30
 Maria Fernanda Rollo Análise Social vol.  XXIX  128),  1994 4.°), 841-869 Portugal  e o  Plano Marshall: história de uma adesão  a contragosto (1947-1952) INTRODUÇÃO Apresenta-se neste texto uma síntese do processo negociai que conduziu ao envolvimento  d e  Portugal  n a  ambiciosa proposta americana, fundamentalmente destinada  à  reconstrução europeia do segundo pós-guerra, que passou  à  história so b  a  designação  d e  Plano Marshall. O envolvimento de Portugal no plano americano de reconstrução da Europa do pós-guerra — tema que tem permanecido praticamente virgem no campo  d a historiografia portuguesa —, para além  d a s  repercussões  q u e  registou  e d o significado que alcançou, quer a nível externo, no que se refere ao posicionamento de Portugal no mundo do pós-guerra, quer ao nível da vida política  e  económica nacional, representou uma das mais significativas alterações da política externa portuguesa conduzida pelos governos de Oliveira Salazar. Na verdade, no escasso período de praticamente um ano, que  s e  inicia com as primeiras reacções das autoridades portuguesas ao discurso do general Marshall (início de Junho de 1947) e culmina em Agosto-Setembro de 1948, as autoridades portuguesas operam uma mudança radical na sua posição face ao auxílio finan- ceiro norte-americano. De uma inicial atitude de rejeição do auxílio, formalmente anunciada em Setembro de 1947, as autoridades portuguesas viram-se compelidas a solicitá-lo precisamente em Setembro do ano seguinte. Ao longo daquele período  o  comportamento português caracterizou-se por atitudes cautelosamente expectantes, ajustamentos  à s  circunstâncias  e  conjun- turas ocorrentes, feito  d e  hesitações  e  mudanças pragmáticas  d e  rumo,  n o quadro  d a  operação complexa que  o  Plano Marshall constituiu. De resto, como veremos,  o  encontro de Portugal com  o  Plano Marshall  f o i bem menos discreto  e  bem mais profundo  d o  que poderia  ser  sugerido pela propaganda oficial portuguesa,  a  qual, porventura, induziu  a  convicção gene- ralizada, mas errónea,  d e  q ue  o  nosso país passou  d e  certa forma  a o  lado  d a proposta americana  d e  auxílio  à  Europa, tendo esta constituído para nós uma espécie  d e  epifenómeno sem grande relevância. Aliás,  o  facto  d e  Portugal  te * Mestre em História dos Séculos XIX  e  XX pela Faculdade  de  Ciências Sociais  e  Humanas  da Universidade Nova  de  Lisboa.

Analise Social Vol-xxix 1994 Portugal Plano Marshall 1947-1952

Embed Size (px)

Citation preview

Maria Fernanda Rollo*

Anlise

Social,

vol.XXIX(128),1994 (4.), 841-869

Portugal e o Plano Marshall: histria de uma adeso a contragosto (1947-1952)

INTRODUO Apresenta-se neste texto uma sntese do processo negociai que conduziu ao envolvimento de Portugal na ambiciosa proposta americana, fundamentalmente destinada reconstruo europeia do segundo ps-guerra, que passou histria sob a designao de Plano Marshall. O envolvimento de Portugal no plano americano de reconstruo da Europa do ps-guerra tema que tem permanecido praticamente virgem no campo da historiografia portuguesa , para alm das repercusses que registou e do significado que alcanou, quer a nvel externo, no que se refere ao posicionamento de Portugal no mundo do ps-guerra, quer ao nvel da vida poltica e econmica nacional, representou uma das mais significativas alteraes da poltica externa portuguesa conduzida pelos governos de Oliveira Salazar. Na verdade, no escasso perodo de praticamente um ano, que se inicia com as primeiras reaces das autoridades portuguesas ao discurso do general Marshall (incio de Junho de 1947) e culmina em Agosto-Setembro de 1948, as autoridades portuguesas operam uma mudana radical na sua posio face ao auxlio financeiro norte-americano. De uma inicial atitude de rejeio do auxlio, formalmente anunciada em Setembro de 1947, as autoridades portuguesas viram-se compelidas a solicit-lo precisamente em Setembro do ano seguinte. Ao longo daquele perodo o comportamento portugus caracterizou-se por atitudes cautelosamente expectantes, ajustamentos s circunstncias e conjunturas ocorrentes, feito de hesitaes e mudanas pragmticas de rumo, no quadro da operao complexa que o Plano Marshall constituiu. De resto, como veremos, o encontro de Portugal com o Plano Marshall foi bem menos discreto e bem mais profundo do que poderia ser sugerido pela propaganda oficial portuguesa, a qual, porventura, induziu a convico generalizada, mas errnea, de que o nosso pas passou de certa forma ao lado da proposta americana de auxlio Europa, tendo esta constitudo para ns uma espcie de epifenmeno sem grande relevncia. Alis, o facto de Portugal ter* Mestre em Histria dos Sculos XIX e XX pela Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da

Universidade Nova de Lisboa.

Maria Fernanda Rollo rejeitado inicialmente o auxlio financeiro norte-americano contribuiu substancialmente para a consolidao dessa convico. Realce-se, desde j, como aquele processo negociai permitiu deslocar Portugal para a rea das grandes discusses internacionais do ps-guerra e como o nosso pas, apesar da posio de neutralidade que adoptou, se integrou nos movimentos de cooperao protagonizados pelos pases da Europa ocidental, conseguindo um estatuto at certo ponto privilegiado no concerto dos pases aliados vencedores da guerra. 1. A PROPOSTA DE GEORGE MARSHALL Em 5 de Junho de 1947 o general George Marshall recm-nomeado secretrio de Estado dos EUA proferiu na Universidade de Harvard o discurso em que era divulgada a inteno norte-americana de apoiar todos os pases depauperados pela Segunda Guerra Mundial na sua obra de recuperao econmica. A proposta contida no discurso foi aceite apenas pelos pases da Europa ocidental, que acabaram por reconhecer nela a via mais adequada para o seu renascimento econmico. Deu-se ento corpo realizao de um vasto e complexo programa (ERP)1 que, com uma durao prevista de quatro anos, viria a estimular os pases participantes a romperem o impasse econmico em que se encontravam e a auxiliar o cumprimento do processo de reconstruo e de recuperao das suas economias. Simultaneamente, e como consequncia de condio previamente imposta pelos Norte-Americanos, os pases europeus teriam de aceitar gerir o programa de ajuda solidariamente entre si e em conjunto com os EUA. Essa solidariedade imposta (pacificamente aceite, por ausncia de alternativas) conduziu criao, em 16 de Abril de 1948, da Organizao Europeia de Cooperao Econmica (OECE), no seio da qual se aprofundaram os debates, se concertaram as primeiras medidas e se consagrou formalmente o programa econmico comum, no quadro do qual ficou definida a ajuda americana entretanto aprovada pelo Congresso dos EUA. Portugal, como os demais pases da Europa ocidental ( excepo da Espanha), integrou-se neste complexo processo. 2. DAS PRIMEIRAS REACES DO GOVERNO PORTUGUS SUA PARTICIPAO NA CONFERNCIA DE PARIS O primeiro passo concreto da atitude assumida pelo governo portugus em termos de reaco e resposta proposta avanada pelo secretrio de EstadoEuropean Recovery Program, definido pela Lei de Cooperao Econmica, aprovada em 3 de Abril de 1948 pelo Congresso dos EUA.1

842

Portugal e o Plano Marshall George Marshall traduziu-se na diligncia do Ministrio dos Negcios Estrangeiros encarregando a Embaixada de Portugal em Washington de manifestar ao governo dos EUA o esprito de solidariedade moral e material2 que animava o governo portugus e salientar a circunstncia de esta disponibilidade se integrar no pensamento e na prtica que j vinham anteriormente orientando a actuao do governo portugus na inteno de contribuir para a ajuda reconstruo econmica da Europa3. Porm, apesar de o governo portugus ter expresso dessa forma o seu desejo de colaborar de forma activa na realizao do projecto promovido pelos Americanos, o embaixador dos Estados Unidos em Portugal era da opinio de que seria de esperar que os portugueses se reservem um papel de observadores e no procurem participar activamente na formao de qualquer programa de cooperao para a recuperao econmica da Europa tal como foi sugerido por Marshall4. O alargamento da questo aos restantes pases europeus, suscitado directamente pela Frana e pela Gr-Bretanha na sequncia do fracasso da Conferncia Tripartida5, inclua o convite participao formal de Portugal nas conversaes destinadas a concretizar as sugestes implicitamente contidas no discurso doO governo portugus [...] tenciona dar o seu sincero apoio, na medida em que os recursos portugueses o permitam, iniciativa do general Marshall: NARA, RG 59, 840.50-RECOVERY-1945-1949, box 5729, 840.50 RECOVERY/6-2347, memorando com data de 23 de Junho de 1947 redigido por Joo de Bianchi, embaixador de Portugal em Washington, na sequncia das instrues recebidas do governo de Lisboa e entregues no Departamento de Estado dos EUA (cf. AMNE, embaixadas e legaes, Washington, M 119 (1943-1947), proc. 88, telegrama n. 239, 21 de Junho de 1947, do Ministrio dos Negcios Estrangeiros para a Embaixada de Portugal em Washington). 3 Dentro da modstia das nossas possibilidades temos efectivamente mediante crditos, fornecimento de mercadorias e at ofertas gratuitas como a que fizemos UNRRA e ao Vaticano procurado ajudar povos devastados pela guerra. (AMNE, 2 piso, M 381, A 60, proc. 39.314, telegrama n. 159, 21 de Junho de 1947, do ministro dos Negcios Estrangeiros para a Legao de Portugal em Paris.) 4 NARA, RG 59, 840.50-RECOVERY-1945-1949, box 5729, 840.50 RECOVERY/6-2747, carta n. 21, 27 de Junho de 1947, do embaixador dos EUA em Portugal para o secretrio de Estado dos EUA. 3 Em resposta ao discurso de Marshall, a Frana e a Gr-Bretanha, assumindo a liderana dos acontecimentos, acordam promover uma conferncia com a URSS. A conferncia, reunindo os ministros dos Negcios Estrangeiros dos trs pases, viria a ter lugar em Paris entre 27 de Junho e 2 de Julho, sem que, todavia, tivesse sido possvel chegar-se a um acordo. Perante a recusa sovitica de participar na elaborao de planos anteriores a qualquer garantia de prestao por parte dos EUA e o consequente abandono de Molotov da Conferncia Tripartida, os ministros dos Negcios Estrangeiros dirigiram um convite aos restantes pases europeus, com excepo da Espanha, para a realizao de uma conferncia onde se desse corpo ao plano que a sugesto do general Marshall reclamava. Foi nessa altura que se extremaram os campos, porquanto todos os pases da rbita sovitica recusaram o convite. Estes acontecimentos tiveram um peso decisivo na acentuar do clima da guerra fria, contribuindo marcadamente para o agravamento da ciso Leste-Oeste e para uma maior clarificao dos contornos definidores dos dois blocos em oposio no espao europeu e mundial. Ou, nas palavras de Andr Fontaine: deste ms de Julho que data verdadeiramente a diviso da Europa: de um lado, os clientes da Amrica, do outro, os satlites da URSS. (Histoire de la guerre froide, 1, De la revolution d'octobre la guerre de Core, 1917-1950, Points histoire, 64, Fayard,2

1965, p. 388.)

