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SOCIEDADE INTERNACIONAL E GOVERNAN<;A GLOBAL ANDREW HURRELL' Os argumentos para haver urn governo global no sentido forte- quer na forma de urn Estado centralizado unitario, quer na de urn Estado mund al federalista - permanecem nas franjas dos atuais debates poifticos e academicos. E verdade que ha aqueles que continuam a exigir a formacao de algo cornparavel a urn solido governo mundial, efeiivamente capaz de lidar de forma eficaz com desafios praticos tais como 0 do meio ambiente global. Para William Ophuls, par exernplo, uma adrninistracao racional do meio ambiente envolve restringir a soberania dos Estados e se mover na direcao de mais autoridade supranacional: "tornou-se imperiosa a neces- sidade de haver um governo mundial dotado de poderes coercitivos sobre Estados-nacao recalcitrantes em urn grau suficiente para realizar aquilo que pessoas razoaveis veri am como urn interesse planetario comum."? Tarnbe n e verdade que propostas favoraveis a urn governo glo- bal ontinuam sendo desenvolvidas dentro da literatura de teoria polftica.' Podemos mencionar, nesse sentido, os argumentos de David Held em favor de urn modelo cosmopolita de dernocracia, impclidos pcla necessidade de I. Este artig apoia-sc em "Societa Internazionale, applicazione coercitiva e controllo glo- bale", Discipline Filosofiche 5, 1995, 2 e em "Society and Anarchy in the 1990's" ill Barbara Robeson (ed) Tile Future of lnternational Society (em vias de publicacao). Traducao de Claudia Viertler, 2 Olphus, W. Ecology and the Politics of Scarcity Revisited, New York, W.H, Freeman, 1992, ~' 278, Kai Nielsen, por exernplo, em "World Government, Security and Global Justice" in Steven Luper-Foy (ed) Problems ofInternational Justice, Boulder, Westview, 1988,

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SOCIEDADE INTERNACIONAL

E GOVERNAN<;A GLOBAL

AND REW HU RRELL'

Os argumentos para haver urn governo global no sentido forte-

quer na forma de urn Estado centralizado unitario, quer na de urn Estado

mundial federalista - permanecem nas franjas dos atuais debates poifticos

e academicos. E verdade que ha aqueles que continuam a exigir a formacao

de algo cornparavel a urn solido governo mundial, efeiivamente capaz delidar de forma eficaz com desafios praticos tais como 0 do meio ambiente

global. Para William Ophuls, par exernplo, uma adrninistracao racional do

meio ambiente envolve restringir a soberania dos Estados e se mover na

direcao de mais autoridade supranacional: "tornou-se imperiosa a neces-

sidade de haver um governo mundial dotado de poderes coercitivos sobre

Estados-nacao recalcitrantes em urn grau suficiente para realizar aquilo que

pessoas razoaveis veri am como urn interesse planetario comum."?

Tarnbern e verdade que propostas favoraveis a urn governo glo-

bal continuam sendo desenvolvidas dentro da literatura de teoria polftica.'

Podemos mencionar, nesse sentido, os argumentos de David Held em favor

de urn modelo cosmopolita de dernocracia, impclidos pcla necessidade de

I. Este artigo apoia-sc em "Societa Internazionale, applicazione coercitiva e controllo glo-

bale", Discipline Filosofiche 5, 1995, 2 e em "Society and Anarchy in the 1990's" ill

Barbara Robeson (ed) Tile Future of lnternational Society (em vias de publicacao). Traducao

de Claudia Viertler,

2 Olphus, W. Ecology and the Politics of Scarcity Revisited, New York, W.H, Freeman, 1992,

~' 278,Kai Nielsen, por exernplo, em "World Government, Security and Global Justice" in Steven

Luper-Foy (ed) Problems ofInternational Justice, Boulder, Westview, 1988,

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56 LU A NO VA N° 46 - 99

o governo dernocratico e a teoria dernocratica se ajustarem a um m undo no

qual a globalizacao e a interdependencia erodiram a autonom ia do E stado-

nacao, Isso nao significaria apenas tornar 0 sistem a das Nacoes U nidas

condizente com seus ideais glo balizantes, m as tambern instituir p arlam en-tos regionais e, em ultim a analise, 'constituir um a assernbleia dotada de

autoridade da qual facam parte todos os Estados e agencias dem ocraticos

... um centro internacional investido de autoridade para considerar e ex a -

m inar tem as g lobais prem entes. '.

Contudo, os argum entos tradicionais contra a centralizacao

global e qualquer coisa que se pareca com um E stado m undial perm anecem

fortes: apesar de haver razoes de peso para a constituicao de pools fun-

cionais de autoridade para lidar com certas questoes e em certos am bitos (aregulacao dos m ercados globais de capital por exernplo), esta longe de ser

evidente que um a autoridade global viesse a cum prir m ais eficientem ente

a m aior parte das funcoes hoje desem penhadas pelo Estado m oderno: em

segundo lugar, um L eviata global am eacaria a liberdade e a m ultiplicidade

de unidades m enores garante um a representacao e um controle sobre 0

abuso do poder m ais eficazes; e finalm ente, a construcao de tal autoridade

talvez viesse a ser foco de am argos conflitos que desviariam a atencao da

resolucao de tem as praticos urgentes.

Com o um a boa parte literatura corrente salienta, dever-se-iapensar m ais em term os de governanca global, enos m ultiples nfveis, are-

nas e atores envolvidos nisso, ao inves de raciocinar em term os de cen-

tralizacao e governo globais. "No nfvel mais geral, a governance diz

respeito a criacao e 0 funcionam ento de instituicoes sociais (no sentido

de "regras do jogo" que servem para definir praticas sociais, designar

papeis e orientar as interacces entre os que os desem penham ) capazes de

solucionar conflitos, facilitando a cooperacao, ou, m ais genericam ente,

aliviando problemas de acao coletiva em urn mundo constitufdo por

atores interdependentes." Este artigo se dispoe a dem onstrar que grande

parte da polftica conternporanea da governanca global pode ser com -

4 David Held. "Democracy and the International Order". in Danielle Archibuggi & David

Held (eds) Cosmopolitan Democracy. Na agenda for a Ncwv/orld Order: Cambridge, Polity

Press, 1995. pags, IOS-I09.Held e urn tanto quanto arnbiguo nos detalhes precisos no que diz

respeito a uma irnposicao (enforcement) centralizada, mas a linha de argurnento e clara: 'Ou,

ainda rnelhor, estas autoridades podem arnpliar as capacidades de irnposicao 11rnedida que

criarn urna forca indcpendente permanente recrutada diretarnente, dentre voluntarios de todosos parses'. pag. 110.

5 Young, Oran., International Governance. Protecting the Environment in a Stateless Society.

Ithaca. Cornell U.P.• 1994. p. 15.

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SO CIEDAD E IN TERNACIONA L E GOV ERNAN<;:A G LO ilA L 57

preendida pela convergencia de dois desenvolvimentos cruciais: em

primeiro lugar, as arnbicces muito maiores da sociedade internacional e

a rnudanca, ao longo deste seculo, de concepcoes minimalistas tradi-cionais ou de concepcoes pluralistas da ordem internacional para con-

cepcoes, de alcance muito maior, maximalistas ou solidaristas; em

segundo lugar vern as exigencias, feitas em urn tom sempre mais eleva-

do, de que deve haver uma implernentacao crescentemente coercitiva das

nonnas dessa sociedade internacional mais profunda e normativamente

mais ambiciosa - a passagem de urn solidarismo consensual para urn so-

lidarismo coercitivo, Examinemos brevemente cada uma dessas

rnudancas e suas implicacoes.

