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Capítulo x Intervenções Breves (IB) em Instituição Silvia Ancona-Lopez 1 “...as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível.” (José Saramago p. 249) A importância e a eficácia das Psicoterapias Breves (PB) não é colocada em dúvida, hoje em dia, principalmente no âmbito das instituições de saúde mental. Na verdade, como lembra Yoshida (1990) a maioria das técnicas de P8 surgiu “da prática institucional de seus proponentes (...) e representa a forma como cada um deles respondeu às contingências de sua realidade” (p. 1). Em sua cuidadosa revisão do movimento das PB a mesma autora aponta para a tendência nos países desenvolvidos “de se buscar técnicas que contam com estratégias bem-definidas e que se apliquem a públicos-alvo específicos” enquanto nos “países sul-americanos, apesar do interesse crescente por técnicas breves prevalece o empirismo com que cada profissional procura corresponder à ampla demanda existente no campo da saúde mental” (p. 77). A concepção do trabalho psicológico em instituições não é clara e ao se defrontar com dificuldades para determinar seu papel, temeroso de construir um novo “modus ope- 155

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A importância e a eficácia das Psicoterapias Breves (PB) não é colocada em dúvida, hoje em dia, principalmente no âmbito das instituições de saúde mental. Na verdade, como lembra Yoshida (1990) a maioria das técnicas de P8 surgiu “da prática institucional de seus proponentes (...) e representa a forma como cada um deles respondeu às contingências de sua realidade” (p. 1).

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Capítulo x

Intervenções Breves (IB) em Instituição

Silvia Ancona-Lopez

1

“...as respostas não vêm sempre que são precisas, e mesmo sucede muitas vezes

que ter de ficar simplesmente à espera delas é a única resposta possível.” (José Saramago p. 249)

A importância e a eficácia das Psicoterapias Breves (PB) não é colocada em dúvida, hoje em dia, principalmente no âmbito das instituições de saúde mental. Na verdade, como lembra Yoshida (1990) a maioria das técnicas de P8 surgiu “da prática institucional de seus proponentes (...) e representa a forma como cada um deles respondeu às contingências de sua realidade” (p. 1). Em sua cuidadosa revisão do movimento das PB a mesma

autora aponta para a tendência nos países desenvolvidos “de se buscar técnicas que contam com estratégias bem-definidas e que se apliquem a públicos-alvo específicos” enquanto nos “países sul-americanos, apesar do interesse crescente por técnicas breves prevalece o empirismo com que cada profissional procura corresponder à ampla demanda existente no campo da saúde mental” (p. 77). A concepção do trabalho psicológico em instituições não é clara e ao se defrontar com dificuldades para determinar seu papel, temeroso de construir um novo “modus ope-

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randi”, o psicólogo prefere “a ‘adaptação’ de práticas próprias da clínica particular (muitas vezes) sem o necessário cuidado com sua adequação” (Monachesi, 1995, p. 202). Este não é o caso das PB, que já contam em nosso país com profissionais reconhecidamente competentes, no entanto, outras possibilidades de atuações breves no campo do atendimento psicológico ainda se mostram incipientes. Em instituições de saúde mental nem sempre é possível estabelecer as condições necessárias para um atendimento em psicoterapia breve. Há situações em que não se pode prever a permanência do cliente’ naquele local e nem mesmo propor

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um número limitado de sessões. Outras vezes ocorrem imprevistos que exigem a intervenção imediata do profissional.2 Do mesmo modo, a primeira vez que se recebe um paciente, inevitavelmente estaremos diante de uma incógnita quanto a possibilidade de poder continuar a atendê-lo, O que fazer nestas circunstâncias? Os vícios estruturais da organização dos serviços de saúde em geral e a condição multi-paradigmática da psicologia tornam a situação do profissional que neles atua, no mínimo, incômoda. E comum que o psicólogo seja solicitado “a exercer seu ofício sem indicações teóricas suficientes” (Ancona-Lopez, M., 1993) para dar conta da situação por que em psicologia “fora de alguns limites estreitos as atuações se defrontam com o desconhecimento”. (idem, p. 5) As conjunturas institucionais, na maioria das vezes, levam ao rompimento do contrato (compreendido no seu sentido mais amplo) defrontando o profissional com lacu-

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nas teóricas, obrigando-o a equilibrar-se nos limites entre teoria e prática e exigindo uma atitude flexível e inventiva embora necessariamente responsável. Como aponta Figueiredo(1995), ater-se a uma teoria em um campo movediço pode afastar o psicólogo de suas experiências e vivências, bloqueando sua sensibilidade, mas confiar apenas nos recursos pessoais e no conhecimento intuitivo ou pré-reflexivo3 é arriscar-se à repetição, à rotina e a interferências subjetivas que poderão desalojar o psicólogo do seu papel. Sugere o mesmo autor: ‘não se trata de pensar apenas a proximidade € a complementaridade entre teorias € práticas, mas de pensar suas distâncias e diferenças: é deixar que a prática seja um desafio à teoria e que a teoria deixe que irrompam problemas para a prática” (p. 95). Nas situações em que “a teoria toma-se insuficiente para informar sua atuação” (Ancona-Lopez, M., 1993, p.5) é comum que o psicólogo, temendo afastar-se da coerência teórica, limite sua açào empobrecendo um encontro rico de possibilidades.4 Paralelamente, no entanto, a prática pode ser percebida “como local privilegiado para apontar insuficiências, hiatos e conflitos nos conhecimentos existentes ou para gerar um novo saber” (ibidem). Diversos autores, mormente os que seguem a orientação cenfrada na pessoa, como: Mahfoud (1987), Morato (1987), Schmidt (1987) e Amatuzzi (1996) ou ainda Maida (1989), psicanalista, Carvalho da Silva (1992) psicóloga social, e os fenomenólogos; Ancona-Lopez, M. (1993), Cupertino (1995), Fischer (1972) e Yehia (1995) entre outros, têm sinalizado que para o atendimento em instituições é necessário abertura para a vivência dos conflitos e para um 157