843

Maria Fernanda Rollo secretrio de Estado norte-americano6. Com este convite oferecia-se a Portugal a oportunidade de granjear crditos na cotao internacional, participando activamente na gesto dos problemas internacionais, num envolvimento efectivo, retirando o nosso pas da simples condio de observador. A prontido com que Portugal respondeu oficialmente ao convite franco-britnico7, na qual foi o segundo entre os 22 pases convidados, foi realada internacionalmente8. Ser convidado era ser considerado um entre os pares constituintes da comunidade europeia ocidental. Ao ser convidado pela Frana e pela Gr-Bretanha, Portugal no s era tacitamente aceite e integrado no seio da Europa, colaborando activamente na sua reconstruo, como se sentia reparado pela rejeio do seu pedido de adeso Organizao das Naes Unidas, ocorrida em Setembro de 19469. Convir, no entanto, notar desde j que, contrariamente ao que se podia esperar, a manifestao de solidariedade e a disponibilizao dos recursos nacionais prestada ao governo dos EUA, a satisfao com que foi aceite o convite franco-britnico e a posterior participao de Portugal na conferncia no tero como resultado a adeso completa do governo portugus ao plano de reconstruo dos pases europeus ou ao projecto de cooperao europeia. Nesta ambiguidade se consubstanciava, alis, uma das particularidades do pensamento e da prtica da poltica externa portuguesa, particularmente evidenciada no que respeita ao Plano Marshall. Na realidade, essa disponibilidade e prontido que caracterizaram a reaco inicial do governo portugus ao aceitar participar na Conferncia de Paris, a manifestao da vontade em ver-se devidamente representado nas comisses criadas no seio da conferncia, vo ser rapidamente contrariadas pela evidente relutncia e falta de empenho por parte dos responsveis polticos portugueses em proporcionarem os meios indispensveis boa prossecuo dos trabalhos limitando significativamente a satisfao dos pedidos de elementos e de tcnicos necessrios participao nas tarefas subsequentes Conferncia de Paris6 Cf. ADMAE, srie Internationale, 1944-1949, sous-srie Confrences politiques, vol. 129, p. 12, telegrama n. 263, 4 de Julho de 1947, da Legao da Frana em Lisboa para o Ministrio dos Negcios Estrangeiros da Frana; AMNE, 2. piso, M 381, A 60, proc. 39.314, carta 429/3/47, da Embaixada da Gr-Bretanha em Portugal para o ministro dos Negcios Estrangeiros. 7 Cf. ADMAE, srie Internationale, 1944-1949, sous-srie Confrences politiques, vol. 129, p. 118, carta n. 51, proc. 39.314, 5 de Julho de 1947, do ministro dos Negcios Estrangeiros de Portugal para a Legao da Frana em Lisboa, e AMNE, 2. piso, M 381, A 60, proc. 39.314, telegrama n. 214, 5 de Julho de 1947, do ministro dos Negcios Estrangeiros de Portugal para a Embaixada de Portugal em Londres. 8 Cf, por exemplo, Italy, Portugal. First to accept. Bids to parley, in New York Herald Tribune, 5 de Julho de 1947, e First acceptances for Paris. Portugal, Italy, Turkey, and Eire to attend, in The Times, July 7, 1947, p. 4. 9 Na realidade, conforme observa Jos Medeiros Ferreira, por muito que o Governo esgrima ento a sua falta de interesse em participar na ONU, a recusa da sua entrada, embora se devesse ao veto sovitico, acentuara a sensao de marginalidade surgida com a ausncia da Conferncia de S. Francisco. (Caractersticas histricas da poltica externa portuguesa entre 1890 e a entrada na ONU, in Poltica Internacional vol. 1, n. 6, Primavera de 1993, p. 144).

844

Portugal e o Plano Marshall e o envio, dentro dos prazos estabelecidos, das respostas aos questionrios sobre necessidades e recursos elaborados pelas diversas comisses e enviados para todos os pases representados. A actuao portuguesa durante os primeiros tempos de actividade da futura OECE constituiu um reflexo bastante esclarecedor da posio de cepticismo e do desinteresse assumido pelas autoridades portuguesas relativamente s possibilidades da cooperao internacional e eventualidade da sua comparticipao do auxlio financeiro Marshall. Como adiante se ver, esta situao aparentemente contraditria, de adeso condicional e condicionada, parece ser globalmente consistente com os princpios orientadores do pensamento e da prtica da poltica externa portuguesa. O prprio presidente do Conselho manifestava este sentimento de descrdito e desconfiana em relao eficcia e ao xito da Conferncia de Paris quando esta no havia ainda sequer chegado ao seu termo10. Na verdade, a posio assumida pelos responsveis polticos portugueses, quer em relao ao auxlio norte-americano, quer no que toca sua participao na Conferncia de Paris e no programa de reconstruo da Europa, estava j enunciada, de uma forma clara, nas vsperas do incio da prpria Conferncia de Paris. As primeiras orientaes que o ministro dos Negcios Estrangeiros, Caeiro da Marta, envia para a delegao portuguesa apresentar em Paris revelam de imediato as intenes da participao de Portugal na Conferncia de Paris: Embora Portugal no pense carecer de crditos ele precisa certamente de fornecimento de outros pases designadamente de utensilagem industrial e est portanto disposto aos entendimentos convenientes para por sua parte fornecer aos outros tambm aquilo de que a sua economia possa dispor11. No tendo tido a oportunidade de apresentar estas declaraes nas primeiras sesses da Conferncia de Paris, o ministro de Portugal em Paris, Augusto de Castro, resolveu divulg-las, provocando uma entrevista imprensa estrangeira. Dessa entrevista se fez eco a imprensa portuguesa. O Dirio de Notcias de 23 de Julho d conhecimento da entrevista, rematando com a frase da autoria de Manuel L. Rodrigues: A presena de Portugal em Paris tem assim, a par dos motivos de solidariedade internacional, uma justificao econmica, que tanto no nosso interesse como no dos pases com que nos propomos cooperar12. As razes econmicas resultavam do facto de Portugal dispor ento de largos crditos na zona do esterlino e da necessidade crescente de industrializarA opinio de Oliveira Salazar relatada pelo correspondente especial do The Times em Lisboa, em artigo escrito na sequncia de uma entrevista ocorrida em meados de Julho, Among the portuguese. A centenary year impression of progress. Logic and sentiment of Dr. Salazar, in The Times, July 24, 1947, p. 5. 11 AMNE, 2. piso, M 53, proc. 41.2, telegrama n. 182, 9 de Julho de 1947, do ministro dos Negcios Estrangeiros para a Legao de Portugal em Paris. 12 Manuel L. Rodrigues, A Conferncia de Cooperao Econmica e a posio de Portugal,10

in Dirio de Notcias de 23 de Julho de 1947, pp. 1-2.

845

Maria Fernanda Rollo o pas. Uma vez que a circulao de mercadorias volte a fazer-se em condies normais, Portugal poder vir a ocupar um lugar importante no mercado europeu. Pelo desenvolvimento do seu sistema de trocas, pode [...] contribuir em medida aprecivel para a reconstituio da economia europeia13. A medida que os trabalhos da Conferncia de Paris foram evoluindo, os objectivos das autoridades portuguesas comeam a ficar perfeitamente definidos: atribuio de uma quase exclusividade s questes relativas agricultura e ao comrcio, problemas estes que mais nos interessam no seio da Conferncia14. Nesta matria a poltica a prosseguir no quadro da ajuda reconstruo dos pases europeus ficou claramente expressa: Portugal dispe-se a dispensar todo o auxlio que for compatvel com os seus recursos; Dado que o comrcio externo portugus consideravelmente constitudo por produtos considerados de luxo em muitos mercados estrangeiros, dificilmente escoveis sobretudo em tempo de crise, necessrio que sejam criadas, no quadro do programa de reconstruo, as condies que assegurem a sua colocao; de contrrio a posio de Portugal assim como a de outros pases em situao idntica, deixar de ser a de pas que pode auxiliar para passar a de pas que precisa de auxlio; Em contrapartida, Portugal prope-se conceder crditos em relao a determinados produtos da sua exportao, reservando-se, contudo, o privilgio de estudar cada caso especialmente15.

3. A REJEIO DA AJUDA FINANCEIRA AMERICANA E A ADESO DE PORTUGAL OECE Entretanto, a evoluo da situao econmica e financeira europeia e o desenvolvimento dos prprios trabalhos necessrios realizao dos propsitos da Conferncia de Paris provocavam no interior da conferncia a necessidade de dar resposta aos crescentes problemas relativos questo do comrcio e dos pagamentos dos pases europeus. A Comisso dos Peritos Financeiros (ou Comisso Financeira), primordialmente encarregada de estudar os meios de suprimir as restries de ordem financeira que entravassem as trocas intereuropeias, aprovou a 7 de Agosto os termos do questionrio a remeter aos pases representados na CCEE. O questionrio aludiaId., ibid. AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 205, 29 de Julho de 1947, da Legao de Portugal em Paris para o Ministrio dos Negcios Estrangeiros. 13 AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, do ministro dos Negcios Estrangeiros para a delegao da CCEE, Instrues dadas ao Eng. Freire de Andrade para a Conferncia de Cooperao Econmica Europeia em 31 de Julho de 1947.14 13

846

Portugal e o Plano Marshall em especial situao dos acordos de pagamentos referentes a tratados ou acordos de comrcio, indicando contingentes de mercadorias ou fixando trocas bilaterais, concludos pelos diversos pases interessados16. Entre as diversas atribuies que lhe foram conferidas, competia Comisso Financeira investigar a possibilidade de transformar em multilaterais os acordos bilaterais existentes e alterar de acordo com essa inteno os diferentes acordos de pagamentos estabelecidos. O recm-designado representante portugus, Freire de Andrade, informa o Ministrio dos Negcios Estrangeiros de que o questionrio ser brevemente recebido em Portugal e aponta para a vantagem de a resposta ser acompanhada de uma exposio escrita donde conste a opinio do governo portugus sobre esta matria. Acrescenta ainda que em virtude da situao das nossas finanas e dado o facto de os artigos que exportamos serem, na sua maior parte, necessrios reconstruo do continente europeu [...] devem-nos interessar sobretudo medidas que aliviem os pagamentos e o comrcio dos entraves existentes, tanto mais que [...] de pouco serviro os crditos dos Estados Unidos se os beneficirios no autorizarem que os mesmos crditos movimentem os produtos portugueses17. Por outro lado, tendo sido deliberado que todos os Estados representados deveriam expor as medidas tomadas individualmente quanto ao saneamento das suas finanas, recomenda o envio de um perito sobre a matria habilitado a falar sobre a situao financeira portuguesa e que estivesse simultaneamente apto a prestar eventuais esclarecimentos sobre a resposta ao questionrio formulado pela Comisso Financeira. Freire de Andrade chama ainda a ateno para a vantagem de se enviar urgentemente a resposta ao questionrio sobre a balana de pagamentos, bem como o relatrio geral, pois de contrrio o nosso pas ser excludo de importantes assuntos18. A questo suscitou directamente o interesse do presidente do Conselho. Oliveira Salazar acorda com o ministro das Finanas designar Albino Cabral Pessoa, secretrio-geral do Banco de Portugal, para representar Portugal na Comisso Financeira. No telegrama que envia para a legao portuguesa em Paris observa que o assunto da maior importncia e delicadeza, sobretudo porque em Paris ainda no se definiram as tendncias acerca da interconvertibilidade monetria que alargaria rea esterlina no se sabe com que resultados ou disposio comum dlares19. Dias depois, o presidente do Conselho informa os nossos representantes em Paris de que o ministro das Finanas convidara o director do Banco de Portugal, Prof. Fernando Emdio da Silva, a proferir a exposio geral sobre as finanas portuguesas20.Cf. AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 297, 8 de Agosto de 1947, da Legao de Portugal em Paris para o Ministrio dos Negcios Estrangeiros. 17 AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 296, 8 de Agosto de 1947, da Legao de Portugal em Paris para o Ministrio dos Negcios Estrangeiros. 18 Ibid. 19 AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 295, 8 de Agosto de 1947, do presidente do Conselho para a Legao de Portugal em Paris. 20 Cf. AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 242, 19 de Agosto de 1947, do16

presidente do Conselho para a Legao de Portugal em Paris.