UMA AGENDA NORMATIVA EM EXPANSAO

Em uma conferencia proferida em Bellagio ha trinta anos arras,

Raymond Aron apresentou a questao da ordem mundial de uma maneira

que ainda hoje e proveitosa: "sob que condicoe- seria possfvel aos homens

(divididos de tantas fonnas) nao meramente evitar a destruicao, mas con-

viver relativamente bern em urn mesmo planeta?" A resposta da conferen-

cia foi a de definir ordem em tennos das "condicoes mfnimas de coe-

xistencia", definicao essa que deliberadamente procurou excluir quaisquer

discussoes a respeito de valores compartilhados ou sobre as condicoes

necessarias para uma 'boa vida'." Esse modo de pensar a ordem mundial se

mostrou ser bastante influente, especialmente em trabalhos como os de

Stanley Hoffman e Hedley Bull', alem de refletir a tradicao dominante do

pensamento europeu que ha muito concebia a ordem internacional em ter-

mos pluralistas ou minimalistas,

As concepcoes de ordem elaboradas dentro do sistema classicode estados europeu preocupavarn-se basicamente com a elaboracao de

6 "Conditions of International Order" . Daedalus. 1966.

7 Stanley Hoffmann, Janus and Minerva: Essays ill the Theory and Practice of lnternational

Politics. Westview Press, 1987. Hedley Bull, The Anarchical Society. Macmillan, 1977. Este

artigo busca levar adiante as distincoes, na obra de Bull, entre diferentes concepcoes de

sociedade internacional, como tambern aplica-las ao mundo p6s - Guerra Fria. Surgiu certa

confusao, pois Bull usou 0 termo 'grotiano' ('Grotian') em dois sentidos: no primeiro, para

descrever a doutrina de que h5 urna algo como sociedade internacional; e, no segundo, para

contrastar 0 conceito solidarista grotiano de sociedade internacional com 0 conceito pluralista

vatteliano. Vide The Anarchical Society, pag. 322.

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regras limitadas de coexistencia entre os vanos estados e. com a

manutencao de uma etica da diferenca, A construcao da ordem deveria

visar 0 reconhecimento rmituo da soberania e a criacao de certas regras,

entendimentos e instituicoes rninirnalistas, planejados para restringir 0 con-

flito inevitavel a ser esperado num sistema polftico pluralista e fragmenta-

do. Isso prornoveria uma estrutura de coexistencia, baseada no reconheci-

mento rmituo de estados como independentes e associ ados com direitos

iguais, no seu inevitavel recurso a auto-preservacao e a auto-ajuda, e na

liberdade de promover seus assuntos particulares com 0 mfnimo de cons-

trangimento. Os valores dominantes dessa sociedade de estados foram, nos

termos de Vattel, "a manutencao da ordem e a preservacao da liberdade"."

A ordem internacional basear-se-ia em interesses comuns, nos valorescompartilhados e tarnbern na realidade poiftica do poder do sistema estatal:

de urn lado, em termos do equilfbrio do poder e, de outro, em funcao de

fatores de ordem positivos presentes na desigualdade (0 papel especffico

das Grandes Potencias, a irnportancia das esferas de influencia, etc). Essa

concepcao de ordem tambern rejeitava a assim chamada analogia dornesti-

ca: a ordem internacional deveria ser entendida muito mais em funcao de

mecanismos e instituicoes caracterfsticos e pr6prios a esta do que em

funcao de uma transposicao dos modelos dornesticos.

Neste ponto de vista, entao, instituicoes internacionais simples-

mente nunca foram pensadas como tendo a tarefa de promover paz univer-

sal e duradoura, mas apenas como mitigadoras de contlitos inevitaveis que

surgiriam pela multiplicidade de soberanias. Kant estaria assim correto ao

atacar Vattel e outros pluralistas como "enfadonhos consoladores", para os

quais a lei e as instituicoes internacionais servem, substancialmente, ao

desenvolvimento de uma estrutura de coexistencia num mundo de estados

independentes. Como Kant sugeriu, Vattel e outros pluralistas nao enxer-

gavam para alem de urn mundo no qual a polftica de podercuma condicao

inevitavel das relacoes internacionais e no qual a lei internacional com fre-

quencia realmente se aproxima perigosamente de prestar-se a justificar os

jogos de poder clos estados.

No entanto, a crftica de Kant nao deve sugerir que 0 pluralismo

seja desprovido de base moral. E importante salientar que alguns dos pen-

sadores liberais ocidentais mais influentes persistem na defesa vigorosa do

pluralisrno, frente aos argumentos morais dos globalistas e cosmopolitas.

8 Vide Andrew Hurrell, "Vattel: Pluralism and its Limits". ill Ian Clark & rver Neuman eds)

Classical Theories of lnteracional Relations. Macmillan, 1996.

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SO CIED AD E INT ERNA CIO NAL E G OV ERNA Nt,:A GLO BA L 59

Segundo Michael Walzer, a independencia dos estados e intrinsecamente

merecedora de respeito. Indivfduos e comunidades nacionais, ambos pos-

suem 0 direito naturalaautodeterminacao e a definir seus sistemas poifticos

de formas que levem plenamente em conta a particularidade de suas respec-

tivas circunstancias historicas. Nesta visao cornunitarista, 0 Estado-nacao e

legftimo pelo fato de permitir a grupos de indivfduos expressar seus valores,

sua cultura, a percepcao que tern de si mesmos. Nessas condicoes, 0 sistema

de estados nacionais propiciaria a diversidade de valores e culturas humanas

e se justificaria, em termos de John Stuart Mill, como uma estrutura de sal-

vaguarda da pluralidade das "experiencias de vida". John Rawls tambern

parte da ideia de comunidades polfticas independentes. Seus liberalismo

polftico se preocupa com os princfpios de justica e com urn consenso sobre-

posto moral que terao aplicacao entre os representantes de povos, os quais

podem ter visoes morais muito diferentes e conflitantes." 0 resultado disso

aproxima-se muito de uma visao pluralista tradicional da sociedade interna-

cional (limites a violencia, nao-intervencao, respeito pelos tratados, etc).

Certos direitos humanos essenciais devem ser garantidos internacional-

mente. Mesmo assim, tais direitos seriam limitados (os direitos ao governo

dernocratico e a educacao nao fazem parte disso); nao haveria redistribuicao

economics: e os direitos do que Rawls denomina "sociedades nao- liberaisbem organizadas" devem ser respeitados.

No entanto, ao longo deste seculo, tais visoes tern sido desafia-

das por concepcoes maximalistas ou solidaristas de maior aicance, que

envoi vern esquemas mais extensivos de cooperacao a firn de salvaguardar

a.paz e a seguranca, promover 0 desenvolvimento economico. solucionar

problemas comuns e garantir valores comuns. Com 0 tim da Guerra Fria,

testernunhou-se uma expansao das ambicoes normativas da sociedade

internacional. A globalizacao e as interconexoes econornicas e humanas

cada vez mais intensas entre as sociedades; a crescente gravidade dasquestoes ecol6gicas; a democratizacao e as novas nocces de legitimidade

polftica; 0 aumento contfnuo da quantidade de atores econornicos transna-

cionais e 0 surgimento de uma sociedade transnacional civil densa e cres-

centemente ativa: 0 declfnio do uso da forca militar em larga esc ala entre

os principais estados, concomitantemente a expansao paralela de varias

outras formas de violencia social; e a extensao do desafio que 0 Estado

enfrenta para ser um alicerce legftimo e efetivo na construcao da ordem

9 John Rawls, "The Law of Peoples". ill Stephen Shute & Susan Hurley (eds) O n H um an

Rights. New York, Basic Books, 1993.