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novo saber, cuidando de evitar a armadilha da repetição acrítica do conhecimento teórico estabelecido. A tarefa do psicólogo consiste, portanto, em não permitir que a teoria atue como camisa de força limitante, o que desumanizaria o contato, mas em encontrar seu estilo pessoal, como propõe mais uma vez Figueiredo (1995), usando a teoria como fonte de questionamentos, incorporando-a como instrumento e não como condição para compreender e determinar uma ação no mundo. E neste espaço de transição, em que o psicólogo é intimado a operar antes mesmo que se configure um campo claro de atuação, que se inserem o que chamo de Intervenções Breves (IB). A expressão Intervenções Breves, segundo Yoshida (1990), designa diferentes modalidades de atendimento breve incluindo as psicoterapias. Utilizo neste texto a mesma expressão para discutir uma forma de atuar na clínica psicológica que não se caracteriza como psicoterapia embora possa apresentar momentos terapêuticas. Dispor-se a um atendimento em IB é colocar-se como psicólogo clínico geral e portanto permanecer disponível às diferentes demandas que se apresentarem, sem enquadrá-las em procedimentos tradicionalmente consagrados e sem a obrigatoriedade de percorrer determinados passos para prosseguir no atendimento. A atuação caracteriza-se por ser uma disposição mais do que uma técnica ou, melhor ainda, uma pré-disposição para a abertura e recepção do que se apresentar. Em termos práticos: quando o cliente vem à procura de amparo psicológico, ele quer ser atendido em suas necessidades, pouco importando sob que nome este atendimento se realize. Por seu lado, freqüentemente, o profissional, procurando enquadrar-se em alguns dos rótulos tradicionais de atendimento (psicodiagnóstico, psicoterapia, aconselhamento, orientação, etc.), posterga suas possibilidades de ajuda encaminhando o cliente para algum tipo de trabalho psicológico sistematizado. Desta forma o primeiro 158

contato com o cliente adquire o caráter de coleta de dados e organização de informações deslocando-se para o atendimento posterior o acolhimento da problemática apresentada. O psicólogo não consegue ver o novo que lhe é trazido pois habituou-se a pensar de forma fragmentada, privilegiando mais a especialidade que tem a oferecer do que as necessidades do cliente. Pode-se aqui fazer um paralelo com o que Jurandir Freire Costa relata em seu livro História da Psiquiatria no Brasil (1989): “O psiquiatra não mais se dispõe a ouvir, Ele passa a falar antes de escutar, a buscar, antes de ser procurado. Não mais acompanha a loucura, antecipa-a”. (p. 64)

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Se o psicólogo se deixar orientar pela crença de que todo contato seu com um paciente é uma ação de intervenção e que esta intervenção pode e deve se um momento significativo para ambos, ele não enveredará pelo caminho mais fácil que é o de, ao término da primeira entrevista, encaminhar o cliente para atendimento psicoterápico. Pelo contrário, adotará uma atitude que se aproxima da postura do conselheiro que, segundo Schmidt (1987), na relação de ajuda: ‘estaria preparado para acolher demandas diversas e aberto para realizar com o cliente, e a partir dele, uma explicitação da demanda que envolve, também a definição de como atendê-la (...). Não se parte do pressuposto de que a única resposta possível para este pedido seja a indicação de psicoterapia”. (p. 17) Como já tive a oportm’idade de expor anteriormente creio que o relacionamento psicológico será significativo quando criar um campo favorável para o deflagrar de impulsos mobilizadores que possam resultar em questionamentos, elaborações ou mesmo mudanças de atitude ou de perspectivas vivenciais. Este campo facilitador surge na e da experiência vivida na relação psicólogo/cliente, independente da denominação dada a este atendimento. Esta postura pode causar estranheza às teorias que pressupõem tanto o contrato quanto o cenário como esteios

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dos atendimentos mas, não é alheia aos que se orientam pelas linhas humanistas e fenomenológicas. Cuzzo (1996), por exemplo, referindo-se a uma proposta inovadora de atendimento em comunidade popular feita por Amatuzzi, (1996), aponta que é possível “afirmar a identidade do psicólogo em ambientes não tradicionais, respondendo de modo mais adequado à realidade brasileira, onde muitos precisam do profissional, mas poucos têm recursos para custear as altas despesas de um atendimento usual de consultório” (1996, p. 8).O mesmo pode ser dito com relação a certos atendimento em instituições psicológicas que obrigam o profissional a subverter os procedimentos mais tradicionais ou a atender em situações e espaços que não correspondem ao trabalho recomendado. Por outro lado algumas constantes podem ser percebidas mesmo nestes casos: um modo de manejo da relação terapeuta-paciente, e o modo de comunicação utilizado que têm por função definir uma espécie de jogo que diferencie esta relação de qualquer outro contato interpessoal. II ”Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas, Que nem são países nem momentos, nem vidas, Que desejo talvez de outros modos de estados de alma Umedece interiormente o instante lento e longínquo!’ (Alvaro de Campos)

