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ANTÔNIO DE PADOVA MARCHI JÚNIOR O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E SUA ATUAÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: o protagonismo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à delimitação do alcance dos tipos penais Belo Horizonte Faculdade de Direito da UFMG 2012

repositorio.ufmg.brANTÔNIO DE PADOVA MARCHI JÚNIOR O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E SUA ATUAÇÃO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO: o protagonismo da jurisprudência do Superior Tribunal

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ANTÔNIO DE PADOVA MARCHI JÚNIOR

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E SUA ATUAÇÃO NO DIREITO

PENAL BRASILEIRO: o protagonismo da jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça quanto à delimitação d o alcance dos

tipos penais

Belo Horizonte

Faculdade de Direito da UFMG

2012

ANTÔNIO DE PADOVA MARCHI JÚNIOR

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E SUA ATUAÇÃO NO DIREITO

PENAL BRASILEIRO: o protagonismo da jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça quanto à delimitação d o alcance dos

tipos penais

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direito. Área de concentração: Direito e Justiça. Orientadora: Professora Doutora Sheila Jorge Selim de Sales.

Belo Horizonte

Faculdade de Direito da UFMG

2012

Marchi Júnior, Antônio de Padova M317p O princípio da legalidade e sua atuação no direito penal brasileiro : o protagonismo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à delimitação do alcance dos tipos penais / Antônio de Padova Marchi Júnior. - 2012. 240f., enc. Orientadora: Sheila Jorge Selim de Sales Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Direito

1. Superior Tribunal de Justiça - Jurisprudência 2. Direito penal – Teses 3. Princípio da legalidade - Brasil 4. Tipo penal – Brasil 5. Princípio constitucional – Brasil. I. Título

CDU: 343.2.01

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Tese intitulada “O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E SUA ATUAÇÃO NO DIREITO

PENAL BRASILEIRO: o protagonismo da jurisprudência do Superior Tribunal

de Justiça quanto à delimitação do alcance dos tipo s penais” , de autoria do

doutorando Antônio de Padova Marchi Júnior, avaliada pela banca examinadora

constituída pelos seguintes professores:

___________________________________________________________

Professora Doutora Sheila Jorge Selim de Sales – Orientadora

___________________________________________________________

Professor Doutor .........................................................

__________________________________________________________

Professor Doutor .........................................................

___________________________________________________________

Professor Doutor .........................................................

___________________________________________________________

Professor Doutor .........................................................

Belo Horizonte, ____de _______________de 2013.

Para Ivana, Helena e Hugo...

Minha família!

Ar e luz e tempo e espaço “- sabe, era ou a família, ou o trabalho, algo estava sempre no caminho, mas agora eu vendi minha casa, encontrei um lugar, um grande estúdio, você precisa ver o espaço e a claridade. Pela primeira vez na vida eu terei um lugar e o tempo para criar”. Não, meu caro, se você for criar, você irá criar mesmo que trabalhe 16 horas por dia numa mina de carvão ou você irá criar num quartinho com 3 crianças enquanto estiver vivendo de ajuda do Estado, você irá criar mesmo com sua mente e o seu corpo completamente exaustos, você irá criar cego aleijado demente, você irá criar com um gato subindo pelas suas costas enquanto a cidade inteira treme num terremoto, bombardeio, enchente e fogo. Meu caro, ar e luz e tempo e espaço não têm nada a ver com isso e não criam nada exceto talvez uma vida mais longa para encontrar novas desculpas.

Poema “Air and light and time and space”, de Charles Bukowsky (Tradução).

Agradecimentos

À Profª. Sheila Jorge Selim de Sales, que me faz criar. Aos companheiros Felipe e Marcelo “Ozzy”, pela perene motivação e dedicada amizade. À Fabíola de Sousa Cardoso, imprescindível tanto na pesquisa como na revisão do texto. Aos professores, colegas e funcionários da pós-graduação, pessoas de alma grande que tornaram mais leve a caminhada; À minha filha Helena Penna Marchi e ao meu amigo David Santos Fonseca, tradutores do resumo. E como sempre, aos meus pais e irmãos.

