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UMA PROTEÍNA DISPARA A ARTRITE MANDIOCA DOCE PRODUZ ETANOL A EMBRAPA EXPORTA CONHECIMENTO Animais de laboratório POR QUE A CIÊNCIA PRECISA DELES Fevereiro 2008 144 EXEMPLAR DE ASSINANTE VENDA PROIBIDA ENTREVISTA FERNANDO HADDAD

Animais de laboratório

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Pesquisa FAPESP - Ed. 144

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UMA PROTEÍNA DISPARA A ARTRITE

MANDIOCA DOCE PRODUZ ETANOL

A EMBRAPA EXPORTA CONHECIMENTO

Animais de laboratórioPOR QUE A CIÊNCIA PRECISA DELES

Fevereiro 2008 ■ Nº 144

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ENTREVISTAFERNANDO HADDAD

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 3

Tempestade vermelha

Gigantescas tempestades registradas em março de 2007 em Júpiter geraram um rastro de nuvens avermelhadas (no detalhe), que inundaram o planeta. Imagens captadas pelo telescópio espacial Hubble, e divulgadas no mês passado, mostraram o nascimento e a proliferação das tempestades, que chegaram a ocupar uma área de 2 mil quilômetros quadrados em menos de 24 horas. Segundo o espanhol Agustín Sánchez-Lavega, um dos responsáveis pela observação, as tempestades formaram-se na zona onde existe a corrente de ar mais intensa do planeta e se movem na velocidade máxima dessas correntes. Para ele, a força imposta pela corrente de ar sugere que o fenômeno poderia ter sua origem numa fonte de calor interna do planeta, e não pela radiação solar, como cogitam outros pesquisadores. O estudo foi publicado em janeiro na revista Nature.

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IMAGEM DO MÊS*

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24 CAPA

> ENTREVISTA

12 O ministro Fernando Haddad fala sobre o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE)

> POLÍTICA CIENTÍFICA

E TECNOLÓGICA

24 CAPA

Experiências com animais continuam a ser imprescindíveis, ao contrário do que dizem ativistas

32 AGRONEGÓCIOS

Inovação institucional deve consolidar a presença da Embrapa no exterior

36 BUROCRACIA

A Receita Federal e a Anvisa facilitam a importação de material de pesquisa

37 DIVULGAÇÃO

Exposição traz ao Brasil os avanços da genômica

> AMBIENTE

38 ECOLOGIA

Com apoio de centros de pesquisa, fazendeiros e prefeituras reconstroem matas perdidas

43 GENÔMICA

Cientistas apontam falhas em estudo sobre contaminação por transgênico

44 OCEANOGRAFIA

Poluição na baía de Santos cria zonas sem vida marinha

> CIÊNCIA

50 IMUNOLOGIA

Descoberta enzima que pode causar a inflamação e a dor da artrite

54 GENÉTICA

Ativação de gene transforma células-tronco emcélulas musculares

55 ETOLOGIA

Parentes das aranhas, os opiliões machos que cuidam dos ovos atraem o interesse das fêmeas

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 9 CARTA DA EDITORA 10 MEMÓRIA 18 ESTRATÉGIAS 46 LABORATÓRIO 62 SCIELO NOTÍCIAS ..........................

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> EDITORIAS > POLÍTICA C&T > AMBIENTE > CIÊNCIA > TECNOLOGIA > HUMANIDADES WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

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58 ASTRONOMIA

Buracos negros gigantes convertem parte da matéria que capturam em jatos de partículas que varrem o espaço

ao seu redor

60 FÍSICA

Simulações em computador explicam como opiniões opostas se disseminam na população

> TECNOLOGIA

68 BIOCOMBUSTÍVEIS

Variedade de raiz açucarada reduz etapa no processo de produção do álcool combustível

74 ROBÓTICA

Robôs desenvolvidos por pequena empresa estarão disponíveis para 60 mil estudantes

78 QUÍMICA

Em testes preliminares substâncias mataram o Trypanosoma cruzi

80 BIOQUÍMICA

Empresa mineira usa saliva para medir estresse causado por exaustão física e mental

> HUMANIDADES

82 CIÊNCIA POLÍTICA

Estudos analisam pensamento militar sobre a Amazônia

86 COMUNICAÇÃO

Grupo estuda narrativa midiática como construtora da visão geral sobre a criminalidade

90 ARTE

Tese mostra que Hélio Oiticica fundamentou em seus escritos as idéias que agitaram a cultura brasileira na década de 1960

............................... 64 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO MIGUEL BOYAYAN

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6 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

■ Para anunciar

Ligue para: (11) 3838-4008

■ Assinaturas, renovação e mudança de endereço

Envie um e-mail: [email protected] ou ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418

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■ Números atrasados

Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem Tel. (11) 3038-1438

■ Site da revista

No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

■ Opiniões ou sugestões

Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 - São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: [email protected]

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Aquecimento global

Com relação à reportagem “Fábrica de tempestades” (edição 143), acompanho com grande interesse os artigos sobre aquecimento global e muitos fenômenos de aquecimento local e fi co admirado que não se relacionem os fatos. Os mesmos processos que determinam o aquecimento local são os que geram o global. Culpam-se os gases, produzidos por ação humana, mas estes não geram calor! Outros culpam as manchas solares. Mas a radiação solar na faixa do luminoso não é calorífi ca, e a radiação calorífi ca, infravermelha, é impe-dida de entrar pelos gases de efeito estufa. O que gera calor em excesso são as áreas degradadas pelo ser humano. Ao se trans-formar uma área verde em cimentado ela se torna degradada do ponto de vista eco-lógico, gera calor e traz todas as mudanças climáticas conseqüentes.

ODO PRIMAVESI

EMBRAPA PECUÁRIA SUDESTE

São Carlos, SP

Universidade

A reportagem “ABC da ciência” (edição 143) refere-se à implantação de um mode-lo de universidade sem departamentos, que prioriza a interdisciplinaridade, adotado pela Universidade Federal do ABC. Este fato aponta para um avanço na forma de se pen-sar e administrar as universidades brasileiras. No entanto, ressalto que a Escola de Artes,

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

[email protected]

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 7

Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), criada em 2005, tem seu conceito acadêmico e administra-tivo totalmente voltado para esse modelo, no qual uma única unidade comporta dez diferentes cursos que, em seu primeiro ano, têm em comum um ciclo básico composto de disciplinas de caráter geral e uma discipli-na, Resolução de problemas, voltada para a discussão de temas de interesse das comuni-dades, sob a perspectiva de cada curso. Nes-sas disciplinas do ciclo básico as turmas são formadas por alunos de diferentes cursos, proporcionando uma visão interdisciplinar e uma integração entre diferentes áreas. O corpo docente (só de doutores, 95% deles em regime de dedicação exclusiva) é jovem, com vários pesquisadores já inseridos na co-munidade acadêmica e científi ca nacional e internacional.

DANTE DE ROSE JUNIOR

DIRETOR DA EACH/USPSão Paulo, SP

Arranjos produtivos

Parabéns à revista por difundir as iniciati-vas inovadoras na área de ciência e tecno-logia e, especialmente, a Carlos Fioravanti pela reportagem “Trama coletiva” (edição 143). Entretanto gostaria de contestar e responder, pela informação equivoca-da do professor Hamilton Ferreira, da Universidade Federal da Bahia, quando afirma que o projeto do Banco Intera-mericano de Desenvolvimento (BID) para desenvolver os Arranjos Produtivos Locais (APL) do estado da Bahia “está ór-fão”. Tornam-se necessários os seguintes esclarecimentos: 1) embora o contrato entre o estado da Bahia e o BID tenha si-do assinado em julho/2006, somente em 2007 constituiu-se plenamente a Unidade Gestora do Projeto, o que vem imprimin-do celeridade aos trabalhos; 2) o progra-ma, que na Bahia se desenvolve em par-ceria com o Sebrae, IEL, Fapesb e Senai, conta com o aporte de US$ 16,6 milhões para o período de 30 meses, recursos que são oriundos de fontes próprias do estado e dos parceiros (40%) e o restante (60%) do empréstimo com o BID; 3) o trabalho

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

está em pleno desenvolvimento, com 10 APL implantados, abrangendo mais de cem municípios, dos quais participam centenas de pequenas e microempresas das áreas de confecções; de automoti-vos; de plástico; de rochas ornamentais; de fruticultura; de tecnologias da infor-mação; de turismo; de derivados da ca-na-de-açúcar; de ovino-caprinocultura; e piscicultura; 4) as ações dos APL têm produzido resultados que redesenham a relação de fornecimento para indústria, a exemplo do APL de automotivos, que em ação conjunta com o Senai/Cimatec introduziu na relação de fornecedores de componentes para a Ford 22 empresas baianas; 5) o APL de rochas ornamentais, no município de Ourolândia, prioriza a legalização e regularização das micro e pe-quenas empresas extrativistas de mineral que estão na informalidade, promovendo estudos ambientais e ações no sentido de cumprir as exigências dos órgãos estadu-ais e federais, para obtenção do licencia-mento; 6) um importante centro de de-signer será inaugurado nos próximos três meses para atender a demanda do APL de confecções. O projeto se efetiva em parce-ria com o Senai e terá papel fundamental na revitalização do setor; 7) cerca de cem empresas localizadas na cidade de Feira de Santana e na Região Metropolitana de Salvador participam do APL de Tec-nologias da Informação, cuja demanda é a realização de MBA (Master of Business Administration) em gestão de negócio; 8) destacamos, também, a elaboração de 353 planos de melhorias individuais; a forma-ção de 27 redes associativas, que agregam 160 micro e pequenas empresas; 50 em-presários capacitados para formação de redes empresariais; surgimento de Pólos de Tecnologias da Informação em Jequié, Salvador e Feira de Santana; e melhoria da qualidade dos produtos das pequenas indústrias de confecção, entre outros. Na Bahia, o programa de APL integra o pla-nejamento do governo estadual, com me-tas definidas para curto, médio e longo prazos.

BERTA PASSOS

COORDENADORA DO PROGRAMA

Salvador, BA

Peixe

Na nota “Vantagens de uma dieta verde” (edição 142) ocorreu uma discordância entre texto e imagem. O texto fala da die -ta vegetariana, mas a imagem que o ilus-tra mostra um peixe entre vários vegetais. Como peixe é carne, não se inclui nesse cardápio vegetariano.

GUARACI DE LIMA REQUENA

São Paulo, SP

Correções

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■ Na reportagem “Manual de emergência” a foto da página 38 mostra pesquisadores, e não caçadores, como consta na legenda.

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■ Por um lapso, faltou informar na reporta-gem “Grito de independência” que o orien-tador da dissertação de mestrado de Carlos Pian foi Rogério Meneghini.

■ Na legenda da página 35 da reportagem “Uma voz pelo planeta” faltou colocar a palavra “economicamente” depois de “viá-vel”. O correto é “Goldemberg: o primeiro a mostrar que era viável economicamente usar a cana para produzir etanol”.

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■ O crédito correto da ilustração de capa é: Candido Portinari, A chegada de dom João VI à Bahia, 1952. Arquivo gentilmente cedido pelo Projeto Portinari. Reprodução autorizada graciosamente por João Candi-do Portinari.

■ O livro Populações meridionais do Bra-sil, de Oliveira Vianna, foi escrito entre 1916 e 1918 e publicado em 1920, portanto no século XX, e não no século XIX, como consta na resenha “A árvore genealógica do pensamento”.

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Mais ciência na web

> A nova versão do site da revista Pesquisa FAPESP está no ar

> Mais bonita, mais funcional e mais informativa

■ Doze anos de conteúdo integral da revista Pesquisa FAPESP ■ Áudio do programa se-

manal de rádio Pesquisa Brasil ■ Colunas exclusivas produzidas especialmente para o

meio digital ■ Versões em inglês e em espanhol das reportagens de Pesquisa FAPESP

www.revistapesquisa.fapesp.br

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Page 9: Animais de laboratório

PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 9

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR

CELSO LAFERPRESIDENTE

JOSÉ ARANA VARELAVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMANIDADES),CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA)

EDITORES ESPECIAISCARLOS FIORAVANTI, FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTESDINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES

REVISÃOMÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

EDITORA DE ARTEMAYUMI OKUYAMA

ARTEARTUR VOLTOLINI, MARIA CECILIA FELLI

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

SECRETARIA DA REDAÇÃOANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201

COLABORADORESANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CECÍLIA GIANNETTI, FRANCISCO BICUDO, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JÚNIOR, JÚLIA CHEREM, LAURABEATRIZ, MANU MALTEZ, REINALDO JOSÉ LOPES E YURI VASCONCELOS.

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

GERÊNCIA DE OPERAÇÕESPAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008e-mail: [email protected]

GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3038-4304 FAX: (11) 3038-1418e-mail: [email protected]

IMPRESSÃOPLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃODINAP

GESTÃO ADMINISTRATIVAINSTITUTO UNIEMP

FAPESPRUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP

ISSN 1519-8774

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Escolhas óbviasMARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAÇÃO

F alemos em termos bem claros: para um grande número de experimentos essen-ciais na condução de pesquisas voltadas

à saúde e vida humanas, não há hoje alterna-tivas reais, eficientes, às chamadas cobaias. Assim, ainda que o tema da proteção aos ani-mais deva envolver o debate de aspectos éti-cos, complexos às vezes, parece sobrar uma boa dose de demagogia no furor legiferante que começa a se manifestar no Brasil contra o uso de animais de laboratório em experiên-cias científicas. Tomemos o caso do Rio de Janeiro, por exemplo: a ser cumprida à risca a lei municipal que desde o final de dezem-bro tornou ilegal esse uso, logo veríamos uma obstrução sem precedentes de parte sig-nificativa da pesquisa ali realizada por algu-mas das mais importantes instituições cien-tíficas instaladas na cidade. Entretanto, o vereador e ator Cláudio Cavalcanti, autor do projeto, o justificou nos seguintes termos: “Um ser humano que tortura seres domina-dos e incapazes de se defender, seres que gri-tam e choram de dor – seja esse ser um pes-quisador ou um psicopata – representa o rebotalho da Criação”.

A comunidade acadêmica carioca, que não tem por que identificar suas práticas pro-fissionais com tortura nem tampouco por que aceitar a absurda carapuça de rebotalho de qualquer natureza, claro, reagiu com fir-meza. E decidiu, como relata o editor especial Fabrício Marques na reportagem de capa des-ta edição, a partir da página 24, mobilizar os deputados federais do estado para ajudar a aprovar um projeto de lei que estabelece nor-mas para a utilização criteriosa de animais em experimentação, em tramitação no Con-gresso há 12 anos. Mais: resolveu continuar trabalhando com animais de laboratório cujos protocolos foram aprovados pelos co-mitês de ética das instituições de pesquisa.

Num cenário em que é grande o risco de irracionalidade exacerbada nas discussões, a reportagem elaborada por Fabrício Marques ressitua com inteira serenidade e competên-cia os fatos ligados ao uso de animais em experiências científicas, sua evolução, desdo-bramentos e o porquê de eles serem hoje imprescindíveis ao avanço do conhecimento. É ainda na primeira página do texto que ele informa: “A interrupção do uso de animais geraria prejuízos imediatos com repercussão

nacional, como a falta de vacinas, inclusive a de febre amarela. O controle de qualidade dos lotes de vacinas fabricados no Rio pela Fiocruz é feito por meio de animais de labo-ratório. A inoculação em camundongos ates-ta a qualidade dos antígenos antes que eles sejam aplicados nas pessoas. Sem poder usar roedores, a distribuição de vacinas como a de hepatite B, raiva, meningite e BCG teria de ser interrompida por falta de segurança”. Que escolha fazer? O conhecimento dos fatos amplia a riqueza e a justeza do debate e é para isso que a reportagem de capa de Pes-quisa FAPESP deve contribuir.

Uma outra reportagem das páginas de política científica e tecnológica merece desta-que aqui. Trata-se da mudança institucional em curso na Embrapa, que deve consolidar a presença da empresa na África, Europa e mes-mo dentro da América Latina. Conforme re-lata a partir da página 32 a editora de política, Claudia Izique, a Embrapa, criada em 1973 como empresa pública de direito privado, tornou-se um centro de excelência em P&D, e agora chegou o momento crucial de trans-formar seu conhecimento acumulado em mais riqueza. E isso não só através das novas investidas no exterior como via associações com o setor privado dentro do Brasil.

Em ciência quero destacar o texto sobre uma descoberta relativa a uma enzima encon-trada de forma abundante nos estágios mais avançados da artrite. Já se sabia dessa abun-dância, mas conforme o relato do editor es-pecial Carlos Fioravanti, a partir da página 50, sabe-se agora que essa proteína pode ser uma das causas da doença. O achado pode não só ampliar a compreensão sobre a enfermidade – que ataca cerca de 2 milhões de pessoas no Brasil, das quais aproximadamente 1,5 milhão de mulheres que experimentam os primeiros sinais da artrite por volta dos 35 anos – como ajudar a entender como e por que os trata-mentos hoje usados para contê-la às vezes funcionam e outras vezes não.

Nas páginas de tecnologia merece atenção especial a reportagem da editora assistente Dinorah Ereno sobre uma variedade de man-dioca que tem grande quantidade de açúcares em lugar de amido na raiz e que, por isso mes-mo, se mostra particularmente promissora para a produção de etanol (página 68).

Boa leitura!

CARTA DA EDITORA

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10 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

MEMÓRIA

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Simão Mathias foi o primeiro doutor da

Faculdade de Filosofia da USP, em 1942

NE L D S O N MA RC O L I N

O pesquisador nos anos 1940, no laboratório de físico-química montado por ele quando voltou dos EUA

Omês é janeiro; o ano é 1942. Estamos no palco do Teatro Municipal em um momento de grande solenidade, todos de beca e as autoridades de casaca. Forma-se a 6ª turma da Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, e o diretor Fernando de Azevedo anuncia que fi nalmente ela possui seu regimento

interno. Alinhados em níveis diferentes, somos cem bacharéis e licenciados, a maior turma produzida até então pela Casa. Mas, antes de nosso ato de formatura, ocorre certa cerimônia inédita na faculdade: a colação de grau do primeiro doutor, o então jovem Simão Mathias, oriundo do setor de Química, que recebeu a imposição azul da borla e do capelo sob os nossos aplausos de neófi tos.” A descrição acima é do professor Antonio Candido,

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Rigor e generosidade

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Mathias aposentado: olhos para a história da ciência

respeitado pesquisador da teoria literária no Brasil, e foi lido em 1988 durante um simpósio que homenageava Simão Mathias (1908-1991). Na ocasião, o primeiro doutor da então FFCL completava 80 anos.

Em março de 1942 se doutoraram também Paschoal Senise e Jandyra França, colegas de Mathias na primeira turma da graduação de Química, em 1935. “Ele se doutorou em janeiro porque precisava viajar para os Estados Unidos, com uma bolsa da Fundação Rockefeller, e a universidade autorizou a antecipação da cerimônia”, diz Senise, de 90 anos, ainda freqüentador assíduo do Instituto de Química da USP. O título da tese era Sobre mercaptanas bivalentes e sulfeto-dimercaptanas, um estudo relacionado a compostos orgânicos do enxofre.

Mathias tinha inclinação para a físico-química e os professores Heinrich Rheinboldt, pesquisador alemão contratado para implantar o curso de química na USP, e Heinrich Hauptmann, seu assistente, não eram especialistas na área. A oportunidade oferecida pela Rockefeller era excelente para a criação desse setor. Mathias passou dois anos na Universidade de Wisconsin e voltou ao Brasil para assumir as aulas de físico-química, já casado com a norte-americana Ruth Ann, com quem teve dois filhos, Regina e Gilberto. Encarregado por

Rheinboldt de montar o primeiro laboratório da especialidade do país, o fez praticamente sozinho porque não havia mão-de-obra qualificada.

Com o passar dos anos, as funções administrativas lhe foram roubando tempo das atividades de pesquisa. Em 1960 tornou-se diretor do Departamento de Química e coordenou a mudança para o futuro Instituto de Química dentro da Cidade Universitária. O trabalho era especialmente complicado: havia necessidade de integrar a química da Faculdade de Filosofia com

as outras – a da Politécnica, da Medicina, da Farmácia, da Veterinária. “Essa foi uma marca dele dentro da USP, Mathias sempre lutou pela construção e integração da universidade”, conta Ana Maria Alfonso-Goldfarb, professora e pesquisadora em história da ciência e fundadora e coordenadora do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima/PUC-SP).

À parte sua intensa atuação dentro da universidade, Mathias participou da criação

de associações, como a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), em 1977, e a Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC), em 1985, das quais foi presidente. Foi secretário da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência durante o período mais difícil da ditadura, entre 1969 e 1973. Por seu envolvimento com setores que resistiam à ditadura militar teve a casa invadida e revistada e foi interrogado. “Simão Mathias tinha grande senso de justiça e equilíbrio, o que não combina com regimes autoritários”, conta Márcia Ferraz, pesquisadora e vice-coordenadora do Cesima. Neste ano, centenário do nascimento de Mathias, a SBQ e o Cesima planejam uma série de atividades para lembrar as contribuições do pesquisador à ciência e à universidade.

Quando aposentado, em 1978, voltou-se para uma área que ele sempre cultivou: a história da ciência. Desde então se tornou o catalisador das novas gerações de professores e pesquisadores em história da ciência. Ou seja, até a sua morte em 1991, aos 83 anos, Mathias dedicou-se a formar escola, agora em outra área, diferente da química. Ana Maria define o cientista com uma palavra: “Scholar. Simão Mathias era um scholar, um formador de escolas, sempre com rigor e generosidade”.

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 13

ENTREVISTA

Fernando HaddadContra a fragmentação

Em abril do ano passado, o governo federal lançou o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e um mês depois o ministro da Educação, Paulo Haddad, começou a viajar para todos os cantos do país buscan-do o apoio de governadores e prefeitos às propostas ali apresentadas, num denso cipoal de novas siglas. Ini-ciativa louvável, diga-se: é impossível pensar a sério na

reformulação ou desenvolvimento consistente de um sistema nacional de educação que mira da educação infantil à pós-gra-duação, passando pelo absurdo anacronismo social chamado analfabetismo na população jovem e adulta, sem contar com o apoio e o compromisso político dos gestores públicos que se en-contram em instâncias de poder mais próximas da população. E que, ressalte-se, também estão constitucionalmente obrigados a assegurar alguns dos níveis da educação formal em seu âmbito de atuação, seja o estado ou o município.

Nove meses depois de iniciado o périplo, Haddad, 45 anos, comemora a adesão de 25 governadores e de 4.300 prefeitos ao Plano – o Brasil tem 27 governadores e 5.565 prefeitos. E mani-festa a esperança de que este e os próximos governos do país se empenhem para elevar os investimentos em educação para 7% do PIB, no mínimo 6%, ante os menos de 5% de hoje. Manifesta também a esperança de que toda a população brasileira tenha uma mesma educação de primeira linha e que a reconheça como valor social sem o qual será impossível pensar a sério em desen-volvimento nacional. Demonstra saber, entretanto, que nada disso é fácil e rápido.

Formado em direito pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado em economia também pela USP, quando estudou “O caráter socioeconômico do sistema soviético”, e doutorado em filosofia na mesma universidade, onde defendeu a tese “De Marx a Habermas: o materialismo histórico e seu paradigma adequado”, orientada pelo professor Paulo Arantes, Haddad em 1997 tornou-se professor do Departamento de Ciência Política da USP. Trajeto aparentemente tão errático tem uma espinha dorsal: seu interesse pelo Estado em todas as suas instâncias, que terminou por conduzi-lo às reflexões sobre a educação, quando se debruçava sobre o pensamento do filósofo alemão Jürgen Ha-bermas. A prática profissional também deu um empurrão nesse sentido: quando foi trabalhar com o ex-ministro João Sayad na Secretaria de Finanças da prefeitura de São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, boa parte de sua atenção se concentrou na área da educação, a de maior orçamento no município.

Na entrevista a seguir, o ministro Fernando Haddad esclare-ce sua visão sobre a política de educação que o governo Lula deseja para o país, “sistêmica em vez de fragmentada”, e explica vários aspectos do PDE.

■ Soubemos em 17 de janeiro do fechamento de quase 7 mil vagas dos cursos de direito e, no mesmo dia, lemos no site da Scientific American, em meio a um extenso material simpático ao país, o artigo “Brazil’s option for science education”, assinado pelo presidente Lula, o senhor e o neurocientista Miguel Nicolelis. Gostaria de ouvir seus comentários sobre fatos tão díspares e simultâneos ligados à educação no país. — São notícias complementares que têm como pano de fundo o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). A pergunta que propomos é: o que explica o fato de o Brasil ser o 15º produtor mundial de ciência e o 52º em qualidade da educação básica? Por que convivemos com essa disparidade absurda, por que não esta-mos entre os 20 países com melhor qualidade de educação básica? Em nossa concepção, o problema é que cometemos alguns erros estratégicos. Cultivamos algumas falsas contradições, algumas fal-sas oposições e acreditamos nelas.

■ No texto oficial sobre o Plano fala-se em cinco dessas falsas oposições.— Sim, e a mais grave, cultivada durante décadas, foi sem sombra de dúvida a oposição entre educação superior e educação básica.

■ Por quê?— Primeiro, porque é artificial. O desenvolvimento da educação superior depende da qualidade dos egressos da educação básica, em primeiro lugar. E a qualidade da educação básica depende de uma variável central, que é a formação de professores. Não há como dissociar uma da outra, não há como fragmentar o ciclo educacional. Por muito tempo cultivamos essa oposição como se fosse possível ao gestor público optar por uma em detrimento da outra. Estamos agora procurando resgatar a unidade perdida, criando um sistema nacional de avaliação por escola e aumen-tando o grau de responsabilização, sobretudo dos gestores públi-cos, com a qualidade da educação – o foco aí é a aprendizagem. É óbvio que ninguém vai desconsiderar que as condições de tra-balho, a infra-estrutura da escola, tudo isso é muito importante, mas por muito tempo deslocamos a atenção da população para aquilo que é fenomênico em detrimento do que é essencial na educação: garantir o direito de aprender.

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Ministro explica o Plano de Desenvolvimento da Educação

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■ A quem, na verdade, é endereçada a crítica que se faz em vários trechos no PDE a essas chamadas falsas oposições? Ao pensamento liberal? E, pen-sando em sua dissertação e na tese de doutorado, gostaria de saber que pensadores o inspiram nas idéias sobre educação? — Comecei a me aproximar muito da temática da educação em meu doutorado, sobre mate-rialismo histórico. Na tese procurei fazer uma crítica dialética ao materialismo histórico pro-posto por Habermas. Tentei mobilizar a dialé-tica materialista, de Marx a Adorno, para uma crítica ao projeto proposto por ele. Mas no tra-jeto descobri um Habermas muito interessante para a educação.

■ Um pensador ruim, do ponto de vista da econo-mia e da política, mas não da educação.— Eu não diria ruim, diria que o projeto haber-masiano perde potencial crítico, reconhece o materialismo abrindo mão de conceitos e variá-veis que permitem uma crítica mais contunden-te ao capitalismo contemporâneo. Contudo, no que diz respeito à educação, Habermas me pa-rece um grande pensador. Porque mobiliza au-tores clássicos, como George Herbert Meadow, [Émile] Durkheim, [Jean] Piaget e [Lawrence] Kohlberg, que têm formulações tão originais sobre o processo de reprodução simbólica da sociedade que não há como negar que essa lite-ratura é essencial para quem quer que pense educação. E que está na raiz do que, no Brasil, se produziu de melhor na área.

■ Pensando desde Anísio Teixeira...— Pensando sobretudo em Anísio Teixeira, do meu ponto de vista, a maior referência da edu-cação brasileira e que mobilizou esses autores todos. Mobilizou muito precocemente o prag-matismo americano, o [John] Dewey, o [Geor-ge Herbert] Mead, já naquela ocasião articulan-do de maneira absolutamente conectada uma literatura que aparece em Habermas. Bem antes dos anos 1950 ele mobiliza essa literatura em proveito de uma visão absolutamente progres-sista da escola pública, na qual tinha claro o que hoje chamamos de visão sistêmica da educação em oposição à chamada visão fragmentada.

■ Recuperar a visão sistêmica, mirando o pensa-mento de Anísio Teixeira, equivale a lançar uma ponte por cima da experiência liberal tentada nas últimas décadas?— Permita-me um reparo: não considero essa visão fragmentada da educação tributária do pensamento liberal. Porque o pensamento com o qual o Anísio dialoga também é liberal. O que aqui ocorreu foi uma espécie de aclimatação desse pensamento à luz da divisão internacional do trabalho. Ou seja, o que caberia a um país semiperiférico como o Brasil seria cuidar de fra-ções do ciclo educacional, não dele como um

todo. Então, nos caberia, sim, uma pós-gradua-ção de excelência, um ensino fundamental uni-versalizado, mas outros elos do ciclo podiam fi-car fragilizados. Por exemplo, o ensino médio, a educação infantil, a graduação que não é estru-turada no sentido da pós.

■ De fato se decidiu investir na pós-graduação e desde os governos militares isso foi feito de manei-ra séria e sistemática...— ... e sem descontinuidade, diga-se de passa-gem. Um projeto que deu certo.

■ Mas o que explica os gaps no sistema?— Eu penso que um projeto político. Penso que isso só se impôs no Brasil por tanto tempo em virtude de termos uma visão que aceita a socie-dade como dividida, cindida. Penso que nunca levamos a sério a perspectiva de uma sociedade efetivamente menos desigual, com todos os pre-ços que isso impõe às camadas mais abastadas da sociedade, em proveito de um projeto de integra-ção, de coesão social. Assimilamos a idéia da so-ciedade dividida muito fortemente.

■ E assim ela teria que ser pensada inclusive no plano da educação.— Sim, por isso resgato Anísio Teixeira, que sempre rejeitou a idéia de que deveria haver uma educação para as elites e uma para as mas-sas. E não é à toa que, já nos anos 1930, os mais expressivos educadores brasileiros tenham as-sinado o Manifesto dos Pioneiros, cujo foco central era a oposição a essa visão. Contra a fragmentação da educação, o manifesto diz: “Nós não podemos aceitar uma educação para uma camada da sociedade e uma outra educa-ção para uma outra camada da sociedade”.

■ Sua formação passa por graduação em direito, mestrado em economia e doutorado em filosofia. Mas para onde o levou a descoberta da educação no doutorado? — Primeiro, cabe uma observação: essa traje-tória aparentemente descontínua tem um fio condutor que é uma preocupação manifestada desde a graduação com a questão do Estado. Estudei direito, economia e filosofia pensando o Estado: o que é o Estado? A que serve? Quais são seus elementos de composição? Por decor-rência, veio a paixão pela política, no sentido de pensar a gestão pública, pensar essa dimensão comunitária que o Estado tem de organizar. E num desdobramento natural, essa formação acabou desembocando num concurso para o Departamento de Ciência Política da USP, em 1997. Em seguida, fui convidado para participar da administração da prefeita Marta Suplicy em São Paulo. Aceitei o convite do secretário de Finanças, o ex-ministro João Sayad. A Secretaria de Finanças é uma espécie de pan-óptico, de onde se enxerga toda a administração, e ali o

Nunca levamos a sério a perspectiva de uma sociedade menos desigual, com todos os preços que isso impõe às camadas mais abastadas

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meu interesse por educação começou a ficar cada vez mais marcante.

■ Por razões funcionais.— É, era a secretaria com o maior orça-mento, e aí dentro da questão geral do Estado, a questão da educação pública começa a ganhar destaque nas minhas preocupações.

■ Vou aproveitar para perguntar o seguinte: o que se quer dizer com esta frase, no come-ço do livro do PDE: “Só é possível garantir o desenvolvimento nacional se a educação for alçada à condição de eixo estruturante da ação do Estado, de forma a potencializar seus efeitos”.— Se olharmos a história do Brasil, va-mos verificar que vivemos períodos com taxas elevadas de crescimento econômico sem que isso tenha sido precedido por investimentos vultosos em formação. Nos anos 1930, nos 1950, nos anos 1970, sobretudo, vivemos períodos assim, su-peramos 10% de crescimento do PIB em alguns anos, apesar de não termos inves-tido em formação geral. Isso porque o país tem recursos naturais, porque tem um povo criativo, porque é de fato um continente com potenciais enormes. Mas se compararmos nossa história com a de outros países que também viveram perío-dos de milagre econômico, vamos cons-tatar que a grande diferença foi não ter-mos feito os investimentos necessários em educação para o Brasil mudar de pa-tamar e ser alçado da condição de país semiperiférico à de país desenvolvido. E, evidentemente, a educação é a pedra de toque do nosso projeto nacional.

■ Que países estão na sua mente?— Todos que passaram rapidamente de um patamar ao outro. Desde o Japão dos anos 1950, passando pela Coréia dos anos 1960, à Irlanda dos anos 1970. E há países que hoje estão fazendo investimentos sig-nificativos, aproveitando taxas elevadas de crescimento.

■ Índia, China...— ... e Vietnã, para citar um que daqui a pouco vai aparecer na literatura. Tínhamos a ilusão de que devíamos ter como meta de investimento a média internacional e con-fortava nossos economistas que o Brasil investisse 4% do PIB em educação. Mas isso só seria razoável se não tivéssemos um gran-de passivo em educação e se nosso PIB per capita já fosse significativo. A mudança de patamar não se dará com investimentos dessa ordem. É evidente que os críticos do

aumento do investimento estão corretos em dizer que é preciso melhorar a gestão do sistema como um todo. Contudo é preciso frisar que, se não são condição suficiente, os recursos adicionais são condição necessária para a mudança de patamar. São questões que estruturam o sistema, como o trata-mento que o MEC [Ministério da Educa-ção] vem dando ao salário-educação – qua-se dobramos sua arrecadação em 4 anos, que foi de R$ 3,7 bilhões para R$ 7 bilhões por ano. Incorporamos assim R$ 3,3 bi-lhões, dinheiro voltado para a educação básica. Com isso, o Fundeb [Fundo para a Educação Básica] decuplicou a comple-mentação da União para a correção das desigualdades regionais no ensino básico, que era feita via o antigo Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magisté-rio]. Dos R$ 500 milhões, em média, que se tinha durante os 10 anos de vigência do Fundef, vamos alcançar R$ 5 bilhões a par-tir de 2009. Já estamos com R$ 3,2 bilhões.

■ As desigualdades regionais são tomadas como ponto-chave no PDE e o documento fala num determinado número de escolas que precisam de atenção especial.— São 7 mil e poucas escolas em 1.242 municípios. Aproveito para explicar um paradoxo que o MEC vivia: ele publicava suas resoluções, chegavam os projetos das prefeituras e o técnico de plantão selecio-nava os melhores. Por essa sistemática o recurso jamais chegaria aos mais carentes, porque eles não têm capacidade técnica para formular os melhores projetos. In-vertemos a lógica: fizemos uma radiogra-fia da qualidade da educação em todo o país, escola por escola, rede por rede, e passamos a dar atendimento prioritário, técnico e financeiro, aos municípios com os piores indicadores.

■ Indicadores que os situam com pouco mais de 1 ponto...— Na escala que criamos do Índice de De-senvolvimento da Educação Básica, o Ideb, que vai de 0 a 10 até para facilitar a compre-ensão por parte das famílias mais carentes, há municípios que obtiveram conceito 1. Ora, a meta do Brasil para 2021 é 6, portan-to esses municípios estão a um século de distância, se nada for feito. E há escolas que tiveram conceito abaixo de 1. Essa radiogra-fia nunca fora feita. Hoje temos um censo por aluno, são 53 milhões de alunos. E todos os alunos de 4ª a 8ª série, a cada 2 anos, pas-sam por um exame nacional de português e matemática. São 5 milhões de provas a cada 2 anos. É esse conjunto de dados que

compõem o Ideb, que é atribuído a cada escola pública e a cada rede pública. Isso permite uma gestão do sistema educacional e o estabelecimento do regime de colabora-ção previsto em nossa Constituição de 1988, que nunca havia saído do papel porque nin-guém conseguia compreender o que seria.

■ E o que é afinal? — Esse regime, que vem ganhando corpo e continuará sendo aperfeiçoado, passa por três questões centrais. A primeira é a do sistema nacional de avaliação. Temos que ter padrões nacionais mínimos de qualida-de, não é possível conviver com essa imen-sa disparidade. Em segundo lugar, rom-pendo com aquela oposição entre educa-ção básica e superior, a União tem que as-sumir a responsabilidade pela formação dos professores. Mantemos a rede de uni-versidades federais no país e não podemos abdicar de uma responsabilidade que, a rigor, sempre deveria ter sido vinculada à União. Daí a necessidade de se criar um sistema nacional de formação, com o apoio das universidades federais, dos centros fe-derais de ensino técnico, os Cefets, que vão se transformar nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, os Ifets, da Universidade Aberta [UAB], que é a for-mação continuada a distância, e do Pibid, o Programa Institucional de Bolsas de Ini-ciação à Docência, que é de fundamental importância se quisermos ter professores de física, química, matemática, em número e qualidade suficientes para resgatar a dí-vida com a educação básica. Portanto, cito quatro programas dessa natureza: o Reuni, que amplia as vagas nas atuais universida-des federais, de 124 mil vagas de ingresso em 2002 para 229 mil vagas em 2010, ou seja, quase dobra as vagas de ingresso em 8 anos; o plano das unidades de educação profissional, que devem passar das atuais 140 universidades para 354 em 8 anos; o Pibid, que oferecerá 20 mil bolsas de edu-cação à docência e a Universidade Aberta, na qual já estamos com 291 pólos ativos e teremos mais 271 até 2009.

■ Para o Pibid, física, química, biologia e matemática são áreas prioritárias. Há um entendimento de que sua fragilidade na primeira etapa do ensino atrapalha nosso desenvolvimento científico?— Sem dúvida. A percepção, que é co-mum à comunidade científica e é hoje quase um consenso no mundo, é de que as ciências têm que adentrar com mais força na educação básica, já começando no en-sino fundamental. Mas, sobretudo, é pre-ciso uma educação científica robusta no

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ensino médio. E o programa Brasil Profis-sionalizado ajuda nisso, porque seu enfoque não é só ampliar a rede federal de educação profissional e combinar de maneira virtuo-sa educação profissional, educação científi-ca e educação humanística, como já ocorre em muitos Cefets. O programa visa tam-bém transferir recursos para que os estados consigam equipar mais adequadamente as escolas de ensino médio. Já universalizamos os laboratórios de informática em 2007 e vamos agora partir para a conexão desses laboratórios por banda larga nas localidades mais distantes do país. O Brasil Profissiona-lizado vai transferir recursos para as redes estaduais com o objetivo de construção de laboratórios de ciências – física, química, biologia – e de educação profissional.

