relatados recentemente Entretanto a regeneraccedilatildeo terapecircutica por meio da desdiferenciaccedilatildeo ainda estaacute muito distante de ser realidade e provavelmente viraacute de uma compreensatildeo muito mais profunda das proacuteprias ceacutelulas-tronco tanto adultas como embrionaacuterias e de sua qualidade de tronco LANZA R Ceacutelulas-tronco obstaacuteculos no caminho que leva da promessa terapecircutica aos tratamentos

reais em seres humanos Scientific American Brasil Ediccedilatildeo nordm 26 -julho de 2004 8 Fulvio Mastropaolo destaca certeiramente que a toleracircncia de uma atividade que natildeo tenha o caraacuteter de risco descrito mesmo que de forma geneacuterica que prejudique a vida ou a sauacutede do homem mesmo a de um uacutenico homem eacute inadmissiacutevel MASTROPAOLO F A bioeacutetica do embriatildeo Satildeo Paulo Edusc 1999 p 22 9 PEREIRA LV A ameaccedila da bioseguranccedila Galileu Ediccedilatildeo 152 -marccedilo de 2004 ver em httprevistagalileuglobocomGalileu06993ECT688101-172600html 10 O que declara a Lei de Biosseguranccedila [lei nordm 11105] da CTNBio no que se refere ao direito agrave vida defendido na CF Art 5ordm eacute inconstitucional porque natildeo encontra amparo legal consti-tucional e penal De fato esta lei surge de uma maacute interpretaccedilatildeo do que se afirma acerca do direito agrave vida na CF pois o Art 5ordm natildeo deixa de fora de sua interpretaccedilatildeo e previsatildeo a inviola-bilidade da vida humana em qualquer etapa seja seu iniacutecio ou seu desenvolvimento e portanto na forma de lei ela se aplica

e deveria ter sido aplicada

nalgum momento agrave vida dos em-briotildees humanos que foram produzidos por fertilizaccedilatildeo in vitro e natildeo utilizados no respectivo procedimento e esta aplicaccedilatildeo eacute vaacutelida mesmo agora porque sua aplicaccedilatildeo eacute retroativa agrave vio-laccedilatildeo originaacuteria e eacute eficaz na forma de puniccedilatildeo mesmo agora em que o material geneacutetico de embriotildees congelados por natildeo terem sido utilizados no respectivo procedimento tendo sido disposto sob o amparo da lei de biosseguranccedila para ser utilizado na pesquisa de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias Ningueacutem duvida de que se fosse observado e respeitado o curso proacuteprio e natu-ral da fecundaccedilatildeo humana e se natildeo fossem congelados tais embriotildees a partir deles se gerariam seres humanos e neles se manifestariam a vida humana pois o que fora fecundado in vitro natildeo

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(e) e imorais [pois depotildee objetiva e claramente contra a moralidade humana11 contra a liberdade e a responsabilidade moral do ho-mem que deve respeitar o outro independente da raccedila cor tempo de vida situaccedilatildeo social financeira etc]

Com suas exposiccedilotildees se colocam contra

1 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela metafiacutesica enquanto a fundamenta em coerecircncia com as verdades da razatildeo nal-gum princiacutepio metafiacutesico constitutivo da natureza do ser humano

2 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela religiatildeo en-quanto a fundamenta em coerecircncia com as verdade de feacute no magisteacute-rio em que se estabelece que a vida humana eacute digna por ser vida queri-da por Deus e na revelaccedilatildeo em que se estabelce que o homem foi cria-do agrave imagem e semelhanccedila de Deus12

Intenccedilatildeo

Todas as dificuldades acima apontadas exigem que se considere o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana Estatuto que fundamenta a dignidade da vida humana que edifique a natureza humana e que defina cada indiviacuteduo de natureza racional como pessoa humana

era material geneacutetico de outra espeacutecie que natildeo da humana portanto era previsto que se geras-sem deste material geneacutetico seres humanos e natildeo ratos pois era material geneacutetico proacuteprio para a geraccedilatildeo do homem Portanto minha ignoracircncia em mateacuteria juriacutedica natildeo anula o senso criacutetico de que algo de inconstitucional pode haver na referida lei nordm 11105 Se na CF inicialmente se previne e se defende o caraacuteter inviolaacutevel do direito agrave vida nenhuma lei poderaacute justificar e per-mitir posteriormente o que se supocircs agrave natildeo observaccedilatildeo da lei magna ou poderaacute sem ser inconstitu-cional 11 Por moral se entende aqui a ciecircncia que decorre do estudo filosoacutefico acerca da boa e da maacute accedilatildeo humana Por moralidade se entende o caraacuteter ou valor moral positivo ou negativo de uma dada accedilatildeo humana Por imoral entende-se o caraacuteter de uma accedilatildeo humana que se reveste de va-lor moral negativo por depor contra agrave proacutepria natureza humana LALANDE A Vocabulaacuterio Teacutecnico e Criacutetico da Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 verbetes MoralMoralidade 12 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1700 A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criaccedilatildeo agrave imagem e semelhanccedila de Deus

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A dignidade se afirma da vida humana e natildeo de qualquer forma de vida E a humana eacute digna porque eacute vida em excelecircncia Este valor eacute a liberdade que eacute per-feiccedilatildeo proacutepria do ser do homem Nela se fundamenta a afirmaccedilatildeo da dignidade da vida do homem Quando se pensa em dignidade subjaz a liberdade13 A digni-dade da vida humana tem seu fundamento na liberdade que eacute perfeiccedilatildeo proacutepria do homem

A dignidade natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute Natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo pois o intelecto elabora este conceito ao abstrair14 nele mesmo de modo univer-sal e comum aquela perfeiccedilatildeo que ele considerou na realidade de muitos indiviacute-duos humanos Natildeo eacute invenccedilatildeo da feacute pois o que afirma a verdade de feacute acerca do homem supotildee existindo a natureza do homem15

O conceito de dignidade natildeo eacute mentira do intelecto nem conceito vazio de conteuacutedo ocircntico Natildeo eacute mentira porque eacute verdadeiro pois se adequa16 entre o que o intelecto produz nele mesmo e o que existe na natureza individual humana Natildeo eacute vazio porque eacute pleno de conteuacutedo jaacute que tem seu fundamento real nal-

13 Entende-se aqui liberdade desde um ponto devista metafiacutesico e originaacuterio de outras concep-ccedilotildees de que dela se podem fazer ulteriormente Metafisicamente falando liberdade eacute o princiacute-pio absoluto e incondicional de si mesmo na medida em que por este princiacutepio eacute capacitado habitualmente a ser senhor de suas accedilotildees Esta perspectiva se pauta na visatildeo aristoteacutelica ARIS-

TOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III 5 1113 b 10 e se amplia na tomista na medida em que a liber-dade embora seja capacidade que emana ao modo de haacutebito de um princiacutepio constituinte e necessaacuterio da natureza humana se realiza e opera livremente e natildeo por necessidade concluin-do a liberdade embora nasccedila de um princiacutepio necessaacuterio da natureza se realiza para o bem da proacutepria natureza poreacutem como haacutebito que natildeo opera por necessidade TOMAacuteS DE AQUINO S S Th I q83 I-II q13 II Sent d24 q1 a2 De Ver q22 De Malo q6 14 TOMAacuteS DE AQUINO S C G 1 44 15 Jaacute se tem dito que feacute e razatildeo caminham juntas JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio Introduccedilatildeo A Feacute e a razatildeo satildeo como as duas asas que o espiacuterito humano se eleva agrave contemplaccedilatildeo da verdade Foi Deus quem semeou no coraccedilatildeo humano o desejo de conhecer a verdade e finalmente de conhececirc-LO para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave plena verdade sobre si mesmo Por isso nenhuma verdade de feacute seraacute por Deus revelada ao homem para o bem de sua natureza se tal revelaccedilatildeo natildeo supor a existecircncia daquilo para o qual tal revelaccedilatildeo se realiza Eacute pautado nisso que os antigos afirmaram que a graccedila revelada ao homem supotildee a natureza do homem pois a graccedila ao ser revelada natildeo a destroacutei nem a inventa senatildeo que a supotildee e a aperfeiccediloa TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q1 a8 ad2 Portanto quando pela feacute se diz que a vida humana eacute digna por expressar em sua natureza alguma perfeiccedilatildeo divina a modo de imagem e semelhanccedila a feacute natildeo contraria a razatildeo pois supotildee que exista na natureza individual de cada homem algum princiacutepio sobre o qual se fundamenta tal afirmaccedilatildeo 16 TOMAacuteS DE AQUINO S De veritate q1 a1c

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gum princiacutepio da proacutepria estrutura metafiacutesica humana Para estabelecer o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana nosso estudo se dividiraacute em trecircs partes

I Fundamento metafiacutesico liberdade

O fundamento metafiacutesico da dignidade humana se encontra na proacutepria natureza racional humana este fundamento eacute a liberdade hu-mana a liberdade eacute perfeiccedilatildeo perfectiacutevel da natureza humana per-feiccedilatildeo perfectiacutevel eacute a que se realiza aperfeiccediloando-se eacute na auto-realizaccedilatildeo da perfeiccedilatildeo que reside a nobreza e excelecircncia humana nenhum outro ser corpoacutereo eacute capaz de auto-realizar-se e aperfeiccedilo-ar-se tendo consciecircncia e responsabilidade sobre os seus atos a li-berdade nasce da razatildeo se manifesta na vondade e se realiza na atua-ccedilatildeo A liberdade eacute a capacidade que torna o homem senhor e res-ponsaacutevel por sua accedilatildeo

II Fundamento moral responsabilidade

O homem eacute o senhor de suas accedilotildees eacute senhor pela liberdade eacute res-ponsaacutevel por suas accedilotildees e eacute no efetivo exerciacutecio de sua responsabili-dade moral que a sua liberdade se manifesta e se realiza plenamente Se a liberdade eacute o fundamento da dignidade a dignidade somente se realiza plenamente atraveacutes do efetivo exerciacutecio da responsabilidade mo-ral enquanto isso aperfeiccediloa a natureza livre Pela respondabilidade moral a pessoa humana eacute apta a adquirir virtudes e ser feliz Natildeo enquanto a felicidade seja a conquista de uma boa vida em qualida-de de vida mas tambeacutem de uma vida boa de vida com qualidade Deste modo apoacutes identificar o fundamento da dignidade na liber-dade se evidencia agora que tal fundamento se manifesta e se reali-za no exerciacutecio pleno da responsabilidade moral

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A pessoa humana foi a uacutenica criatura que Deus quis por si mesma e por isso a criou agrave sua imagem e semelhanccedila sendo isso mesmo o fundamento teoloacutegico da dignidade da vida humana E porque a verdade de feacute natildeo se opotildee agrave verdade da razatildeo o que se afirma co-mo verdade da razatildeo na metafiacutesica encontra a sua justificaccedilatildeo no

