Andreia Aparecida Oliveira de Souza

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  • ANDRIA APARECIDA OLIVEIRA DE SOUZA

    A insero de bebs na creche e

    a separao como operador simblico

    So Paulo

    2014

  • 2

    ANDRIA APARECIDA OLIVEIRA DE SOUZA

    A insero de bebs na creche e a separao como operador simblico

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Mestre em Educao. rea de concentrao: Psicologia e Educao.

    Orientador: Prof. Dr. Leandro de Lajonquire

    So Paulo

    2014

  • 3

    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao na Publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo

    37.046 Souza, Andria Aparecida Oliveira de

    S729d A insero de bebs na creche e a separao como operador simblico / Andria Aparecida Oliveira de Souza; orientao Leandro de Lajonquire. So Paulo: s.n., 2014.

    100 p.

    Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em Educao. rea de Concentrao: Psicologia e Educao) - Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.

    1. Psicanlise 2. Educao 3. Creche 4. Educador

    5. Subjetivao

    I. Lajonquire, Leandro de , orient.

  • 4

    SOUZA, ANDRIA APARECIDA OLIVEIRA DE

    A insero de bebs na creche e a separao como operador simblico

    Dissertao apresentada Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para obteno do ttulo de mestre em Educao.

    Aprovada em _____de______________de________.

    COMISSO EXAMINADORA:

    Profa. Dra. Maria Cristina Kupfer Instituto de Psicologia /USP

    Julgamento:______________________Assinatura:______________________

    Profa. Dra. Leny Magalhes Mrech Faculdade de Educao/USP

    Julgamento:______________________Assinatura:______________________

    Prof. Dr. Leandro de Lajonquire (orientador) Faculdade de Educao/USP

    Julgamento:______________________Assinatura:______________________

  • 5

    Para meus pais.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Prof. Dr. Leandro de Lajonquire, pela confiana, pacincia e

    generosidade.

    Profa. Dra. Maria Cristina Kupfer e Profa. Dra. Leny Magalhes Mrech pelas

    preciosas contribuies no Exame de Qualificao.

    Ao Erwin, pelo companheirismo em todos os momentos.

    E a todos que de alguma forma contriburam para a realizao deste trabalho.

  • 7

    RESUMO

    SOUZA, Andria Aparecida Oliveira de. A insero de bebs na creche e a

    separao como operador simblico. 2014. Dissertao de Mestrado.

    Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.

    Este trabalho de pesquisa consiste num esforo terico com foco de

    interesse na dinmica subjetiva vivenciada por bebs em processo de

    estruturao psquica ao serem defrontados com a primeira experincia escolar,

    tendo como referencial a conexo psicanlise e educao. O motivo que inspirou

    a investigao foi a busca por um pouco de entendimento em relao aos

    impasses vivenciados nessa passagem. O choro do beb e a dificuldade

    experimentada pela me em confiar seu filho a algum desconhecido conferem

    entrada da criana na creche um carter traumtico, pois representam uma

    separao no discurso corriqueiramente utilizado. Para isso, encontrou-se suporte

    nas noes de constituio psquica, de campo do Outro e nas operaes

    lacanianas de alienao e separao que permitiram estabelecer um contraponto

    entre estruturao subjetiva e noo de desenvolvimento infantil. A partir dessa

    abordagem e da noo lacaniana de separao como uma operao fundante do

    psiquismo, foi possvel propor uma leitura dos impasses que permeiam a insero

    da criana no mundo pblico como mais uma vicissitude do vir a ser um sujeito.

    Palavras-chave: creche, psicanlise, bebs, subjetividade, separao.

  • 8

    ABSTRACT

    SOUZA, Andreia Aparecida Oliveira de. The insertion of babies in the daycare

    and the separation as a symbolic operator. Master's Degree Dissertation.

    Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2014.

    This research is a theoretical effort focused in the subjective dynamics

    experienced by infants in psychic structuring process when faced with the first

    school experience, taking as referential the psychoanalysis and education

    connection. The reason that inspired the investigation was the search for some

    understanding about the impasses experienced in this passage. The crying and

    the difficulty experienced by the mother to trust her baby to someone unknown

    give a traumatic nature to the entry of the child in the daycare, as it represents a

    separation, in the routinely used speech. For this, we found support in the notions

    of psychic constitution and field of the Other and in the Lacanian operations of

    alienation and separation that allowed establishing a counterpoint between

    subjective structuring and the concept of child development. Based on this

    approach and the Lacanian notion of separation as a foundational operation of the

    psyche, it was possible to propose a reading of the impasses that permeate the

    inclusion of children in the public world as another vicissitude of becoming a

    subject.

    Keywords: daycare, psychoanalysis, babies, subjectivity, separation.

  • 9

    SUMRIO

    RESUMO.................................................................................................................7

    ABSTRACT.............................................................................................................8

    1. INTRODUO..................................................................................................10

    2. A CRECHE

    2.1. O percurso histrico....................................................................................19

    2.2. A insero de bebs na creche...................................................................26

    3. A PSICANLISE E OS BEBS

    3.1. A constituio subjetiva...............................................................................42

    3.2. As funes materna e paterna....................................................................56

    3.3 A construo do Outro para o beb ...........................................................60

    4. A INSERO DE BEBS NA CRECHE E A PSICANLISE

    4.1. A posio narcsica dos pais .....................................................................69

    4.2. Os bebs e o choro....................................................................................73

    4.3. O lugar do educador ..................................................................................78

    4.4. A separao como operador simblico......................................................82

    5. CONSIDERAES FINAIS............................................................................88

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................. 96

  • 10

    1. INTRODUO

  • 11

    Este trabalho consistiu num esforo terico, sem objetivos prticos, para

    pensar o significado da insero de bebs na vida escolar, tendo alguns

    pressupostos psicanalticos como referencial. Buscamos abordar esse momento,

    que marca a separao em relao s figuras parentais e a chegada ao ambiente

    pblico, a partir da dinmica subjetiva que liga os envolvidos: pais, criana e

    professor/instituio, considerando o lugar subjetivo que cada parte ocupa e

    consequentemente a forma como se posiciona nesse momento.

    Para desenvolver esta reflexo, nos baseamos em levantamento

    bibliogrfico sobre o assunto e em nossas experincias como docente com

    crianas, que consequentemente nos proporcionou um pouco de conhecimento

    em relao insero de bebs no ambiente da creche. Ressaltamos que nossa

    experincia nos mobilizou para a investigao do tema e nos animou na escrita

    deste trabalho, embora no tenham sido feitas observaes sistemticas por

    tratar-se de um trabalho de natureza terica.

    Assim, buscou-se compreender e refletir sobre o entendimento corrente

    nas instituies a respeito da insero dos bebs no ambiente da creche. Esta

    chegada vista como uma separao na relao com a me e que pode

    acontecer de forma turbulenta e traumtica podendo apresentar como principais

    consequncias imediatas o choro dos bebs e a insegurana dos pais.

    Abordagem esta que resulta numa ideia de creche como um mal necessrio, que

    viria abalar a relao harmoniosa entre me-beb.

    A passagem do ambiente privado da famlia para o ambiente pblico da

    creche comumente entendida como um momento delicado, traumtico at, de

  • 12

    separao entre o beb e o familiar de referncia, na maioria das vezes a me.

    Esse entendimento pode se justificar em funo da histria da instituio, que

    surgiu como uma alternativa aos cuidados maternos para atender famlias pobres,

    cujas mes operrias necessitavam trabalhar. Como lugar de acolhimento para

    crianas enjeitadas por terem sido geradas fora do ncleo familiar. Enfim, como

    lugar que se frequenta por no se ter alternativas, que gera preocupao e

    insegurana, mas que necessrio, como poderemos ver no captulo destinado

    ao percurso histrico a creche.

    Porm, as consideraes tomadas emprestadas da linha de pensamento

    que articula psicanlise e educao, nos permitem propor um olhar em relao a

    este momento inicial da vida escolar como mais uma vicissitude do vir a ser de

    um sujeito, no caso a criana em plena constituio subjetiva.

    Ento comeamos recuperando um pouco da histria da estrutura

    institucional na qual, na maioria das vezes, a primeira experincia escolar ocorre:

    a creche. Sabemos que ainda hoje no so todas as crianas que iniciam sua

    caminhada escolar ainda bebs, ou seja, na creche. Mas nesta pesquisa,

    optamos por pensar a respeito da primeira experincia escolar de bebs e,

    portanto, o espao a respeito do qual buscamos saber mais foi a creche.

    Em seguida, apresentamos consideraes a respeito da primeira

    experincia escolar com o objetivo de ressaltar nossas intenes nesta pesquisa,

    baseadas em recortes tericos, de autores que se dedicaram ao assunto como

    Davini (1999), Cury (1999), Balaban (1988), Rapoport (2001) e Abumanssur

    (1999) e que consideram a questo sobre o ponto de vista da psicologia do

  • 13

    desenvolvimento infantil, ou seja, o discurso corrente nas instituies. E autores

    como Dolto (1999) e Carvalho (2001), que pensam a questo a partir do

    referencial psicanaltico, ou seja, da constituio subjetiva e que o aporte terico

    escolhido para esta pesquisa.

    A abordagem que, predominantemente, orienta a insero dos bebs nas

    instituies infantis, orientada pela psicologia do desenvolvimento ou psicologia

    gentica, apresenta uma concepo de criana e de educao que norteia a

    forma de entender esse momento e consequentemente inspira as aes que

    devero ser empreendidas por parte dos profissionais. Para essa abordagem a

    criana se desenvolve cognitiva, fsica e emocionalmente. Em linhas gerais,

    noo de desenvolvimento remete a um processo contnuo, que dever atingir um

    ponto ideal e que para isso depende organicamente de uma maturao gradativa

    do organismo.1.

    Em contraponto ideia de desenvolvimento infantil temos a noo de

    estruturao subjetiva. Jerusalinsky (1989) afirma que se o desenvolvimento

    depende da maturao, a constituio do sujeito em nada depende dela. O

    processo maturativo no condiciona nem determina a constituio subjetiva. Esta

    depende da simbolizao que se opera num corpo e no de sua maturao. Este

    processo de simbolizao depende do Outro que, desejante da criana,

    engendrou-a ou adotou-a para que ocupe um lugar na sua cadeia significante. 2.