■ Falemos um pouco da pós-graduação: em dezembro foram descredenciados 39 cursos de pós-graduação. Temos hoje no país mais de 2 mil programas e 219 deles são consi-derados excelentes. Qual a sua visão sobre esse segmento do sistema?— Todos os indicadores demonstram que nossa pós-graduação é de excelência inter-nacional. E, dentro do quadro latino-ame-ricano, o Brasil realmente tem um destaque bastante notável. Hoje provavelmente for-mamos mais doutores do que a soma de todos os demais países latino-americanos, do México à Argentina, o que demonstra a pujança do sistema. Nosso grande desafio é traduzir esse conhecimento científico em tecnologia aplicada, sobretudo com o ob-jetivo de aumentar a produtividade do trabalhador brasileiro, agregando valor a nossa produção. Ainda podemos agregar muita ciência à produção e, por decorrên-cia, mais valor, dado que essa ciência existe, está disponível e precisa ser traduzida para o mundo do trabalho. Daí a importância da lei de incentivo à pesquisa (11.487), que está sancionada, regulamentada e com o edital aberto. Ela será em fluxo contínuo, portanto, a qualquer tempo, as instituições de ciência e tecnologia, o que inclui as uni-versidades, poderão apresentar seus proje-tos. Eles são aprovados por uma comissão tripartite do MEC, Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e Ministério do Desen-volvimento, Indústria e Comércio (MDIC) – e aí está uma grande vantagem em rela-ção à Lei Rouanet, embora ela seja análoga. Quer dizer, em primeiro lugar, há uma va-lidação do Estado.

■ Isso não torna o processo moroso?— Não, os três ministérios são ágeis e há prazos já predefinidos de aprovação. Uma vez aprovado, o projeto comporá um catá-

logo do ministério, e toda empresa que quiser aportar recursos para um deles vai poder deduzir dos impostos devidos até 85% do valor doado.

■ Um pouco na linha do que previa a Lei 8.661 de 1994? — Lei de incentivo fiscal à pesquisa não é uma novidade. A novidade é, em primeiro lugar, o percentual a ser abatido. A segun-da questão importante é que, naquilo que faltar para 100% – supondo que ela abata 50 ou 80% –, a empresa participa da pro-priedade intelectual nessa proporção. O que significa dizer que se cria um ambien-te de interação muito mais efetivo entre instituição de pesquisa e empresa. Quanto mais a empresa abate, menos participa da propriedade intelectual, que será detida pela universidade e irá, evidentemente, aumentar sua receita própria a partir das patentes geradas. Isso não acontece com a Lei Rouanet, em que o Estado financia, mas não tem participação na propriedade intelectual do que financiou.

■ Até porque não pode, em razão da legis-lação de direitos autorais.— Mas essa lei de incentivo à pesquisa altera o quadro da Lei de Direitos Auto-rais. O que é financiado com recurso pú-blico, na proporção em que esse recurso financia, tem um rebatimento na pro-priedade intelectual.

■ Um problema é que a demanda por de-terminadas pesquisas não deve vir direto da empresa, mas das instituições de pesqui-sa. A questão da origem da demanda era uma preocupação que a FAPESP tinha, quando estava dando início ao programa de inovação tecnológica em parceria, em 1994. Percebia-se o risco de o projeto ficar na prateleira se a empresa não fosse de-mandante do estudo desde o começo. — A demanda pode vir casada da empresa e da instituição de pesquisa. Mas nem toda universidade mantém uma interação com o mundo da produção, e aí ela pode propor o projeto. E muitas vezes uma universida-de de uma região pode ter uma empresa interessada de outra região, que inclusive desconhece os projetos de pesquisa.

■ A gestão da lei de incentivo à pesquisa é simultaneamente do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ministério da Educação?— Os trabalhos envolvem os outros dois ministérios, MCT e MDIC, mas a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] é que será a agência coordenadora.

■ A Capes parece estar passando por uma expansão de suas funções. Porque, além da responsabilidade na formação do pessoal de nível superior ligado às próprias universi-dades, agora sua ação se estende para o pessoal de nível superior que deve atuar nos outros níveis de ensino, e ela ainda passa a ter a gestão da Lei de Incentivo à Pesquisa. É isso mesmo?— Sim, são duas missões que a Capes in-corpora: a de estabelecer a ponte entre a educação superior e a educação básica e a missão de estabelecer a ponte entre a pro-dução científica e a produção material. São duas tarefas gigantescas para a Capes.

■ Isso não esvazia um pouco o MCT, a quem estava ligada historicamente a arti-culação entre o mundo científico e o mundo da produção ?— Mas essa lei de incentivo à pesquisa é uma das dimensões do grande projeto plurianual que o MCT apresentou no ano passado e o governo está aprendendo ca-da vez mais a trabalhar junto. Hoje a rela-ção, por exemplo, do Ministério da Edu-cação com o Ministério da Saúde, no que diz respeito à saúde escolar, com a Cultu-ra, no que diz respeito aos pontos de cul-tura, com o Ministério das Comunica-ções, até com Minas e Energia, é muito intensa. Havia muitas escolas sem energia elétrica e nunca houve uma preocupação de incluí-las no programa Luz para Todos. Então 1,5% dos nossos alunos estudavam em escolas que não tinham energia elétri-ca. Isso vai ser zerado, porque o Ministé-rio das Minas e Energia, provocado pelo MEC, incorporou as escolas públicas no programa Luz para Todos.

■ E, do ponto de vista da articulação do governo federal com os estados e municí-pios, considerando as diferenças políticas, inclusive, como intensificar uma prática de colaboração?— Penso que isso é fruto da consciência histórica sobre o papel da educação para um plano de desenvolvimento nacional. Não é à toa que 25 governadores e mais 4.300 prefeitos em oito meses, pratica-mente, já aderiram ao PDE. E outros es-tados estão em negociação, ajustando detalhes da adesão.

■ Parece-lhe que a população está infor-mada o suficiente sobre essas idéias e no-vidades na educação?— Isso é um trabalho contínuo. Inclusi-ve fizemos um acordo com a Abert [As-sociação Brasileira de Emissoras de Rá-dio e Televisão] pelo qual veiculamos

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mensagens diárias para que a educação se transforme num valor social. Mas a militância dos educadores é essencial para isso, assim como sensibilizar nossa classe política para que ela incorpore a educação à sua agenda como uma variável estratégica do desenvolvi-mento. Penso que a partir do momento em que os indicadores por rede começarem a ser disseminados eles podem provocar um efeito muito importante no plano da política, por exemplo, nas campanhas eleitorais. “Quais as redes que conseguiram promover uma mu-dança efetiva?”, “quais redes que não?”, “por que não?”... Quando as boas práticas começa-rem a ser mais conhecidas pela população elas terão um impacto e casos exemplares certa-mente vão surgir em abril, quando divulgar-mos os dados da segunda radiografia, feita em 2007 – fizemos a primeira em 2005. Duas fo-tografias são quase um filme, assim vamos compondo um filme que vai revelar boas e, infelizmente, más práticas também. Considero que a avaliação sistemática, a divulgação de re-sultados, transparência no trato da coisa públi-ca e periodicidade – a população se habituar a ser informada a cada dois anos sobre o que de fato acontece na escola do seu filho, na rede a que ela pertence – e a evolução dos últimos anos, para saber se está ou não na direção cor-reta, tudo isso vai gerando essa noção de valor e vai responsabilizando. É o que está implícito no conceito de accountability.

■ Não é desanimador observar em andanças pelo país as condições reais de tantas escolas, em par-ticular no ensino fundamental?— Sim e não. Porque eu visitei municípios muito pobres com uma rede bastante em or-dem, do ponto de vista de infra-estrutura e do ponto de vista de auto-estima do magistério. Ou seja, no momento em que se tem uma aná-lise mais detalhada do que de fato se passa no país – e nós estávamos habituados a pensar por médias – aumenta a desesperança. Mas quando passamos a conhecer as experiências concretas e verificamos que, embora a média seja baixa, a variância é grande, concluímos com base nos casos exitosos, nas redes bem organizadas, que é possível mudar. Temos pouco mais de 200 redes bem organizadas no país. A radiografia revelou 235 municípios com um patamar de qualidade da educação muito acima da média nacional e já tangenciando a qualidade de paí-ses desenvolvidos.

■ Indo à questão das práticas de ensino, a sensação para quem há muito tempo não acompanha o dia-a-dia da escola pública, do nível fundamental ou médio, é a de que se ensina de um modo muito distante da dinâmica do mundo contemporâneo. Parece-nos que se passa a idéia do conhecimento como coisa pronta e acabada, aborrecida, burocrá-

tica. O PDE pode de alguma forma incentivar o debate sobre métodos e práticas de ensino? — Sem sombra de dúvida, e a figura central nesse debate é a do professor. Se você me per-guntar a que vou me dedicar mais no período que permanecer aqui, responderei que é à ques-tão do professor. Ele tem que ser valorizado e há duas leis no Congresso que precisam ser aprovadas urgentemente nesse sentido: a pri-meira cria o piso nacional salarial. Não é pos-sível conviver mais com essa situação em que o professor ganha um salário mínimo, R$ 380, Precisamos ter um salário mínimo diferencia-do para o professor de R$ 950. A segunda lei importante é a das diretrizes nacionais de car-reira, dos parâmetros que deverão ser observa-dos pelos planos municipais e estaduais de carreira. Por fim, mas não menos importante, é fundamental instituir a partir da Capes, até o final do ano e de uma vez por todas, um sistema nacional de formação. Um sistema em que to-do professor saiba que formação inicial e con-tinuada são garantias do exercício do magisté-rio, são direitos.

■ O problema então não é tanto o de pesquisar novas formas de ensino e motivação do aluno?— Mas essa atualização tem como fundamento justamente as mudanças pedagógicas, que estão ocorrendo, sobretudo com a incorporação de novas tecnologias à educação. No passado com-právamos laboratório de informática, instaláva-mos nas escolas, mas a maioria dos laboratórios está fechada. Porque faltou o complemento es-sencial, que é a formação do professor. Se ele não sabe fazer bom uso daquela tecnologia, o retorno desse investimento vai ser muito baixo.

■ Para finalizar: é factível investir 7% do PIB em educação como propõe o PDE?— Ele foi pensado para que atingíssemos esse patamar, previsto no Plano Nacional de Edu-cação. Mas o dispositivo foi vetado. Nós enten-demos que o Brasil precisa aumentar os inves-timentos em educação. Se o Plano de Desen-volvimento da Educação for 100% executado nos próximos 4 anos, apenas com a contrapar-te da União a esse esforço nacional estamos falando de mais 0,7% do PIB e aí já estaríamos beirando os 5% de investimento total. Mas o esforço precisa ser nacional: estados, municí-pios e União. Temos que mirar pelo menos 6% do produto, que é a recomendação da Unesco, e, quem sabe, até mais do que isso para, no es-paço de uma geração, alterarmos profunda-mente nossos indicadores.

■ Os recursos federais estão garantidos para que se realize isso?— Estão no nosso plano plurianual e espero que sejam preservados. Não apenas por este governo, mas pelos futuros.

A percepção comum à comunidade científica é de que as ciências têm que adentrar com mais força na educação básica, começando já no ensino fundamental

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18 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

Uma base de dados disponível na

internet permite gerar gratuitamen-

te indicadores baseados nas citações

de trabalhos científicos e classificar

o desempenho e o impacto de revis-

tas acadêmicas e de países. Batiza-

da de SCImago Journal & Country

Rank (www.scimagojr.com), a ferra-

menta é um projeto conjunto entre

o grupo SCImago, formado por pes-

quisadores de quatro universidades

espanholas, e a Elsevier Publishing,

da Holanda, proprietária da Scopus,

base de dados que contém resumos

e referências de cerca de 15 mil pe-

riódicos científicos. A iniciativa faz

parte da ofensiva da Elsevier para

rivalizar com a consagrada Thomson

Scientific, que há anos exerce uma

espécie de monopólio no forneci-

mento de dados sobre produção

científica. A Thomson comercializa

o indicador mais conhecido para me-

dir o impacto de periódicos, ao calcular para cada uma das re-

vistas indexadas no seu Journal Citation Reports (JCR) a média

de citações recebidas no ano de referência de artigos publicados

nos dois anos anteriores. Vai levar tempo até que se avalie a

eficiência da nova ferramenta, alertam especialistas. Ocorre que

é difícil comparar seus resultados com os da Thomson, porque

os dois bancos se baseiam em universos distintos. Nos anos

cobertos pela base de dados SCImago — de 1996 a 2007 — a

Scopus contém até 45% mais registros que a Thomson. "De

todo modo, é muito bem-vindo ter indicadores com base em

uma fonte alternativa", disse à revista Nature Anne-Wil Harzing,

pesquisadora da Universidade de Melbourne, na Austrália.

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de notícias SciDev.Net. Permanecia fechada até o final de janeiro, por exemplo, a universidade Masinde Muliro, na cidade de Kakamega, onde seis pessoas morreram em tiroteios, casas e lojas foram incendiadas e há falta de alimentos. Estudos no campo da agricultura foram interrompidos na Universidade Moi, em Eldoret, uma das regiões que

> Os rastros do ódio

A violência política e étnica que matou perto de mil pessoas no Quênia após as eleições de dezembro já causa prejuízos à ciência do país. Universidades e institutos de pesquisa quenianos atrasaram o reinício das atividades em 2008, de acordo com a agência

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mais sofreram com os protestos. Como a logística de vários projetos de colaboração internacional é sediada no Quênia, alguns pesquisadores da República Democrática do Congo, Ruanda, Sudão e Uganda também interromperam suas atividades. Teme-se que os reflexos da crise comprometam o futuro. “Os esforços para financiar novos projetos foram suspensos”, diz Miriam Gaceri Kinyua, da Universidade Moi. Pelo menos uma notícia deixou o meio acadêmico esperançoso de que a política científica terá continuidade. O presidente reeleito Mwai Kibaki anunciou que o ministro da Ciência e Tecnologia, Noah Wekesa, será mantido no cargo em seu novo mandato.

> O fraudador quer voltar

O sul-coreano Woo Suk Hwang, protagonista de uma das maiores fraudes científicas da história, quer voltar à ativa. Segundo a revista Nature, Hwang pediu ao governo uma licença para trabalhar com células embrionárias humanas – a que ele tinha foi revogada com a descoberta da fraude. Em artigos publicados em 2004 e 2005, o pesquisador descreveu a clonagem de embriões humanos e afirmou que, a partir deles, obteve linhagens de células-tronco embrionárias. No final de 2005 ele admitiu que os resultados foram fabricados. O Ministério da Ciência da Coréia do Sul tomará uma decisão sobre o pedido até abril. O nome

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 19

de Hwang também aparece em pelo menos três artigos científicos resultantes de pesquisas feitas depois que ele foi demitido da Universidade Nacional de Seul. Seu grupo tem financiamento privado e trabalha num laboratório em Seul. Hwang será julgado pelas acusações de fraude, desvio de fundos e de violação de leis.

> A última dos criacionistas

O grupo evangélico Answers in Genesis, que investiu US$ 27 milhões na construção de um museu criacionista nos Estados Unidos, está arrumando uma nova confusão. Acaba de lançar uma publicação devotada a estudos criacionistas cuja aparência lembra a das revistas científicas. Os artigos da Answers Research Journal (ARJ) serão avaliados por pares antes da publicação. Como cientistas sérios não dão lastro para tais escritos, o editor-chefe, Andrew Snelling, explicou à revista Nature que será assessorado por pessoas “que apóiam as posições da

publicação”. Keith Miller, professor da Universidade do Estado do Kansas, conta que já houve publicações desse tipo no passado. E explica o perigo que elas representam. “Pessoas sem formação científica podem não compreender a diferença com uma revista acadêmica genuína e tomar como verdade as crenças dos criacionistas”, afirma.

> Incentivos às empresas

Empresas do Chile que contratarem universidades ou centros de investigação para auxiliar em suas estratégias de pesquisa e desenvolvimento (P&D) receberão incentivos

fiscais. A novidade faz parte de uma lei aprovada pelo Parlamento chileno em janeiro. As companhias poderão usar 35% do dinheiro gasto com impostos para investir em P&D. O Chile investe 0,7% de seu PIB em P&D e apenas 34% de tais

recursos vêm do setor privado. “É evidente que precisamos aumentar a participação privada que, em países desenvolvidos, chega a 70% dos investimentos em P&D”, disse Jorge Babul, chefe do Conselho de Sociedades Científicas do Chile.

O futuro telescópio: câmera ultrapotente

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Durante anos epidemio-

logistas perguntaram-se

se a galopante prolifera-

ção do mosquito Aedes

albopictus não traria sur-

presas desagradáveis.

Afinal, o mosquito de ori-

gem asiática é vetor pa-

ra mais de 20 doenças

virais. Pois no ano pas-

sado o mosquito, depois

de estabelecer-se no sul

da Europa, infectou 200

pessoas na Itália com o

vírus chikungunya, que

raramente mata mas pode causar febre, dor de cabeça, náu-

seas e dores musculares. As pessoas começaram a adoecer

em Castiglione di Cervia e Castiglione di Ravenna, duas lo-

calidades separadas por um rio na província de Ravenna, no início

de julho, disse à revista Science Antonio Cassone do Istituto Supe-

riore di Sanità (ISS), laboratório do governo em Roma. Mas a maio-

ria das vítimas tinha sintomas leves e a doença demorou a ser

identificada. Epidemiologistas italianos acreditam que o surto teve

origem em um homem que se infectou na Índia e viajou para a região

atingida na Itália, onde ficou doente. A Índia sofreu um explosivo

surto em 2006 com mais de 1,2 milhão de casos. Vários países

europeus registraram casos "importados" de chikungunya, mas é

a primeira vez que a doença transmitiu-se dentro da Europa.

Dois bilionários doaram US$ 30 milhões

para a construção do Large Synoptic Sur-

vey Telescope (LSST), telescópio dotado

de um espelho gigante capaz de fornecer

um detalhado panorama de todo o Universo visível. Sua câmera

de 3 mil megapixels é considerada o maior instrumento digital já

desenhado. Bill Gates, o criador da Microsoft, doou US$ 10 milhões.

Já o húngaro Charles Simonyi, ex-programador da Microsoft, deu

US$ 20 milhões, mesma quantia que pagou em 2007 para viajar

à Estação Espacial Internacional a bordo de uma nave Soyuz. O

LSTT será instalado até 2013 nos Andes clilenos e custará US$

260 milhões. Estima-se que, a cada noite, conseguirá acumular 30

terabytes de informação gráfica, o que projeta um registro de 200

mil imagens em dez anos. A Microsoft planeja usar esse acervo

para transformar internautas em exploradores do espaço.

DE OLHO NO UNIVERSO

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Aedes albopictus: vetor de vírus na Itália

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20 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

“Precisamos dar um salto quântico na educação científica e na pesquisa. Essa agenda não pode mais ser adiada. É hora de agir e eu cuidarei disso pessoalmente”, disse o premiê, segundo o jornal The Hindu.

cumprirá a previsão de gastos de € 3,4 bilhões (US$ 5 bilhões). Foi a resposta a uma reportagem da revista alemã Der Spiegel, segundo a qual o projeto deverá custar € 1,5 bilhão a mais do que o previsto. A sombra do fracasso ronda o projeto desde que um grupo de empresas privadas abandonou-o, classificando-o como pouco rentável. Isso obrigou o setor público a reforçar sua participação na iniciativa, que promete livrar os países europeus da dependência do sistema norte-americano Global Positioning System (GPS).

> Em busca de um salto quântico

O primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, anunciou um forte plano de investimentos para pesquisa e educação científica no país. A idéia é, nos próximos cinco anos, criar 30 novas universidades, oito institutos de tecnologia, 1,6 mil escolas politécnicas e 50 mil centros de desenvolvimento de talentos. Um milhão de crianças em idade escolar receberá bolsas de US$ 130 anuais para estimular sua formação científica e outras 10 mil bolsas de US$ 2,6 mil serão distribuídas para alunos que freqüentarem cursos tecnológicos.

> Nuvens sobre o Projeto Galileo

A Comissão Européia saiu a público para assegurar que o seu investimento no Projeto Galileo, um sistema de navegação por satélite,

Crianças indianas: bolsas para educação científica

> PESQUISA FAPESP ONLINE Acesse nosso conteúdo exclusivo em www.revistapesquisa.fapesp.br

O site de Pesquisa FAPESP está de cara nova. O desenho da homepage e das páginas internas foi reformulado para facilitar a navegação. Além de abrigar o conteúdo integral de todas as edições impressas da revista, o site disponibiliza notícias e colunas produzidas com exclusividade para o meio digital. O programa de rádio Pesquisa Brasil, parceria da revista com a rede Eldorado, pode ser ouvido ou baixado no site, onde é possível ler as edições impressas de Pesquisa FAPESP traduzidas para o inglês e o espanhol. Em breve, mais conteúdo criado para o meio digital será incorporado ao novo site.

Nossas Colunas

> Fala sobre temas da física atômica e molecular, como o uso da terapia fotodinâmica na medicina e odontologia e a construção de relógios atômicos

> Escreve sobre como é fazer pesquisa na área médica nos EUA e na mais prestigiosa universidade do planeta

> O botânico da USP comenta estudos sobre plantas, biodiversidade e mudanças climáticas

Fiat luxVanderlei Salvador Bagnato

NeotrópicasMarcos Buckeridge

Direto de HarvardAntonio Bianco

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A Universidade Estadual Paulista (Unesp) planeja criar

um centro de educação profissional e de ensino médio

na Zona Leste de São Paulo. O projeto foi entregue ao

governador José Serra no dia 20 de dezembro de 2007.

O modelo propõe a criação de cursos de ensino médio,

profissionalizantes e de tecnólogos, com estruturas cur-

riculares flexíveis. A idéia é atender cerca de 15 mil es-

tudantes por ano, preferencialmente jovens da região,

que poderiam, mais tarde, ingressar em cursos superio-

res da Unesp sem a necessidade de prestar vestibular,

desde que, é claro, tenham bom desempenho escolar. A

Zona Leste de São Paulo tem cerca de 4 milhões de

habitantes e, desde 2005, abriga uma unidade da Uni-

versidade de São Paulo, a USP Leste. “Um projeto de

inclusão social precisa começar antes do vestibular”,

disse o reitor da Unesp, Marcos Macari, ao jornal Valor

Econômico, ao explicar a decisão de investir no ensino

mé dio. Entre os cursos profissionalizantes destacam-se

os de agente de turismo, automação e controle, eletrôni-

ca, mecânica, desenho e hotelaria. O Centro de Educação

Profissional da Unesp está orçado em R$ 273 milhões para a

fase de implantação, com inauguração prevista em 2010, caso

as obras se iniciem neste ano. A aprovação depende de uma

parceria com a Prefeitura de São Paulo, que deverá oferecer um

ter reno de 24 mil metros quadrados no bairro de Itaquera para

a construção do campus, e com o governo do estado, para a li-

beração de recursos. A Unesp tem experiência no ensino médio,

com colégios técnicos em Bauru, Guaratinguetá e Jaboticabal.

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stricto sensu”, disse Irlau Machado, executivo-chefe do Hospital A.C. Camargo. A instituição atua desde 1953 no atendimento especializado a pacientes com câncer e realiza de forma integrada prevenção, diagnóstico e tratamento ambulatorial e cirúrgico dos mais de 800 tipos de câncer identificados.

> Publique e fature

Os docentes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) serão premiados com gratificações de R$ 15 mil quando publicarem artigos nas revistas científicas Nature ou Science ao longo de 2008. O prêmio deverá ser aplicado obrigatoriamente em custeio ou em pesquisa. O objetivo da iniciativa, lançada pela Pró-Reitoria de Pesquisa da instituição, é estimular a divulgação e internacionalização do conhecimento produzido na Unesp. Além do prêmio individual, o programa também dará incentivos

> Integração num mesmo edifício

O Hospital A.C. Camargo vai reunir em um único espaço físico todas as suas unidades de ensino e pesquisa. Laboratórios e salas de aula das escolas de cancerologia, enfermagem e pós-graduação lato e stricto sensu ficarão concentrados no novo edifício Hilda Jacob, a ser construído ainda este ano, com nove andares. O Centro Internacional de Pesquisa e Ensino (Cipe) tem custos previstos em R$ 14 milhões e permitirá a expansão das atividades científicas e educativas, com a ampliação de cursos e eventos nacionais e internacionais. “O Cipe é uma conseqüência do reconhecimento da instituição não só por sua qualidade de atendimento, mas também pelas duas notas máximas alcançadas consecutivamente na avaliação trienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)para sua pós-graduação

às unidades universitárias e complementares que obtiverem o maior índice por publicação em revistas indexadas no SCI (Science Citation Index, na sigla em inglês) e em periódicos classificados pela

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) como Qualis Internacional A e B e Nacional A. Serão concedidos R$ 400 mil às unidades universitárias e R$ 20 mil às complementares.

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entre agosto de 2006 e julho de 2007, que foi de 11,2 mil quilômetros quadrados, revertendo a tendência de desaceleração do desmatamento observada nos últimos anos. Acontece que o sistema Deter tem uma resolução de apenas 250 metros e é usado para fazer alertas sobre possíveis áreas devastadas, não como ferramenta de diagnóstico preciso. Por isso, os dados do Deter são comparados com outro sistema do Inpe, o Prodes (Monitoramento da Floresta Amazônica por satélite), que se vale de imagens com resolução de 20 a 30 metros, mas só é divulgado uma vez por ano. Só será possível tirar conclusões definitivas em meados deste ano, quando o diagnóstico do Prodes for conhecido.

> Dúvidas sobre o desmatamento

Incertezas sobre a real extensão do desmatamento da Amazônia provocaram uma disputa entre autoridades da área ambiental e da área agrícola e uma crise no governo federal. Dados coletados pelo sistema Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicaram que, entre agosto e dezembro de 2007, foram derrubados 3.235 quilômetros quadrados de floresta. Como o sistema só consegue medir cerca de 50% da área desmatada, os dados sugerem um desmatamento de até 7 mil quilômetros quadrados nestes cinco meses. Isso projetaria uma área derrubada, em um ano, maior do que a registrada

ESTRATÉGIAS BRASIL>>

O Centro de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo,

também conhecido como Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP),

promove entre os dias 25 e 27 de fevereiro o Seminário Internacional

sobre a Tortura, com a ambição de promover um grande debate inte-

lectual sobre a tortura e seus mitos. Dois fatores simultâneos moti-

varam a realização deste seminário, segundo os organizadores. O

primeiro é a reabilitação, sobretudo nos Estados Unidos, do debate

sobre a “eficácia” da tortura, como modo de enfrentar a guerra con-

tra o terror pós-11 de Setembro de 2001, rompendo a condenação

virtualmente unânime a esse tipo de prática que vigorava até então.

O segundo fator é a sobrevivência da tortura no Brasil, mesmo 20

anos após o retorno à democracia, no interior das instituições que

deveriam garantir o cumprimento da lei. A palestra de abertura será

feita por Henry Shue, professor de relações internacionais da Univer-

sidade de Oxford e autor de livros sobre a tortura na guerra contra o

terrorismo. Os quatro painéis do seminário terão a participação de 12

convidados estrangeiros, com a moderação a cargo de especialistas

brasileiros. As inscrições para o seminário podem ser feitas no ende-

reço www.nevusp.org/seminariotortura. O NEV-USP é um dos Centros

de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP.

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de programas de especialização tecnológica. Bolsas de residência serão concedidas com o objetivo de aumentar o número de profissionais e estimular a competitividade das empresas nacionais. Poderão ser financiados projetos de interesse de empresas

> Desenvolvimento de softwares

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) vai destinar R$ 3,4 milhões para o desenvolvimento de softwares, num edital voltado para promover a consolidação

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Unicamp Zeferino Vaz, Knobel passou a chefiar o Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Naturalizou-se brasileiro em 1985. Knobel foi também

e consórcio de empresas, em parceria com instituições de ensino, ciência e tecnologia do país. As propostas devem ser apresentadas até 3 de março. O edital está disponível no endereço www.cnpq.br/editais/ct/2008/001.htm.

> Duas perdas em janeiro

Dois nomes destacados da comunidade acadêmica paulista morreram em janeiro: Maurício Knobel, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aos 85 anos, e Eurípedes Malavolta, ex-diretor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). Malavolta morreu no dia 19 de janeiro,

Jardim Botânico: muito visitado, pouco conhecido

aos 81 anos. Diretor da Esalq entre 1964 e 1970, era especialista em nutrição mineral de plantas e foi responsável pela implantação dos primeiros cursos de pós-graduação da escola. Nos últimos anos, atuou como pesquisador do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) – que ajudou a fundar. Foi o primeiro pró-reitor da USP, em 1970, e primeiro diretor do Instituto de Física e Química de São Carlos, entre 1972 e 1975. Maurício Knobel, um dos maiores nomes da psiquiatria na América Latina, morreu no dia 22 de janeiro, aos 85 anos. Nascido e formado na Argentina, lecionou na Universidade Nacional de Buenos Aires até abril de 1976, quando foi demitido após o golpe militar no país. A convite do então reitor da

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O Jardim Botânico do Rio de

Janeiro, que completa 200 anos

em 2008, é um dos destaques do

14º volume da edição da revista

História, Ciências e Saúde – Manguinhos, editada pela Casa Oswal-

do Cruz (COC), da Fiocruz. Um artigo da historiadora Begonha

Bediaga relembra curiosidades como o plantio da primeira muda,

que, segundo a lenda, foi feito pelo príncipe regente dom João,

e analisa a trajetória da instituição desde sua criação, em 1808,

até a sua incorporação pelo Imperial Instituto Fluminense de

Agricultura (1861). Segundo a pesquisadora, apesar da populari-

dade do espaço para visitação pública, as pesquisas sobre sua

trajetória são incipientes. O texto sustenta que a história do Jar-

dim Botânico carece de um estudo sistematizado e busca com-

preender as razões que provocaram o desinteresse pelo local nas

pesquisas da história das ciências e das instituições. Segundo

ela, o único documento que se destina à conservação da memó-

ria do Jardim Botânico foi escrito por João Barbosa Rodrigues,

diretor da instituição entre 1890 a 1909, a propósito das come-

morações do primeiro centenário.

MONUMENTOBICENTENÁRIO

professor de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, assessor da FAPESP e assessor do Comitê de Psico-Oncologia da Associação Médica Argentina.

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Entre os feriados do Natal e do Ano-Novo, a Câmara Munici-pal do Rio de Janeiro aprovou uma lei que, se for levada à prá-tica, obstruirá uma parte signi-ficativa da pesquisa científica realizada na cidade por institui-

ções como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as universidades federal e es-tadual do Rio de Janeiro e o Instituto Nacional do Câncer (Inca). De autoria do vereador e ator Cláudio Caval-canti, a lei tornou ilegal o uso de animais em experiências cientí-ficas na cidade. “Um ser huma-no que tortura seres domina-dos e incapazes de se defen-der, seres que gritam e cho-ram de dor – seja esse ser um pesquisador ou um psicopa-ta – representa o rebotalho da Criação”, justificou Cavalcan-ti, um destacado militante na defesa dos direitos dos animais, em favor de seu projeto.

A comunidade acadêmica rea-giu. A estratégia foi definida na pri-meira semana de janeiro, numa reunião entre o secretário de Ciência e Tecnolo-gia do estado do Rio, Alexandre Cardo-so, e pesquisadores de várias institui-ções. A bancada de deputados federais do estado será mobilizada para ajudar a aprovar um projeto de lei que tramita no Congresso há 12 anos e estabelece normas para a utilização criteriosa de animais em experimentação. A lei mu-nicipal perderia efeito se o projeto fede-

ral sair do papel. Paralelamente, os pes-quisadores também decidiram partir para a desobediência e ignorar a lei. “Continuaremos trabalhando com ani-mais de laboratório, cujos protocolos foram aprovados pelos comitês de éti-ca, e com animais das instituições de

pesquisa”, diz Marcelo Morales, presi-dente da Sociedade Brasileira de Biofí-sica (SBBf) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos líderes da reação dos cientistas.

Acontece que a interrupção do uso de animais geraria prejuízos imediatos com repercussão nacional, como a falta

de vacinas, inclusive a de febre amarela. O controle de qualidade dos lotes de va-cinas fabricados no Rio pela Fiocruz é feito por meio de animais de laborató-rio. A inoculação em camundongos atesta a qualidade dos antígenos antes que eles sejam aplicados nas pessoas. Sem poder usar roedores, a distribuição de vacinas como a de hepatite B, raiva, meningite e BCG teria de ser interrom-pida, por falta de segurança. “Também é

fundamental esclarecer à popula-ção que, se essas experiências forem

proibidas na nossa cidade, todos os nossos esforços recentes para descobrir vacinas para a dengue, a Aids, a malária, a leishmanio-se seriam jogados literalmente no lixo”, diz Renato Cordeiro, pesquisador do Departamento de Fisiologia e Farmacodinâ-mica da Fiocruz. Marcelo Mo-

rales enumera outros prejuízos. “Pesquisas sobre células-tronco

no campo da cardiologia, da neu-rologia e de moléstias pulmonares e

renais, lideradas por pesquisadores da UFRJ, e de terapias contra o câncer rea-lizadas pelo Inca teriam de ser interrom-pidas”, afirma.

O imbróglio do Rio de Janeiro pre-ocupa pesquisadores de todo o país porque não é um caso isolado. Em no-vembro, vereadores de Florianópolis também proibiram o uso de animais em práticas de ensino e pesquisa no município. Em 2005, a Assembléia Le-gislativa paulista aprovou uma lei que,

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Experiências com animais seguem imprescindíveis,

ao contrário do que dizem ativistas

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além de coibir os rodeios e cercear os abatedouros, proíbe o uso de animais em pesquisa caso haja dor. A lei ainda carece de regulamentação e sua cons-titucionalidade está sendo contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). “A pressão está aumentando e nós não estamos conseguindo mostrar à população o que está em jogo”, diz João Bosco Pesquero, professor de biofísica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor-geral do Centro de Desenvolvimento de Mo-delos Experimentais para Medicina e Biologia (Cedeme), o biotério da uni-versidade. “As pessoas se posicionam contra o uso de animais em pesquisas sem perceber que isso é fundamental para o desenvolvimento dos remédios que elas compram nas farmácias e que permitiu avanços que aumenta-ram a expectativa de vida da humani-dade”, destaca Pesquero.

Walter Colli, professor do Instituto de Química da USP, observou, em artigo assinado em outubro de 2006 na revista Ciência Hoje em parceria com Maria Jú-lia Manso Alves, que os cientistas preci-sam divulgar melhor a ciência e seus métodos, a fim de não perder o apoio da opinião pública para uma atividade es-sencial para o progresso. “Até há pouco tempo, o cientista era visto como um benfeitor da humanidade. No entanto, no presente, ele é muitas vezes apontado

como um profissional frio e calculista, sem sentimentos. Grupos que pensam assim estão equivocados, já que nenhum cientista, em sã consciência, teria prazer em maltratar animais”, escreveu Colli.

A briga que esquenta no Brasil é uma velha conhecida de países como os Esta-dos Unidos e a Inglaterra, onde grupos bastante articulados costumam promo-ver protestos ruidosos em universidades e já chegaram a atacar fisicamente pes-quisadores envolvidos com experiências. Nesses países, a garantia de que os ani-mais são tratados de forma ética vem de legislações restritivas que, em linhas ge-rais, proíbem o uso fútil desses modelos e exigem transparência dos cientistas. A lei inglesa está em vigor desde 1876. É a experiência internacional que inspira os pesquisadores brasileiros a defender a aprovação de um projeto de lei apre-sentado em 1995 pelo então deputado e médico Sérgio Arouca (1941-2003). A chamada Lei Arouca estabelece, por exemplo, que só se deve utilizar animais de laboratório caso não haja outro meio de testar a hipótese da pesquisa e que a utilização dos modelos deve ser moni-torada por comitês de ética específicos para essa finalidade formados em cada instituição. Todo o sistema seria coorde-nado por um conselho nacional, com-posto por cientistas e representantes de ministérios, encarregado de formular normas relativas à utilização ética de animais e zelar pelo seu cumprimento.

A aprovação da lei, diga-se, pouco afetaria a rotina das principais univer-

sidades do país, que nos últimos dez anos já se adaptaram aos ditames do projeto de Arouca. Mas teria o dom de garantir a disseminação das normas em instituições de pesquisa de regiões mais pobres, que nem sempre dispõem de condições financeiras de manter bioté-rios adequadamente. Para Marcelo Mo-rales, presidente da SBBf, a criação de um marco legal é essencial e sua ausên-cia gera uma situação de incerteza, que causa constrangimento a pesquisado-res. “Mesmo fazendo experimentos com protocolos aprovados na comissão de ética da UFRJ, Leopoldo de Meis, um dos mais respeitados cientistas do Brasil, por exemplo, foi acusado de maus-tratos a animais e acabou intima-do a depor na delegacia”, contou. De Meis, que é professor do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ, foi acusa-do em dezembro de 2006 de torturar animais, expondo-os a um frio de 4ºC, com base numa fotografia tirada em seu laboratório pelo telefone celular de uma ativista. Na delegacia, o cientista explicou que a maior parte dos coelhos do mundo vive naturalmente nessa temperatura e foi liberado.

Proibido fumar - As entidades antivi-visseccionistas costumam esgrimir um conjunto articulado de argumentos, que tem conquistado corações e mentes de políticos e eleitores. O principal de-les dá conta de que os bichos são víti-mas de maus-tratos e de tortura. “Afir-mo que os animais de laboratório vi-vem em condições de alimentação, de manutenção e de conforto melhores do que boa parte da população brasileira. E isso ocorre porque é essencial ter ani-mais em boas condições de saúde para as experiências científicas”, diz Luiz Eu-gênio Mello, professor de fisiologia da Unifesp e presidente da Federação das Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe). As regras seguidas pelo bioté-rio da Unifesp, que fornece a Luiz Eu-gênio animais para suas pesquisas sobre fisiologia e o estudo da epilepsia, se-guem minúcias como o tempo máximo (12 horas) que se pode impor de jejum a um animal antes que ele seja operado e a adoção de regime de ventilação que permita de 15 a 20 trocas totais de ar por hora no ambiente em que vivem os bichos. É terminantemente proibido fumar no biotério.

Nove em cada dez experiências usam roedores, baratos de manter e fáceis de manusear

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Sacrifício de coelhos pela indústria de cosméticos deu fôlego aos ativistas

Quanto à idéia da tortura, Luiz Eu-gênio lembra que os comitês de ética de pesquisa instalados desde os anos 1990 em todas as universidades e instituições de pesquisa já realizam um monitora-mento ético das experiências com ani-mais, com exigências em relação ao uso de anestésicos e de analgésicos e da eu-tanásia sem dor depois da sua utiliza-ção. Agências como a FAPESP e o CNPq também fazem exigências sobre o uso de animais para fomentar projetos. “Evidentemente, se eu estou testando um medicamento para dor ou para an-siedade, não conseguirei avaliar a eficá-cia sem submeter o animal à dor ou a uma situação de ansiedade. Mas esse tipo de desconforto a que o animal é submetido é sempre controlado e quan-

tificado, caso contrário não é possível mensurar o resultado da experiência”, afirma Luiz Eugênio.