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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(b) pseudo-cientiacuteficos [pois natildeo informam claramente acerca do perigo que tais pesquisas podem trazer para a seguranccedila da vida e sauacutede humanas8 natildeo comprovam se sua eficaacutecia e viabilidade satildeo me-lhores do que a utilizaccedilatildeo de ceacutelulas-tronco adultas]

(c) preconceituosos [pois denominam retroacutegados medievais natildeo cientiacute-ficos e fundamentalistas religiosos9 todos os que se dizem a fa-vor do respeito agrave vida humana em qualquer etapa e contra a ma-nipulaccedilatildeo da vida embrionaacuteria para tais fins]

(d) iliacutecitos [pois nem a Constituiccedilatildeo Federal que no Art 5ordm decreta a inviolabilidade do direito agrave vida nem o Coacutedigo Penal que no Art 121 qualifica de homiciacutedio simples matar algueacutem culposo no Art 122 II com aumento de pena se a viacutetima eacute menor ou tem diminuiacuteda por qualquer causa a capacidade de resistecircncia

am-param legalmente tal aborgadem10]

transformaccedilatildeo e alguns ecircxitos de caraacuteter bastante preliminar foram relatados recentemente Entretanto a regeneraccedilatildeo terapecircutica por meio da desdiferenciaccedilatildeo ainda estaacute muito distante de ser realidade e provavelmente viraacute de uma compreensatildeo muito mais profunda das proacuteprias ceacutelulas-tronco tanto adultas como embrionaacuterias e de sua qualidade de tronco LANZA R Ceacutelulas-tronco obstaacuteculos no caminho que leva da promessa terapecircutica aos tratamentos

reais em seres humanos Scientific American Brasil Ediccedilatildeo nordm 26 -julho de 2004 8 Fulvio Mastropaolo destaca certeiramente que a toleracircncia de uma atividade que natildeo tenha o caraacuteter de risco descrito mesmo que de forma geneacuterica que prejudique a vida ou a sauacutede do homem mesmo a de um uacutenico homem eacute inadmissiacutevel MASTROPAOLO F A bioeacutetica do embriatildeo Satildeo Paulo Edusc 1999 p 22 9 PEREIRA LV A ameaccedila da bioseguranccedila Galileu Ediccedilatildeo 152 -marccedilo de 2004 ver em httprevistagalileuglobocomGalileu06993ECT688101-172600html 10 O que declara a Lei de Biosseguranccedila [lei nordm 11105] da CTNBio no que se refere ao direito agrave vida defendido na CF Art 5ordm eacute inconstitucional porque natildeo encontra amparo legal consti-tucional e penal De fato esta lei surge de uma maacute interpretaccedilatildeo do que se afirma acerca do direito agrave vida na CF pois o Art 5ordm natildeo deixa de fora de sua interpretaccedilatildeo e previsatildeo a inviola-bilidade da vida humana em qualquer etapa seja seu iniacutecio ou seu desenvolvimento e portanto na forma de lei ela se aplica

e deveria ter sido aplicada

nalgum momento agrave vida dos em-briotildees humanos que foram produzidos por fertilizaccedilatildeo in vitro e natildeo utilizados no respectivo procedimento e esta aplicaccedilatildeo eacute vaacutelida mesmo agora porque sua aplicaccedilatildeo eacute retroativa agrave vio-laccedilatildeo originaacuteria e eacute eficaz na forma de puniccedilatildeo mesmo agora em que o material geneacutetico de embriotildees congelados por natildeo terem sido utilizados no respectivo procedimento tendo sido disposto sob o amparo da lei de biosseguranccedila para ser utilizado na pesquisa de ceacutelulas-tronco embrionaacuterias Ningueacutem duvida de que se fosse observado e respeitado o curso proacuteprio e natu-ral da fecundaccedilatildeo humana e se natildeo fossem congelados tais embriotildees a partir deles se gerariam seres humanos e neles se manifestariam a vida humana pois o que fora fecundado in vitro natildeo

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(e) e imorais [pois depotildee objetiva e claramente contra a moralidade humana11 contra a liberdade e a responsabilidade moral do ho-mem que deve respeitar o outro independente da raccedila cor tempo de vida situaccedilatildeo social financeira etc]

Com suas exposiccedilotildees se colocam contra

1 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela metafiacutesica enquanto a fundamenta em coerecircncia com as verdades da razatildeo nal-gum princiacutepio metafiacutesico constitutivo da natureza do ser humano

2 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela religiatildeo en-quanto a fundamenta em coerecircncia com as verdade de feacute no magisteacute-rio em que se estabelece que a vida humana eacute digna por ser vida queri-da por Deus e na revelaccedilatildeo em que se estabelce que o homem foi cria-do agrave imagem e semelhanccedila de Deus12

Intenccedilatildeo

Todas as dificuldades acima apontadas exigem que se considere o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana Estatuto que fundamenta a dignidade da vida humana que edifique a natureza humana e que defina cada indiviacuteduo de natureza racional como pessoa humana

era material geneacutetico de outra espeacutecie que natildeo da humana portanto era previsto que se geras-sem deste material geneacutetico seres humanos e natildeo ratos pois era material geneacutetico proacuteprio para a geraccedilatildeo do homem Portanto minha ignoracircncia em mateacuteria juriacutedica natildeo anula o senso criacutetico de que algo de inconstitucional pode haver na referida lei nordm 11105 Se na CF inicialmente se previne e se defende o caraacuteter inviolaacutevel do direito agrave vida nenhuma lei poderaacute justificar e per-mitir posteriormente o que se supocircs agrave natildeo observaccedilatildeo da lei magna ou poderaacute sem ser inconstitu-cional 11 Por moral se entende aqui a ciecircncia que decorre do estudo filosoacutefico acerca da boa e da maacute accedilatildeo humana Por moralidade se entende o caraacuteter ou valor moral positivo ou negativo de uma dada accedilatildeo humana Por imoral entende-se o caraacuteter de uma accedilatildeo humana que se reveste de va-lor moral negativo por depor contra agrave proacutepria natureza humana LALANDE A Vocabulaacuterio Teacutecnico e Criacutetico da Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 verbetes MoralMoralidade 12 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1700 A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criaccedilatildeo agrave imagem e semelhanccedila de Deus

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A dignidade se afirma da vida humana e natildeo de qualquer forma de vida E a humana eacute digna porque eacute vida em excelecircncia Este valor eacute a liberdade que eacute per-feiccedilatildeo proacutepria do ser do homem Nela se fundamenta a afirmaccedilatildeo da dignidade da vida do homem Quando se pensa em dignidade subjaz a liberdade13 A digni-dade da vida humana tem seu fundamento na liberdade que eacute perfeiccedilatildeo proacutepria do homem

A dignidade natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute Natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo pois o intelecto elabora este conceito ao abstrair14 nele mesmo de modo univer-sal e comum aquela perfeiccedilatildeo que ele considerou na realidade de muitos indiviacute-duos humanos Natildeo eacute invenccedilatildeo da feacute pois o que afirma a verdade de feacute acerca do homem supotildee existindo a natureza do homem15

O conceito de dignidade natildeo eacute mentira do intelecto nem conceito vazio de conteuacutedo ocircntico Natildeo eacute mentira porque eacute verdadeiro pois se adequa16 entre o que o intelecto produz nele mesmo e o que existe na natureza individual humana Natildeo eacute vazio porque eacute pleno de conteuacutedo jaacute que tem seu fundamento real nal-

13 Entende-se aqui liberdade desde um ponto devista metafiacutesico e originaacuterio de outras concep-ccedilotildees de que dela se podem fazer ulteriormente Metafisicamente falando liberdade eacute o princiacute-pio absoluto e incondicional de si mesmo na medida em que por este princiacutepio eacute capacitado habitualmente a ser senhor de suas accedilotildees Esta perspectiva se pauta na visatildeo aristoteacutelica ARIS-

TOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III 5 1113 b 10 e se amplia na tomista na medida em que a liber-dade embora seja capacidade que emana ao modo de haacutebito de um princiacutepio constituinte e necessaacuterio da natureza humana se realiza e opera livremente e natildeo por necessidade concluin-do a liberdade embora nasccedila de um princiacutepio necessaacuterio da natureza se realiza para o bem da proacutepria natureza poreacutem como haacutebito que natildeo opera por necessidade TOMAacuteS DE AQUINO S S Th I q83 I-II q13 II Sent d24 q1 a2 De Ver q22 De Malo q6 14 TOMAacuteS DE AQUINO S C G 1 44 15 Jaacute se tem dito que feacute e razatildeo caminham juntas JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio Introduccedilatildeo A Feacute e a razatildeo satildeo como as duas asas que o espiacuterito humano se eleva agrave contemplaccedilatildeo da verdade Foi Deus quem semeou no coraccedilatildeo humano o desejo de conhecer a verdade e finalmente de conhececirc-LO para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave plena verdade sobre si mesmo Por isso nenhuma verdade de feacute seraacute por Deus revelada ao homem para o bem de sua natureza se tal revelaccedilatildeo natildeo supor a existecircncia daquilo para o qual tal revelaccedilatildeo se realiza Eacute pautado nisso que os antigos afirmaram que a graccedila revelada ao homem supotildee a natureza do homem pois a graccedila ao ser revelada natildeo a destroacutei nem a inventa senatildeo que a supotildee e a aperfeiccediloa TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q1 a8 ad2 Portanto quando pela feacute se diz que a vida humana eacute digna por expressar em sua natureza alguma perfeiccedilatildeo divina a modo de imagem e semelhanccedila a feacute natildeo contraria a razatildeo pois supotildee que exista na natureza individual de cada homem algum princiacutepio sobre o qual se fundamenta tal afirmaccedilatildeo 16 TOMAacuteS DE AQUINO S De veritate q1 a1c

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gum princiacutepio da proacutepria estrutura metafiacutesica humana Para estabelecer o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana nosso estudo se dividiraacute em trecircs partes

I Fundamento metafiacutesico liberdade

O fundamento metafiacutesico da dignidade humana se encontra na proacutepria natureza racional humana este fundamento eacute a liberdade hu-mana a liberdade eacute perfeiccedilatildeo perfectiacutevel da natureza humana per-feiccedilatildeo perfectiacutevel eacute a que se realiza aperfeiccediloando-se eacute na auto-realizaccedilatildeo da perfeiccedilatildeo que reside a nobreza e excelecircncia humana nenhum outro ser corpoacutereo eacute capaz de auto-realizar-se e aperfeiccedilo-ar-se tendo consciecircncia e responsabilidade sobre os seus atos a li-berdade nasce da razatildeo se manifesta na vondade e se realiza na atua-ccedilatildeo A liberdade eacute a capacidade que torna o homem senhor e res-ponsaacutevel por sua accedilatildeo