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Metafóricamente as IB podem ser entendidas como um caminhar ao lado do cliente na medida em que se vai construindo o percurso. Na prática se caracterizam por uma multiplicidade de atuações, embora um dos seus modos mais usuais se dê na primeira entrevista, ou seja, no momento em que o cliente vem em busca de atendimento. 160

Minhas reflexões sobre a atuação em intervenções breves partem da abordagem fenonienológica-existencial embora a proposta que aqui faço tenha se inspirado no plantão psicológico que nasceu no Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP, onde ainda acontece. Bartz (1997) relata experiência semelhante ocorrida por alguns meses no ffistiruto Sedes Sapientiae e descreve, ainda, os plantões que realiza na Universidade São Marcos6. Apesar de algumas diferenças na conduØo todos estes plantões exigem do piofissional “disponibilidade para se defrontar com o não-planejado e com a possibilidade (nem um pouco remota) de que o encontro com o cliente seja único”(p. 75) visando “facilitar ao cliente uma visão mais clara de si mesmo e de suas perspectivas ante a problemática que vive e gera um pedido de ajuda”. (Mahfoud, 1987, p. 76). A fenomenologia se caracteriza por ser uma descrição do ser humano e não uma teorização sobre ele. E muito mais filosofia do que psicologia e, como tal, questiona as diversas teorias enriquecendo-as ao apontar lacunas e pontos para reflexão, embora possa utilizar-se de algumas delas como auxiliares para a compreensão do homem. “Certamente era o destino da fenomenologia e a fonte de sua riqueza não poder se deter e se imobilizar em nenhuma de suas formas, mas fecundar sem cessar novos domínios, como se nada pudesse permanecer-lhe estranho.” (IJartigues, 1992 ,p. 167). Na prática clínica as teorias passam a ocupar um lugar secundário para a compreensão do cliente, pois são entendidas como: “modos possíveis de atribuir significados à experiência do sujeito, (que são) em última instância validados por ele mesmo”. (Ancona-Lopez, M., 1995, p. 94). 161

Nesta abordagem cabe ao terapeuta mostrar ao seu cliente como o percebe, isto é, como o cliente se mostra a ele, o que é um corolário de como se mostra ao mundo e de como seu mundo é constituído. “E o que na feliz expressão de Pigueiredo’ pode ser chamado de ‘enunciado apresentativo’, que seria apresentar ao cliente o que ele apresentou de forma que o apresentado se ilumine sob novo

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ângulo.” (AnconaLopez, 5., 1996). Compartilhar suas percepções é dar ao paciente a oportunidade de contestá-las e de, em conjunto com ele, trazer à luz a trama de significados que foi sendo tecida no decorrer de sua vida, que o envolve e que indica como ele se constitui e ao seu mundo. Ao iluminar o que se mostrava obscuro surge a oportunidade de transformar o atendimento psicológico em uma ocasião passível de abrir perspectivas e possibilitar mudanças positivas para o cliente permitindo que sejam encontrados novos significados para sentimentos e dificuldades. A psicologia fenomenológica-existencial postula que o cliente se perceba como co-participante do atendimento psicológico, colocando-se como colaborador do psicoterapeuta na elaboração da compreensão sobre a problemática trazida. Propõe uma atitude ativa do psicólogo em uma sessão interativa que lida com os aspectos relacionais terapeuta/paciente e em que ambos busquem compartilhar o entendimento da situação. Um encontro psicológico significativo pode ser a oportunidade do cliente aproximar-se do que ele mesmo é, em um modo próprio ou autêntico e, a partir daí, entrever as possibilidade exeqüíveis e escolher algumas dentre elas. A cada vista de olhos que lançar sobre seu campo de possibilidades, o paciente estará se reavaliando, interpretando, compreendendo e escolhendo. O cliente é a única pessoa que conhece seu campo de experiências e apenas ele poderá relatá-las, e retirar seu sentido, a partir da constelação de suas vivências, percepções, idéias, sentimentos e memórias. Seu relato

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pode manter-se em um patamar objetivo, prático, exterior a ele ou pode partir de seus sentimentos, valores e do sentido que dá às suas vivências pautando-se por um referencial interno subietivo (Stiles, 1987). No primeiro caso, é necessário ajudá-lo a caminhar do exterior para o interior na crença de que confrontá-lo com suas ambivalências, sentimentos inconsistentes e experiências desvalorizadoras pode permitir reavalíação e aceitação. No segundo caso, acompanhando seu relato busca-se o sentido que ele dá às suas vivências. O papel do psicólogo é o de clarear e reordenar o que o paciente traz, desvelando aquilo que, de certo modo, ele já sabe mas não está podendo reconhecer como seu. Ou seja, é preciso traduzir os significados que ele dá as suas vivências para que tenha a oportunidade de ressignificá-las. Uma das maiores forças das chamadas abordagens colaborativas está no fato de que elas capacitam o cliente a criar uma nova consciência do papel significativo e crucial que pode desempenhar ao escolher a natureza e qualidade do cuidado que lhe é dispensado. Permite-lhe reconhecer-se como o melhor juiz de suas necessidades (Cain, 1989). Neste sentido a abordagem fenornenológica desmistifica o papel do psicoterapeuta tirando-lhe o poder de senhor do conhecimento para devolver a potência ao cliente procurando: “estabelecer uma