Outro argumento corrente dos de-fensores dos direitos dos bichos é que o uso de animais se tornou obsoleto com o surgimento de alternativas para as ex-periências. “De fato, existem alternati-vas, mas nem todas são válidas e podem ser utilizadas. À medida que as alterna-tivas forem desenvolvidas e validadas, os pesquisadores serão os primeiros a utilizá-las. O importante para o pesqui-sador é a validade do seu resultado, sendo ele produzido com animais ou com técnicas alternativas”, diz Marcel Frajblat, professor da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Itajaí (SC), e presidente do Colégio Brasileiro de

Experimentação Animal (Cobea). “No caso dos medicamentos, eles têm de passar por pelo menos três espécies animais antes de serem comercializados. Não existem alternativas, fora do uso de animais, para testar um medicamento antes de ele ser encaminhado para testes pré-clínicos em seres humanos”, diz Frajblat. Milton de Arruda Martins, professor titular da clínica médica da FMUSP, dá exemplos: “Medicamentos contra a Aids e contra o câncer têm de ser bastante potentes e a experimenta-ção animal vem sendo fundamental para avaliar tanto os efeitos benéficos como os colaterais”. Da mesma forma, diz Martins, o desenvolvimento de vaci-nas exige, a certa altura, que o antígeno seja aplicado num organismo vivo para averiguar sua capacidade de produzir anticorpos. “Temos duas opções: testá-los em animais ou aplicá-los direta-mente em seres humanos. Não há uma terceira opção e a sociedade precisa sa-ber disso”, afirma.

É certo que o argumento da obsoles-cência de aplicações dos modelos ani-mais baseia-se em premissas que fazem sentido. De fato, certos usos caíram em desuso, alguns por razões éticas, e, sim, surgiram opções capazes de aposentar o uso de animais em vários tipos de expe-riência. Mas os avanços científicos, com as novas perguntas e desafios que im-põem aos pesquisadores, fazem brotar novas aplicações de modelos animais a cada dia – e não há razões para acreditar que isso vá mudar.

Nocaute genético - Regina P. Markus, professora do Departamento de Fisiolo-gia do Instituto de Biociências da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Far-macologia e Terapêutica Experimental (SBFTE), dá um exemplo de uso obsole-to. Ela lembra que, na década de 1930, foi desenvolvida uma técnica para diagnos-ticar gravidez: aplicava-se urina de uma mulher em ratas e avaliava-se se seu útero se dilatava, efeito da tempestade hormo-nal feminina que se segue à fecundação. “É evidente que hoje não faria nenhum sentido fazer um teste de gravidez dessa forma, mas foi utilizando essa técnica que se descobriu o modo atual de fazer o diagnóstico.” Durante as décadas de 1980 e 1990, a experimentação em ani-mais cedeu à biologia molecular parte do espaço que ocupava. “O estudo de

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genes e proteínas valendo-se de modelos celulares foi tão disseminado que os estu-dos fisiológicos envolvendo animais de experimentação perderam força”, escreveu Antonio Bianco, professor associado de medicina da Universidade Harvard, em sua coluna no site de Pesquisa FAPESP (www.revistapesquisa.fapesp.br).

Nos últimos anos, contudo, aconte-ceu uma notável reviravolta. A possibi-lidade de criar linhagens de animais com inativação ou indução de um ou mais genes deu um novo impulso à pes-quisa com animais, como destacou Bianco. Os geneticistas norte-america-nos Mario Capecchi e Oliver Smithies e o inglês Martin J. Evans ganharam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2007 pela criação de uma tecnologia, conhecida como nocaute genético, que permite inativar certos genes e monito-rar os efeitos dessa ação, o que leva à construção do quadro do desenvolvi-mento da doença. Até o momento, mais de 10 mil genes de ratos foram “nocau-teados”, e muitos outros devem passar pelo mesmo processo em um futuro próximo. O resultado são mais de 500 modelos de doenças humanas, incluin-do problemas cardiovasculares e neu-rodegenerativos, diabetes e câncer. “A evolução do conhecimento na genômi-ca fez explodir o uso de camundongos

como ferramenta de pesquisa”, diz José Eduardo Krieger, professor associado do Departamento de Clínica Médica da FMUSP e pesquisador do Instituto do Coração, de São Paulo.

Alma racional - Os primeiros relatos conhecidos de uso de animais em expe-rimentações remontam há mais de 2 mil anos, quando Hipócrates (450 a.C.) realizou estudos que relacionavam ór-gãos humanos doentes com os de ani-mais para fins didáticos. As investiga-ções com modelos animais ganharam fôlego a partir do século XVI. Em 1638, William Harvey publicou um livro em que expôs estudos experimentais sobre a fisiologia da circulação sangüínea fei-tos em 80 espécies diferentes. Atribui-se ao filósofo francês René Descartes (1596-1650) um aval às experiências, ao alegar que os homens eram dotados de uma alma racional e os animais, não. Já o inglês Jeremy Bentham (1748-1832) foi um dos primeiros a apresentar um contraponto à visão cartesiana, ao for-mular questionamentos éticos acerca do sofrimento imposto aos animais. “Pro-vavelmente, a partir das idéias de Ben-tham aparecem as primeiras ações com relação à proteção aos animais no sécu-lo XIX”, escreveram Marcia Raymundo e José Roberto Goldim, pesquisadores

do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, autores do artigo “Ética da pesquisa em modelos animais”.

O advento das primeiras socieda-des de proteção aos animais no século XIX já mobilizou cientistas. Em 1865, o médico Claude Bernard justifica a utilização dos animais de forma vee-mente em seu livro Uma introdução do estudo da medicina experimental. “Nós temos o direito de fazer experimentos animais e vivissecção? Eu penso que temos este direito, total e absolutamen-te. Seria estranho se reconhecêssemos o direito de usar animais para serviços caseiros, para comida, e proibir o seu uso para a instrução em uma das ciên-cias mais úteis para a humanidade. A ciência da vida pode ser estabelecida somente através de experimentos e nós podemos salvar seres vivos da morte somente após sacrificar outros”, escre-veu Bernard.

Na avaliação de Luiz Eugênio Mello, da Fesbe, a defesa do direito dos animais ganhou articulação no século XVIII com o advento do conceito do “bom selva-gem”, cunhado por Jean-Jacques Rousseau em alusão às qualidades superiores que, a seu ver, tinham os indivíduos que vi-viam no estado da natureza. “O senti-mento de que o homem é um corruptor da natureza surgiu na Revolução Indus-

trial e não deixou de existir”, diz. “Ele frutificou na defesa dos direitos dos animais, no discurso dos ecologistas e, mais recentemente, na oposi-ção aos transgênicos. Como utopia é bonito e, sem dúvida, rende belos roteiros aos estú-dios Walt Disney. Mas o mun-do real é bem diferente. Mui-tas pessoas gostam de comer carne. E a pesquisa científica, que aumentou a expectativa de vida da humanidade e via-bilizou remédios e tratamen-tos, foi totalmente calcada em experimentos com modelos animais”, diz. “É uma utopia ignorar que dependemos de nos alimentar de vegetais e de outros animais para sobrevi-ver. Para você existir, alguma outra coisa tem que deixar de existir. Esse é um fato da na-tureza”, afirma Luiz Eugênio. Marcel Frajblat, presidente do Investigações com modelos animais ganharam impulso a partir do século XVI

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Os cientistas rejeitam

a tese de que

discriminam os

animais, pois muitos

avanços obtidos

tiveram impacto

na veterinária

Cobea, aponta uma questão de fundo: a sociedade, incluindo os vereadores do Rio e de Florianópolis, tem uma percepção errada de como a ciência é produzida, associando o uso de animais em pesquisa a maus-tratos e não percebendo o bene-fício deste uso no seu dia-a-dia. “E muitos dos que militam contra o uso de animais pensam mais em si e nos animais do que nas pessoas que precisam de medicamen-tos e terapias desenvolvidos com a ajuda de modelos animais”, afirma Frajblat.

Beneficiários - O antivivisseccionismo recebeu uma injeção de ânimo a partir dos anos 1970, com o livro Libertação animal, do australiano Peter Singer, professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, que, entre outras denúncias, chocou ao mostrar os testes de toxicidade de cosméticos feitos em olhos de coelhos. Singer é um dos for-muladores do termo “especismo”, dis-criminação que pressupõe que os inte-resses de um indivíduo são de menor importância pelo mero fato de se per-tencer a uma determinada espécie. Nes-te aspecto, curiosamente, há espaço para convergência. A idéia de que re-médios, tratamentos e técnicas cirúrgi-cas devem ser testados primeiro em animais para só depois serem experi-mentados em seres humanos baseia-se, sem dúvida, na concepção da primazia humana. Mas os cientistas rejeitam a idéia de que há vencedores e vencidos. “A experimentação com modelos ani-mais ajudou a desenvolver tratamentos, medicamentos e procedimentos para a veterinária e hoje os animais também são beneficiários diretos disso”, diz Luiz Francisco Poli de Figueiredo, professor titular de técnica cirúrgica da Faculda-de de Medicina da USP.

Não se imagine que o sacrifício de animais de laboratório é assunto bem resolvido entre os pesquisadores. A ge-neticista Mayana Zatz, pró-reitora de Pesquisa da USP, é uma defensora do uso dos animais em experiências cien-tíficas. “Sem eles, toda a pesquisa que está sendo feita com células-tronco se tornaria inviável. Não dá para aplicar

em humanos sem primeiro testar exaustivamente em modelos animais”, ela afirma. Mayana, contudo, prefere delegar a seus assistentes e orientandos a tarefa de sacrificar animais. “Eu olho de longe. Não gosto de matar bicho, da mesma forma que não como carne. Mas não é porque eu tenho dificuldade de trabalhar com modelo animal que vou esquecer que eles são absolutamen-te necessários para a pesquisa”, afirma. A professora Regina P. Markus, do Ins-tituto de Biociências da USP, já se acos-tumou a administrar esse tipo de pro-blema. “Nunca vi nenhuma dificuldade no uso de animais por alunos de medi-cina. Eles sabem claramente que isso tem uma justificativa, que é o avanço de

A animação Ratatouille: utopia sobre bichos rende roteiros para filmes

Mario Capecchi e o rato modificado, cuja

tecnologia lhe rendeu o Nobel de 2007

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A mobilização dos

defensores dos

direitos dos animais

forçou os

pesquisadores

a aperfeiçoar

procedimentos éticos

e prevenir exageros

terapias ou cirurgias. Isso já não ocorre com vários estudantes de biologia. É comum haver, entre eles, jovens que querem seguir carreira com viés con-servacionista e têm dificuldade em tra-balhar com animais. Já vivi situações no laboratório em que eu própria tive de sacrificar animais, porque nenhum estudante se habilitou para a tarefa”, con ta. Regina diz que o importante, em situações como essa, é não fazer julga-mentos. “Trata-se de uma questão de foro íntimo, que precisa ser respeitada. O importante é manter o consenso de que o uso dos animais é fundamental para a pesquisa”, destaca a professora.

A favor dos defensores dos direitos dos animais, deve-se dizer que sua mobi-

lização teve um papel na construção do conjunto de procedimentos éticos em experimentação. Um episódio ocorrido em 1988 ilustra essa influência. Na oca-sião, o então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, proibiu o Centro de Zoonoses do município de fornecer cães recolhidos das ruas para experiências em universi-dades e institutos de pesquisa. Jânio ce-deu aos apelos de sua mulher, Eloá, que adorava cachorrinhos e considerava cruel o destino que os animais de rua tinham nas mãos dos pesquisadores. A reação dos pesquisadores foi forte e a prefeitura aca-bou cedendo. O tempo passou e o que era tido como imprescindível nos anos 1980 tornou-se condenável segundo os crité-rios éticos atuais. Boa parte daqueles cães de rua era usada em experiências de sala de aula, nas quais se treinava, por exem-plo, a habilidade de futuros médicos em usar o bisturi ou fazer suturas. “Atual-mente a utilização de animais para de-monstração em aulas está bastante redu-zida e foi sendo substituída por outras técnicas. A pressão das entidades dos di-reitos dos animais e de muitos alunos mudou esse costume”, diz Mirian Ghiral-dini Franco, professora da Unifesp e coor-denadora do Cedeme. Também ajudou a erradicar o uso de cães de rua nas institui-ções paulistanas o fato de os animais terem saúde precária, podendo contaminar pes-quisadores e alunos. “Hoje só se faz pes-quisa com animais que apresentem condi-ções ideais de saúde. Revistas internacio-nais não publicam artigos envolvendo experiências com animais criados preca-riamente”, afirma Mirian.

Ralos à prova de fugas - A necessidade de criar animais de qualidade para pes-quisa provocou uma transformação nos biotérios. O novo Centro de Bioterismo da FMUSP foi inaugurado em 2002 com investimento de R$ 5 milhões. O edifício teve de ser adaptado para que se encai-xasse nos padrões da International Council for Laboratory Animal Science (Iclas) e da Association for Assessment and Accreditation of Laboratory Animal Care International (Aaalac), duas enti-dades que regulam esse tipo de centro

Treinamento de sutura em rato de plástico: se há alternativa, não se usa modelo animal

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Hoje só se faz

pesquisa com animais

em condições ideais

de saúde. Revistas

científicas

não aceitam trabalhos

feitos sem controle

ético e sanitário

no mundo. Foram desenvolvidos em parceria com indústrias de material de construção ralos à prova de fugas, tinta resistente aos produtos de limpeza, por-tas de aço com fechamento pneumático, sistemas de ar condicionado, entre ou-tros. “Para se produzirem animais mais adequados para pesquisas, com variabi-lidade genética menor e criados em con-dições ambientais e sanitárias controla-das, foi necessário investir em grandes biotérios, que são estruturas caras de se manter”, afirma Roger Chammas, pro-fessor associado e diretor do Centro de Bioterismo da FMUSP.

A racionalização do uso de animais segue o modelo proposto em 1959 pelo zoologista William Russell e pelo mi-crobiologista Rex Burch, que estabele-ceram os três erres da pesquisa em ani-mais: Replace, Reduce e Refine, na qual a utilização é permitida, mas deve ser reduzida ao mínimo e substituída sem-pre que possível por outras técnicas. No ano passado, o biotério da Unifesp, que fornece 2 mil ratos e 5 mil camundon-gos por mês, deu um passo importante rumo à racionalização. Passou a cobrar pelos animais de laboratório – os valo-res variam de R$ 5 a R$ 50 (camundon-gos transgênicos são os mais caros). A medida fez com que a demanda caísse 50%, numa evidência de que o uso, até

então, era exagerado. Na Faculdade de Medicina da USP, os cães foram aboli-dos dos experimentos e o treinamento de estudantes em técnicas cirúrgicas, por exemplo, é realizado em animais que foram utilizados em pesquisas re-levantes e seriam descartados, sempre com uso de anestesia e analgesia. O aprendizado de técnicas de sutura e de implante de enxertos, que antes usava cães vivos, hoje é feito em segmentos de animais já sacrificados – e até em lín-guas de boi compradas no açougue.

Colaborou para a redução do uso de animais na FMUSP a criação de novas técnicas para treinamento de estudan-tes, como um simulador de cirurgias por laparoscopia, aquelas feitas por meio de uma tela de computador, que submete o estudante a situações reais, além de ratos de plástico e de mane-quins nos quais é possível reproduzir algumas situações reais. “São recursos que substituem o uso de animais com eficiência na fase inicial do treinamen-to, assim como preparam muito me-lhor o estudante e o profissional para uma prática clínica adequada”, diz Luiz Francisco Poli de Figueiredo, professor titular de técnica cirúrgica da Faculda-de de Medicina da USP.

Primatas - A racionalização obedece a demandas econômicas. Hoje nove em cada dez experiências envolvem ratos e cobaias, muito mais fáceis de manusear e baratos de manter, enquanto dimi-nuiu o uso de cachorros e gatos. Cresce a aplicação do zebrafish, um peixinho de aquário conhecido como paulisti-nha, que se reproduz rapidamente e tem muitos genes semelhantes aos dos seres humanos. “O uso ainda é inci-piente, mas o modelo é bastante pro-missor. É um vertebrado translúcido, que pode ser facilmente observado, é prolífico em produzir embriões e tem um custo de manutenção baixo”, afirma o pesquisador José Xavier Neto, coor-denador do Núcleo Multiusuário de Animais Transgênicos da FMUSP e pesquisador do InCor.

A utilização de primatas, que sem-pre foi controverso pela semelhança com os homens, segue polêmica e di-fícil. Mas os macacos ainda são con-siderados indispensáveis em pesqui-sas como a de vacinas contra a Aids, pela semelhança com o organismo humano, e eles vêm sendo cada vez mais requisitados na pesquisa em neurociên cia. “Nunca tive dificuldade em conseguir autorização para utili-zar macacos nos Estados Unidos e acho a decisão da Câmara Municipal do Rio de Janeiro um absurdo, um re-trocesso e uma grandíssima bobagem”, resume Miguel Nicolelis, professor brasileiro da Universidade Duke, au-tor de pesquisas pioneiras envolvendo a comunicação entre o cérebro de ma-cacos e próteses robóticas. ■

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AGRONEGÓCIOS

África: Embrapa tem apoio de organismos internacionais para projetos de uso sustentável de recursos naturaisFA

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AEmpresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada em 1973 como empresa pública de direito privado, tornou-se um centro de excelência em pesquisa e desenvol-vimento (P&D). A empresa, que está comple-tando 35 anos, quer agora transformar esse conhecimento em riqueza. “Estamos diante

da oportunidade de implementar parcerias externas e de nos associarmos com o setor privado no Brasil em negócios com enorme potencial de geração de recursos por meio de transferência de tecnologia, royalties de patentes, licenciamento de uso, entre outros”, diz Silvio Crestana, diretor-presidente da Embrapa.

Essa estratégia exigirá, no entanto, uma outra arqui-tetura institucional e a criação de novas unidades de negócios que consolidem a presença da Embrapa no mercado internacional e fortaleçam a parceria com o setor privado. O modelo de atuação da empresa e seu Plano Diretor para o período 2008-2010 – batizado co-mo PAC da Embrapa, em referência ao Plano de Acele-ração do Crescimento de vários setores da economia – já estão prontos e deverão ser anunciados pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril.

A atuação externa da Embrapa iniciou-se em 1997, com um programa de investimentos nos Estados Uni-dos e na Europa conhecido como laboratórios no ex-terior (Labex). Também opera na África e, recente-mente, começou negociações para firmar parcerias com China, Japão e Coréia.

A presença internacional da Embrapa segue mode-los de ação diferentes em cada uma das regiões do pla-neta. Os Labex, por exemplo, são laboratórios de pros-pecção e parceria tecnológica com países do hemisfério Norte. O primeiro foi instalado em Maryland, em Wa-shington, em parceria com o Agriculture Research Ser-vice (ARS), com o objetivo de acompanhar pesquisas nas áreas de biotecnologia, nanotecnologia, mudanças climáticas, agroenergia e bioenergia. “Precisamos estar antenados nos cenários futuros da tecnologia agrícola”, explica. “Fizemos juntos um mapa do caminho para a produção do etanol, soja, milho e suínos.”

O Labex norte-americano é liderado por cientis-tas seniores, com grande experiência em pesquisa. O próprio Crestana ocupou esse cargo antes de assumir

Inovação institucional

deve consolidar a presença

da empresa na África, Europa e América Latina

CL AU D I A IZ I Q U E

O PAC da Embrapa

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o comando da empresa, em 2005. Na França, o Labex compartilha a rede de pesquisas de três centros de investiga-ção do pólo de ciência e tecnologia de Agrópolis, em Montpelier, e na Holan-da, que trabalha com a Universidade de Wageningen em investigações sobre biologia avançada e genômica.

A relação da Embrapa com os par-ceiros do hemisfério Norte é de troca. “Temos liderança na agricultura tropical e eles na de clima temperado. Consegui-mos criar um modelo de equilíbrio”, justifica. Esse também deverá ser o cará-ter dos Labex que a Embrapa quer ins-talar na China, Coréia e Japão. “Nesses países há instituições de pesquisa conso-lidadas, com pessoal muito qualificado. Dá para ter política de cooperação.”

Agenda triangular - No hemisfério Sul o modelo é distinto. “Aqui a nossa posição é de liderança, já que o Brasil tem hegemonia científica e tecnológica. Não há exatamente troca tecnológica, embora exista alguma cooperação em investigações nas áreas de mudança cli-mática e biodiversidade, entre outras. O interesse na pesquisa é secundário” , compara Crestana. “A relação é de agro-negócio ou de cooperação humanitá-ria”, sublinha.

A Embrapa inaugura, em maio, um escritório de negócios tecnológicos na Venezuela, país que importa da Colôm-bia e dos Estados Unidos 75% do ali-mento consumido pela população. O governo quer reduzir essa dependência e, em médio prazo, produzir leite, ovos e frango. “Vamos transferir tecnologia de produção de milho, soja e forragei-ras, além da nossa experiência em ge-nética”, adianta Crestana.

O compromisso, que envolve parce-ria com o Instituto Nacional de Investi-gaciones Agrícolas, foi firmado entre os dias 12 e 13 de dezembro do ano passa-do, quando Crestana acompanhou o presidente Lula em viagem a Caracas.“O escritório será auto-suficiente: deve se pagar, em médio prazo, e gerar recursos para a Embrapa”, sublinha Crestana.

O escritório da Venezuela integrará a Embrapa Internacional cuja consti-tuição está prevista no Plano Diretor. A expectativa é que ele se transforme no embrião da Embrapa América Latina.

O acordo firmado com Gana, na África, também se pauta por regras de

mercado. “Temos pacotes tecnológicos que podem ser transferidos e adaptados às demandas desses países”, ele diz. Nes-se país africano a Embrapa desenvolve projetos de uso sustentável de recursos naturais, sistemas produtivos e prote-ção sanitária de plantas e animais, fru-ticultura e horticultura tropical, zonea-mento agrícola, biotecnologia e troca de material genético, entre outros.

Mas, no caso de Moçambique, An-gola e Guiné-Bissau, a atuação da Em-brapa tem caráter de “cooperação hu-manitária” e obedece a uma “agenda triangular”: a capacitação de pessoal ou transferência de tecnologia é financiada por terceiros, como o Banco Mundial

(Bid), Banco Interamericano de Desen-volvimento (Bird) e a Fundação Melin-da e Bill Gates, entre outros. A Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jaika), por exemplo, bancou o progra-ma de apoio à produção de caju e de leite na Guiné-Bissau.

“A nossa agenda internacional tem grande repercussão na política externa do Brasil”, enfatiza Crestana.

Parceiros privados - Além da Embra-pa Internacional, o novo modelo insti-tucional também prevê a criação da Embrapa Participações, que permitirá à empresa atuar como acionista mino-ritária da Empresa de Propósito Espe-cífico (EPE) para pesquisa e desenvol-vimento de projetos, por exemplo, na área de bioenergia. “Já propusemos a EPE em lignocelulose para desenvolver

Soja: parcerias para transferir tecnologia a países latino-americanos

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tecnologia de segunda geração na pro-dução de etanol. Trata-se de um negó-cio de R$ 100 milhões. Só falta superar o desafio da gestão do empreendimen-to”, exemplifica Crestana (ver Pesquisa FAPESP, edição n° 135).

A inovação institucional é uma mu-dança estratégica para o futuro da em-presa. “O Brasil hoje é parceiro global, deixou de ser Jeca Tatu”, diz Crestana. O país tem presença forte no mercado mundial de carne e é “a bola da vez”, como ele diz, na produção de alimen-tos, energia e fibras. “Tem que exercer essa liderança”, adverte.

Para tanto, é preciso atender às exi-gências de sustentabilidade social e am-biental demandadas pelo mercado ex-terno e garantir competitividade em matéria de qualidade e preço. “Do pon-to de vista tecnológico, o grande desafio é a rastreabilidade dos produtos. Temos que ser capazes de mostrar a origem e o destino do produto e garantir a qua-lidade de insumos utilizados na produ-ção que devem estar de acordo com especificações”, exemplifica.

O PAC da Embrapa também prevê a revitalização dos sistemas estaduais de pesquisa agropecuária (OEPAs). “Nos últimos 15 anos, o sistema perdeu força porque a Embrapa não tinha fôlego pa-ra manter programas de treinamento nem dinheiro para financiar projetos dessas instituições”, justifica Crestana. Algumas dessas instituições foram fe-chadas e outras estão sucateadas, “à míngua”. As novas perspectivas e os de-safios que se colocam para a agropecuá-ria e a agroindústria brasileira vão exigir, no entanto, uma nova rodada de inves-timentos em pesquisa. “E a Embrapa não será capaz de fazer isso sozinha. Aliás, não cabe a ela fazer sozinha. O seu modelo original de funcionamento pre-via a colaboração dos sistemas estaduais”, lembra Crestana. Às organizações esta-duais caberia desenvolver pesquisa adaptativa e aplicada. “Não vamos mon-tar uma unidade da Embrapa em Mato Grosso para testar a adaptabilidade de uma soja desenvolvida em Londrina”, diz. Para isso deveria existir parceria com os estados. “Com prometemo-nos a treinar técnicos pa ra a extensão rural e acompanhar o desenvolvimento.”

O esforço de recuperação das OEPAs começou, na verdade, no ano passado, quando a Embrapa conseguiu R$ 11,8

milhões em emendas parlamentares para apoiar essas instituições. “Foi criada uma frente parlamentar para apoiar o sistema”, explica Crestana. O PAC da Embrapa vai destinar R$ 300 milhões para investimentos na infra-estrutura das OEPAs, que também contarão com recursos de um progra-ma especial do PAC da Ciência e Tec-nologia. “Somados esses recursos, pode-se afirmar que as organizações estaduais de pesquisa agropecuária terão um volume importante de recur-sos para fazer pesquisa nos próximos anos.” O projeto prevê a contrapartida dos estados. “Estamos negociando es-tado por estado”, adianta.

Mais pesquisadores - O PAC da Em-brapa também prevê reforço no orça-mento e no quadro de pessoal. No ano passado, a empresa já realizou um or-çamento recorde de R$ 1,150 bilhão, inferior apenas ao exercício de 1996, quando a empresa contou com um orçamento de R$ 1,4 bilhão, corrigido pelo IGPDI. “Saímos de um patamar de R$ 790 milhões, em 1996, e evoluí-mos a uma taxa maior do que 10% ao ano, enquanto a economia brasileira crescia uma média de 3%”, compara Crestana. A expectativa neste ano é romper a barreira do R$ 1,4 bilhão e superar a marca de 1996.

A empresa também vai ampliar o quadro de pessoal, principalmente de doutores. Neste ano vai preencher as 300 vagas disponíveis no quadro au-torizado de 8.632 vagas e chegar a 2010 com 10.243 empregados, dos quais 2.294 são pesquisadores, a gran-de maioria com doutorado. “Vamos contratar mais 752 pesquisadores”, ele adianta. Ele não teme cortes de gastos do governo. “Viajei com o pre-sidente Lula na madrugada do dia em que o Senado Federal derrubou a CPMF. Perguntei ao presidente se isso prejudicaria nosso projeto de moder-nização da Embrapa e ele garantiu que não. Posteriormente, apresentei o programa de reestruturação da em-presa num encontro com o presiden-te, em que esteve presente a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, e o mi-nistro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Resende. A informação que temos é de que não haverá prejuí zos para o nosso projeto.” ■

A Embrapa Agroenergia entregou ao ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Reinhold Stephanes, um estudo sobre o estado-da-arte e as perspectivas da pesquisa, desenvolvimento e inovação (P,D&I) em etanol nos próximos cinco anos. “Atendemos a uma demanda do governo federal”, explicou Crestana.

Depois de consultar todos os atores relevantes, identifi car gargalos e lacunas, conclui-se que o Brasil tem competência em P,D&I em etanol em oito instituições: Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto Agronômico (IAC), Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), Canaviallis e Rede Interuniversitária do Desenvolvimento Sucroalcooleiro (Ridesa). “Integradas, essas instituições darão um salto de qualidade nas pesquisas”, analisa Crestana.

Mas há “vazios” tecnológicos. Na área agronômica, por exemplo, é preciso apostar na biomassa. “É possível dobrar a produção de etanol com maior produtividade e expandir a área plantada de cana para outras áreas do país, o que vai exigir novas cultivares.” Mas será necessário produzir mais, com mais sustentabilidade, no que diz respeito ao uso da água, de energia, de dispêndio de CO2, sem perder de vista a questão social. “Temos que conseguir certifi car o álcool para exportação.”

Na área da transformação, a saída está na lignocelulose. “Será possível dobrar a produção de etanol por hectare, sem expandir a área plantada”, ele diz.

As perspectivas, segundo Crestana, são motivadoras. Mas precisamos investir R$ 1 bilhão em pesquisa nos próximos cinco anos. A sugestão da Embrapa Agroenergia é que esses recursos sejam formados por um fundo com meios do setor público e privado, cuja governança deveria ser feita através de uma rede de consórcios, nos mesmos moldes do Funcafé, criado após a extinção do Instituto Brasileiro do Café (IBC).

O futuro do etanol

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BUROCRACIA

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Receita Federal e Anvisa facilitam

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Em menos de um mês os pes-quisadores tiveram duas boas notícias. No dia 23 de janeiro o Diário Oficial da União publi-cou a Resolução nº 1 da Dire-toria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitá-

ria (Anvisa) que facilita a importação e exportação de material de pesquisa científica e tecnológica realizada por pesquisadores ou instituições. No dia 27 de dezembro do ano passado a Re-ceita Federal publicou a Instrução Normativa nº 7.999, remetendo a im-portação de animais, vegetais, vírus, bactérias, máquinas e equipamentos utilizados em pesquisas ao Canal Ver-de, um sistema de desembaraço auto-mático que dispensa a conferência fí-sica das mercadorias adquiridas por cientistas credenciados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-fico e Tecnológico (CNPq).

A Anvisa e o Ministério da Fazenda atendem a exigências do Decreto da Presidência nº 6.262, de 20 novembro de 2007, que concedeu prazo de 45 dias – prorrogável por igual período – para que quatro ministérios – Fazenda, Ciência e Tecnologia, Saúde e Desen-volvimento, Indústria e Comércio Ex-terior – simplificassem a importação de bens destinados à pesquisa.

“Há uma evidente intenção do gover-no de criar um ambiente mais favorável à pesquisa”, afirma Luiz Eugênio Mello, presidente da Federação de Sociedades de Biologia Experimental e pró-reitor de

Graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para ele, a resolução da Anvisa inova quando em seu artigo 6º garante prioridade na liberação de pro-dutos num prazo de 24 horas. Ele identi-fica “avanços” também no artigo 4º, que responsabiliza o pesquisador e a institui-ção à qual estiver vinculado por eventuais danos à saúde individual ou coletiva e ao meio ambiente “decorrentes da alteração da finalidade declarada para o ingresso do material no território nacional”. Na sua avaliação, tanto a comunidade acadê-mica brasileira como a agência regulado-ra já estão suficientemente maduras para novas responsabilidades.

A “maturidade” da comunidade de pesquisa facilitou a decisão do Ministé-rio da Fazenda de facilitar importações: nos últimos dois anos, a Receita não identificou nenhuma fraude . “A maior parte dos problemas diz respeito a erros de despacho”, afirma Wagner Castro, chefe substituto da Divisão de Gerencia-mento de Risco Aduaneiro da Receita Federal. A partir desse ano, a verificação dos produtos pela Receita é feita a poste-riori, e com o objetivo de ver se a utiliza-ção do material importado destina-se efetivamente à pesquisa. “Se um compu-tador importado for utilizado para ou-tro fim, a Receita cobrará o imposto devido, juros e multa”, ele exemplifica.

O novo procedimento reduziu de 14 para sete dias o tempo gasto no de-sembaraço aduaneiro. “A nossa inten-ção é facilitar a vida dos pesquisadores que ficam com equipamento de pesqui-

sa enredado e evitar que eles sejam levados a utilizar outras vias para en-tronizar o material no país e sofram processo criminal por contrabando.”

Castro recomenda, no entanto, que os pesquisadores se mantenham alertas na descrição do material importado. A maior incidência de erros nessa moda-lidade de importação está na declara-ção de importação feita ao Sistema In-tegrado de Comércio Exterior (Sisco-mex), que é preenchida por um despa-chante aduaneiro com base em infor-mações fornecidas pelo importador. “Quando a descrição é incompleta, al-tera a classificação fiscal”, ele adverte, referindo-se ao Sistema Harmonizado de Classificação de Mercados, que esta-belece códigos válidos internacional-mente para os diversos produtos.

Os interessados poderão ter mais informações sobre os procedimentos de importação no site da Receita Federal: www.receita.fazenda.gov.br/aduana/PesquisaCientifica.htm e do CNPq: www.cnpq.br/programasespeciais/importa/index.htm ■

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DIVULGAÇÃO

Revolução itineranteExposição traz ao Brasil os avanços da genômica

Pense em caminhar por um tre-cho de Mata Atlântica e perder-se em meio à diversidade de plantas e animais que ali habi-tam. Depois mergulhar a partir de um organismo, ultrapassar o microscópico, entrar em uma

célula e investigar as partes que a com-põem até encontrar o material genético empacotado no núcleo. A partir de 26 de fevereiro esse passeio terá endereço cer-to: a exposição Revolução genômica, que estará aberta ao público até 13 de julho no Pavilhão Armando de Arruda Pereira (antiga sede do Prodam) no Parque Ibi-rapuera, em São Paulo.

“Vamos do macro, a biodiversidade, até o núcleo da célula, para mostrar que tudo tem DNA”, diz Bianca Rinzler, di-retora executiva do Instituto Sangari, representante no Brasil do Museu de História Natural de Nova York, origem de exposições científicas com renome internacional. A conexão já trouxe ao Brasil a exposição Darwin, que no ano passado se instalou no Masp e agora es-tá em cartaz no Museu Histórico Nacio-nal do Rio de Janeiro. Agora o Sangari se prepara para apresentar à capital paulis-ta a versão abrasileirada de mais uma exposição norte-americana.

A Revolução genômica que se instala-rá no Ibirapuera não se atém à versão que rodou o mundo. “A entrada e a saída são novas”, conta a jornalista Mônica Teixei-ra, uma das curadoras. A introdução – inteiramente elaborada aqui – é a flores-ta, cenário que inclui fotografias, animais empalhados e vivos, e encaminha o pú-blico à célula gigante. Eliana Dessen, ge-neticista da Universidade de São Paulo e co-curadora da exposição, explica: “A parte americana começa direto no DNA, mas achamos importante fazer uma in-trodução que remetesse o visitante para onde se encontra o material genético”.

A exposição se encerra com outro módulo inédito, que conta histórias de sucesso da agricultura brasileira. O visi-tante percorrerá o trajeto desde o surgi-mento da agricultura até o desenvolvi-mento dos transgênicos, que hoje, apesar de controversos, são uma esperança para a produção de alimentos. Verá também conquistas como o melhoramento gené-tico da cana, do café e da soja, que tive-ram grande impacto ao aumentar a pro-dutividade, além de informações sobre o seqüenciamento do material genético da

bactéria Xylella fastidiosa, que devasta pomares. Completado em 2000, esse tra-balho pôs geneticistas brasileiros na linha de frente da genômica mundial.

Na parte central da exposição, elabo-rada nos Estados Unidos, o visitante tra-vará conhecimento com a genética, desde a história da descoberta do DNA até o estado-da-arte das pesquisas nessa área. Ali estará demonstrado o que torna a ge-nômica uma revolução central à vida mo-derna: maior conhecimento das seme-lhanças entre os seres vivos, testes genéti-cos e novas formas de combater doenças.

Também esse segmento internacional foi adaptado. “Substituímos exemplos que não tinham nada a ver com o Brasil”, conta Eliana. Um painel usará dados do geneticista Sérgio Pena (ver Pesquisa FA-PESP nº134) para explicar as origens da população brasileira. Outros mostram pesquisas feitas em quatro Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) paulistas: o Antonio Prudente para Pes-quisa e Tratamento do Câncer, o de Bio-tecnologia Molecular Estrututral, o de Terapia Celular e o de Estudos do Geno-ma Humano. Este último apresenta testes para identificar doenças genéticas, assun-to completado por pesquisa do Centro de Terapia Gênica. São exemplos de excelên-cia em pesquisa científica que contribuem para cumprir o propósito da exposição: partir da divulgação de conceitos básicos da genética para chegar a aplicações com impacto importante na vida das pessoas.

Não é só. O público interessado pode ir além do material exposto. Uma parce-ria do Instituto Sangari com Pesquisa FAPESP integra à programação palestras e debates com pesquisadores estrangeiros e brasileiros que atualmente realizam tra-balhos de ponta em genômica e outras áreas-chave do conhecimento. Filmes li-gados a temas científicos também farão parte dessa programação cultural.

Eliana ressalta o valor educacional da exposição. “Treinaremos monitores e ofereceremos palestras e material em português para que professores do en-sino médio possam se preparar antes da visita.” Assim como Darwin, a Re-volução genômica percorrerá outras cidades brasileiras – só em São Paulo espera-se a visita de cerca de 500 mil pessoas. Bian ca acredita que o Instituto Sangari se aproximará de sua missão: “Levar o conhecimento científico ao maior número de pessoas possível”. ■

Da biodiversidade ao núcleo da célula: em tudo o DNA

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AMBIENTE ECOLOGIA

S e m e a d o r e s

de florestasCom apoio de centros de pesquisa e pressão do poder público, fazendeiros e prefeituras reconstroem matas perdidas

CA R LO S FI O R AVA N T I | F OTO S ED UA R D O CE S A R

Uma faixa generosa de Mata Atlântica às margens de um reservatório de água em Iracemápolis, interior pau-lista, conta um pouco dos caminhos e descaminhos da aventura de recons-truir florestas. Plantações de cana-de-açúcar de uma usina de açúcar e ál-

cool chegavam a poucos passos da represa até 1985, quando uma forte seca mostrou quão intenso havia sido o assoreamento: havia bem menos água do que o esperado na represa qua-se toda coberta de terra. O prefeito e os verea-dores descobriram então que as bordas da re-presa não deveriam ter sido ocupadas, em razão de uma lei de duas décadas antes. Enfrentaram a usina, retomaram as terras e trataram de re-compor a mata para evitar que faltasse água outra vez. Hoje os moradores pescam na repre-sa, fazem piqueniques e passeiam à sombra dos galhos emaranhados de jequitibás, cabreúvas e pau-marfim de oito, dez metros de altura. A entrada da mata é uma espécie de jardim com mangueiras, goiabeiras, orquídeas e bromélias que eles próprios trouxeram.