RESUMO

O principio da legalidade surgiu como reação ao arbítrio e à extrema crueldade das sanções que caracterizavam o sistema penal do final do Século XVIII, logo se convertendo no principal mecanismo limitador do poder punitivo estatal. Juntamente com outros princípios cardeais do movimento ilustrado, desenvolveu-se como instrumento de garantia dos cidadãos e contribuiu para que valores como a liberdade e a dignidade da pessoa humana fossem elevados à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito. No Brasil, figura como uma “constante penal” nos textos constitucionais de ontem e de hoje e, não por acaso, também é reproduzido no primeiro artigo do Código Penal vigente. Apesar disso, seus fundamentos parecem incapazes de conter as ameaças decorrentes da escalada da globalização e os crescentes protestos por maior segurança que caracterizam a “sociedade do risco”. O esboroamento das teorias do bem jurídico abriu caminho para que o legislador criasse novas molduras penais voltadas para a proteção – ainda que simbólica – de meros interesses compatíveis com a Carta Magna, difundindo elementos normativos, normas penais em branco, tipos omissivos e de perigo abstrato, com os quais, enfim, delegou ao intérprete a conformação final da conduta proibida. Ao mesmo tempo, a permanente tensão entre a interpretação válida e a analogia proibida descambou para uma sistemática ampliação dos tipos penais pela jurisprudência, inclusive quanto aos delitos correspondentes à “criminalidade clássica”. O indesejado encobrimento do princípio da legalidade precisa ser logo removido para não se colocar em risco a própria ideia de democracia. A tarefa cumpre, precipuamente, ao Poder Judiciário, órgão ao qual cabe declarar a falta de validade das normas conflitantes com os princípios constitucionais de garantia, além de impor limites à interpretação judicial mediante a modulação dos tipos penais. Dada a sua missão institucional de uniformizar a interpretação das leis federais, a reação à relativização do princípio da legalidade deve ser conduzida pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive por meio de súmulas e outros instrumentos voltados para a filtragem dos processos, que aproximaram o sistema de justiça brasileiro ao dos países do common law e deram novo impulso à análise do precedente. A eleição desse específico órgão de cúpula favorece a interferência de outros domínios sociais no controle da legalidade, como a opinião pública construída a partir das universidades, institutos e doutrina especializada. Por fim, o exercício pleno da função uniformizadora da interpretação da legislação penal positiva requer o desenvolvimento de novas ferramentas jurídicas para propiciar ao Superior Tribunal de Justiça o controle concentrado da legalidade.

Palavras-chave : Princípio da legalidade. Expansão do Direito Penal.

Relativização das garantias. Bem jurídico-penal. Limites da interpretação judicial. Uniformização da legislação infraconstitucional. Jurisprudência vinculante. Análise de precedentes nos sistemas do civil law e do common law. Função institucional do Superior Tribunal de Justiça.

ABSTRACT The principle of legality emerged as a reaction to arbitrariness and

extreme cruelty of punishment at the end of 18th century, becoming a constraint to State power. Together with other cardinal principles of the Enlightenment, it has developed into a mechanism of citizen protection and allowed for values such freedom and human dignity to be raised to core principles of a Democratic Rule of Law. In Brazil this principle appears uniformly in past and present Constitutional charts, but also in the first article of the current Criminal Code. In spite of it, these tenets seem to be incapable to stop the challenges arising out of globalization and increasing demands for safety in a risk society. The undoing of theories on juridical values gave way to the legislative creation of new penal regimes devoted to the protection – though just symbolic – of values barely compatible with the Constitution. As such, the legislative body resorted to vague normative elements, criminalization of omissions and abstract dangers, resulting in wide discretion on the enforcement of these norms. At the same time, the strain between valid interpretations and forbidden analogies led to the jurisprudential expansion of crime definitions, including here even the so-called “classic crimes”. The undesired eclipse of the principle of legality needs to be surpassed in order to prevent endangering the very notion of democracy. This task befalls mostly to the Judiciary, who is responsible for adjudicating conflicts between criminal norms and constitutional warranties, besides establishing limits to judicial interpretation by modulating criminal definitions. Given this institutional mission of making uniform the interpretation of Federal Laws, tackling the charges against the principle of legality should be performed by the Superior Tribunal de Justiça. This mission should also deploy binding precedents and filter mechanisms as the writ of certiorari, which brought the Brazilian system closer to common law and emphasized the analysis of precedents. Choosing this specific institution would favor the interference of other areas of social life in the control of legality, such as the public opinion developed in universities, institutes and diverse areas of scholarship. At last, the practice of making the law uniform requires the development of new tools and mechanisms in order to provide the Superior Tribunal de Justiça with a concentrated control of legality.