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in ternacional - todos esses processos inexoravelm ente levaram a crer que

a ordem internacional havia side recriada e reconceitualizada. Cada vez

m ais, considera-se que a ordem envolve a criacao de norm as internacionais

que afetam profundamente as estru turas e a organizacao dornesticas dos

estados, investem indivfduos e grupos de estados de direitos e deveres,

alern de buscarem incorporar alguma nocao de bern comum global.

Ha dois conjuntos de fatores que explicam essa rnudanca, 0

prim eiro e material e 0 segundo, moral. Em primeiro lugar, 0 objetivo de

uma ordem m inima tornou-se cada vez mais inadequado, dado a alcance e

a gravidade dos problemas e desafios apresentados a sociedade interna-

cional. Particularmente, a ampliacao da interdependencia e 0 grau no qual

sociedades individuais dependem umas das outras para obter seguranca,prosperidade e capacidade para controlar seu ambiente denotam que a

legitim idade dos Estados depende atualmente da sua capacidade de satis-

fazer urn vasto e incrementado leque de necessidades, demandas e exigen-

cias. Em segundo lugar, isso resulta na ernergencia de uma consciencia

moral cosrnopolita, ainda que fragil, m as que demanda maior atencao a

quest6es de direitos humanos individuals e coletivos, como tambem a pro-

mocao de padr6es m fnimos de bem -estar e prosperi dade humanos mundo

afora. A ssirn , as interdependencias materiais ampliadas forneceram para

rnuitos, enfirn, uma base para a interdependencia moral sobre a qual Kant

escrevera em 1795: "O s povos da Terra ingressararn, em grausvariados,

numa sociedade universal. desenvolvida ao ponto em que violacoes de

direitos ocorridas em 11m lugar s ao se ntid as flO mundo todo",

E certarnente verdade que 0 poder desigual bern como os valores

e interesses particulares das potencias tern urn papel preponderante na for-

m acae de iruim eros regimes intemacionais. O sregirnes nao sao, como os li-

berais querem fazer crer, cenarios neutros para a adrninistracao de problem as

tecnicos, m as espacos de poder e ate m esm o de dom inacao, A inda assim , seriato talm ente equivocado considerar essa expansao norm ativa sobretudo com o

urn processo de imposicao das potencias ocidentais desenvolvidas. Por urn

lade, varies estados fragilizados tern utilizado a crescente rede de instituicoes

internacionais com o plataforrnas para im pingir seus pr6prios in teresses e va-

lores. Por outro lado, a interdependencia e a globalizacao fizerarn surgir um a

sociedade civil transnacionalcom o arena de ar;ao polftica. A infraestru tura da

crescente in terdependencia econ6m ica (renovacao de sistemas de comuni-

cacao e transporte) bem como 0 im pacto das novas tecnologias (satelites,

redes de cornputadores, etc) elevararn os custos e as dificuldades dos gover-

nos de controlar os tluxos de informacao, facilitando a difusao de valores,

conhecim entos e ideias, alem de aumentar a capacidade de grupos afins (em

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SO CIED AD E IN TER NA CIO NA L E G OV ER NA N<;A G LO BA L 61

opini6es e atitudes) de se organizar para alern das fronteiras nacionais. M uito

do processo de expansao norm ati va tern sido conduzido por grupos politicos

atuando nesse cenario, por exemplo, na questao dos direitos humanos ou da

gestae ambiental. D a mesma forma, muitos dos apelos a favor de uma inter-

vencao hum anitaria provern de grupos da sociedade civil.

o sistema de estados nao e, obviamente, a iinica estrutura da

ordem rnundial. A rgumentos poderosos, ainda que freqUentem ente exage-

rados, avaliam a globalizacao como retirando poder, autoridade e identi-

dade dos estados. Por urn lade, muitas das forcas socializantes mais vi-

gorosas no mundo politico contemporaneo nao emergiram dos sistema

estatal, m as dos mercados e do poder de seus atores dom inantes. Por outro

lado, enquanto a sociedade civil transnacional e, ela mesma, urn cenario

contestado e cont1ituoso, grupos dentro deste cenario se tornaram perso-

nagens centrais na polftica da governanca global. Em funcao disso, as

seguintes questoes sao cruciais em qualquer discussao a respeito de ordem

mundial: fora do sistema interestatal, ate que ponto existem institu icoes ou

estruturas institucionalizadas criando ou sustentando a ordem? Haveria

importantes funcoes mantenedoras da ordem , antes assum idas pelos esta-

dos e atualmente nno realizadas por ninguern?

Pode-se dizer, entretanto, sem recorrer a urn estadocentrismo

nem negligenciar as fragilidades manifestas dos estados e os horrores

impostos por rnuitos destes aos seus cidadaos, que as estruturas alternati-

vas mais 6bvias para a ordem permanecem , ou relativarnente frageis (como

no caso da sociedade civil transnacional), ou normativam ente falhas (com o

eo caso dos mercados nada ou s6 frouxamente regulamentados, que pare-

cern incapazes de lidar com os problem as da desigualdade e da estabilidade

eco nomica g Iob ais). E isso que cria a tensao central. D e uma parte, houve

urn enorme aumento daquilo que entendemos que seja legftimo, e talvez

mesmo necessario, esperar da polftica internacional. D e outra, a capaci-dade desse sistem a de sustentar as crescentes dernandas m ateriais, poJfticas

e morais que Ihe sao irnpostas nao esta, de forma alguma, bern delineada.

Uma das mais importantes areas em que essa tensao se manifesta diz

respeito ao cum prim ento obrigat6rio de norm as internacionais."

10 H5 varies outros ternas que niio podern ser apresentados aqui, mais precisarnente, a nocno

de urn deficit regulatorio: est a globalizacao envolve tanto 0 deslocamento de poder dos esta-

dos para os rnercados como tarnbem a mudanca do locus de regulacao do estado para as insti-

tuicoes internacionais. Enquanto estados tern perdido sua auloridade reguladora, 0 processo

de re-regulacao intemacional ainda esta seriarnente em debito.

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UMA SOCIEDADE INTERNACIONAL COM DENTES AFIADOS

A segunda mudanca refere-se ao reflorescimento de dernan-

das em favor de uma maior obrigatoriedade, de proporcionar "dentes"

mais eficazes as normas da sociedade internacional - urn deslocamento

do solidarismo consensual para 0 solidarismo coercivo. Tradicional-

mente as instituicoes e 0 direito internacional assentarn-se em grande

medida em sistemas "soft" de criacao ,e implernentacao de normas. Na

maioria das areas do direito internacional, as sancoes a desobediencia

sao brand as, havendo poucas exigencias inescapaveis no sentido de que

os estados recorram a procedimentos de terceira parte para a resolucao

de conflitos, para nao falar em sistemas acordados de cumprimento obri-gat6rio (apesar da retaliacao coletivamente aprovada ser, muitas vezes,

importante).

Os estados continuam extremamente interessados em manter

urn firme controle sobre os procedimentos envolvendo informacao, mo-

nitoracao e inspecao. E, apesar de se fazer muito alarde da crescente

abertura dos estados a participacao das ONGs, os estados continuam

extrernamente resistentes a qualquer diluicao de seu status dominante.