A reconstrução da vegetação natural seguiu um planejamento rígido, que fixava os pontos em que árvores de 120 espécies deveriam ser plantadas e tentava reproduzir a estrutura de uma mata às margens de um rio próximo. “Ho-je não faríamos assim”, reconhece o biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq)

da Universidade de São Paulo (USP), uma das instituições que participaram da restauração da mata, entre 1988 e 1992. Em 2003 um tornado derrubou as árvores mais altas e os conceitos que fundamentaram o esforço de construir uma floresta que copiava outra. “Não precisa-mos predefinir a estrutura final das florestas, mas restaurar os processos biológicos que le-vam à construção de uma floresta”, conta Ro-drigues. Anos antes ele e sua equipe tentaram refazer uma mata de brejo sem drenar o terreno antes. Quase todas as mil mudas que haviam sido plantadas morreram afogadas.

A persistência driblou as desilusões e apressou a maturação de uma abordagem que ainda valoriza o planejamento, mas agora acei-ta incertezas e define sem o rigor excessivo de antes o que, como e onde plantar. A metodo-logia que nasceu daí fincou raízes Brasil afora e ganhou credibilidade a ponto de ser uma das referências analisadas para a formulação do Pacto de Restauração da Mata Atlântica, ela-borado por um conjunto de organizações não-governamentais e apresentado em novembro de 2007 em Vitória, Espírito Santo.

Os relatórios de trabalho desse grupo da Esalq descrevem restaurações de matas em ter-ras de empresas de papel e celulose no Rio Grande do Sul, Bahia e Paraná, em fazendas de cana-de-açúcar em São Paulo, de café em Mi-nas, de soja no Pará e de pecuária em São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Em 15 anos

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O Sementes da esperança: frutos de açoita-cavalo, árvore usada para trazer e reinstalar a sombra

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Azevedo: ex-fiscal de colhedores de cana, hoje entre sementes e mudas de árvores

as equipes do Laboratório de Ecologia e Restauração Flo-restal da Esalq restauraram 3.500 hectares (1 hectare equivale a 10 mil metros qua-drados) de matas ciliares (às margens de rios), uma área equivalente a uma vez e meia o território de Israel, mas ainda tímida em meio às vas-tidões de propriedades 400 vezes mais extensas.

Biólogos, agrônomos e engenheiros florestais desse grupo agem em conjunto com organizações não-gover-namentais e com represen-tantes do poder público, em especial promotores, que pressionam os proprietários para que cumpram a lei. Por lei, qualquer proprietário ru-ral deve manter matas ciliares com no mínimo 30 metros de largura, chamadas áreas de proteção permanente, essen-ciais para evitar que os rios sequem e as margens desmo-ronem, e 20% (ou até 80% em alguns estados na Região Nor-te) da propriedade com vege-tação nativa – as reservas legais. “É lei”, lembra Sérgio Gandolfi, professor da Esalq, “mas os agricultores não querem perder área de plantio, principalmente as mais férteis, nas margens dos rios”.

Como lei é lei, o promotor público Daniel José de Angelis sobrevoa duas vezes por ano os 22 municípios da bacia hidrográfica do rio Pardo. Depois, em sua sala nos fóruns de Ribeirão Preto e de São Joaquim da Barra, examina fotos aéreas e mapas das propriedades rurais antes de chamar para uma conversa os responsáveis pelas plantações ou pasta-gens que chegaram aonde não deveriam. “Estou satisfeito com os resultados”, conta Angelis, que tem motivado os pro-prietários rurais ao lhes mostrar que a reconstrução da vegetação natural não é impossível, cara ou demorada como imaginavam. Por conhecer o trabalho do grupo da USP, Angelis pode apresen-tar soluções, que facilitam os acordos com os fazendeiros, e não só exigir o cumprimento da lei.

A motivação dos proprietários de ter-ras não é filha do medo da lei ou do amor pela natureza, mas da necessidade de cer-

tificação ambiental, indispensável para vender em outros países, e do interesse em manter livre o caminho do cofre. “An-tes de aprovar empréstimos”, comenta Angelis, “os bancos exigem que as empre-sas não tenham pendências com o Minis-tério Público”. Outra motivação é a pers-pectiva de ganhos econômicos plantando árvores e vendendo madeira para lenha, carpintaria e móveis depois de 30 ou 40 anos. Em meio a iniciativas predominan-temente de empresas que anunciam pla-nos de combater o aquecimento global plantando milhões de árvores, sobres-saem as de prefeituras como a de Potim, que começou há dez anos a refazer as margens dos rios do município e no ano passado saiu do silêncio ao integrar o li-vro BenchMais: As 85 melhores práticas em gestão ambiental do Brasil, organizado por Adalberto Marcondes, Marilena La-vorato e Rogerio Ruschel.

Vender sementes de árvores empre-gadas na restauração de florestas tam-bém pode ser um bom negócio. Um quilograma de semente pode custar até R$ 1.000, dependendo do tamanho da semente e da dificuldade de coleta,

conta o agrônomo André Gustavo Nave. Durante o doutorado ele estudou as estratégias de recuperação de matas em Capão Bonito e verificou que muitos mo-radores da zona rural ga-nhavam mais vendendo se-mentes do que plantando tomates. “Quem coleta se-mentes não vai deixar as matas acabarem”, confia.

Tucanos e sabiás - E assim tapetes verde-escuros de ma-ta fechada começam a se es-preguiçar acima dos mares de cana e de soja. “Há seis anos a cana chegava até aqui”, conta Edson Pinto de Azeve-do, apontando as margens de um ribeirão que corta uma das 45 fazendas da Usina Va-le do Rosário, em Morro Agudo, perto de Ribeirão Preto. Ex-fiscal dos colhedo-res de cana, hoje é um dos que cuidam das mudas e das árvores já com 2 metros que se adaptam ao sol antes de seguirem aos lugares defini-

tivos. Filho de sertanejo, Azevedo nunca tinha plantado uma árvore nem visto tucano, que agora às vezes aparece por lá – macacos, sabiás e jibóias também. “Tendo mata, volta tudo.”

Ou quase tudo. Alexander Lees e Carlos Peres, da Universidade de East Anglia, Inglaterra, estudaram a rique-za e a composição de espécies de aves e mamíferos em 32 trechos de rema-nescentes de mata ciliar (24 conecta-dos e 8 isolados) e 5 trechos de matas ribeirinhas dentro de grandes áreas-controle de floresta contínua em Alta Floresta, Mato Grosso. Nesse trabalho, a ser publicado na Conservation Biolo-gy, eles verificaram que trechos estrei-tos (com menos de 20 metros de lar-gura) ou desconectados de fragmentos florestais retiveram poucas espécies de animais, enquanto os largos, princi-palmente aqueles em bom estado de preservação, abrigaram todo o con-junto de 365 espécies de aves e 28 de mamíferos da região. Além de enfati-zarem o valor de áreas extensas de re-manescentes de matas ciliares para manter a biodiverdade e os cursos

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Espinhos que protegem:

paineiras como esta ajudam

a formar a estrutura inicial

da floresta

d’água, Lees e Peres recomendam o alargamento para até 200 metros da faixa mínima de floresta a ser mantida em cada lado dos rios e ressaltam: res-tringir o acesso do gado e o cultivo agrí-cola nas bordas dos rios permitiria a regeneração da vegetação e facilitaria a restauração da conectividade.

O trabalho de transformar um des-campado ressecado em um oásis co-meça com o mapeamento e o isola-mento do terreno a ser repovoado, de acordo com a atual abordagem desse grupo da USP. A etapa seguinte é a identificação dos tipos de floresta e das árvores nativas, próprias da região, que sobrevivem nos fragmentos de mata próximos e vão fornecer as sementes. Produzidas em viveiros, as mudas que brotam dessas sementes ganham um lugar ao sol, na área a ser refeita, em duas linhas paralelas e intercaladas, perpendiculares ao rio, a 2 metros uma da outra, com 3 metros de distância entre cada muda.

Uma das linhas, a de preenchimen-to, abriga de 15 a 20 espécies de cresci-mento rápido (alguns metros por ano) e copas que fazem muita sombra, mas morrem em cinco ou dez anos, como capixingui, mutambo e monjoleiro. Elas vão produzir a sombra que contro-la o capim dos terrenos abandonados, formar a estrutura inicial da floresta e proteger as plantas da segunda linha, a de diversidade. Nessa linha, com um número de espécies de três a quatro ve-zes maior, enfileiram-se árvores um tanto preguiçosas, que crescem centí-metros por ano, mas guardarão longas histórias ao longo de 80 a 100 anos de vida, como jatobá, ipê, jenipapo e je-quitibá. Nessa linha estão também as espécies como a imbaúba, que crescem rapidamente e não produzem muita sombra, mas atraem animais que trans-portam pólen e sementes, além de ace-lerarem o funcionamento da floresta quando morrem e abrem clareiras. Em dois ou três anos essa organização inicial desaparece entre árvores já encorpadas que se misturam e cobrem o chão de sombra e umidade.

“Ajudamos a mudar alguns concei-tos de ecologia, de conservação e de restauração de florestas”, observa Gan-dolfi. Segundo ele, nos últimos 20 anos os especialistas dessa área deixaram de olhar apenas para os remanescentes

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isolados de vegetação nativa para ob-servar a paisagem e a interação entre ambientes como os pastos e as cidades com as manchas de matas nativas. Dis-túrbios naturais como os tornados co-meçaram a ser vistos com naturalidade, por regularem a estrutura e a composi-ção da vegetação. “Qualquer vegetação é um mosaico de manchas que se reor-ganizam em conseqüência de distúr-bios de origem natural ou humana”, diz Gandolfi. “Não há mais uma situação única de equilíbrio.”

Empreendedores - Nessa área, po-rém, os resultados só podem ser con-feridos a longo prazo – mesmo em São Paulo há matas restauradas ainda mais antigas, como a da Usina Ester, em Cos-mópolis, iniciada há 50 anos por José Carlos Bolinger, pesquisador do Ins-tituto Florestal, ou a de Assis, também do Florestal, com 35 anos, ambas com uma diversidade de espécies muito maior que a inicial. Evidentemente há outras abordagens para trazer a som-bra de volta à terra seca. O grupo de Ademir Reis e Fernando Bechara na Universidade Federal de Santa Catari-na (UFSC) prefere dar mais espaço

para o imprevisível. Eles adotam o conceito de nucleação – poleiros arti-ficiais e refúgios de galhos e pedras dispersos pela área a ser refeita – para atrair animais e restabelecer processos biológicos como decomposição e dis-persão de sementes.

Não será por falta de propostas que as florestas brasileiras deixarão de crescer outra vez. Tão cedo provavel-mente não haverá consenso sobre qual o melhor método, mas os especialistas concordam hoje em dois pontos: o uso de espécies nativas, já que o risco de as exóticas morrerem logo é alto, e da maior diversidade possível de espécies. Antigos problemas parecem resolvi-dos. Anos atrás Ludmila Pugliese de Siqueira e Carlos Alberto Mesquita, biólogos do Instituto BioAtlântica, saíram a campo para identificar e es-timular as iniciativas de recuperação de matas nativas no Espírito Santo e na Bahia. Identificaram 65 áreas de recomposição florestal em oito pro-priedades e verificaram que havia muita dúvida sobre o que e como plan-

tar: a maioria das 5 mil árvores plan-tadas era de espécies que crescem rá-pido, mas vivem pouco.

Mesmo com pouca ou nenhuma orientação técnica e com uma perda grande de mudas, plantadas aleatoria-mente, “esses empreendedores e suas famílias têm produzido resultados dig-nos de admiração”, reconhecem Ludmi-la e Mesquita no livro Meu pé de Mata Atlântica, lançado no ano passado. Mi-chel Frey, engenheiro e ambientalista francês proprietário de um sítio em Conceição do Castelo, no Espírito Santo, plantara 300 mil árvores: “As mais velhas estão com 15 anos de idade e formam uma mata que dá gosto de ver”, relatou. “Quando começamos, havia alguns ja-cus nos arredores. Agora se multiplica-ram tanto que, às vezes, dá para contar mais de cem em volta da casa.” Mas nem tudo são pássaros: em 2001, por causa de uma seca intensa, perdeu um terço de todas as mudas que havia plantado. Frey morreu em 2006, mas antes criou um instituto que comprou mais terras e ho-je protege com florestas as nascentes de um ribeirão que deságua em um rio que vai alimentar o Itapemirim, um dos principais do Espírito Santo. ■

Verde sobre verde: lei e interesses econômicos amenizam os mares de cana

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Dados contestadosCientistas apontam falhas em estudo sobre contaminação por transgênico

Em uma carta encaminhada a Proceedings of the National Aca-demy of Sciences (PNAS), 11 pes-quisadores de renome interna-cional questionam a qualidade e a validade dos resultados de um estudo sobre possíveis efeitos

danosos ao ambiente de uma variedade de milho transgênico. Publicado em 9 de outubro de 2007 na PNAS, respeitada revista científica editada pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Uni-dos, o estudo da equipe da ecóloga Em-ma Rosi-Marshall, da Universidade Loyola de Chicago, sugeria que resíduos do chamado milho Bt – geneti-camente modificado para pro-duzir uma proteína da bactéria Bacillus thuringiensis tóxica pa-ra lagartas que se alimentam dessas plantas – não se acumu-lavam apenas nas plantações, como se imaginava até então. Também poderiam alcançar os riachos próximos e se espalhar pelo ambiente (ver Pesquisa FAPESP nº 143).

Liderados pelo bioquímico Alan McHughen, da Universi-dade da Califórnia em Riversi-de, os autores da contestação identificaram várias falhas me-todológicas e omissões na pes-quisa conduzida por Emma Rosi-Marshall que comprome-teriam os resultados do traba-lho. O principal questionamen-to é que a equipe de Emma ex-trapolou para riachos e para o ambiente próximo aos milha-rais um suposto efeito tóxico do milho Bt observado em testes feitos em laboratório.

Em parceria com biogeo-químicos e zoólogos, Emma coletou folhas, caules, espigas e pólen de milho Bt carregados pelo vento para 12 riachos de uma área agrícola do estado de

Indiana entre a colheita de 2005 e o plantio de 2006. Calculou o acúmulo de restos de milho na água e na lama dos córregos e mediu a distância por que eram transportados pela correnteza. Com base nesses dados, o grupo esti-mou a quantidade de resíduos transgê-nicos que alcançavam os córregos ao longo do ano e, em laboratório, ofereceu níveis semelhantes para lagartas da ma-riposa Helicopsyche borealis, comum nos riachos de Indiana. Resultado: as lagar-tas alimentadas com milho Bt cresceram menos do que as que consumiram mi-lho normal. Nos níveis encontrados pró-

GENÔMICA

ximo às plantações, o milho transgênico não aumentou a mortalidade das lagar-tas. Mas quando os pesquisadores au-mentaram em duas ou três vezes a dose de pólen transgênico na dieta, a morta-lidade praticamente dobrou, eliminando 43% das lagartas.

Outro ponto de contestação: Em-ma e sua equipe não teriam levado em consideração trabalhos anteriores mostrando que os teores de toxina produzidos pelo milho Bt são extre-mamente baixos – tanto nos pés de milho como na água, onde se degra-dam rapidamente – a ponto de não

afetarem a saúde de lagartas da borboleta-monarca que se alimentam de plantas que crescem em meio aos milha-rais. Os pesquisadores tam-bém não apresentaram dados de testes toxicológicos em que fossem usadas doses conheci-das da toxina Bt, nem infor-maram as variedades de milho usadas na pesquisa – diferen-tes variedades podem produ-zir níveis de toxina distintos.

Na carta em que contestam o estudo, McHughen e os ou-tros signatários afirmam ainda que no artigo da PNAS não se levantaram outras possíveis ex-plicações para efeitos que pos-sam vir a ser observados nos riachos, como o uso de insetici-das à base de toxina Bt nas plan-tações. Também não foram fei-tos testes comparando os efeitos do milho transgênico e de ou-tros inseticidas normalmente empregados em plantações so-bre as lagartas da mariposa He-licopsyche borealis. “Quantos cientistas ocupados e quanto dos escassos recursos serão ne-cessários para desfazer esse no-vo pânico?”, pergunta o grupo liderado por McHughen. ■Resultados precários: faltaram testes em campo

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Mar mortoPoluição na baía de Santos cria zonas sem vida marinha

A cerca de 4 quilômetros das praias, dentro da baía de Santos, no estado de São Paulo, tanta po-luição se acumula no fundo do mar que elimina qualquer vida animal. Este é um dos resultados do Ecosan, um pro-jeto do Instituto Oceanográfico da Uni-versidade de São Paulo (USP) que reú-ne pesquisadores de diversas áreas para estudar as águas em torno da baía de

Santos. O grupo mo-nitorou o mar desde Peruíbe até São Sebas-tião, uma extensão de cerca de 200 quilôme-tros na costa, até 200 metros de profundi-dade, para avaliar co-mo o lixo, o esgoto e

os resíduos industriais lançados no mar por um dos maiores pólos industriais e o porto mais movimentado do país es-tão afetando a vida marinha.

O culpado pela zona morta não é difícil de encontrar. Naquele ponto de-semboca o emissário construído em 1979 para despachar o esgoto domésti-co gerado por 1,2 milhão de habitantes da Baixada Santista: são 7 mil litros lan-çados por segundo dentro da baía. A concentração humana ali é conseqüên-cia da fervilhante atividade econômica da região, que abriga o pólo industrial

de Cubatão na encosta da serra que se ergue a 15 quilômetros do mar. A po-luição lançada à atmosfera já foi tão grande que nos anos 1970 causou de-feitos de formação em bebês nascidos na cidade e deu à Mata Atlântica local o apelido de paliteiro, por causa dos troncos caídos de árvores mortas. Ali também está o porto de Santos, que desde sua inauguração oficial no final do século XIX deu passagem a mais de 1 bilhão de toneladas de mercadorias.

“Quando o porto e o pólo industrial foram construídos, não havia preocu-pação com ecologia”, comenta Luiz Mi-randa, coordenador da equipe que ana-lisa como as águas marinhas se movi-mentam na região. Assim, já no século XVI, o porto nasceu no canal do estuá-rio de Santos, de águas mais tranqüilas e livres dos piratas como os que recen-temente saquearam o barco do Institu-to Oceanográfico durante uma noite de trabalho na entrada da baía e restringi-ram as coletas à luz do dia.

O local escolhido oferece mais segu-rança para os navios do porto, mas põe em risco a natureza. O canal do estuá-rio liga a baía ao manguezal que se es-tendia ao longo de rios e canais por toda a área plana que chega ao sopé da serra do Mar, agora em parte ocupada por cidade e favelas. “Essa ocupação é

MA R I A GU I M A R Ã E S

Porto instalado no canal ajuda a sufocar estuário

OCEANOGRAFIA

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problemática porque o manguezal é o berçário do oceano”, diz Rosalinda Montone, especialista em poluição por esgotos. Como muitas espécies de pei-xe, crustáceos e moluscos, criaturas de importância econômica, se reprodu-zem nas águas menos salgadas do estuá-rio, a poluição ali provoca uma queda na população desses animais na baía e mesmo no mar aberto.

Berçário sem luz - E os resultados do Ecosan mostram que a poluição se con-centra nessa área. Luiz Miranda verifi-cou que nos períodos em que as marés altas chegam a um ponto máximo e as baixas a seu nível menor, as marés de sizígia, mais partículas são carregadas para dentro da baía do que saem dela. O problema é agravado pelo emissário, que forma uma barreira à circulação da água na baía e retém os sedimentos. Nessas condições, o que sai do emissá-rio não se dilui no oceano, como se pretendia quando foi construído. “Os efluentes são lançados na pior posição”, lamenta o oceanógrafo, “nos países ri-cos os emissários vão até 15 ou 20 qui-lômetros da costa, não quatro como aqui”. As propriedades físicas do fundo do mar contribuem para que a sujeira não saia dali: 43% da área de fundo é lodo, que absorve o que houver na água, poluentes inclusive.

A conseqüência é que a baía fica en-tão cada vez mais rasa. “Não há como restabelecer a profundidade, é preciso dragar a baía”, conclui Miranda. É exa-tamente o que a administração do por-to faz, para garantir que essa área con-tinue navegável. Mas dragar não é tão simples quanto parece. Ao remexer o fundo, os poluentes se soltam e voltam a se espalhar pela baía. Além disso, não há consenso sobre o melhor lugar para lançar o material dragado. “Eles despe-jam em mar aberto, fora da baía”, conta Rosalinda, “e a água fica cheia de bolhas iridescentes que parecem medusinhas”. São gases liberados pela matéria orgâ-nica revirada. Um dos efeitos dessa po-luição é interromper as rotas migrató-rias dos peixes. Segundo a pesquisado-ra, as tainhas já não conseguem entrar na baía de Santos.

Analisando os peixes, June Ferraz Dias constatou uma diversidade seme-lhante à de outras regiões do Sudeste brasileiro. Algumas espécies, como o

cangoá e o bagre-amarelo, predomi-nam. Em regiões mais preservadas, co-mo Cananéia, no litoral sul de São Pau-lo, 80% dos peixes capturados perten-cem a oito espécies. Em Santos o núme-ro de espécies predominantes cai para três. A equipe de June agora analisa me-tais pesados na musculatura dos peixes, mas já se surpreendeu ao encontrar um alto teor de alumínio, que os pesquisa-dores não sabem precisar de onde vem. Apesar de bastante resistentes à situa-ção adversa, os peixes não estão a salvo. Márcia Bicego, especialista em conta-minantes orgânicos, conta que a polui-ção afeta a morfologia do zooplâncton, fauna microscópica que compõe boa parte da dieta dos peixes menores, que sofrem com escassez de alimento e po-dem contaminar-se. Ela ressalta a im-portância desse conhecimento para orientar políticas públicas que limitem o teor de poluentes despejados na baía. “Mesmo níveis de contaminantes con-siderados baixos podem ter efeitos sé-rios”, pondera.

O excesso de matéria orgânica não é nocivo para todos os seres marinhos. José Eduardo Martinelli Filho termi-nou em 2007 seu mestrado no labora-tório de Rubens Lopes, um dos respon-sáveis pelo estudo de zooplâncton no estuário e na baía de Santos, e encon-trou a bactéria Vibrio cholerae, causa-dora da cólera, em boa parte das espé-cies que examinou. “O mar é o ambien-te natural da bactéria, mas poluição orgânica torna a baía especialmente propícia para sua multiplicação”, expli-ca. Não há motivos para evitar banhos de mar, pois nem todas as formas de V.

cholerae causam a doença. Teoricamen-te, um banhista que sem querer tome um gole de água com zooplâncton in-fectado poderia contrair cólera. Mas nenhum caso foi registrado até agora, provavelmente porque a forma agressi-va da bactéria é relativamente rara.

Outro organismo que tira proveito do aumento de matéria orgânica foi encontrado pelo grupo de Ana Maria Vanin, coordenadora-geral do Ecosan. Estudiosa dos organismos que habitam o assoalho oceânico – conhecidos como bentos –, Ana Maria descobriu um ani-mal que se parece com musgo, um briozoário, que forma um tapete de 2,5 centímetros de espessura. “Ele cria mi-croambientes que servem de abrigo para outros organismos, como peque-nos crustáceos”, relata. A espécie já era conhecida, mas não se esperava que existisse em tal quantidade. Apesar da densidade anômala, esse tapete que re-cobre o fundo desde próximo à praia até 40 metros de profundidade não pa-rece ter impacto negativo.

De forma geral a pesquisadora de-tectou uma biodiversidade reduzida na região de Santos, quando comparada ao que se observa mais ao norte, em São Sebastião ou Ubatuba. “Amostras colhidas perto do emissário têm um cheiro horrível, com teor alto de conta-minantes orgânicos”, conta. “Essa po-luição inibe a diversidade e a abundân-cia de peixes e crustáceos.” Nos pontos mais poluídos a espécie dominante é o siri-azul, provavelmente impróprio pa-ra o consumo humano. Ana Maria ain-da não sabe explicar por que na baía de Santos existem menos siris do que seria de esperar em comparação à diversida-de de espécies em áreas próximas. O acúmulo de sedimento e poluentes no estuário é o principal suspeito dessa baixa riqueza ecológica.

Os integrantes do projeto ainda têm muitos dados a analisar, mas já se mos-tra um retrato detalhado da situação nesse trecho de litoral, que só pode ser obtido com uma grande equipe de es-pecialistas diversificados trabalhando juntos por muitos anos e deve ser repro-duzido em outras áreas. Para estimular pesquisadores, autoridades e o público leigo a buscar soluções, a equipe plane-ja elaborar um livro com um diagnós-tico da baía de Santos e da plataforma oceânica adjacente. ■

A influência do complexo estuarino da Baixada Santista sobre o ecossistema da plataforma adjacente (Ecosan)

MODALIDADE

Projeto Temático

CO OR DE NA DORA

ANA MARIA VANIN – IO/USP

INVESTIMENTO

R$ 753.782,89 (FAPESP e CNPq)

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46 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

> A distante vacina contra o HIV

Apesar dos avanços no conhecimento sobre o HIV, talvez não se consiga uma vacina eficiente e segura contra a Aids, afirma o médico Robert Steinbrook em artigo no New England Journal of Medicine. Em 2007 foram interrompidos

testes em seres humanos da candidata mais promissora a se tornar uma vacina, desenvolvida pela Merck, por não se mostrar segura. Há outras em teste, mas os estudos devem durar anos. Os desafios científicos são grandes e o custo, alto. Calcula-se que em 2005 gastaram-se US$ 760 milhões em pesquisas. No início

> A importância do colesterol

No Laboratório de Exercício da universidade norte-americana de Kent, Ohio, 55 homens e mulheres com idade entre 60 e 69 anos fizeram alongamentos e exercícios para ganhar resistência e massa muscular três vezes por semana durante três meses. Também foram instruídos a se alimentarem segundo as recomendações da Associação Dietética Americana e receberam suplementos de proteína. O acompanhamento dos voluntários mostrou que o colesterol da dieta – e não as proteínas – foi fundamental para o ganho de massa muscular. Segundo Steven Riechman, autor do artigo publicado no Journal of Gerontology, o colesterol parece importante para o reparo de lesões musculares e por isso contribuiria para o aumento da musculatura. O achado pode orientar a dieta e a prática de exercícios de quem já passou dos 60 e sofre a perda muscular típica do envelhecimento.

Difícil parar: drogas reforçam conexões nervosas

Recuperação dos músculos

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(17

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Em vez de buscar

algo novo, a pesqui-

sadora Liping Wei, da

Universidade de Pe-

quim, olhou de modo

diferente o que já se

conhecia sobre a bio-

química do vício. En-

tre 1976 e 2006, en-

controu 2.343 arti-

gos que relacionavam

algum gene ou região

cromossômica a dife-

rentes formas de de-

pendência química.

Chegou a 396 genes

mais importantes e

18 caminhos bioquí-

micos ligados ao ví-

cio. Cinco deles con-

tribuíam para a de-

pendência química de

quatro tipos de droga:

álcool, cocaína, nico-

tina e opiáceos (PLoS

Computational Biolo-

gy). Segundo os pesquisado-

res, três caminhos bioquími-

cos já vinham sendo investi-

gados, mas não se imaginava que os outros dois também influen-

ciassem a dependência dessas drogas. Os resultados reforçam

a suspeita de que pessoas propensas a se tornarem dependentes

seriam suscetíveis às quatro drogas, e não a apenas uma. Também

ajudam a entender por que é difícil se livrar dos vícios. Algumas

dessas vias reforçam a conexão entre as células nervosas, o

mesmo mecanismo por trás da aprendizagem.

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de 2007 os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos aplicaram US$ 600 milhões em testes de 99 formulações. Em 1984, quando se começava a compreender como o HIV se reproduz, um alto funcionário do governo norte-americano afirmou que se chegaria a uma vacina em três anos. Duas décadas mais tarde ainda se está longe de ter uma. “Temos de ser honestos”, disse Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos. “Talvez nunca se consiga uma vacina contra o HIV.”

LABORATÓRIO MUNDO>>

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 47

Andes: erguidos pelos movimentos das placas tectônicas

> Crostas silenciosas

O movimento das placas tectônicas pode parar temporariamente, sugerem os geofísicos Paul Silver, da Instituição Carnegie de Washington, e Mark Behn, da Instituição Oceanográfica Woods Hole, ambas nos Estados Unidos. Como conseqüência, os terremotos, que resultam da colisão entre as placas, o vulcanismo e o soerguimento de cordilheiras como os Andes também podem cessar. Silver e Behn encontraram evidências de que o movimento de subducção (mergulho) das placas tectônicas já parou ao menos

uma vez na história da Terra, descrevem na Science de 4 de janeiro. Essas conclusões podem mudar conceitos sobre a evolução dos continentes e da crosta terrestre. Segundo o paradigma atual, as placas tectônicas estão sempre em atividade e em contínuo processo de formação ou destruição.

> Os danos da falta de sono

Bastaram três noites de supressão do sono profundo para a sensibilidade ao hormônio insulina no organismo dos participantes de um experimento

diminuir 25% e atingir os níveis de pessoas com alto risco de diabetes tipo 2. Quando cai a sensibilidade à insulina, normalmente a quantidade desse hormônio em circulação aumenta, mantendo constante a absorção de glicose. Esra Tasali, da Universidade de Chicago, Estados Unidos, monitorou o organismo de nove voluntários (cinco homens e quatro mulheres com idades entre 20 e 31 anos) que dormiram a quantidade de horas a que estavam habituados, mas foram privados do sono de ondas lentas. Os voluntários apresentaram redução da sensibilidade à insulina, mas não houve

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Tomar banhos de sol pode

fazer mais bem do que mal,

concluíram pesquisadores

da Universidade de Oslo,

Noruega, tentando pôr fim a uma longa polêmica. Sim, a radiação

solar intensa é a principal causa de câncer de pele, mas, para os

seres humanos, também é a principal fonte de vitamina D, que

protege contra outros tipos de tumores e doenças. Quem vive

em regiões mais próximas ao equador produz de 3,4 a 4,8 vezes

mais vitamina D do que as pessoas que moram no Reino Unido

ou na Escandinávia (PNAS). Uma equipe coordenada por Johan

Moan verificou que a produção de vitamina D pode ter um efeito

protetor sobre a incidência de câncer, que aumenta com a latitu-

de em populações com tipos de pele similares.

ENTRE O CÂNCER DE PELE E A VITAMINA D

o subseqüente aumento da produção desse hormônio, segundo estudo publicado na PNAS. Os pesquisadores concluem: motivar as pessoas a dormir mais e melhor pode ser uma forma de combater a epidemia de diabetes e obesidade no mundo.

> As crianças e a vizinhança

Viver em uma vizinhança extremamente pobre reduz a habilidade verbal de crianças em uma proporção equivalente à perda de um ano de escolaridade, segundo estudo publicado na revista norte-americana PNAS.Robert Simpson, Patrick Sharkey e Stephen Raudenbush, da Universidade Harvard, Estados Unidos, chegaram a essa conclusão ao acompanhar o desenvolvimento verbal de 2,2 mil crianças negras com idade entre 6 e 12 anos, cuja proporção é maior que a de brancas e latinas nas comunidades carentes. Os pesquisadores avaliaram o ambiente em que elas viveram por sete anos.

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Page 48: Animais de laboratório

48 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

Nos séculos XVI e

XVII, o pau-brasil, o

primeiro produto de

valor comercial explo-

rado pelos europeus

nas terras brasileiras,

não aparecia só nos

mapas portugueses

como esse ao lado, a

Carta do Brasil, de

1519, uma das repre-

sentações mais anti-

gas do desmatamento

no país com nativos

cortando árvores —

pau-brasil, claro —,

que pode ser vista nas

notas de R$ 10. Cartó-

grafos a serviço de

espanhóis, franceses,

ingleses e outros po-

vos europeus também

não deixavam de fazer refinadas ilustrações – as iluminuras – ao

representar as riquezas das terras do outro lado do Atlântico,

concluíram Yuri Rocha, Andrea Presotto e Felisberto Cavalhei-

ro, do Departamento de Geografia da Universidade de São Pau-

lo (Anais da Academia Brasileira de Ciências). Por sinal, o nome

Brazil, para designar o que seria o Brasil, apareceu provavel-

mente pela primeira vez no planisfério Orbis typus universalis

tabula que Jerônimo Marini desenhou em Veneza, Itália, em

1512. Antes o mesmo Brazil havia sido usado em 1502 no Mapa

de Cantino para nomear um rio no qual a expedição de Gonça-

lo Coelho encontrou as árvores de madeira vermelha.

Pará. Em estudo publicado na Applied Animal Behaviour Science, eles mostram que, ao menos no zôo de Recife, não há relação entre o tamanho dos animais e o sucesso com o público. É uma boa notícia para a administração, pois manter animais trazidos de outras regiões do mundo – como elefantes, tigres ou lhamas, em geral maiores – custa mais caro. A dupla propõe que os zoológicos nacionais criem viveiros para animais nativos do Brasil, muitas vezes menores que os trazidos de fora. Eles atrairiam os visitantes e contribuiriam para mostrar ao público a diversidade nacional. Talvez as crianças não gostem.

> Vida nos recifes

As águas verde-esmeralda do litoral sul da Bahia abrigam os mais ricos e bem-preservados recifes de corais do Atlântico Sul, com formas variadas que lembram um leque ou um cérebro e cores que vão do marrom ao azul e ao vermelho. Um dos ambientes com maior diversidade de espécies

do planeta, os frágeis recifes de corais são apresentados em deslumbrantes imagens registradas por Roberto Faissal no documentário Vida nos recifes. Lançado em dezembro, o vídeo de 16 minutos traz em linguagem simples detalhes do nascimento e da reprodução dos corais. Também informa sobre o papel fundamental que eles desempenham para a vida nos oceanos –

> Sem girafa nem elefante

Um zoológico não precisa de girafas, elefantes ou camelos para agradar os visitantes, segundo Maria Alice da Silva, da Universidade Federal de Pernambuco, e José Maria Cardoso da Silva, da Conservação Internacional, em Belém,

Lhama: custo mais alto para os zoológicos

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Carta do Brasil, de 1519: o início do desmatamento

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LABORATÓRIO BRASIL>>

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 49

e fora deles. Produzido sob a orientação científica de Clóvis Castro e Débora Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Projeto Coral Vivo, o filme educativo deve ser distribuído em escolas de ensino fundamental do sul da Bahia.

> Por dentro das artérias

Médicos do Rio Grande do Sul descobriram uma forma de identificar os casos em que há maior risco de as placas de gordura (ateromas) e os coágulos sangüíneos que se formam no interior das artérias carótidas se desprenderem e provocarem um acidente vascular encefálico, morte de áreas do cérebro ou de

outros órgãos que formam o encéfalo por entupimento dos vasos que os irrigam. E não inventaram nada novo. Liderados pelo cirurgião Luciano Cabral

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RTOs filhotes menores

de macacos se agar-

ram à pelagem que

cobre a barriga das

mães, enquanto os

mais crescidos vão às

costas, também se se-

gurando nos pêlos

para não cair. Lia Ama-

ral, da USP, comparou

como os primatas de

maior porte — gorilas,

gibões e orangotangos

— transportam a prole

e concluiu que a perda

de pêlos que acompa-

nhou a evolução da

espécie humana pode

ter favorecido o bipe-

dalismo, por meio de

uma forte pressão se-

letiva para as mães

levarem com seguran-

ça os bebês que não

conseguiam mais se

agarrar às costas. Embora um gorila adulto seja muito mais

pesado que um ser humano adulto, os filhotes só têm metade

do peso dos bebês humanos, lembra Lia em estudo da Naturwis-

senschaften. Na Nature de 13 de dezembro, Katherine Whitco-

me, de Harvard, mostrou que as mulheres ganharam uma co-

luna vertebral mais flexível que a dos homens por carregarem

os bebês na gestação e nos primeiros meses de vida.

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Em janeiro a equipe do neurocientista

brasileiro Miguel Nicolelis deu um impor-

tante passo rumo ao desenvolvimento

de tecnologias que permitam controlar

próteses robóticas por meio do pensamento. Em seu laboratório

na Universidade Duke, Estados Unidos, uma fêmea de macaco

rhesus conseguiu controlar, com o pensamento, os passos de um

robô com formas humanas que se encontrava no Japão. “Foi a

primeira vez que sinais elétricos cerebrais foram usados para

fazer um robô caminhar”, disse Nicolelis ao The New York Times.

Por meio de uma conexão rápida de internet, os pesquisadores

enviaram os sinais elétricos da região do cérebro da macaca que

controla o movimento das pernas para o robô, que passou a ca-

minhar em sincronia com ela.

MOVIMENTO A DISTÂNCIA

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Albuquerque, da PUC do Rio Grande do Sul, e pelo cardiologista Luis Eduardo Rohde, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, os médicos usaram uma

técnica adotada para fazer imagens do interior do corpo, a ressonância magnética nuclear, para ver o que se passava nas artérias do pescoço de 70 pacientes – a maior parte com hipertensão e graus diversos de entupimento das carótidas. Na ressonância, a equipe notou sinais de sangramento nos ateromas, o que os torna instáveis e aumenta o risco de coágulos ou pedaços de gordura se desprenderem e entupirem vasos do encéfalo (Journal of Vascular Surgery). Associada ao exame de sangue chamado proteína C reativa, a ressonância permitiu identificar a instabilidade dos ateromas, responsável por um terço dos acidentes vasculares encefálicos. Se adotada nos hospitais, essa estratégia pode ajudar a reduzir as 90 mil mortes por acidente vascular registradas a cada ano no país.

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Corais: belos e frágeisNos braços, com mais segurança: conquista evolutiva

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Page 50: Animais de laboratório

50 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

Primeiro movimento

Quando todos olhavam para um lado, elas olha-ram para outro. Fizeram perguntas diferentes e descobriram coisas muito interessantes. Duas cientistas do Instituto Butantan, Cata-rina Teixeira e Cristina Fernandes, viram que uma mesma proteína encontrada em abun-dância nos estágios mais avançados da artrite

(algo que todos dessa área sabiam) pode também ser uma das causas dessa enfermidade (essa é a parte que ninguém mais parece ter pensado ou demonstrado). O que elas descobriram, em conjunto com pesquisadores da Universidade Federal do Ceará e da Universidade de Costa Rica, faz mais do que jogar luz nos tortuosos labirintos da inflamação e da dor que gradativamente se apossam de articulações como joelhos, cotovelos, punhos e mãos. Também ajuda a compreender melhor como e por que os tratamentos atuais podem ou não funcionar para conter essa doença, que persegue prin-cipalmente as mulheres, em uma proporção três vezes maior que os homens, e começa a aparecer por volta dos 35 anos. No Brasil aproximadamente 2 milhões de pessoas convivem com a artrite e, nos casos mais graves, evitam se mover para escapar da dor, como se houves-sem se tornado prisioneiras do próprio corpo.