847

Maria Fernanda Rollo O Ministrio dos Negcios Estrangeiros redige prontamente uma nota acerca do pensamento do governo portugus no que respeita questo da multilateralizao do comrcio e dos pagamentos internacionais colocada no seio da conferncia. A poltica econmica portuguesa, postula-se na nota, tem tradicionalmente como preferncia as relaes bilaterais, sobretudo no que se refere ao estabelecimento de acordos comerciais, uma vez que este tipo de acordos lhe permite alcanar posies mais vantajosas na colocao dos principais produtos exportveis, nomeadamente no caso dos vinhos do Porto e da Madeira, das cortias brutas e manufacturadas e das conservas de peixe, forando a entrada de contingentes nos diferentes mercados externos, consoante os meios de presso de que dispe na altura das negociaes. Dado o carcter no essencial dos seus principais produtos de exportao, Portugal tinha vantagens bvias em negociar individualmente com cada pas uma determinada posio para cada um dos referidos produtos, atravs do estabelecimento de acordos bilaterais. neste sentido que o Ministrio dos Negcios Estrangeiros indica para a delegao portuguesa na CCEE que para pases como Portugal, cuja principal exportao constituda por um reduzido nmero de produtos de um interesse limitado, no parece de aconselhar acordos comerciais multilaterais, sobretudo no momento em que os diferentes pases sofrem crises graves nas suas economias e no esboaram ainda as directrizes da poltica internacional a seguir neste aps-guerra21. Porm, como ainda se desconheciam as directrizes que se pretendiam imprimir aos acordos multilaterais, o Ministrio faz entender delegao portuguesa a convenincia de na sua exposio no ser demasiado peremptria no que toca s preferncias bilaterais portuguesas. em meados de Agosto de 1947 que pela primeira vez se considera a eventualidade da comparticio de Portugal como beneficirio do auxlio financeiro norte-americano. Freire de Andrade aborda subtilmente a questo, no sentido de provocar uma definio da posio de Portugal em relao ao plano Marshall e estabelecer, por forma clara, o ponto de vista portugus em relao aos problemas fundamentais abordados na Conferncia22. F-lo, todavia, de uma forma cautelosa, e to veladamente o fez que o seu texto resulta bastante ambguo. Em primeiro lugar salienta a situao quasi catastrfica a que chegou a economia de muitos pases, referindo que a economia portuguesa comea, ela prpria, a sentir os efeitos da crise geral. A seguir procura identificar alguns sinais de vulnerabilidade revelados pelo agravamento do saldo da balana comercial portuguesa, que o reflexo da situao geral que o plano Marshall se prope remediar e pelas crescentes dificuldades sentidas ao nvel do comr21 A M N E , 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, Ministrio dos Negcios Estrangeiros, parecer de 12 de Agosto de 1947, Acordos bilaterais e multilaterais. 22 A M N E , 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, Legao de Portugal e m Paris, Freire de Andrade, relatrio de 2 0 de Agosto de 1947, Conferncia do Plano Marshall. Estados dos trabalhos e observaes sobre os interesses portugueses.

848

Portugal e o Plano Marshall cio externo portugus em encontrar compradores para quasi todos os produtos que constituem o grosso da nossa exportao. Concluindo, portanto, que Portugal dever dar todo o seu apoio proposta Marshall, em tudo o que no afecte os seus interesses fundamentais23. Aps estas observaes preliminares, Freire de Andrade aborda directamente a posio de Portugal em relao aos problemas colocados na conferncia, em termos concordantes com as indicaes recebidas de Lisboa, mas lanando algumas notas de cepticismo tanto em relao globalidade do Plano Marshall quanto aos benefcios que da possam advir para o nosso pas: Portugal no necessita de auxlio financeiro americano para a reconstruo da sua economia. O pas possui uma posio financeira equilibrada. Se tem carncias nalgumas mercadorias essa situao no resulta da insuficincia dos recursos financeiros para os adquirir, mas de uma escassez generalizada de mercadorias, que o Plano Marshall no podia remediar por forma efectiva; Como, por outro lado, a maioria dos produtos portugueses de exportao no so indispensveis aos pases europeus, resulta que o comrcio de exportao portugus pouco ou nada beneficiar com o auxlio prestado pelo plano Marshall aos pases que consumiam os nossos produtos de exportao, a no ser que esse auxlio seja dado por forma a assegurar a troca de produtos dessa natureza24. medida que o tempo vai passando, comeam a surgir algumas perplexidades e avaliaes contraditrias entre as autoridades portuguesas ao mais alto nvel. Atentemos sequencialmente na marcha dos acontecimentos. Alguns dias depois de recebida a informao de Freire de Andrade, a 26 de Agosto de 1947, a possibilidade da comparticipao portuguesa no auxlio norte-americano posto disposio dos pases europeus colocada com maior veemncia e frontalidade. Alis, o prprio ministro dos Negcios Estrangeiros, Jos Caeiro da Matta, que avana directamente uma proposta em telegrama enviado de Paris ao presidente do Conselho. A questo levantada na sequncia do atraso verificado no envio de elementos sobre as balanas de pagamentos portuguesas. A delegao dispe apenas dos dados estatsticos relativos a 1946, faltando os elementos e as estimativas correspondentes aos anos seguintes, especialmente 1947 e 1948. Relativamente ao ano de 1947, possuem-se apenas os dados referentes s reservas pblicas e divisas para o ms de Julho, que, apesar de tudo, permitiam verificar um forte agravamento da situao j negativa da balana de pagamentos portuguesa comparativamente com os dados referentes a 31 de Dezembro de 1945 e 1946. Tudo fazendo prever agravamento da situao afigura-se a Caeiro da Matta que, com base nestes dados, deveramos aproveitar esta oportunidade23

ibid.

24

Ibid.

849

Maria Fernanda Rollo que nos oferecida, expor nossa posio conferncia a fim de eventualmente podermos com todas as formalidades ser considerados na distribuio crditos norte-americanos destinados realizao de fomento e equipamentos industriais25. Essa possibilidade encontra-se, todavia, dependente do envio dos dados referentes balana de pagamentos, sob forma de previso, para os anos posteriores a 1946, incluindo naturalmente os elementos que permitam explicar os resultados j apresentados da nossa situao cambial. Caso no se apresente a balana de pagamentos pedida, no vemos possibilidade pedido de incluso pases beneficirios crditos norte-americanos. No documentando nos nmeros relativos perodo 1947 a 1951, corremos o risco de ou sermos excludos ou (o que seria ainda mais inconveniente) ser prprio Comit a organizar estimativa nossas balanas de pagamentos durante aqueles anos tomando para base nmeros 1946 que no acusam fenmeno regresso que em 1947 se acentua26. No dia seguinte Caeiro da Matta envia um outro telegrama, reforando a opinio e o pedido formulados na vspera: Se pensamento do Governo criarmos aqui posio que nos permita vir a participar auxlio norte-americano, torna-se indispensvel vinda urgente [...] tcnico conselho tcnico corporativo [...] que traga elementos pedidos27. O ministro assinala com vigor ser de toda a convenincia o referido tcnico trazer todos os elementos relativos a 1948. De posse desses dados poderamos aqui mesmo construir nossa balana de pagamentos para 194828, cuja apresentao considera insistentemente da maior importncia, sobretudo porque a estimativa das necessidades dos pases comparticipantes e a subsequente atribuio de auxlio norte-americano se prev que sejam calculadas com base nos elementos relativos a 194829. Surge aqui o momento mais significativo desta fase do processo. As observaes avanadas pelo ministro dos Negcios Estrangeiros e recebidas por Oliveira Salazar vo ser submetidas considerao do ministro das Finanas, Joo Pinto da Costa Leite (Lumbrales), provocando, em ltima anlise, a deciso oficial portuguesa em rejeitar comparticipar do auxlio financeiro norte-americano. Costa Leite procede ento elaborao de um parecer que, recusando o envio de estimativas das balanas de pagamentos portuguesas pedidas por25 Itlico nosso (AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 341, 2 6 de Agosto de 1947, da Legao de Portugal em Paris, ministro dos Negcios Estrangeiros para o presidente do Conselho). 26 Ibid. 27 A M N E , 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, telegrama n. 345, 2 7 de Agosto de 1947, da Legao de Portugal em Paris, ministro dos Negcios Estrangeiros para o presidente do Conselho. 28 Ibid. 29 data j todos os pases tinham fornecido os dados das respectivas balanas de pagamentos para 1948 e os comprovativos das necessidades apresentadas. Exceptuavam-se apenas a Islndia, a Turquia, Portugal e a Sua, tendo esta ltima declarado no carecer de crditos (deciso que, como observa Caeiro da Matta, se compreende em face da situao slida da sua moeda e economia).