    1 No nossa inteno nos aprofundarmos nessa abordagem, apenas marcar a diferena em

    relao noo de estruturao subjetiva, que nortear nosso estudo. 2 JERUSALINSKY, 1989, p. 43.

  • 14

    Assim, com base na noo de estruturao subjetiva, na sequencia

    explorou-se as ferramentas conceituais que auxiliariam na reflexo sobre o que

    est acontecendo, subjetivamente, na vida de um beb quando ele chega

    creche. Como se constitui um sujeito? Sem a pretenso de esgotar o assunto,

    mas ressaltando aspectos que consideramos fundamentais para viabilizar a

    reflexo, recorreu-se s consideraes freudianas e lacanianas que permitem

    pensar a constituio do psiquismo e buscou-se suporte em pesquisas e tericos

    que articulam os campos psicanlise e educao e que se referem questo da

    constituio subjetiva precoce como Kupfer (2009), Lajonquire (2010), Pesaro

    (2010) e Crespim (2004/2007).

    Nesse eixo, foram encontrados trabalhos abordando a relao me-beb, a

    constituio psquica, a qualidade do atendimento nas instituies que recebem

    as crianas pequenas, o lugar subjetivo do educador e o trabalho nas creches e

    pr-escolas, inclusive, enquanto lugares onde possvel a identificao de

    indcios de problemas de sade psquica, como o caso do autismo.

    Uma importante pesquisa no campo da psicanlise que teve como objeto

    de investigao os bebs enquanto sujeitos em constituio foi a orientada por

    Maria Cristina Kupfer e que deu origem aos indicadores clnicos de risco para o

    desenvolvimento infantil, os IRDIs, validando para uso peditrico esse

    instrumento. Este estudo teve prosseguimento com Pesaro (2010), que ampliou

    suas bases tericas em tese de doutorado: Alcances e limites terico-

    metodolgicos da pesquisa multicntrica dos indicadores clnicos de risco para o

    desenvolvimento infantil. Estudo este, que nos auxiliou no entendimento dos

    principais momentos da constituio subjetiva.

  • 15

    Para entender as possibilidades de ampliao dos laos afetivos pelo beb,

    ou seja, o estabelecimento do vnculo com o educador, fundamental para que a

    criana permanea no ambiente escolar e possa se voltar s atividades e

    descobertas que favoream a sua insero no mundo social, pblico, recorreu-se

    s operaes de alienao e separao, ao estabelecimento e operao da

    funo paterna e noo de campo do Outro para o beb.

    No terceiro captulo buscamos pensar essa transio, seus envolvidos,

    pais, criana e educador e o principal aspecto deste processo que a separao

    entre me-beb, apoiados no entendimento do processo de constituio do

    psiquismo obtido na incurso pelos pressupostos psicanalticos. Recorremos aos

    escritos freudianos acerca do jogo que simboliza a presena-ausncia, o Fort-D,

    para ilustrar e ressaltar a importncia da figura materna no processo de insero

    da criana no mundo social, enquanto uma me suficientemente boa -

    expresso de Winnicott (1958).

    Utilizamos o conceito de narcisismo, com base no texto freudiano Sobre o

    Narcisismo: uma introduo (1914), para pensar a posio dos pais ao deixar o

    beb aos cuidados da creche e ressaltar a necessidade de serem ouvidos e

    acolhidos neste momento.

    Em Winnicott (1958), encontramos argumentos tericos para pensar a

    respeito do choro dos bebs ao se depararem com pessoas estranhas na creche.

    E para entender as possibilidades de ampliao dos laos afetivos pelo beb, ou

    seja, o estabelecimento do vnculo com o educador, fundamental para que a

    criana permanea no ambiente escolar e possa se voltar s atividades e

  • 16

    descobertas que favoream a sua insero no mundo social, recorremos s

    funes materna e paterna como agentes das operaes de alienao e

    separao e noo de campo do Outro para a Psicanlise.

    Conclumos refletindo sobre quais seriam os elementos mnimos para que

    a chegada dos bebs creche se configure como um elemento a mais na

    constituio subjetiva. Quais seriam as condies favorveis para um beb

    defrontar-se com a diferena representada pelo ambiente da creche? E baseada

    na operao lacaniana de separao, enfatizamos a separao entre me-beb

    como um elemento fundante do psiquismo.

    E para ressaltar as possveis contribuies desta pesquisa para a

    Pedagogia e o trabalho com os bebs no mbito da primeira experincia escolar,

    expomos os objetivos que nos orientaram e que podem ser resumidos em:

    identificar possveis contribuies, para a Pedagogia, ao elucidar, inspirados na

    Psicanlise, a respeito do que est em jogo na primeira experincia escolar, ou

    seja, o processamento da diferena para os bebs em processo de estruturao

    psquica; ter conhecimento da importncia constitutiva do lao afetivo com os

    cuidadores primordiais e as respectivas aes das funes materna e paterna;

    compreender o choro da criana ao chegar creche como um indicativo da

    qualidade desse lao; entender esse processo no como uma etapa traumtica

    para a criana e a famlia, no sentido de um rompimento, de uma

    desnaturalizao da relao me-beb, mas como uma experincia

    psiquicamente constitutiva para a criana, que traz a possibilidade da ampliao

    dos vnculos afetivos.

  • 17

    Ou seja, pretendemos contribuir com as reflexes no domnio da

    Pedagogia, e da linha de reflexo no campo educacional orientada pela

    Psicanlise, quanto singularidade desse momento que a chegada da criana

    escola, por se tratar de um afastamento temporrio entre a me e o beb, uma

    forma possvel de se por em jogo a alternncia presena-ausncia, um

    movimento inerente e necessrio constituio subjetiva. Dessa forma a insero

    dos bebs na creche pode ser considerada como um fator a mais nesta etapa.

  • 18

    2. A CRECHE

  • 19

    2.1. O percurso histrico

    As creches, espaos para os cuidados com as crianas pequenas, tiveram

    origem na Europa, no sculo XIX e de acordo com Crespin (2007), elas surgiram

    para substituir as mes pobres das classes operrias. Inicialmente esses espaos

    no obtiveram sucesso em seus intentos, a mortalidade infantil era muito alta.

    Foram alvos de crticas por no conseguirem cuidar adequadamente da higiene e

    da sade das crianas ali deixadas.

    At o incio do sc. XX o atendimento de crianas em creches basicamente

    inexistia no Brasil.

    O que havia no sentido de cuidado da criana pequena

    longe da me no meio rural era a absoro natural das inmeras

    crianas rfs ou abandonadas, filhos bastardos originados em

    geral da explorao sexual da mulher negra e ndia pelo senhor

    branco, adotados por famlias de fazendeiros, ou o recolhimento

    dos mesmos nas rodas de expostos existentes em algumas

    cidades criadas desde o incio do sc. XVIII por entidades

    religiosas que procuravam fazer com que elas fossem conduzidas

    a um ofcio quando grandes, preparando-as, pois, como mo de

    obra barata.3.

    3 OLIVEIRA, 1988, p.45.

  • 20

    A primeira creche brasileira foi fundada em 1899 no Rio de Janeiro e de

    acordo com Kuhlmann4, tratava-se de uma creche para os filhos dos operrios

    criada pela Companhia de Fiao e Tecidos Corcovado.

    A criao de instituies especializadas para oferecer cuidados s crianas

    pequenas est intimamente ligada s modificaes do papel da mulher na

    sociedade e as repercusses destas mudanas no mbito familiar.

    No sc. XX, com a intensificao da atividade industrial e o aumento da

    migrao campo-cidade com o consequente crescimento da urbanizao, um dos

    debates, inclusive na esfera poltica no Brasil, foi sobre qual o atendimento mais

    adequado a ser oferecido s crianas pequenas. Seriam os cuidados da me ou

    seria vivel a criao de instituies especializadas como alternativa para a

    educao familiar?

    Como ocorre com todas as outras formas pelas quais uma dada

    sociedade cria uma instituio para responder s suas

    necessidades, a creche insere-se a cada momento, em um

    contexto mais abrangente, onde concepes sobre criana,

    mulher, famlia, educao infantil, trabalho em geral, trabalho

    feminino, direitos sociais, obrigaes do Estado vo sendo

    modificados.5.

    Assim, as primeiras creches e escolas maternais foram criadas no Brasil,

    concomitante ao perodo da 1. GGM na Europa, em cidades como So Paulo,

    4 KUHLMANN, 1991, p.19.

    5 OLIVEIRA, 1988, p. 44.

  • 21

    Rio de Janeiro, interior de Minas Gerais e do Norte. Sendo de propriedade das

    empresas e utilizadas nos ajustes das relaes de trabalho.

    As creches, assim como os asilos e internatos eram vistas como

    instituies destinadas a cuidar dos problemas dos pobres. A insero da mulher

    no trabalho industrial exigiu solues emergenciais para o cuidado dos filhos

    pequenos. Segundo Oliveira (1988), quando ainda no contavam com a

    possibilidade da creche, a questo se resolvia com outras mulheres cuidando dos

    filhos das trabalhadoras em troca de dinheiro.

    As poucas creches fora das indstrias, nas dcadas de 20,

    30, 40 e 50, eram de responsabilidade de entidades filantrpicas

    laicas e, principalmente, religiosas. Em sua maioria, estas

    entidades foram, com o tempo, passando a receber ajuda

    governamental para desenvolver seu trabalho, alm de donativos

    das famlias mais ricas.6.

    Com a origem da Consolidao das Leis do Trabalho CLT, em 1943,

    surgiu no Brasil a licena maternidade. Inicialmente eram 84 dias de licena que a

    mulher tinha direito para se dedicar ao filho recm-nascido e deveria ser paga

    pelo empregador. Esta situao trazia considerveis restries s mulheres no

    mercado de trabalho. E podemos aqui inferir que as crianas com 84 dias

    deveriam ser deixadas aos cuidados de outras pessoas.

    A partir de 1973, a licena maternidade passa a ser paga pela Previdncia

    Social, mas isso no garantia a estabilidade das mulheres, alguns empregadores

    6 OLIVEIRA, 1988, p. 47.

  • 22

    dispensavam as grvidas mesmo assim. Nesse perodo, movimentos sindicais

    pedem a ampliao da licena e a estabilidade para as grvidas. Esses direitos

    so efetivados na Constituio de 1988. A mulher passa a ter garantida a

    estabilidade e a licena ampliada para 120 dias.