“A natureza é econômica”, comenta Catarina, ex-plicando como, a partir desta constatação tão sim-ples, ela e Cristina se perguntaram se a mesma pro-teína não poderia ter funções mais amplas e relevan-tes. O artigo que publicaram no ano passado na British Journal of Pharmacology deixa claro como a molécula que estudaram – a BaP1, extraída do vene-no de uma serpente e muito similar à de seres huma-nos – aciona e alimenta os processos inflamatórios típicos da artrite. É também ela que promove a libe-

ração de substâncias inflamatórias conhecidas como prostaglandinas e citocinas, que causam dor nas ar-ticulações, e ainda corrói as cartilagens nos estágios mais avançados da doença. Somado aos resultados obtidos por outros grupos de pesquisa, esse trabalho ajuda a eleger essas proteínas – enzimas chamadas de metaloproteases por carregarem um metal, normal-mente zinco – como alvo potencial para combater não só a artrite como também tumores e outras doen-ças de cujo desenvolvimento participam.

Normalmente, diferentes tipos de metaloprotea-ses trabalham como uma equipe de manutenção, removendo o que não é mais utilizado no espaço en-tre as células, além de participarem da formação e da recomposição de tecidos. Só se rebelam quando o controle habitual do organismo por alguma razão deixa de funcionar. É quando podem favorecer o de-senvolvimento de doenças cardiovasculares, o espa-lhamento de tumores ou a produção intensiva de moléculas bem menores como o fator de necrose tumoral-alfa (TNF-alfa). Quando ativado, o TNF-alfa recruta células do sangue envolvidas na inflama-ção, um dos recursos do organismo para deter vírus, bactérias e tumores; se abundante, porém, pode in-tensificar a inflamação e a dor na artrite.

Uma linha de medicamentos contra a artrite ado-tada atualmente procura bloquear a ação do TNF-alfa, enquanto outra abordagem trata de aplacar a ação de todo o sistema de defesa do organismo, que, por mo-tivos ainda desconhecidos, passa a reconhecer as car-tilagens das articulações como algo estranho, a ser eliminado. Pôr rédeas nas metaloproteases, uma possi-bilidade levantada pelos estudos mais recentes, impli-caria controlar a produção dessas pequenas moléculas

Descoberta enzima que pode causar a inflamação e a dor da artrite CA R LO S FI O R AVA N T I

IMUNOLOGIA

CIÊNCIA>

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Page 51: Animais de laboratório

PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 51

Detalhe da Porta do inferno, de Rodin

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52 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

que inflam a inflamação, os TNF. O que é simples de imaginar, porém, é difícil de executar e, alertam as cautelosas pes-quisadoras do Butantan, talvez não muito seguro. Em vista da versatilidade dessas enzimas, a artrite poderia desa-parecer, mas processos fisiológicos re-levantes como a cicatrização e a fertili-zação poderiam ser prejudicados.

Alvos - Esse é outro vasto labirinto. Em um artigo de revisão publicado na Ex-pert Opinion on Therapeutics Targets o professor de reumatologia molecular Andrew Rowan e outros pesquisadores da universidade inglesa de Newcastle descrevem 23 metaloproteases de ma-míferos, cujas falhas podem levar a pro-blemas tão diferentes quanto esterilida-de masculina, nanismo ou obesidade. Analisam também os compostos que poderiam deter essas enzimas, chama-dos de inibidores de metaloproteases: de mais de 50 identificados como alter-nativas potenciais para tratar artrite e câncer, a maioria parou pelo caminho, por causa dos efeitos colaterais ou da baixa eficácia, apesar dos resultados ini-ciais animadores em células e animais de laboratório. Só sete continuam e por enquanto só um foi aprovado – e para a doença periodontal, caracterizada pela inflamação da gengiva e dos ossos que sustentam os dentes.

Em um artigo publicado também na Expert Opinion, Paraic Kenny, da Universidade da Califórnia em Berke-ley, Estados Unidos, sai do que chama de litania de decepções para contar dos avanços e dos limites de proteínas que inibem uma enzima desse tipo conhe-cida pela sigla Tace como forma de de-ter o desenvolvimento de tumores de pulmão, pâncreas, mama e ovário, en-tre outros, além da própria artrite. Se-gundo ele, a Tace já pode ser considera-da um alvo terapêutico a ser persegui-do, já que seus antagonistas apresenta-ram efeitos tóxicos toleráveis e uma eficácia razoável nos testes preliminares em câncer em seres humanos; em artri-te, porém, os resultados até agora não foram tão bons, possivelmente porque outras enzimas desse tipo continuaram a alimentar a inflamação e a dor.

“O maior avanço até agora foi adi-cionar mais um mecanismo de ação dessas enzimas, que agora se somam ao caldo de mediadores que promovem a

reação inflamatória, possivelmente contribuindo com a perpetuação da inflamação e dano estrutural das jun-tas”, comenta Francisco Aírton Rocha, médico reumatologista da Universida-de Federal do Ceará que trabalhou com a equipe do Butantan. Os pesquisado-res chegaram a essas conclusões mani-pulando enzimas extraídas do veneno de serpentes. Há 20 anos, recém-con-tratada pelo instituto paulista, Catarina começou a estudar os efeitos do veneno de jararaca (Bothrops jararaca), uma espécie abundante, que causa o maior número de acidentes por picadas de cobra no Brasil. Ela estava interessada especialmente em compreender os me-canismos envolvidos nas intensas rea-ções inflamatórias verificadas no local das picadas e muito pouco neutraliza-das pelo soro antiofídico.

Depois de caracterizar a reação infla-matória local causada pelas picadas da Bothrops jararaca e de uma espécie pró-xima, a Bothrops asper, Catarina come-çou a procurar os componentes do ve-neno responsáveis por esses efeitos. Em seguida, incentivada e apoiada por José Maria Gutierrez, pesquisador da Univer-sidade de Costa Rica e do Instituto Clo-domiro Picado, equivalente ao Butantan daquele país, Catarina trabalhou para caracterizar as propriedades inflamató-rias de uma enzima do grupo das meta-loproteases encontradas no veneno da Bothrops asper; essa espécie, também co-nhecida como terciopelo (em espanhol, veludo), é a que causa a maioria dos aci-dentes por picadas na América Central.

Tanto Catarina quanto Cristina, a partir de 1999, deixaram-se levar pelos

impressionantes efeitos de uma dessas enzimas, a BaP1, cuja estrutura é muito similar à de metaloproteases produzi-das no organismo humano. Inicial-mente Cristina demonstrou o efeito inflamatório dessa enzima, detalhado em 2006 na Toxicon. Depois, somando esse trabalho a relatos de outros grupos que demonstravam que a articulação de pessoas com artrite reumatóide acu-mulava metaloproteinases, elas imagi-naram que essas enzimas poderiam ter funções ainda mais amplas que nin-guém havia visto, até mesmo iniciando ou ajudando a iniciar a inflamação na artrite. Testaram a hipótese aplicando a enzima em ratos, de acordo com o mo-delo experimental com que Rocha es-tuda há 15 anos os mecanismos de dor e lesão provocados pela artrite.

Toxinas - Foi Rocha quem ensinou Cristina a injetar a enzima de serpente na minúscula cavidade entre os igual-mente minúsculos ossos dos joelhos de ratos. Apenas uma hora depois da inje-ção da BaP1 um grupo de animais já apresentava uma quantidade notável de células inflamatórias, principalmente neutrófilos, além de substâncias asso-ciadas à dor como as prostaglandinas e o TNF-alfa, caracterizando a barafunda de substâncias e células de defesa típica da artrite; outros grupos de animais, que haviam sido previamente tratados com compostos que bloqueavam a ação de TNF-alfa ou a formação de prosta-glandinas, não exibiram inflamação ou dor quando receberam a BaP1.

Os resultados representaram dois ganhos simultâneos. O primeiro é mais óbvio: comprovando a hipótese inicial, essa enzima deixou de ser coad-juvante para assumir um papel princi-pal no doloroso enredo da artrite, por iniciar e alimentar a inflamação e a dor que consome as juntas; o próximo passo, claro, é confirmar se as equiva-lentes humanas produzem o mesmo efeito. O outro, destacado por Catari-na, é mais sutil: as toxinas de venenos podem ser usadas também como fer-ramentas para entender melhor os mecanismos de funcionamento do próprio corpo e do desenvolvimento de doenças como a artrite, esclarecen-do por analogia as funções hoje desco-nhecidas de muitas moléculas do or-ganismo humano. ■

Estudo de efeitos da metaloproteinase BaP1, isolada do veneno da serpente Bothrops asper, na articulação de ratos

MODALIDADE

Auxílio a Projeto de Pesquisa

CO OR DE NA DORA

CATARINA DE FÁTIMA PEREIRA TEIXEIRA

INVESTIMENTO

R$ 209.741,63 (FAPESP)

O PROJETO>

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Detalhe de Os burgueses de Calais, de Rodin

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Tônus sob medidaGENÉTICA

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Ativação de gene transforma células-tronco em células musculares

MA R I A GU I M A R Ã E S

Resultados recentes dão novo sopro de esperança às pessoas com distrofia muscular de Du-chenne, doença degenerativa fatal que provoca a perda pro-gressiva da força muscular a partir da infância. A bioquími-

ca brasileira Rita Perlingeiro, radicada no Centro Médico Sudoeste da Univer-sidade do Texas, Estados Unidos, conse-guiu produzir células muscu-lares a partir de células-tronco embrionárias de camundon-gos e incorporá-las à muscu-latura de animais portadores da mutação genética que cau-sa a doença. Os resultados es-tão na edição de janeiro da revista Nature Medicine.

Células-tronco embrioná-rias têm a capacidade de pro-duzir qualquer tipo de tecido do organismo, mas, segundo Rita, em meio de cultura elas geram poucas células muscu-lares. “Falta o ambiente, os fatores de regulação que no embrião levam à produção desse tecido”, explica. Daí a necessidade de estimular as células-tronco a se transfor-marem em células musculares. Rita conseguiu a façanha usando o antibió-tico doxiciclina, que ativa o gene PAX3. “Já se falava em congressos que esse gene induz a produção de células mus-culares. Ela foi a primeira a demons-trar”, diz Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Uni-versidade de São Paulo. “Mas ainda se está longe da aplicação clínica”, avisa.

O modelo mais comum em pes-quisa sobre distrofia são camundon-gos geneticamente modificados para não produzir a proteína distrofina, cuja falta provoca o mau funciona-

mento muscular característico da do-ença. Mas, ao injetar nesses roedores células-tronco modificadas para pro-duzir distrofina, muitas vezes surgiam tumores. Isso aconteceu, segundo Rita, porque nem todas as células-tronco haviam recebido o estímulo para se transformarem em células de músculo e no meio de cultura havia células não-especializadas. “Poucas células

indiferenciadas já são suficientes para causar tumores”, explica a bioquímica.

Rita, então, desenvolveu um modo de reconhecer as células musculares e pescá-las no meio de cultura. O passo seguinte foi injetar essas células, marca-das com uma proteína verde que facilita sua localização na corrente sangüínea dos camundongos. Até Rita se surpreen-deu com o resultado: “Mesmo injetadas em uma veia, e não diretamente nos músculos afetados, as células só se fixa-ram nos músculos, mas não em outros tecidos”. Até o quarto mês após o trata-mento não haviam aparecido tumores.

Melhor. As células funcionaram co-mo células de músculo: produziram distrofina e melhoraram a força mus-cular. Uma limitação do estudo é que camundongos modificados são mode-los parciais para estudar a distrofia de Duchenne. Diferentemente dos seres humanos, esses roedores não perdem mobilidade com a deficiência de distro-fina. “Só olhando, não se vê diferença

entre os camundongos doen-tes e os normais”, diz Rita. Para verificar se as células que se incorporaram aos múscu-los estavam de fato desempe-nhando a função de células musculares, Rita usou um aparelho que mede a capaci-dade de contração dos mús-culos – na ausência de distro-fina, os músculos não têm o tônus normal.“Os animais tratados não ficaram como os saudáveis, mas melhoraram muito em comparação com os que não receberam o trans-plante”, conta.

Faltam ainda muitos pas-sos para que essa conquista chegue à clínica: testar exaus-tivamente para garantir que

as células só se incorporem ao múscu-lo lesionado; verificar se, após incor-porar-se ao músculo, elas se multipli-cam e originam musculatura funcio-nal; testar a técnica em cães, modelo importante para o estudo da distrofia muscular por apresentarem sintomas parecidos com os dos seres humanos; obter o mesmo efeito com células-tronco embrionárias humanas. E, por fim, se possível, usar novas técnicas de manipulação de células-tronco adultas – para evitar os problemas éticos liga-dos ao uso de embriões. É uma longa caminhada, mas não falta fôlego. ■

Célula integrada a músculo produz distrofina (vermelho)

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Acutisoma longipes: secreção amarela de odor desagradável afasta predadores

Truques de um sedutor ETOLOGIA

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Parentes das aranhas, os opiliões machos que cuidam dos ovos atraem o interesse das fêmeasa

FR A N C I S C O BI C U D O

No sítio em que viveu durante boa parte da infância em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, Glauco Machado costumava encontrar pelos cantos da casa os pequenos e inofensivos opiliões, animais aparentados das aranhas bastante comuns em áreas da Mata Atlântica com umidade elevada e tem-

peratura amena. Era o início dos anos 1980 e Macha-do não imaginava que mais tarde voltaria a rever esses aracnídeos de pernas muito longas e delgadas duran-te a graduação em biologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Menos ainda suspeitava que um dia pudesse se tornar uma das maiores autorida-des brasileiras no comportamento desses animais, que pode ajudar a entender o de outros seres vivos. “O comportamento dos opiliões pode servir de mo-delo para compreender como outros animais agem no que diz respeito à corte, à reprodução e às relações familiares”, afirma o biólogo, atualmente professor no Instituto de Biociências da Universidade de São Pau-lo (USP), que nos últimos anos demonstrou que o cuidado das fêmeas com a prole é fundamental para o sucesso reprodutivo dos opiliões.

Freqüentemente confundidos com as aranhas, os opiliões também têm oito pernas. Mas duas delas, mais especificamente o segundo par de pernas, funcionam como antenas e são usadas para reconhecer o ambien-te pelo tato. Aliás, é justamente pelo fato de possuírem pernas longas que provavelmente receberam o nome opilião, que em latim significa pastor de ovelhas. É que na Roma Antiga os pastores andavam sobre pernas de pau para melhor contar seus rebanhos. Diferentemen-te do corpo das aranhas, separado em duas partes (ab-dômen e cefalotórax, que une cabeça e tórax), o corpo dos opiliões não apresenta divisões: cefalotórax e ab-dômen estão fundidos em uma só estrutura. Mas sua característica mais marcante, que permite a qualquer pessoa saber que não está diante de uma aranha, é que o opilião possui glândulas de odor: quando importu-nado, libera uma secreção com um forte cheiro repul-sivo que valeu ao grupo o apelido de aranha-bode ou aranha-fedorenta. À base de compostos químicos como quinonas, fenóis e cetonas, essa secreção permite às

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diversas espécies de opiliões – são cerca de 6 mil no mundo e quase mil no Brasil – se livrarem de predadores como sapos e formigas, fato constatado recentemen-te pela equipe de Machado.

Num estudo coordenado por Ma-chado na Ilha do Cardoso, litoral sul de São Paulo, a bióloga Francini Osses acompanhou durante um ano a escolha de locais para ninhos por fêmeas da espécie Bourguyia hamata. De corpo alaranjado e pernas com até 10 centí-metros de comprimento, esses opiliões procuram quase sempre as folhas lon-gas da bromélia Aechmea nudicaulis para depositar seus ovos, embora exis-tam outras 36 espécies de bromélia ape-nas na região em que foi desenvolvida a pesquisa. Francini avaliou o volume de água e as condições de limpeza das bromélias que essa espécie de opilião escolhia para ter seus filhotes. Consta-tou que a preferência era por bromélias maiores, que acumulavam mais água, evitando variação de umidade, e onde se depositavam menos detritos caídos das árvores, como descreve em artigo a ser publicado em breve no Journal of Ethology. “A opção por essa bromélia, que geralmente cresce sobre as árvores, oferece segurança contra predadores e condições de limpeza ideal para nasci-mento dos filhotes”, explica Francini.

O cuidado materno não se restringe à escolha do local mais adequado para procriar. Depois de colocar os ovos, as fêmeas muitas vezes deixam de lado ou-tras atividades diárias – como a própria alimentação, à base de insetos e frutos ou mesmo opiliões mortos de outras espécies – para se dedicar à prole. Pas-

sam praticamente um mês sobre os ovos, para protegê-los de predadores. “É uma tarefa bastante árdua. A fêmea tem de renunciar a uma série de situações para garantir o nascimento dos filhotes, mas acaba sendo recompensada”, diz Machado, que havia observado esse comportamento já em 1998, durante seu projeto de iniciação científica. Mais recentemente ele e o zoólogo Bruno Bu-zatto decidiram analisar a importância de proteger os ovos em um experimen-to realizado na natureza.

Cuidado de mãe - No Parque Estadual Intervales, no Vale do Ribeira, sul do estado de São Paulo, Buzatto encontrou 144 fêmeas da espécie Acutisoma proxi-mum, de corpo esverdeado com o ta-manho de uma moeda de 10 centavos, que costumam colocar seus ovos em pedras e folhas próximas às margens de riachos, e as marcou com uma tinta que

permanece no corpo por até dois anos. Em seguida, separou-as em dois grupos: metade delas pôde passar o tempo todo cuidando dos ovos, enquanto os ovos do restante das fêmeas foram retirados dos ninhos por duas semanas. Buzatto viu que os ninhos desprotegidos foram atacados por grilos, vespas ou opiliões, que em média consumiam 75% dos ovos. Em artigo no Journal of Animal Ecology de setembro de 2007, Buzatto, Machado, Gustavo Requena e Eduardo Martins relatam que as fêmeas cujos ovos foram experimentalmente remo-vidos dos ninhos procuravam em se-guida outro macho para copular e pas-saram pôr ovos mais vezes – em média depositaram 18% mais ovos que as que cuidaram de suas crias. Colocar mais ovos, no entanto, garantiu apenas uma vantagem aparente, segundo os pesqui-sadores. Quando calcularam o custo para as fêmeas, viram que o melhor era poder cuidar da prole. “De nada adian-ta colocar mais ovos se a maioria dos filhotes vai morrer se não receber os cuidados da mãe”, explica Machado.

E não são apenas as fêmeas que se interessam por cuidar dos ninhos. Ma-chado descobriu que machos de algu-mas espécies posam de bons pais como estratégia de conquista. Nos últimos anos Machado e seus colaboradores identificaram seis espécies de opilião em que são os machos os responsáveis pelos ovos e investigaram esse comportamen-to em outras seis – antes se conheciam apenas três espécies em que machos cui-davam de ovos. Avaliando a espécie Ipo-rangaia pustolosa, com o corpo verde-vivo com manchas pretas e pouco maior

Formas e cores:opiliões da subfamília

Gagrellinae (ao lado), comum na

Mata Atlântica; Protimesius longipalpis,

encontrado na Amazônia; e exemplar do

gênero Pristocnemis,

sensível ao desmatamento

Sempre alerta: fêmea de Acutisoma discolor protege seus ovos

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que uma pérola, Machado e Gustavo Requena descobriram que quanto maior o número de fêmeas em uma população de opiliões, mais tempo os machos pas-sam cuidando dos ovos.

Escolha certa - Ao menos entre os opi-liões, a estratégia funciona. Taís Nazareth acompanhou em laboratório os atarraca-dos opiliões do gênero Pseudopucrolia originários do Espírito Santo. Pôs em re-cipientes de vidro dois machos – um cui-dava de ovos, enquanto o outro perma-necia sozinho, sem prole. Em seguida, Taís colocou uma fêmea no ambiente. Em menos de duas horas, ela já havia es-colhido o macho que cuidava dos ovos e copulado com ele. Numa etapa seguinte, os papéis foram então invertidos. O ma-cho que antes não tinha do que cuidar passou a tomar conta dos ovos. O outro ficou sem o que vigiar. Novamente a fê-mea optou pelo macho com a prole. Qua-lidades físicas como tamanho e cor do corpo não influenciaram na escolha, no-tou Taís. Esse experimento mostrou ain-da que, quando o responsável pelos ovos morre, outro macho assume a proteção da prole, comportamento contrário ao observado em várias espécies. “Se as fê-meas preferem os machos cuidadores, aqueles que fingem ser donos dos ovos se saem melhor”, sugere Machado.

Sem veneno nem presas, os aparente-mente frágeis opiliões podem se tornar agressivos para se defender: atacam com os palpos, beliscam com suas pinças (que-líceras) ou com os espinhos das pernas. Mas uma arma exclusiva vem lhes permi-tindo sobreviver desde que surgiram, há 400 milhões de anos: o mau cheiro. Por

meio de um par de glândulas de odor, eles liberam um líquido amarelado com um forte odor ácido, capaz de manter distan-te vários de seus predadores. Em uma série de testes realizados anos atrás na Unicamp, Machado confirmou a eficiên-cia do odor para salvar a vida dos opiliões. Com a ajuda dos pesquisadores Patrícia Carrera, Armando Pomini e Anita Mar-saioli, ele coletou o líquido amarelado e malcheiroso produzido pela espécie Acu-tisoma longipes, comum em toda a Região Sudeste do país, e isolou dois tipos de benzoquinona.

Em experimentos com sete espécies de formiga, Machado embebeu um pe-daço de papel-filtro em água com açú-car e depois acrescentou um pouco da secreção do opilião. Foi o bastante para manter as formigas longe da comida por até dez minutos, tempo mais do que suficiente para um opilião escapar de um ataque. O grupo repetiu o teste

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com outros predadores dos opiliões. Para assegurar-se de que era mesmo o fedor – e não outra estratégia de defesa – que estava protegendo os pastores de longas pernas, Machado pingou um pouco da secreção amarelada em grilos e os ofereceu também a sapos-de-chifre e aranhas. A maior parte dos predado-res não suportou o mau cheiro. Depois de abocanhar o grilo fedorento, o sapo passou a pular e se debater até vomitá-lo vivo. O único predador que conse-guiu comer o grilo, ainda que com cer-ta dificuldade, foi o gambá-de-orelha-branca, relatam os pesquisadores em artigo do Journal of Chemical Ecology.

“Tivemos o cuidado de estudar ani-mais que vivem nas mesmas áreas que os opiliões e os incluem em sua dieta”, diz Machado, que no início do ano passado publicou em parceria com Ricardo Pinto da Rocha, da USP, e Gonzalo Giribet, da Universidade Harvard, o livro Harvest-men: the biology of opiliones. Com capítu-los escritos por 25 autores, o livro traz novidades sobre morfologia, taxonomia, comportamento e ecologia dos opiliões, um dos grupos animais mais antigos da Terra. Como só se deslocam por curtas distâncias, é provável que as espécies en-contradas em diferentes regiões do mun-do vivam nesses lugares há milhões de anos, dado que contribui para se com-preender a evolução do planeta. “Olhan-do a distribuição atual e estabelecendo relações de parentesco, verificamos que há espécies muito semelhantes no Chile, na África do Sul e na Austrália”, conta Ma-chado. Não por acaso, esses países estão em blocos continentais que centenas de milhões de anos atrás estavam reunidos no supercontinente Gondwana. ■

Investimento parental e evolução do comportamento subsocial em opiliões da família Gonyleptidae (arachnida: opiliones)

MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Pesquisa - Jovem Pesquisador

CO OR DE NA DOR

GLAUCO MACHADO – IB/USP

INVESTIMENTO

R$ 141.737,16

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ASTRONOMIA

Nas entranhas do CosmoNas entranhas do CosmoNas entranhas do Cosmo

Na direção da constelação de Virgem, um aglomerado de galáxias abriga um buraco ne-gro tão grande que é difícil imaginar suas dimensões. Sua massa é 3 bilhões de vezes a do Sol e, caso estivesse no cen-

tro do Sistema Solar, ocuparia todo o espaço até o sexto planeta, Saturno. Nos últimos anos astrofísicos de vários paí-ses, Brasil inclusive, analisaram imagens feitas pelo telescópio espacial Chandra da região central da galáxia Virgo A, uma das 2 mil do aglomerado de Vir-gem, e de outras oito de porte seme-lhante que abrigam buracos negros em seus núcleos, distantes entre 50 milhões e 400 milhões de anos-luz da Terra. Desse mergulho nas entranhas do Cos-mo, começam a emergir respostas sobre como esses objetos que concentram tanta massa em um volume tão peque-no interagem com o espaço ao seu redor e contribuem para determinar a arqui-tetura do Universo.

Cerca de dois anos atrás a equipe do astrofísico Steve Allen, da Universi-dade Stanford, nos Estados Unidos, obteve as primeiras evidências de que esses glutões cósmicos, capazes de ar-rastar para seu interior a matéria e a energia que se aproximam demais, não consomem tudo o que engolem. Uma pequena parte é lançada para fora das galáxias que os abrigam na forma de poderosos jatos de partículas eletrica-mente carregadas (plasma). No caso de Virgo A e das outras oito galáxias, esses jatos são lançados em sentidos opostos e varrem o espaço acima e abaixo do buraco negro, criando duas imensas

bolhas de gás aquecido que emitem os raios X detectados pelo telescópio Chandra e, observadas em conjunto, lembram uma ampulheta.

Reexaminando os dados sobre es-sas ampulhetas cósmicas, o astrofísico Rodrigo Nemmen da Silva, de 26 anos, deu um passo além na compreensão de como os buracos negros com massa equivalente à de bilhões de sóis devol-vem ao Cosmo parte da energia que absorvem. Sob orientação de Thaisa Storchi Bergmann, da Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul (UFRGS), ele criou um modelo matemático que permitiu caracterizar com mais preci-são os buracos negros gigantes. Conhe-cendo apenas a energia liberada pelos jatos de plasma, o jovem astrofísico gaúcho fez uma espécie de engenharia

Ampulheta: jatos criam bolhas de gás acima e abaixo do buraco negro

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Buracos negros gigantes convertem parte da matéria que capturam em jatos de partículas que varrem o espaço ao seu redor | RI C A R D O ZO R Z E T TO

reversa: partiu dos resultados para chegar às causas. E funcionou.

Os jatos de partículas desses bura-cos negros liberam a cada segundo uma quantidade de energia 50 vezes superior à produzida pelo Sol em um ano – ou ainda o correspondente à energia gerada em 365 dias por 250 bilhões de usinas hidrelétricas como Itaipu, a maior do mundo. Rodrigo constatou que toda essa energia, sufi-ciente para abastecer o Brasil durante 50 bilhões de anos, é apenas uma ínfi-ma parte de tudo o que o buraco negro consome. De modo semelhante aos se-res vivos, também um buraco negro se alimenta de matéria para produzir energia que o faz crescer. E, como sem-pre, os números são astronômicos.

“A cada dia ele absorve do anel de gás e poeira que o envolve, o chamado disco de acreção, o correspondente à massa de dez planetas como a Terra”, conta Rodri-go, que trabalhou em colaboração com Richard Bower, da Universidade de Durham, na Inglaterra, e Arif Babul, da Universidade de Victoria, no Canadá. Seus cálculos mostram ainda que os bu-racos negros são mais eficientes na pro-dução do jato de plasma do que Allen havia sugerido em artigo publicado em 2006 na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. Ao compa-rar a quantidade de gás que se aproxima do buraco negro com a energia dos jatos, Rodrigo levou em conta a possibilidade de que nem toda a matéria seja captura-da e incorporada à sua massa, fazendo-o crescer lentamente. Assim, teria de haver um mecanismo mais eficiente originan-do esses jatos que afastam e aquecem o

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gás rico em hidrogênio e hélio, abrindo as cavidades em forma de ampulheta. “Outros já haviam observado que existe uma relação entre a quantidade de ma-téria capturada pelo buraco negro e a potência dos jatos, mas obtinham uma eficiência menor porque não levavam em consideração alguns efeitos que in-cluímos em nosso modelo, como a rota-ção do buraco negro”, comenta Thaisa.

No limite - Na realidade, a dupla da UFRGS só consegue explicar a maior eficiência na produção dos jatos se o buraco negro estiver girando muito ra-pidamente. Pelos cálculos de Rodrigo, os buracos negros observados pelo te-lescópio Chandra estão em rotação a velocidades altíssimas que variam entre 90% e 99,8% da velocidade da luz (300 mil quilômetros por segundo), o limite máximo de rotação previsto pela Teoria da Relatividade Geral, formulada por Albert Einstein. “A essa velocidade, um buraco negro com essas dimensões da-ria uma volta completa em torno do seu eixo em apenas 24 horas”, diz Rodrigo, que publicou seus resultados em 2007 na Monthly Notices of the Royal Astro-nomical Society e os apresentou em 10

de janeiro deste ano no 211º encontro anual da Sociedade Astronômica Ame-ricana, o mais importante da área.

Girando quase à velocidade da luz, o buraco negro torna-se mais achatado nos pólos. Nessa rotação ultra-rápida, arrasta consigo a parte interna da nu-vem de gás que forma o disco de acre-ção. Nesse disco, o gás se movimenta a velocidades cada vez mais altas à medi-da que se aproxima do horizonte de eventos, região correspondente à super-fície do buraco negro a partir da qual nada escapa de ser engolido. Embora não se conheçam em detalhe os meca-nismos de formação dos jatos, acredita-se que, à medida que o gás vai espiralan-do em direção ao buraco negro, ele ar-rasta junto o campo magnético. Este, por sua vez, gera uma espécie de funil magnético que concentra as partículas em feixes paralelos originando os jatos perpendiculares ao disco.

“Conhecer a rotação de um buraco negro é importante porque permite compreender o efeito que ele provoca em seu ambiente”, diz Rodrigo, que atual-mente faz estágio na Universidade do Estado da Pensilvânia. Diferentemente do que muitos possam pensar, nem

sempre os buracos negros estão ativos, devorando nuvens de gás, estrelas ou até mesmo galáxias inteiras que cruzam seu caminho – e emitindo os poderosos ja-tos observados pelo Chandra. Segundo Thaisa, calcula-se que um buraco negro como o de Virgo A, provavelmente for-mado bilhões de anos atrás, capture e consuma uma estrela a cada 10 mil anos. Somente em intervalos de quase 1 bi-lhão de anos é provável que consuma uma galáxia. Nesse caso, o disco de acre-ção e os jatos de plasma poderiam per-manecer ativos por cerca de 100 milhões de anos, alterando o ambiente ao redor.

E seus efeitos não se restringem às suas proximidades. Até pouco tempo atrás, antes de o telescópio espacial Hub-ble identificar buracos negros na maioria das galáxias, os modelos de formação do Universo eram mais precários. “Eles pre-viam que as galáxias deveriam ser bem maiores do que de fato são por não con-siderarem esse efeito produzido pelos buracos negros, que lançam ao meio in-tergaláctico parte da matéria que faria as galáxias crescerem”, diz Thaisa. “A desco-berta de buracos negros na maioria das galáxias tornou possível chegar-se a pro-postas mais próximas da realidade.” ■

Rumo ao infinito: feixes de partículas lançadas para além da galáxia Virgo A

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FÍSICA

PRETO OU

Futebol e política parecem terre-nos férteis para o extremismo. Um típico torcedor do Corin-thians jamais sairia às ruas com uma camisa do São Paulo ou do Palmeiras, assim como quem sempre simpatizou com os libe-

rais certamente se recusaria a dar seu voto a um conservador. Na tentativa de entender como surgem e se disseminam as opiniões polarizadas, o físico André Cavalcanti Rocha Martins, da Univer-sidade de São Paulo (USP), buscou ins-piração no mundo das partículas atô-micas para criar um programa de com-putador capaz de representar, ainda que de modo simplificado, como as pessoas interagem e trocam idéias em uma comunidade. Por meio de seu mo-delo computacional, Martins chegou à curiosa constatação de que o radicalis-mo pode prevalecer em um grupo mes-mo quando as pessoas tendem inicial-mente a apresentar idéias moderadas.

Pesquisador da Escola de Artes, Ciên-cias e Humanidades da USP, Martins desenvolveu seu programa a partir de propriedades da mecânica estatística, a parte da física que trata da associação entre fenômenos em escala microscópi-ca com fenômenos em escala macroscó-pica. Mais especificamente, ele simulou a troca de informações entre as pessoas de uma comunidade tomando por base um modelo de como partículas elemen-tares – como os elétrons – se compor-tam em um campo magnético.

Uma das características que podem ser estudadas durante a interação entre essas partículas é o chamado spin, que pode ser caracterizado, grosso modo, co-mo o sentido de rotação dos elétrons (horário ou anti-horário). “Quando se estuda um punhado de elétrons, uma aproximação razoável é considerar que alguns podem girar no sentido horário, enquanto outros rodam no anti-horário. Cada partícula da amostra interage com suas vizinhas e, influenciada pelo spin delas e por campos magnéticos, acaba mudando o seu”, explica Martins.

Descrito assim, o processo não pa-rece muito diferente da maneira como uma determinada opinião se espalha em um grupo de pessoas. E é assim que funciona a maior parte dos modelos matemáticos desenvolvidos para ex-plicar esse tipo de situação. Os mode-los ditos binários permitiriam às pes-

soas expressar somente uma de duas opiniões, em geral opostas e mutua-mente excludentes: sim ou não ou ain-da “torço pelo Corinthians ou pelo São Paulo”. Já nos chamados modelos con-tínuos as opiniões são representadas por uma medida, usualmente qualquer valor entre 0% e 100%, que representa a opinião de um indivíduo. No exem-plo futebolístico, seria como se uma pessoa torcesse preferencialmente pelo Corinthians, mas também pudesse ter certa queda pelo São Paulo.

Ao criar seu próprio modelo, Mar-tins decidiu aprimorá-lo acrescentando algum grau de incerteza: a opinião das pessoas é representada por uma proba-

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Simulações em computador explicam como opiniões

bilidade entre duas opções – Corin-thians e São Paulo –, mas a opinião verdadeira não é revelada para quem está por perto. “No meu modelo, tenho uma opinião probabilística, mas não mostro essa incerteza para meus vizi-nhos. Se a probabilidade de alguém de ter uma opinião for maior que 50%, essa pessoa interage com os vizinhos mostrando sua escolha preferencial. Se for menor que 50%, ela revela a opinião contrária”, explica Martins.

A surpresa veio quando ele colocou seu programa para rodar milhares de vezes seguidas. Independentemente da opinião inicial de cada indivíduo, a ten-dência predominante era surgirem gru-

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opostas se disseminam na população | REINALDO JOSÉ LOPES

BRANCO

pos extremistas, com opiniões opostas. Ou seja, não importava muito se os in-divíduos começavam todos com um julgamento neutro e não torcesse nem pelo São Paulo nem pelo Corinthians. Ao interagir com o grupo, opiniões se consolidavam e tornavam-se cada vez mais difíceis de serem alteradas, como se a maior parte daquela população passasse a integrar torcidas fanáticas de um dos dois times – e apenas uns pou-cos mantivessem uma posição mais moderada. Na tela do computador, Martins via uma mistura inicial de pontos pretos e brancos se transforma-rem em grandes manchas bem-defini-das: pretas ou brancas. “As opiniões

foram se reforçando e começaram a surgir grupos em que todos pensavam da mesma maneira”, afirma Martins, que esperava uma influência mais im-portante das condições iniciais do sis-tema sobre o resultado final.

Do contra - O físico, que descreve esses resultados em um artigo a ser publica-do em breve no International Journal of Modern Physics C, é o primeiro a reco-nhecer as limitações do modelo para simular o que acontece no mundo real. Um elemento que não foi incorporado à simulação são os chamados contra-rians – indivíduos que são literalmente do contra, que insistem em adotar sem-

pre a opinião oposta à dos vizinhos. “Nesse modelo, os agentes ainda são extremamente simples. Nenhum deles é realista”, afirma Martins. O resultado, porém, mostra que a partir de regras simples sobre o comportamento de partículas atômicas é possível tirar con-clusões sobre o comportamento do mundo macroscópico. “Assim como não é preciso saber a posição de todas as moléculas num copo com água para medir a temperatura do líquido, não é necessário saber a opinião de cada in-divíduo de um grupo para predizer como os grupos pensam”, diz.

Um dos pressupostos curiosos do trabalho, que pode representar bem o que acontece em situações reais, é que os indivíduos interagiam de forma mais intensa e constante com grupos locais – ou seja, com os vizinhos. Eis aí um possível solo fértil para o surgimento do extremismo, sugere o físico: “Esses grupos locais só trocam opiniões entre eles, ficam meio fechados, ainda que nas bordas possa haver interação com outros grupos”.

Para Martins, não é surpreendente que só agora as ciências naturais te-nham começado a tentar enfrentar pro-blemas ligados ao comportamento so-cial humano. “Não dá para negar que são questões mais difíceis. É claro que é mais fácil descrever o comportamento de um átomo do que o de um ser hu-mano”, afirma. “Haverá quem não gos-te do modelo simplesmente porque ele usa matemática. O fato é que a nossa área e as ciências humanas precisam conversar mais”, diz Martins. Para ele, especialistas como sociólogos pode-riam trazer contribuições valiosas a esse tipo de modelagem, criando repre-sentações mais realistas das interações sociais em grande escala ou do com-portamento humano. O físico, aliás, participa do Grupo Interdisciplinar de Física da Informação e Economia (Gri-fe) da USP, voltado para promover a interação entre essas áreas. “Queremos ver, por exemplo, o que resultados co-mo esses podem dizer sobre a dinâmica do mercado”, conta. ■

Berço de radicais: grupos com posições extremas se formam mesmo quando os indivíduos têm opinião inicial moderada

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internetwww.scielo.org

Notícias

Durante as comemorações dos dez anos da SciELO ocorreram a apresentação e o lançamento do novo Portal SciELO, levado ao ar no dia 8 de janeiro. A nova versão dá acesso aberto e gratuito aos índices estatísticos, novos fascículos disponíveis, busca e recuperação de informações de forma integrada, links para outras bases de dados, serviços personalizados, e uma série de outros recursos. A partir do cadastramento e identificação de perfil, podem-se obter serviços personalizados como alerta sobre novos fascículos publicados, criar uma coleção de artigos e fascículos, entre outras opções disponíveis.