850

Portugal e o Plano Marshall Caeiro da Matta, ficou a constituir, pelas justificaes que apresenta, um documento extremamente elucidativo para a compreenso da posio e actuao das autoridades polticas portuguesas em relao Conferncia de Paris e ao Plano Marshall em geral. As observaes do ministro das Finanas transformar-se-o em instrues enviadas para a delegao de Portugal em Paris, sendo por esta executadas perante a comunidade internacional. Em primeiro lugar, Costa Leite observa que os elementos enviados para Paris at data correspondem aos dados verificados da balana de pagamentos, no podendo nem o Ministrio das Finanas nem o Banco de Portugal apresentar com seriedade estimativas de balanas de pagamentos para os prximos anos. E revela-se desconfiado e cptico perante os trabalhos que se desenvolviam em Paris: Este Ministrio tem, alis, a impresso de que as estimativas que esto sendo feitas em Paris no tm base sria e representam apenas um expediente para justificar o crdito a pedir aos Estados Unidos30. Alm do mais, para o governo portugus, a questo do Plano Marshall continha implicaes que careciam de particular ateno. Desde que se trata de pr em comum os recursos europeus, a Conferncia pode mostrar interesse em saber os dlares que nos sobrem e possam ser utilizados pelos pases famintos daquela moeda31. Neste ponto o ministro peremptrio, afirmando que se deve manter a posio firme de que os dlares em posse de Portugal no esto disponveis para os pases europeus no se devendo sequer divulgar a sua quantidade. Esta deciso impunha-se por trs razes diferentes: 1. Porque est ainda pendente, sem que tenha havido qualquer espcie de contestao aos nossos argumentos, o problema do ouro recebido da Alemanha, e no podemos pensar em pr disposio alheia ouro cuja legitimidade de posse nos contestada. 2. Porque as nossas disponibilidades em dlares so limitadas e no chegam [...] para as necessidades que vai apresentando a economia nacional. 3. Porque na orientao que est sendo seguida parece encaminhar-se para uma srie de regimes bilaterais de comrcio, aos quais se sobrepor um sistema de liquidaes multilaterais. Portugal tem-se orientado no sentido da liberdade comercial; conhece as suas necessidades em mercadorias, mas, embora esteja disposto a defender as suas exportaes, no pode, por no conhecer as disposies dos outros pases na matria, pr ao servio destes as suas reservas monetrias.32 Costa Leite cr que a posio a assumir na Conferncia seria, no encarreirar nas fantasias que, ao que vejo, esto cultivando [referindo-se naturalmente aos diplomatas representantes de Portugal em Paris], mas pr sria e concretamente o problema33. Ou seja, Portugal colaborava para a reconstruo30 Sublinhados no original (AMNE, 2. piso, M 53, A 39, proc. 41.2, parecer do Ministrio das Finanas, Gabinete do Ministro, Costa Leite Lumbrales, de 2 7 de Agosto de 1947).

3132

MdIbid.

33

Ibid

851

Maria Fernanda Rollo europeia, mas s podia continuar a faz-lo na medida em que lhe fosse possvel manter a liberdade comercial, por forma a garantir a defesa da sua produo e do seu nvel de vida, em conjugao com a prudente utilizao das reservas monetrias imprescindveis ao reequipamento do pas. Na opinio de Costa Leite, as estimativas das balanas de pagamentos pedidas por Paris implicavam e pressupunham uma planificao rgida do comrcio externo e dos pagamentos internacionais, que a conferncia parecia querer impor, mas que poderia limitar a liberdade monetria e comercial dos pases que ainda a conservavam, como era o caso de Portugal. Se o governo portugus entendesse conformar-se com os princpios de planificao impostos pela Conferncia de Paris, ento haveria que estabelecer uma planificao como condio prvia da previso das balanas, pois no via qualquer vantagem em fazer estimativas precipitadas. Por outro lado, o ministro das Finanas acreditava na capacidade de auto-recuperao do pas, apostando na fora da identidade nacional para fazer face ameaa de crise, sem que houvesse necessidade de recorrer ao auxlio externo. Mais, avaliava esse auxlio de forma bastante crtica, qualificando-o de imprprio e de intenes suspeitas: Se orientarmos devidamente o nosso comrcio externo, no careceremos de crditos em dlares, e no julgo que interesse ao pas, em face quer da Amrica do Norte quer da prpria Europa, enfileirar, sem necessidade, no nmero dos 'famintos do dlar'34. A poltica de comrcio externo preconizada pelo ministro das Finanas tinha como principal prioridade a satisfao das necessidades portuguesas em bens de equipamento, sobretudo se esses bens fossem adquiridos na zona do esterlino. A vantagem era bvia, uma vez que facilitava a liquidao dos saldos acumulados em Londres durante a guerra (por esse processo j haviam sido liquidados, aproximadamente, 5 milhes de libras, num total de 80 milhes). Dito de outra forma, com esta actuao seriam alcanados trs grandes objectivos: supriam-se as necessidades do reequipamento nacional, diminua-se o crdito portugus sobre a Gr-Bretanha e poupavam-se as reservas em dlares (ou equivalentes convertveis), que assim poderiam saldar os pagamentos a fazer, no futuro, aos Estados Unidos. Note-se, entretanto, que o sucesso desta estratgia e os reflexos que teria sobre a balana comercial portuguesa dependiam em grande parte de factores externos, que, por isso, no podiam ser eficazmente controlados pelas nossas autoridades. Da o alerta deixado pelo ministro j na parte final do seu parecer: Mas, se se mantiver e desenvolver a poltica por parte dos pases europeus, de vender a Portugal e nada comprar das suas mercadorias, para se pagarem em dlares das nossas reservas, ento estas para pouco chegaro, e deixaremos que se repita connosco o que se passou com a Inglaterra, com a nica diferena de que os dlares ingleses eram emprestados e os nossos so disponibilidades prprias35.34

852

35

ibid.

ibid.

Portugal e o Plano Marshall Em suma, a concluso do parecer com data de 27 de Agosto, do Ministrio das Finanas sobre o problema colocado, de Paris, pelo ministro dos Negcios Estrangeiros a seguinte: Creio que a nossa resposta deve ser semelhante da Sua, esclarecendo que Portugal, propondo-se equilibrar as suas trocas na zona europeia, fazer acordos comerciais nesse sentido, colaborar na possvel multilateralidade de pagamentos dentro dos pases europeus, no carece de crditos em dlares para as suas previsveis necessidades de pagamentos naquele pas [EUA]36. O parecer do ministro das Finanas teve nesta fase um peso determinante na definio da posio assumida pelo governo portugus. A 28 de Agosto Oliveira Salazar responde aos telegramas enviados por Caeiro da Matta. Os termos empregues, as justificaes apresentadas pelo presidente do Conselho so em tudo idnticos aos utilizados por Lumbrales. A deciso final a mesma: A posio a assumir semelhante Sua esclarecendo que Portugal se prope equilibrar as suas trocas zona europeia, fazer acordos facilitem liquidao dentro da mesma zona, e no carece nessas condies pesar procura europeia crdito americano para previsveis necessidades pagamentos zona dlar, nem pode suprir necessidades outros pases nesta moeda37. Por fim, a 22 de Setembro de 1947, os trabalhos da Conferncia de Paris so dados por encerrados com a cerimnia de assinatura, pelos delegados das dezasseis potncias, do relatrio geral a ser enviado ao governo americano. No discurso que profere na ocasio, Caeiro da Matta, acentuando o carcter favorvel da situao econmica e financeira portuguesa, confirma e divulga oficialmente a posio do governo portugus, de recusa da ajuda financeira americana nos termos da deciso tomada pelo presidente do Conselho38: Uma severa aco administrativa e financeira e a capacidade de sacrifcio do povo portugus permitiram que, nos ltimos vinte anos, o oramento portugus se mantivesse equilibrado e a moeda estvel; sobre estas bases assegurou-se produo do pas um progresso sem interrupo correspondente melhoria do nvel social do povo portugus. As felizes condies internas de Portugal permitem-me declarar que o meu pas no precisa de ajuda financeira externa39. Apesar desta atitude reveladora de alguma sobranceria, o ministro dos Negcios Estrangeiros no deixa de salientar a existncia de algumas condicionantes de carcter comercial que poderiam comprometer a curto prazo a manuteno da saudvel situao econmica e financeira portuguesa, que, no momento, permitia ao governo portugus declinar a oferta de auxlio financeiro norte-americano.ibid. A M N E , 2. piso, M 381, A 60, proc. 39.314, telegrama n. 258, 28 de Agosto de 1947, do presidente do Conselho para a Legao de Portugal em Paris. 38 Cf. AMNE, 2. piso, M 381, A 60, proc. 39.314, telegrama n. 399, 24 de Setembro de 1947, da Legao de Portugal em Paris, ministro dos Negcios Estrangeiros para o presidente do Conselho. 39 Jos Caeiro da Matta, Conferncia Europeia de Cooperao Econmica, i, em Paris, em 2 2 de Setembro de 1947, in Ao Servio de Portugal, Imprensa Portugal-Brasil, Lisboa, 1951, pp. 163-164.37 36

853

Maria Fernanda Rollo Caeiro da Matta procura subtilmente responsabilizar os delegados das potncias representadas nesse sentido. Na realidade, ao expor as necessidades portuguesas, o ministro d indirectamente a entender que a adeso do seu pas ao projecto de cooperao econmica elaborado em Paris, representando o seu envolvimento no processo de reabilitao dos pases europeus, que compreende a definio de um sistema de relaes comerciais entre pases, implica a adopo e o cumprimento de um compromisso multilateral em que no podem deixar de ser consideradas as especifdades apresentadas por Portugal. Assim sendo, Caeiro da Matta no perde a oportunidade da cerimnia para referir o facto de a realidade comercial portuguesa ser portadora de algumas vulnerabilidades, que, caso no sejam consideradas e devidamente prevenidas, podem traduzir-se em efeitos negativos duradouros e acabar por pr em causa o equilbrio econmico e financeiro portugus. E, retomando os argumentos do parecer de Costa Leite, Caeiro da Matta chama a ateno para o facto de, se os pases com os quais Portugal mantm relaes comerciais desfavorveis insistirem em utilizar no seu prprio benefcio as disponibilidades portuguesas em moeda americana40 e se no se tiverem presentes as necessidades portuguesas de exportao, a posio portuguesa poder ver-se seriamente comprometida. Assim suceder como adiante veremos. Apesar de a interveno de Caeiro da Matta ser reveladora de uma boa percepo das circunstncias conturbadas que no momento envolviam o comrcio internacional e da importncia de que se revestiam as relaes comerciais portuguesas com os pases europeus para o conjunto da economia do pas, essa conscincia, que era comum aos demais responsveis polticos portugueses, pecar, contudo, por defeito no que respeita avaliao do seu alcance. Foi assim que, a despeito de durante um curto perodo as autoridades portuguesas terem manifestado a sua compreenso e o seu apoio iniciativa americana, o governo portugus, pela voz autorizada do seu ministro dos Negcios Estrangeiros, rejeitou o auxlio proposto pelos EUA. Difundia-se, entretanto, pelo pas e no estrangeiro a notcia de que Portugal declinara a oferta de auxlio financeiro norte-americano. A deciso portuguesa, tal como era oficialmente apresentada opinio pblica, assentava em dois argumentos polticos fundamentais: porque a favorvel posio econmica e financeira do pas o permitia e porque, altruisticamente, se considerava um acto de injustia pesar [a] procura europeia [de] crdito americano41, privando dessa forma os pases mais necessitados do montante do auxlio que seria possivelmente concedido a Portugal. Esta razo sobreviveu e foi aproveitada como argumento abonatrio aquando da alterao que, como adiante veremos, se registar a breve trecho na posio do governo portugus em relao ao auxlio americano.Id., ibid., pp. 164-165. AMNE, 2. piso, M 381, A 60, proc. 39.314, telegrama n. 258, 28 de Agosto de 1947, do presidente do Conselho para a Legao de Portugal em Paris.41 40