Desta maneira, por exemplo, a irnplementacao de criterios de direitos

humanos sob os regimes internacionais de direitos humanos ja existentes

e largamente baseada na investigacao e divulgacao, envolvendo a for-

macae de agencias de supervisao submetidas aos mais importantes trata-

dos regionais e globais: a apresentacao dos relat6rios aos estados; 0 esta-

belecimento de grupos de trabalho, tanto relatores por temas como por

pais; e as missoes empenhadas na apuracao dos fatos. Urn exernplo adi-

cional.desta forma de abordagem "suave" poderia ser 0 desenvolvirnen-

to, dentro do sistema nas Nacoes Unidas, de uma forma de manutencao

da paz calcada no consentimento, depois de ter ficado claro que umaseguranca coletiva integral nao seria viavel,

o perfodo pes-Guerra Fria testemunhou, indubitavelmente,

crescentes reivindicacoes por fonnas mais finnes e coercivas de aplicacao

internacional das norm as. Uma parte (mas somente uma) do debate con-

centrava-se na possibilidade de que as Nacoes Unidas poderiam funcionar

como urn sistema de seguranca coletiva capaz de fazer cumprir 0 que 0

Conselho de Seguranca decidisse tanto em epis6dios de agressao formal

entre estados (por exernplo, a invasao iraquiana do Kuwait) como em casos

que expandem a nocao tradicional de "seguranca e paz internacionais"(como 0 da Somalia, de Ruanda, da antiga Jugoslavia, do Iraque do Norte,

do Haiti)." Presenciamos, desta forma, uma escala ascendente de acoes

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SO CIED AD E INTERNA CIO NA L E G OV ERNA N~A G LO BA L 63

multilaterais tanto das Nacoes Unidas como dos organismos regionais.

Entre essas contam-se 0 nao-reconhecimento (como no caso da OEA e 0

Haiti); a aplicacao de sancoes economicas: a resolucao de conflitos e a

reconstrucao polftica (como no Cambodja ou em EI Salvador); os caso de

pacificacao e de rnanutencao da paz com fortes elementos humanitarios

(como na Somalia, Ruanda ou B6snia) e uma maior enfase na forca e

coercao militares; a intervencao militar para restaurar urn governo deposto

( Haiti ); a acao coletiva e coercitiva de larga esc ala contra 0 Iraque. 0 ele-

mento mais importante desses desenvolvimentos foi a retracao do criterio

de nao-intervencao e a inclusao dos direitos humanos e de preocupacoes

humanitarias dentro do compasso das arneacas a paz e a seguranca inter-

nacionais, permitindo a acao do Conselho de Seguranca sob 0 capitulo VII.Tais desenvolvimentos dentro das Nacoes Unidas constituem

somente uma parte de urn movimento mais amplo em direcao a urn soli-

darismo coercivo. Deste modo, surgem tambern novas e rmiltiplas forrnas

de condicionalidade - ou seja, a aplicacao institucionalizada de condicoes

ao tluxo inter-estatal de recursos econornicos com 0 intuito de induzir

mudancas nas polfticas domesticas, Notese aqui 0 crucial abandono da

condicionalidade como parte integrante de uma barganha econornica

especffica ou de urn contrato (como se pode afirrnar que tenha sido 0 caso

da condicionalidade econornica do FM I nos anos 80) e a tendencia a uti-

lizar a condicionalidade para promover objetivos inteiramente desvincula-

dos de urn fluxo especffico de recursos - em termos de direitos human os,

democracia, boa governanca: de nfveis de gastos militares; de polfticas re-

lativas a proliferacao do uso da energia nuclear; e de polfticas ambientais.

Tais formas de condicionalidade polftica expifcita tornaram-se agora insti-

tucionalizadas nas polfticas exercidas pelas instituicoes financeiras rnun-

diais (Banco Mundial, FMI , bancos regionais de desenvolvimento) e pela

comissao de desenvolvimento da OECD.Uma outra categoria importante de condicionalidade surge do

estabelecimento formal de criterios para a adrnissao num agrupamento

economico e politico particular: a nocao de que ser membro de uma

II Irnportante notar que este tipo de discricao dada ao Conselho de Seguranca (artigo I, I)

ilustra bern 0 rea-lisrno e a tlexibilidade dos fundadores. E igualmente notavel que as Nacoes

Unidas nao foi idealizada pelos seus fundadores para ser urn governo mundial embrionario.

De urn lado, como colocado pelos textos classicos, a teoria da seguran~a coletiva tern muitoem comum com a 16gica do equlfbrio de poder e necessita ser distin-guida da ideia de gover-

no mundial. Do outro lado, a criacao das Nacoes Unidas continha muitos elementos de rea-

lismo e foi apenas um sistema coletivo de seguranca parcial e atenuante.

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alianca, bloco econornico, ou de uma instituicao intemacional depende da

forma de governo ou do respeito aos direitos humanos, havendo, cada vez

mais, criterios polfticos explfcitos para adrnissoes na Uniao Europeia, no

Mercosul, em certa medida tambem na OEA, e, em menor grau, naCommonwealth. De forma mais generic a, vale salientar em que medida a

expansao da Uniao Europeia e totalmente diferente das formas anteriores

de acordos entre os estados, isso pelo fato de a participacao envolver

mudancas profundas e fundamentais numa larga extensao de polfticas so-

ciais, econornicas e polfticas dornesticas.

Finalmente, e necessario abordar 0 renascimento de argumentos

favoraveis a promocao unilateral de normas internacionais por estados

poderosos fazendo usa de uma variedade de sancces positivas e negativas.

No caso dos Estados Unidos, a questao geral dos direitos humanos esta re-

lativamente consolidada tanto na poiftica externa como na consciencia

poiftica, havendo significativas evidencias de continuidade nesse sentido

desde meados dos anos 70 e uma forte reafirmacao retorica da irnportancia

dos direitos humanos e da democracia no discurso do governo Clinton a

respeito da polftica de arnpliacao da democracia.

Antes de considerar os meritos das rnudancas acima citadas, ha

diividas sobre ate que ponto a pratica internacionalde fato esta se moven-

do, tao firme e consistentemente quanta as vezes se afirma, em direcao auma maior centralizacao de pocler. Atualmente, todas as grandes potencias

estao revisando suas atitudes tanto em relacao as Nacoes Unidas em geral

quanta ao intervencionismo em particular, sendo que 0 recente perfodo de

ativismo das Nacoes Unidas parece estar chegando ao fim. Ha poucos

sinais de que a Europa esteja assumindo urn papel internacional mais

ativista e, mesmo na propria rcgiao, a coordenacao da polftica exterior

mostrou-se debil. A polftica extern a japonesa permanece cautelosa, con-

centrada na sua regiao e cetica quanta a esquemas ativistas de prornocao de

reformas polfticas e econornicas. A China, apesar de estar ultimamente

acatando 0 recente ativismo das Nacoes Unidas, manteve-se profunda-

mente conservadora, apostando ainda numa ordem mundial pluralista

arraigada em padroes de soberania e nao-intervencao. E claro que os argu-

mentos favoraveis a lese da "recentralizacao do poder" focalizam os

Estados Unidos; no entanto, mesmo aqui, deve haver lugar para certa pre-

caucao, Uma hegernonia efetiva tern tres alicerces. Poder (relacional, estru-

tural e ideologico) e, obviarnente, fundamental, e isso os EUA detern em

abundancia. Os EUA, no eruanto, tarnbern necessitam tanto de urn projetohegemonico claro como de um solido apoio politico dornestico, nenhum

dos quais se verificam de forma muito evidente ou segura. A introspeccao,

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SO CIED AD E INTERN ACIO NA L E G OV ER NA N<;A G LO BA L 65

e ate mesmo 0 isolacionismo - mais do que 0 espfrito da cruzada imperia-

lista - parecem dominar, de forma crescente, muitos dos cfrculos nos EUA.