II Fundamento moral responsabilidade

O homem eacute o senhor de suas accedilotildees eacute senhor pela liberdade eacute res-ponsaacutevel por suas accedilotildees e eacute no efetivo exerciacutecio de sua responsabili-dade moral que a sua liberdade se manifesta e se realiza plenamente Se a liberdade eacute o fundamento da dignidade a dignidade somente se realiza plenamente atraveacutes do efetivo exerciacutecio da responsabilidade mo-ral enquanto isso aperfeiccediloa a natureza livre Pela respondabilidade moral a pessoa humana eacute apta a adquirir virtudes e ser feliz Natildeo enquanto a felicidade seja a conquista de uma boa vida em qualida-de de vida mas tambeacutem de uma vida boa de vida com qualidade Deste modo apoacutes identificar o fundamento da dignidade na liber-dade se evidencia agora que tal fundamento se manifesta e se reali-za no exerciacutecio pleno da responsabilidade moral

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A pessoa humana foi a uacutenica criatura que Deus quis por si mesma e por isso a criou agrave sua imagem e semelhanccedila sendo isso mesmo o fundamento teoloacutegico da dignidade da vida humana E porque a verdade de feacute natildeo se opotildee agrave verdade da razatildeo o que se afirma co-mo verdade da razatildeo na metafiacutesica encontra a sua justificaccedilatildeo no

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 4: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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(e) e imorais [pois depotildee objetiva e claramente contra a moralidade humana11 contra a liberdade e a responsabilidade moral do ho-mem que deve respeitar o outro independente da raccedila cor tempo de vida situaccedilatildeo social financeira etc]

Com suas exposiccedilotildees se colocam contra

1 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela metafiacutesica enquanto a fundamenta em coerecircncia com as verdades da razatildeo nal-gum princiacutepio metafiacutesico constitutivo da natureza do ser humano

2 agrave afirmaccedilatildeo da dignidade da vida humana defendida pela religiatildeo en-quanto a fundamenta em coerecircncia com as verdade de feacute no magisteacute-rio em que se estabelece que a vida humana eacute digna por ser vida queri-da por Deus e na revelaccedilatildeo em que se estabelce que o homem foi cria-do agrave imagem e semelhanccedila de Deus12

Intenccedilatildeo

Todas as dificuldades acima apontadas exigem que se considere o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana Estatuto que fundamenta a dignidade da vida humana que edifique a natureza humana e que defina cada indiviacuteduo de natureza racional como pessoa humana

era material geneacutetico de outra espeacutecie que natildeo da humana portanto era previsto que se geras-sem deste material geneacutetico seres humanos e natildeo ratos pois era material geneacutetico proacuteprio para a geraccedilatildeo do homem Portanto minha ignoracircncia em mateacuteria juriacutedica natildeo anula o senso criacutetico de que algo de inconstitucional pode haver na referida lei nordm 11105 Se na CF inicialmente se previne e se defende o caraacuteter inviolaacutevel do direito agrave vida nenhuma lei poderaacute justificar e per-mitir posteriormente o que se supocircs agrave natildeo observaccedilatildeo da lei magna ou poderaacute sem ser inconstitu-cional 11 Por moral se entende aqui a ciecircncia que decorre do estudo filosoacutefico acerca da boa e da maacute accedilatildeo humana Por moralidade se entende o caraacuteter ou valor moral positivo ou negativo de uma dada accedilatildeo humana Por imoral entende-se o caraacuteter de uma accedilatildeo humana que se reveste de va-lor moral negativo por depor contra agrave proacutepria natureza humana LALANDE A Vocabulaacuterio Teacutecnico e Criacutetico da Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 verbetes MoralMoralidade 12 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1700 A dignidade da pessoa humana se fundamenta em sua criaccedilatildeo agrave imagem e semelhanccedila de Deus

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A dignidade se afirma da vida humana e natildeo de qualquer forma de vida E a humana eacute digna porque eacute vida em excelecircncia Este valor eacute a liberdade que eacute per-feiccedilatildeo proacutepria do ser do homem Nela se fundamenta a afirmaccedilatildeo da dignidade da vida do homem Quando se pensa em dignidade subjaz a liberdade13 A digni-dade da vida humana tem seu fundamento na liberdade que eacute perfeiccedilatildeo proacutepria do homem

A dignidade natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute Natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo pois o intelecto elabora este conceito ao abstrair14 nele mesmo de modo univer-sal e comum aquela perfeiccedilatildeo que ele considerou na realidade de muitos indiviacute-duos humanos Natildeo eacute invenccedilatildeo da feacute pois o que afirma a verdade de feacute acerca do homem supotildee existindo a natureza do homem15

O conceito de dignidade natildeo eacute mentira do intelecto nem conceito vazio de conteuacutedo ocircntico Natildeo eacute mentira porque eacute verdadeiro pois se adequa16 entre o que o intelecto produz nele mesmo e o que existe na natureza individual humana Natildeo eacute vazio porque eacute pleno de conteuacutedo jaacute que tem seu fundamento real nal-

13 Entende-se aqui liberdade desde um ponto devista metafiacutesico e originaacuterio de outras concep-ccedilotildees de que dela se podem fazer ulteriormente Metafisicamente falando liberdade eacute o princiacute-pio absoluto e incondicional de si mesmo na medida em que por este princiacutepio eacute capacitado habitualmente a ser senhor de suas accedilotildees Esta perspectiva se pauta na visatildeo aristoteacutelica ARIS-

TOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III 5 1113 b 10 e se amplia na tomista na medida em que a liber-dade embora seja capacidade que emana ao modo de haacutebito de um princiacutepio constituinte e necessaacuterio da natureza humana se realiza e opera livremente e natildeo por necessidade concluin-do a liberdade embora nasccedila de um princiacutepio necessaacuterio da natureza se realiza para o bem da proacutepria natureza poreacutem como haacutebito que natildeo opera por necessidade TOMAacuteS DE AQUINO S S Th I q83 I-II q13 II Sent d24 q1 a2 De Ver q22 De Malo q6 14 TOMAacuteS DE AQUINO S C G 1 44 15 Jaacute se tem dito que feacute e razatildeo caminham juntas JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio Introduccedilatildeo A Feacute e a razatildeo satildeo como as duas asas que o espiacuterito humano se eleva agrave contemplaccedilatildeo da verdade Foi Deus quem semeou no coraccedilatildeo humano o desejo de conhecer a verdade e finalmente de conhececirc-LO para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave plena verdade sobre si mesmo Por isso nenhuma verdade de feacute seraacute por Deus revelada ao homem para o bem de sua natureza se tal revelaccedilatildeo natildeo supor a existecircncia daquilo para o qual tal revelaccedilatildeo se realiza Eacute pautado nisso que os antigos afirmaram que a graccedila revelada ao homem supotildee a natureza do homem pois a graccedila ao ser revelada natildeo a destroacutei nem a inventa senatildeo que a supotildee e a aperfeiccediloa TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q1 a8 ad2 Portanto quando pela feacute se diz que a vida humana eacute digna por expressar em sua natureza alguma perfeiccedilatildeo divina a modo de imagem e semelhanccedila a feacute natildeo contraria a razatildeo pois supotildee que exista na natureza individual de cada homem algum princiacutepio sobre o qual se fundamenta tal afirmaccedilatildeo 16 TOMAacuteS DE AQUINO S De veritate q1 a1c

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gum princiacutepio da proacutepria estrutura metafiacutesica humana Para estabelecer o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana nosso estudo se dividiraacute em trecircs partes

I Fundamento metafiacutesico liberdade

O fundamento metafiacutesico da dignidade humana se encontra na proacutepria natureza racional humana este fundamento eacute a liberdade hu-mana a liberdade eacute perfeiccedilatildeo perfectiacutevel da natureza humana per-feiccedilatildeo perfectiacutevel eacute a que se realiza aperfeiccediloando-se eacute na auto-realizaccedilatildeo da perfeiccedilatildeo que reside a nobreza e excelecircncia humana nenhum outro ser corpoacutereo eacute capaz de auto-realizar-se e aperfeiccedilo-ar-se tendo consciecircncia e responsabilidade sobre os seus atos a li-berdade nasce da razatildeo se manifesta na vondade e se realiza na atua-ccedilatildeo A liberdade eacute a capacidade que torna o homem senhor e res-ponsaacutevel por sua accedilatildeo

II Fundamento moral responsabilidade

O homem eacute o senhor de suas accedilotildees eacute senhor pela liberdade eacute res-ponsaacutevel por suas accedilotildees e eacute no efetivo exerciacutecio de sua responsabili-dade moral que a sua liberdade se manifesta e se realiza plenamente Se a liberdade eacute o fundamento da dignidade a dignidade somente se realiza plenamente atraveacutes do efetivo exerciacutecio da responsabilidade mo-ral enquanto isso aperfeiccediloa a natureza livre Pela respondabilidade moral a pessoa humana eacute apta a adquirir virtudes e ser feliz Natildeo enquanto a felicidade seja a conquista de uma boa vida em qualida-de de vida mas tambeacutem de uma vida boa de vida com qualidade Deste modo apoacutes identificar o fundamento da dignidade na liber-dade se evidencia agora que tal fundamento se manifesta e se reali-za no exerciacutecio pleno da responsabilidade moral

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A pessoa humana foi a uacutenica criatura que Deus quis por si mesma e por isso a criou agrave sua imagem e semelhanccedila sendo isso mesmo o fundamento teoloacutegico da dignidade da vida humana E porque a verdade de feacute natildeo se opotildee agrave verdade da razatildeo o que se afirma co-mo verdade da razatildeo na metafiacutesica encontra a sua justificaccedilatildeo no

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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A dignidade se afirma da vida humana e natildeo de qualquer forma de vida E a humana eacute digna porque eacute vida em excelecircncia Este valor eacute a liberdade que eacute per-feiccedilatildeo proacutepria do ser do homem Nela se fundamenta a afirmaccedilatildeo da dignidade da vida do homem Quando se pensa em dignidade subjaz a liberdade13 A digni-dade da vida humana tem seu fundamento na liberdade que eacute perfeiccedilatildeo proacutepria do homem

A dignidade natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo ou da feacute Natildeo eacute invenccedilatildeo da razatildeo pois o intelecto elabora este conceito ao abstrair14 nele mesmo de modo univer-sal e comum aquela perfeiccedilatildeo que ele considerou na realidade de muitos indiviacute-duos humanos Natildeo eacute invenccedilatildeo da feacute pois o que afirma a verdade de feacute acerca do homem supotildee existindo a natureza do homem15