854

Portugal e o Plano Marshall O mais interessante que a realada singularidade do caso portugus no resulta tanto do facto de Portugal aderir ao Plano Marshall sem solicitar auxlio financeiro, mas, sobretudo, da persistncia com que mantm essa deciso, tendo os responsveis polticos portugueses uma clara conscincia da crescente fragilidade da situao econmica do pas42. Apesar de j ter sido divulgada internacionalmente, a posio oficial do governo portugus s foi, segundo Franco Nogueira, definida bastante tempo depois de terminada a primeira Conferncia de Paris. A resoluo de rejeitar a aplicao do auxlio financeiro do Plano Marshall a Portugal data, segundo este autor, da reunio do Conselho de Ministros que teve lugar em 27 de Janeiro de 1948. Ao que parece, a deciso no ter sido tomada sem alguma controvrsia: Alguns ministros, mais directamente ligados ao fomento, inclinar-se-iam para aceitar a aplicao do Plano Marshall ao pas. Salazar segue, no entanto, um ponto de vista diverso. Tem o chefe do governo suspeitas dos objectivos americanos: receia que a penetrao dos Estados Unidos no sentido da Europa constitua, mais do que um auxlio a esta, um desgnio imperial de Washington; teme que uma preponderncia econmica e financeira americana no Ocidente europeu seja apenas uma forma de acesso s posies europeias no continente africano; e apavora-o a ideia de que a vulnerabilidade das estruturas portuguesas possa tornar estas presa fcil de um credor poderoso, que para mais se julga predestinado ao exerccio da hegemonia global43. A posio defendida pelo presidente do Conselho, j assumida como a deciso oficial do governo portugus nas declaraes do ministro dos Negcios Estrangeiros em Paris, era desta forma confirmada pelo gabinete. Note-se, entretanto, que a deciso de no comparticipar do auxlio financeiro americano colocado disposio dos pases europeus no implicou para Portugal qualquer alterao na sua qualidade de pas participante. Portugal continuar a tomar parte nas reunies e actividades dos 16 europeus, inserindo-se, como os restantes pases, nos mecanismos criados ao abrigo do Plano Marshall e assinando a Conveno da OECE em 16 de Abril de 1948. Mediante a assinatura da Conveno, o governo portugus comprometia-se, formalmente, a tomar parte e a aderir activamente aos princpios e objectivos fundamentais que regiam a nova organizao, inserindo-se por essa via num movimento de cooperao econmica promovido entre os pases europeus e vivamente apoiado pelos EUA. Contudo, a participao portuguesa manter-se- condicionada pelos limites considerados admissveis luz do pensamento e aco definidos pelo governo portugus.Note-se que, contrariamente Sua e Turquia, que dispensaram o auxlio financeiro, apresentando as respectivas balanas comerciais com os EUA valores positivos, previa-se e m finais de 1947 que a balana comercial de Portugal com os E U A registaria um dfice de 72 milhes de dlares no ano de 1948, o que obrigaria ao recurso sistemtico s reservas em ouro e dlares exibidas pelo governo portugus. 43 Franco Nogueira, Salazar, vol. iv, O Ataque (1945-1958), Livraria Civilizao Editora, Porto, 3.a ed., 1986, p. 89.42

855

Maria Fernanda Rollo 4. MOTIVOS DA REJEIO DA AJUDA FINANCEIRA MARSHALL: UMA INTERPRETAO O comportamento do governo portugus em relao fase de concepo e lanamento do Plano Marshall, desde a data do seu lanamento at ao momento da constituio da OECE, faz parte de um mesmo processo, cujo ponto alto resulta da combinao da definio da posio das autoridades governamentais portuguesas em rejeitar a assistncia financeira americana e em aderir ao novo movimento de cooperao econmica europeia. At a todas as negociaes foram encaminhadas no sentido da rejeio do auxlio financeiro norte-americano: s Caeiro da Matta e alguns diplomatas integrados nas estruturas da futura OECE encaravam, sem grande convico, certo, a hiptese contrria. a fase em que os princpios, as convices polticas e ideolgicas, postos em confronto com as novas realidades, se sobrepem claramente a estas ltimas. De resto, todos os elementos parecem convergir para esta soluo. No plano da poltica externa, a deciso da rejeio era a forma concordante com a vontade de manter inclumes os grandes princpios pelos quais a diplomacia de Oliveira Salazar se regia. Na realidade, o pensamento de Salazar, no qual se escudavam os responsveis polticos portugueses, contrariava os pilares fundamentais que asseguravam o lanamento do Plano Marshall, ou, por outras palavras, os trs grandes pressupostos que sustentavam a possibilidade de se efectivar o auxlio americano Europa e que correspondiam em primeira anlise ao objecto a que se dirigia a resposta portuguesa, ou seja: Que os pases europeus, beira da ruptura econmica e financeira, no dispunham dos recursos necessrios sua reconstruo; Que, por isso, necessitavam de um gigantesco auxlio externo, atribudo de uma forma sistemtica, que s os EUA se podiam propor disponibilizar; Que esse auxlio s poderia tornar-se exequvel se os prprios pases europeus se juntassem e colaborassem na construo de um programa comum para utilizao dessa ajuda. Aos trs pressupostos deste enunciado contrapunha Oliveira Salazar evocando, respectivamente, o recurso ao continente africano, a prudncia relativamente ao eventual alargamento da hegemonia norte-americana e a impossibilidade de xito da cooperao internacional. Alm disso, a poltica externa portuguesa encontrava-se definida no quadro de um arreigado esprito de autonomia e autarcismo. A estratgia que se advogava em Portugal para o ps-guerra consistia essencialmente na defesa da manuteno da poltica externa portuguesa tradicional, assente nos seus quatro vectores preferenciais: o Brasil, a Espanha, a Inglaterra e as colnias africanas. Mais, o pensamento poltico dos principais responsveis do regime caracteriza-

856

Portugal e o Plano Marshall va-se por um sentimento visceral de anticomunismo e por um mal-disfarado antiamericanismo. No contexto da guerra fria estes dois plos opostos tendiam a alastrar as suas contradies para o territrio europeu. Contradies que alis, se desvaneceriam, pois a prazo a evoluo dos acontecimentos viria a impor um crescente estreitamento ou uma aproximao pelo menos formal nas relaes de Portugal com os EUA. Alm do mais, se bem que de forma ainda incipiente, comeam a surgir na mente dos governantes portugueses os princpios de um futuro projecto que viria a constituir, simultaneamente, um elemento fundamental na conduo da poltica externa e uma alternativa, exclusivamente vlida para Portugal, que se contrapunha aos projectos europeus de cooperao internacional. Na circular datada de Maro de 1953, acima referida, aponta Oliveira Salazar que, face possibilidade de poder vir a constituir-se uma federao europeia, e se, como provvel, continuar a impor-se a poltica dos grandes espaos, pode visionar-se a possibilidade de se irem apertando mais e mais os laos de Portugal com o Brasil e a Espanha e da Espanha com as repblicas do centro e sul da Amrica, de modo que um grande bloco ibero-americano seja, ao lado da Comunidade britnica, e mesmo sem atingir o grau da sua estruturao constitucional, um factor poltico de grande relevo, pela populao, a riqueza potencial ou existente e a cultura ocidental44. Em moldes algo diversos, esta ideia da criao de uma unidade portuguesa que integrasse a metrpole e as colnias viria a ser retomada alguns anos mais tarde com um projecto destinado integrao do Espao Econmico Portugus. Por outro lado, a avaliao que era feita da situao econmica nacional era optimista; o governo tinha aprovado recentemente o lanamento de um processo de industrializao; por este lado parecia poder dispensar-se qualquer compromisso que envolvesse formas mais ou menos sofisticadas de dependncia externa. O nacionalismo autrcico, pelo qual os sucessivos governos do Estado Novo se tinham batido, mesmo que tivesse de se adaptar s novas circunstncias histricas, podia ser preservado, pelo menos, nos seus aspectos essenciais. Tal como no que respeita poltica externa, a atitude do governo portugus face ao Plano Marshall e cooperao econmica europeia encontrava-se, naturalmente, tambm por esta via, subordinada ao pensamento, situao, actuao e estratgia econmica propugnada para o ps-guerra. Mais uma vez surgem algumas contradies que o governo portugus procura superar. No entanto, to profundamente enraizada como os princpios da poltica externa, havia tambm a crena de que Portugal podia sobreviver e recuperar sozinho, com uma pequena colaborao como dizia Costa Leite. Na realidade, quer a nvel poltico, quer a nvel econmico, as convices e as estratgias definidas pelos responsveis polticos portugueses concorriam44 Texto extrado da Circular sobre a integrao europeia, para as misses diplomticas, do Presidente do Conselho de Ministros, de 6 de Maro de 1953, in Os Movimentos de Cooperao e integrao Europeia no Ps-Guerra e a Participao de Portugal Nesses Movimentos, Departamento de Integrao Europeia, INA (policopiado), p. 64.

857

Maria Fernanda Rollo para que se adoptasse a deciso de rejeitar o auxlio financeiro norte-americano a Portugal. Em suma, e no que se refere especificamente ao nosso tema, a actuao e a deciso protagonizadas pelo governo portugus no espao de tempo que medeia entre o discurso de Marshall e a adeso OECE pautaram-se essencialmente por uma atitude de cepticismo e de descrena em relao aos movimentos de cooperao internacional e de desconfiana em relao s posies americanas. No entanto, por vontade ou por necessidade, por habilidade diplomtica ou instinto, a poltica externa portuguesa foi sempre conduzida no sentido de no ficar de fora, no deixar de participar em nenhum dos diversos movimentos ou instituies que se foram manifestando na Europa, evitando a marginalizao de Portugal dos assuntos europeus ou mesmo mundiais. Por isso, sem se deixar enredar por nenhum movimento tendente unificao do espao europeu, no houve qualquer hesitao nem escrpulo em transigir sempre que foi necessrio. No fundo, Portugal juntou-se aos outros europeus de forma condicional e condicionada. F-lo, porm, sem grande convico e tambm sem grande empenhamento, procurando sobretudo compatibilizar estrategicamente duas vocaes sempre afirmadas: a ocidental e europeia (mas atlntica...) e a africana. Elementos de certa maneira marginais, mas que faziam parte desta estratgia de rejeio: a forma como se valorizou a importncia estratgica dos Aores e as contrapartidas que da podiam vir a receber-se e o ouro alemo, do qual as autoridades portuguesas no queriam ver-se despojadas. Trata-se de dois problemas de carcter conjuntural que, tendo sido evocados no decurso do processo, acompanharam de perto a definio da posio, da actuao e mesmo da deciso assumidas pelo governo portugus em relao fase inicial do Plano Marshall e que tinham ainda a particularidade de se encontrarem estreitamente associados s relaes bilaterais de Portugal com os EUA45. Por economia de espao no se trata aqui destas questes. Tudo se conjugava para o acerto do no, ou melhor, para a adopo de uma posio ambgua de adeso condicional que permitisse ao pas estar presente no desenrolar dos acontecimentos sem se comprometer demasiado.45 Medeiros Ferreira detecta e chama a ateno para isto mesmo, observando que est ainda por fazer a anlise detalhada de duas questes particulares que embaraavam as relaes entre Washington e Lisboa e que, concretamente, afligiam Salazar: a questo das indagaes sobre o ouro nazi possivelmente existente no Banco de Portugal e a permanncia de tropas norte-americanas na Base das Lajes, na ilha Terceira. Ora essas questes iro desenvolver-se num sentido menos dramtico do que o receado por Salazar: por um lado, o cair da cortina de ferro sobre os pases da Europa de Leste (cujos bancos tinham sido as principais vtimas dos saques alemes) tornou mais branda a presso das autoridades norte-americanas sobre a aquisio de ouro dessas provenincias durante a guerra; por outro lado, a diviso da Alemanha e o perigo sovitico deram o devido contexto ao estabelecimento de uma base permanente nos Aores por parte dos norte-americanos (Jos Medeiros Ferreira, art. cit, pp. 145-146).

