Anotações de Eduardo Henrik Aubert. A música do ponto de vista do nativo um ensaio bibliográfico

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Anotaes de Eduardo Henrik Aubert. A msica do ponto de vista do nativo: um ensaio bi bliogrfico. Rev. Antropol. vol.50 no.1 So Paulo Jan./June 2007 Proposta do artigo: Hiptese do pensamento musical primitivo j est assentada a tal p onto que hoje se pode perguntar, dialeticamente, se, para alm da diversidade do pensamento sobre a msica, no h uma unidade do pensamento musical como modalidade cognitiva caracterstica da espcie. XIX: criao de novas alteridades para a cincia da msica (musicologia - invenao da msica do passado / etnomusicologia - msica primitiva) "musicologia comparada", termo cunhado por Guido Adler em 1885 (Adler, 1885, p. 14). "Uma subrea nova e importantssima dessa parte sistemtica a 'musicologia', ou s eja, a musicologia comparada, cuja tarefa comparar a produo tonal, em especial os cantos folclricos dos diferentes povos, pases e territrios, com um objetivo etnogrfi co, e classific-la, em toda a sua diversidade, segundo suas caractersticas" (Adler , 1885, p. 14).] Uma delas [premissas que permitiram o surgimento da musicologia comparada], que assume papel especialmente marcante na caracterizao das disciplinas, a posio atribuda teoria musical em cada uma dessas "msicas". Vista como um dos elementos definido res da msica ocidental do presente, a teoria musical inexistiria nas culturas no o cidentais e estaria presente na msica ocidental do passado apenas de forma rudime ntar e primitiva, sofrendo uma evoluo gradual em direo ao presente" "A poca de ouro da musicologia comparada identificada chamada Escola de Musicolog ia Comparada de Berlim, no comeo do sculo XX, e a suas duas grandes personagens, C arl Stumpf (1841-1936) e Erich Moritz von Hornbostel (1877-1935) (Christensen, 1 991, pp. 201-9). Hornbostel, especialmente, foi uma figura crucial, tanto por se u trabalho pessoal, constitudo por inmeras publicaes que integravam musicologia, psi cologia e antropologia, como pelos discpulos, diretos ou indiretos (Kolinski, Bos e, Herzog), que a ele se associaram e que seriam os formadores da primeira gerao d e etnomusiclogos norte-americanos dos meados do sculo XX. Por essa razo, interessan te passar em revista algumas das afirmaes de Hornbostel a respeito do pensamento d os nativos sobre a msica." Para Aubert, "A excluso da "teoria musical" do campo da musicologia comparada ple namente compreensvel no conjunto desses pressupostos. Afinal, a noo de teoria era a fim quela de sistema, que, no esquema proposto por Adler em 1885, tinha seu lugar no subcampo da musicologia sistemtica, domnio de estudo da msica ocidental do pres ente. A musicologia comparada trabalhava, assim, nos quadros das divises discipli nares e de seus pressupostos operantes tal como esses haviam sido delimitados pe la musicologia alem do final do sculo XIX"Curt Sachs (1881-1959) - (Sistema Hornbostel & Sachs, 1914): na msica "primitiva" , "a imitao e a expresso involuntria da emoo precedem toda a formao consciente do som Sachs, 1937, p. 175). Esse modelo de compreenso da msica "primitiva" estava articu lado, como seu negativo, a uma percepo evolutiva, por parte da musicologia, da rel ao entre teoria e produto musical. De acordo com Riemann, por exemplo, passar-se-i a de uma poca em que a teoria era "agente do progresso [do ponto de vista do prod uto]" para outra, no sculo XVI, em que ela estaria subordinada prtica, ao menos do ponto de vista da polifonia (Riemann, 1974, p. xxi). Se, no caso da msica ociden tal, h, portanto, uma transformao evolutiva na ordem de encadeamento dos dois eleme ntos, teoria e prtica, no das culturas no ocidentais, a teoria estaria pura e simp lesmente ausente. " Franz Boas (1858-1942) - correspondncia com os musiclogos comparados da Escola de Berlim, especialmente com Hornbostel.Primitive Art (1927): teoria boasiana da msica, princpios de investigao: -"igualdade fundamental dos processos mentais em todas as raas e em todas as form as culturais atuais" (Boas, 1951, p. 1): "no h algo como