O conceito de dignidade natildeo eacute mentira do intelecto nem conceito vazio de conteuacutedo ocircntico Natildeo eacute mentira porque eacute verdadeiro pois se adequa16 entre o que o intelecto produz nele mesmo e o que existe na natureza individual humana Natildeo eacute vazio porque eacute pleno de conteuacutedo jaacute que tem seu fundamento real nal-

13 Entende-se aqui liberdade desde um ponto devista metafiacutesico e originaacuterio de outras concep-ccedilotildees de que dela se podem fazer ulteriormente Metafisicamente falando liberdade eacute o princiacute-pio absoluto e incondicional de si mesmo na medida em que por este princiacutepio eacute capacitado habitualmente a ser senhor de suas accedilotildees Esta perspectiva se pauta na visatildeo aristoteacutelica ARIS-

TOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos III 5 1113 b 10 e se amplia na tomista na medida em que a liber-dade embora seja capacidade que emana ao modo de haacutebito de um princiacutepio constituinte e necessaacuterio da natureza humana se realiza e opera livremente e natildeo por necessidade concluin-do a liberdade embora nasccedila de um princiacutepio necessaacuterio da natureza se realiza para o bem da proacutepria natureza poreacutem como haacutebito que natildeo opera por necessidade TOMAacuteS DE AQUINO S S Th I q83 I-II q13 II Sent d24 q1 a2 De Ver q22 De Malo q6 14 TOMAacuteS DE AQUINO S C G 1 44 15 Jaacute se tem dito que feacute e razatildeo caminham juntas JOAtildeO PAULO II Fides et Ratio Introduccedilatildeo A Feacute e a razatildeo satildeo como as duas asas que o espiacuterito humano se eleva agrave contemplaccedilatildeo da verdade Foi Deus quem semeou no coraccedilatildeo humano o desejo de conhecer a verdade e finalmente de conhececirc-LO para que conhecendo-O e amando-O possa chegar tambeacutem agrave plena verdade sobre si mesmo Por isso nenhuma verdade de feacute seraacute por Deus revelada ao homem para o bem de sua natureza se tal revelaccedilatildeo natildeo supor a existecircncia daquilo para o qual tal revelaccedilatildeo se realiza Eacute pautado nisso que os antigos afirmaram que a graccedila revelada ao homem supotildee a natureza do homem pois a graccedila ao ser revelada natildeo a destroacutei nem a inventa senatildeo que a supotildee e a aperfeiccediloa TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q1 a8 ad2 Portanto quando pela feacute se diz que a vida humana eacute digna por expressar em sua natureza alguma perfeiccedilatildeo divina a modo de imagem e semelhanccedila a feacute natildeo contraria a razatildeo pois supotildee que exista na natureza individual de cada homem algum princiacutepio sobre o qual se fundamenta tal afirmaccedilatildeo 16 TOMAacuteS DE AQUINO S De veritate q1 a1c

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gum princiacutepio da proacutepria estrutura metafiacutesica humana Para estabelecer o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana nosso estudo se dividiraacute em trecircs partes

I Fundamento metafiacutesico liberdade

O fundamento metafiacutesico da dignidade humana se encontra na proacutepria natureza racional humana este fundamento eacute a liberdade hu-mana a liberdade eacute perfeiccedilatildeo perfectiacutevel da natureza humana per-feiccedilatildeo perfectiacutevel eacute a que se realiza aperfeiccediloando-se eacute na auto-realizaccedilatildeo da perfeiccedilatildeo que reside a nobreza e excelecircncia humana nenhum outro ser corpoacutereo eacute capaz de auto-realizar-se e aperfeiccedilo-ar-se tendo consciecircncia e responsabilidade sobre os seus atos a li-berdade nasce da razatildeo se manifesta na vondade e se realiza na atua-ccedilatildeo A liberdade eacute a capacidade que torna o homem senhor e res-ponsaacutevel por sua accedilatildeo

II Fundamento moral responsabilidade

O homem eacute o senhor de suas accedilotildees eacute senhor pela liberdade eacute res-ponsaacutevel por suas accedilotildees e eacute no efetivo exerciacutecio de sua responsabili-dade moral que a sua liberdade se manifesta e se realiza plenamente Se a liberdade eacute o fundamento da dignidade a dignidade somente se realiza plenamente atraveacutes do efetivo exerciacutecio da responsabilidade mo-ral enquanto isso aperfeiccediloa a natureza livre Pela respondabilidade moral a pessoa humana eacute apta a adquirir virtudes e ser feliz Natildeo enquanto a felicidade seja a conquista de uma boa vida em qualida-de de vida mas tambeacutem de uma vida boa de vida com qualidade Deste modo apoacutes identificar o fundamento da dignidade na liber-dade se evidencia agora que tal fundamento se manifesta e se reali-za no exerciacutecio pleno da responsabilidade moral

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A pessoa humana foi a uacutenica criatura que Deus quis por si mesma e por isso a criou agrave sua imagem e semelhanccedila sendo isso mesmo o fundamento teoloacutegico da dignidade da vida humana E porque a verdade de feacute natildeo se opotildee agrave verdade da razatildeo o que se afirma co-mo verdade da razatildeo na metafiacutesica encontra a sua justificaccedilatildeo no

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 6: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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gum princiacutepio da proacutepria estrutura metafiacutesica humana Para estabelecer o estatuto metafiacutesico da dignidade da vida humana nosso estudo se dividiraacute em trecircs partes

I Fundamento metafiacutesico liberdade

O fundamento metafiacutesico da dignidade humana se encontra na proacutepria natureza racional humana este fundamento eacute a liberdade hu-mana a liberdade eacute perfeiccedilatildeo perfectiacutevel da natureza humana per-feiccedilatildeo perfectiacutevel eacute a que se realiza aperfeiccediloando-se eacute na auto-realizaccedilatildeo da perfeiccedilatildeo que reside a nobreza e excelecircncia humana nenhum outro ser corpoacutereo eacute capaz de auto-realizar-se e aperfeiccedilo-ar-se tendo consciecircncia e responsabilidade sobre os seus atos a li-berdade nasce da razatildeo se manifesta na vondade e se realiza na atua-ccedilatildeo A liberdade eacute a capacidade que torna o homem senhor e res-ponsaacutevel por sua accedilatildeo

II Fundamento moral responsabilidade

O homem eacute o senhor de suas accedilotildees eacute senhor pela liberdade eacute res-ponsaacutevel por suas accedilotildees e eacute no efetivo exerciacutecio de sua responsabili-dade moral que a sua liberdade se manifesta e se realiza plenamente Se a liberdade eacute o fundamento da dignidade a dignidade somente se realiza plenamente atraveacutes do efetivo exerciacutecio da responsabilidade mo-ral enquanto isso aperfeiccediloa a natureza livre Pela respondabilidade moral a pessoa humana eacute apta a adquirir virtudes e ser feliz Natildeo enquanto a felicidade seja a conquista de uma boa vida em qualida-de de vida mas tambeacutem de uma vida boa de vida com qualidade Deste modo apoacutes identificar o fundamento da dignidade na liber-dade se evidencia agora que tal fundamento se manifesta e se reali-za no exerciacutecio pleno da responsabilidade moral

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A pessoa humana foi a uacutenica criatura que Deus quis por si mesma e por isso a criou agrave sua imagem e semelhanccedila sendo isso mesmo o fundamento teoloacutegico da dignidade da vida humana E porque a verdade de feacute natildeo se opotildee agrave verdade da razatildeo o que se afirma co-mo verdade da razatildeo na metafiacutesica encontra a sua justificaccedilatildeo no

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 7: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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que se revela como verdade de feacute na teologia Deste modo conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

I Fundamento metafiacutesico a liberdade

Para qualquer direccedilatildeo que movamos nossa atenccedilatildeo percebemos que haacute no mundo uma evidecircncia cada ser atua conforme a sua natureza e por meio de sua atuaccedilatildeo busca realizar o melhor para sua proacutepria natureza E natildeo somente as naturezas viventes senatildeo todas17 A diferenccedila eacute que as viventes interagem com o meio e maxima-mente a humana que tem consciecircncia disso18 E por mais que queiramos modifi-car a natureza de cada um destes seres na medida em que propomos um novo modo de atuaccedilatildeo e operaccedilatildeo natildeo conseguiremos e conseguiacutessemos destruiriacutea-mos parcial ou completamente a proacutepria natureza19

Se lanccedilarmos uma pedra mil vezes para cima mil vezes ela cairaacute e por mais que queiramos modificar isso natildeo conseguiremos porque estaacute inscrito co-mo princiacutepio em sua natureza que caia estando sob certas condiccedilotildees e que natildeo caia estando sob outras20 Por mais que queiramos imprimir na natureza da pedra

17 Por natureza entende-se aqui o sentido metafiacutesico de princiacutepio estrutural de algum ser ou sua substacircncia essecircncia pelo qual o ser eacute ser ser natildeo-vivo elementar mineral vivo vivo micros-coacutepico unicelular pluricelular vegetal animal ou humano 18 Por consciecircncia se entende aqui a possibilidade de dar atenccedilatildeo aos proacuteprios modos de ser e agraves proacuteprias accedilotildees bem como de exprimi-los com a linguagem Eacute o que fundamenta as noccedilotildees de consciecircncia psicoloacutegica epistemoloacutegica e moral ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete consciecircncia 19 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] 20 Aristoacuteteles atenta para o fato de que nada que existe em noacutes por natureza pode ser alterado pelo haacutebitoa pedra que por natureza se move para baixo natildeo pode ser habituada a mover-se para cima ainda que algueacutem tente habituaacute-la jogando-a dez mil vezes para cima Embora co-nheccedilamos a experiecircncia de que na Lua a pedra natildeo cai mas sobe permanece verdadeira a teo-ria aristoteacutelica de que nem o haacutebito nem a mudanccedila das circunstacircncias externas agrave natureza mineral da pedra que atua conjuntamente com ela poderaacute modificar essencialmente a natureza da mesma pois se a modificar a destruiria e a pedra embora permanecesse mineral natildeo seria mais desta especiacutefica natureza ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmacos II 1 1103a-1103b A Fiacutesica contemporacircnea pautada na lei da gravidade que se aplica a todos os corpos explica este fe-nocircmeno natural segundo a atraccedilatildeo entre objetos devido agraves suas massas Quaisquer dois corpos

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 8: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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um haacutebito ou circunstacircncia que atue interna ou externamente sobre ela que a faccedila atuar diferente do modo como ela estaacute ordenada a atuar por sua natureza natildeo conseguiremos sem destruiacute-la ou gerar uma outra nova21