RAZOES PARA OTIMISMO

Para os otimistas liberais, no entanto, 0 aumento da arnbicao

normativa em umasociedade internacional nao causa problemas funda-

mentais. Para tanto, eles primeiro assinalam a enorme expansao do

ruimero, do alcance e do campo de acao das instituicoes internacionais e 0

vasto aumento da densidade da sociedade internacional. Para os progres-

sistas liberais isso esta levando a urn processo gradual, ainda que irregulare de longa duracao, de enredamento institucional, no qual os elementos

"anarquicos" das relacoes internacionais serao progressivamente ameniza-

dos e no qual a pr6pria n9~ao da anarquia internacional esta sendo redefini-

da. Mark Zacher afirma que os estados "estao se tornando cada vez mais

imbricados numa rede de interdependencias e arranjos reguladores e de

colaboracao, da qual a safda em geral e uma opcao irnpraticavel."."

Urn segundo motivo para otimismo concerne a relacao entre a

lei (0 direito) e 0 poder. Num sentido negativo, registra-se uma reducao da

hist6rica tensao entre lei e poder, tanto pelo tim dos profundos cont1itos edas clivagens de poder e ideol6gicos que assombraram a hist6ria interna-

cional do seculo XX como pelo claro declfnio das rivalidades entre as

grandes potencias militares durante 0 perfodo posterior a Guerra Fria. De

uma forma mais positiva, 0 renascimento, nao obstante desigual, das

Nacoes Unidas pede ser encarado como urn fator de reducao da tensao

historica que sempre existiu, de urn lado, entre lei e moralidade e, de outro,

entre poder efetivo e cumprimento obrigat6rio. Alern dis so, a emergencia

de "comunidades de seguranca" e de zonas de "paz democratic a" dentro de

determinadas regi5es (a Europa, ou ao menos, partes desta, e as Americas)

da aos liberais otirnistas mais uma razao para supor que a anarquia e 0 con-

tlito nao sao caracterfsticas inevitaveis e irnutaveis da vida internacional.

Em terceiro lugar, uma leitura otimista da presente condicao da

sociedade internacional enfatizaria os sinais crescentes de convergencia

normativa e de expansao de consensos sobre crencas fundamentais as quais

12 Mark W. Zacher, "The Decaying Pillars of the Westphalian Temple: Implications for

International Order and Governance". ill .James N. Rosenau & Ernst-Otto Czernpiel (eds).

Governance with Government.Order and Change in World Politics. Cambridge University

Press, 1992.

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66 LVA NOVA N" 46 - 99

os grupos politicamente dominantes aderem. Desta maneira, muitas for-

mulacoes liberais recentes sublinharam 0 grau em que a infra-estrutura de

crescente interdependencia econornica (os novos sistemas de cornunicacao

e transporte) e as novas tecnologias (novos sistemas de cornunicacao etransporte) elevaram os custos e as dificuldades de controlar os fluxos de

inforrnacao. Isso, juntamente com a influencia integradora e homo-

geneizadora das forcas do mercado, facilita uma maior circulacao de va-

lores, conhecimento e ideias, acentuando a capacidade de grupos de

opinioes simi lares de se organizar para alern de fronteiras nacionais.

E provavel, entao, que 0 universalista ocidental otirnista subli-

nhe 0 impacto do "enredarnento progressive", desenvolvendo a nocao kan-

tiana de uma difusao gradual mas contfnua de valores liberais como urn

resultado, em parte, da economia liberal e da maior interdependencia

economica, do surgimento de uma ordem legal liberal como sustentacula

da autonomia de uma sociedade civil global e, tam bern em parte, como urn

resultado do bem-sucedido exernplo dado pelo multifacetado sistema de

estados capitalista-liberal.

Assim, no campo da economia, os estados enirentam enormes

pressoes em relacao a hornogeneizacao das polfticas econornicas a firn de

atrair investimentos e tecnologia estrangeiros e de competir num mercado

cada vez interligado. Refletindo tal visao, John Williamson e StephanHaggard sustentam que "ao menos em termos intelectuais, hoje vivemos

num unico mundo, muito mais do que em tres"." Adernais, a globalizacao

pode estar levando a uma maior hornogeneizacao, nao somente de pianos

de acao econornica, mas de formas viaveis de organizacao polftica, de va-

lores societarios e de preferencias culturais: a ampla assercao e aceitacao

de formas dernocraticas de governo - seja na versao "triunfalista", seja na

versao "condenado a democracia por falta de alternativas"; a ernergencia

de um consenso restrito sobre a natureza e a irnportancia dos direitos

humanos, alern da expansao das ideias amplamente aceitas sobre 0 desen-

volvimento sustentavel, sendo todas estas rendencias amparadas pela dis-

serninacao da cultura unificadora da modernizacao.

Como quarto argurnento, os liberais otimistas assinalam 0 quan-

to a maior interdependencia requisitara de coordenacao e cooperacao de

pIanos de acao daqueles estados sujeitos as externalidades e irnperfeicoes

13 John Williamson & Stephan Haggard. "The Political Conditions for Economic Reform",

in John Williamson & Stephan Haggard (eds) The Political Economy (!f Policy Reform.

Washington, International Institute for Economics, 1994, pag, 530.

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SO CIED AD E lNTERNACIONAL E G OVERNAN~A GLO llAL 67

do mercado produzidas pelos novos e expandidos mercados globais. Junto

com 0 aparecimento de novos temas (como a degradacao ambiental, os

refugiados, a sensibilidade aos desastres humanitarios), a globalizacao cria

uma poderosa "dernanda" de instituicoes e cooperacao internacionais: parasolucionar problemas comuns e administrar as diversas novas fontes de

friccao ocasionadas pela interdependencia, A cooperacao nao e necessaria-

mente facil, mas e possfvel e sustentavel. As instituicoes que facilitarao a

cooperacao serao de tipo liberal com prop6sitos proprios - nao arenas de

confrontos diretos de poder. De fato, a tendencia da interdependencia a

solapar as hierarquias de poder entre os estados e a criar oportunidades

para estados mais frageis aprimorarem seus desempenhos ha muito e urn

preceito central da teoria institucionalista liberal.

PROBLEMAS

A expansao do carater e da ambicao normativa da sociedade

internacional e a busca de urn grau maior de cur.iprimento obrigat6rio das

normas sao desenvolvimentos diferentes. 0 argumento deste artigo e 0 de

que a despeito de as concepcoes pluralistas tradicionais da ordem interna-

cional de fato serem inteiramente inadequadas - por razoes materiais emorais que nao podem ser inteiramente explicitadas aqui -, ha series pro-

blemas na propensao a adotar formas mais duras e mais coercivas de

cumprimento das normas. Cinco questoes merecem especial atencao.