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relação simétrica com o paciente, reconhecer seu direito de acesso às informações que lhe dizem respeito, estabelecer um processo participativo de atendimento, exprimir raciocínios e conclusões teóricas em linguagem acessível ao cliente, respeitar suas decisões quanto ao modo de seguir os encaminhamentos propostos”. (Ancona-Lopez, M., 1995, p. 86). Segundo Knobel (1986), o objetivo da psicoterapia breve focal é: “ajudar a (...) abrir uma nova possibilidade, um novo caminho.” (p105). E, nas intervenções breves, que 163

novos caminhos, novas possibilidades se poderiam dar? Todos e quaisquer, mas o mais freqüente talvez sejam pequenas aberturas do cotidiano, que podem anunciar grandes rupturas. São certezas que ficam abaladas, coisas que pareciam necessárias que se mostram descartáveis; são situações ou papéis que podem ser vividos de outro modo.

“Quando é que me desato

Dos laços que me dei? Quando serei um facto? Quando é que me serei?” (Fernando Pessoa)

Como afirmei acima, as IB podem se dar em inúmeras situações mas seu modo mais freqüente é na primeira entrevista, ou seja, quando o cliente vem em busca de atendimento. Este é o momento de acolhê-lo considerando que é uma ocasião que costuma refletir uma crise na sua situação existencial, crise que o terapeuta deve reconhecer. O conceito de crise está sempre ligado a idéia de algum tipo de desequilíbrio embora haja pequenas diferenças entre os autores. Segundo Yoshida (1990). citando Rogawski (1982) a “intervenção na crise consiste em restaurar o equilíbrio adaptativo do sujeito, anterior à crise, e, quando posstvel, melhorá-lo. Esta modalidade terapêutica aplica-se às pessoas que ainda não atingiram o estágio de emergência, mas que correm o risco de descompensação” (p. 5). Para Simon (1989), as crises ocorrem quando o indivíduo enfrenta eventos (fatores) internos ou externos aos quais não sabe como responder. Já Moffatt, adotando uma abordagem temporal, diz que a crise: “se manifesta pela invasão de uma experiência de paralisação da continuidade do processo de vida. De repente nos sentimos sós, o futuro se nos apresenta vazio

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e o presente congelado”. (1982, p. 13). Para este autor, o que adoece na situação de crise “é o processo de viver” (idem, p. 14) pois a pessoa perde a noção de continuidade, não se reconhece e não sabe mais como atuar. Gilliéron (1993) entende que o instante em que uma pessoa faz o pedido de ajuda psicológica pode ser entendido como um momento de crise que favorece rearranjos no equilíbrio intrapsíquico e interpessoal pois o cliente, impulsionado pelas suas dificuldades, vem em busca de transformações. Do mesmo modo Spoerl (apud Peter, 1992) propõe que se aproveite a carga emocional particularmente forte da primeira consulta, por considerála como uma psicoterapia de intervenção única, focalizando a sessão sobre o problema principal, segundo o conceito do enriquecimento da personalidade graças à crise. Conforme Gilliéron (1994) “ a idéia fundamental é que um grande número de pacientes não espera obrigatoriamente uma mudança profunda quando de sua vinda ao psiquiatra mas, mais freqüentemente, um alívio imediato. Com efeito na grande maioria dos casos, o paciente decide consultar-se quando está em crise, O modo como esta crise será tratada é que é a questão.”. (p. 193). Em qualquer destas abordagens, no entanto, o que fica claro é que na situação de crise o cliente vai procurar ajuda pois as estratégias de vida das quais se utilizava “já não se adaptam às novas circunstâncias” (Moffatt ibidem, p. 14) ou seja, quando ele se dá conta de que algo não vai bem: o paciente encontra-se dividido entre duas tendências: a esperança de reencontrar o estado anterior, solução mais fácil, e a esperança de, finalmente, encontrar forças para mudar” (conforme Gilliéron, 1994, p. 193)10. Dizendo de 165

outro modo, o que o cliente procura é recuperar o antigo equilíbrio embora também coexista nele o desejo de mudança para uma nova vida. É neste espaço de ambivalência que o terapeuta deverá atuar. A primeira entrevista adquire um sentido especial nas instituições não somente por ser a porta de entrada1’ das mesmas mas por ser também, na maioria das vezes, a porta de entrada do universo psi pois os clientes desconhecem “o que é um serviço psicológico, uma vez que este tipo de trabalho não tem repercussão em seu universo cultural e educacional (Larrabure, 1986, p. 63). Se o paciente não se sentir mobilizado pelo primeiro atendimento talvez não prossiga na sua busca de ajuda. Usualmente a porta de entrada das instituições é constituída pela triagem. As entrevistas de triagem, de modo geral, costumam ser “pouco mais que uma coleta de dados sobre os quais se organiza um sumário raciocínio clínico que vai orientar o encaminhamento” (Ancona-Lopez, S., 1996) p. 11) levando o psicólogo “a