Key-words: Principle of legality. Criminal Law expansion. Relativization of

warranties. Limits of judicial interpretation. Uniformity of legislation. Binding precedent. Analysis of jurisprudence in civil law and common law systems. Institutional role of Superior Tribunal de Justiça.

RIASSUNTO

Il principio di legalità è sorto come una reazione all’arbitrio ed alla estrema crudeltà che hanno caratterizzato il sistema penale della fine del XVIII secolo, presto diventando il principale meccanismo limitatore del potere punitivo statale. Insieme gli altri principi cardinali del movimento illustrato, si è sviluppato come strumento delle garanzia dei cittadini e ha contribuito in modo che valori come la libertà e la dignità della persona umana fossero elevati alle condizione di fondamento dello Stato Democratico di Diritto. In Brasile, figura come una “costante penale” nei testi costituzionali di ieri ed oggi. Non all’acaso, anche é riprodoto nel primo articolo del Codice Penale vigente. Nonostante questo, suoi fondamenti sembrano incapaci di contenere le minacce riguardanti alla intesificazione della gloabalizzazione e i cresenti protesti per maggiore siccurezza che caratterizano la “società del rischio”. Lo sparimento delle teorie del bene giurudico ha aperto via al legislatore di creare nuovi fattispecie penali riguardanti la protezione - ache se simbolica - di interessi compatibili con la Magna Carta, diffondendo elementi normativi, norme penali in bianco, reati omissivi e di periccolo astratto, con i quali, infine, ha delegato all’interprete la conformazione finale della condota proibita. Allo stesso tempo, la permanente tenzione tra l’interpretazione valida e l’analogia proibita ha disceso ad una sistematica ampliazione delle fattispecie penali attraverso la giurisprudenza, compreso i deliti corrispondenti ala “criminalità classica”. L’indesiderabile occultamento del pricipio della legalità ha bisogno di essere il più presto possibile rimosso con la finalità di non mettere più in rischio la propria idea di democrazia. Tale compito compie, principalmente, al Potere Giudiziario, l’organo quale deve dichiarare la invalidità delle norme conflitante con i principi costituzionali di garanzia e, ancora, limitare l’interpretazione giudiziale per mezzo della modulazione delle fattispecie penali. Dato il compito instituzionale di uniformizare l’interpretazione delle leggi federali, la reazione alla relativizzazione del principio della legalità deve essere condotta dal Superior Tribunal de Justiça, incluso per mezzi di strumeti destinati al filtraggio dei processi che hanno reso simili il sistema di giustizia brasiliano al dei paesi del common law e hanno dato nuovo impulso all’analisi del precedente. L’elezione di questo specifico organo di cupola favorisce l’interferenza di altri domini sociali nel controlo della legalità, come l’opinione pubblica costruita a partire delle università, istituti e dottrina specializzata. Infine, l’eseguire completo della missione di ugualianza dell’interpretazione della legislazione penale positiva chiede lo sviluppo di nuovi risorse giuridiche per permettere al Superior Tribunal de Justiça il controllo concentratto della legalità.

Parole-chiave: Principio della legalità. Espansione del Diritto Penale.

Relativizzazione delle garanzie. Bene giuridico-penale. Limiti dell’interpretazione giudiziale. Uniformatizzazione della legislazione infracostituzionale. Giurisprudenza vincolante. Analisi di precedenti nei sistemi del civil law e del common law. Funzione istituzionale del Superior Tribunal de Justiça.

Sumário

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 13

PRIMEIRA PARTE: HISTÓRIA, CONTEÚDOS E GARANTIAS DA

LEGALIDADE ........................................ ...................................................... 19

1. Origem e desenvolvimento do principio .......... ...................... 19

1.1 Nota histórica ................................ ............................................ 19

1.2 Significado técnico do princípio da legalidade..... ................. 27

1.2.1 Conteúdo político ........................................................................ 28

1.2.2 Conteúdo jurídico-penal: anterioridade e reserva legal............... 29

1.2.2.1 Princípio da anterioridade............................................................ 30

1.2.2.2 Princípio da reserva legal............................................................ 31

1.2.3 Conteúdo de proteção do cidadão.............................................. 33

1.3.1 União Soviética............................................................................ 35

1.3.2 Nacional socialismo alemão........................................................ 39

1.4 O princípio da legalidade no Direito Penal brasilei ro............ 41

1.4.1 O princípio da legalidade nas Constituições brasileiras.............. 41

1.4.1.1 Constituição imperial de 1824 .................................................... 41

1.4.1.2 Constituição de 1891 .................................................................. 42

1.4.1.3 Constituição de 1934 .................................................................. 43

1.4.1.4 Constituição de 1937 .................................................................. 43

1.4.1.5 Constituição de 1946 .................................................................. 44

1.4.1.6 Constituição de 1967 e Emenda Constitucional nº 1/1969 ........ 45

1.4.1.7 A atual Constituição de 1988 ...................................................... 45

1.4.2 O princípio da legalidade na legislação infraconstitucional

brasileira........................................................................................... 49