    Quanto aos servios oferecidos nas creches, a principal preocupao era

    com a alimentao, higiene e segurana fsica. No perodo entre as duas grandes

    guerras, conhecido como higienista aconteceram transformaes no mercado de

    trabalho, delimitando a jornada em 8 horas e tambm ocorreram progressos na

    rea da sade, com melhorias nas condies de higiene e nutrio e a descoberta

    das vacinas para controle das epidemias.

    Conforme Crespim (2007), o perodo higienista se estende at o ps

    Segunda Guerra Mundial e nesta poca so criados os dispensrios e as creches

    se multiplicam com o objetivo de (...) assegurar a sobrevivncia e o

    desenvolvimento fsico dos bebs a elas confiados. 7. Para esta autora, os

    objetivos das creches no poderiam ser diferentes tendo em vista a forma como

    eram vistos os bebs at o sculo XX: (...) o recm-nascido, desde o nascimento

    e durante os primeiros meses de vida, no mais do que um ser vegetativo, sem

    pensamento nem atividade em resumo, um simples tubo digestivo. 8.

    Na Frana, num perodo que foi de 1945 at os anos de 1960, as creches

    foram extenses dos hospitais, com funo essencialmente sanitria. Nelas as

    regras de higiene e nutrio eram rgidas e os pais no podiam permanecer em

    suas dependncias para evitar a proliferao de germes.

    7 CRESPIM, 2007, p.2.

    8 Idem.

  • 23

    A criana passa, nua, das mos de seus pais, de seu

    universo familiar para o universo de guarda, por meio de um

    guich, smbolo da impermeabilidade desses dois universos

    situados lado a lado, porm sem se encontrar. To logo vestida

    com as roupas da creche, a criana inicia um dia ritmado pelas

    obrigaes coletivas e pelo treinamento de toillett, em que pouco

    lugar reservado s atividades de estmulo e ao estabelecimento

    de laos entre o adulto e a criana ou mesmo entre as crianas.

    Os pais so cuidadosamente mantidos distncia da vida da

    criana e do funcionamento da instituio.9.

    Esta situao parece ter sido superada naquele pas com os avanos da

    pediatria, que permitiu diminuir drasticamente a mortalidade infantil e com as

    novas ideias da psicologia e da pedagogia que mudaram o modo de conceber a

    criana.

    No Brasil a Educao Infantil foi gradativamente conquistando espao e

    reconhecimento como uma etapa importante e fundamental da Educao Bsica.

    Atualmente, j no se define pelo cunho unicamente assistencial. Tornou-se uma

    opo para as famlias, um dever do Estado e um direito da criana. Na LDB

    (1996) passou a ser considerada a primeira etapa da educao bsica.

    Porm, quando da sua criao, a creche era o lugar onde as mes

    operrias deixavam seus filhos e onde os mesmos receberiam cuidados quanto

    alimentao, higiene e integridade fsica. Nestes locais recebiam-se crianas de 0

    a 3 anos de idade.

    9 CRESPIM, 2007, p. 2.

  • 24

    No Brasil as instituies de Educao Infantil dividiam-se quanto ao

    atendimento oferecido em creche, para os bebs e crianas at os trs anos de

    idade e Jardim de Infncia para as crianas de 4 a 6 anos.

    De acordo com Campos (1993), a nomenclatura Jardim de Infncia foi

    utilizada no Brasil nas primeiras pr-escolas por influncia das experincias

    educacionais europeias que tinham como orientao as concepes froebelianas,

    e tinha um carter educativo. Era uma preparao para o ingresso no ensino

    fundamental.

    Pode-se considerar que, na faixa de 0 a 6 anos de idade,

    consolidaram-se dois tipos de atendimento paralelos: o que se

    convencionou chamar de creche, de cunho mais assistencial e de

    cuidado, e a pr-escola, ligada ao sistema educacional e refletindo

    suas prioridades de carter instrucional.10.

    Segundo Kishimoto (1990) as creches brasileiras por sua vez, eram

    filantrpicas ou situadas nos locais de trabalho. Tinham como principal objetivo

    atender s necessidades das mes que trabalhavam e no tinham com quem

    deixar os filhos.

    A primeira vez que uma lei reconhece os direitos da criana pequena em

    nosso pas, foi na Constituio de 1988. Segundo Campos, na dcada de 80, em

    estudos publicados por estudiosos brasileiros envolvidos com pesquisas

    relacionadas creche, foi possvel constatar progressos significativos (...) no que

    10

    CAMPOS, 1993, p.104

  • 25

    se refere ao debate ideolgico e poltico sobre o significado da educao da

    criana pequena, seus direitos e o reconhecimento da responsabilidade do poder

    pblico. 11.

    De acordo com a autora, houve uma superao, pelo menos no plano do

    debate, da concepo exclusivamente assistencialista, reconhecendo que o

    atendimento criana pequena deveria ter um carter educacional. Este avano

    levou a suposio de uma integrao entre creche e pr-escola, ambos com fins

    educativos.

    Apesar desses progressos, o trabalho na creche continuou sendo visto

    como uma interveno mais voltada para o cuidado e a pr-escola para as

    atividades educativas.

    Porm, esse panorama vem mudando, nas Diretrizes Curriculares para a

    Educao Infantil de 2010, consta, na proposta de elaborao de orientaes

    para implementao das mesmas, um item destinado s especificidades da ao

    pedaggica com bebs. O que supe uma integrao entre educao e

    cuidados.

    Assim, atualmente, dentre os principais motivos que levam a criana

    pequena para a creche, esto as ltimas descobertas das pesquisas da psicologia

    e da neurocincia a respeito do desenvolvimento infantil, afirmando que o beb

    est aberto a aprendizagens nicas nos seus dois anos iniciais de vida. A

    necessidade da me de que algum cuide de seu filho enquanto trabalha no

    mais o nico motivo para uma criana frequentar a Educao Infantil. Hoje muitas

    11

    CAMPOS, 1993, p.15.

  • 26

    famlias procuram uma instituio de Educao Infantil por considerarem

    importante a socializao no processo de desenvolvimento da criana.

    Portanto, a creche tornou-se um local onde a criana deve encontrar

    condies que favoream uma educao integral, a qual garantida aos menores

    de seis anos nos documentos oficiais como RCNEIS e Diretrizes Curriculares.

    E enquanto educadores, com um pouco de experincia na rotina da

    Educao Infantil, especificamente com a creche, percebemos que um momento

    crucial no cotidiano dessa instituio, o qual mobiliza as equipes educacionais na

    escola de Educao Infantil, especialmente nos berrios, justamente a

    chegada dos bebs. Este primeiro contato com o ambiente escolar, esta

    etapa de passagem, que nas Diretrizes Curriculares nomeado como transio

    casa/escola de Educao Infantil. Mas nem sempre foi assim.

    2.2 A insero de bebs na creche

    Atualmente, dentre os tericos que se debruam sobre o assunto da

    adaptao de bebs ao ambiente da creche, existe uma unanimidade em

    reconhecer que se trata de uma passagem delicada e que deve ser muito bem

    planejada pelas instituies. Carvalho (2001) define o que seria a adaptao na

    creche:

  • 27

    No trabalho em creches, entende-se por cuidados com a

    adaptao, a tentativa de amenizar os impactos e as dificuldades

    inerentes ao enfrentamento de situaes novas, como entrada de

    criana, mudanas de grupo, substituio de educadores, sada

    de criana para outra instituio, mudanas no funcionamento

    cotidiano, etc. 12.

    Lembrando que o nosso foco neste trabalho apenas um dos aspectos

    citados pela autora: a entrada da criana na creche.

    Com base em dados relativos historia desta instituio, podemos inferir

    que a preocupao em amenizar os impactos e as dificuldades que se

    apresentam na insero de crianas na creche relativamente recente.

    Nos textos que se ocupam das origens e da histria da creche, tanto no

    Brasil, quanto na Europa, fica ntido que a principal preocupao quanto ao

    atendimento oferecido se voltava para a alimentao, higiene e cuidados com a

    segurana fsica.

    E isso se deve s origens dessa instituio, que quando do seu surgimento

    era voltada a atender crianas de famlias pobres, tinha um carter filantrpico.

    Atendia um pblico que no estava em condies de impor exigncias. E para os

    parmetros da poca a criao da creche representava um avano,

    principalmente quanto aos direitos trabalhistas das mulheres operrias.

    12

    CARVALHO, 2001, p. 58.

  • 28

    Descries da forma como o atendimento nas creches era dispensado aos

    pequenos nos permitem pensar que no existiam cuidados quanto questo do

    afastamento/separao da dupla me e beb.

    Crespim (2007) nos relata que na Frana at a dcada. de 60, as crianas

    eram passadas ao interior da creche pelos pais por um guich e despidas da

    roupa que traziam de casa. Para, em seguida, serem vestidas com a roupa da

    creche, para que no ocorressem contaminaes. Os pais eram mantidos do lado

    de fora e sem nenhum contato com o ambiente no qual ficariam seus filhos. Ou

    seja, no acontecia um momento de transio gradativo entre o ambiente privado

    e o ambiente coletivo.

    A questo do cuidado com a adaptao dos bebs ao ambiente da creche

    e figura da educadora tornou-se assunto de pesquisas nas ltimas dcadas do

    sculo XX, no contexto das transformaes sociais que tiveram reflexos no mbito

    familiar, com as consequentes mudanas nas concepes de criana e famlia.

    Desde a Idade Mdia, por volta do sc. XIII, at final do sc. XIX, os recm-

    nascidos eram enviados ao campo para serem alimentados por nutrizes tambm

    conhecidas como amas de leite. No existia a ideia de que o beb logo ao nascer

    precisaria do contato com a me para sobreviver e se constituir psiquicamente.

    Eventualmente, a nutriz era instalada na residncia, mas o

    habitual era enviar o beb, que se tivesse sorte, sobreviveria aos

    anos iniciais de vida, perodo marcado essencialmente pela total

    dependncia de um outro cuidador. Ao passar pelo teste da

    sobrevivncia que contm cenas impensveis atualmente, como

    por exemplo, enrolar os bebs em faixas que lhe impediam por

    completo os movimentos e pendur-los em pregos fixados na

  • 29

    parede para liberar a ama para outros afazeres, as crianas eram

    integradas ao convvio social com os adultos, ou seja, aps o

    desmame a criana que conseguisse retornar famlia era

    tomada como ais um integrante, com o mesmo estatuto do

    adulto.13.