858

Portugal e o Plano Marshall 5. CRISE E PRAGMATISMO: SOLICITAO DA AJUDA FINANCEIRA NORTE-AMERICANA Na sequncia da aprovao da Lei de Cooperao Econmica, os EUA procedem realizao dos passos preliminares destinados a implementar o ERP. De acordo com a seco 115 da referida lei, todos os pases presentes nas conferncias de Paris, aderentes por isso ao Plano Marshall, deveriam concluir com os EUA um acordo bilateral. O cumprimento deste procedimento era aplicado a todos os pases, incluindo os que no recebessem auxlio financeiro. Em 28 de Setembro de 1948 foi assinado em Lisboa, pelo ministro dos Negcios Estrangeiros, Caeiro da Matta, e pelo embaixador dos EUA em Portugal, Lincoln MacVeagh, o Acordo Bilateral de Cooperao Econmica entre Portugal e os EUA. O Acordo consagrava formalmente a adeso de Portugal ao ERP na qualidade de pas no beneficirio de auxlio financeiro. Ora, apesar de Portugal ter assinado o Acordo Bilateral na qualidade de pas no beneficirio, a verdade que j se tinham operado algumas alteraes na atitude de Portugal face aceitao desse auxlio, o que conduziu a que j em 27 de Setembro o governo portugus tenha anunciado informalmente a inteno de recorrer ao auxlio Marshall. Sucedeu que ao longo dos primeiros meses de 1948 se assistiu, pela primeira vez desde h alguns anos, a uma deteriorao acentuada da situao financeira e cambial portuguesa46. A balana de pagamentos de Portugal e colnias, que exibira um superavit de 4543 milhes de escudos em 1942, descera para 509 em 1946 e registava um saldo negativo de 2970 milhes de escudos em 1947, provocado sobretudo pelo aumento do dfice que a nossa balana comercial vinha apresentando desde 194447. O governo tentou, em vo, contrariar esta tendncia, sobretudo atravs das directrizes contidas em diplomas legislativos destinados a regulamentar o nosso comrcio externo48. Porm, em 1948 os saldos negativos das balanas comercial e de pagamentos so superiores aos de 1947. A deteriorao da situao econmica e financeira portuguesa devia-se sobretudo a quatro razes: (i) ao aumento das importaes, devido a uma crescente procura em resultado das restries da guerra e ao aparecimento de algumas tenses inflacionistas; (ii) forte diminuio das exportaes de alguns produtos e mercadorias anormalmente valorizados durante a guerra; (iii) ao aumento das importaes de produtos agrcolas devido escassez da produo de cereais, fortemente atingida pelos maus anos agrcolas de 1946 e 194749; (iv) ao aumentoCf. Relatrios do Banco de Portugal, 1947-1949. Cf. Relatrio do Banco de Portugal, 1948, p. 92. 48 V., especialmente, Decreto-Lei n. 36 594, de 20 de Novembro de 1947, cujo relatrio abre da seguinte forma: As actuais condies da economia mundial exigem no s uma observao permanente das operaes de comrcio externo, como o estabelecimento de uma adequada disciplina em funo dos superiores interesses nacionais a ele ligados, sejam de ordem comercial, monetria ou financeira. 49 Apoiado pela poltica de importaes promovida pelo ento ministro da Economia, Daniel47 46

Barbosa.

859

Maria Fernanda Rollo das importaes de equipamento industrial destinado a sustentar o programa de

industrializao lanado no final da guerra50. Como resultado de tudo isto,

registou-se uma acentuada diminuio das reservas em ouro e divisas, sobretudo nos anos de 1947 a 1949, ameaando assim o equilbrio financeiro, que constitua uma das pedras de toque da poltica econmica do regime. Por outro lado, uma vez posto em marcha, o ERP provocava a manifestao de alguns sintomas adversos em relao situao econmica e financeira portuguesa, uma vez que Portugal, voluntariamente ou no, se encontrava efectivamente ligado aos demais pases europeus, associado evoluo da conjuntura econmica internacional dominada no momento pela evoluo e resultados do ERP: o que se previa e temia acabou por acontecer e as vulnerabilidades da economia portuguesa acabaram por ser agravadas pela recuperao dos pases europeus. Os responsveis polticos portugueses tinham conscincia desta situao desde o incio do Plano Marshall, e mesmo no momento em que decidiram rejeitar comparticipar do auxlio financeiro norte-americano subestimavam, todavia, o seu alcance. Procuravam contrari-la em diversas frentes, nomeadamente aproveitando da sua adeso Conferncia de Paris e OECE. Guiados por um esprito de algum voluntarismo e optimismo, acreditavam que seria possvel ultrapass-la. Este optimismo ver-se-ia, contudo, frustrado a muito breve trecho. Sobretudo porque a atitude de sobreavaliao das capacidades e potencialidades do aparelho econmico nacional e dos resultados do programa industrial, desenvolvida no quadro de um arreigado esprito de autarcismo econmico, era acompanhada por uma atitude de subestimao da dimenso e dos efeitos que a crise internacional de comrcio e pagamentos poderia vir a ter em Portugal. A partir de determinada altura a situao toma-se dificilmente controlvel. As medidas internas adoptadas, quer de restrio ao comrcio importador, quer de incentivo exportao, revelam-se insuficientes e ineficazes; as disponibilidades em reservas monetrias, sobretudo em dlares, diminuam progressivamente face incapacidade do comrcio exportador em provocar a sua renovao constante; o comrcio com os pases da OECE e com os EUA passa a ser regulado pelos mecanismos determinados pelo ERP. Paralelamente, o governo portugus no pode abdicar do seu programa econmico, cuja satisfao exige importaes crescentes em bens de equipamento, que vm ampliar o j elevado ndice de bens importados. No incio de Maro, dias antes da abertura da segunda Conferncia de Paris, o embaixador Teotnio Pereira envia para o Ministrio um telegrama alarmante: As previses pessimistas sobre a situao do mercado norte-americano noConsubstanciado principalmente nas Leis n. 2002, de 26 de Dezembro de 1944 (Lei da Electrificao Nacional), n. 2005, de 14 de Maro de 1945 (Lei do Fomento e da Reorganizao Industrial), e n. 2008, de 7 de Setembro de 1945 (que institui um sistema de coordenao dos transportes terrestres).50

860

Portugal e o Plano Marshall que diz respeito ao fornecimento de ferro e ao foram ultrapassadas em circunstncias extremamente graves para ns [...] Os contingentes que nos foram atribudos para pouco ou nada chegaro no representando seno um sexto das encomendas recomendadas pelo Conselho Tcnico Corporativo. No se v possibilidades de obter quaisquer licenas extracontingente51. E encerra o telegrama com uma nota de desnimo: Com o agravamento das restries da exportao americana desde que se esboou a execuo do Plano Marshall, Portugal est sendo relegado para a categoria dos pases mais prejudicados. No conseguimos o reconhecimento do total das nossas necessidades e o facto de ainda possuirmos alguns dlares joga em nosso desfavor52. Alguns dias mais tarde Toms Fernandes, delegado em Paris, que manifesta a mesma apreenso num relatrio elaborado sobre a actuao do grupo de trabalho destinado a preparar a conveno da futura OECE53. Face ao progressivo agravamento da situao do comrcio externo portugus, acompanhado de uma visvel deteriorao da posio financeira e cambial do pas, o ministro das Finanas acciona mais uma medida destinada a aliviar a crise. Nos finais de Junho de 1948, Costa Leite redige um memorando onde formula uma proposta do governo portugus para obter cooperao financeira dos EUA sob a gide da ECA54. O memorando, apresentado nos primeiros dias de Julho ao conselheiro comercial da Embaixada dos EUA em Portugal com o pedido de ser transmitido ao Departamento de Estado norte-americano55, inclua uma sugesto do ministro das Finanas relativa ao desejo do governo portugus de, aproveitando a poltica de auxlio americano Europa, transferir para os EUA 40 milhes de libras do crdito de Portugal sobre a Inglaterra. O ministro tem naturalmente em considerao o facto de estar em execuo o Plano Marshall, concretamente a existncia dos crditos americanos colocados disposio dos pases europeus e que Portugal recusara, e nesse sentido que observa: O recurso a emprstimos para fomento ao abrigo do Plano Marshall melhoraria, talvez, a situao, mas, certamente, de maneira bastante limitada porque, mantendo-se um saldo em esterlino muito forte para a economia portuguesa, no desapareceria o estmulo para a preferncia Inglaterra em determinados abastecimentos, ainda que custa de maior morosidade na execuo de planos industriais e de obras pblicas, tanto na metrpole como nas colnias.51 A M N E , Plano Marshall I, 2. piso, M 236, A 40, proc. n. 41.11, 1948, carta, 11 de Maro de 1948, do director-geral dos Negcios Econmicos e Consulares para o Ministro dos N e g c i o s Estrangeiros, transcrevendo a comunicao da Embaixada de Portugal e m Washington. 52 Ibid. 33 Relatrio sobre a actuao do grupo de trabalho e respectivos subcomits, Toms Fernandes, 27 de Maro de 1948. 54 A M N E , Plano Marshall, 2. piso, M 771, A 9, proc. 42.4, 2 4 de Junho de 1948 (ministro das Finanas, Joo Pinto da Costa Leite Lumbrales). 55 Cf. N A R A , RG 59, 840.50-RECOVERY-1945-1949, box 5768, 840.50 RECOVERY/7-1648, carta n. 263, 16 de Julho de 1948, da Embaixada dos EUA em Portugal para o Departamento de

Estado dos EUA.

861

Maria Fernanda Rollo Por outro lado, no resolveria por si as dificuldades no comrcio de produtos acabados menos essenciais56. Tudo isto exposto, o ministro das Finanas passa a apresentar a proposta do governo portugus ao governo dos EUA: [...] considerando ainda que o crdito de Portugal sobre a Inglaterra foi em grande parte proveniente de exportaes que auxiliaram o esforo de guerra anglo-americano [o que justificava moralmente a proposta], julga-se que a soluo mais adequada para a colaborao da Amrica com Portugal seria a seguinte: Os Estados Unidos tomariam uma parte, por exemplo, 50% ou 40 milhes de libras dos saldos portugueses em esterlino-ouro, com todas as suas garantias e condies de reembolso; A importncia em dlares dos Estados Unidos correspondentes quela importncia seria utilizvel unicamente na aquisio, nos Estados Unidos, de equipamentos e mercadorias para execuo de planos de fomento na metrpole e colnias. Por esta forma, equilibrada a composio das reservas de circulao, desapareceriam razes de preferncia em favor de qualquer das zonas nas aquisies indispensveis ao apetrechamento do pas e apressar-se-ia o ritmo desse apetrechamento, resultados estes que coincidem com os objectivos do Plano Marshall. Uma poltica activa de produo e exportao, para a Amrica, de alguns dos nossos produtos (conservas, vinhos, cortia, produtos coloniais cacau, caf, por exemplo), bem como o aumento de produo pelos grandes planos em curso, equilibrariam entretanto o comrcio de produtos correntes, assegurando um desenvolvimento estvel do trfego de Portugal e Colnias com a Amrica do Norte57. A transferncia, a efectuar-se, deveria ser feita de acordo com o governo ingls e nos termos do acordo financeiro anglo-portugus. claro que a razo de ser da proposta se fundamentava na vontade do governo portugus em ficar habilitado a efectuar compras de bens essenciais nos EUA. A operao permitia resolver simultaneamente dois problemas: colmatar a escassez das reservas portuguesas em dlares e ultrapassar a incapacidade de fornecimento de bens necessrios ao reequipamento industrial do pas por parte da Gr-Bretanha. Alm disso, dado que o crdito sobre a Inglaterra era substancialmente superior aos 40 milhes de libras contemplados na proposta, Portugal podia propor esta operao mantendo a sua forte posio credora em relao Inglaterra e, finalmente, Portugal vendia aos EUA este crdito mal parado que a Gr-Bretanha havia contrado. Note-se que a sugesto foi feita a ttulo confidencial, sem ser comunicada ao governo ingls e sem o propsito de a transformar em proposta oficial antes de conhecer a reaco do governo americano.36

Ibid.