1.4.2.1 Código Criminal do Império (1830).................................................. 49

1.4.2.2 Código Penal de 1890 e Consolidação das Leis Penais de 1932 .. 50

1.4.2.3 Código Criminal de 1940 e reforma de 1984 .................................. 51

1.4.2.4 Lei de Execução Penal ................................................................... 52

2. Principais garantias decorrentes do princípio da legalidade.... 54

2.1 Proibição de leis indeterminadas ( nullum crimen, nulla poena

sine lege certa)............................................................................... 55

2.1.1 Taxatividade e convencionalismo penal.......................................... 58

2.1.2 Taxatividade e elementos normativos do tipo.................................. 59

- 11 -

2.1.3 Taxatividade e normas penais em branco....................................... 64

2.2 Princípio da irretoratividade gravosa ( nullum crime, nulla

poena sine lege praevia)............................................................... 69

2.2.1 Princípio da irretroatividade e direito processual............................. 71

2.2.2 Princípio da irretroatividade e mudanças jurisprudenciais in malam

partem.................................................................................. 75

2.2.3 Princípio da irretroatividade e medidas de segurança..................... 84

2.2.4 Princípio da irretroatividade e leis excepcionais ou temporárias.... 86

2.3 Proibição dos costumes como fonte do Direito Pe nal (nullum

crimen, nulla poena sine lege scripta)......................................... 88

2.4 Proibição da analogia ( nullum crimen, nulla poena sine lege

stricta).............................................................................................. 90

SEGUNDA PARTE: JURISPRUDÊNCIA E CONTROLE DA LEGALID ADE . 96

1 A crise do Direito Penal e seus reflexos entre os princípios

político-criminais de garantia..................... ................................... 96

1.1 Das relações entre política criminal e sistema de Direito Penal

............................................................................................... 98

1.2 Estrutura básica do direito penal

tradicional........................................ ............................................... 101

1.2.1 Acerca das teorias do bem jurídico-penal........................................ 102

1.2.2 Princípio da legalidade e tutela de valores....................................... 106

1.3 Estrutura básica do Direito Penal da atualidade.... ..................... 108

1.3.1 Das causas de expansão do Direito Penal.................................... 112

1.3.2 A relativização do princípio da legalidade no Direito Penal brasileiro........................................................................................... 120

1.4 Concepções sobre o limite e o alcance do princí pio da

legalidade......................................... ............................................... 123

1.4.1 Nota introdutória: o surgimento de bases teóricas diversas para a

proteção dos bens jurídicos supraindividuais................................... 123

1.4.2 Direito Penal de duas velocidades................................................... 124

1.4.3 Direito Administrativo sancionador................................................... 125

1.4.4 O ponto em comum: o absoluto respeito às garantias em relação

ao Direito Penal tradicional.............................................................. 128

2 Princípio da legalidade e a indispensável interpr etação da lei

penal.............................................. ................................................... 130

2.1 Limites para uma interpretação válida.......... ............................... 131

- 12 -

2.2 O princípio da legalidade nos sistemas do “civi l law” e do

“common law”....................................... .......................................... 133

2.2.1 Do tipo penal como instrumento da legalidade (“civil law”).............. 134

2.2.2 O princípio da legalidade no sistema do “common law”................... 139

2.2.3 As vias de aproximação dos dois sistemas penais....................... 145

3 Violações da legalidade na práxis da jurisprudênc ia do

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais nos c rimes

contra o patrimônio................................ ........................................

153

3.1 Nota introdutória: o constante e progressivo ri gor na

interpretação judicial dos tipos penais............ ............................ 153

3.2 Da antecipação do momento consumativo do furto e do roubo 154

3.3 Do significado dos elementos especializantes do crime de

roubo.............................................. ................................................. 167

3.4 Sobre a conformação da tipicidade material no c rime de

furto.............................................. ..................................................... 172

4 Uniformização da interpretação da legislação

infraconstitucional e controle da legalidade pelo S uperior

Tribunal de Justiça................................ ..........................................