    Alis, nessa poca, de acordo com Philippe Aris (1975), provvel que

    no houvesse lugar para a infncia no mundo. O autor chega a esta concluso ao

    analisar a ausncia das representaes da infncia na arte medieval. As crianas

    eram representadas como adultos em miniaturas.

    De acordo com Baptista (2002), as mudanas em relao aos cuidados

    dispensados infncia comeam a mudar com a descoberta da demografia, pois

    com ela surge uma preocupao em relao mortalidade infantil na Europa.

    Contabilizar os habitantes de um pas tornou-se uma prtica a partir dos meados

    do sc. XVIII, como meio para dimensionar o potencial produtivo do Estado assim

    como engrossar a fora militar. 14.

    Nesse contexto, as autoridades percebem que a fase crtica da infncia, a

    qual deveria ser dispensada uma ateno cuidadosa no se tratava do ps

    desmame, mas a primeira etapa da vida. E ento se evoca a figura da me para

    que cuide da educao dos bebs.

    Para educar os bebs, evoca-se a figura da me, dando

    incio, para os ricos, em uma mudana do estatuto da criana

    13

    BAPTISTA, 2002, p.16. 14

    BAPTISTA, 2002, p.17.

  • 30

    pequena. Este novo lugar das crias humanas inaugurar um novo

    conceito de relao entre pais e filhos.15.

    No Brasil, ao que parece, a importncia da relao precoce entre beb e a

    me tambm no fazia parte das preocupaes no atendimento oferecido aos

    filhos das operrias das primeiras creches no pas. Quando da criao da licena

    maternidade, o perodo que as mes dispunham para ficar com seus filhos era de

    84 dias. O que permite inferir que ao trmino deste perodo, as crianas deveriam

    ser deixadas nas creches para que a me retomasse seu posto no mercado de

    trabalho.

    Segundo Oliveira (1998), a forma de ver a creche comeou a mudar no

    pas a partir da dcada de 60, com a valorizao da Educao Infantil em funo

    da grande expanso de pr-escolas para atendimento s crianas de classe

    mdia, (...) que se preocupavam com o desenvolvimento infantil como um todo,

    com destaque criatividade e a sociabilidade.16.

    Na dcada de 70, aumentam as creches e berrios

    mantidos por entidades particulares para crianas da classe

    mdia, em geral filhos de profissionais liberais, e que defendiam a

    creche como instituio educativa voltada para os aspectos

    cognitivos, emocionais e sociais da criana.17.

    15

    Idem. 16

    OLIVEIRA, 1998, p. 49. 17

    Idem.

  • 31

    E assim, comeam a surgir profissionais e especialistas interessados nas

    condies de ingresso da criana pequena na creche e as possveis implicaes

    para o desenvolvimento emocional do beb. Garantia de atendimento e

    preocupaes com higiene, alimentao e segurana fsica j no so os nicos

    tpicos que figuram como importantes para um atendimento satisfatrio s

    crianas pequenas.

    Nancy Balaban (1988) uma autora americana que se dedica ao assunto,

    tratando em seu trabalho aspectos como a importncia do planejamento, as

    variadas reaes das crianas, a dificuldade dos pais em deixar o filho com um

    estranho, a angstia do professor ao manejar essa situao entre outros detalhes

    do cotidiano escolar que devem ser considerados para que, segundo a autora, se

    tenha um incio de vida escolar exitoso.

    Juliana Davini (1999) em Enfrentando Conflitos de separao: a

    adaptao na escola de Educao Infantil considera que a entrada na creche

    representa a oficializao da separao entre a me e o beb. A criana ter

    de elaborar a separao com a famlia, mais especificamente com a figura da

    me e tambm aprender a conviver socialmente.

    Aqui no Brasil, possvel perceber que as escolas tentam resolver o

    impasse do primeiro contato da criana com o universo pblico planejando a

    entrada da criana de forma gradual, poucas horas nos primeiros dias e

    permitindo a presena dos pais por um tempo na escola, evitando assim uma

    separao abrupta e proporcionando a criana uma segurana para o

  • 32

    estabelecimento dos novos vnculos com os amiguinhos e com a educadora, pois

    esse perodo visto como:

    (...) um perodo especial para o beb, quando ele estabelecer

    um vnculo secundrio, ou seja, fora da famlia, e tambm estar

    se adaptando a um novo espao e uma nova rotina junto com

    outras crianas. Minha proposta, no sentido de amenizar o efeito

    de tantas novidades na vida do beb, que se planeje o incio de

    uma ou duas crianas por vez, de forma que o adulto possa dar

    uma ateno especial a ele e sua me nos primeiros dias.

    Proponho tambm que se aumente gradualmente o nmero de

    horas que a criana fica na creche a cada dia, variando tambm

    os perodos (manh e tarde), caso o turno das educadoras seja de

    seis horas.18.

    Essa autora tambm considera a importncia da adaptao da me:

    Atravs da presena planejada da me nos primeiros dias do

    beb na creche podemos minimizar essa ansiedade e facilitar sua

    adaptao. O educador poder ganhar muito do tempo que

    gastaria para conhecer a criana atravs das dicas que a me

    fornecer sobre ela, ao mesmo tempo em que a me poder

    conhecer melhor as pessoas com quem estar deixando seu filho,

    o lugar e a rotina de atividades que lhe sero oferecidas.19.

    18

    ABUMANSSUR, 1999, P.16. 19

    Idem.

  • 33

    Esse considerado um aspecto importante nos dias iniciais da criana na

    escola: a compreenso e aceitao por parte dos pais de que tero de deixar seu

    filho confiado outra pessoa. uma situao de mudanas tanto para a criana

    quanto para os pais que deve ser vista com ateno pelas instituies de ensino

    para que exista a possibilidade de uma vida escolar satisfatria:

    Se a funo da escola de educao infantil , entre outras,

    proporcionar esse espao de aprendizagem significativa,

    subsidiada pelo trabalho de educadores atentos aos movimentos

    desse processo, o primeiro passo trabalhar a separao entre

    pais e filhos, que geralmente est acontecendo pela primeira vez.

    o momento da entrada da criana no mundo social mais amplo

    representado pela escola e cabe mesma conduzir, orientar esse

    momento to importante: o de adaptao de pais e crianas

    nova situao, lembrando que uma separao bem elaborada

    constitui-se em uma marca que favorecer tantas outras que

    fazem parte da vida.20.

    Buscando elementos sobre o assunto no campo terico da psicanlise,

    encontramos nos escritos de Franoise Dolto (1999) algumas consideraes

    feitas a respeito da entrada da criana na escola. Segundo a autora, essa

    separao deveria responder a certas condies. Como por exemplo, antes de

    ser deixada na creche aos cuidados de estranhos, a criana deveria aprender a

    conviver com outras crianas na presena dos pais, seja em local destinado a

    essa transio, ou de outra forma.

    (...) antes de confiar a criana a alguma instituio que toma

    conta dela e onde os pais esto ausentes, absolutamente

    necessrio que haja uma experincia intermediria, e se possvel

    20

    CURY, 1999, p.24.

  • 34

    em local intermedirio, onde a criana se habitue a viver com

    outras crianas. Pois uma criana tem necessidade das outras

    crianas para vacinar-se contra a agressividade da vida em

    comunidade, e para estruturar-se. Mas tal experincia deve ser

    feita na presena da me ou do pai, que fica no local, e que

    tranquiliza a criana sobre sua identidade.21.

    Dolto lembra que desde que sai da maternidade a criana j entra em

    contato com a coletividade, mas isso deve ser feito com os pais. A autora cita a

    Maison Verte como exemplo de lugar intermedirio no incio da vida social da

    criana. Trata-se de um local, na Frana, onde as crianas, com pai ou com a

    me, podem conviver com outras crianas antes da entrada na vida escolar. A

    criana se depara com a realidade e aos poucos adquire segurana para poder

    dizer aos pais que j consegue ficar sozinha.

    Isso quer dizer que a criana ento est pronta para ir a uma

    creche comum onde os pais no ficam. Assim, um local

    intermedirio entre a famlia e a creche, onde ela enfrenta os

    outros em presena da me, permite criana estruturar-se com o

    contato de seus amiguinhos. Ela adquire tambm, o conhecimento

    de sua identidade e a certeza de ser amada por aqueles de que

    oriunda. 22.

    Para a autora, no acontecer esse momento de transio perigoso para a

    criana.

    O perigo que a criana tenha uma dupla identidade. Na

    creche, ela no passa de uma parte num vasto conjunto. E, em

    casa, a criana que fica grudada na me ou no pai e incapaz

    21

    DOLTO, 2007, p.45. 22

    Idem.

  • 35

    de autonomia. Isso quer dizer que ela no adquiriu sua identidade,

    pois a criana que adquiriu sua identidade a mesma onde quer

    que v. Essa identidade provm da certeza e da confiana que

    tem de ser ela mesma, da conscincia que tem de seu sexo e de

    sua idade e do lugar que tem o direito de ocupar no mundo.23.

    A Maison Verte tambm tem o propsito de um trabalho de preveno de

    perturbaes relacionais. Inclusive, so recebidas tambm mes grvidas. Trata-

    se de uma experincia singular, desenvolvida em um contexto especfico, e que

    ilustra a importncia do vnculo com as figuras primordiais como a base para os

    novos investimentos.

    em funo da importncia constitutiva do lao afetivo com a me, que

    Dolto pontua a necessidade de um manejo cuidadoso dessa separao, uma vez

    que a criana est se constituindo psiquicamente, e para separar-se da me com

    tranquilidade precisa construir laos no ambiente da escola para sentir-se segura,

    pois: (...) o que dramtico para uma criana, estar no meio de outras crianas

    sem saber mais quem ela .24.

    Carvalho (2001) em dissertao de mestrado a respeito da creche

    fundamentada teoricamente nos pressupostos psicanalticos, na qual conclui ser

    a creche um elemento a mais na constituio psquica, trs consideraes sobre

    a entrada da criana pequena na instituio e o fato disso representar uma

    separao da figura materna. Ela aborda a separao como um dos momentos

    fundamentais do processo de estruturao subjetiva. Alis, abordagem que

    23

    DOLTO, 1999, p.46. 24

    DOLTO, 1999, p.45

  • 36

    confirma a hiptese inicial de nossa pesquisa e que desenvolveremos com mais

    detalhes nos prximos captulos.