Mesmo na natureza dos seres vivos microscoacutepicos encontramos uma or-dem de accedilatildeo e operaccedilatildeo que seguem agrave sua estrutura geneacutetica e que visam a reali-zaccedilatildeo de suas respectivas naturezas Incluiacutedos no reino Monera os viacuterus esta categoria especial de microorganismos parasitos intracelulares estatildeo reduzidos a um filamento simples ou duplo de material geneacutetico mas que interagem com o hospedeiro segundo a sua estrutura geneacutetica de um modo em que a sua accedilatildeo realize a sua estrutura natural Os microorganismos procariotas por exemplo as bacteacuterias possuem uma estrutura e ordem internas22 e interagem com os seres vivos na medida em que por meio desta atuaccedilatildeo realizam o que eacute melhor para a sua estrutura

E o mesmo se aplica agrave natureza vegetal pois seja qual for a espeacutecie vegetal em questatildeo todas operam enquanto buscam realizar do melhor modo possiacutevel o bem de suas naturezas Observemos por exemplo a samambaia num canto de uma aacuterea onde pela manhatilde somente uma parte de seus ramos eacute iluminada pela luz do Sol ela buscaraacute por meio de sua operaccedilatildeo o que seja melhor para si obe-decendo como que a um princiacutepio que a ordena internamente a buscar um bem para a sua natureza Perceberemos que por uma espeacutecie de comum acordo to-dos os seus ramos isentos da luz solar naquele canto da aacuterea de uma casa tende-ratildeo a ordenar-se agrave parte em que a luz do Sol se faz presente mais intensamente e durante mais tempo Com isso se patenteia que mesmo as plantas buscam o que eacute melhor para si mediante as operaccedilotildees proacuteprias de sua natureza como seja nes-te caso de vida vegetativa da samambaia o crescer reproduzir e morrer23

no universo ataem-se mutuamente com uma forccedila que eacute diretamente proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distacircncia entre elas 21 Augusto Comte denominaraacute liberdade este proceder segundo a natureza COMTE A Catecismo Positivista Coleccedilatildeo Pensadores Satildeo Paulo Abril 1973 4ordf Conversa Quando um corpo cai a sua liberdade manifesta-se ao proceder segundo a sua natureza para o centro da Terra Natildeo parece o nome mais adequado para o procedimento da natureza em tais seres senatildeo para o princiacutepio de atuaccedilatildeo humana 22 REY L Dicionaacuterio de termos teacutecnicos de Medicina e Sauacutede Segunda Ediccedilatildeo Rio de Janeiro Guana-bara Koogan 2003 verbete bacteacuteria 23 FAITANIN P Felicidade o precircmio das virtudes Aquinate nordm1 (2005) pp 92-108 [wwwaquinatenet] Assim sendo pelo haacutebito natildeo se poderaacute fazer com que qualquer natureza vegetal deixe de operar conforme a sua natureza Assim pois pelo haacutebito cientiacutefico natildeo se po-deraacute fazer com que uma natureza por exemplo a da mangueira produza bananas pois se vier acontecer isso jaacute natildeo seria nem mangueira nem bananeira Daiacute que a mangueira produz man-

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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De um modo ainda mais evidente podemos perceber isso na natureza a-

nimal dos seres vivos dotados de sensibilidade e de uma estrutura neural mais complexa O instinto eacute para eles esta forccedila que os impele a agir na medida em que buscam realizar o que eacute melhor para a sua natureza24 O instinto eacute esta forccedila estaacutevel de origem orgacircnica determinada no animal que o direciona agrave conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e da espeacutecie O instinto natildeo eacute uma tendecircncia pois o instinto eacute bio-loacutegico e a tendecircncia eacute impulso habitual e constante para a accedilatildeo O instinto natildeo eacute impulso pois o instinto eacute estaacutevel e permanente e o impulso eacute suacutebito e temporaacute-rio embora possa se estruturar de modo habitual e constante para a accedilatildeo

Assim pois a abelha faz o mel como sempre o fez a aranha tece a teia como sempre a teceu o leatildeo caccedila a zebra como sempre o fez mas o homem sem deixar de ser homem sempre mais eacute capaz de aperfeiccediloar a sua atuaccedilatildeo25 A evoluccedilatildeo nos evidencia isso Mas se observarmos um ser humano veremos que haacute nele uma tendecircncia natural de agir conforme um fim que seja um bem para a sua natureza Esta tendecircncia

diante das diversidades

difere o homem dos demais seres e o permite por si mesmo aperfeiccediloar a sua proacutepria natureza26

gas e a bananeira bananas Se por ventura por algum processo transgecircnico vier a ser formado um hiacutebrido especiacutefico de manganana um fruto com a textura de manga e o sabor de banana jaacute natildeo seraacute a natureza de manga ou de banana mas uma nova que segue seus princiacutepios natu-rais de tal maneira

se isso for possiacutevel

que natildeo poderemos esperar dela a produccedilatildeo de mangas ou bananas senatildeo de mangananas 24 Metafisicamente falando o instinto eacute a forccedila que assegura a concordacircncia entre a conduta animal e a ordem do universo e cientificamente falando o instinto eacute um tipo de disposiccedilatildeo bioloacutegica ABBAGNANO N Dicionaacuterio de Filosofia Satildeo Paulo Martins Fontes 2000 verbete instinto 25 Natildeo se nega certa evoluccedilatildeo dos instintos dos animais O que se constata eacute que a evoluccedilatildeo eacute adaptaccedilatildeo ao meio O instinto natildeo se tornou pensamento embora alguns tenham se valido desta palavra para assegurar a evoluccedilatildeo dos instintos nos animais JUumlRGENS U Neural pa-thways underlying vocal control Neuroscience and Biobehavioral Review nordm26 (2002) p 235 FITCH WT The evolution of speech a comparative review Trends in Cognitive Sciences nordm4 (2000) p 258 LEBLANC PO Las neuronas de espejo y la origen del lenguaje Divergencias

Revista de Estudios Linguumliacutesticos y Literarias vol 2 nordm1 27-41 26 Charles Darwin ao teacutermino do seu Origem das Espeacutecies entende que esta capacidade ou ten-decircncia surge da batalha natural da luta contra a fome e a morte e uma vez na posse disso o indiviacuteduo se torna superior DARWIN C Origen das Espeacutecies Rio de Janeiro Villa Rica 1994 p 352 Natildeo opinamos que esta tendecircncia proacutepria do homem seja o resultado desta batalha natu-ral poreacutem um princiacutepio ocircntico inato ao homem e anterior ao proacuteprio embate natural mas que soacute se manifesta nele que se aperfeiccediloa nele poreacutem natildeo tem a sua origem dele Portanto a ten-decircncia humana que o difere dos demais animais natildeo eacute o resultado de uma superaccedilatildeo mediante

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 10: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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De fato o ser humano eacute o uacutenico ser que eacute capaz de natildeo somente aperfei-ccediloar mas tambeacutem destruir a sua proacutepria natureza por sua atuaccedilatildeo Natildeo obstan-te mesmo quando age mal contra a proacutepria natureza pensa

ainda que equivo-

cadamente

realizar algum bem para si Isso corrobora a claacutessica ideacuteia de que o

mal natildeo constitui em si uma natureza senatildeo que eacute ele mesmo certa privaccedilatildeo de alguma perfeiccedilatildeo ou de algum bem da natureza27 De fato dentre os animais o homem eacute o uacutenico animal que com fome natildeo come ou que come sem fome que com sono natildeo dorme ou que dorme sem sono ou mesmo que acorda com so-no que natildeo realiza o bem que deseja senatildeo o mal que natildeo deseja que eacute capaz de ser livre e natildeo secirc-lo

Eacute pois a liberdade no homem que o difere substancialmente dos demais se-res A liberdade eacute a capacidade que o homem tem de ser senhor de suas proacuteprias accedilotildees28 A liberdade eacute um haacutebito oriundo de um apetite intelectual racional que o impele agrave busca da verdade e do bem na escolha Esta capacidade emana da razatildeo [porque eacute haacutebito e forccedila oriunda do apetite intelectual de buscar a verdade pela escolha livre] se manifesta pela vontade [porque eacute ato e perfeiccedilatildeo determinante da potecircncia da vontade de querer o bem pela escolha livre] que se exige a e se realiza na escolha [porque eacute ato que realiza o apetite intelectual da verdade e atualiza a potecircncia volitiva do bem] O homem mediante esta capacidade pode querer e natildeo querer fazer e natildeo fazer E a razatildeo disso estaacute no proacuteprio poder da razatildeo29 De todos modos eacute pela liberdade e eacute na liberdade que toda a atuaccedilatildeo humana se reveste de nobreza e excelecircncia

O que eacute a liberdade A liberdade eacute a excelecircncia da natureza humana Tal excelecircncia natildeo eacute adquirida porque eacute inata e original da natureza humana mas somente se realiza plenamente enquanto inserida no contexto pleno da realidade humana do seu pensar agir entender querer e amar A natureza humana ainda que natildeo comparada com nenhuma outra natureza ela seraacute digna em si mesma

a seleccedilatildeo natural mas eacute algo proacuteprio do homem que se emerge e se evidencia no interior do proacuteprio embate natural 27 Segundo Santo Agostinho o mal natildeo eacute propriamente uma natureza mas a corrupccedilatildeo dela Uma natureza maacute seria uma natureza corrompida mas natildeo seria maacute enquanto natureza e sim naquilo em que se degenerou AGOSTINHO S De Natura Boni cap 17 Para Tomaacutes de Aquino o mal eacute privaccedilatildeo de algum bem TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q18 a8 ad1 28 MONDIN B Dizionario Enciclopedico del pensiero di San Tommaso d A quino Bolgna Edizioni Stu-dio Domenicano 2000 p 63 29 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I-II q13 a6 c

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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justamente em razatildeo da posse deste bem que a torna capaz de sendo perfeita no que eacute aperfeiccediloar-se ainda mais pela operacionalidade deste haacutebito30

Por isso diz-se que a liberdade eacute o apanaacutegio da natureza humana Eacute o que excede de modo nobre tudo o que constitui o ser do homem e eacute o que transcen-de agrave proacutepria estrutura orgacircnica e instintiva do homem coroando-o com accedilotildees livres e tornando-o senhor de suas proacuteprias accedilotildees Esta excelecircncia se encontra presente de um modo real e virtual [em capacidade de operaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo] na natureza do homem desde a sua concepccedilatildeo E se laacute estaacute por ser princiacutepio me-tafiacutesico da natureza humana desde entatildeo se deve considerar a dignidade da vida humana embrionaacuteria

Em face desta excelecircncia que possui em sua natureza o ser humano eacute o uacutenico ser corpoacutereo que recebe um nome especial O nome pessoa eacute proacuteprio dos indiviacuteduos de natureza racional31 Mas o que eacute pessoa Podemos dizer num sen-tido amplo a partir da definiccedilatildeo proposta por Boeacutecio [pessoa eacute a substacircncia in-dividual de natureza racional] que pessoa eacute ser individual de natureza espiritual ou intelectual capaz de entender querer amar e ser livre32