Em primeiro lugar, e problematic a a suposicao dos globalistas

liberais de que urn cumprimento mais coercivo e penetrante tern por base

urnsolido consenso normati vo. 0 grau de consenso intersocietario em

relacao a valores centrais e bern men os vigoroso do que a recente retorica

e mesmo acordos internacionais deixam transparecer. Desse modo, 0 cfr-

culo dos debates de polftica economica podera ter-se estreitado, mas urn

dos paradoxos da interdependencia internacional tern sido de aumentar a

importancia das diferencas entre "capitalismos rivais", particularmente

entre os modelos "ocidental" e "asiatico". Igualrnente, enquanto 0 capita-

lismo liberal vern derrotando seus adversaries rnais obvios, nao e nada

claro se ele tern ou nao uma safda para 0 desafio da pobreza e desigualdade

globais. No campo da questao ambiental, a ret6rica apaziguadora do desen-

volvimento sustentavel continua encobrindo profundas divisoes, nao

somente quanta aos meios para urn firn em com urn, mas tambern quanta aescolha dos pr6prios tins e dos valores que os escoram. Em termos de di-

reitos humanos, os debates pos- Viena mostraram que permanecem profun-

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das divisoes entre a visao ocidental a respeito de direitos humanos e aque-

las dominantes no mundo islarnico e na Asia. Ademais, a pretensa com-

patibilidade natural entre a economia de mercado e a democracia liberal

esta sob questao nos numerosos pafses que lutam para alcancar as

condicoes polfticas necessarias a estabilizacao economica e a reforma

estrutural. A tentativa de vincular os direitos humanos a prornocao da

democracia trouxe consigo tanto indagacoes sobre 0 significado da demo-

cracia como irnimeras dificuldades para manejar 0 complexo relaciona-

mento entre democratizacao e direitos humanos. Finalmente, a globaliza-

9ao pode bern impingir maiores homogeneidade e fusao, mas isso tam bern

tern sido urn estfmulo para reacoes tradicionalistas ou particularistas e para

os processos de desintegracao e fragmentacao, que sao igualmente evi-dentes. Dessa forma, embora seja indubitavelmente possfvel encontrar

exemplos de convergencia de polfticas, a sociedade mundial continua mar-

cada por profundas e persistentes diferencas e pelo pluralismo moral.

Em segundo lugar, ha os bern conhecidos riscos do unilateralismo

ou do multilateralismo que sao dependentes ou podem ser manipulados pelos

estados mais poderosos. A legitimacao de formas diversas de aplicacao mais

rfgida e coerciva das normas internacionais, cuja eficiencia depende da dis-

posicao de estados poderosos de contribuir, levartta series problemas, tais

como a duplicidade de pad roes, a conduta auto-interessada dissimulada por

roupagens idealistas, a seletividade e a escolha de casos que sirvam somente

aos proprios interesses. Tais dificuldades sao particularmente visfveis nos

esforcos de operacionalizar a ideia de seguranca coletiva," mas sao de

relevancia mais geral e levam ao perigo de minar qualquer reivindicacao de

coerencia normativa ou de legitimidadeamplamente disseminada que 0 sis-

tema possa ter. Tentativas de agilizar mudancas na direcao de uma imposicao

denormas e acordos internacionais podem solapar, e muito, a importancia do

consenso e da auto-vinculacao, que ainda e a base da maior parte da regu-lacao legal internacional. E aqui que a persistente predilecao dos Estados

Unidos pelo unilateralismo representa a mais seria ameaca a uma ordem

institucionalizada sustentavel e de longa duracao.

Isso nao seria muito relevante se 0 tim da Guerra Fria tivesse

realmente afrouxado as rfgidas exigencias geopolfticas, abrindo espaco para

uma definicao mais tolerante de "interesses nacionais" e rnaior espaco para

a prornocao de objetivos genuinamente liberais. Contudo, tomando-se a

14 Vide Andrew Hurrell. "Collective Security and International Order Revisited".

International Relations. II. 19992.

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SO CIED AD E IN TER NA CIO NA L E G OV ER NA Nt;:A G LO BA L 69

polftica de direitos humanos das Nacoes Unidas apenas como urn exernplo,

nao ha nenhuma evidencia de que as tensces entre direitos humanos e uma

seguranca 'rnais energica', ou entre direitos humanos e interesses econom i-cos, ten ham se alterado de alguma forma significativa. Mesmo que se tenha

entrado em a~ao em varies casos nos quais os custos foram relativamente

baixos (Quenia ou M alaw i, por exernplo), a ret6rica da expansao democrati-

ca esta em crescente disparidade com relacao aos rumos da polftica efetiva

(0 completo recuo da polftica de direitos humanos dos EUA na Asia, 0 blo-

queio, por interesses poderosos, de qualquer acao ou crftica em casos como

os da Russia, China, A rabia Saudita ou Turquia, 0 aparecimento de uma

oposicao virulenta a todo envolvimento multilateral). A lern disso, tern sido

extremamente diffcil deli near e manter sistemas coerentes e consistentes de

condicionalidades institucionalizadas: interesses polfticos ditam quando

uma condicionalidade em particular sera sustentada ou abandonada; condi-

cionalidades nao-comerciais apenas se apresentam para certos grupos de

estados que recebem auxflio oficial ou necessitam a assistencia de institui-

coes internacionais de investim ento: "estados-alvo '' poderosos tern side

capazes de rechacar a inclusao (como e caso da China) ou de impor condi-

cionalidades opostas (como no caso da Malasia versus Australia e G ra-

B retanha): a tensao entre a condicionalidade da democracia e dos direitoshumanos e os objetivos econornicos que ainda dom inam as instituicoes re-

levantes: a dificuldade de ajustar a condicionalidade a necessidade de pro-

mover a accountability (com o podern os governos ser considerados respon-

saveis pelas polfticas e prioridades nas quais somente possuem autoridade e

controle lim itados?); e. finalmente, as tens6es envolvidas em reconciliar a

promocao da liberalizacao polft.co-econom ica no interior dos estados com

a manutencao de urn sistema econom ico global, cuja ordem polftica inter-

estatal e explicitam ente desigual e nao-liberal.

Em terceiro lugar, ha tens6es entre a legitim idade e a eficacia,

Instituicoes internacionais surgem tanto para solucionar problemas de acao

coletiva como para poupar para os poderosos os custos do recurso a

coercao, A efetividade dessas instituicoes e calcada nao somente em con-

sideracoes de vantagens rm ituas e de beneffcios recfprocos mas tam bern em

consideracoes de legitirnidade, entendendo-se esta em temos da constitui-

r;ao dos atores e da definicao das regras de associacao do cIube dos esta-

dOS;15e em term os de urn processo que exprima alguma nocao do que e If-

15 Sobre legitimidade, vide Thomas M. Franck, The Pow er of L egitim acy am ong N ations.New York, Oxford UP, 1990.

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7 0 LUA NOVA N° 46 - 99

cito, justo e que Ieve em conta os interesses de estados mais frageis e nao-

dominantes."

A questao de legitimidade torna-se cada vez mais problernatica

na medida em que a ordem internacionaI se afasta dos tradicionais sistemas

"soft" de cumprimento de norm as, em direcao tanto a medidas mais ri-

gorosas de aplicacao coercitiva, como em direcao a uma contracao do que

se entende por soberania e nao-intervencao e a uma diluicao das nocoes

tradicionais de consentimento. Como ja foi visto, essas questoes tern sido

mais fortemente discutidas em relacao as recentes acoes das Nacoes

Unidas e aos debates sobre reforma do Conselho de Seguranca. No entan-

to, estes se relacionam igualmente a dramatica expansao do alcance e da

institucionalizacao da condicionalidade." Percepcoes de ilegitimidadeemergem da suposicao de que uma instituicao e dominada por urn grupos

restrito de estados, como resultado do poder veto nas Nacoes Unidas ou da

votacao ponderada nas instituicoes financeiras internacionais; de que tal

instituicao depende de capacidades materiais desiguais; ou de que eia

garante uma representacao desproporcional a urn pequeno grupo de esta-

dos afinados entre si. Isso pode tambern resultar do cinismo engendrado

pelo hiato entre os nobres objetivos de uma organizacao e suas praticas

reais, nao lao elevadas. Segundo Caron, isso leva a percepcoes de injustica

em funcao da possibilidade de duplicidade de padroes e de rnanipulacao,

bern como da ausencia de qualquer sentido de governo participativo. Como

consequencia, em meio a debates sobre a reforma das instituicoes tanto das

Nacoes Unidas quanta das de Bretton Woods, imirneras propostas de

"dernocratizacao" foram feitas, envolvendo a alteracao de estruturas de

votacao, a garantia de uma maior amplitude de representacao geografica,

ou a atribuicao de urn papel maior para os grupos nao-estatais.