■ Psicologia

Sexualidade e paraplegia

No trabalho “A reinvenção da sexualidade masculina na paraplegia ad-quirida”, de Luiz Carlos Avelino da Silva, da Uni-versidade Fede-ral de Uberlân-dia, e Paulo Al-bertini, da Universidade de São Paulo, a sexua-lidade masculina é discutida a partir da condi-ção de um homem com lesão medular. Seu objetivo foi investigar o impacto da paraplegia adquirida na sexualidade masculina. Metodo-logicamente adotou-se uma abordagem quali-tativa e coletou-se a história de vida por meio de entrevistas. As principais conclusões apon-tam para um deslocamento das representações da masculinidade associadas à força, virilidade e violência, para um posicionamento interno e a busca de formas de viver a sexualidade que valorizam a singularidade da experiência, em detrimento dos modelos tradicionais.

REVISTA DO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA. UFF – VOL. 19 – Nº 1 – NITERÓI 2007

www.pesquisarevista.fapesp.br/scielo144/psicologia.htm

■ Administração pública

Treinamento via web

Treinamentos corporativos a distância via web vêm se tornando cada vez mais freqüentes, à medida que as empresas precisam continua-mente capacitar seus profissionais a um custo acessível. No entanto, de um modo geral, as organizações não sabem quais são os fatores-chave de sucesso para iniciativas dessa nature-za. Assim, o artigo “Fatores-chave de sucesso no treinamento corporativo a distância via

web”, de Luiz Antonio Jóia, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, e Mário de Figuei-redo Cunha da Costa, da IBM, investiga alguns fatores críticos de sucesso associados a esses empreendimentos digitais. Para tal, o método de estudo de casos múltiplos divergentes é uti-lizado, analisando-se dois treinamentos cor-porativos na web realizados por uma grande empresa multinacional – um considerado caso de sucesso e outro de fracasso. A partir da comparação dos resultados obtidos, pela aná-lise quantitativa dos dados coletados usando-se regressões bi e multivariadas, assim como testes de comparação de médias, e vis-à-vis o frame teórico adotado para avaliação de trei-namentos na web, pode-se concluir que “orien-tação dos objetivos”, “motivação dos alunos” e “suporte metacognitivo” foram os três fato-res críticos de sucesso encontrados.

REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – VOL. 41 – Nº 4 – RIO DE JANEIRO – JUL./AGO. 2007

www.pesquisarevista.fapesp.br/scielo144/administracaopublica.htm

■ Endocrinologia

Reposição hormonal

Embora a reposição estrogênica esteja dis-ponível há mais de seis décadas, as mulheres e mesmo os profissionais da saúde estão confu-sos pelas opiniões divergentes em relação aos riscos e benefícios da terapia hormonal na me-nopausa (THM), estrogênica (TE) ou estro-progestagênica (TEP). A principal indicação para terapêutica hormonal na menopausa é o alívio dos sintomas menopausais, tais como sintomas vasomotores, alterações gênito-uri-nárias e a prevenção de osteoporose nas pa-cientes de risco. Em outras áreas de pesquisa, principalmente ao que se refere aos efeitos nos sistemas cardiovasculares e nervoso central, os resultados atuais na literatura são conflitivos. O tratamento por mais de cinco anos não adi-ciona risco significativo para câncer de mama, mas diminui significativamente o risco de fra-tura osteoporótica. Algumas mulheres podem

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 63

ser suscetíveis a risco tromboembólico precoce, mas quando a TH for adequada após avaliação individuali-zada, os benefícios superam os riscos e o tratamento deve ser recomendado. Estudos futuros são necessários para identificar novas indicações para TH e diminuir ou abolir seus riscos. A pesquisa clínica continua na identificação de fatores genéticos que possam influen-ciar a resposta individual à TH, diferentes formulações estrogênicas, diferentes vias de administração e libera-ção, além das opções de dose. Nas mulheres que apre-sentam os sintomas da síndrome climatérica de forma severa durante a peri e pós-menopausa já existem evi-dências conclusivas oriundas de vários estudos rando-mizados controlados de que a TH é a única terapia com resultados satisfatórios. De acordo com o trabalho “Te-rapia hormonal da menopausa”, de Dolores Pardini, da Universidade Federal de São Paulo, os médicos devem sempre fazer suas decisões terapêuticas com base nos riscos e benefícios individuais de cada paciente, tendo a responsabilidade e o dever de promover as condições para a mulher atravessar a transição menopáusica com qualidade de vida.

ARQUIVOS BRASILEIROS DE ENDOCRINOLOGIA & METABOLOGIA – VOL. 51 – Nº 6 – SÃO PAULO – AGO. 2007

www.pesquisarevista.fapesp.br/scielo144/endocrinologia.htm

■ Antropologia

Famílias em movimento

Depois da publicação das cartas de Freud a Fliess a literatura psicanalítica começou a prestar atenção à babá de Freud e, por consequência, à importância da babá na família ideal dessa literatura. Incluída, na prática, nos modelos explicativos de análise da família burguesa des-de o século XIX, a babá, ainda demasiado presente nas famílias de classe média e alta no Brasil, foi excluída da teoria analítica e continua a pôr em questão o triângulo “papai-mamãe-filho”, de acordo com o artigo “A babá de Freud e outras babás”, de Mariza Corrêa, da Universida-de Estadual de Campinas.

CADERNOS PAGU – Nº 29 – CAMPINAS – JUL./DEZ. 2007

www.pesquisarevista.fapesp.br/scielo144/antropologia.htm

História

Dramas de São Paulo

O artigo “Os dramas da cidade nos jornais de São Paulo na passagem para o século XX”, de Valéria Gui-marães, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, trata das representações da cidade de São Paulo feitas pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1910, e da censura à imprensa, através de um relatório de Justiça,

por esta divulgar casos de suicídios no estilo de fait di-vers, na passagem do século XIX para o XX. A autora trabalha com a hipótese de que a postura do relator fazia parte de uma extensa ação disciplinadora de con-trole da cidade, à qual a imprensa não escapava. Tal ação disciplinadora estava pautada pelas teorias racistas e deterministas de matriz européia e articulava diversas instâncias do poder. Aplicadas de modo particular ao contexto brasileiro em razão do passado escravista, a tentativa de ordenamento da cidade agrega o racismo de cor ao de classe, redimensionado no novo contexto republicano.

REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA – VOL. 27 – Nº 53 – SÃO PAULO – JAN./JUN. 2007

www.pesquisarevista.fapesp.br/scielo144/historia.htm

■ Tecnologia de alimentos

Hambúrguer de coelho

O objetivo do texto “Processamento e aceitação sen-sorial do hambúrguer de coelho (Orytolagus cuni-cullus)” é verificar a potencialidade do aproveitamento tecnológico da carne do coelho, através do processa-mento de hambúrguer, e submeter o produto a análises físico-químicas (composição centesimal) e sensorial (teste de aceitabilidade, representado por Escala Hedô-nica de sete pontos). O trabalho é de autoria de Rodrigo de Souza Tavares, Adriano Go-mes da Cruz, Thiago Silva de Oliveira, Ali-ne Rosa Braga, Fer-nanda Almeida dos Reis, Iracema Maria Carva lho da Hora, Rosângela da Costa Teixeira e Edmir Fer-nandes Ferreira, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis. Os resultados obtidos para as análises físico-químicas foram: umidade (68,34 ± 0,80)%, cinzas (1,01 ± 0,06)%, proteínas (18,37 ± 0,03)%, lipídios (3,59 ± 0,04)% e carboidratos (8,69 ± 0,07)%, resultados estes condizentes com a legislação. A análise sensorial indi-cou uma ótima aceitação do produto, obtendo média de 5,85 e classificando o produto entre os pontos “gostei moderadamente” e “gostei muito”. Os resultados con-firmam o potencial tecnológico da carne de coelho pa-ra a elaboração de produtos cárneos e sua viabilidade de produção e comercialização para consumo humano.

CIÊNCIA E TECNOLOGIA DE ALIMENTOS – VOL. 27 – Nº 3 – CAMPINAS – JUL./SET. 2007

www.pesquisarevista.fapesp.br/scielo144/tecnologiadealimentos.htm

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64 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

A diferença entre esses microorganismos e as bactérias atualmente utilizadas em processos semelhantes é sua capacidade de suportar altas temperaturas. Os pesquisadores obtiveram culturas enriquecidas para produção de hidrogênio

prospectar microorganismos termofílicos (que vivem em ambientes com temperaturas elevadas) derivados de fontes de água quente, como as existentes na Islândia, capazes de participar do processo fermentativo que dá origem a tais combustíveis.

da Islândia e de Taiwan. Eles acabam de identificar novas linhagens de bactérias com potencial para produzir hidrogênio combustível e etanol de água atualmente descartada por indústrias que fabricam açúcar de beterraba e de batata. O objetivo do grupo era

> Etanol de água industrial

A busca por combustíveis alternativos leva muitas vezes à procura por resíduos de biomassa até pouco tempo atrás impensáveis, como mostra um estudo de pesquisadores da Finlândia,

Uma nova geração de dirigíveis está sendo

elaborada pela empresa norte-americana Ae-

ros. A idéia é produzir imensas aeronaves para

transportar carga e passageiros entre duas

cidades. Os dirigíveis atuais são como balões inflados de gás hélio

com uma pequena cabine na parte de baixo, usados principalmen-

te para veicular publicidade ou para fazer filmagens. Cheios de gás,

eles são posicionados e direcionados por pequenas hélices. A em-

presa quer dotar essas aeronaves de esqueletos internos dentro

do balão. Seriam dirigíveis rígidos com fibras de vidro e carbono,

capazes de carregar pessoas e um considerável volume de cargas.

O modelo ML866 já com o design finalizado está previsto para ter

uma cabine de 500 metros quadrados e 64 metros (m) de compri-

mento, o dobro de um Boeing 737-600, 32 m de largura e 16 m

altura. Terá velocidade máxima de 222 km/h, um terço do mesmo

Boeing, e voará a 3 mil m de altitude, mais baixo que os aviões. A

vantagem é que consumirá muito menos combustível num vôo

quase silencioso. A empresa recebeu US$ 3,2 milhões da Agência

de Pesquisas em Projetos Avançados (Darpa), do governo norte-

americano. O primeiro protótipo do ML866 deverá voar em 2010. ML866: em 2010, protótipo para carga

Indivíduos que sofrem de asma ganharão, em breve, um novo aliado contra a

doença. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia (GTRI), nos Estados

Unidos, inventaram um aparelhinho que monitora continuamente o ar em torno

de pessoas suscetíveis a ataques de asma. O equipamento cabe no bolso de um

colete e poderá ajudar os médicos a entender os fatores ambientais por trás dos

ataques. O sensor mede sete parâmetros relacionados às condições do ar: con-

centração de formaldeído, dióxido de carbono, ozônio e dióxido de nitrogênio,

temperatura, umidade relativa e presença de compostos orgânicos voláteis totais

(VOCs). Esses últimos são emitidos como gases de diversos produtos, tais como

tintas, pesticidas e produtos de limpeza, entre outros. Além de detectar essas

variantes, o sensor também é dotado de um filtro capaz de coletar partículas do

ar para serem analisadas em laboratório. O aparelho pesa cerca de 400 gramas,

incluindo as baterias, e faz medidas a cada dois minutos. Os dados são armaze-

nados na memória. O próximo passo da equipe será desenvolver aparelhos ainda

menores e com sensores mais sensíveis e, com eles, realizar estudos populacio-

nais para entender as causas ambientais das crises de asma.

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 65

elétrica de uma pequena bateria instalada na própria roupa. Os fios são tingidos com uma tinta eletroluminescente e encapsulados dentro de outra fibra protetora transparente, da mesma forma que um fio de cobre é imerso numa capa plástica. Embora seja menos flexível do que as fibras convencionais, como algodão e lã, o chefe do Centro de Inovação William Lee, Tilak Dias, garante que a nova tecnologia já pode ser incorporada na confecção de tecidos e em avisos costurados sobre camisetas ou outras peças de vestuário, além de servir como um simples enfeite (London Press).

sol e profissionais que trabalham à noite nas ruas, como garis e guardas de trânsito. Pesquisadores do Centro de Inovação William Lee da Universidade de Manchester, na Inglaterra, criaram um tecido que brilha no escuro como se fosse uma lâmpada néon. A novidade não deve ser confundida com um adesivo fosforescente, como os já existentes no mercado, e também não requer nenhum tipo de fonte luminosa externa para brilhar, como outros tecidos com tecnologia semelhante. Trata-se, na verdade, de um tipo de fibra eletroluminescente que emite luz quando exposta a uma corrente

e etanol de várias fontes termais com temperaturas entre 50 e 78 graus Celsius. O estudo foi publicado na edição de janeiro-fevereiro da revista Energy & Fuels, da Sociedade Americana de Química. Embora os achados sejam promissores, os cientistas afirmam que novos estudos devem ser feitos para comprovar o verdadeiro potencial produtivo das bactérias recém-identificadas.

> Repelente de óleo

Um material com estruturas que podem repelir óleo foi desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A novidade poderá ter aplicações na aviação, em espaçonaves, principalmente em peças que ficam encharcadas de óleo, e na limpeza de lixo contaminado. O material “oleofóbico” apresenta essa qualidade porque foi produzido com microfibras que permitem a formação e o assentamento das gotas de óleo sobre ele, mas sem tocar a superfície. Isso acontece porque quando a gota de óleo cai sobre o material, que possui uma fina camada sintética de polímeros formadores da microfibra, elas repousam sobre bolsas de ar existentes entre essas microfibras. O largo ângulo de contato entre as gotas e a fibra impede que o óleo toque e molhe a superfície do material, que pode ser de metal, vidro e plástico.

A energia solar ainda

não exerce forte pre-

sença na matriz ener-

gética mundial pelo seu

alto custo de implanta-

ção, em torno de US$ 5

a US$ 10 por watt ins-

talado. Mas uma em-

presa da Califórnia,

Estados Unidos, locali-

zada no Vale do Silício,

a Nanosolar, anunciou

em dezembro que pode

instalar seus sistemas

de energia solar por

US$ 0,99 o watt. A ino-

vação da Nanosolar é

a produção de painéis

flexíveis, chamados de

PowerSheet, sem o tra-

dicional uso do silício, a matéria-prima principal dos atuais painéis. Os pesquisadores da em-

presa criaram um filme com material semicondutor (com cobre, índio, gálio e um composto de

selênio) que é aplicado numa placa de alumínio igualmente muito fina. A camada com material

semicondutor tem a dimensão de nanômetros e é capaz de absorver a energia solar e trans-

formá-la em eletricidade. A Nanosolar tem investimentos dos fundadores do Google e recebeu

financiamento de US$ 20 milhões do Departamento de Energia do governo norte-americano.

O primeiro lote de painéis da empresa, depois de cinco anos de pesquisas, será instalado na

Alemanha neste ano. Os mesmos dispositivos ganharam o prêmio Inovação do Ano de 2007

da revista norte-americana de divulgação científica Popular Science.

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Fios tingidos com tinta eletroluminescente

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> Tecido luminoso

Uma boa notícia para pedestres, ciclistas e corredores que gostam de se exercitar depois do pôr-do-

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66 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

Viçosa, com quatro das 12 aprovações. As propostas foram apresentadas dentro de sete linhas temáticas, dentre as quais constam aperfeiçoamento dos sistemas e custo de produção de espécies vegetais destinadas à geração de bioenergia; avaliação de sistemas de produção, introdução e testes de cultivares de espécies oleaginosas para a região norte de Minas; e produção de sementes melhoradas, de espécies vegetais, destinadas à produção de biocombustíveis.

> Biocombustível mineiro

O programa mineiro de desenvolvimento tecnológico e produção de biocombustíveis, que tem como objetivo apoiar a estruturação de um pólo de excelência na área, aprovou 12 propostas das 29 recebidas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), no montante de R$ 2,2 milhões. A instituição que se destacou foi a Universidade Federal de

seus produtos para a Europa e os Estados Unidos. A empresa, que tem entre seus clientes empresas como Dow Química, Telemar e Companhia Vale do Rio Doce, foi uma das primeiras empresas brasileiras a aderir ao Projeto Setorial Integrado para Exportação de Software e Serviços Correlatos, coordenado pela Promoção da Excelência do Software Brasileiro (Softex) com apoio técnico e financeiro da Agência de Promoção das Exportações e Investimentos.

> Bahia exporta software

A empresa ZCR Informática, de Salvador, Bahia, fechou contrato de exportação de serviços de desenvolvimento de software para Portugal e Espanha. A empresa, que desde 1991 atua nesse mercado, foi a primeira do Nordeste a conquistar, em 2006, o nível 2, numa escala de 5, do mais respeitado padrão de qualidade de software do mundo, o CMMI, sigla em inglês de capability maturity model integration. A concessão desse atestado de qualidade é necessária para que a empresa consiga exportar

Telha reciclada feita com embalagenslonga-vida e telha cerâmicasão as indicadaspara instalaçõeszootécnicas

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As condições ideais de conforto térmico para cria-

ção em confinamento de bovinos de corte e de leite,

suínos, eqüinos e aves, na região oeste do estado de

São Paulo, foram analisadas em um estudo realizado

em 2007. A primeira fase consistiu em avaliar quatro tipos de telhas para

instalações zootécnicas: cerâmica, cerâmica com pintura branca, de fibro-

cimento e reciclada feita com embalagens do tipo longa-vida descartadas.

A região teve temperaturas médias de 26,3ºC no verão, com máxima de

34,3ºC, e no inverno médias de 22,9ºC, com máxima de 34,7ºC. “Além da

temperatura máxima e mínima dentro das instalações, foram analisadas a

umidade relativa do ar e a velocidade do vento”, diz o professor Juliano

Fiorelli, da Faculdade de Zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp),

de Dracena, coordenador do estudo financiado pela FAPESP. A telha cerâ-

mica com pintura branca foi a que apresentou os melhores índices de con-

forto térmico, seguida pelas telhas cerâmica e reciclada, enquanto a de fi-

brocimento teve os piores índices. “A telha reciclada é boa opção para subs-

tituir a cerâmica, principalmente se for considerado que o custo de constru-

ção de uma instalação com esse material fica 25% menor”, diz Fiorelli.

AVALIAÇÃO ANIMAL

LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL>>

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 67

o químico Fenton, autor dos primeiros trabalhos com tecnologias oxidantes, em 1894. “O nosso trabalho foi otimizar a reação Fenton a partir de ensaios experimentais”, conta Andrade. O Fentox tem grande eficiência na descontaminação de matrizes líquidas – como águas subterrâneas contaminadas por derivados de petróleo, por exemplo –, enquanto o Fentox TPH age basicamente nos solos. Os produtos são biodegradáveis e não deixam rastros de aplicação por possuírem boa capacidade de decomposição. Os compostos atuam de 12 a 24 horas.

de Valinhos, no interior paulista, a tecnologia de dois reagentes químicos, Fentox e Fentox TPH, utilizados para o tratamento de áreas contaminadas. Foi a primeira patente licenciada da universidade já com a marca registrada. “Decidimos dar nome ao produto quando constatamos o seu enorme potencial de mercado”, explica o pesquisador Juliano de Almeida Andrade, que participou da equipe do professor Wilson Jardim, do Instituto de Química, no desenvolvimento dos reagentes. Os dois Fentox – aliados ao peróxido de hidrogênio – homenageiam

As cidades de Arara-

quara e São Carlos, no

interior paulista, estão

na disputa para sediar

uma fábrica de semi-

condutores, investi-

mento estimado em

cerca de US$ 700 mi-

lhões e capitaneado

pela empresa norte-

americana Symetrix,

que tem como diretor e

co-fundador o brasileiro

Carlos Paz de Araujo,

professor na Universi-

dade do Colorado. Arau-

jo desenvolveu e paten-

teou um sistema que

usa memórias ferroelé-

tricas em cartões inteligentes

de banco, metrô e celular. “En-

quanto os cartões magnéticos

têm que ser encostados a uma

leitora para passar a informa-

ção, a leitura dos cartões ferroelétricos se dá a uma distância de até 6 metros”, diz o professor

Elson Longo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), coordenador do Centro Multidisciplinar

para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, financiado pela FAPESP, que será responsável

pelo suporte em pesquisa e desenvolvimento para a fábrica principal. Além dela, outras duas

fábricas serão instaladas no Brasil. Uma em Pernambuco, para produção de dispositivos de lei-

tura óptica, e outra no Rio de Janeiro, para fabricação de chips. Pesquisadores e governo pau-

lista reuniram-se no dia 22 de janeiro para negociar as melhores condições para a que a fábrica

principal, que também está sendo disputada pelos outros estados, seja instalada aqui.

> Motonetas com energia do Sol

A empresa brasileira Motor-Z pretende recarregar as baterias das scooters elétricas que produz com eletricidade obtida da energia solar. No final de 2007, a empresa apresentou em Brasília, durante um seminário sobre energia solar, um sistema, ainda em protótipo, para recarregar suas motonetas. O estudo é feito com pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina. A empresa pertence ao grupo industrial brasileiro Zeppini que produz equipamentos para postos de abastecimento e já vendeu mais de 1.400 scooters em um ano. As baterias são recarregadas em uma tomada caseira, em 110 ou 220 volts. Entre os cinco modelos, a S800 possui um motor elétrico de 800 watts (w) que permite uma velocidade máxima de 45 km/h e autonomia de 55 km. O modelo V500 tem o design que lembra as antigas lambretas. Tem motor de 500 w, velocidade máxima de 35 km/h e 40 km de autonomia.

> Licenciamento com marca registrada

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) licenciou para a Contech Produtos Biodegradáveis,

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S800, à esquerda, atinge 45 km/h, e a V500 com estilo antigo

Chips de memória: oportunidade de produção

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68 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 144

BIOCOMBUSTÍVEIS

Etanol de mandioca doceVariedade de raiz açucarada reduz etapa no processo de produção do álcool combustível

Durante uma viagem de coleta de plantas na Amazô-nia o pesquisador Luiz Joaquim Castelo Branco Carvalho, da Embrapa Recursos Genéticos e Bio-tecnologia, de Brasília, conheceu uma variedade de mandioca que em vez de amido tem grande quan-tidade de açúcares na raiz. Esses açúcares são, em sua maior parte, glicose, que é o substrato utilizado

no processo de fermentação para a produção do etanol. A variedade descoberta pelo pesquisador é na realidade uma mutação genética, guardada e usada pelos índios brasileiros antes mesmo de os portugueses chegarem ao Brasil, para obtenção de bebida alcoólica. “Eles usavam a bebida, cha-mada caxirim, nas cerimônias religiosas e nas celebrações”, diz o pesquisador.

A planta mutante, após um processo tradicional de sele-ção de variedades e cruzamento com plantas adaptadas a algumas regiões escolhidas para futuros plantios, resultou em uma variedade que dispensa o processo de hidrólise do amido da mandioca para transformação em açúcar e con-versão em álcoois, inclusive o carburante para o combustível. “A eliminação da hidrólise do amido reduz em torno de 30% o consumo de energia no processo de produção de etanol de mandioca”, diz Carvalho.

Da variedade, chamada de mandioca açucarada, a raiz é colhida, moída, prensada e o caldo sai pronto para ser usado no processo de produção do álcool, o que a diferencia das outras matérias-primas utilizadas com a mesma finalidade. “Os substratos que existem no reino vegetal ou são sacarose, da cana, da beterraba e do sorgo sacarino, por exemplo, ou amido, do milho, de raiz de mandioca, grãos de arroz e grãos

DI N O R A H ER E N O

TECNOLOGIA>

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 69

de sorgo. Também podemos fazer etanol de bagaço da cana, de gramíneas e resíduos de lavouras”, diz Carvalho, que tem em seu currículo, além da formação em agronomia na Uni-versidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, mestrado em genética, doutorado em bioquímica e pós-doutorado em genética evolutiva e biologia molecular. Pelo processo tradi-cional de produção de álcool de mandioca é preciso recorrer a enzimas para transformar o amido em açúcar.

Nichos agrícolas - A proposta de produzir álcool a partir da mandioca açucarada não significa concorrência com o etanol de cana-de-açúcar, mas sim a possibilidade de ocupar outros nichos agrícolas, como a Amazônia, o Nordeste e o Centro-Oeste. Essas foram as regiões escolhidas por Carva-lho para dar início ao teste de variedade, primeiro passo para saber se a característica de produzir glicose em vez de amido mantinha-se em todos os locais. Como o ciclo da mandioca, do plantio à colheita, é longo, no caso da conven-cional fica entre 18 e 24 meses, os testes foram realizados entre os anos de 2001 e 2004. “Para a mandioca açucarada o ideal é a colheita ser feita dez meses após o plantio”, diz Car-valho. Isso porque, como a raiz é muito macia e contém grande quantidade de açúcares, se a planta não for colhida na época certa as raízes sofrem ataque de formigas e roedo-res, pragas que pouco atacam as mandiocas tradicionais.

Os resultados de três anos de experimentos apontaram uma produção que variou de 8 a 60 toneladas de raiz por hectare, dependendo da variedade plantada. A que teve me-lhor desempenho foi utilizada para cruzamentos de auto-polinização e cruzamentos convencionais com variedades

Mais de 600 produtos podem ser obtidos a partir da fécula da mandioca para utilização em vários setores industriais

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locais, para transferir a característica de elevada quantidade de glicose para as plantas adaptadas em diferentes regiões. Dependendo do lugar, a variedade já está pronta para ser usada para produ-ção em larga escala com a tecnologia agrícola da mandioca convencional. “Na região amazônica podemos agora fazer propagação clonal e dar início às lavouras”, diz o pesquisador. Para o Cerrado, a estimativa é que sejam ne-cessários cerca de três anos para plantio em uma área extensa, e para o Nordes-te, uns cinco anos.

Com a variedade testada foi obtido um rendimento de 14 metros cúbicos (m3) de álcool por hectare ao ano. Isso por um processo de fermentação que dura apenas dez horas. Pelo processo convencional de hidrólise de amido da mandioca o rendimento é em torno de 6,4 m3 de álcool por um processo de fermentação que dura cerca de 60 a 70 horas, enquanto o processo tradicional da cana chegou a 8 m3 num tempo de 48 horas. “Para chegar aos 14 m3 parti-mos para o melhoramento por meio do conhecimento de um processo biológi-co da planta em que ela própria hidro-lisa o amido depois de certo estágio de desenvolvimento e utilizamos a biotec-nologia para identificar a mutação ocorrida nos genes que deu origem ao

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mandioca de variedade

tradicional

Influência da densidade populacional em diferentes épocas de colheita na produção e na qualidade das raízes de mandioca de mesa (Manihot esculenta Crantz)

MODALIDADE

Auxílio Regular a Pesquisa

CO OR DE NA DORA

TERESA LOSADA VALLE - IAC

INVESTIMENTO

R$ 11.250,00 eUS$ 537,40 (FAPESP)

O PROJETO>

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açúcar disponível nas raízes da man-dioca açucarada”, diz Carvalho. As mesmas ferramentas da biotecnologia genômica funcional e da proteômica utilizadas pela equipe da Embrapa que identificou a mutação nos genes da mandioca açucarada foram também usadas para selecionar a mesma carac-terística nas variedades comerciais.

Alternativa viável - Produzir álcool combustível da mandioca não é novi-dade no Brasil. Desde os primeiros tempos da implementação do Proál-cool, o programa brasileiro criado no final de 1975, a planta era considerada uma alternativa viável para a produção de etanol. Naquela época, seis usinas foram instaladas no Brasil para a pro-dução de álcool a partir da mandioca. Entre 1978 e 1983 a Petrobras produziu o combustível em uma unidade do Ma-ranhão. No entanto, como essas usinas foram construídas em regiões pouco tradicionais de produção da planta, tornaram-se inviáveis. “Embora exis-tissem muitos projetos para estudos de

mandioca na época, poucos tinham base científica”, diz a engenheira agrô-noma Teresa Losada Valle, pesquisado-ra do Instituto Agronômico (IAC), de Campinas, no interior paulista, que há 23 anos pesquisa o tubérculo. “Além disso, inexistia uma tecnologia eficien-te para o cultivo em grande escala.”

Desde então, o cenário do cultivo da mandioca sofreu modificações, com um considerável desenvolvimento tec-

nológico da cultura, principalmente nos estados do Paraná, São Paulo e Ma-to Grosso do Sul. “Na região situada na área limítrofe dos três estados formou-se um complexo industrial que produz e processa cerca de 6 milhões de tone-ladas de raízes de mandioca para fari-nha e amido”, diz Teresa. Criou-se tam-bém uma indústria de insumos espe-cializados para o cultivo da mandioca totalmente brasileiro, que faz da região referência mundial. “O Brasil é grande exportador de tecnologia de mandioca tanto na área agrícola como na indus-trial”, diz a pesquisadora, que teve re-centemente um projeto aprovado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimen-to Científico e Tecnológico (CNPq) para estudar o tubérculo para a produ-ção de álcool.

“Com tecnologias industriais, mais de 600 produtos podem ser obtidos da fécula de mandioca para utilização em vários setores, que compreendem desde a indústria de alimentos, indústria si-derúrgica, farmacêutica, alimentação animal, indústria têxtil e de papel”, diz

Teste feito com iodo indica mandioca com açúcar (no alto) e com amido

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Evidências obtidas em testes de DNA e estudos arqueológicos apontam a origem e a domesticação da mandioca (Manihot esculenta) em uma região que compreende os estados do Acre, Rondônia e Mato Grosso há cerca de 10 mil a 12 mil anos. “O ancestral da mandioca surgiu naquela região, indicando que a domesticação foi feita na Amazônia”, diz o pesquisador Luiz Joaquim Castelo Branco Carvalho, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. O gênero Manihot é constituído por 98 espécies, sendo que 80 delas ocorrem no Brasil, 12 no México e o resto na América Central e do Norte. “Pela distribuição geográfi ca das espécies nas Américas e o número delas em locais específi cos é que se formulam as hipóteses de possível domesticação”, explica Carvalho. Das 98 espécies desse gênero, somente uma delas, que ocorre no Brasil, foi domesticada e é cultivada pelo homem.

Com a tecnologia de DNA estabeleceu-se que a mandioca cultivada é derivada de uma única espécie que seria o seu ancestral, denominada Manihot esculenta ssp. fl abellifolia. “As pesquisas arqueológicas relatam o achado de resíduos de mandioca em um sítio de mais de 8.400 anos numa região da Amazônia, na fronteira entre Brasil, Bolívia e Paraguai”,

diz Carvalho. Esse achado corrobora as pesquisas com DNA que indicaram que, em torno dessa região, foi encontrada a planta que deu origem à mandioca há cerca de 10 a 12 mil anos e, com isso, o início da domesticação pelo homem.

“A mandioca é um dos grandes legados indígenas para o mundo moderno”, diz a pesquisadora Teresa Losada Valle, do IAC. As culturas indígenas, que fi zeram da mandioca a sua base alimentar, ajudaram na domesticação de plantas que na atualidade podemos identifi car como sofi sticados processos biológicos e bioquímicos de grande utilidade na agricultura moderna. “A raiz altamente tóxica da mandioca-brava, uma variedade que contém alto teor de ácido cianídrico, transformava-se em farinha de mandioca sem nenhum vestígio de veneno e facilmente armazenável”, diz Teresa. O mesmo processo é utilizado ainda hoje. Na região fronteiriça entre o Brasil e o Paraguai, tribos indígenas desenvolveram variedades mansas, com reduzidíssima quantidade de substâncias tóxicas. A mandioca tornou-se uma planta tão efi ciente que virou um alimento básico na cultura da Amazônia antes do descobrimento, assim como o milho na região do México e a batata nos Andes.

Domesticação indígena

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Carvalho. A planta voltou a entrar na pauta de discussão para a produção de etanol desde que se intensificou a bus-ca por combustíveis renováveis e não poluentes. O amido também é uma das matérias-primas mais cotadas para substituir os produtos de plástico fabri-cados com derivados de petróleo.

Com relação ao processamento, as-sim como todas as matérias-primas amiláceas (batata-doce, milho), a man-dioca deve ter o amido quebrado em moléculas menores para que possa ser transformada em álcool pelas leveduras. Nos anos 1970, esse processo era bas-tante restritivo, porém atualmente as enzimas utilizadas no processo são efi-cientes, embora ainda com custos ele-vados, mas de fácil aquisição. E as pers-pectivas são de melhoria para o proces-so, uma vez que os Estados Unidos estão desenvolvendo novas tecnologias para a produção de etanol a partir do milho. “O amido é a forma de armazenamento

temporário de açúcares das plantas”, ex-plica Teresa. A mandioca armazena esse polissacarídeo, formado pela união de várias moléculas de glicose, nas raízes para usar em caso de necessidade, como quando falta água ou luz para a planta fazer a fotossíntese – funciona como uma reserva energética.

Para a pesquisadora, enquanto a cana se desenvolveu como um sistema de produção de grande escala, assim como ocorreu com a borracha e o café anteriormente, a mandioca para a pro-dução de etanol pode basear-se em um modelo totalmente diferente, funda-mentado em pequenas propriedades agrícolas extremamente eficientes. “Po-demos caminhar para isso por dois motivos: pela própria fisiologia da planta e pelo desenvolvimento tecno-lógico, que até agora progrediu com máquinas, equipamentos e sistemas de gerenciamento e manejo para pequenas propriedades”, diz Teresa.

Uma das características mais mar-cantes da mandioca é a capacidade de produção, mesmo em condições adver-sas. “Em solos pobres, com baixo nível de adubação, onde outras culturas são in-viáveis ou de alto risco, a planta tem um desempenho bastante satisfatório”, expli-ca a pesquisadora. Esse comportamento é explicado pela eficiente associação de fungos com raízes da mandioca, conhe-cida como micorrizas, e pela associação com outros microorganismos fixadores de nitrogênio. A planta também é resis-tente à falta de chuvas tanto no plantio como durante o período produtivo.

Alimento bovino - A mandioca é uma planta perene e, a partir do momento em que as raízes atingem uma produ-ção considerada satisfatória, por volta dos dois anos, podem ser colhidas, mas se ficarem no campo continuam acu-mulando amido. Além da raiz para eta-nol, é possível aproveitar as ramas para

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Dividido em três fases:1 - Coleta do germoplasma e reconhecimento do centro de origem e domestição da mandioca (de 1996 a 2001)2 - Geração e utilização das ferramentas biotecnológicas para identificação das mutações (2002 a 2004)3 - Testes de funcionalidade genética das mutações e geração das variedades comerciais (de 2005 em diante)

CO OR DE NA DOR

LUIZ JOAQUIM CASTELO BRANCO CARVALHO – Embrapa

INVESTIMENTO

1 - US$ 180 mil (Fundação Rockefeller)2 - R$ 194 mil (Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia);R$ 160 mil (CNPq) 3 - € 160 mil (Agência Internacional de Energia Atômica - IAEA, na sigla em inglês)

O PROJETO>

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alimentação animal. Para uma produ-ção de 50 toneladas de raiz, são produ-zidas de 40 a 50 toneladas de rama, que ficam abandonadas no campo. “Essa rama é um excelente alimento princi-palmente para bovinos, porque ela tem muita fibra, amido, proteína, sais mine-rais e açúcares”, diz Teresa. Para usá-la, basta picar e deixar evaporar o ácido cianídrico, que é tóxico.

Uma das grandes vantagens para exploração da mandioca como produ-tora de etanol é que não existe no mun-do um país que disponha de tanta diver-sidade genética dessa planta como o Brasil, porque ela foi domesticada aqui. O amido da planta é uma fonte energé-tica bastante eficiente. “Enquanto 1 to-nelada de cana produz 85 litros de ál-cool, 1 tonelada de mandioca com ren-dimento de 33% de amido e 2% de açúcares pode produzir 211 litros de ál-cool combustível, mas já existem varie-dades com 36% de amido”, diz Teresa.

Plantio demandioca em grande extensão de terra

Mesmo com esse resultado favorá-vel, o principal gargalo que a mandioca enfrenta em relação à cana para a pro-dução do etanol é a baixa produtivida-de agrícola. Dados do Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que em 2006 a produtividade média brasileira da mandioca ficou em 14 toneladas por hectare (t/ha), en-quanto a da cana apresentou rendi-mento de 74,4 t/ha no mesmo período. No estado de São Paulo, a produtivida-de média da mandioca para indústria ficou em torno de 26 t/ha, praticamen-te o dobro da nacional. O milho, prin-cipal matéria-prima utilizada nos Es-tados Unidos para a produção de eta-nol, apresentou produtividade média brasileira de apenas 3,4 t/ha.

Os custos de produção da cana são menores se comparados aos da man-dioca. Segundo dados divulgados pelo Centro de Estudos Avançados em Eco-nomia Aplicada (Cepea) da Escola Su-perior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo em Pira-cicaba, para a região de Assis, no inte-rior paulista, o custo da tonelada da cana foi de R$ 37,60 por tonelada na safra de 2005 a 2006, enquanto o da mandioca correspondeu a R$ 84,52 por tonelada no mesmo período. “O fato de a mandioca não apresentar viabilidade em comparação com a cana-de-açúcar ocorre devido a elevados investimentos realizados no setor sucroalcooleiro, que favoreceram ganhos em produtividade agrícola e em rendimentos industriais”, diz o pesquisador Fábio Isaias Felipe, do Cepea, que publicou estudos con-juntos com Lucilio Rogério Aparecido Alves, da mesma instituição, sobre o álcool de mandioca como fonte de energia. O pesquisador acredita que é possível viabilizar a produção de etanol da mandioca realizando os tratos cul-turais necessários e investindo na tec-nologia agrícola. “Certamente conse-guiremos resultados mais favoráveis para a mandioca, mas é preciso pensar em nichos específicos de mercado, e não na concorrência com o álcool a partir da cana.” ■

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Kit Alfa transformadoem veículo movido a pilhas e com sensores luminosos

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ROBÓTICA

Alfabetização tecnológicaRobôs desenvolvidos por pequena empresa estarão disponíveis para 60 mil estudantes neste ano

Foi logo após uma competição de robôs, em 2004, na cidade de Salvador, Bahia, durante um congresso da Sociedade Brasileira de Computação, que os pro-fessores Marcello Cláudio de Gouvêa Duarte e José Pacheco de Almeida Pra-do resolveram montar uma empresa

para produzir kits robóticos. A idéia era desen-volver pequenos robôs que pudessem ser cons-truídos de forma simples e instrutiva em sala de aula. Os dois são professores da Universidade Paulista (Unip) de Ribeirão Preto e do Centro Universitário de Lins (UniLins), no interior do estado, e contrariam o sentimento nacional de que vice-campeonato não tem nenhuma im-portância. Eles estavam à frente da equipe que representava as duas universidades e ficaram em segundo lugar na disputa em Salvador, a etapa Brasil da competição organizada pelo Institute of Electrical and Electronics Engineer (IEEE), uma das principais instituições inter-nacionais na área de desenvolvimento de tec-nologias eletroeletrônicas que tem sua base nos Estados Unidos.