    Mas se em relao chegada dos bebs na creche os estudiosos esto de

    acordo que se trata de uma transio delicada e que requer cuidados, no

    acontece o mesmo quanto idade para tal chegada ser o mais satisfatria

    possvel.

    Andrea Rapoport (2001) 25 uma pesquisadora que se dedicou a esse

    momento da vida escolar. Em suas pesquisas, explorou a questo das reaes e

    mudanas comportamentais das crianas no perodo de adaptao, com a

    inteno de entender as implicaes para o seu desenvolvimento.

    E um dos aspectos que encontramos em seu trabalho quanto aos

    variados comportamentos dos bebs de acordo com a idade. Rapoport constatou

    em pesquisa feita com educadoras de creches que existem diferenas na forma

    do beb reagir separao da me nos quatro e cinco meses e nos oito e nove

    meses.

    A autora encontra fundamentaes para tais constataes nos estudos de

    Bowlby (1951) 26 a respeito da ansiedade de separao e na ideia de crise de

    reaproximao, descrita por Mahler (1982) 27.

    Para Bowlby (1951), no perodo de 6 a 12 meses, (...) a criana adquire

    capacidade cognitiva de reter a figura da me na memria e assim passa a temer

    25 RAPOPORT, 2001. 26

    BOWLBY,1951, apud RAPOPORT, 2001. 27

    MAHLER,1982, apud RAPOPORT, 2001.

  • 37

    situaes e pessoas estranhas, bem como a prpria separao da me. 28. O

    que configuraria para este autor a ansiedade de separao. Por isso os bebs de

    8 a 9 meses podem apresentar uma adaptao mais difcil ao chegar creche em

    comparao aos de quatro e cinco meses.

    No perodo de 16 a 22 meses as crianas estariam vivenciando a crise da

    reaproximao, segundo Mahler (1982). Neste momento a criana j caminha e

    procura afastar-se da me, o que de um lado lhe d prazer, mas de outro acarreta

    ansiedade de separao, fazendo-a retornar me.29.

    Assim pode-se inferir que para pensar a adaptao de bebs na concepo

    dos autores citados, a idade da chegada creche faz toda a diferena: (...) a

    investigao compreensiva da adaptao da criana creche requer que a idade

    da criana seja sempre considerada. 30..

    Mas nosso estudo no se ater s especificidades como a idade de

    chegada creche para refletir sobre o momento da entrada. Nossa inteno

    pensar a insero do beb na creche como um acontecimento psiquicamente

    estruturante.

    De acordo com a bibliografia consultada possvel perceber que a ideia de

    separao, enquanto um momento traumtico e que gera sofrimento, entre me e

    beb permeia as reflexes. O que faz com que se olhe a creche como uma

    intrusa, um elemento estranho que viria perturbar a relao natural entre a me e

    filho, um mal necessrio.

    28

    BOWLBY,1951, apud RAPOPORT, 2001. 29

    MAHLER,1982, apud RAPOPORT, 2001. 30

    ZAJDEMAN & MINNES, 1991, apud RAPOPORT, 2001, p. 77.

  • 38

    E isso tem origem nas origens da creche. J relatamos anteriormente que

    tal instituio nasceu para suprir a ausncia forada da me, que necessitava

    trabalhar. Ou ainda, para amparar os abandonados e enjeitados por serem frutos

    de relacionamentos fora do ncleo familiar ou como forma do Estado compensar

    a falta de condies mnimas de sobrevivncia das camadas mais pobres da

    populao.

    Acompanhando, em nosso relato histrico, a apresentao das

    trs primeiras fases vividas pela creche filantrpica, higinico-

    sanitarista, de assistncia social inferimos que o que

    predominou, durante algumas dcadas, foi a imagem da criana

    atrelada a essa instituio como sendo abandonada, descuidada,

    debilitada, ameaada e desamparada. So atributos que supomos

    estarem diretamente vinculados a preocupaes como proteo,

    sobrevivncia e reduo de mortalidade. 31.

    Nas ltimas dcadas, sabemos que ocorreram mudanas em relao a

    concepo de criana e logo isso se refletiu, inclusive com medidas oficiais, na

    forma de atendimento oferecido na creche. As preocupaes hoje so outras:

    interao social, desenvolvimento cognitivo, construo da cidadania,

    socializao. Mas o imaginrio social que considera a creche como um mal

    necessrio, ou seja, est impregnado com as representaes discursivas que

    acompanharam o surgimento desta instituio, parece emergir sempre que uma

    criana chega creche pela primeira vez. A creche parece ter a funo de abalar,

    separar uma relao harmoniosa, natural, que seria a da me com seu beb. Ou

    ainda, substituir a me.

    31

    CARVALHO, 2001, p. 46.

  • 39

    Envolvida por esse imaginrio, a creche sustenta um lugar de quem est

    separando uma relao tida como natural. V essa chegada da criana ao mundo

    pblico como uma desnaturalizao da relao da criana com o ncleo familiar.

    E considerando-se o agente desta desnaturalizao, passa a empreender uma

    busca por artifcios para saturar/minimizar as manifestaes que so

    consequncias deste mal necessrio: o choro e a insegurana dos pais.

    Mas no seria a humanizao arbitrria em si mesma? Ser que o choro

    da criana ao se deparar com o que lhe estranho e a insegurana dos pais,

    pontos que tanto angustiam os educadores e mobilizam as instituies, esto

    ligados origem da creche e ao discurso negativo atrelado a essa origem? Ou

    seria a expresso de um mal-estar inerente ao enfrentamento do diferente pela

    criana e ao fato dos pais darem-se conta de que no podem a tudo prover?

    Diante dessas questes arriscamos mais uma: seria possvel pensar a

    insero do beb no mundo pblico para alm dos critrios da pedagogia

    apoiados nos recursos cognitivos de compreenso? o que pretendemos

    entender com a ajuda das consideraes psicanalticas referentes constituio

    subjetiva e a construo do Outro, problemtica na qual o beb est imerso ao

    chegar creche.

  • 40

    3. A PSICANLISE E OS BEBS

  • 41

    3.1 A constituio subjetiva

    Tendo como objetivo principal deste trabalho entender o significado para a

    criana em fase de estruturao psquica do afastamento da figura materna a

    partir de elementos tericos tomados emprestados da Psicanlise, fundamental

    que se inicie pela constituio subjetiva.

    A noo de sujeito psquico entendido como aquele que se constitui a partir

    do encontro com outros que permitem a entrada desta criana no campo social,

    anterior a sua prpria existncia - como a famlia e o desejo dos pais - e as

    intercorrncias da trajetria de cada criana, pode (...) ser concebido como um

    elemento organizador do desenvolvimento da criana em todas as suas vertentes,

    fsica, psicomotora, cognitiva e psquica. 32.

    Abordaremos a constituio subjetiva com base na teoria psicanaltica, sem

    a inteno de esgotar o assunto, mas buscando construir um contexto terico

    para o momento de transio vivenciado pelo beb na chegada creche.

    O beb que vivencia sua primeira experincia escolar encontra-se em

    pleno momento de construo da subjetividade. Para entender essa transio

    vamos buscar elementos tericos na constituio psquica a partir das

    concepes de Freud e Lacan e tendo como apoio, comentadores que se

    ocuparam do assunto e em alguns casos articularam a teoria psicanaltica com o

    campo da Educao.

    32

    JERUSALINSKY, et al, 2009.

  • 42

    Lacan em sua releitura de Freud, para pensar a constituio do sujeito,

    partiu da noo de complexo e das vivncias sociais estabelecidas no mbito

    familiar. Escreveu, a pedido de Henri Wallon, com o objetivo de incluir na

    Encyclopdie Francaise dedicada vida mental, e publicado em 1938, um texto

    sobre Os Complexos Familiares dividindo tais complexos em Complexo do

    desmame, Complexo de intruso e Complexo de dipo.

    Para Freud, o complexo essencialmente inconsciente e capaz de se

    revelar nos atos falhos, nos sonhos e sintomas. Ele tido como um organizador

    do psiquismo e ser a partir dessa noo articulada com as interaes familiares,

    com a relao inicialmente dual com a figura materna, com a representao da

    imago materna Estdio do Espelho- que Lacan ir desenvolver sua teoria a

    cerca da constituio do sujeito.

    Para vivenciar o complexo do desmame, o primeiro dos trs complexos de

    que fala Lacan o beb necessita alcanar as condies psquicas necessrias, ou

    seja, internalizar a imago materna se alienando ao cuidador primordial para

    depois separar-se dele.

    Para isso imprescindvel que antes esse beb tenha sido investido

    libidinalmente por um adulto, o outro primordial, que normalmente a me, mas

    que pode ser outro cuidador que se ocupe da criana. Este dever interpretar as

    reaes motoras do beb como dotadas de sentido, supondo ali um sujeito. O

  • 43

    choro do beb ganhar um significado e o outro primordial responder a esse

    choro com uma entonao de voz muito particular, o manhs.33.

    Mas a entonao da voz apenas um dos aspectos considerados

    fundamentais nesta relao do outro primordial com o beb. O sentido conferido

    pelo outro primordial s reaes do recm-nascido faz com que as descargas

    motoras , que Freud (1985) se referia, sejam escutadas como solicitaes de

    cuidados. A me interpreta o choro de seu beb como sendo de fome, frio, dor.

    Ao interagir com o beb em momentos de cuidados, nos quais manuseia o

    corpo da criana e nomeia suas partes, o adulto cuidador favorece o surgimento

    de um corpo, onde se v apenas um organismo e assim se d a organizao

    pulsional no corpo do beb. A me ao erogenizar o corpo da criana, o organiza

    psiquicamente.

    Freud (1985) em Projeto para uma psicologia cientfica, tratou dessa

    relao primordial entre a me e seu beb ao se referir primeira experincia de

    satisfao. O beb humano ao nascer incapaz de eliminar a tenso fisiolgica

    que se apresenta em seu organismo e para isso necessita da interveno

    externa, de aes especficas, que devem partir de um adulto que esteja atento

    criana.

    E esse investimento, essa suposio que dota de sentido as reaes

    motoras do beb acontece porque a criana j existia enquanto sujeito para a

    me e os outros adultos ligados a ela. Existe uma pr-histria na vida de um

    sujeito que antecede a sua existncia fsica. Assim, j existindo na linguagem,

    33

    KUPFER, et al, 2009.