A pessoa humana pode ser definida como ser individual de natureza racional en-quanto se entende a racionalidade como algo proacuteprio e pertencente agrave natureza humana Alguns com a intenccedilatildeo de negar ao embriatildeo o estatuto da dignidade humana chegam a estabelecer para natildeo dizer inventar uma nova categoria bioloacute-gica [estaacutegio de preacute-formaccedilatildeo embrionaacuteria] cuja nomenclatura aplicada eacute a de preacute-embriatildeo33 para indicar aquele periacuteodo da vida preacute-natal humana compreendida entre o momento da fecundaccedilatildeo e o aparecimento da linha primitiva34 Com rela-ccedilatildeo a isso ningueacutem duvidaraacute que ao embriatildeo humano natildeo convenha o nome pessoa pois desde a sua concepccedilatildeo laacute se encontra presente em sua natureza a liberdade pela qual se afirma a sua dignidade

30 Segundo Tomaacutes o haacutebito eacute uma disposiccedilatildeo segundo a qual algo eacute bem ou mal disposto Eacute o haacutebito que viabiliza a passagem da potecircncia da faculdade para o ato Sum Th I-II q49 a1 In IV Sent D4 q1 a1 31 TOMAacuteS DE AQUINO S De Pot q9 a1 ad2 32 Trato especialmente desta questatildeo no seguinte texto ainda ineacutedito FAITANIN P A acepccedilatildeo teoloacutegica de pessoa em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm2 (2006) no prelo 33 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute 93 (2001) 13-15 34 SGRECCIA E Manual de Bioeacutetica I

Fundamentos e Eacutetica Biomeacutedica Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998 p 348-349

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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O que eacute ser individual Por ser individual entendemos o ente portanto a substacircncia que eacute idecircntica a si mesma e distinta de qualquer outra35 Por natureza entendemos o princiacutepio de vida movimento e repouso do ser individual36 Este princiacutepio de vida e movimento no homem eacute a alma humana [natildeo se trata de uma questatildeo de utilizar qualquer conceito para expressar o que melhor expressa este cara e oportuna palavra que os antigos utilizaram para significar o princiacutepio da vida humana] que natildeo eacute produzida da mateacuteria pois eacute espiritual por ser criada diretamente e infusa imediatamente por Deus no corpo que a individua e por cujo ser no corpo a pessoa humana desenvolve-se e torna-se o que eacute37 E isso eacute tatildeo radical que a alma eacute mais perfeita quando unida ao corpo do que quando se separa dele E pessoa natildeo eacute nem a alma nem o corpo mas a uniatildeo atual e subs-tancial de corpo e alma

Entatildeo a pessoa eacute dinacircmica na medida em que sua perfeiccedilatildeo se estabelce a partir da iacutentegra relaccedilatildeo das potencialidades da alma e do corpo na dimensatildeo da vida teoacuterico-praacutetica de sua realidade pessoal-humana Os estudos cientiacuteficos com-provam o estatuto da identidade geneacutetica do embriatildeo humano desde a sua con-cepccedilatildeo o que corrobora a tese metafiacutesica da individuaccedilatildeo da pessoa humana a partir da mateacuteria quantificada38 Desde o instante39 da concepccedilatildeo o embriatildeo hu-

35 FAITANIN P El individuo em Tomaacutes de A quino Pamplona Cuadernos de Anuario Filosoacutefico nordm 138 2001 9-39 36 TOMAacuteS DE AQUINO S In V Met lec5 nordm 826 37 Sobre a criaccedilatildeo infusatildeo e individuaccedilatildeo da alma no corpo vejam FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) 109-149 38 Eis algumas referecircncias mais importantes segundo uma ordem cronoloacutegica In I Sent d 8 q 5 a 2 d 9 q 1 a 2 d 23 q 1 a 1 d 25 q 1 a 1 ad 3 ad 6 d 36 q 1 a 1 con De ent et ess cap 2 n 7 De nat mat cap 1 n 370 cap 2 n 375 cap 3 n 377 cap 4 n 379 n 380 n 383 n 385 n 389 cap 5 n 393 n 394 cap 6 n 398 De prin indiv n 426 n 428 In II Sent d 3 q 1 a 1 a 3 d 30 q 2 a 1 In III Sent d 1 q 2 a 5 ad 1 In IV Sent d 12 q 1 a 1 sol 3 ad 3 q 2 sol 4 d 44 q 1 a 1 q 2 a 2 sol 2 De Trinitate lec 1 q 4 a 2 C Gen 1 c 21 n 199 1 c 44 4 c 63 2 c 71 n 1480 4 c 65 n 4019-4020 4 c 81 n 4151 De Pot q 9 a 1 a 2 ad 1 Quodl 8 a 10 11 a 6 Sum Theo I q 3 a 2 ad 3 q 29 a 3 ad 4 q 54 a 3 ad 2 q 56 a 1 ad 2 q 76 a 4 a 6 De Anima a 9 De Spirit creat a 3 De Sub sep cap 7 n 77 Quodl 1 q 10 a 21 a 22 Com Theo cap 153 n 305 n 308 Sum Theo III q 77 a 2 39 O teacutermino da alteraccedilatildeo eacute a geraccedilatildeo (De Nat Mat c2 n374) e o da geraccedilatildeo eacute a introduccedilatildeo da forma substancial forma est vero finis generationis (Ibidem) A forma ao ser recebida na mateacuteria eacute individuada (De V er q28 a8 sc7) J Gredt tem razatildeo ao afirmar que a individuaccedilatildeo eacute o teacutermino da geraccedilatildeo (Elem A rist Thomis I Roma Herder 1961 p 315) Neste sentido a individuaccedilatildeo se daacute no instante (De Inst c3 n324) pois todo teacutermino do movimento se daacute no instante sem um instante antes e outro depois (In IV Sent d49 q3 a1 c ad3) portanto a individuaccedilatildeo que eacute o

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 13: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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mano tem vida humana e eacute ser individual Portanto se configura toda a sua indi-vidualidade desde o momento da fecundaccedilatildeo40

O que eacute ser racional Por racional se diz do que eacute relativo agrave razatildeo ao inte-lecto41 ou mesmo a manifestaccedilatildeo da capacidade do que possui a razatildeo Por razatildeo entendemos aquela potecircncia cognitiva42 proacutepria do homem pela qual o homem eacute capaz de conhecer Sendo o que de mais proacuteprio haacute no homem onde houver ser humano vivo em qualquer estaacutegio de vida que estiver dir-se-aacute vida racional Por racionalidade entendemos aquilo que eacute feito ou dito pela razatildeo de quem faz ou po-de fazer uso da faculdade proacutepria do homem o intelecto Por intelecto entendemos a faculdade proacutepria da alma espiritual43 mediante a qual o homem pode entender querer amar e ser livre

Trata-se pois de um equiacutevoco afirmar que o homem natildeo seja um ser ra-cional desde a concepccedilatildeo ateacute a senectude nalgum momento da vida humana Pois metafisicamente falando a racionalidade eacute condiccedilatildeo para a manifestaccedilatildeo de suas funccedilotildees inferiores sensitivas e vegetativas Mesmo no estado vegetativo per-sistente [caso em que se encontrava segundo alguns meacutedicos a Terri Schiavo] o indiviacuteduo de natureza humana eacute livre digno e pessoa humana Nunca seraacute algo coisa pois o fato de que natildeo se manifeste a racionalidade natildeo significa que dei-xou de tecirc-la jaacute que a racionalidade embora natildeo seja as funccedilotildees sensitivas e vege-tativas delas dependem para manifestar a sua potecircncia e capacidade proacuteprias

Nunca se dissocia racionalidade de vida no caso do homem pois a vida do homem eacute racional E ainda que uma pessoa natildeo manifeste objetiva claramente e conscientemente a racionalidade por natildeo conseguir por alguma desordem fun-cional orgacircnica isso natildeo significa que natildeo seja mais racional ou que natildeo tenha vida ou mesmo que jaacute natildeo seja digno ou que natildeo mereccedila viver Assim pois vida

teacutermino da geraccedilatildeo se daacute tambeacutem no instante jaacute que a mateacuteria individua a forma quando in-troduzida instantaneamente na mateacuteria (In III Sent d18 q1 a3 sol In IV Sent d11 q1 a3 B sol STh I q53 a3 sol I-II q113 a7 ad4-5 III q6 a4 sol q33 a1 sol q75 a3 sol) Disso decorre que a individuaccedilatildeo eacute instantacircnea O tomista Paulo Soncinas afirma o mesmo Quaestiones Metaphysicales acutissimae Lib VII q 33 p 168 40 Alguns textos jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 41 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q3 a5 c 42 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q5 a4 ad1 43 TOMAacuteS DE AQUINO S Sum Th I q76 a1 c

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

AQUINATE ndeg 2 2006 259

dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

AQUINATE ndeg 2 2006 261

var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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e racionalidade satildeo indissociaacuteveis no homem Embora a dimensatildeo racional de-penda do corpo e de sua funcionalidade orgacircnica para manifestar sua operaccedilatildeo E isso porque o homem eacute uma substacircncia dual ou seja que se compotildee de corpo e alma de tal maneira que a alma se aperfeiccediloa no corpo e o corpo na alma A liberdade humana excelecircncia da pessoa humana se manifesta e se desenvolve no exerciacutecio individual das accedilotildees da pessoa humana [na dimensatildeo psicoloacutegica e mo-ral do homem e consequumlentemente na dimensatildeo soacutecio-poliacutetico-religiosa de sua atuaccedilatildeo]

Mas o que eacute personalidade A personalidade eacute o lugar proacuteprio de manifes-taccedilatildeo da dimensatildeo dinacircmica do ser pessoal Denominaremos personalidade o modo pessoal que um ser individual de natureza racional realiza e manifesta seu com-portamento em sua individualidade em atos individuais de modo espontacircneo voluntaacuterio e livre pelo corpo ou pela mente44 Em resumo laquopessoaraquo eacute um ser indi-vidual racional e laquopersonalidaderaquo eacute o modo pessoal deste ser individual racional realizar-se e manifestar-se pelo corpo e pela mente segundo os seus atos individuais com as coisas com outras pessoas com o mundo e com Deus