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manter uma atitude investigadora e resguardando suas impressões sobre o cliente. Neste caso (...) o processo perderá muito de seu sentido e mesmo de interesse ou utilidade para o cliente” (idem, p. 12). Uma mudança na atitude dos psicólogos que atuam em instituições pode levá-los a transformar estas entrevistas em um processo de intervenções breves dando aos clientes oportunidade de se engajarem no seu próprio atendimento, tomando-os responsáveis pelo seu problema e avaliando com eles qual o alcance de uma intervenção imediata ou quais as possibilidades de encaminhamento. O simples acolhimento já tem significado importante para muitos clientes. Entendo por acolhimento uma determinada disposição afetiva do psicólogo, não valorativa ou avaliativa, uma atitude e uma escuta que 166

signifiquem dar agasalho, hospedar, receber, admitir, aceitar (l3uarque de Holanda, 1987). São os casos em que poder expressar o sofrimento já provoca um alívio ou mesmo certa tranqüilidade que poderá levar a alguma clareza com relação a situação vivida, criando condições para modificações. E como se expressou Maria Lúcia, 35 anos, ao término de sua primeira entrevista: “Pra mim foi bom. Consegui falar muita coisa que tenho para dizer e que não consigo dizer para as outras pessoas, pra gente conhecida. Aqui é gente diferente. Vi que me ajudou. O peito ficou aliviado” Uma dimensão mais profunda do acolhimento pode ser expressa pelas palavras, de Merleau-Fonty: (1971)”o próprio sujeito pensante está numa espécie de ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou para si a fala, naquele que fala não traduz um pensamento já feito mas o realiza” (p. 188) ou como diz Yehia “o fato de fabrmos já é uma tomada de consciência na medida em que cumprimos o pensamento e desta forma entramos em contato com ele” (1994, p. 133). Outro aspecto importante desta mesma questão relaciona-se ao fato de que a maioria da população socialmente desfavorecida (que, no Brasil, é quem mais procura atendimento psicológico em instituições) não reconhece seus direitos, o que a leva a submeter-se a um número enorme de pessoas a quem atribui autoridade. Para estes indivíduos, que costumam posicionar-se humildemente frente aos outros, serem recebidos com respeito, serem ouvidos e terem um atendimento interessado e digno, permite que se recoloquem no mundo em uma postura mais crítica, menos submissa e até reivindicadora, o que lhes abre novas perspectivas e a possibilidade de ultrapassar seus limites. Cristina, que na busca de atendimento psicológico, já havia passado por várias entrevistas de triagem em diferentes instituições relatou: Foi um atendimento muito bom; como nunca tive. Nunca tive para me sentir assim legal. Na maioria 167

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dos lugares a gente fica esperando e nada acontece. Aqui não. Fui atendida logo. Quer saber? Aqui me senti grande. Quando a gente vai tratar de um problema quer ser tratada como gente. Eu vejo isto no rosto de todos aqui. Fico até emocionada” (seus olhos se enchem de lágrimas). Na mesma direção é fundamental ajudar os clientes a acreditar nas suas percepções e sentimentos e a dar importância às suas intuições pré-reflexivas. Freqüentemente, chegam desiludidos, decepcionados, descrentes de suas capacidades para manejar os fatos da vida é com um imenso sentimento de desvalorização de si mesmos. Se o psicólogo lhes mostrar o que vê de positivo em suas atitudes, comportamentos ou sentimentos, poderão estabelecer uma base de confiança em suas sensações e percepções que lhes criará as condições para ressignificar suas vivências, experiências e relações pessoais. Um relacionamento harmônico consigo mesmo, o que inclui aceitar suas potencialidades assim como suas limitações, é decisivo para iniciar um processo de desenvolvimento pessoal, ou seja, a ampliação do campo de possibilidades. É comum que os clientes já tenham passado por vários atendimentos que pouco sentido fizeram para eles, tendo visto a submissão imposta pelos serviços de saúde da comunidade aliada a informações incompletas e aceitas. Em alguns casos os pacientes (e aqui este termo se mostra muito adequado) passam por um sem-número de profissionais e por tantos serviços ou setores que terminam por perder o sentido do seu atendimento mostrando—se desorientados e sem nenhum domínio sobre o que está acontecendo com eles. Nestas situações um dos papéis do psicólogo deve ser o de recolher as diversas passagens do cliente pela sua ou por outras instituições, organizá-las para ele e dar-lhe os esclarecimentos necessários. Ler e “traduzir” um relatório que não foi compreendido, eliminando fantasias, medos ou a má interpretação de informações, pode ter um significado muito importante nas decisões que o cliente deverá tomar para enfrentar suas dificuldades. E necessário ter uma 168

atenção especial com a linguagem procurando que se aproxime da linguagem do paciente que, usualmente, em instituições, fala de forma muito simples e concreta. São aspectos básicos e cuidados aparentemente simples que devem ser tomados no momento da entrada do cliente mas que podem influenciar seu destino e seu percurso dentro e fora daquela instituição. Muitas pessoas solicitam psicoterapia por indicação de um médico, por exemplo, sem estarem realmente motivados para o atendimento por não compreenderem sua necessidade. Do ponto de vista prático é necessário trabalhar em uma abordagem psico-educacional, elucidando o que é um atendimento psicológico, diferenciando-o de outros atendimentos, quais são as possibilidades daquela instituição, esclarecer e justificar, se for o caso, a necessidade de consultar outros