862

57

ibid.

Portugal e o Plano Marshall Esta quase derradeira hiptese, a que se havia recorrido na tentativa de procurar obviar ao problema financeiro portugus, ver-se-ia malograda a muito breve trecho, constituindo mais um testemunho de como as autoridades portuguesas procuraram evitar at ao fim o recurso aos crditos Marshall. No dia 15 de Julho o secretrio de Estado norte-americano George Marshall responde ao telegrama do embaixador MacVeagh e proposta portuguesa. A resposta peremptoriamente negativa: No h hiptese de os EUA ou de a ECA poderem aceitar crditos esterlinos portugueses em troca por dlares conforme sugerido no telegrama 389 de 3 de Julho58. Alm disso, acrescenta Marshall para conhecimento exclusivo do embaixador, qualquer assistncia da ECA a Portugal deve assumir a forma de crdito ECA nos termos usuais. Na ausncia de desenvolvimentos crticos improvvel que Portugal possa obter essa assistncia num futuro prximo, tendo em considerao os fundos limitados da ECA e a necessidade urgente em dlares de outros pases59. De Lisboa, o prprio presidente do Conselho que intervm directamente no assunto: Extrema reserva e laconismo resposta americana [...] no nos permitem fazer ideia exacta pensamento Estados Unidos acerca sugesto por ns apresentada [...] Telegrafou-se Washington a recomendar esforos sentido obter mxima discrio esclarecimentos possveis60. Estamos em Agosto de 1948, nas vsperas de se operar uma alterao radical na atitude do governo portugus e na consequente deciso de rejeitar auxlio financeiro Marshall para Portugal. Nos meses seguintes o governo portugus vai solicitar e bater-se para que Portugal seja contemplado na distribuio dos crditos Marshall e, directamente ou atravs dos seus representantes diplomticos, envidar todos os esforos no sentido de obter junto do governo norte-americano, da ECA e da OECE o mximo no montante de auxlio financeiro norte-americano a atribuir a Portugal. Com o fracasso da proposta portuguesa de transferir o crdito sobre a Gr-Bretanha para os EUA a troco de dlares, consumou-se a ltima possibilidade de evitar recorrer ao auxlio Marshall. Na altura detectam-se alguns sinais de desespero e impotncia das autoridades portuguesas perante a crise financeira e comercial que alastra em Portugal.58 WNRC, RG 469, Records of the US Foreign Assistance Agencies, 1948-1961, Administrative Services Division Communications and Records Unit, Geographical Files, Portugal, box 2 7 5 , telegrama n. 347, 15 de Julho de 1948, do secretrio de Estado dos E U A para o embaixador de Portugal em Washington. A Irlanda, cujos crditos sobre a Inglaterra tinham atingido a cifra de 300 milhes de libras durante a guerra, tambm tinha tentado transferir parte dos seus crditos para os EUA. Tal como aconteceu no caso portugus, a proposta viu-se frustrada e a Irlanda foi obrigada a pedir um emprstimo enquadrado no Plano Marshall (cf. AMNE, Plano Marshall, 2. piso, M 771, A 9, proc. 42.4, s. d.). 59 Md. 60 A M N E , Plano Marshall, 2. piso, M 771, A 9, proc. 42.4, telegrama n. 177, 2 0 de Julho de 1948, do presidente do Conselho para a embaixada de Portugal em Paris, ministro dos Negcios

Estrangeiros.

863

Maria Fernanda Rollo A 20 de Julho de 1948 Oliveira Salazar, apreensivo face aos acontecimentos, e dando mostras de uma flexibilidade que at a tinha evitado usar, coloca, por fim, a hiptese de se recorrer ao auxlio Marshall. Deixando para trs a deciso inicial de rejeitar auxlio Marshall para Portugal, o governo portugus foi desenvolvendo uma intensa actividade por forma a criar as condies favorveis obteno e aplicao do auxlio de que agora considerava necessitar. Durante o ms de Agosto de 1948 foi sendo preparada a legislao que havia de conduzir constituio da Comisso Tcnica de Cooperao Econmica Europeia (CTCEE), cuja criao e definio de competncias datam de 1 de Setembro do mesmo ano61. Alguns meses depois, e com funes complementares das da Comisso Tcnica, criado o Fundo de Fomento Nacional62, destinado primordialmente a administrar a utilizao por Portugal da ajuda do ERP americano, mais geralmente conhecido por 'ajuda Marshall'63. Finalmente, em 27 de Setembro de 1948, na vspera da assinatura do Acordo Bilateral de Portugal com os EUA, o representante de Portugal na OECE d conhecimento informal a Harriman da inteno do governo portugus em solicitar ajuda indirecta do Plano Marshall para Portugal. No mesmo dia Teixeira Guerra informa o Ministrio dos Negcios Estrangeiros de que, em sua opinio, baseada em exame circunstncias e numerosas conversas ser impossvel conseguir Portugal seja beneficiado este ano auxlio americano [...] Nesta questo como nos demais aspectos actividade OECE no possvel deixar de ter em conta que nossa posio ainda a que definimos em Setembro de 1947 quando declarmos no necessitar assistncia financeira64. Note-se que a hiptese de solicitar auxlio americano para Portugal foi considerada por fora das circunstncias e executada a algum contragosto, tendo como primeiro objectivo obviar s crescentes dificuldades de carcter financeiro registadas no pas. Naturalmente que, dada a urgncia da questo, a inteno dos responsveis portugueses, designadamente do ministro das Finanas, que viram no recurso ao auxlio americano uma forma de ultrapassar o problema financeiro, seria a de procurar obt-lo sem mais demoras, dentro ainda do primeiro exerccio Marshall. A hiptese de conseguir a comparticipao de Portugal na distribuio dos crditos relativos ao primeiro exerccio Marshall j no era, contudo, vivel.61 Cf. despacho do Conselho de Ministros de 25 de Agosto de 1948, publicado no Dirio do Governo, l. 8 srie, de 1 de Setembro de 1948, que cria a CTCEE, que ficou funcionando junto do Instituto Nacional de Estatstica. 62 Decreto-Lei n. 37 354, publicado no Dirio do Governo, l. a srie, de 26 de Maro de 1949. 63 25 Anos de Administrao Pblica, Presidncia do Conselho, Imprensa Nacional, Lisboa, 1953, p. 142. 64 AMNE, Plano Marshall III, 2. piso, M 238, A 40, proc. 41.11, 1948, telegrama, 2 7 de Setembro de 1948, da Embaixada de Portugal em Paris para o ministro dos Negcios Estrangeiros.

864

Portugal e o Plano Marshall Excluda a possibilidade de obter auxlio financeiro no primeiro ano Marshall, at Julho de 1949, o governo portugus aposta na sua candidatura ao segundo ano. A admisso de Portugal entre os pases comparticipantes do auxlio Marshall pressupunha, como condio indispensvel, a apresentao de um programa econmico a longo prazo e do programa para 1949-1950 que justificasse o auxlio solicitado. Esses programas deviam ser analisados e aprovados nas reunies da OECE, onde competiria estarem presentes tcnicos portugueses que os defendessem e justificassem. O programa a longo prazo, segundo as directrizes da OECE, devia compreender um esquema geral dos objectivos de produo e consumo nacionais, um relatrio circunstanciado sobre as obras ou fins econmicos a realizar at 1952-1953 e a estimativa das balanas comercial e de pagamentos com as diversas zonas monetrias. Da apresentao destes dados dependia o quantitativo do auxlio a ser prestado a Portugal. O programa apresentado em Paris, em Novembro de 1948, estimava em 625 milhes de dlares o capital necessrio sua execuo, e foi esse o montante solicitado por Portugal ECA. Portugal procurava no auxlio americano o financiamento de um plano de fomento econmico de larga envergadura que extrapolava os propsitos bsicos do ERP. A segunda pea da candidatura portuguesa ajuda Marshall era constituda pelo programa especfico para 1949-1950. Num documento mais tcnico e muito quantificado, o governo portugus retoma as linhas gerais do programa a longo prazo, colocando nfase na compra de equipamentos ao exterior afectos a cinco grandes reas: Energia, irrigao e indstria mineira do ferro; Transportes; Indstria transformadora; Agricultura; Sade e educao.

Tudo somado, essa compra de equipamentos totalizava cerca de 90 milhes de dlares e representava 28% do total solicitado para o efeito no programa global. Os restantes 300 milhes de dlares destinavam-se concretizao, ao longo dos anos de vigncia do Plano Marshall (1949-1952), dos empreendimentos onde tais equipamentos seriam incorporados. A administrao americana, tomando conhecimento do programa econmico portugus, sugere que se atribuam a Portugal no ano Marshall 1949-1950 10 milhes de dlares, montante que, como bvio, ficava muito aqum do que havia sido pedido pelo governo portugus. Em Portugal, a notcia, j divulgada internacionalmente, de que a ECA havia proposto uma adjudicao preliminar de 10 milhes de dlares ao nosso