Pois bem a pessoa em funccedilatildeo desta excelecircncia que possui em si mesma

que aqui jaacute identificamos com a liberdade

eacute capaz de realizar plenamente o que ela eacute por natureza tornando-a aquilo que ela eacute como nos recorda a sentenccedila de Piacutendaro Diz-se que eacute uma excelecircncia porque mediante esta capacidade a pessoa tem o poder de autorealizar-se embora a perfectibilidade desta auto-realizaccedilatildeo exija abertura e comunicabilidade com o mundo com as pessoas e com Deus Eacute um fato que a liberdade seja uma excelecircncia e algo especial porque ademais da pessoa humana entre as demais criaturas corporais pertencentes ao cosmo nada haacute aleacutem da pessoa humana que possa autorealizar-se senatildeo ela mesma Esta ca-pacidade lhe confere autonomia pois pela liberdade a pessoa humana eacute senhora do seus atos e natildeo eacute propriedade de nenhuma outra pessoa humana Fica injustificaacute-vel metafisicamente qualquer manipulaccedilatildeo da pessoa humana em qualquer eta-pa de sua vida

Fica pois estabelecido que a liberdade humana

princiacutepio ocircntico que se realiza ao modo de haacutebito da natureza humana pelo qual possui a capacidade de autorealizar-se

constitui uma excelecircncia em si mesma independente de compa-raccedilatildeo com as demais naturezas que constituem o universo corpoacutereo excelecircncia sobre a qual se fundamenta o conceito de dignidade humana

44 Nossa definiccedilatildeo metafiacutesica natildeo se distancia de outras CLONINGER SC Teorias da Personalida-de Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 3

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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II Fundamento moral a responsabilidade

Contudo se somente a pessoa humana eacute capaz de autodecidir-se mediante a posse desta excelecircncia somente ela mesma eacute responsaacutevel45 por suas decisotildees pois a pessoa humana eacute a uacutenica realidade que eacute capaz de responder por aquilo que ela mesma livremente escolheu jaacute que nenhuma outra pessoa poderaacute decidir por ela o que eacute de mateacuteria da livre escolha Por isso mesmo nenhuma realidade poderaacute outorgar para si como resposta o que eacute proacuteprio exclusivo e autocircnomo da pessoa humana Por esse motivo repugna-se todo tipo de manipulaccedilatildeo que possa haver contra a pessoa humana46 na medida em que natildeo se respeita esta excelecircncia que encerra cada pessoa

Como consequumlecircncia afirma-se o princiacutepio de igualdade e respeito entre as pessoas47 jaacute que nenhuma pessoa pela excelecircncia que possui poderaacute ser utilizada como meio sem se levar em conta o que ela eacute em si mesma A excelecircncia da pes-soa humana

a liberdade

lhe confere o direito e o dever de ser respeitada co-mo um bem e fim em si mesmo e nunca como um valor relativo48 Por isso a pessoa humana constitui um valor em si mesmo pois o que natildeo possui um valor de excelecircncia em si mesmo poderaacute ser substituiacutedo por alguma outra coisa equi-valente mas a pessoa humana mediante o valor de sua excelecircncia tem o valor em si mesma

Disso decorre que por natildeo poder ser cambiaacutevel cada pessoa humana constitui um valor uacutenico e insubstituiacutevel A pessoa humana portanto eacute uacutenica e insubs-tituiacutevel no que ela mesma eacute pois aquilo que a constitui na integralidade do seu ser eacute incomunicaacutevel49 esta excelecircncia eacute patrimocircnio integral de cada pessoa humana patrimocircnio formado do que herda dos progenitores

a identidade geneacutetica

e de Deus

a alma espiritual que encerra em si mesma a imagem e semelhanccedila

45 Por responsabilidade entende-se aqui a possibilidade de prever os efeitos do proacuteprio compor-tamento e de corrigi-lo com base em tal previsatildeo O niilismo o existencialismo o utilitarismo e o hedonismo anulam a responsabilidade moral pois natildeo consideram o valor do homem em si mesmo pois ou o nega [niilismo] ou o radicaliza na existecircncia [existencialismo] ou o subordi-na ao uacutetil [utilitarismo] ou ao prazer [hedonismo] Independente de tudo o ser humano eacute res-ponsaacutevel por natureza porque eacute livre por natureza 46 GARCIacuteA RUBIO A Unidade na Pluralidade O ser humano agrave luz da feacute e da reflexatildeo cristatildes Satildeo Paulo Paulus 2001 p 308 47 Este eacute sem duacutevida o tema central da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos 48 KANT E Grundlegung zur Met der Sitten II 49 FAITANIN P Principium individuationis Pamplona Universidad de Navarra 2001 pp 466-507 [Tese de doutorado ineacutedita]

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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espiritual

por isso a pessoa humana eacute herdeira de um patrimocircnio geneacutetico-

espiritual individual inigualaacutevel insubstituiacutevel intransferiacutevel e incomunicaacutevel50 E isso en-cerra toda a sua excelecircncia mas natildeo a fecha em si mesma senatildeo que somente a fortalece como identidade

Contudo algueacutem se equivocaria se pensasse que a pessoa por ser uacutenica eacute chamada ao isolamento Esta mesma liberdade que a faz imanecer em si mesma a faz transcender no mundo abrindo-se agrave realidade agraves pessoas e a Deus pois a pes-soa humana eacute livre mas a sua liberdade natildeo estaacute pronta acabada e perfeita senatildeo que estaacute por autoconstruir-se e aperfeiccediloar-se na plena realizaccedilatildeo de suas accedilotildees livres com o proacuteximo sempre na observacircncia da excelecircncia alheia Por isso a li-berdade humana eacute perfectiacutevel e se realiza na inter-relaccedilatildeo pessoal e nisso reside a afir-maccedilatildeo da excelecircncia do ser humano ele jaacute sendo o que eacute eacute chamado a ser maismediante a sua liberdade

Toda accedilatildeo livre de qualquer pessoa humana deporaacute contra a excelecircncia humana se contrariar o princiacutepio da autonomia responsabilidade igualdade e do respeito muacutetuo deste modo estaraacute atuando contra a proacutepria excelecircncia de sua natureza E assim pode vir atuar o homem nas ciecircncias biotecnoloacutegicas quando esquece que a pessoa humana eacute um valor em si mesmo e o resultado deste desca-so com a excelecircncia humana o faz considerar a vida do outro segundo um valor relativo e a partir de entatildeo a vida da pessoa humana torna-se moeda de cacircmbio sujeito a troca por qualquer outro bem que se lhe possa parecer mais uacutetil e rentaacute-vel

A seduccedilatildeo da vida do valor relativo que se imprime nas coisas pode levar o homem a ver outro homem como moeda de trocaa tal ponto de crer que o outro desde sua concepccedilatildeo natildeo passa de um acuacutemulo de ceacutelulas51 que satildeo avali-adas segundo um investimento e valor econocircmicos amparados na lei e que po-dem ser comercializadas para supostos fins humanitaacuterios

E se fossem humanitaacuterios estes fins obviamente natildeo seria a humanidade da pessoa comercializada por anaacutelise de tais ceacutelulas A ciecircncia a tecnologia e es-pecialmente as ciecircncias que se aplicam ao estudo das tecnologias voltadas para o estudo da vida geral e em especial da vida humana tem o dever de respeitar a pessoa humana como um fim em si mesmo e nunca utilizaacute-la como um meio um

50 FAITANIN P A concepccedilatildeo e individuaccedilatildeo do embriatildeo humano em Tomaacutes de Aquino Aquinate nordm1 (2005) pp 109-149 [wwwaquinatenet] 51 SERRA A O embriatildeo humano acuacutemulo de ceacutelulas ou indiviacuteduo humano Cultura e Feacute nordm93 (2001) pp 13-15

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instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

AQUINATE ndeg 2 2006 260

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

AQUINATE ndeg 2 2006 261

var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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AQUINATE ndeg 2 2006 257

instrumento de valor agregado aleacutem do mais tem o dever e a responsabilidade de promover manter e salvar a vida humana em toda sua dimensatildeo

Sabemos que desde a concepccedilatildeo o embriatildeo eacute ser humano e porque eacute ser humano eacute pessoa humana De fato seguindo a tradiccedilatildeo do princiacutepio bioloacutegico de que o semelhante gera o semelhante ningueacutem duvida de que de um embriatildeo de elefante natildeo saia um elefantinho Do mesmo modo natildeo haacute que duvidar que de um embriatildeo humano natildeo saia um ser humano Como jaacute dissemos o embriatildeo natildeo eacute humano por ser pessoa eacute pessoa por ser humano Natildeo haacute um momento sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo natildeo seja humano portanto natildeo deveraacute ha-ver um instante sequer depois da concepccedilatildeo que o embriatildeo jaacute natildeo seja pessoa e natildeo possua dignidade

Alguns se preocuparatildeo em estabelecer se haacute ou natildeo este indivisiacutevel do tempo em que uma porccedilatildeo de massa geneacutetica passa a ser pessoa Muito mais sensato eacute saber de antematildeo que independente de qual for o instante depois da concepccedilatildeo em que o embriatildeo se tornou humano ou pessoa eacute ter por certo que o homem gera o homem o cavalo o cavalo Ainda assim algueacutem menos atento poderia di-zer que o homem gerou a Dolly a este chamariacuteamos a atenccedilatildeo que natildeo foi da geneacutetica humana extraiacuteda a identidade geneacutetica da Dolly

Pois bem voltando a pessoa humana cabe ressaltar que o apelativo pessoa natildeo eacute senatildeo um nome que serve para identificar senatildeo um indiviacuteduo de natureza racional de cuja natureza emana na forma de princiacutepio uma excelecircncia

a liber-dade

que mediante isso estaacute a pessoa humana determinada a autorealizar-se E isso natildeo se daacute somente quando a pessoa humana eacute adulta senatildeo que se daacute pro-gressivamente conforme se desenvolve o embriatildeo e conforme se vai pouco a pouco manifestando esta liberdade em diferentes aspectos e dimensotildees da vida embrionaacuteriaateacute chegar ao seu teacutermino

O homem eacute livre na radicalidade de todas suas tendecircncias desde a tendecircn-cia dos seus instintos ateacute as mais elevadasa liberdade se manifesta na tendecircncia dos instintos esteja tal tendecircncia ordenada ou desordenada se manifesta a liber-dade nos desejos sejam eles prazerosos ou dolorosos e mais perfeitamente se manifesta como ato da inclinaccedilatildeo da vontade para o bem da natureza De todos modos a tendecircncia dos instintos e desejos humanos em si mesmos natildeo aniqui-lam a liberdade mas na desordem podem tornar o ser humano menos livre no exerciacutecio da escolha E estando preacute-determinado a escolher o que deseja se torna mais escravo da escolha preacute-determinada Assim pois o homem natildeo eacute livre por-que pode querer o que quiser mas eacute livre por poder escolher inclusive o que natildeo quer Seria menos livre se escolhesse somente o que quiser ou o que lhe afere um