Contudo, ainda que alguma reform a consensual seja possfvel,

que nao se esperem muitas facilidades. A parte 0 grau em que as propriasnegociacoes voltadas para a reforma podem por si mesmas comprometer a

credibilidade da organizacao, dois conhecidos obstaculos se apresentam:

primeiro, se as instituicoes se distanciam muito das realidades do poder,

16 Embora a legitimidade venha tambern sendo central para 0 equilfbrio estavel dos sistemas

de poder e na criacao e manutcncao das esferas de influencia, Tais assunros, de forma algu-

ma, safram total mente de cena, como fica demonstrado pela crenca de varios govemos oci-dentais de que a Russia possua direitos legftirnos especiais em suas • vizinhancas '.

17 A melhor discussao a respeito e de David Caron, "The Legitimacy of the Collective

Authority of the Security Council. American Journal (if lnterntional Lalli. 1993.

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SOCIEDADE INTERNACIONAL E GOVERNAN<;:A GLOBAL 7 1

elas cultivam a irrelevancia - como ja ocorreu tantas vezes outrora. Como

o endurecimento da polftica dos EUA com relacao as Nacoes Unidas

demonstra, as principais potencias tern uma razoavel t1exibilidade para se

distanciar de compromissos institucionais que julgam onerosos ou para for-

jar esquemas alternativos de regimes (veja-se a expansao do alcance do

Grupo dos Sete). Segundo, a legitimidade nao diz respeito somente a per-

cepcoes de justica, mas tam bern a eficacia: reformas que limitem em

demasia a capacidade das organizacoes de atuar decisiva e eficazmente

pod em contribuir para gerar uma crise de legitimidade ainda mais seria,

Em quarto lugar, e importante ser realista quanta aos limites do

que pode ser alcancado pela irnposicao internacional. Dessa forma, uma

crftica constante 11seguranca coletiva tern sido a de que isso envolve, deforma equivocada, se concentrar na acao coercitiva, como se isso fosse 0

ilnico ou, pelo menos, 0 aspecto rnais decisivo de urn sistema politico efi-

caz. E como se a punicao efetiva do criminoso fosse 0 problema central do

Estado." No entanto, ainda esta longe de se fazer evidente 0 que a

"punicao" deveria acarretar, e a relacao do uso do poder militar com a cri-

ar;ao de urn acordo poiftico estavel permanece profundamente problernati-

ca: as Nacoes Unidas deveriam sornente ter procurado restaurar as fron-

teiras pre-conflito do Kuwait, ou deveriam ter intervindo mais decisiva-

mente na restruturacao da sociedade iraquiana? Como as acces das Nacoes

Unidas na Bosnia e na Somalia deixam transparecer, pensar em term os de

culpa de urn dos lados ou de urn dos grupos pode tanto se tornar fonte de

disputa internacional (como aquela entre os EUA, a Russia e a Europa em

relacao a Bosnia) como complicar enormemente as nocces tradicionais de

manutencao da paz, fundadas no consentimento e na cooperacao.

Urn exemplo adicional vern do campo dos direitos humanos.

Com exagerada frequencia, julgamentos feitos sobre as deficiencias do

regime internacional de direitos humanos apontam simplesmente para aausencia de cumprimento obrigatorio. Ha uma forte suposicao, comparti-

lhada por autores liberais e realistas no campo das relacoes internacionais,

segundo a qual bastaria que os estados e seus respectivos governos dese-

jassem fazer cumprir as normas internacionais para que os direitos

humanos fossem mais respeitados. E freqUente se fazer cornparacoes com

a abolicao do comercio escravocrata e a disposicao do governo britanico de

18 Sobre este ponto, vide Hidemi Suganarni, The Domestic Analogy and World Order

Proposals. Cambridge, 1989, especialmente capitulo 9.

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empregar sua marinha nisso por urn perfodo prolongado. Embora existam

circunstancias nas quais a vontade politica de tomar medidas energicas,

que podem incluir ate a intervencao militar, seja justificada e eficaz, tal

ponto de vista da dernasiada primazia ao papel de fatores externos, corren-

do 0 risco .de superestirnar 0 irnpacto e a importancia desses fatores, espe-

cialmente no apoio as condicoes necessarias a protecao dos direitos

humanos e a manutencao de sistemas dernocraticos de governo. Nao se

trata apenas de que 0 custo da irnposicao de padr5es de direitos humanos,

para os principais estados, superaria os beneffcios dos supostos executores,

distraindo-os de objetivos e preocupacoes da polftica externa bern mais re-

levantes. E muito rnais 0 fato de que, a longo prazo, 0 uso de poder coerci-

tivo externo para dar apoio a sistemas politicos que protegem os direitoshumanos esta condenado a ser extremamente limitado.

Finalmente, 0 quinto ponto concerne a complexa relacao entre a

promocao de valoresglobais e 0 possfvel aparecimento de novas forrnas de

hierarquia. Como virnos na primeira parte deste artigo, as concepcoes de

ordem foram drasticamente ampliadas. Isto pode estar parcial mente rela-

cionado com fatores puramente materiais (os limites da biosfera ou as

externalidades emergentes dos mercados globais), mas tambern reflete os

interesses e preferencias norrnativas dos estados mais pod eros os. A cres-

cente agenda dos direitos humanos exemplifica isso muito bern: a elabo-

racao progressiva de tres geracoes de direitos, depois a conexao entredirei-

tos humanos e democracia, e depois a ligacao entre. direitos humanos e li-

beralisrno de mercado. No entanto, e irnpossivel enveredar por esse ca-

minho sem confrontar a questao do relativismo cultural. Isso afeta a ordem,

em parte porque pode estimular e reforcar desafios. E 0 caso dos governos

asiaticos que avaliam a retorica dos valores globais como urn fino verniz

encobrindo a reafirmacao da hegemonia ocidental e que enfatizam con-

cepcoes diferentes de direitos humanos e de desenvolvimento econornico.Alem disso, 0 relativismo cultural pode afetar a ordem ao reforcar a divisao

dos estados em diferentes categorias.

A criacao da sociedade internacional e, especificamente, a bem-

sucedida consolidacao de uma sociedade internacional que se adensa em cer-

tas partes do mundo, levam facilmente a divisoes entre os integrados e os que

estao fora. Havendo uma sociedade internacional, quais sao seus Iimites?