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profissionais ou de passar por exames paralelos. Do ponto de vista psicológico é necessário “salientar os aspectos positivos, adaptativos, saudáveis em detrimento dos patológicos” (Yehia,1994 p.142), levando o cliente a valorizar seu discernimento, para que possa voltar a ter domínio sobre sua vida € autonomia para imprimir direções a sua existência. Não é possível induzir qualquer modificação no outro, mas estas virão dele próprio se estiver disponível para tanto, O primeiro sinal de que existe alguma disponibilidade para a mudança é o fato de o cliente ter ido à consulta, mesmo com todas as resistências que possa trazer consigo. Concordo com Corrêa (1996) quando diz: “os ganhos podem ser potencializados quando a motivação para a mudança é identificada pelo terapeuta” (p. 14) e esta, segundo Coelho Filho (1995), “quando demarcada e incentivada pelo terapeuta propicia uma melhor compreensão do paciente sobre seus padrões mal-adaptativos e, conseqüentemente, maior controle sobre eles”. (p. 32). A cura, como destaca Coelho Filho (1995), não é o objetivo dos atendimentos breves mas “bons resultados, ainda que limitados, sempre serão possíveis”. O papel do 169

terapeuta é o de permanecer ao lado do cliente, limpando seu caminho, desenrolando e clareando o que ele diz para que possa se perceber de forma um pouco mais organizada e a partir daí, abrir-se para novos modos de ser. As intervenções breves podem chegar a isto ao permitir ao cliente que compreenda a problemática que está vivenciando e ao dar-lhe a possibilidade de apropriar-se de sua dificuldade ou doença na medida em que e aperceba de qual é sua real demanda. Como lembra Corrêa (1996) os clientes vêem “com uma pergunta que normalmente esperam que o profissional responda e esperam, igualmente, que esta resposta seja rápida e lhes dé boas soluções...”(p.13). Segundo Yehia (1995), a primeira sessão “geralmente se desenvolve a partir daquilo que (os clientes) trazem como sendo a pergunta” que ao psicólogo cabe compreender. “Compreender (continua a mesma autora) é participar de rim significado comum, do projeto do cliente, de sua abertura e limitações para o mundo. E importante identificar os acontecimentos e a forma como se desenvolveram em relação a seu contexto, gerando a pergunta, precipitando a crise e levando ao pedido de atendimento”. (p. 120) Na prática isto se traduz pelo fato de que muitos clientes se referem a algo distante de sua maior dificuldade, outros se apresentam como intermediários ou embaixadores do atendimento de uma terceira pessoa quando, na verdade, são eles próprios que estão pedindo ajuda. O que ocorre é que o cliente inida relatando o motivo que o levou a procurar atendimento — o que se convencionou chamar de queixa manifesta (em contraposição a queixa latente). Quando a procura é para o atendimento de

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crianças, por exemplo, estas queixas estão relacionadas a problemas escolares ou a distúrbios de comportamento mas no decorrer do atendimento outras queixas vão surgindo e, normalmente,

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ligam-se mais diretamente àquele que fala. Ou seja, mesmo que o problema se refira à mna outra pessoa o significado que quem o está expressando lhe dá vai indicar qual é a real demanda que se encontra mascarada no pedido de atendimento a um terceiro. A tarefa do psicólogo será a de clarear esta demanda, explicitando-a e focalizando o atendimento no cliente presente. As intervenções feitas pelo psicólogo devem dirigir-se principalmente à busca da compitensão de como se dá a existência do cliente (sua vida cotidiana, seus questionamentos objetivos e subjetivos) e, devem pertencer ao campo de possibilidades do cliente, margeando aquilo que este não compreende uma vez que se estiverem distantes deste campo poderão ser recusadas ou não ser entendidas por ele (Yehia, 1995) impedindo que a sessão se transforme em um atendimento psicológico significativo. Quando a verdadeira demanda vem à luz o cliente pode se dar conta de que é capaz de encontrar sozinho outros modos de manejar a situação ou que necessita de ajuda profissional para fazê-lo. Peter (Spoerl, 1992) diz que se a primeira entrevista levar o cliente a ressignificar algum(uns) momento(s) de sua vida e a apropriar-se de seu sintoma, serão eliminadas as fronteiras entre o diagnóstico e a psicoterapia e estará criado o cenário necessário para que possa instalar-se um processo psicoterápico A partir da primeira entrevista algumas possibilidades se delineiam no âmbito das intervenções breves. Muitas vezes uma única sessão é suficiente para que o cliente perceba que não quer ou não está suficientemente motivado para um atendimento psicológico, como no caso de mães que trazem os filhos porque a professora sugeriu ou exigiu, mas embora não concordem com o encaminhamento nem tenham a coragem de assumir isto. O casal Bernardo e Lígia, por exemplo, procurou, muito preocupado, uma clínica-escola para atendimento de seu filho Marco, de seis anos de idade. A professora insistia que ele tivesse acompanhamento psicológico devido a sua agitação durante as aulas. Na entrevista com os pais fica 171

claro que eles não viam dificuldades no filho mas temerosos de não estarem percebendo o problema queriam o atendimento. “A professora deve ter os seus