AQUINATE ndeg 2 2006 258

certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

AQUINATE ndeg 2 2006 259

dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

AQUINATE ndeg 2 2006 260

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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certo ar

de bem Em suma a pessoa humana no uso de sua liberdade precisa

aprender a dizer natildeo ao que lhe parece muitas vezes ser uma boa escolha livre O homem eacute mais livre na medida em que sabe escolher o que deve poreacutem

menos livre na medida em que natildeo pode escolher senatildeo o que quer Portanto o homem natildeo eacute livre porque escolhe senatildeo que escolhe por ser livre A liberdade natildeo estaacute na escolha mas se realiza nela e quanto mais se eacute livre na escolha me-nos escrava eacute a liberdade Libertar a liberdade no pleno exerciacutecio da responsabili-dade moral e na aquisiccedilatildeo de virtudes

O embriatildeo humano eacute algo que guarda na sua constituiccedilatildeo fiacutesica a individua-lidade de sua heranccedila geneacutetica que eacute

como jaacute dissemos

um patrimocircnio geneacute-tico individual que lhe confere o estatuto de ser um indiviacuteduo52 e que guarda por sua constituiccedilatildeo psiacutequica a especificidade de uma heranccedila espiritual que eacute um patrimocircnio espiritual psiacutequico uacutenico manifesto por suas capacidades racionalida-de voliccedilatildeo e liberdade que lhe conferem por sua vez o estatuto de ser um indiviacute-duo de natureza racional

A pessoa humana eacute a substacircncia individual de natureza racional que resulta da imediata plena uacutenica e iacutentegra realizaccedilatildeo desta dual heranccedila geneacutetico-espiritual que tem o seu iniacutecio desde o momento da fecundaccedilatildeo que eacute este misteacuterio do encontro e da uniatildeo da heranccedila fiacutesica [paterno-natural] com a espiritual [Paterno-sobrenatural]53 Este caraacuteter sublime e uacutenico do modo como se constitui o indi-viacuteduo humano a pessoa humana a eleva ao status de vida digna que define a sua

52 Haacute textos que jaacute apontavam para a individuaccedilatildeo geneacutetica SAULNIER C L individualiteacute biologi-que Essai scientifique et philosophique Paris 1958 SIMONDON G L individu et as gecircnese physico-biologique Paris PUF 1964 LAMASSON F Principe d individuation et experience clinique Aquinas annus IX n 2 (1966) pp 162-177 SIMONDON G L individuation physique et collective agrave la lumiegravere decircs notions de forme information potentiel Paris Aubier 1989 53 De fato eacute um misteacuterio Com uma metaacutefora do Logos analogamente e guardando as devidas proporccedilotildees podemos dizer que a alma racional eacute um sopro espiritual de Deus na carne na medida em que eacute um falar de Deus com a humanidade e um revelar-se de Deus na humanida-de cuja palavra [conceptus] eacute a proacutepria alma e a concepccedilatildeo [conceptio] o anuacutencio expressatildeo e realizaccedilatildeo desta palavra na carne Com a concepccedilatildeo portanto com o anuacutencio da alma racional ela penetra intimamente a carne que sustenta a heranccedila geneacutetica herdada da mescla da carne dos progenitores ao mesmo tempo em que ela assume e fixa completamente todo o programa de formaccedilatildeo e desenvolvimento da vida naquela carne embrionaacuteria Como uma transformaccedilatildeo se impotildee a forma racional no lugar das formas elementares dos gametas que agora estatildeo mescla-das ao mesmo tempo em que ela enquanto forma subsistente principia a vida na carne que a recebe e que sustenta todo o patrimocircnio geneacutetico herdado De agora em diante eacute a alma racio-nal quem ordenaraacute todo o movimento para o devir realizaccedilatildeo e desenvolvimento daquele pa-trimocircnio geneacutetico na carne

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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dignidade por ter no ser a participaccedilatildeo e na natureza a representaccedilatildeo ao modo de ima-gem e semelhanccedila da inteligecircncia vontade e liberdade divinas

Por ser a liberdade o apanaacutegio da natureza humana ela se encontra plena-mente presente na natureza humana do embriatildeo como uma potecircncia e virtude que se desabrocha e vai manifestando-se conforme o desenvolvimento do em-briatildeo em distintas etapas da vida embrionaacuteriaindo desde as funccedilotildees vegetativas manifestando-se nos instintos passando pelas sensitivas manifestando-se nos desejos e chegando agrave intelectiva manifestando-se nas accedilotildees livres com movi-mentos independentes aos da matildee por choros soluccedilos etce mais e mais por uma contiacutenua manifestaccedilatildeo a liberdade vai se tornando cada vez mais evidente atraveacutes de sua contiacutenua auto-realizaccedilatildeo individualidade e independecircncia no seio maternotraduzindo em evidecircncia o que se ocultava ao modo de imanecircncia

Pois bem a proacutepria vida do homem eacute o manifestar desta excelecircncia ima-nentedeste valor que natildeo eacute valor relativo senatildeo que eacute valor em si mesmo os antigos gregos chamaram de axioma e os latinos de dignidade ao que eacute criteacuterio de valor em si mesmo e modelo de valor para as demais realidades Assim pois di-zemos que a pessoa humana eacute digna em razatildeo desta excelecircncia

a liberdade

que ela possui como valor em si mesmo e que a torna capaz de auto-realizar-se na inter-relaccedilatildeo com o mundo com os outros e com Deus

Eacute redundante falar da dignidade da vida humana pois a vida humana eacute por si e em si digna Qual vida dentre as que conhecemos tem a capacidade de auto-possuir-se e autorealizar-se O homem tem vida e participa mais efetivamente do que eacute vida os demais seres vivos somente participam da vida O respeito agrave digni-dade da vida promove a vida digna que se manifesta propriamente no exerciacutecio pleno da vida em sociedade portanto na poliacutetica e no exerciacutecio da cidadania

A cidadania deve ser o efetivo e pleno exerciacutecio da dignidade da vida na vida em sociedade Natildeo eacute possiacutevel promover uma poliacutetica que queira ser digna e cidadatilde sem reconhecer e promover a pessoa humana por seus seus valores suas potencialidades A existecircncia da vida em sociedade eacute uma prova cabal de que a pessoa humana necessita de outra para realizar a sua autonomia deste modo a autonomia da pessoa humana eacute aperfeiccediloada e completada na inter-relaccedilatildeo res-peitando mutuamente aquilo que em cada uma das pessoas existe como excelecircn-cia individual e intransferiacutevel Concluindo vemos como a dignidade humana fundamentada na liberdade se realiza plenamente na vida moral do homem e no exerciacutecio de sua responsabilidade na vida em sociedade

AQUINATE ndeg 2 2006 260

III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

AQUINATE ndeg 2 2006 261

var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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Page 20: Análise do estatuto metafísico da dignidade da vida humana a partir da ... · aquinate, n°. 2, 2006 241 anÁlise do estatuto metafÍsico da dignidade da vida humana a partir da

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III Fundamento teoloacutegico semelhanccedila de Deus

A feacute cristatilde atraveacutes do Magisteacuterio da Igreja tem sucessivamente afirmado a dignidade da pessoa humana a dignidade da vida do homem e clamado pela res-ponsabilidade das ciecircncias biotecnoloacutegicas A dignidade humana natildeo eacute conceito vazio porque tem seu fundamento na liberdade Temos visto que aquilo a que no acircmbito da razatildeo concebemos ser a excelecircncia da pessoa humana a liberdade eacute o que justamente nos eacute revelado pela feacute como supremo valor da vida do homem O que a feacute nos revelou natildeo contraria o que acedemos pela razatildeo Se Cristo mani-festa plenamente o homem ao proacuteprio homem e lhe descobre a sua altiacutessima vo-caccedilatildeo [GS 115] o manifesta no pleno exerciacutecio daquilo que denominamos exce-lecircncia na pessoa humana a liberdade

Diz-nos o Papa Joatildeo Paulo II em Familiaris consortio que a Igreja estaacute do lado da vida e que ela crecirc firmemente que a vida humana mesmo se deacutebil e com sofrimento eacute sempre um esplecircndido dom do Deus da bondade [nordm30] Jaacute muito antes o Papa Paulo VI afirmava que nenhuma espeacutecie de pressatildeo levaraacute a Igreja desviar-se do seu caminho para compromissos doutrinais ou para aceitar solu-ccedilotildees a curto prazo Natildeo eacute de sua competecircncia com certeza formular soluccedilotildees de ordem teacutecnica a sua missatildeo eacute a de dar testemunho da dignidade e do destino do homem de molde a permitir a este elevar-se moral e espiritualmente [Ensinamen-tos de Paulo VI 28031974 p 273]

Assim pois o homem feito a imagem e semelhanccedila54 de Deus tem inscrito em sua natureza uma saudade de Deus que se manifesta numa incessante busca de algum porto que lhe seja seguro se O ignora desconhece ou nega qualquer por-to lhe pareceraacute servir Mas se a imagem divina estaacute presente em cada pessoa55 e a pessoa humana eacute a uacutenica criatura na terra que Deus quis por si mesma 56 esta saudade de Deus se manifesta ao homem sempre Mas se o homem natildeo descobre que esta saudade eacute de Deus e natildeo do mundo continuaraacute dispensando o uso bom e mal de sua liberdade na eleiccedilatildeo daquilo que natildeo lhe eacute proacuteprio e primeiro

Concluindo Cristo nos amou primeira e livremente antes de pecarmos por isso prova de amor maior natildeo houve que um Deus fazer-se homem para sal-

54 Por semelhanccedila em seu sentido metafiacutesico entende-se aqui as coisas que tecircm a mesma forma ainda que sejam substancialmente diferentes e em seu sentido analoacutegico utilizado em teologi-a significa participar ou ter em comum alguma perfeiccedilatildeo do analogado principal TOMAacuteS DE

AQUINO S Sum Th I q13 a6 c 55 CATECISMO DA IGREJA CATOacuteLICA Nordm 1702 56 GAUDIUM ET SPES 243

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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var a quem Ele amou por si mesmo Amou livremente a dor do homem pelo va-lor do proacuteprio homem ateacute o fim e por ele morreu e por morte de cruzcustou a minha dignidade o sangue do cordeiro Humilhou-se na cruz e por amor exaltou o valor da pessoa humana

obra maacutexima do Pai na terra

que se expressa na

natureza individual de cada pessoa humana ao modo de imagem e semelhanccedila do Pai e nos fez descobrir o quanto somos queridos por Deus por ser o que somos A dignidade da vida humana estaacute em sermos o que somos no exerciacutecio desta excelecircncia para alcanccedilarmos o que para que somos chamados Deste mo-do conclui-se que a dignidade se fundamenta na metafiacutesica pela liberdade se manifesta e se realiza na moral pela responsabilidade e se justifica na feacute pela semelhanccedila agrave Deus

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