a 'mente primitiva', um m odo de pensar 'mgico' ou pr-lgico', mas cada indivduo na sociedade 'primitiva' um ho mem, uma mulher, uma criana do mesmo tipo, da mesma maneira de pensar, sentir e a gir que o homem, a mulher ou a criana em nossa prpria sociedade" (id., p. 2). A di ferena do "civilizado" seria de ordem histrica- "considerao de todo fenmeno cultural como o resultado de acontecimentos histricos" (id., p. 1). Segundo Boas, "nossa vantagem com relao aos povos primitivos a de um maior conhecimento do mundo objetivo, conseguido pelo trabalho de muitas geraes" (id., p. 4). a um menor conhecimento do "mundo objetivo" que devemos, ento, assoc iar a seguinte afirmao de Boas, no captulo dedicado literatura, msica e dana: "No ade trarei mais nesse assunto intricado, pois ainda no se achou um mtodo que nos permi ta dizer de forma definitiva o que as pessoas querem cantar quando entre elas no h uma teoria da msica, como ela existe entre ns ou entre os povos civilizados da sia , e quando elas no tm instrumentos construdos com exatido" (id., p. 342). Ainda que o homem "primitivo" no se distinga mentalmente do "civilizado", a tradio passou a e ste um conjunto de idias baseadas em sculos de experimentos, diferentemente do que se deu com o homem "primitivo" (id., 1939, pp. 201ss). da que decorre a existncia de um corpo de conhecimentos do mundo objetivo melhor do que as "classificaes inc onscientes" dos homens "primitivos". No se trata de capacidade ou incapacidade, m as de imposio da tradio, tanto em um caso como em outro. O resultado, entretanto, o de que as idias dos "primitivos" sobre o mundo e sobre a msica so "inteiramente inc onscientes" (id., p. 198), o que exatamente o contrrio da existncia de uma teoria da msica, expresso que pressupe necessariamente um elevado nvel de conscincia. Temos aqui, portanto, no campo antropolgico, para alm do j aludido musicolgico, uma fundam entao para a no existncia de uma teoria musical no ocidental (exceo feita aos povos "c vilizados" da sia). George Herzog: primeiro antroplogo-musiclogo a acenar para a possibilidade de se f alar em teorias musicais com relao s culturas musicais no ocidentais querendo, assim , aludir complexidade do pensamento no ocidental sobre a msica, segundo a concepo co rrente de "teoria". Em um estudo sobre os tambores entre os Jabo na frica Ocident al, Herzog escreveu: Ainda que essas teorias nativas sejam parciais,las demonstram como a termino logia e a teoria tcnica podem bem se desenvolver onde existe um objeto ou um inst rumento no qual um sistema de outro modo abstrato possa ser observado em operao vi svel; o desenvolvimento da teoria musical e de um sistema de escalas tambm est rela cionado a observaes dos instrumentos musicais, no da voz cantada ou de fenmenos acsti cos no abstrato. (Herzog, 1945, p. 232) Bruno Nettl: "na msica primitiva uma escala no existe na mente dos msicos nativos, e ento o musiclogo precisa deduzi-la das melodias" (Nettl, 1956, p. 45) MArcel Mauss: "Existe uma teoria da msica em todo lugar em que existe a flauta de P. Distingue-se o comprimento dos tubos e aprecia-se a altura absoluta de seus s ons, os intervalos" (Mauss, 1926, p. 85). Entretanto, no daqui que surgir uma prop osta de anlise do pensamento no ocidental sobre a msica" Merriam: o fato que as tcnicas musicolgicas foram aplicadas a um nmero surpreendent e de msicas do mundo, com resultados significativos, ainda que certamente no defin itivos; as questes relativas ao comportamento humano e ideao em conjunto com a msica mal foram formuladas" (Merriam, 1980, p. viii). Antropologia da msica (Merriam): um estudo em trs nveis: "a conceituao sobre a msica, o comportamento em relao msica e o som musical propriamente dito" (id., p. 32). direcionamento especfico; o conceito produzindo o comportamento (divisvel em trs nveis, fsico, social e verbal), e este produzindo o som. "Trata-se de um modelo de nveis superpostos, em um influxo unidirecional" Delinei a-se aqui um encadeamento causal, e no gatilho do processo est precisamente o con ceito. Crtica ao modelo de Merriam: Charles Keil tenha classificado