Duarte e Prado conseguiram montar a em-presa e desenvolveram kits que hoje estão em várias escolas. Em 2007 o kit foi usado por cer-ca de 12 mil alunos, nas cidades de São Paulo, incluindo instituições como Santa Marcelina e Carnello Marques, São Carlos, Bauru, Lins, Sertãozinho, Ribeirão Preto, Limeira e Jundiaí, municípios paulistas, além de João Pessoa, ca-pital da Paraíba, e de Londrina, no norte do Paraná, atendendo a rede pública e particular. A meta é atingir 60 mil alunos e cem escolas em 2008, levando o projeto também para os estados da Bahia e de Santa Catarina. “Os pro-fessores escapam da lousa, as aulas tornam-se mais dinâmicas e, sem perder conteúdo, des-

pertam a curiosidade dos estudantes. É o que chamamos de alfabetização tecnológica”, ex-plica Prado.

No final de 2007, o Kit Alfa foi escolhido um dos 20 projetos do país, dos 239 apresen-tados, selecionados e certificados pelo Minis-tério da Educação (MEC) na área de Tecnolo-gias Educacionais – uma espécie de selo de qualidade do segmento. No mundo todo, principalmente nos Estados Unidos, Japão e Espanha, o uso de robôs educacionais se ex-pande e ganha mais espaço com a miniaturi-zação de componentes eletrônicos. Os primei-ros robôs em classe de aula apareceram nos anos de 1980, nos Estados Unidos, impulsio-nados pelos experimentos do professor sul-africano Seymour Papert, então no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que criou uma linguagem de computador, chama-da de Logos, no final da década de 1960 e es-creveu um livro, Mindstorms: children, compu-ters and powerful ideas, ou Tempestades men-tais, crianças, computadores e idéias poderosas, lançado em 1980. Suas idéias também incen-tivaram a criação do Lego Mindstorm, com-posto por kits de robótica, da tradicional em-presa dinamarquesa produtora do brinquedo Lego formado por pecinhas de encaixar. Os kits são comercializados por ela em todo o mundo, inclusive no Brasil. Aqui são os prin-cipais concorrentes da PNCA Robótica e Ele-trônica a empresa de Duarte e Gouvêa.

O sucesso educacional e empresarial da PNCA começou com o Montezuma, o robô que chegou em segundo lugar, atrás de uma equipe da Universidade Federal do Rio Gran-de do Norte (UFRN). Os robôs, programados para comportamento autônomo e construí-dos pelas diversas equipes inscritas na disputa,

FR A N C I S C O BI C U D O | F OTO S ED UA R D O CE S A R

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deveriam ser capazes de subir uma rampa branca com 25 centímetros de largura, formada por retas e curvas protegidas por paredes pretas, que le-vava ao topo de uma pirâmide qua-drangular com 1,60 metro de altura. Lá no alto as máquinas tinham que encai-xar uma bolinha de golfe em um bura-co com apenas 10 centímetros de diâ-metro. A tarefa deveria ser realizada em no máximo dez minutos. O Montezu-ma era movido por sensores ópticos, sonares, que emitem ultra-som, e de posição, que lhe permitiam corrigir a rota quando batia nas paredes, realizar curvas precisas e não cair da pirâmide. Ele lembrava a locomotiva de um trem (sem a chaminé e com muitos fios à vista) e acabou se destacando: na pri-meira etapa da competição foi o único robô a cumprir a prova. “Era muito efi-ciente, sempre conseguia encaçapar a bolinha”, recorda Prado. “Mas não ti-nha muita velocidade e fez o percurso em um tempo maior que o robô da equipe da UFRN, na etapa de desempa-te”, lembra Duarte.

A lém do significado simbólico do feito – eram sete as equipes partici-pantes, de algumas das mais impor-

tantes universidades do país –, os dois professores decidiram dar uma guinada nas trajetórias profissionais e transfor-maram uma idéia em uma sólida con-vicção: levar a robótica para as salas de aula e colocá-la à disposição dos profes-sores nos diferentes níveis de ensino. “A intenção era combinar a tecnologia com

um consistente viés pedagógico e apro-veitar os robôs para ensinar crianças a partir de 6 anos de forma lúdica e diver-tida”, explica Prado. Movidos por essa disposição, e ainda em 2004, os dois criaram a PNCA Robótica e Eletrônica. No ano seguinte, surgia a PETe (Plane-jamento em Educação Tecnológica).

As duas empresas atuam em sinto-nia e de forma complementar e são responsáveis por fabricar e comercia-lizar o Kit Alfa. Trata-se de um con-junto que oferece uma série de mate-riais necessários para a montagem de robôs em vários formatos, com for-mas, funções e tamanhos variados.

Os dois sócios admitem que combi-nar a carreira acadêmica com a atividade empresarial foi um salto no escuro. “Deu um frio na barriga”, revela Duarte. Ele é formado em engenharia elétrica na Uni-versidade de São Paulo (USP) e mestre em ciências da computação na Univer-sidade Federal de São Carlos (UFSCar). Curiosamente, Prado fez o caminho in-verso – graduado em ciências da com-putação na UFSCar e doutorado em engenharia elétrica na USP. Os dois ti-nham mais de dez anos de experiência na área da educação superior – mas ape-nas uma tênue noção sobre o funciona-mento do setor produtivo. “Investimos nossas economias em um negócio que não sabíamos se iria dar certo”, lembra Duarte. Por isso, desde o surgimento e até julho de 2007, as duas empresas fica-ram incubadas no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cinet) da Fun-dação Parque de Alta Tecnologia de São

Carlos (Parqtec), dividindo as responsa-bilidades: a PNCA se encarregava do desenvolvimento de tecnologia para os kits, e a PETe garantia o suporte pedagó-gico para o projeto. “Foi um período fundamental para fazer contatos e apren-der aspectos de gestão, produção e ad-ministração”, afirma Duarte.

O projeto piloto foi desenvolvido em três escolas, uma em São Carlos, outra em São José do Rio Pardo e a

terceira em Lins e revelou que era pre-ciso promover uma série de ajustes na concepção original. “Sugeríamos traba-lhos que, imaginávamos, durariam quatro horas. Mas os alunos resolviam os problemas em 45 minutos”, conta Prado. “Foi a nossa primeira lição, ja-mais subestimar as crianças. Elas apren-dem com muita rapidez; além disso, os computadores fazem parte do cotidia-no delas”, completa o educador.

Depois de algumas mudanças e de pelo menos duas versões anteriores, atualmente o Kit Alfa é composto por peças e placas de alumínio recicláveis, ro-das de plástico com pneus emborracha-dos, eixos, roldanas, polias, motores, ba-terias e sensores de luz, temperatura, ruí-dos, cor e distância, dentre outros. Há ainda um software em português, espe-cialmente pensado para crianças e jovens, combinando ícones e texto, que é o res-ponsável por comandar os movimentos e as reações dos robôs. O conjunto ofere-ce para cada estudante uma apostila com propostas de exercícios, além de um guia de trabalho para o professor.

O conjunto do Kit Alfa possui um módulo de controle, estruturas para montagem, além de rodas que formam um robô...

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A proposta da empresa com os kits é sugerir atividades que sejam adequa-das aos diferentes níveis de ensino. No primeiro ciclo do ensino fundamental (do segundo ao quinto ano) o percurso começa com a discussão sobre a impor-tância e a utilidade dos robôs. É preciso também desconstruir a imagem que as crianças têm deles. “São sempre imagi-nados como humanóides, principal-mente por conta da influência do cine-ma. Quando os alunos deparam com aquelas peças estranhas, muitas vezes sem forma definida, ficam desconfia-dos”, revela Prado. Vencida essa barrei-ra, o trabalho envolve noções de espaço, movimentos e lateralidade. Em aulas de geografia e de história é possível dese-nhar o oceano Atlântico e os mapas do Brasil e de Portugal sobre um papel azul e reproduzir a chegada da família real portuguesa à então colônia. Com isso, dá para calcular a cartografia e a distância proporcional, escapar de obs-táculos no “oceano” como tormentas e rodamoinhos, tudo com os robôs assu-mindo a função de navios.

Na aula de biologia, estudantes de uma escola de Itajobi, interior paulista, usaram material de sucata, como cober-tores e pedaços de plástico, papel e gar-rafas PET, para transformar os robôs que tinham construído em tartarugas. Depois de sair do ovo, os répteis preci-savam escapar dos predadores e chegar até o mar para o primeiro banho. O exercício levava à discussão sobre pre-servação ambiental. No segundo ciclo (sexto ao nono ano), pode-se pensar em

robôs que ajudam a prospectar petróleo, em outros para fazer a coleta de lixo se-letiva, em peças que reproduzem os mo-vimentos de planetas e de meteoros.

Nos três anos de ensino médio, além de desafios mais sofisticados, a preocu-pação está em estimular nos estudantes o gosto pela pesquisa. A partir do conta-to com os robôs e de temas como inteli-gência artificial e nanotecnologia, os jovens devem coletar dados, descrever o passo-a-passo dos estudos, produzir re-latórios e avaliar erros e acertos. “Apre-sentamos problemas. Cabe aos alunos discuti-los e encontrar soluções. E vale lembrar que as tarefas são interdiscipli-nares e estão sempre sintonizadas com os Parâmetros Curriculares Nacionais do MEC”, garante Duarte.

S egundo os educadores e idealizado-res do projeto, ainda não há avalia-ções quantitativas sobre o desempe-

nho escolar (impactos em notas e apro-vações, por exemplo) dos alunos e das instituições que adotaram o kit. Mas re-latos feitos principalmente por professo-res e diretores apontam para avanços como mais facilidade no trabalho em grupo e a construção de textos mais cria-tivos. “Os robôs ajudam a desenvolver o raciocínio, o espírito coletivo e o em-preendedorismo”, confirma Paulo Luiz Soares Gonzaga, diretor de Tecnologia da Informação e Comunicação da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de João Pessoa. Ele conheceu o kit em uma feira de tecnologia educacional realizada no final de 2006 na capital paraibana.

No início de 2007, os robôs já faziam parte do cotidiano de 4.500 alunos do município, contemplando nove escolas (a rede tem 90 escolas e 68 mil estudan-tes). “Começamos com uma unidade de cada um dos pólos educacionais da cidade”, explica Gonzaga. Ele admite: foi preciso enfrentar a resistência de alguns professores e a aversão deles às novas tecnologias. Mas, garante o dire-tor, de forma geral a receptividade foi boa. Nas instituições que participaram do projeto piloto o índice de evasão caiu e a solicitação de novas matrículas no início de 2008 tem sido mais inten-sa. “É um diferencial da rede”, comemo-ra. “A meta para este ano é ampliar a parceria e fazer dos robôs os compa-nheiros diários de 30 mil alunos, o que representa quase a metade da rede mu-nicipal de João Pessoa”, conclui.

O custo final do projeto que integra os kits de robótica, que teve seu pedido de patente depositado em 2005, o ma-terial didático e a capacitação dos do-centes, é relativamente baixo – de R$ 90 a R$ 120 por aluno, anualmente, depen-dendo da quantidade de peças solicita-das e das horas de suporte e de orienta-ção para os professores. Na rede privada esse investimento é bancado pelas pró-prias instituições e, no setor público, o processo envolve licitações. Depois da aprovação, o kit passa a integrar o orça-mento das secretarias de Educação. “Feitas as contas, são cerca de R$ 10 por mês para cada estudante”, diz Jaques Weltman, diretor administrativo das empresas. ■

... autônomo com cabeça, tronco e membros

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QUÍMICA

Composto contra

ChagasEm testes preliminares substâncias mataram o Trypanosoma cruzi

Surge uma nova esperança para o tratamento da doença de Chagas. Pesquisadores da Uni-versidade de São Paulo (USP) em São Carlos e Ribeirão Pre-to concluíram, no final de 2007, ensaios bem-sucedidos

in vitro e in vivo com compostos quí-micos à base de óxido nítrico e rutênio, um metal do grupo da platina, que ma-taram o parasita responsável pela en-fermidade, o Trypanosoma cruzi. Con-siderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma doença negligencia-da – aquelas que não apresentam atra-tivos econômicos para que as indústrias farmacêuticas desenvolvam fármacos contra essas enfermidades –, ela afeta de 16 a 18 milhões de pessoas na Amé-rica Latina, entre os 100 milhões que formam a população de risco, normal-mente das classes econômicas mais bai-xas. Dos infectados, cerca de 50 mil morrem a cada ano na região. No Brasil são 6 milhões de infectados, sendo 300 mil no estado de São Paulo, segundo o Ministério da Saúde. Embora a formu-lação desenvolvida na USP ainda esteja longe de se tornar um medicamento – serão necessários entre cinco e dez anos de pesquisa –, os estudos apontam para a possibilidade de um novo tratamento para a enfermidade.

No final do ano passado, a univer-sidade, por meio da Agência USP de Inovação, assinou um acordo de confi-dencialidade com um laboratório na-cional, que não pode ter o nome divul-gado, para continuar as pesquisas, que já renderam o depósito de duas paten-tes e a publicação de um artigo na re-vista científica British Journal of Phar-

cio nosso propósito era conhecer a quí-mica desses compostos para usá-los como transportadores de óxido nítri-co”, explica Douglas Wagner Franco, professor do Instituto de Química de São Carlos da USP (IQSC/USP). “Pre-cisávamos de formulações de baixa to-xicidade, solúveis em água, estáveis na presença de oxigênio em meio aquoso e no estado sólido, capazes de liberar óxido nítrico de forma controlada.”

Ensaios de laboratório realizados em camundongos há alguns anos mos-traram que os compostos desenvolvi-dos pela equipe do professor Franco e do professor Elia Tfouni, do Departa-mento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, participavam efetivamente de processos vasodilatores. Nessa etapa do trabalho, eles contaram também com a participação das pesquisadoras Marta Helena Krieger e Dora Maria Grassi-Kassisse, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O interesse em conhecer o uso potencial dessas formulações no combate a infecções, principalmente na doença de Chagas, é tema da tese de doutorado de Jean Jerley Nogueira da Silva, desenvolvida no IQSC. Ele apro-veitou o fato de as infecções gerarem falta de oxigênio nos tecidos do orga-nismo. Como conseqüência, criam um cenário ideal para que os compostos de rutênio sejam ativados exatamente nes-sas situações. Para dar seqüência ao trabalho, Jean Silva contou com a cola-boração do imunologista João Santana da Silva, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (FMRP).

Os primeiros resultados confirma-ram que o óxido nítrico bloqueava a reprodução do T. cruzi na sua forma epimastigota – uma das três formas que o parasita assume ao longo da vida – caracterizada por ter o flagelo, filamen-to que serve para locomoção, ao lado do núcleo protozoário. Para entender os meandros da pesquisa é preciso sa-ber que o vetor da transmissão da doen-ça de Chagas, que leva esse nome por ter sido descoberto pelo sanitarista bra-sileiro Carlos Chagas, em 1909, são in-setos conhecidos como barbeiros (Tria-toma infestans). Eles se infectam ao sugar o sangue de um organismo con-taminado (gambás, tatus, cães, gatos, roedores ou humanos). No barbeiro, o

macology. A importância da substância também está no fato de que há décadas nenhuma nova droga é lançada para tratar a doença.

Um longo caminho foi percorrido pelos cientistas paulistas até provarem a eficácia dos compostos de rutênio no tratamento de camundongos infecta-dos. As pesquisas tiveram início há mais de dez anos e foram financiadas por dois projetos temáticos da FAPESP. O objetivo do estudo era compreender a síntese, a reatividade e a química básica de compostos capazes de absorver ou liberar óxido nítrico, um gás incolor que participa de diversos processos bio-lógicos do nosso corpo. Além de ser um potente vasodilatador, o óxido nítrico faz parte do processo que facilita o fun-cionamento dos rins, a ereção do pênis, a contração do útero no momento do parto e a destruição de microorganis-mos nocivos ao homem. “Desde o iní-

YU R I VA S C O N C E LO S

Reatividade térmica e fotoquímica de nitrosilo, complexos de rutênio, conhecimento e controle da reatividade do óxido nítrico

MODALIDADE

Projeto Temático

CO OR DE NA DOR

DOUGLAS WAGNER FRANCO – USP

INVESTIMENTO

R$ 515.060,30 e US$ 541.346,06 (FAPESP)

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PESQUISA FAPESP 144 ■ FEVEREIRO DE 2008 ■ 79

T. cruzi encontra-se na forma epimas-tigota, que é capaz de se multiplicar, mas não é infectante. Ao chegar no final do sistema gastrointestinal do inseto, o T. cruzi diferencia-se para uma outra forma denominada tripomastigota, quando o flagelo migra para a parte posterior, que é infectante e não multi-plicativa. A transmissão do parasita ocorre quando o inseto pica um indiví-duo. Na medida em que suga o sangue, ele defeca no local, contaminando sua vítima com o protozoário. Ao entrar na corrente sangüínea do hospedeiro, o tripomastigota invade as hemácias ou tecidos musculares e assume sua tercei-ra e última forma, chamada de amasti-gota, sem flagelo, que tem grande poder de se multiplicar dentro das células.

Efeito tóxico - “Ainda não sabemos exatamente qual é o mecanismo de ação das nossas formulações sobre o parasita, mas sabemos que, além de bloquear a proliferação das formas epimastigotas, elas também são capazes de matar as formas tripomastigotas e amastigotas, inclusive nos camundongos”, diz Jean Silva. Ao longo dos estudos, dezenas de compostos criados pelo IQSC foram testadas, sendo que 13 apresentaram resultados mais promissores. Desses, os pesquisadores selecionaram os dois mais ativos e menos tóxicos para dar continuidade às pesquisas. Os nomes dos compostos são impronunciáveis: hexafluorofosfatos (ou tetrafluorbora-to) de transnitrosiltetraaminisonicoti-namida de rutênio (II) e hexafluorofos-fato (ou tetrafluorborato) de transni-trosiltetraaminimidazol de rutênio (II). Esses compostos passaram a ser testados na FMRP. “Alguns agiram melhor que a droga clássica usada nos tratamentos de chagásicos, chamada de benznidazol. Não apresentaram efeitos tóxicos nas doses utilizadas que são até 900 vezes menores em relação à dose do benzni-dazol”, diz Franco.

Nos ensaios in vivo foram utilizados camundongos que, depois de infectados, foram tratados durante 15 dias com um ou outro formado de rutênio. O grupo de controle foi composto por camun-dongos infectados e não tratados ou tratados com benznidazol na mesma dose. “Ao final de duas semanas de tra-tamento vimos que o nível de parasite-mia (quantidade de parasitas por milili-

tro de sangue) foi 60% menor em rela-ção ao grupo de controle, mesmo quan-do comparado com aqueles tratados com o benznidazol. Como conseqüência dessa redução, observamos uma sobre-vida de até 100% nos animais”, diz Jean Silva. “Além disso, percebemos que os compostos são capazes de eliminar o parasita no miocárdio na fase aguda da doença, algo que o benznidazol não faz eficientemente.” Os ensaios in vivo co-meçaram em meados de 2006 e foram concluídos no final do ano passado.

Outro grave problema relacionado à doença de Chagas é o risco de trans-

fusão de sangue contaminado com T. cruzi. Estima-se que nos Estados Uni-dos 100 mil pessoas estejam infectadas devido a transfusões de sangue e trans-plantes originários de pessoas de áreas endêmicas. Nesse caso, os compostos também apresentaram resultados supe-riores quando comparados ao agente antisséptico violeta de genciana (ou cloreto de pararosanilina), recomenda-do pela OMS para tratamento de san-gue infectado. “O tratamento com essa droga leva 24 horas. Já os nossos com-postos são ativos logo na primeira hora. Essa rapidez na eliminação do proto-zoário é importante porque tornam mais seguras as transfusões realizadas em regime de urgência”, diz Jean Silva.

O próximo passo da pesquisa, segun-do Franco, é entender o mecanismo de ação das formulações. “Não sabemos em que enzimas nossos compostos atuam, nem mesmo se eles agem dentro ou fo-ra do parasita. Outro ponto relevante é descobrir se os compostos também são eficazes na fase crônica da doença, por-que o tratamento atual disponível só é eficiente para a fase aguda, que dura de dois a quatro meses após a picada. Nes-se período pode se desenvolver no local uma lesão endurecida, vermelha e in-chada, o chagoma. Outros sintomas possíveis são febre, anorexia, ínguas pe-

lo corpo, inchaço do fígado e do baço. Nos casos mais graves ocorrem infla-mações do coração. Cerca de 30% das pessoas contaminadas pelo protozoário transformam-se em pacientes crônicos, que podem permanecer assintomáticos de dez a 20 anos. Nesse período, o pa-rasita continua se reproduzindo conti-nuamente, causando danos irreversíveis ao coração e ao sistema nervoso.

A expectativa do grupo de pesqui-sadores é que o acordo firmado com a empresa nacional viabilize a continua-ção das pesquisas. “Já estamos prontos para fazer os testes farmacológicos e outros ensaios pré-clínicos, que antece-dem aos testes em humanos”, afirma João Silva, da FMRP. ■

Trypanosoma cruzi no microscópio: combate com óxido nítrico e rutênio

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É só abrir a bocaEmpresa mineira usa saliva para medir estresse causado por exaustão física e mental A

sempre indesejável picada de agulha po-de desaparecer para certos tipos de diag-nóstico ao ser trocada por uma pequena porção de saliva, num procedimento me-nos invasivo e sem dor se comparado aos exames de sangue. A saliva está cotada para uma série de usos, em testes já co-

mercializados ou em estudo, em vários países, pa-ra identificar hormônios, câncer e mais recente-mente medir o nível de estresse. No Brasil, a em-presa Probiotec, instalada no Centro de Incubação de Atividades Empreendedoras (Ciaem) da Uni-versidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, está prestes a iniciar a produção de kits utilizando a saliva como fonte para diagnóstico. A empresa, que também faz parte do Arranjo Pro-dutivo Local (APL) de Biotecnologia do Triângulo Mineiro, foi fundada pelo professor Foued Salmen Espindola, do Instituto de Genética e Bioquímica da UFU e dois biólogos que concluíram o mestra-do no Programa de Pós-graduação em Genética e Bioquímica da instituição, Leonardo Gomes Pei-xoto e Rogério de Freitas Lacerda.

Os primeiros e comprovados produtos que eles pretendem comercializar, assim que saírem os re-gistros na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), são dois kits que utilizam a saliva como fonte de biomarcadores do exercício físico e do es-tresse psicológico, principalmente em situações li-gadas ao esporte. “Nós usamos a dosagem de pro-teína total da saliva e a atividade da enzima alfa-amilase salivar”, diz Espindola. Um dos objetivos do desenvolvimento destes kits é oferecer uma simpli-ficação, com inovação tecnológica, para determinar o limiar anaeróbico que é definido pela relação do consumo de oxigênio e o aumento contínuo do lactato sangüíneo durante um teste de exercício fí-sico como o teste de esteira ou de bicicleta ergomé-trica. A medida desse limiar de lactato é importan-te na fisiologia do exercício, na medicina esportiva, na educação física e para atletas de várias modali-dades esportivas. “Esse limiar pode ser também determinado pela análise da saliva. Desse modo, podemos oferecer um diagnóstico bioquímico de adaptação metabólica e da resistência à fadiga.”

Atualmente se utiliza a concentração de lactato sangüíneo como indicador desse limiar e o teste pode ser feito de duas formas, um com a resposta no local da coleta, utilizando a leitura de uma fita impregnada com sangue coletado da ponta do

MA RC O S D E OL I V E I R A

>BIOQUÍMICA

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dedo e outro que requer o transporte do sangue coletado do lóbulo da orelha em pequenos tubos e analisado em um laboratório com equipamentos especí-ficos e caros. São dois métodos invasi-vos porque exigem a retirada de sangue e causam dor, incômodos que o empre-go da saliva elimina.

Inúmeros trabalhos relatados na literatura científica recente e realizados nos laboratórios da UFU e pela Probio-tec indicam a medida da atividade da alfa-amilase como um biomarcador in-teressante e de grande potencial para avaliar o estresse físico e psicológico. “É possível até mesmo que a sua determi-nação na saliva pode ser um marcador efetivo do estresse capaz de substituir as análises dos níveis hormonais de adre-nalina e cortisol, que também estão re-lacionados com esse estado físico e men-tal. As alfa-amilases são produzidas pelo pâncreas e glândulas salivares, sendo responsáveis pela digestão de carboidra-tos. Na saliva esta enzima está associada a outras funções importantes para a saú-de bucal, e quando extraída do sangue pode mostrar alterações anormais asso-ciadas com patologias no pâncreas.

Copos e tubos - A realização dos novos exames pode ser feita utilizando a saliva coletada após higienização bucal e esti-mulada pela breve mastigação de um pedaço de algodão, parafina, pedaço de plástico na forma de filme utilizado em embalagens e mesmo de uma goma de mascar sem açúcar. Após a mastigação por dois ou três minutos despreza-se a primeira saliva e coleta-se a seguinte num copo (o copinho plástico de café é ideal) ou por um dispositivo que con-siste num pequeno tubinho de celulose ou poliéster que será disponibilizado com o kit de coleta. A saliva pode então ser transferida para um pequeno tubo plástico e ser enviada no mesmo dia de coleta para o laboratório, até mesmo pelo correio, não necessitando condi-ções de refrigeração. Como no caso da

coleta de sangue para análise do lactato sangüíneo, a saliva deve ser coletada imediatamente antes, durante e cerca de 15 minutos após a realização do tes-te de exercício físico porque os níveis de proteína total e amilase salivar tendem rapidamente a voltar aos níveis de re-pouso. Além de produzir o kit, a Pro-biotec também vai fazer análise do ma-terial e emitir laudos.

A prática do uso da saliva em diag-nósticos está sendo difundida nos Esta-dos Unidos, onde são oferecidos kits para exames de detecção do nível de hormônios masculinos e femininos além do cortisol. Muitos grupos de pes-quisa em todo o mundo apostam no estudo da saliva para outros tipos de diagnóstico. “No Japão, um grupo lide-rado pelo professor Masaki Yamaguchi, da Faculdade de Engenharia Toyama, desenvolveu e está testando um apare-lho de uso portátil como um palm que mede (como nos já tradicionais testes de glicose) a amilase numa fita de pa-pel. Ele é indicado para uso em testes de estresse psicológico, principalmente em situações que exigem a medição no próprio local, como fazer o diagnóstico de um motorista de ônibus, por exem-plo, ao longo do dia”, conta Espindola. “Na Suíça, o professor Urs Markus Na-ter, do Instituto de Psicologia da Uni-versidade de Zurique, testa uma série de exames psicológicos com amilase

que envolvem situações de violência e como marcador biológico em sessões de terapia para o psicólogo perceber se o paciente está estressado.”

Trabalhos recentes relativos à pro-teômica da saliva, que visam identificar todas as proteínas desse fluido corporal, podem abrir caminhos para novos tipos de exame. “Já foram catalogadas nesses estudos proteômicos mais de 300 pro-teínas na saliva. Pensava-se antes em um número bem menor de proteínas saliva-res. Essas descobertas vão ser muito im-portantes para o desenvolvimento de diagnósticos para as doenças humanas.” No início deste ano, pesquisadores da Universidade do Texas, nos Estados Uni-dos, anunciaram um exame com saliva para identificar proteínas ligadas ao cân-cer de mama. Seria uma forma de detec-tar a doença precocemente. Espindola fala também do potencial da saliva para diagnóstico de câncer bucal, polimorfis-mos genéticos, para identificar molécu-las e drogas que uma pessoa ingeriu, inclusive dopping em atletas, e na toxico-logia forense. Com tantas possibilidades e perspectivas biotecnológicas do uso da saliva como meio para diagnóstico é de se prever que a Probiotec terá muito tra-balho pela frente. “Além dos aspectos científicos e tecnológicos que nós domi-namos, temos apoio do Conselho Na-cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do Pro-grama de Capacitação de Recursos Hu-manos para Atividades Estratégicas (RHAE) de 2005, que concedeu três bol-sas de pesquisa, do Ciaem, do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), na formulação do negócio e na captação de recursos finan-ceiros, e da Financiadora de Estudos de Projetos (Finep), que, por meio da Fun-dação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), aprovou um projeto do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), que tem financiado grande parte de nossas pes-quisas na empresa”, conta Espindola. ■

1 - Biomarcadores salivares para avaliação do estresse2 - Desenvolvimento de kits para diagnósticos de biomarcadores salivares

MODALIDADE

1 - Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe)2 - Rhae Inovação

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FOUED SALMEN ESPINDOLA – UFU/Probiotec

INVESTIMENTO

1 - R$ 177.057,79 (Finep/Fapemig)2 - R$ 78.000,00 (MCT-CNPq)

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Panorâmica do “vazio demográfico” amazônico

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A floresta verde-olivaEstudos analisam pensamento militar sobre a Amazônia

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CIÊNCIA POLÍTICA

Duma batalha como nunca houve igual/companhia de audazes, indômitos/ ban-deirantes de raça viril/ ansiosos por ver a Amazônia/ para sempre integrada ao Brasil”: os versos da canção A mais bela batalha, do 6º Batalhão de Engenharia e Construção, baseado na Amazônia, resu-

mem, com perfeição, o pensamento militar sobre a região, com suas referências históricas (o chapéu do grupo, por exemplo, imita o dos antigos ban-deirantes), o espírito guerreiro de missão e, mais importante, o ideal de que se vive um inusitado estado de guerra para que, enfim, um estado bra-sileiro seja integrado ao Brasil. “Na visão das For-ças Armadas, e de seus intelectuais militares, a Amazônia representa a última fronteira a ser con-quistada e incorporada ao Estado brasileiro. Após duas décadas atuando na defesa da ordem política pós-64, os fardados estão cada vez mais voltados a uma missão militar clássica: garantir a soberania nacional com a força das armas”, explica a cientis-ta política Adriana Marques, autora da recém-defendida (na USP) tese de doutorado “Amazônia: pensamento e presença militar”, orientada por Rafael Duarte Villa.

“A soberania sobre o território, um tema que permaneceu subordinado à estratégia de conten-ção do comunismo ao longo de toda a Guerra Fria, volta agora com uma força revigorada”, continua a pesquisadora. “De fato, a Amazônia tem se tor-nado, cada vez mais, um símbolo mobilizador das Forças Armadas nacionais, um símbolo de sobe-rania e da missão militar, uma vez que as ameaças representadas pela União Soviética e Argentina deixaram de existir no plano externo e o comunis-mo não configuraria mais uma referência para a defesa interna”, afirma o filósofo Humberto José Lourenção, que acaba também de defender na Unicamp sua tese de doutorado sobre o tema: “Forças Armadas e Amazônia (1985-2006)”, orien-tada por Shiguenoli Miyamoto. Curiosamente, essa preocupação com a região amazônica, motivo para que sejam enviados para lá cada vez mais efe-tivos militares e o Ministério da Defesa seja pres-sionado com pedidos para aumento de orçamento

das Forças Armadas, mudou antigos parâmetros militares brasileiros. “O Exército, em particular, dedica-se à elaboração de uma doutrina militar genuinamente brasileira, que tem como um dos traços principais justamente a percepção de os possíveis inimigos do Exército brasileiro estarem no hemisfério Norte, em especial os EUA”, observa Adriana. Para os militares, continua a pesquisado-ra, a globalização é vista de maneira pessimista e revela, em última instância, uma nova forma de colonialismo em que a expansão dos Estados não se faz mais por meio da conquista territorial.

Da mesma forma, a ideologia fardada afirma que as preocupações humanitárias e ecológicas dos países ricos do Norte não são sinceras e, na verda-de, “camuflam” interesses e oportunidades econô-micas, ou seja, camuflam a cobiça desses países pela Amazônia. O antigo “parceiro” dos tempos da ditadura hoje é visto com desconfiança. “No pós-Guerra Fria instauraram-se o conceito e a prática do direito de ingerência, cujo marco foi a ação americana na Guerra do Golfo, entre 1990 e 1991. Para os militares brasileiros, os princípios de não-intervenção e autodeterminação, fundamentos das relações internacionais da Guerra Fria, foram re-legados a plano secundário. Nessa perspectiva, os EUA, para as Forças Armadas, vêm se posicionan-do como árbitro da nova ordem mundial, na con-dição de superpotência militar, e certamente inter-virão em Estados estrangeiros nos casos em que estes discordem de seus interesses estratégicos vi-tais, sem ouvirem o Conselho de Segurança da ONU. Os ataques do 11 de Setembro de 2001, no-tam os pesquisadores, levaram ainda mais adiante essa “independência” com a criação dos chamados “ataques preemptivos”. “A partir desse conceito, a percepção realista das Forças Armadas considera que a Amazônia corre um risco mais ou menos iminente de ser internacionalizada, em razão do forte interesse estratégico que desperta nos países desenvolvidos e por se encontrar em zona geopo-lítica de forte influência americana”, analisa Lou-renção. “Uma verdadeira conspiração contra o domínio brasileiro na Amazônia está sendo fun-damentada em ideologias feitas por organizações

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argumentos dos fardados para se con-trapor à chamada demarcação em área contínua das terras indígenas se ba-seiam no fato de elas estarem próximas à faixa de fronteira e há possibilidade de essas terras se tornarem o embrião de um Estado autônomo. “As riquezas existentes no subsolo das terras reivindi-cadas também são citadas com freqüên-cia como argumento em favor da revi-são das demarcações.” Lourenção con-corda: “A preocupação internacional com os indígenas é considerada exage-rada e seria outro indício do conluio que objetiva apropriar as riquezas ama-zônicas, em especial as do subsolo. As pressões estrangeiras, segundo os mili-tares, não corresponderiam aos interes-ses do índio brasileiro, mas aos desíg-nios da cobiça imperialista empenhada já na ocupação dissimulada do espaço amazônico e na preparação da procla-mação da independência das tribos como nações encravadas no Brasil, do qual se desmembrariam”.

O alvo central dessas desconfianças, revelado em vários textos de instituições militares como a Escola Superior de Guerra, é dirigido às Organizações Não-governamentais (ONGs) estrangeiras que atuam na Amazônia. “A principal

Manobras militares em terra e água: região é vista como fonte de vulnerabilidade à soberania nacional

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científicas e religiosas de países do he-misfério Norte e endossadas por seus governantes”, escreveu o general-de-divisão Meira Mattos.

Paranóia? “Acabou a fase de con-temporização. Agora é a vez da ação militar, pois os países que têm a Ama-zônia dela não sabem cuidar”, afirmou, em 1999, o então vice-presidente dos EUA, hoje Prêmio Nobel, Al Gore. Não foi uma voz isolada: do presidente fran-cês François Mitterrand (“O Brasil pre-cisa aceitar uma soberania relativa so-bre a Amazônia”) ao general Patrick Hughes, chefe do órgão de informações do Exército americano (“Se o Brasil re-solver fazer um uso da Amazônia que ponha em risco o meio ambiente dos EUA, temos de estar prontos para inter-romper esse processo”), passando por Mikhail Gorbatchov (“O Brasil deve delegar parte de seus direitos sobre a Amazônia aos organismos internacio-nais competentes”), sem falar em co-mentários similares de Henry Kissinger, John Major e Helmut Kohl, não houve quem não insinuasse ou falasse aberta-mente sobre a suposta “incompetência brasileira” de manter a região. “Segun-do a visão militar brasileira, a Amazô-nia é a principal vulnerabilidade estra-

tégica brasileira, plena de flancos para que a comunidade internacional acuse o governo brasileiro de controlar seu próprio território e proteger a Floresta Amazônica, o que poderia, no futuro, levar a uma internacionalização da re-gião”, nota Adriana. Embora essa idéia de cobiça estrangeira, continua a pes-quisadora, não tenha sido criada pelos militares, desempenha um papel fun-damental no imaginário das Forças Armadas, que, lembra Lourenção, teme que a região seja vítima de um processo de “balcanização” ou “mexicanização” pelos países ricos.

Vazio - Para tanto, segundo os farda-dos, contribui o “vazio demográfico” da área: são quatro habitantes por quilô-metro quadrado numa região de 11 mil quilômetros de fronteiras terrestres e 1,6 mil quilômetros de fronteira marí-tima. “Mas o vazio a que se referem os estudos militares falam também do va-zio de uma população comprometida com a preservação da soberania brasi-leira sobre a região. A percepção de que os povos indígenas possam ser coopta-dos por estrangeiros é uma constante no discurso militar”, explica a pesqui-sadora. Assim, continua, os principais

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material, tecnológico e tropas america-nas”, nota Lourenção.

“No imaginário militar a soberania brasileira sobre a Amazônia só poderá ser mantida por meio da presença das Forças Armadas na região. Esta percep-ção, no entanto, não é orientada apenas pela identificação de ameaças externas. A idéia de que os militares são os ava-listas da integração nacional é um dos principais traços da cultura estratégica das Forças Armadas brasileiras”, descre-ve Adriana. Para tanto, observa a pes-quisadora, os militares contaram com o pouco-caso ou beneplácito dos polí-ticos. “Os políticos vêem a atuação dos militares na região de forma positiva e não contestam as estratégias militares escolhidas para defender o país. A pou-

crítica é que muitas das ONGs têm ob-jetivos espúrios, diferentes dos declara-dos, como pressionar o governo brasi-leiro a preservar a floresta e a tornar cada vez mais inacessíveis grandes áreas, declaradas reservas indígenas, parques nacionais ou áreas de proteção ambien-tal”, nota Lourenção. Segundo ele, para os militares, tais ONGs seriam “não-governamentais” apenas na denomina-ção, estando a serviço dos governos es-trangeiros ou sendo manipuladas por eles. No mesmo contexto, a estratégia dessas organizações seria usar a mídia para convencer a opinião pública nacio-nal e internacional de que a questão amazônica é do interesse da humanida-de, e não apenas dos países sul-ameri-canos, que não têm capacidade para garantir sua conservação. Digno de no-ta foi um adesivo de carro anônimo que circulou pela Europa com os dizeres: “Salve a Floresta Amazônica: queime um brasileiro” ou o célebre mapa apó-crifo que circulou pela internet como sendo parte de um livro didático ame-ricano que mostrava a Amazônia sepa-rada do território brasileiro.