  • 44

    sendo falado e nomeado por seus pais, o recm-nascido poder advir enquanto

    sujeito desejante a partir da relao com o outro.

    Ento os choros passam a ter significados, a me supe que podem ser de

    dor, fome, sono e essa antecipao tem efeitos no beb, causam prazer em

    funo do tom melodioso da voz, o que faz a criana buscar corresponder ao que

    foi suposto. Assim, a me supe um sujeito aonde ele ainda vir a ser. O beb

    responde a essa interpretao de suas reaes pela me, alienando-se a ela.

    Essa antecipao causa grande prazer ao beb, j que ela vem

    acompanhada de uma manifestao jubilatria da me so

    palavras carregadas de uma musicalidade prazerosa, chamadas

    de mamanhs (Ferreira, 1997; Laznik, 2000), o que far o beb

    buscar corresponder ao que foi antecipado sobre ele. Ao realizar

    essa tentativa, trar de volta o efeito de prazer vivido por ele

    quando ocorreu a antecipao materna o esgar traduzido pela

    me como um sorriso passar a ser de fato um sorriso. 34.

    As reaes motoras involuntrias do beb recm-nascido, ao serem

    reconhecidas pela me como um pedido, configuram-se em uma demanda:

    (...) para a psicanlise, sempre uma demanda de amor desse

    sujeito a todos com quem vier a relacionar-se. Essa demanda

    estar na base de toda a atividade posterior de linguagem e de

    relao com os outros.35.

    34

    KUPFER, et al, 2009, p.54. 35

    KUPFER, et al, 2009, p.55.

  • 45

    Podemos nos remeter a esse momento de total identificao com o outro

    primordial utilizando a formulao lacaniana de alienao. Lacan (1964), no

    Seminrio 11, Os quatro conceitos fundamentais de psicanlise, apresenta os

    conceitos de alienao e separao como operaes fundantes do psiquismo.

    A alienao seria a primeira operao na qual se funda o sujeito. Para

    Lacan a primeira alienao representa a entrada do homem na via da escravido.

    A liberdade ou a vida! Se ele escolhe a liberdade, pronto, ele perde as duas

    imediatamente se ele escolhe a vida, tem a vida amputada da liberdade.36

    Lacan se refere ao fato de que, para ele, o homem est desde antes do

    nascimento alienado na linguagem, um ser de linguagem. Somente poder

    tornar-se um sujeito ao acessar o registro do simblico e isso se d por meio do

    campo discursivo37 que se estabelece entre o recm-nascido e o outro primordial.

    O sentido emerge no campo do Outro.38.

    Ele sofre determinaes desse sistema simblico que a

    linguagem, e ingressar nesta ordem simblica a partir da relao

    com o Outro num primeiro momento, presentificado pela me

    que vai falar com ele, oferecendo-lhe significantes que o

    constituiro. 39.

    Mas para que o acesso ao registro do simblico se efetive, se faz

    necessrio a ocorrncia do segundo tempo, ou seja, a segunda operao que

    funda o sujeito: a separao. Enquanto que o primeiro tempo est fundado na

    36

    LACAN, 1964, p. 201. 37

    Expresso utilizada por CARVALHO, M. T. V., 2001, em substituio relao entre me-beb. 38

    BRUDER & BRAUER, 2007, p.515. 39

    BRUDER & BRAUER, 2007, p.516.

  • 46

    substrutura da reunio, o segundo est fundado na substrutura que chamamos

    interseo ou produto 40.

    A noo de interseo, que seria o ponto comum entre dois conjuntos, se

    trata aqui do recobrimento de duas faltas. Uma a sua prpria falta e a outra a

    falta que o sujeito encontra no Outro. Uma falta recobre a outra. Da, a dialtica

    dos objetos do desejo, no que ela faz a juno do desejo do sujeito com o desejo

    do Outro. 41.

    Ao se separar da relao alienante com a figura materna, por exemplo, a

    criana poder ento simbolizar esta figura, conservando representaes/marcas

    psquicas desta relao em seu aparelho psquico, que seriam o produto desta

    relao, e que permitem a ele advir como sujeito. Para Lacan (1964), a palavra

    separao remeteria a um engendrar-se, o que para Bruder & Brauer (2007),

    promoveria algum acesso liberdade, ainda que limitada.

    Neste ponto o sujeito ento retornaria ao ponto inicial, que o da sua

    prpria falta e que o levaria a alienar-se novamente. Assim, alienao e

    separao no so fases estticas, elas se alternam e se complementam

    enquanto operaes fundantes do psiquismo.

    Retornando aos complexos lacanianos, temos o Complexo do desmame no

    qual acontece a introduo da imago materna e a criana passa a reconhecer que

    algum cuida dela. Lacan no refere esse complexo em funo da amamentao,

    mas em relao ao outro cuidador, e a existncia desse outro. Inicialmente a

    40

    LACAN, 1964, p. 202. 41

    LACAN, 1964, p. 203.

  • 47

    criana no tem noo do corpo prprio, e o complexo do desmame vai propiciar

    o surgimento da imago corporal, uma imago que formada a partir do contato

    com o outro primordial, que ao cuidar do beb faz com que este se perceba

    enquanto um corpo com necessidades e desejos.

    No complexo de intruso o sujeito passa a ter ideia do outro, dos

    semelhantes. O sentimento que domina o do cime e nessa etapa forma-se a

    imago do semelhante. O complexo de intruso coincide com o momento inicial do

    estdio do espelho. intermedirio entre o complexo do desmame e o complexo

    de dipo. Aqui ainda persiste a relao fusional com o outro no plano imaginrio.

    Este complexo diz respeito ao fato de se (...) reconhecer em um grupo familiar,

    em relao presena de irmos, no qual pode vir a assumir diferentes posies

    ou lugares. 42.

    Neste perodo considerado de transio o transitivismo - a criana alterna

    as aes dela e do outro, ela faz e recebe a ao, por exemplo, ela bate no outro

    e diz que o outro bateu nela. Existe uma falta de percepo de limites, o sujeito

    se confunde com o outro. Nessa poca a criana quer o brinquedo que est com

    o outro, no adianta oferecer-lhe outro igual.

    Ento, a partir do estdio do espelho que a criana vai comear a

    construir, pelo vis do olhar do outro, uma imagem de si. E passa a se reconhecer

    de uma forma mais distanciada do outro.

    Do ponto de vista lacaniano, o estdio do espelho seria um drama para a

    criana no qual um impulso interno precipita-se de uma condio de insuficincia

    42

    BASTOS, 2003, p. 99.

  • 48

    para uma de antecipao. Insuficincia por remeter falta de representao do

    prprio corpo pela criana e antecipao, pois a imagem que a criana v uma

    imagem construda antecipadamente pelo olhar do outro.

    Para Lacan (1998), no se trata do corpo real, mas da internalizao da

    imagem do prprio corpo. E essa imagem vista por intermdio do olhar que o

    outro primordial lhe oferta, pois o que a criana introjeta a imagem que a famlia

    construiu dela. Assim, Lacan lembra que o que decisivo na apreenso pela

    criana da imagem especular, o carter ilusrio, criado, ou contornado, pelo

    desejo e ideais familiares.

    Assim o estdio do espelho um momento no qual a criana passa a ter

    noo do prprio corpo e de si, a partir de uma imagem falsa, construda pelo

    outro e que volta para a criana como um reflexo no espelho.

    Para Bastos (2003), o estdio do espelho pode ser resumido em trs

    momentos distintos. Num primeiro momento existe um assujeitamento ao registro

    imaginrio e acontece a conquista gradativa da imagem do prprio corpo a partir

    de uma confuso entre si e o outro. Num segundo momento acontece a

    discriminao da imagem, possvel diferenciar o outro real e sua imagem no

    espelho. No terceiro momento, alm de diferenciar a imagem do corpo real, passa

    a perceber que se trata da sua imagem, do seu corpo.

    Porm, a separao inerente ao complexo do desmame no acontece de

    forma abrupta, repentina. Para chegar-se a ela, o beb vivencia um processo de

    elaborao da alternncia entre a presena e a ausncia da figura materna, que o

    levar a desenvolver uma representao psquica da figura materna para suportar

  • 49

    os espaos de ausncia, simbolizando essa figura, conforme j foi comentado a

    respeito da operao de separao.

    A ausncia materna marcar toda ausncia humana como um

    acontecimento existencial, digno de nota, obrigando a criana a

    desenvolver um dispositivo subjetivo para a sua simbolizao.43.

    Dessa forma a presena materna passar a no ser apenas fsica, mas

    principalmente simblica.

    Freud, em Alm do princpio do prazer (1920) relata a observao que fez

    de um menininho brincando de jogar seus brinquedos para fora de seu campo de

    viso. Enquanto atirava os brinquedos emitia um som de oooo demonstrando

    interesse e satisfao. Para Freud esse som representava a palavra alem Fort.

    Freud sups que o menino brincava de ir embora jogando seus brinquedos.

    Mais tarde observou uma repetio do jogo que trazia uma parte indita e que

    confirmou suas suposies: o menino utilizava um carretel com linha, o qual

    arremessava por sobre a borda da cama encortinada, de forma que o mesmo

    desaparecia. Esse ato era acompanhado do som oooo. Ento o menino puxava

    o barbante fazendo o carretel reaparecer, e ento dizia demonstrando alegria:

    d (Ali). Para Freud essa era a verso completa da brincadeira:

    desaparecimento e retorno.

    Este jogo representa uma forma encontrada pela criana de aceitar a

    ausncia da me, podendo deixar o lugar passivo de ter sido deixado para agir

    43

    KUPFER, et al, 2009, p.55.

  • 50

    ativamente ao simboliz-la com o jogo de arremessar e puxar o carretel,

    revelando prazer em fazer isso, o que para Freud representaria a criana

    deixando a me ir embora e trazendo-a de volta de acordo com sua vontade. Para

    Lacan (1938), o Fort-D significa a reproduo pela criana do processo do

    desmame e representa o triunfo do sujeito sobre esse complexo, ao comandar

    sua reproduo de forma ativa.

    Podemos relacionar a falta vivenciada pelo beb com a ausncia da me

    com a frustrao, um dos trs estatutos da falta a que Lacan se refere no

    Seminrio IV, A relao de objeto. Neste texto o autor faz meno a formas de

    substituio da falta do objeto, por meio dos trs diferentes estatutos da falta: a

    privao, a frustrao e a castrao. Para Lacan, a frustrao se trata da

    modalidade imaginria da falta, onde o objeto real e o agente, a me,

    simblico.