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motivos. Não vamos deixar de fazer o que ela pediu. Pode ser que haja algum problema que nós não estamos enxergando.” O trabalho com este casal desenvolveu-se na direção de discutir com eles quanto conheciam o filho e de apontar as informações que traziam e que indicavam que, no caso, a sua percepção com relação a Marco não parecia distorcida mas, sim, que a exigência da professora provavelmente era muito grande. Ao final da sessão eles resolveram que voltariam à escola para compreender melhor o encaminhamento, que discutiriam o assunto entre eles para decidir se retornariam à clínica. Foram evidentes o alívio que sentiram por poderem expressar suas dúvidas com relação a conduta da professora e a satisfação que tiveram ao ver que suas percepções sobre o filho foram aceitas e valorizadas. Não mais retornaram. Dar ouvido aos pais evitou, neste caso, a atuação usual de encaminhar a criança para psicodiagnóstico. Deste modo foi evitado um sofrido período de espera em que ficariam aguardando o atendimento do filho vendo reforçada a sua postura submissa diante da professora. Lígia e Bernardo sentir-se-iam mais inseguros quanto as suas percepções, o que sem dúvida se refletiria no papel de pais e na própria criança que continuaria sendo vista como necessitada de ajuda. Do ponto de vista da instituição foi evitado que um cliente a mais ficasse em fila de espera ou que se ocupasse um profissional que poderia ser mais necessário para outro cliente. Além disso foi rompido o esquema tradicional que, no caso de crianças, geralmente se centra no atendimento a elas, colocando os pais como meros receptores de informações dadas por alguém que “saberia” mais sobre seu filho do que eles próprios. Faço aqui um parênteses para mencionar que o atendimento em IB pode ser grupal, o que além de atender a uma demanda institucional (um número maior de clientes 172

em uma mesma sessão) tem, como já tive a oportunidade de discutir em outra ocasião (Larrabure, 1986), aspectos interessantes a serem considerados, O relacionamento entre os membros do grupo costuma se dar por identificação € apoio com os sentimentos decorrentes das queixas e das dinâmicas pessoais e familiares, ou ainda de reconhecimento por semelhança ou oposição através da comparação entre as problemáticas apresentadas, o que torna a vivência muito rica. Ouvindo as dificuldades dos outros, muitos pacientes recolocam seus problemas em novos patamares, visualizando-os em nova dimensão; além disso a soma de diversas experiências acrescenta perspectivas até então não existentes. Nos casos em que identificações se estabelecem facilmente os pacientes fazem suas colocações integradas no contexto de um assunto geral, cada um ouvindo o que o outro diz, completando ou emitindo sua opinião, sendo freqüentes as tentativas de ajuda e compreensão em relação à problemática alheia. Estas trocas mostram-se muito benéficas, permitindo que alguns clientes encontrem novas

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formas para lidar com suas dificuldades. Fecho parênteses. Em certos casos, quando o cliente está mal informado, desorganizado com os aspectos práticos de sua vida ou com as diversas orientações que vem recebendo nos seus pedidos de ajuda, é necessário adotar uma postura diretiva que o auxilie nas situações práticas. Outras vezes pode haver a necessidade de se tomar alguma atitude imediata como um laudo psicológico, por exemplo, para manter uma criança na escola. Fazer um laudo psicológico em tempo breve, desde que este não se limite a uma avaliação intelectual, sem considerar os outros aspectos envolvidos, é evitar os mesmos aspectos apontados no exemplo dado acima. Às vezes sugere-se ao cliente mais de um encontro seja para completar orientações práticas seja para sensibilizálo para um atendimento posterior, porque se percebe que ele está sofrendo muito ou ansioso com o que está vivendo. 173

Ajudá-lo a restabelecer uma certa tranqüilidade pode ser a base necessária para que possa iniciar um caminhar mais criativo. Em outras situações o próprio cliente encontra caminhos alternativos. Marta é uma mulher de trinta e poucos anos que se apresentou à psicóloga dizendo que se sentia muito culpada desde que havia abandonado o filho com sua mãe no Nordeste e viera trabalhar em São Pau{o. Disse que no momento o menino morava em sua casa mas eles mal conversavam e ela sentia que ele não a amava, o que a fazia sentir-se fracassada como mãe. Chorou muito durante a sessão voltando sempre ao tema de que não cuidara do filho por muitos anos. A psicóloga perguntou-lhe se ela se dava conta dc Que na verdade não abandonara o filho mas procurara fazer o melhor por ele deixando-o com a avó enquanto trabalhava para poder enviar dinheiro para sustentá-lo. Mostrou-lhe também, que assim que tivera condições chamara-o para morar com ela. Muito espantada, Marta disse que nunca pensara nisso, que sempre se vira como urna péssima mãe porque seu pai a recriminava por ter se separado do marido e ter deixado o filho para ir trabalhar na cidade grande. A partir daí ela começou a relatar os seus sucessos: os móveis que conseguira comprar, as coisas que pagava para o filho e os elogios que recebia como funcionária de limpeza de uma firma. Visivelmente aliviada, agradeceu muito e já com uma postura diferente despediu-se mas pediu para retornar na próxima semana. No encontro seguinte contou que alguma coisa havia mudado no seu relacionamento com o filho. Disse que eles haviam conversado várias vezes e que o menino deitara a cabeça no seu colo para ver televisão. Falou que não estava com raiva do pai, porque ele era um homem do sertão e não podia entender que uma mulher largasse o marido, mas que não se impressionava mais com o que ouvira dele. Disse também que estava vendo as coisas de outro modo e que “ia dar uni, tempo” para verse precisava mesmo de atendimento psicológico. nquanto isso procuraria mudar sua atitude com 174