Transformação - O combate ao narco-tráfico e mesmo a transformação de movimentos guerrilheiros como as Farc na rubrica de “terroristas” igualmente, notam os pesquisadores, serviriam, na visão militar, como forma de interna-cionalizar a região amazônica. “Na di-visão de trabalho proposta pelos países ricos do Norte para os países do Sul, os últimos desempenhariam atividades semipoliciais, missão rejeitada pelas Forças Armadas brasileiras, deixando a segurança militar sob os cuidados das organizações internacionais”, observa Adriana. Eis novamente a ameça do princípio da ingerência: para proteger seus países de terroristas e traficantes seria aceitável uma “intervenção” em território brasileiro. “Segundo vários militares, um dos efeitos do Plano Co-lômbia (a adesão de vários países à pa-cificação da guerrilha colombiana) é a facilitação da penetração militar norte-americana nos países da América Lati-na. O equilíbrio de forças entre os di-versos países pode ser alterado segundo circunstâncias do interesse americano. Os governos dos países que se subme-tem aos EUA, abrindo mão de sua so-berania, recebem apoio financeiro,

ca atenção dispensada pelo mundo político às questões de defesa permite que os militares ajam com elevado grau de autonomia na Amazônia.” Prova dis-so é que projetos como o Sivam e o Ca-lha Norte passaram ao largo do Con-gresso Nacional, lembra Lourenção, pa ra quem, “para garantir a defesa da Ama-zônia é preciso que essa questão não seja apenas um assunto exclusivo das Forças Armadas e, assim, além da pre-sença militar, é preciso que se viabilize um conjunto de políticas públicas mais sensível às especificidades da região, que faça convergir o crescimento eco-nômico, o desenvolvimento social, a preservação ambiental e a defesa”. Pro-va de que é possível a existência de um “ataque preemptivo” do “bem”. ■

Manobras no ar: para as Forças Armadas, apenas presença garante segurança

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COMUNICAÇÃO

A guerra que deu na TVGrupo estuda narrativa midiática como construtora da visão geral sobre a criminalidade

Foram-se os tempos em que as crianças queriam sair no Car-naval vestidas de Homem-Ara-nha (aquele que “nunca bate e sempre apanha”) ou de mari-nheiro. Neste ano desaparece-ram das lojas do gênero, pas-

mem, mini-uniformes do Bope (Bata-lhão de Operações Especiais), protago-nista do mais do que visto filme Tropa de elite. Pais orgulhosos desfilaram com seus filhos vestidos de preto e o distin-tivo da caveira com o punhal. “Tropa de Elite, osso duro de roer/ Pega um pega geral, e também vai pegar você”: dos 3 aos 80 anos, não há quem não saiba cantar o funk que abre o filme. Felizes com o “pega geral”, poucos, porém, se identificam com o “você” da letra. “A mídia construiu um ideal de sofrimen-to evitável e, assim, segundo a narrativa midiática, os crimes seriam ‘evitados’ se os aparatos estatais de segurança fos-sem honestos e competentes. Essa nar-rativa propõe uma separação entre o ‘nós’, indivíduos comuns assustados com a ‘violência urbana’, e o ‘eles’, ban-didos e o Estado incapaz de prover se-gurança para seus contribuintes-clien-tes”, observa Paulo Vaz, professor da Escola de Comunicação da Universida-de Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), coordenador do Laboratório de

Mídia e Medo do Crime, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Es-tado do Rio de Janeiro (Faperj).

O objetivo do projeto é verificar co-mo a mídia construiu e constrói, hoje, os personagens da cobertura da violência do Rio de Janeiro: a imagem das vítimas, dos criminosos, da favela e dos aparatos esta-tais de prevenção e punição dos crimes. Vaz dá prosseguimento a um estudo an-terior, em que comparava as coberturas da imprensa em 1983 com as de 2001. “A idéia é encerrar a amostragem em 2008

para analisar as modificações”, explica. O Laboratório também pretende criar um site para deixar disponível o material da pesquisa em vídeo e em jornais. “A partir disso será possível perceber que há um problema no modo como a mídia cons-trói a figura do criminoso e a possibilida-de de se evitar o sofrimento causado pelo crime pela via autoritária. O que questio-namos é justamente essa consolidação recente no senso comum da alternativa postulada pelo populismo conservador de que para reduzir o sofrimento é preci-so mais política, leis mais rigorosas. É importante perceber que a solução que se coloca é, em si, um problema”, adverte. Para Vaz, coordenador da pós-graduação da ECO, é importante retomar o espírito da crítica nietzschiana dos “melhorado-res da humanidade”, pois “certas formas de dar sentido ao sofrimento provocam mais sofrimento”.

Assim, observa, o perigo da mídia é que ela pode nos levar a confundir um sofrimento real com o fictício. “Para atrair a audiência, privilegiam o espe-tacular, aquilo que parece ficção e transformam quem deveria ser cida-dão em platéia. A seleção e a ênfase em alguns sofrimentos diminuem a visibi-lidade de outros, determinando de mo-do injusto o nosso lamento.” Vaz desco-briu que a mídia lidava com o crimino-

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Exército nas ruas: censo comum crê no confronto

so de forma diversa nos anos 1980. “A cultura moderna atribuía o sofrimento a uma causalidade estrutural. Havia crime por quê? Porque havia desigual-dade de renda. Portanto, pensava-se, para acabar com o crime era preciso melhorar a distribuição de renda. Des-se modo, mudar a sociedade era o mo-do de se reduzir o sofrimento humano”, analisa. Havia, continua, uma crença na possibilidade de se “curar” o criminoso e a imprensa abria espaço para a voz do agressor, de quem se tentava compreen-der as “paixões” e causas que o levaram ao ato criminoso. A partir de 2001, a nova sociedade “hedonista”, diz, conso-lidou-se, e se pôde verificar que a mídia cada vez mais se afastava dos crimes de proximidade (tipicamente passionais) e dava espaço crescente aos crimes co-metidos por estranhos no espaço pú-blico e com seleção aleatória de vítimas. “Qualquer um de nós poderia ser a ví-tima” era a nova embalagem.

“Se, em 1983, a audiência se identi-ficava com a possibilidade de ela tam-bém cometer um dado crime, em 2001 ela só tem olhos para a chance de se

tornar vítima.” Vaz nota que a mídia teve (e tem) autonomia na escolha edi-torial e privilegiou (opção política) a vitimização aleatória, que provoca uma cultura generalizada de medo na socie-dade. “Isso pode explicar, por exemplo, o fascínio desproporcionado da socie-dade, em seus vários estratos, a um fil-me como Tropa de elite, em que se legi-tima a tortura e se coloca como solução para os problemas a presença violenta e ostensiva da polícia, admirável quan-to mais pronta a entrar em confronto e sair por aí matando.” O pesquisador atenta para o fato de que o protagonis-ta do filme é um torturador transfor-mado em vítima, nos moldes do pri-meiro Rambo, e o forte de Tropa de elite é justamente o seu suposto “realis-mo”. “O tal retrato ‘real’ da mídia sobre vítimas e bandidos segue o mesmo es-quema do filme de ficção, já que é igualmente feito a partir de várias his-torinhas com bons e maus”, explica.

Fato e ficção se misturam de ma-neira sutil e explosiva . “Trabalhamos com o conceito de ‘direito ao risco’, característico das sociedades neolibe-

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rais, em que há a liberdade da escolha de se assumir ou não um risco, mas, ao mesmo tempo, há uma distribuição irreal das responsabilidades entre indi-víduo e Estado sempre que alguma coi-sa acontece. O tom geral é que tudo é culpa do Estado, o que tira o peso dos ombros de cada indivíduo, que ganha o ‘direito’ de reclamar como a violência está mudando a sua rotina de vida, obrigando-o a ficar em casa ou blindar seu carro.” Vaz recorda o arrastão feito no túnel que leva à favela da Rocinha, no Rio, quando, a despeito do justo de-sespero dos envolvidos, a “grita” geral era de que uma intervenção da polícia, “cujo posto estava a 200 metros do acontecido” (este, nota o pesquisador, seria um clichê importante das cober-turas), teria feito diferença. “Quem ga-rante que a polícia atirando no túnel teria sido uma solução melhor para o que ocorreu? Isso lembra o argumento pueril de Tropa de elite, que afirma ser a classe média a responsável pelo tráfi-co. Logo, se parassem de consumir dro-gas, o crime acabaria. Quem pode afir-mar isso tendo traficantes fortemente

armados que poderiam, sim, deslocar o crime para outros espaços?”

Vaz observa que essa “cultura do medo” é um fenômeno global, observa-do, por exemplo, nos distúrbios com minorias árabes na França ou na Guer-ra do Iraque. “Estudam-se com afinco as conseqüências políticas e econômicas dessa indústria do medo que gera bodes expiatórios. Certos segmentos sociais são ameaçadores e, logo, é preciso tratá-los de forma violenta. Se morrem, tanto melhor, pois são ‘não-pessoas’. Isso só favorece o Estado autoritário, de exce-ção, conservador.” Por esse raciocínio, certas pessoas são más e ponto, poden-do a sociedade fazer o que bem enten-der delas, até exterminá-las. No outro extremo, afirma Vaz, estaria a “vítima” sempre inocente. “Perde-se a visão de que o problema de segurança é coletivo e que exige esforços de toda a sociedade. É mais fácil, porém, dividir o mundo entre bons e criminosos, uma dicoto-mia que não exige que paremos para pensar em soluções coletivas. Alguns indivíduos são dignos de nosso luto (em geral, aqueles que “são como a gen-te”) e outros, não. A solução para a vio-lência é justamente liberar mentes para outras formas de se pensar a questão”. Mas, pondera o pesquisador, não é fácil encontrar vozes destoantes na mídia, que, em geral, apresenta um discurso homogêneo, que amplia o medo sem se preocupar em dosar com fatos reais.

“Qual é a visão de turistas que visi-tam o Rio? De que há violência em to-dos os cantos da cidade. Afinal, eles, como os velhos (que pouco saem), são alimentados pela narrativa midiática. Isso, aliás, está se diluindo pela socieda-de, que, cada vez mais assustada, está deixando de freqüentar os espaços pú-blicos, alimentando a criminalidade e se informando pelo que diz a mídia”, avisa. “A construção midiática da idéia de so-frimento evitável não é neutra social-mente. Ela promove uma distribuição estratégica dos papéis de agressores e vítimas. No caso do crime no Rio de Janeiro, os moradores de favela, por sua vinculação espacial e midiática com os traficantes, podem ser qualificados de ‘criminosos virtuais’”, pondera. Mas há uma boa notícia inicial (a ser confirma-da) no projeto do Laboratório: “Embo-ra se tenha mantido o modelo de 2001,

houve uma mudança no tratamento dado pela mídia às vítimas pobres, antes menosprezadas em detrimento de cida-dãos das classes média e alta. Estamos curiosos em verificar se se estabelecerá um novo padrão em que vítimas da fa-vela sejam vistas como sendo tão rele-vantes quanto uma vítima no Leblon”.

P ara Vaz, não se trata apenas de uma questão de direitos humanos, mas de uma forma de pensar o futuro.

“A forma do futuro moderno era: ‘Os sofrimentos existem porque a socieda-de é ruim’. Logo, seria preciso construir a boa sociedade no futuro. A forma do futuro moderno, portanto, era a de um futuro onde seríamos felizes. Hoje é o contrário. Você quer que o presente permaneça e teme que o futuro seja uma ameaça à continuidade desse pre-sente. Então, o futuro tem a forma de catástrofe a ser evitada”, analisa. As so-luções tão apreciadas, como colocar o Exército nas ruas e aumentar a presen-ça e violência policial, continua, vão causar justamente o problema que se pretende resolver. “É preciso, por exem-plo, achar formas de lidar com a ques-tão do tráfico de armas. Foi, em boa parte, em razão dessa narrativa midiá-tica que a indústria de armas e simpa-tizantes conseguiram virar o jogo no referendo sobre o desarmamento.”

Com o foco centrado nos crimes aleatórios, poucos pensaram no peso das mortes por proximidade, já que elas contrariavam a “realidade” como se da-va a ver nos meios de comunicação e também colocavam o espectador e lei-tor na posição incômoda de “criminoso potencial”, enquanto eles preferem se pensar a partir da inocência da vítima. “Há uma preferência, nascida dessa narrativa, na voz do indivíduo e pela autoridade da experiência em detri-mento do saber científico e de dados quantitativos.” As questões decorrentes dessa narrativa, que confunde realidade e ficção, são mais graves que o sucesso de Tropa de elite, embora o filme seja emblemático dessa nova “razão” que insiste, nota o pesquisador, em que pre-cisamos ser “cruéis” e “frios” com aque-les a quem atribuímos “falta de empa-tia” pela humanidade. ■

CA R LO S HA AG

“A solução para

a violência é

liberar nossas mentes

para se pensar a

questão em outros

ângulos que

não sejam os da

narrativa da mídia”,

diz Vaz

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Humanas (FFLCH) da USP, em outu-bro passado, com orientação de Celso Fernando Favaretto.

Há em Oiticica o que Paula chama de multiplicidade de artistas. As estraté-gias construtivistas em sua obra, explica ela, estão compreendidas na noção defi-nida por ele como “mundo erigindo mundo”. Esse sentido é identificável tan-to nos aspectos éticos e estéticos das pro-posições quanto na maneira como seu próprio pensamento é construído. Sem deixar de lado a importância do mito e da Mangueira no inventor da Tropicália, a pesquisadora enfatiza que a “síntese” feita por ele não se deixa fixar em um estereótipo cultural, já que escapa dos espaços delimitados e do tempo crono-lógico, estabelecendo-se em um “mun-do-abrigo” virtual, onde Oiticica acha fragmentos das produções de inventores de vários lugares e épocas para compor seu programa além da arte.

Invenção - Assim, ela aponta a impor-tância das obras de Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, John Cage, Ezra Pound, os irmãos Haroldo e Augusto de Cam-pos, Yoko Ono, entre outros, na estru-tura de pensamento do artista. “A in-venção, palavra recorrente nos textos de Oiticica, é exatamente essa mistura de outras invenções. Ou seja, lidamos aqui com uma constatação trivial: há inú-meras referências a outros teóricos e artistas conduzindo a produção e auto-crítica de arte feita por Oiticica.” No entanto, prossegue ela, nos seus textos essas referências são mais do que afini-

dades. “Constituem parte fundamental do programa in progress, que culmina no conceito de ‘inventor’, aquele cuja obra gera conseqüências, isto é, propi-cia a continuidade da invenção.”

Graduada em pintura e com mes-trado em história da arte, ambos pela Universidade de Illinois, Urbana-Champaign, Estados Unidos, Paula diz que pouco conhecia da arte brasileira até se formar, porque não havia cursos específicos sobre o tema naquela uni-versidade – nem mesmo relacionados à América Latina. Até que em 1999, du-rante o mestrado, teve contato com Hélio Oiticica por meio de textos de Guy Brett e Celso Favaretto. Em segui-da, conheceu textos do próprio Oiticica e, finalmente, dois anos depois, viu sua obra pessoalmente, quando voltou pa-ra o Brasil. Num seminário sobre arte contemporânea, cujo tema era arte e política, coordenado pelos professores Jonathan Fineberg e Buzz Spector, aproveitou a oportunidade para estu-dar o que foi feito durante a ditadura brasileira. “Os aspectos éticos da obra de Oiticica, que incluem as proposições centradas no comportamento para ex-plicitar a possibilidade de se construir, cada um, uma existência criadora, im-pressionaram-me como forma de atua-ção política afirmativa.”

O interesse aumentou quando, ao estudar um livro sobre o expressionismo alemão, German expressionist painting, de Peter Selz, encontrou uma menção ao super-homem de Nietzsche. “As fotogra-fias de parangolés que eu vira nos artigos

E isso é arte? Certamente um questionamento assim passou pela cabeça de parte de quem vi-sitou, em 1965, a exposição que o ar-tista plástico carioca Hélio Oiticica (1937-1980) chamou de Manifesta-ções ambientais, que incluía capas, tendas e estandartes. Nos dois anos seguintes intensificou o conceito do que chamou de “programa ambiental: montou uma sala de sinuca (1966) e a mostra Tropicália (1967), formada por um jardim com pássaros e plantas vivos, além de poemas-objetos – e que deu nome ao movimento lidera-do por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1968 foi a vez de Apocalipopótese, que somou manifestações de outros artistas. Essas experiências, que se-riam consideradas revolucionárias, foram reunidas numa importante ex-posição na Whitechapel Gallery, de Londres, em 1969.

Certa vez, resumiu tudo o que fa-ziam como “uma experiência am-biental (sensorial) limite” ou “antiar-te por excelência” – como descrevia o parangolé. Não foi possível perceber na época, ao que parece, que todas essas idéias estavam rigorosamente apresentadas nos escritos de Oiticica, que as fundamentou enquanto citava suas influências – filósofos, músicos e outros artistas. É o que faz agora a historiadora da arte Paula Priscila Braga em seu doutorado “A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica”, defendida na Facul-dade de Filosofia, Letras e Ciências

ARTE

>

A TROPICÁLIA,SEGUNDO HÉLIO OITICICA

Tese mostra que o criador do termo “tropicália” fundamentou em seus escritos as idéias que ajudaram a revolucionar a cultura brasileira na década de 1960

GO N Ç A LO JU N I O R

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de Brett e no livro do professor Favaret-to aderiram ao que eu lia sobre Nietzs-che, mas eu não considerava academica-mente válido correr atrás de uma pri-meira intuição. Tampouco usar a obra de um artista para justificar uma livre associação (capa parangolé/ capa do super-homem).” Ela, então, guardou es-sa primeira intuição e passou alguns meses lendo obras de Nietzsche e aquilo que tinha disponível nos Estados Unidos sobre Oiticica. Por fim, achou uma men-ção a Nietzsche no livro de Waly Salo-mão Hélio Oiticica: Qual é o parangolé. “Lá estava Oiticica dizendo a Salomão que se considerava ‘filho de Nietzsche e enteado de Artaud.”

Identidade - Nessa época, Paula lia também textos sobre arte latino-ame-ricana escritos por autores norte-ame-ricanos e ingleses e a incomodava a tese de que a arte latino-americana orientava-se por uma search for iden-tity (busca de identidade), como se o que fosse feito no continente estivesse fadado a uma adolescência perpétua, de busca por sua verdadeira identida-de no folclore, nas manifestações po-pulares e na herança cultural do colo-nizador. “Nietzsche e Artaud, aliados a escolas de samba em uma obra de ri-gor construtivista como a de Oiticica, solapavam essa tese, colocavam a arte

brasileira em uma vertente de pensa-mento universal. Escrevi, então, uma proposta de pesquisa para a tese de mestrado: rastrear as aparições de Niet-zsche na obra e textos de Oiticica.”

No Brasil, a pesquisadora encontrou mais material a respeito de Oiticica, prin-cipalmente manuscritos não publicados nos catálogos que até então conhecia. “Percebi que, assim como Nietzsche e Artaud, vários outros pensadores eram recorrentemente citados por Oiticica. Seus manuscritos, aliás, têm um forma-to de hipertexto, muito antes do adven-to da internet.” Ele escrevia em letras maiúsculas os nomes próprios de artis-tas e pensadores que lhe eram relevan-tes. “Nos textos da década de 1970 isso se torna um padrão. Está tudo lá, o pró-prio Oiticica vai indicando as portas, os caminhos a serem seguidos no labirinto. Você lê o manuscrito e sabe que MA-LIÉVITCH não é apenas o nome do artista mas uma sugestão de percurso.”

É importante observar, segundo Paula, que, quando o artista cita um livro ou um texto de um desses “inven-tores”, ele fornece a referência comple-ta, com edição, numeração de páginas. Assim, o pesquisador pode então ler a mesma obra, na mesma edição que Oi-ticica leu, e descobrir outras passagens que, se não aparecem citadas por exten-so num texto do artista, estão no tom

AcimaHélio Oiticica na Escola de samba Mangueira, Rio de Janeiro, 1979

página 93Pessoas numa célula dos ninhos e B55 bólide área 2 em Éden, Whitechapel Art Gallery, 1967

página 91Seja marginal seja herói. Estandarte em homenagem ao bandido Cara

As fotos que ilustram esta matéria são parte integrante do livro Tropicália, de Carlos Basualdo, daeditora Cosac Naify

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de um outro parágrafo do manuscrito, ou na escolha de uma determinada pa-lavra, na diagramação peculiar de uma página ou em um neologismo que Oi-ticica inventa. “Ler os manuscritos, com os rabiscos, os grifos e as letras em cai-xa-alta, foi fundamental para a pesqui-sa do doutorado.”

A digitalização dos manuscritos con-duzida pelo Projeto HO facilitou muito seu trabalho. Paula conta que antes des-se processo o pesquisador tinha os do-cumentos em mãos apenas por alguns dias e tomava notas enquanto vasculha-va as caixas do arquivo Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. Ela iniciou o douto-rado já tendo parte desses manuscritos digitalizados e disponíveis na web, um trabalho feito em parceria com o Proje-to HO e o Itaú Cultural. No final da pes-quisa, contou com quatro CDs que reu-niam 8 mil páginas digitalizadas e inde-xadas por palavras-chave.

Com isso, acredita que a pesquisa sobre o artista entra numa nova fase. Os pesquisadores poderão partir “de novo” da obra, porque houve uma primeira geração de pesquisadores que conheceu a arte de Oiticica enquanto ela estava sendo construída, conheceu o próprio artista ou amigos dele e acompanhou as publicações e as poucas exposições quando elas estavam acontecendo. De-pois seu legado ficou um bom tempo sem a atenção de pesquisadores que lidassem com fontes primárias. “Agora temos os manuscritos facilmente aces-

síveis, voltamos à possibilidade de uma pesquisa bem fundamentada.”

Paula lembra que alguns textos de Hélio Oiticica foram publicados na im-prensa nos anos 1960 e 1970 em jornais e revistas como O Pasquim, Presença e GAM e na coluna de Torquato Neto, “Geléia Geral”, do jornal Última Hora. Há ainda uma série de entrevistas que concedeu a publicações sobre arte e muitas cartas enviadas a amigos. Alguns textos teóricos escritos por ele saíram postumamente em catálogos de exposi-ções e na compilação Aspiro ao grande labirinto. Mas a maior parte dos escritos teóricos é inédita e está digitalizada em fac-símiles. “Vale a pena usar os fac-sí-miles dos manuscritos mesmo no caso dos textos já publicados, não só porque há pequenas alterações que mudam muito o sentido de um parágrafo, e que tentei sinalizar em notas de rodapé na minha tese (por exemplo, mítico/ místi-co) mas também porque os grifos e ra-biscos são significativos.”

Antiarte - Oiticica se preocupava mais, observa a pesquisadora, em de-senvolver estruturas de pensamento do que “obras de arte”. Assim, preferia fa-lar em antiarte, pois “arte” estava já muito relacionada à obra-evento, à produção de obras para consumo do mercado de arte. No texto “Experimen-tar o experimental”, de 1972, exempli-fica ela, Oiticica cita Décio Pignatari para deixar isso bem claro: “A visão de

estrutura conduz à antiarte e à vida; a visão de eventos conduz à arte e ao dis-tanciamento da vida”. O evento é pas-sageiro, dilui-se. A estrutura impacta a vida. “Ao invés de percorrer obras para contar uma história linear da trajetória do artista, busquei essas estruturas de pensamento, testando minhas conclu-sões ao confrontá-las com as proposi-ções-obras”, explica.

A idéia de arquitetura, explica a pes-quisadora, ajuda a entender esse ponto. “Não tentei descrever o estilo de uma casa ou uma lista cronológica das obras do arquiteto e sim o tipo de vida que aquela casa propõe, as razões para as escolhas dos materiais de construção, a estrutura que sustenta a casa, as técni-cas da construção, a inteligência ecoló-gica do projeto. Isso é importantíssimo para compreender Oiticica.”

Outro ponto de sua pesquisa que tentou se aproximar das estratégias mais caras a Oiticica foi estabelecer uma trama de interlocutores. “Mantive contato com vários pesquisadores de sua obra e cada um tem sua linha de pesquisa peculiar, mas há um fluxo de idéias e entusiasmo que flui entre esses nós da trama e que foi imprescindível para a minha pesquisa.” Dentre eles, Celso Favaretto, Beatriz Scigliano Car-neiro, Michael Asbury, Suzana Vaz e Gonzalo Aguilar, que Paula reuniu no livro Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica, a ser lançado no primeiro semestre des-te ano pela Editora Perspectiva. ■

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RESENHA

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O belo perfil de Joaquim Nabuco (1849-1910), escrito pela socióloga e pesquisadora do Cebrap Angela

Alonso (parte da pesquisa teve apoio da FAPESP), inicia-se num registro de pre-cisão machadiana com a morte do pro-tagonista. Ou melhor, com as três mortes de Nabuco: como embaixador, em Wa-shington; como intelectual monarquista, dois meses mais tarde, no Rio de Janeiro; e, por fim, descendo ao túmulo, em Re-cife, sua cidade natal, como o abolicio-nista, cujo caixão foi desembarcado no porto por marinheiros descendentes dos escravos que ele ajudara a libertar. “Os funerais de Nabuco narraram sua vida ao contrário, revelando suas múltiplas identidades. Ele gostava de se referir às duas faces de Jano, uma mirando o pas-sado e a outra, o futuro. A imagem lhe serve perfeitamente. Vivendo numa era de mudanças, expressou-a existencial-mente, oscilando entre a devoção à so-ciedade aristocrática e o empenho em reformas modernizadoras, que fatal-mente a destruiriam. Foi cortesão frívo-lo, apegado à boa vida e um corajoso homem público, golpeando autoridades políticas e hierarquias sociais”, escreve a autora, que teve acesso a mais de 700 car-tas inéditas, além dos diários de Nabuco, para dissecar seus muitos dilemas.

Boa parte desses, aliás, vinha de sua geração, batizada de geração 1870, grupo de intelectuais viajados que defendia re-formas políticas, econômicas e sociais capazes de colocar o Brasil em pé de igualdade com o que se passava no resto do globo. Filho de um senador com idéias da necessidade de um abolicionis-mo gradual para o Brasil (sobre o pai, escreveria Um estadista do Império, redi-gido durante o ostracismo a que foi re-legado após a República, um painel sen-sacional do Segundo Império), foi eleito para o Parlamento, em 1878, com o slogan

“a grande questão para a democracia não é a monarquia, é a escravidão”. Conservador moderado, acreditava que o regime de Pedro II precisava passar por reformas estruturais para po-der sobreviver, bem ao espírito da citação de O leopardo, de Lampedusa, outro aristocrata rebelde como ele: “As coisas pre-cisam mudar para permanecerem as mesmas”. Ao contrário da maioria, que punha pouca fé na capacidade monárquica de se modernizar, Nabuco preconizava que a única chance que res-tava ao regime decadente era justamente mexer em um de seus pilares fundamentais, a escravidão. Preocupava-se também com o futuro dos escravos e de sua inserção na sociedade, um erro cujas conseqüências o Brasil amarga até hoje. Mas Ange-la deixa claro que não foi pioneiro na questão abolicionista de solução gradual e tampouco o fez movido por altos ideais. Havia, sim, um quê oportunista nessa sua luta, dado que a agenda política da época se dividia entre abolicionismo e Re-pública, movimento que ele rejeitava. Partiu então para a ba-talha contra o cativeiro, que lhe rendeu frutos políticos. Só não contava que ao tirar esse pilar, central, todo o edifício monar-quista iria desabar.

Mas não se pode reduzir seu papel à mera aferição de van-tagens. Sua opção rendeu-lhe benesses futuras, mas dissabores contemporâneos, transformando-o no homem “mais amado e odiado do Brasil” ou, nas palavras de Gilberto Freyre, “a clas-se senhorial levara três séculos se apurando para produzir tão esplêndida figura de desertor”. Chegou mesmo a procurar, em fevereiro de 1888, o papa Leão XIII para solicitar-lhe uma en-cíclica que condenasse a escravidão, sendo, porém, passado para trás pelos eventos no Brasil. Quando o documento ficou pronto, a escravidão deixara de existir em maio. Do que não se pode acusá-lo é do pioneirismo em investir na relação com os EUA em detrimento da Europa. Após fazer as pazes com o novo regime republicano, nomeado embaixador em Washing-ton, foi, ao lado de Rio Branco, o grande defensor da intensi-ficação das relações entre Brasil e América do Norte, em vez da manutenção da velha opção pela diplomacia britânica, co-mo fez, para sua infelicidade, a Argentina. Só acreditou demais no irmão do Norte, a quem via como imperialistas, mas capa-zes de proteger o Brasil do imperialismo decadente europeu.

Referência posterior de figuras como Freyre, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, entre outros, Nabuco foi epígono de uma geração da elite brasileira que pensava sobre como fazer do país um lugar melhor. O estudo de Angela re-vela isso de forma saborosa mas, infelizmente, nos deixa com a sensação nostálgica de que a riqueza do passado refletia idéias, e não acessórios de luxo.

O aristocrata “socialista”Perfil de Joaquim Nabuco revela dualidade de seu pensamento, entre a monarquia e a modernidade | CA R LO S HA AG

Joaquim Nabuco

Angela Alonso

EditoraCompanhia das Letras

354 páginasR$ 39,00

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LIVROS

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O poder norte-americano e a América Latina no pós-guerra friaMarcelo SantosAnnablume Editora256 páginas, R$ 35,00

Sob a orientação de Octavio Ianni (1926-2004), Marcelo Santos apresenta neste livro uma visão abrangente da política dos Esta-dos Unidos para a América Latina nas últi-mas décadas, com ênfase em suas expressões no plano econômico, político e militar. Ao mesmo tempo que nos instrui muito sobre o país norte-americano, nos ajuda a compre-ender melhor a nossa própria história.

Annablume Editora (11) 3812-6764www.annablume.com.br

Leituras desarquivadasJoão Alexandre BarbosaAteliê Editorial248 páginas, R$ 40,00

A idéia de que os significados (e o enigma) da obra literária não devem jamais ser pa-cificados por uma “leitura de acomodação” percorre esses ensaios. Desarquivando lei-turas que sempre trazem reflexões ou asso-ciações voluntárias, os textos estão agrupa-dos em cinco partes e conservam as marcas das obsessões críticas e do itinerário textual de João Alexandre Barbosa (1937-2006), constituindo, assim, uma biografia.

Ateliê Editorial (11) 4612-9666www.atelie.com.br

Filosofias da matemáticaJairo José da SilvaEditora Unesp240 páginas, R$ 38,00

Uma compilação das aulas de filosofia da matemática ministradas num curso de pós-graduação da Unicamp, este livro apresen-ta, de forma didática, para aqueles que ain-da não tenham estudado filosofia e saibam o elementar da matemática, algumas pos-turas filosóficas, enuncia teorias em termos simplificados e esclarece o significado de questões matemáticas menos triviais.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Lapa, cidade da músicaMicael HerschmannMauad Editora240 páginas, R$ 32,00

Analisando o circuito cultural do samba e choro da Lapa, Micael Herschmann repensa a partir do reflorescimento deste tradicional bairro boêmio a crise e as alternativas para a indústria da música e para o estado do Rio de Janeiro. Com uma pesquisa cuidadosa traça uma história que avalia o sucesso dos empreendimentos atuais e enfatiza a impor-tância da cultura neste processo.

Mauad Editora (21) 3479-7422www.mauad.com.br

Incontornável MarxJorge Nóvoa (org.)Editora Unesp / Edufba408 páginas, R$ 40,00

Jorge Nóvoa reuniu ensaios de diversos autores brasileiros e estrangeiros familia-rizados com a luta socialista para tentar demonstrar a atualidade do pensamento de Marx. Reflexões sobre sindicalismo, partido político, imperialismo, ecologia, entre outras, são abordadas neste livro, espécie de minienciclopédia marxista que procura reafirmar a importância do lega-do de Marx nos dias de hoje.

Editora Unesp (11) 3242-7171www.editoraunesp.com.br

História cultural da imprensaMarialva BarbosaMauad Editora 264 páginas, R$ 46,00

Marialva Barbosa reconstrói cem anos da história da imprensa brasileira apresen-tando um cenário da nossa própria histó-ria. Através dos jornais cariocas a autora mapeia os múltiplos movimentos da im-prensa no século passado, como as trans-formações dos jornais na virada do século, as relações ambíguas da imprensa com o poder no Estado Novo, a questão da cen-sura durante a ditadura militar, entre ou-tros fatos marcantes.

Mauad Editora (21) 3479-7422www.mauad.com.br FO

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FICÇÃO...

O Método

CECILIA GIANNETTI

E xperimento: fazer seus olhos girarem nas órbitas umas cem vezes, da maneira que já surpreendi nos meus alu-nos quando metralho uma frase de trinta palavras. A vida acadêmica é uma seara razoavelmente segura não

só porque, no papel de professor universitário, é possível usar a palavra seara repetidas vezes sem ser apedrejado, sem aque-les olhares de esguelha de quem não gosta de gente que fala igual um livro, sem precisar rodar muito pra achar um copo de café forte, preparado aqui na máquina da magrinha da biblioteca, que traz a cafeteira de casa como cortesia diária para com os professores estendida aos mestrandos, antes ex-plorados anos a fio pela máquina de café oficial do campus, um monstro de metal da estatura de um anão capaz de cuspir pela extorsiva quantia de 50 centavos apenas o suficiente pra encher um copinho plástico mirrado. Assim eu vejo meu fu-turo, o que me acontecerá dentro de alguns anos: um ponto tranqüilo da vida com gosto de semi-aposentadoria e café. Nada de atividades bruscas, reuniões para captação de verbas e competitividade entre baias de fórmica e grampeadores.

Termino minha dissertação sobre células-tronco à base de coca-cola e vodca e uma possível reação de sua fórmula secreta com a não tão secreta fórmula do Cloridrato de Ser-tralina, comprimido que sou forçado a ingerir quando pre-ciso me concentrar. Talvez minha papelada me salve das baias de fórmica. A perspectiva de mofar pra sempre na sa-linha do Borges, como seu sucessor na universidade, me provoca ondas de entusiasmo.

Ligo pra casa depois de dois meses sem dar um alô. Que-ro compartilhar minha quase-alegria, mas, de acordo com O Método, minha mãe só quererá falar de outros membros da Família Feliciani.

Eles ainda usam o modelo de telefone lançado no ano em que minha irmã nasceu, 1973, com um disco e furos em cima

dos números. Minha secretária eletrônica vive cheia de vozes abafadas sob os chiados do velho aparelho. Tomei a iniciati-va por causa de uma seqüência desses recados ininteligíveis e me preparei para um monólogo cheio de ruído e conversa de cerca-lourenço.

Minha mãe ataca primeiro com uma bateria de pergun-tas sobre os elementos mais superficiais do fiapo de vida em comum que mantemos e emenda com a rotina dos gatos: como têm passado, se jogaram algum objeto no chão, se estão comendo, se estão dormindo. A conversa então afuni-la-se em monólogo até que ela diz a coisa, o que faltava, o que estava preso o tempo todo num murmúrio paralelo de entendimento entre nós dois.

A estratégia consiste em deixar o interlocutor de saco tão cheio que, quando cai a bomba, ele não tem mais força vital pra reagir.

Descobre onde a sua irmã anda? Ela nunca atende o telefone...

Ali, no finalzinho, a dica, o motivo da ligação. J. (só a inicial porque, diferente de mim, aos 35 anos minha irmã tem um nome mais ou menos conhecido e ainda lhe sobra alguma reputação a zerar. Ela trabalha com pesquisa no Instituto Oswaldo Cruz, e tem aí seus próprios meios de perder a nesga de respeitabilidade que lhe sobra), J., a quem eu me referia antes de entrar noutra digressão ver-tiginosa e parentética, diz que eu nunca daria certo como pesquisador.

Sou apenas um bom consumidor de café que escreve e se prepara para dar aulas. Não passo sem cinco a seis copos por dia — desses de média que qualquer boteco decente pode te apresentar, não as xicrinhas do tamanho de um de-dal — e essa garota da biblioteca daqui é generosa e santa, permitindo que eu me esbalde em litros e litros de café.

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Minha avó deu café na mamadeira a todos os filhos e netos. Dizia que faz a criança ficar atenta, esperta. Ela nunca soube distinguir esperteza de excitação patológica nem toda aquela atenção, que dispersávamos para todos os lados, de esquizofrenia potencial. O conhecimento ge-ral da família sobre nossa fixação por café e o vício negro imposto às gerações seguintes de Feliciani impedem que minha taquicardia e distúrbios nervosos mais graves ins-pirem os cuidados de parentes que pudessem interferir com o meu desejo crônico e constante de não ter ninguém por perto. É comum relacionarem nossas crises à falta ou excesso de café. Antes de se despencarem de barca, ônibus ou van desde a Ilha do Governador até a minha toca no Alto Leblon, têm seu ímpeto detido por um pensamento: “É só a cafeína”.

A explicação que corre na família pra nossa mania de café faz sentido demais, por um lado, pra ter sido inventa-da por eles, e por outro, é surreal na medida da sua loucu-ra. De qualquer jeito, nos pertence. De acordo com a lenda, minha avó começou a distribuir doses do líquido forte, quase caudaloso, quando se mudaram pro subúrbio, em 1949. Na época, a Ilha do Governador ainda era um lugar cheio de terrenos baratos onde um músico de 25 anos po-dia manter uma casa em que coubesse com mulher e os filhos que viessem (vieram seis). A ponte que ligava a Ilha ao resto do mundo tinha sido inaugurada recentemente. O bairro não abrigava mais de 30 mil habitantes. Pra chegar ao trabalho todos os dias, meu avô dependia de uma única linha de ônibus com frota de dois veículos. Ele entrava em casa nas últimas horas da madrugada e estava de pé outra vez às dez da manhã pra uma viagem de quase três horas com escala no Centro do Rio, onde tomava outra condução até Copacabana. Lá, fazia trilha sonora pro almoço da Can-

tina do César e só parava no Bottle’s às quatro. O primeiro ônibus para a Ilha só começava a circular às cinco. Com a correria acontecendo dia sim, dia não, ele entornava sem reclamar o cafezinho que a mulher produzia em larga es-cala. Arranjar cocaína nas boates era fácil mas cheirar não batia bem com o santo dele. Álcool, bastante, demais da conta — sim. E café. Não herdei dele a musicalidade, so-mente O Método.

Nova ligação pra casa. (Outra coca com vodca.) Conver-samos enquanto imprimo minhas cento e sessenta páginas sobre células-tronco. Não é um trabalho muito original, a biblioteca da faculdade comporta dezenas de monografias sobre o tema e eu vou ter que tirar daí um negócio muito bom se quiser me formar com alguma dignidade.

Minha mãe quer saber de nada disso, de meus devaneios periféricos. Sou obrigado a encarar os seus longos colóquios sobre cocô de gato mas devo mencionar meus medos e meus sonhos. Eu posso — devo — falar de J., de minha irmã, mas não de mim. Enquanto isso, J. é obrigada a comentar minha vida cinzenta de estudante, mas não a própria solidão. Assim, mantém-se cada membro da família interessado nos proble-mas uns dos outros, interligados pelo cordão umbilical do velho aparelho de telefone, que tem a Mãe do outro lado da linha. Esse é o Método Feliciani de Conservação do Núcleo Familiar, fantástico Dispositivo Antiisolamento para pesqui-sadores e professores circunspetos. Eu e J. engolimos bem o café, mas nem sempre aceitamos O Método.

CECILIA GIANNETTI é escritora, carioca, nascida em 1976, autora do romance Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi. Tem contos publicados em antologias brasileiras e uma italiana, além de colaborações em revistas como Trip, Piauí e Vogue.

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