Esta incorpora toda a raca humana ou se limita a uma area em particular? Se

e limitada, quais sao seus princfpios de inclusao e exclusao? Ate que ponto

uma destas divisoes e fonte de instabilidade e inseguranca ? Por urn lado, ha

uma longa tradicao de doutrinas e de ideias ocidentais orientadas por princf-

pios de exclusividade, baseadas em ser cristae, ser europeu, ou ser "civiliza-

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SO CIED AD E IN TER NA CIO NA L E G OV ER NA N<;:A G LO BA L 73

do"; por outro lado, ha uma forte contracorrente no pensamento ocidental

que manteve a existencia de uma comunidade universal da hurnanidade, que

retira sua inspiracao basica na antiga tradicao da lei natural.Um a outra ques tao refere- se aos padroes de in te ra cao "po r sobre

as diviso es ". Num extremo, as doutrinas realistas negam freqiientemente

quaisquer direitos legais e mora is aqueles desprovidos do poder de impor 0

respeito a sua independencia. N o outro extrem o, as doutrinas revolucionaris-

tas tern insistido na igualdade absoluta de direitos tanto para indivfduos

quanta para com unidades, e no dever de dar assistencia a sua liberacao, E ntre

esses dois fogos, os liberais exibem profundas divisoes. Uma corrente tern

defendido urn forte (mesmo que nunca tao absoluto) respeito pelo plural is-

mo e pela igualdade entre comunidades e culturas e tern dado grande enfase

as regras da soberania e nao-intervencao, Outra corrente (muito mais

poderosa) tern concedido som ente direitos condicionais ou secundarios aque-

les que estao a margem do m icleo central. E esta corrente que conduz a inter-

vencao (ou ao imperialismo) a tim de promover os valores intrinsecamente

superiores do ruicleo central; a identificacao de certos estados como sendo

"proscritos", "pari as" ou "farsantes"; a urn entendimento cada vez mais

condicional da soberania e a um a diferenciacao hierarquica entre soberanias.

A tendencia dom inante no seculo XX tern sido a de combateresses exclusivismo e exclusao - tal como exemplificado pela luta pela

soberania igual, pel a descolonizacao, pela igualdade racial e pela justica

economica. Ademais, as norrnas prevalentes da sociedade internacional

(nao-intervencao, restricoes ao uso da forca, igualdade de soberania) tern

oferecido urn certo nfvel de protecao - para bern e para 0 mal - a varias

entidades polfticas extrem am ente fragilizadas C 'quase-estados", u tilizan-

do-se da frase de Robert ] ackson). No entanto, a prornocao e a imposicao

de valores "universais" e os esforcos no sentido de vincular legitim idade

dornestica e legitim idade internacional arneacam restabelecer esses

padroes anteriores de diferenciacao, D e fato, nao e de todo surpreend ente

observar vel has categorias do seculo XIX reaparecendo, em pleno tim de

seculo XX, nas distincoes feitas entre urn cfrculo central de estados li-

berais; sociedades nao-liberais bern-ordenadas: e estados que ou "malo-

graram'' ou deveriam ser classificados como parias ou p ro sc rito s.

CONCLUSAO

Pouca coisa nos presentes debates sobre a ordem mundial ou

global sugere ser desejavel ou via vel urn total abandono do sistema de esta-

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dos nacionais. Os numerosos apelos para uma refonna da ordem tradi-

cional interestatal e para uma reformulacao dos conceitos de soberania e de

nao-intervencao tern side mais relevantes e importantes. Realmente, a

questao e : como, e por que meios? As reivindicacoes de independencia

absoluta ja foram dilufdas, Cada vez mais, 0 direito internacional e as insti-

tuicoes internacionais tern procurado restringir 0 direito dos estados de

lancar mao da forca por outras razoes que nao, a autodefesa: sujeitar a

relacao de cidadaos com seus estados aos padroes acordados interna-

cionalmente: e envolver-se profundamente nos meios pelos quais a

sociedade dornestica esta organizada economicamente. Em meio as cad a

vez mais densas redes cooperativas nas areas das relacoes econornicas e

arnbientais, os estados tern abdicado de certo grau de autonomia pratica embeneffcio da adrninistracao conjunta de problemas comuns. Propostas nesta

direcao tern sido motivadas por preocupacoes de ordem pratica e moral,

bern como pelos interesses particulares das potencias.

No entanto, as demandas de urn cumprimento mais duro e coer-

civo das nonnas internacionais tern levantado problemas especfficos.

Esquemas legftimos de curnprirnento obrigat6rio sao cruciais para 0 pro-

gresso institucional. Seria politicamente ingenue bern como moral mente

inaceitavel alegar que a imposicao coerciva e unilateral de nonnas e va-

lores internacionais nunca podera ser justificada ou efetiva. No entanto este

artigo buscou desenvolver alguns dos principais problemas enfrentados por

propostas desse tipo em meio as correntes condicces internacionais: os

perigos do unilateralismo; as dificuldades da legitimidade; os limites do

que pode ser obtido por coercao: a escala em que a prornocao dos assim

chamados "valores globais" pode criar novas fonnas de hierarquia.

A cautela com respeito ao cumprimento obrigat6rio das nonnas

internacionais nao significa uma simples aceitacao do status quo.

Certamente nao acarreta necessariamente uma reversao a urn sistema plu-ralista vatteliano. De fato, ° ponto mais importante e que nem a irnple-

rnentacao eficaz de arranjos cooperativos nem muito menos 0 estado

podern ser reduzidos somente a existencia ou nao de alguma autoridade

coerciva, assim como 0 cumprimento da lei dentro dos estados nao

depende unicamente da polfcia e das prisoes. Com certeza ha muito 0 que

fazer em tennos de urn fortalecimento gradual dos mecanismos de obe-

diencia e implementacao baseados em acordos e no consenso. E ainda,

dada a profunda diversidade cultural e de valores, e importante enfocar a

distincao entre urn consenso sobre regras e processos institucionais, por urnlado, e um consenso sobre valores substantives, por outro lado. Em con-

traste com muitos dos debates sobre a governanca global realizados no pos-

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SO CIED AD E IN TERN ACIO NA L E G OV ER NA N<;:A G LO BA L 75

Guerra Fria, 0 primeiro comprometimento necessita ser a forrnulacao e a

sustentacao de urn consenso quanto a procedimentos: 0 acordo entre esta-

dos e outros grupos politicos sobre a estrutura de regras e instituicoes

internacionais por meio da qual os choques de interesses e conflitos de va-

lores possam ser negociados, por meio da qual a acornodacao seja possivel,

e pela qual 0 unilateralismo dos poderosos possa ser efetivarnente "doma-

do". E somente nestas bases que a socicdade internacional podera estar

capacitada para buscar, de modo sustentavel, urn consenso substantivo de

valores e uma convergencia em relacao a urn conjunto de valores morais e

princfpios de justica compartilhados.

ANDREW HURRELL e diretor de Pos-Graduacao em Relacoes lnternacionaisda Universidade de Oxford, onde e pesquisador associado do Nuffield College.

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228 LVA NOVA N" 46 - 99

SOCIEDADE INTERNAtIONAL E GOVERNAN<;A

GLOBAL

ANDREW HURREL

A visao pluralista classica da ordem internacional - fundada no

reconhecimento miituo da soberania nacional - vern sendo colocada em

xeque pel a ampliacao da agenda normativa internacional. 0 artigo ve com

certo ceticismo, no entanto, as tentativas de combinar essas preocupacoes

normativas mais ambiciosas (protecao ao meio ambiente, direitos humanos)

com a demand a de cumprimento obrigat6rio das normas internacionais.

Examinam-se os obstaculos que se encontram no caminho desse "solidaris-

mo coercitivo" e argumenta-se que urn consenso procedimental, em ambito

internacional, deve preceder urn consenso substantivo sobre valores.

INTERNATIONAL SOCIETY AND GLOBAL

GOVERNANCE

The classical pluralist view of the international order is being

challenged by the expanding international normative agenda. Neverthe-

less, the efforts towards combining those more ambitious normative con-

cerns (environment protection, human rights) with the demandfor the en-forcement of international norms are regarded with scepticism. The

obstacles against this coercive solidarism are examined and the prece-

dence of a procedural consensus over a substantive one is argued for.