    O terceiro complexo lacaniano, o complexo de dipo, no diverge do que

    encontramos em Freud, em A Dissoluo do Complexo de dipo (1924). a fase

    em que a criana, at agora alienada numa relao dual e imaginria com a me,

    percebe uma terceira pessoa, a figura do pai, como interditora da sua relao de

    fuso com a me.

    Nessa circunstncia a criana desenvolve sentimentos de frustrao para

    com o progenitor do mesmo sexo, rivalizando com ele e a ele se identificando. O

    progenitor do mesmo sexo o agente da interdio sexual, que impede a

    satisfao incestuosa. Neste momento a criana toma partido da sua orientao

    sexual e ascende ao registro simblico.

  • 51

    Para Freud (1924), a angstia de castrao a desencadeadora do

    complexo edpico. Para ele a castrao vivenciada de formas distintas em

    ambos os sexos, mas num primeiro momento tanto o menino quanto menina

    acreditam na premissa universal do falo. Trata-se do perodo da primazia flica no

    qual ambos os sexos acreditam que existe apenas um rgo genital, o masculino.

    No menino ela comea a ser gestada inconscientemente quando esse tem

    o seu rgo genital ameaado imaginariamente pelos pais ou por pessoas que

    cuidam dele devido manipulao do rgo feita pela criana. A masturbao,

    segundo Freud, constitui uma descarga genital da excitao sexual pertinente ao

    complexo de dipo. Porm, essa angstia se manifestar apenas mais tarde,

    como foi constatado na anlise do pequeno Hans, em que a ameaa verbal

    proferida por sua me foi (...) precipitadamente banida dos seus pensamentos e

    s conseguiu tornar seus efeitos aparentes num perodo posterior 44.

    De acordo com Freud, o menino desconsidera tal ameaa, pois

    desconhece a diferena anatmica dos sexos e no dispe de elementos para

    acreditar que a advertncia possa representar algum perigo. A mesma ter efeitos

    quando a criana no puder mais ignorar a diferena anatmica entre os sexos,

    quando descobrir que a me, assim como as outras mulheres, no possuem um

    pnis, desse modo a ameaa retornar associada a esta nova situao que far

    eclodir a angstia de castrao com o medo de perder o rgo genital.

    O menino acredita que todos possuem um rgo igual ao seu, mas em

    determinado momento ir se deparar com a visualizao do rgo genital de sua

    44

    FREUD, 1996, p.99.

  • 52

    irm, ou mesmo de uma amiga de brincadeiras. A partir desse momento, meninos

    e meninas comeam a trilhar caminhos diferentes. E isso se deve forma singular

    de ambos se posicionarem perante a diferena anatmica dos sexos. Diante

    dessa diferena que observa no genital da menina em relao ao seu prprio

    rgo prefere acreditar que se refere apenas ao tamanho: um pnis pequeno

    que crescer. O pequeno Hans ao observar sua irm ser banhada fez essa

    observao.

    E assim persiste o falo, como a premissa universal do pnis, mas neste

    momento o menino passa a associar a atrofia do genital da menina quelas

    antigas admoestaes verbais em relao ao seu comportamento para com o seu

    pnis. Ento supe que a menina teve o seu rgo castrado por ter feito algo

    desprezvel. O perigo at agora negligenciado passa a ser considerado: se

    existem pessoas sem pnis porque o perderam e ele tambm poder perder o

    seu. Nesta fase, a me e as mulheres, para ele, respeitveis ainda detm o falo.

    Porm, suas investigaes no cessam e ao se ocupar da questo da

    origem dos bebs, constatar que tambm a me no possui pnis e ento

    eclodir a angstia de castrao: quando a criana retoma os problemas da

    origem e nascimento dos bebs, e adivinha que apenas as mulheres podem dar-

    lhes nascimento, somente ento tambm a me perde o seu pnis.45.

    Inconscientemente o menino passa a temer pela integridade de seu rgo

    genital, e esse temor agora ganha sentido, pois a constatao da falta na me

    evoca a lembrana das ameaas verbais antes desconsideradas.

    45

    FREUD, 1909, p.183.

  • 53

    Nesse momento, o menino que sustenta uma atitude edipiana em relao

    aos pais, deseja ocupar o lugar do pai junto me e supe vagamente que o

    pnis deve ter lugar numa relao ertica satisfatria, suposies essas

    sustentadas devido s sensaes que experimentou ao manipular seu rgo

    genital, passa a reconhecer a impossibilidade de satisfazer seus desejos

    incestuosos e tambm a ameaa de castrao:

    Agora, porm, sua aceitao da possibilidade de castrao, seu

    reconhecimento de que as mulheres eram castradas, punha fim

    s suas maneiras possveis de obter satisfao do complexo de

    dipo, de vez que ambas acarretam a perda de seu pnis - a

    masculina como uma punio resultante e a feminina como

    precondio. - Se a satisfao do amor no campo do Complexo

    de dipo deve custar criana o pnis, est fadado a surgir um

    conflito entre seu interesse narcsico nessa parte de seu corpo e a

    catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa

    normalmente, a primeira dessas foras: o ego da criana volta s

    costas ao complexo de dipo. 46.

    Ento, ao vivenciar o dilema entre a renncia me como objeto

    sexualmente investido e a perda do seu rgo genital, o menino, apoiado em seu

    narcisismo, aceita a interdio do incesto imposta pela lei paterna, visando salvar

    o seu pnis. Resolve o complexo de dipo, que de acordo com Freud, numa

    situao ideal abolido completamente, e deixa emergir assim a instncia

    psquica Superego, entrando, aps esse estabelecimento, no perodo de latncia.

    J a menina no sofre as ameaas castradoras por parte do pai, nela o

    complexo de castrao prepara o nascimento do Complexo de dipo e no a sua

    46

    FREUD, 1976, p. 221.

  • 54

    resoluo. A menina se separa da me, no por sentir-se ameaada, mas por

    experimentar sentimentos hostis em relao figura materna ao verificar que a

    me castrada. Ento elege o pai como objeto de amor, entrando em seu

    Complexo de dipo, que ter o curso de seu desenvolvimento posterior definido

    pelo posicionamento que a menina vier a ter em relao falta do rgo

    masculino.

    Independente da diferena na forma de passar por esse complexo para

    ambos os sexos, meninos e meninas devero se assujeitar inscrio da Lei

    interditora do incesto, ao reconhecimento da funo simblica do Nome do pai,

    que na organizao psquica vir substituir o significante do desejo da me.

    Assim, o objeto fundamental do desejo recalcado, mas o seu significante

    persistir no inconsciente e insistir em se representar na busca de objetos

    substitutos. Dessa forma o sujeito acende ao universo simblico, separando-se da

    me, da relao dual e imaginria, e passa a eleger outros objetos na busca da

    satisfao do desejo.

    Com o declnio do complexo edpico para o menino e com a entrada da

    menina neste complexo, situaes que ocorrem em funo da instalao e

    operao da funo paterna, pode-se supor uma consolidao dos eventos

    fundamentais da constituio da subjetividade que acontecem durante a infncia.

    Digo eventos fundamentais, pois o sujeito nunca deixa de constituir-se, de vir a

    ser.

    E assim temos os principais eventos da constituio da subjetividade.

    Importante ressaltar que os acontecimentos aos quais nos referimos como a

  • 55

    suposio do sujeito e estabelecimento da demanda, alternncia presena-

    ausncia e estabelecimento e operao da funo paterna47, que concorrem para

    a estruturao do psiquismo, no ocorrem numa determinada sequncia, mas

    organizam as aes da me em torno do beb as quais permitem que este se

    torne um sujeito.

    3.2. As funes materna e paterna

    Uma mulher ao ter um filho supe que o mesmo venha suprir uma falta e

    por isso o deseja. Mas ela deve em algum momento perceber que o beb no

    obtura o desejo e que o desejo vai alm. Para que isso acontea, algum dever

    marcar esse limite, permitindo a essa mulher buscar outros objetos e ao beb

    constituir-se desejante, desalienando-se dessa relao dual e primordial,

    buscando estabelecer novos laos.

    Mas como ocorre esse movimento psquico que desaliena a criana da

    relao com o outro primordial e permite o acesso ao universo simblico,

    operando inclusive mudanas na forma de expressar-se verbalmente, marcando

    com esse momento a aquisio da linguagem?

    A operao de alienao figura materna fundante do psiquismo, como

    j vimos anteriormente, porm, para que a funo materna possa se cumprir, ela

    47

    Termos utilizados na pesquisa IRDI (PESARO, 2010) para organizar didaticamente a constituio da subjetividade.

  • 56

    necessita da operao da funo inversa: a funo paterna. a funo paterna

    que ser a operadora da separao - a segunda operao fundante

    desalienando a criana fala do Outro e permitindo sua emergncia enquanto

    sujeito.

    a funo paterna que coloca em ao a operao edpica, instaurando

    limites para a me em relao ao filho e mostrando ao filho a possibilidade de ir

    alm, elegendo novos objetos de investimento.

    Para que uma mulher, uma me, possa cumprir essa funo,

    (...) necessrio que algum marque para ela que este

    supostamente que o filho poderia preencher a s suposto

    mesmo, j que, para que ele no se perca como sujeito, ela deve

    suportar perd-lo, deix-lo crescer. 48.

    Quem opera essa separao, o encarnante da funo paterna. Em linhas

    gerais, essa funo sustentada pelo pai, o terceiro imediato na relao dual

    me-beb. Mas para Crespin, existe um movimento dialtico na sustentao de

    tais funes, uma me pode sustentar a funo paterna em determinadas

    situaes assim como um pai poder estar no lugar da funo materna em

    algumas circunstncias. Para ela, (...) o que chamamos de pai e me, ou melhor,

    suas funes, so duas vertentes do lao primordial, duas modalidades diferentes

    de entrar em contato como beb e seu Outro da relao. 49.

    48

    BERNARDINO, 2006, p. 32. 49

    CRESPIN, 2004, p.28.

  • 57

    Para essa autora, esse lao primordial somente poder ser portador de

    qualidades necessrias ao desenvolvimento do psiquismo do beb quando

    comportar as duas vertentes, e que elas estejam numa articulao dialtica.