a proposta de Merria m como idealista (Keil, 1979, p. 6). Seeger: Cabe notar, entretanto, que Anthony Seeger se ops "reduo" do pensamento mul tifacetado de Merriam a esquemas rgidos e simples (Seeger, 1987a), e fato que o " modelo Merriam", como veremos, jamais apareceu de forma to esquemtica na prtica etn omusicolgica de Merriam. Merriam : distino conceito e teoria musical: "Nossos interesses aqui no esto voltado s para as distines que as pessoas possam fazer entre teras maiores e menores, por e xemplo, mas antes para qual a natureza da msica, como ela se encaixa na sociedade como parte dos fenmenos existentes da vida, e como ela organizada conceitualment e pelo povo que a usa e a organiza" (id., p. 63) de idealizao, estrutural na obra de Merriam, foi na seqncia criticada por diversos a utores, na medida em que, ao invs de questionar os pressupostos devidos aos quais a musicologia comparada negara a existncia de uma "teoria musical" no ocidental, domnio dito "tcnico" e exclusivo do Ocidente, ela a reforava. Aqui fica bastante cl aro que Merriam est de fato inserido naquele "paradigma dilemtico" que dominou lon gamente a idia que se fazia da etnomusicologia e de fato direcionou, em grande pa rte, o seu desenvolvimento: de um lado, a proposta que enfatizava a musicologia e, aqui, j que o discurso sobre a msica entendido fundamentalmente como linguagem tcnica de intervalos, escalas e modos, a "teoria musical" no encontrava lugar, o o bjeto de estudo reduzindo-se ao produto musical "bruto" , de outro, a proposta de Merriam, que enfatizava a antropologia e, aqui, como a nfase era na "msica na cul tura" (id., p. 6), essa era atrelada a um conjunto de conceitos metafsicos, atine ntes generalidade da cultura, e no especificidade da msica advogada pelos protagon istas da vertente mais musicolgica da disciplina. John Blacking (1928-1990), contemporneo de Merriam, e que, durante seu doutoramen to, se correspondeu com este, vendo seu prprio trabalho em grande parte como uma "antropologia da msica". entrevista de Blacking 1989: "apenas em 1964, o ano em que saiu o The Anthropolo gy of Music de Merriam, eu vi alguma diferena: muito embora eu admirasse o livro, e muito embora eu ainda apoiasse praticamente tudo o que Merriam escreveu nele, eu sentia que no havia no livro ateno suficiente ao lado musical" (Blacking & Howa rd, 1991, p. 60). Livro sobre canes de crianas veda (1964): "O importante livro de Alan Merriam, The Anthropology of Music, enfatiza a necessidade de se estudar a msica na cultura. D ecorre da que, se a msica for considerada como ao humana, o som da msica no pode mais ser analisado independentemente, mas deve ser estudado como som na cultura" (Bla cking, 1995a, p. 5). Critica-se aqui a distino postulada por Merriam entre conceituao e verbalizao, que mar ginaliza, de certo modo, a mediao do pensamento pela lngua. O movimento em que a et nomusicologia se engajar na dcada de 1970 exatamente o oposto, o de colocar essa m ediao no centro de seus interesses. Feld: Feld nomeia diretamente suas principais referncias tericas de forma a sugeri r uma resposta negativa: o estruturalismo de Lvi-Strauss, a descrio densa de Geertz e a antropologia da comunicao de Hymes (ibid.). Para Feld, a importncia de integra r essas referncias reside no seguinte: "parece-me [...] que necessrio integrar o estudo de como os smbolos so logicamente relacionados [estruturalismo] com o estudo de como eles so formulados e desempenhados (performed) na experincia cultural. Pa ra uma tal integrao, eu me volto aos pontos de vista desenvolvidos por Dell Hymes sobre a etnografia da comunicao" (id., p. 15). Feld nomeia diretamente suas principais referncias tericas de forma a sugerir uma resposta negativa: o estruturalismo de Lvi-Strauss, a descrio densa de Geertz e a a ntropologia da comunicao de Hymes (ibid.). Para Feld, a importncia de integrar essa s referncias reside no seguinte: "parece-me [...] que necessrio integrar o estudo de como os smbolos so logicamente relacionados [estruturalismo] com o estudo de co mo eles so formulados e desempenhados (performed) na