pas mantida fora do conhecimento geral: No curso normal dos acontecimen-

865

Maria Fernanda Rollo tos, a imprensa de Lisboa, na manh de 10 de Fevereiro, teria reproduzido, na sua maior parte, o depoimento ao Congresso respeitante alocao provisria dos fundos da ECA no ano fiscal de 1949-50 [...] acentuando particularmente os $10 000 000 atribudos a Portugal. Contudo, essa informao no foi publicada [em Portugal] provavelmente devido disparidade existente entre esta soma e a que foi pedida pelo Governo portugus, o que poderia ter dado azo a comentrios embaraosos da Oposio65. Na realidade, e no contexto portugus da poca, onde a censura ao meios de comunicao social actuava eficazmente, o facto no de estranhar, tanto mais que o pas se encontrava em pleno perodo eleitoral. A divulgao dessa notcia nas vsperas das eleies presidenciais de 13 de Fevereiro de 1949, que haveriam de reconduzir scar Carmona Presidncia da Repblica, s poderia mesmo ter efeitos negativos66. Refira-se, no entanto, o desapontamento sentido pelas autoridades portuguesas em relao drstica reduo no montante de auxlio financeiro solicitado. As circunstncias haviam obrigado, contra vontade, o governo portugus a proceder a uma completa inverso na deciso sobre o auxilio americano. Uma vez assumida a nova posio, que de alguma forma esbatia a relutncia em permitir que o pas comparticipasse da ajuda Marshall, surgia a expectativa de o auxlio norte-americano poder vir permitir no s vencer o estado deficitrio das suas finanas e ultrapassar a grave crise econmica com que se debatia, como ainda fomentar o desenvolvimento econmico do pas. O sentimento antiamericano foi momentaneamente esquecido quando as esperanas se depositavam na possibilidade de os EUA financiarem o to almejado arranque industrial do pas e, no fundo, proporcionarem economia de Portugal e das colnias um nvel equiparvel ao das naes mais industrializadas. Da que os primeiros desiludidos tenham sido o prprio presidente do Conselho e o ministro das Finanas, que escassos meses atrs se tinham declarado to veementemente contra qualquer possibilidade de auxlio norte-americano. A 7 de Junho Oliveira Salazar declarava, com algum desespero, perante o Conselho de Ministros, ser gravssima a situao econmica e financeira do pas. Dos crditos a serem concedidos pelos Estados Unidos, ao abrigo do Plano Marshall, apenas seria possvel contar com cerca de dez milhes de dlares, e no com os sessenta a cem milhes que Portugal acabara por solicitar67. Na emergncia recorre sua poltica econmica mais tradicional para fazer face deteriorao da situao econmica e financeira do pas: prope65 N A R A , RG 59, 853-Portugal-1945-1949, box 6365, 853.00/2-1749, aerograma n. 60, 17 de Fevereiro de 1949, da Embaixada dos EUA em Portugal para o secretrio de Estado dos EUA, e N A R A , RG 59, 853-Portugal-1945-1949, box 6364, 853.00(W)/2-1949, aerograma n. 6 3 , 19 de Fevereiro de 1949, da Embaixada dos EUA em Portugal para o secretrio de Estado dos EUA. 66 A notcia s foi divulgada na imprensa portuguesa em Maro (cf. Jornal do Comrcio de 17 de Maro de 1949). 6? Franco Nogueira, Salazar, cit, p. 149.

866

Portugal e o Plano Marshall aos ministros o aumento do adicional sobre algumas importaes, o aumento dos impostos sobre alguns produtos industriais, a conteno de gastos na administrao pblica. Em Julho de 1948 Portugal apresenta na OECE, com a assistncia de funcionrios da ECA, a reviso do seu programa para 1949-1950, demonstrando a deteriorao crescente de que vinha sendo objecto a economia portuguesa68. A Portugal foram, por fim, concedidos 31,5 milhes de dlares a ttulo de auxlio directo, mantendo-se o montante de auxlio indirecto que tinha sido previsto. A verba no tinha praticamente expresso no total da ajuda directa atribuda nesse ano pela ECA aos pases europeus, representando apenas 0,8% daquele total. Como, em qualquer caso, essas verbas s ficaram disponveis a partir de Fevereiro de 1950, Portugal s se tornou beneficirio de facto do Plano Marshall praticamente dois anos depois dos restantes pases da Europa ocidental69. A utilizao dessa ajuda directa fez-se pela apresentao dos pedidos de autorizao ECA e pela emisso das subautorizaes respectivas emitidas pela CTCEE. Alm da ajuda directa, foram, como j apontmos, atribudos a Portugal 27,2 milhes de dlares de ajuda indirecta70, constituda por direitos de saque sobre outros pases participantes da OECE e destinada a cobrir os dfices previstos da balana de pagamentos de Portugal com esses pases. Anote-se que no terceiro exerccio Marshall, 1950-1951, Portugal recebeu ainda, a ttulo de ajuda directa, 18,3 milhes de dlares71. Todavia, no ano seguinte, o ltimo ano Marshall, voltou a alterar-se a posio portuguesa e Portugal regressou posio inicial de pas no beneficirio de auxlio financeiro Marshall. As razes que agora podem ser apresentadas j nada tm a ver com os argumentos invocados para a recusa inicial. No fundo, a deciso de voltar posio de no beneficirio foi tomada de comum acordo pelas autoridades68 Cf. AMNE, embaixadas e legaes, Washington, M 153 (1949), proc. 83 a 85.10, carta n. 46, 11 de Junho de 1949, do director-geral dos Negcios Econmicos e Consulares para a Embaixada de Portugal e m Washington, NARA, RG 59, 853-Portugal-1945-1949, box 6366, 853.00(W)/7-1449, aerograma n. 252, 14 de Julho de 1949, da Embaixada dos EUA em Portugal para o secretrio de Estado dos EUA, WNRC, RG 469, Records of the U S Foreign Assistance Agencies, 1948-1961, Administrative Services Division Communications and Records Unit, Geographical Files, Portugal, box 278, cabograma n. 266, de 16 de Julho de 1949, da Embaixada dos E U A em Portugal para o secretrio de Estado dos EUA, e NARA, RG 59, 853-Portugal-1945-1949, box 6365, 853.00/7-2949, aerograma n. 278, 2 9 de Julho de 1949, da Embaixada dos E U A e m Portugal para o secretrio de Estado dos EUA. 69 N A R A , RG 59, 853-Portugal-1950-1954, box 5035, 853.20/9-2452, memorando Portugal ECA/MSA, 1950-1953, de 28 de Setembro de 1952, do embaixador dos EUA em Portugal. 70 Ibid. 71 Ibid. Neste terceiro ano do ERP, 1950-1951, o sistema de auxlio em direitos de saque foi abolido na sequncia da criao da Unio Europeia de Pagamentos. As liquidaes intra-europeias passam, assim, a fazer-se atravs da UEP, pela compensao peridica dos excedentes e dos dfices bilaterais

de cada uma das partes contratantes.

867

Maria Fernanda Rollo portuguesas e pelas americanas e tem bastante a ver com o que podemos designar de perverso do Plano Marshall. Ambos os governos concordaram que a ajuda americana, na verso Marshall primitiva, depois do reequilbrio da balana de pagamentos portuguesa, se tornava desnecessria. Da mesma forma que o governo americano, querendo ver Portugal participar do esforo de rearmamento europeu para fazer face ao expansionismo sovitico se conforma com a recusa portuguesa de entrar por essa via. De facto, do ponto de vista estratgico-militar, Portugal tinha participado da fundao da NATO, o que, no fundo, significava a adeso de Portugal estratgia militar norte-americana. Ou, dito de outra maneira, com as facilidades j concedidas nos Aores e a participao dos Portugueses na NATO, os Americanos j tinham conseguido o que necessitavam do governo de Oliveira Salazar e este estava porventura mais empenhado no desenvolvimento econmico que no rearmamento, que obtinha, alis, atravs da NATO. Neste contexto, foi fcil chegar a um acordo: Portugueses e Americanos concordaram numa ajuda zero, mantendo-se Portugal integrado em todas as estruturas entretanto criadas (nomeadamente na OECE e na UEP), procurando alcanar determinados objectivos de carcter comercial e como forma de mostrar a sua boa vontade para com os parceiros europeus e americanos, prosseguindo uma poltica externa que aps o fim da guerra, e simplificadamente, se considerava em torno de quatro pilares fundamentais: atlantismo, manuteno das relaes privilegiadas com a Espanha, cooperao com a Europa ocidental (que havia de conduzir o pas posio de fundador da EFTA) e, obviamente, a defesa e o reforo dos laos com as colnias. De tudo o que deixmos escrito fica-nos a certeza de que Portugal, aps algumas hesitaes, participou de corpo inteiro no Plano Marshall e que, para alm do auxlio indirecto, mais difcil de contabilizar, beneficiou directamente de um montante total que ultrapassou os 54 milhes de dlares72. No nos possvel, por enquanto, medir integralmente o significado e o alcance que essa assistncia financeira ter tido efectivamente para a economia portuguesa; no nos possvel to-pouco medir as repercusses, os efeitos cumulativos, a contribuio que ter tido para a estabilizao da situao financeira nacional, nomeadamente no que respeita conteno e superao da crise multifacetada que comeou a abalar a sociedade portuguesa pouco depois da cessao das hostilidades. De todo o processo de negociaes j estudado resta-nos a certeza de que, para alm de ter constitudo um dos primeiros passos no sentido da abertura e, mais do que isso, da internacionalizao da economia portuguesa, a ajuda Marshall, atravs dos mecanismos que desencadeou, permitiu reduzir o dfice da nossa balana de pagamentos e, em graus diferentes, concorreu para o72 31,5 milhes de dlares em 1949-1950, mais os 18,3 relativos a 1950-1951 e mais os 4,2 milhes de dlares ao abrigo de outro tipo de financiamentos.

868

Portugal e o Plano Marshall arranque do ento incipiente processo de industrializao, permitiu o incio ou o prosseguimento da construo das barragens produtoras de energia elctrica, contribuiu para o desenvolvimento das vias de comunicao e, consequentemente, para a unificao do mercado, facilitou o abastecimento de bens alimentares essenciais, necessrios para debelar a crise e para lhe minorar os efeitos econmicos e sociais. Para responder a algumas destas questes existem sinais evidentes: para alm da assistncia financeira propriamente dita e da assistncia tcnica, no podemos esquecer a abertura para novas formas de encarar a poltica econmica atravs do planeamento econmico materializado em sucessivos planos de fomento, a constituio de uma elite tcnica formada nos contactos e nos trabalhos levados a efeito no interior de uma multiplicidade de instituies internacionais (na primeira linha das quais se encontra naturalmente a OECE), o acrscimo de conhecimento sobre os meandros do comrcio internacional e a aprendizagem intensiva para lidar com os novos instrumentos do sistema monetrio e financeiro internacional sado de Bretton Woods. Sabemos, conforme se referiu acima, que o Plano Marshall interessou uma parte significativa dos agentes econmicos do pas, incluindo o prprio Estado. Em estudos futuros tentaremos compreender por que que, apesar de tudo, outros agentes econmicos privados bem poderosos e capazes de constituir catalisadores, por exemplo do processo de industrializao, no estavam igualmente presentes. Em aberto fica ainda uma questo controversa, em relao qual no temos tantas certezas, e que historiadores de toda a Europa tm posto em relao a certos pases, ou mesmo em relao Europa como um todo, e que tambm se colocou para Portugal: at que ponto e em que medida as autoridades portuguesas souberam aproveitar o Plano Marshall, potenciando as suas virtualidades ou superando os seus inconvenientes? Apesar de tudo, no podemos deixar de reassinalar que entre Setembro de 1947 e Setembro de 1948, o governo portugus efectuou aquela que consideramos ser uma das mais importantes (e agora evidente) inverses de poltica externa levada a cabo durante a vigncia do Estado Novo, alterando no espao de um ano a sua posio face ao auxlio financeiro Marshall e o que isso significou em termos dos aspectos estratgicos essenciais dessa poltica externa. Dito por outras palavras: o Plano Marshall foi o elemento causador de uma das mais significativas alteraes da poltica externa portuguesa conduzida pelos governos de Oliveira Salazar.

869