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o filho, mostrar o quanto gostava dele, esperando que ele também mudasse. Se precisasse, voltaria. A psicóloga alegrouse com ela pelo que da estava sentindo, apoiou-a na sua decisão e colocou-se à disposição caso ela quisesse voltar. Gustavo veio pedir atendimento para sua mulher, Luciana. Disse que ela sofrera um AVC e que depois disto não conversava com ele, não lhe dava atenção e pouco cuidava da casa. Na sua opinião ela precisava abrir-se com alguém e por isso queria que fosse atendida por um psicólogo. No decorrer da sessão ele e o terapeuta vão se dando conta de que Gustavo é que precisa falar, que está se sentindo muito só e que na verdade nunca teve muito diálogo com a mulher. Ao final do encontro Gustavo pede atendimento psicoterápico para si, indicando que fora capaz de confrontar-se com a verdadeira demanda apropriando-se de algumas de suas dificuldades. ando se faz necessário o encaminhamento para uma outra instituição este deve ser cercado de cuidados transformando-se em um processo que chamo de encaminhamento responsável. Concordo com Bartz (1997) quando diz que encaminhar “é colocar o cliente em atendimento ou atividades adequadas que possam promover o desenvolvimento, solucionar ou amenizar seus problemas ou dificuldades”, o que “difere da conotação que obteve nos meios públicos institucionais, onde significa ser sucessivamente ‘mandado embora’, com uma guia impressa na mão, para outro profissional que provavelmente não poderá fazer o atendimento, onde muitas vezes a pessoa encaminhada não conseguirá chegar ao destino pelas mais variadas razões, seja por-não ter encontrado o endereço, seja por não haver vagas e até por não gostar e confiar no profissional recomendado” (p. 9). O processo de encaminhamento exige que o psicólogo mantenha-se informado dos recursos da comunidade, que conheça as instituições que oferecem atendimento gratuito ou a preço simbólico e o que têm a oferecer. Para tanto é preciso manter um arquivo constantemente atualizado. 175

Qualquer atuação em instituição voltada para a comunidade mais carente mantém-se em dois patamares um pragmático e o outro voltado para os aspectos psicológicos mas esta dupla escuta é um dos aspectos que mais diferencia a atividade de “intervenções breves” das psicoterapias. Há circunstâncias em que se pode propor trabalhar junto como cliente alguma questão que se mostre mais emergente. Nesta situação o mais produtivo é uma atitude ativa e participante visto que poucos encontros serão propostos (geralmente entre dois e seis). Neste caso é necessário emprestar das psicoterapias breves a noção de “foco” para eleger um entre as possibilidades de temas que o cliente traz. Na orientação fenomenológica a eleição do foco resulta do desenvolvimento do

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diálogo e da interação com o cliente, que se estabelece a partir do campo relacional. Aproximase do que Gilliéron (1993) chama de “a focalização pelo paciente” ( p. 290). Isto é, a questão do foco não é tomada como tema porque se vai constituindo no campo terapêutico e ali mesmo estará vigorando mas pode ser entendido como a hipótese “privada” (Gihiéron, 1993) que o psicólogo vai fazendo a respeito do que o cliente traz e que, de algum modo, está presente na sua escuta de modo não tematizado. O papel do psicólogo é o de explicitar o que se anuncia no discurso do cliente mas está oculto, mostrando quais são os pressupostos das suas vivências, dirigindo a atenção dele para a função e significação dos sintomas ou da problemática que apresenta. Os clientes tendem a colocar em cena o conflito que os trouxe à consulta, mesmo que mascarado sob outrotema. O conflito atual, na concepção fenomenológico-existencial, reflete o campo de possibilidades que a pessoa veio constituindo no decorrer da sua vida, Isto é, na atualidade 176

do conflito estarão implicados seu passado e as possibilidades que antevê como futuras. Ao término de cada sessão, é necessário fazer uma sfntese da compreensão do que ocorreu naquele encontro. Retomar o que foi dito (pelo cliente e pelo psicólogo), que sentido teve o que foi dito e que caminhos se abrem a partir dali, O psicoterapeuta deve entregar ou devolver ao cliente o que é dele’6, procurando consolidar o que foi vivido durante o atendimento, isto é, espera-se que o cliente reviva as experiências que ocorreram durante aquele encontro. Fechar o atendimento desta maneira permite que de se identifique com um processo completo com início, meio € um fim claramente delimitado, a partir do qual o cliente deverá tomar decisões sobre o encaminhamento futuro. Ou seja, o psicólogo participa ativamente durante as consultas mas deve deixar claro ao final que apenas e tão- somente o cliente poderá decidir o rumo a dar a sua vida, porém, sempre deixando aberta a possibilidade de que ele volte a procurá-lo se assim o quiser. O movimento de ter ido buscar ajuda e de encontrar-se na situação inusitada de revelar-se a um desconhecido, introduz uma estranl-teza no cotidiano do cliente que lhe dá a oportunidade de ouvira sï mesmo, podendo levá-lo a perceber-se de forma diferente. Considerando a ocasião em que o cliente vem para o atendimento como um momento em que, de algum modo se sente limitado em suas possibilidades (pois não consegue superar suas dificuldades), as IB podem constituir-se em uma oportunidade para que perceba que o campo no qual circunscreveu sua vida não é único nem definitivo. A percepção de que as imposições do cotidiano não são necessárias mas contingentes pode proporcionar a liberaçãd de certas amarras constituindo-se em urna abertura para o novo, As “intervenções breves”, se não levarem o cliente ao desenvolvimento podem mostrar-lhe alguns dos seus potenciais para que deles se aproprie e, quem sabe,

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passe a cultivá-los para vê-los desabrochar, 177

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