experincia cultural. Para uma tal integrao, eu me volto aos pontos de vista desenvolvidos por Dell Hymes sobre a etnografia da comunicao" (id., p. 15). Afeto (sentimento): como elemento de interao musical. Blacking - ateno simultnea ao verbal e ao no verbal no estudo das msicas no ocidentais (e ocidentais tambm): "Trata-se de questo ainda muito pouco explorada, mesmo que aludida nos trabalhos de Feld e Seeger via noes como "sentimentos" e "euforia", qu e, de alguma forma, procuravam apreender uma especificidade cognitiva das cultur as estudadas buscando na emoo uma sada para a dominncia da razo como modalidade cogni tiva e expressiva , ou mesmo explicitamente indicada por Bastos (Bastos, 1978, p. 43). A perspectiva de Blacking , no entanto, mais ambiciosa e parece propor uma quebra paradigmtica fundamental. Ela prope que, para alm da diversidade de manifest aes do pensamento sobre a msica em cada cultura, atrelado a contextos sociais parti culares, existe uma base cognitiva universal que aproxima as sociedades ocidenta is das no ocidentais e representa mesmo um dado comum da espcie, base cognitiva qu e no deve ser simplesmente indicada, mas que deve se tornar objeto central do int eresse etnomusicolgico. Seria, assim, a teoria musical uma pequena marca de difer ena em face de uma base cognitiva muito mais profunda e significativa, compartilh ada que por toda a espcie? A pergunta foi formulada e talvez seja pelas respostas sugeridas que se poder caracterizar o esforo futuro da etnomusicologia para refle tir sobre o "pensamento sobre a msica" e possivelmente superar, ou, ao menos, cir cunscrever de maneira mais adequada tal categoria" Seleo de cinco monografias Tiv Song, de Charles Keil A musicolgica kamayur: para uma antropologia da comunicao no Alto-Xingu, de Rafael J os de Menezes Bastos, (Trata-se de um estudo da msica do ponto de vista verbal-cogn itivo , em que o autor bastante explcito sobre suas referncias tericas: a antropologi a cognitiva e o estruturalismo.) Sound and Sentiment: Birds, Weeping, Poetics, and Song in Kaluli Expression, de Steven Feld, Ruth Stone - Communication and Interaction Processes in Music Events among the K pelle of Liberia Why Suy Sing: a Musical Anthropology of an Amazonian People, de Anthony Seeger, p ublicada em 1987 4 pontos para estudar o ponto de vista do nativo 1)todos esses estudos se voltam para contextos comunicativoexpressivos e buscam entender as concepes nativas como parte desses processos de comunicao. De formas distintas, as cinco obras aqui referidas se ocupam de ancorar socialmente a significao damsica, atrel-la a contextos freqentemente de performance: pensar sobre a msica parte da performance, no algo que est subjacente a ela, antecedendo-a , ou que se volta reflexivamente a ela, a posteriori. 2) todos esses trabalhos esto associados a um desprestgio da antropologia cognitiva, acentuado de Keil at Seeger, e a uma crtica preeminncia concedida verbalidade, como forma de captar significados fixos em um cdigo tido por abstrato e imvel, a lngua os trabalhos enfatizam a mobilidade dos significados no tempo, no espao e nos grupos sociais.3) esses estudos apontam na direo de um repensar da prpria noo de teoria como um eleme to ideacional puro, pertencente ao domnio exclusivamente reflexivo. Especialmente nos trabalhos de Feld e de Seeger, a questo dos estados emocionais e dos afetos fundamental a tristeza no primeiro, a euforia no segundo.4) Em quarto lugar, enfim, trata-se de um paradigma que no se quer mais unicament e mico , mas que procura combinar as perspectivas mica e tica num dilogo entre pesqu e populaes estudadas. Isso est muito claro, por exemplo, nas entrevistas retroativa s conduzidas por Stone, no ps-escrito de Feld sobre a recepo de sua obra entre os K aluli e na percepo de Seeger, que v na troca entre nativos e pesquisador um dos ele mentos fundamentais da antropologia musical.A tal ponto que hoje se pode perguntar, dialeticamente, se, para alm da diversid ade do pensamento sobre a msica, no h uma unidade do pensamento musical como modali dade cognitiva caracterstica da espcie.