    Para Crespin, o homem encarna mais facilmente a funo paterna, por que

    de incio para ele o beb um outro, ele no gesta e nem amamenta e assim no

    pensa o beb como parte dele mesmo. No existe entre eles essa relao

    corporal que se d com a me em funo da gestao e depois da amamentao.

    A funo paterna um operador psquico da separao. O

    lao primordial, na sua vertente paterna, introduz um corte. Ele

    corresponde capacidade separadora do pai e sua funo

    reguladora da onipotncia primordial da me. 50.

    Crespin (2004) relaciona essas funes, concebidas dessa forma

    alternada, com as operaes fundamentais da alienao e separao fundadoras

    do psiquismo de que fala Lacan. Seria da articulao dialtica de tais funes,

    que para a autora so antagonistas e complementares, que resultariam as trocas

    satisfatrias e constituintes para/e com o beb.

    Enquanto alienao e separao so as operaes fundadoras do

    psiquismo, os encarnantes das funes materna e paterna seriam seus agentes.

    Assim, essas funes poderiam ser sustentadas tanto pelo homem quanto

    pela mulher. A me poderia estar na posio de funo paterna e o pai na de

    50

    CRESPIN, 2004, p.29.

  • 58

    funo materna. Quando, por exemplo, uma me organiza respostas para o beb

    a partir da projeo de desejos semelhantes aos seus, ela se posiciona na

    vertente materna. J quando ela admite que a criana seja diferente dela e

    respeita sua recusa em relao ao que ela lhe oferta, ela se posiciona na

    vertente paterna.

    A vertente paterna introduz um limite ao gozo materno,

    articulado onipotncia primordial: graas a ele, o beb deixa seu

    estatuto de ser uma parte da me, e no se faz mais to

    previsvel, totalmente compreensvel, totalmente em seu poder. A

    funo paterna introduz a dimenso da alteridade e garante assim

    o espao para que o psiquismo da criana possa se desenvolver. 51.

    A operao da funo paterna permite ao sujeito o acesso ao universo

    simblico, condio para a evoluo psquica e promove o sujeito a sujeito

    desejante.

    Ao mesmo tempo, a entrada no registro simblico representa uma

    alienao do desejo ao campo da linguagem, trazendo a questo da

    impossibilidade da satisfao, instaurando a dimenso da falta e da diviso do

    sujeito, enquanto assujeitado lgica inconsciente.

    51

    CRESPIN, 2004, p.31.

  • 59

    3.3 A construo do Outro para o beb

    A noo de campo do Outro encontrada em Lacan no Seminrio 11 Os

    quatro conceitos fundamentais de Psicanlise. O autor utiliza essa terminologia

    para designar:

    (...) um lugar simblico o significante, a lei, a linguagem, o

    inconsciente, ou, ainda, Deus que determina o sujeito, ora de

    maneira ultra-subjetiva em sua relao com o desejo. Pode ser

    simplesmente escrito com maiscula, opondo-se ento a um outro

    com letra minscula, definido como outro imaginrio ou lugar da

    alteridade especular. Mas pode tambm receber a grafia grande

    Outro ou grande A, opondo-se ento quer ao pequeno outro, quer

    ao pequeno a, definido como objeto (pequeno)a. 52.

    O campo do Outro, enquanto ordem simblica que determina o sujeito,

    no se restringe ao casal parental e pr-existente ao nascimento. A ideia de

    uma ordem pr-existente ao recm-nascido j estava nos escritos freudianos:

    Essa questo j estava colocada em Freud tanto em Trs

    ensaios sobre a teoria sexual, como em Psicologia das massas.

    No primeiro texto, Freud j apontava para um plano anterior, que

    precede ao da interao me-beb, correspondente pr-histria,

    filognese, ao mito ou ao fantasma. No segundo texto, Freud

    ressalta que h uma incorporao prvia do pai pelo beb anterior

    relao fsica da me com o beb. 53.

    52

    ROUDINESCO, 1944, p. 558. 53

    PESARO, 2010, p.28.

  • 60

    Na medida em que existia simbolicamente nos planos de seus pais, o beb

    era enredado pelas marcas do campo do Outro no qual esses adultos estavam

    mergulhados e que determinava o desejo dos mesmos.

    Sendo o campo do Outro definido como um lugar simblico que ultrapassa

    o casal parental, que o envolve de tal forma a ser transmitido pelo desejo do

    mesmo ao recm-nascido, - e que esse lugar simblico engloba a lei, a

    linguagem, o inconsciente, Deus, ou seja, trata-se da cultura de um povo -

    podemos afirmar que a escola, a funo do educador, parte desse grande

    Outro.

    Embora esse grande Outro enrede a criana mesmo antes de sua

    existncia biolgica, o contrrio no acontece da mesma forma: o recm-nascido

    no se apropria imediatamente de todo esse universo simblico que o precede.

    No nasce conhecendo as leis, os hbitos e costumes de sua cultura nem falando

    a lngua de seu pas. O campo do Outro sujeita o recm-nascido/chegado por

    meio do desejo dos pais, da linguagem e da cultura na qual nasceu, mas ele ter

    que dele se apropriar para torn-lo seu.

    Cabe aqui a conhecida frase de Goethe: Aquilo que herdaste de teus pais,

    conquista-o para faz-lo teu. Freud (1912-1914) se utilizou dela para fazer-se

    entender a respeito da herana de disposies psquicas como um meio de

    transmisso de estados mentais de uma gerao outra. Mas como um beb

    poder conquistar um lugar no campo do Outro?

    A conquista de um lugar no campo do Outro para um recm-nascido se

    confunde com a constituio de sua subjetividade. Falar de constituio subjetiva

  • 61

    falar de construo do Outro e vice-versa. Para tornar-se um sujeito, o beb ter

    de alcanar o registro do simblico, l onde se encontra o grande Outro.

    O primeiro momento da constituio subjetiva, representada na psicanlise

    por uma relao alienante entre me-beb, tem incio no investimento libidinal do

    outro54 primordial a me que permite criana organizar sua experincia de

    vida. pela voz, pelo toque e pelo olhar da me, a qual v nas primeiras reaes

    motoras do beb uma demanda por algo: necessita de alimento, de cuidados

    higinicos ou mesmo de companhia, que se abre caminho para uma identificao

    do recm-nascido com a figura materna.

    A interpretao feita pela me, atravessada por seu desejo, pois muito

    provavelmente esta mulher entender os pedidos de seu pequeno a partir dos

    significantes inconscientes da poca quando tambm era um beb e por sua vez

    foi cuidada por sua me, dota de sentido os sons e movimentos mecnicos vindos

    do beb. A me, o pequeno outro, filtra de certa forma os significantes advindos

    do grande Outro, no qual ela encontra-se mergulhada e alienada. O contedo que

    chega ao beb vem interpretado pela problemtica psquica da me.

    Na relao da criana com o pequeno outro representado pela figura da

    me, primeiramente, o beb no se distingue como algum separado deste outro.

    Est alienado s palavras da me e ainda no construiu a imagem do prprio

    corpo. Esta questo se desenrola satisfatoriamente com a identificao do beb,

    54

    Grafado com o minsculo quando se referir relao do sujeito com outro semelhante. Utilizaremos Outro com O maisculo quando nos referirmos ao registro simblico, conforme a definio lacaniana.

  • 62

    no desenrolar do estdio do espelho, imagem refletida no olhar e nas palavras

    da me.

    Estdio do espelho foi a nomenclatura proposta por Lacan, subsidiada em

    estudos anteriores realizados por Henri Wallon, para nomear o movimento

    identificatrio do beb sua prpria imagem no contexto da relao imaginria

    com a figura materna. Ao passar pelo estgio do espelho, a criana passa a

    reconhecer-se como algum separado da imagem materna, comea a reconhecer

    o outro como algo separado de si mesmo. Na linguagem lacaniana, a relao dual

    do beb com o cuidador primordial uma relao no plano imaginrio55.

    Assim a problemtica especular, no seu desenrolar, acaba tendo para a

    criana um efeito de corte na alienao figura materna. A criana num primeiro

    momento, no se experimenta como sendo esse beb para quem sua me sorri e

    com quem conversa com tanta animao. No se reconhece na imagem do

    espelho, acredita tratar-se de outra criana, um terceiro que est se intrometendo

    na sua relao com sua me. Para resolver o problema, identifica-se imagem do

    espelho, ou imagem que lhe devolvida pela me, com a inteno de recuperar

    o seu lugar supostamente perdido para o beb do espelho.

    A assuno jubilatria de sua imagem especular por esse ser

    ainda mergulhado na impotncia motora e na dependncia da

    amamentao que o filhote do homem nesse estgio de infans

    parecer-nos-, pois, manifestar, numa situao exemplar, a matriz

    simblica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes

    de se objetivar na dialtica da identificao com o outro e antes

    55

    Refere-se aos trs registros da teoria lacaniana; imaginrio, simblico e real.

  • 63

    que a linguagem lhe restitua, no universal, sua funo de sujeito. 56.

    Aqui podemos dizer que o beb comea a tomar para si um lugar no

    campo do Outro, na medida em que se identifica com essa imagem que sua me

    aprecia - se aprecia por que diz respeito ao seu desejo, recortado no campo do

    Outro ao qual ela est assujeitada - para poder recuperar o amor materno. Desse

    modo realiza-se a identificao primordial na qual a imagem do corpo, sua

    representao em uma totalidade, estruturante para a identidade do sujeito. 57.

    O beb do espelho, recortado no desejo da me, determinado pelas

    variveis que compe o grande Outro para ela, tem um efeito constituinte, mas

    tambm interditor na relao imaginria me-beb e abre o domnio do simblico

    para a criana. Constituinte, pois permite ao beb reconhecer-se e perceber o

    outro. Interditor, pois ele percebe que o desejo da me pode se voltar a outras

    direes e cabe a ele esforar-se para recuper-lo.

    Esse momento em que se conclui o estdio do espelho inaugura,

    pela identificao com a imago do semelhante e pelo drama do

    cime primordial, (to bem ressaltado pela escola de Charlotte

    Buhler nos fenmenos de transitivismo infantil), a dialtica que

    desde ento liga o eu a situaes socialmente elaboradas 58.

    56

    LACAN, 1998, p.97. 57

    BASTOS, 2003, p. 104. 58

    LACAN, 1998, p.101.

  • 64

    Bernardino (2006) ao se referir famlia como transm