177

4.1 Função institucional do Superior Tribunal de Ju stiça................. 177

4.1.1 Origem e competência...................................................................... 177

4.1.2 A especial função de proteção da liberdade através do controle da

legalidade.......................................................................................... 181

4.2 O princípio da legalidade como limite da jurisp rudência com

força vinculante................................... ............................................ 187

CONCLUSÃO ......................................... .......................................................... 190

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................ ........................................ 200

ANEXOS ........................................................................................................... 211

- 13 -

Introdução

A motivação para esta pesquisa reside na constatação de que o princípio

da legalidade, muito embora positivado tanto na Constituição Federal quanto na

legislação infraconstitucional, tem sido contornado pela jurisprudência pátria.

Isso demonstra que a sua origem histórica e o rico desenvolvimento

experimentado ao longo de pouco mais de dois séculos não asseguram, por si sós,

a plena efetividade de seus comandos, os quais, ao contrário, passaram a ser vistos

como obstáculos ao enfrentamento dos delitos da atualidade.

Começa-se a ouvir que o princípio da legalidade, tão fundamental para a

contenção do arbítrio estatal e, por conseguinte, para a afirmação da liberdade

individual e do respeito aos direitos humanos, já não presta ao correto

enfrentamento dos problemas da “sociedade do risco”.

A atual compreensão do “bem jurídico” como valor e interesse com

relevância constitucional encontra-se estreitamente vinculada com as circunstâncias

que pressionam pela flexibilização da legalidade em prol da expansão do Direito

Penal.

Os problemas decorrentes dessa nova realidade apontam para uma

resposta punitiva em defesa dos interesses de caráter coletivo e com vitimização

difusa, especialmente através de dois instrumentos bastante apreciados pelo

legislador: os crimes de perigo abstrato e o direito penal simbólico1, podendo-se citar

como exemplos, no ordenamento jurídico brasileiro, a criação de tipos penais para a

proteção do sistema financeiro (Lei n.º 7.492/1986), da ordem tributária (Lei n.º

8.137/1990), do meio ambiente (Lei n.º 9.605/1998), da lavagem de dinheiro (Lei n.º

9.613/1998), das drogas (Lei n.º 11.343/2006) e dos certames de interesse público

(Lei n.º 12.550/2011).

Por isso, a maneira de se compreender o objeto da tutela penal passou a

ser determinante para o futuro mais ou menos venturoso do princípio da legalidade,

devendo-se resgatar sua função limitadora da atividade de criminalização

desempenhada pelo legislador.

1 Cf. HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 228.

- 14 -

Outros múltiplos aspectos também ajudam a compreender esse momento

de embaçamento da legalidade, exigindo rápida superação caso se queira evitar um

retrocesso às estações mais sombrias do Direito Penal.

Um dos fatores que contribuem para tal fenômeno reside justamente na

ampliação do alcance dos tipos penais através da jurisprudência, conforme se pode

facilmente perceber através da análise cronológica do tratamento dispensado ao

momento consumativo do furto e do roubo, à constante desconstrução dos conceitos

de “grave ameaça” e “violência” e da configuração meramente formal do juízo de

tipicidade.

A ofensa à legalidade, todavia, não se restringe somente aos citados

delitos patrimoniais, estendendo-se ao vasto rol de condutas típicas positivadas no

ordenamento pátrio. Aqui, é bom registrar, os crimes contra o patrimônio não foram

tomados como o objeto da pesquisa, mas como instrumentos metodológicos para a

abordagem do objeto, que é a violação do princípio da legalidade.

Para a demonstração desse momento de crise vivenciado pelo princípio

da legalidade, entendeu-se adequado um recorte em que se delimitasse um órgão

jurisdicional, bem como um período e a matéria pesquisada. Desse modo, optou-se

por restringir o objeto de análise às decisões proferidas a partir do ano 2000 pelo

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, exclusivamente no âmbito dos

crimes contra o patrimônio, até mesmo por força da atuação profissional do autor

como Procurador de Justiça com atribuições perante as Câmaras Criminais daquele

sodalício.

Além do mais, a pesquisa concentrou-se nos crimes patrimoniais também

porque eles vêm sendo estudados pelo autor desde a defesa de sua dissertação de

mestrado, ocorrida em 2002.

Considerou-se, ainda, que os referidos crimes, por não exigirem maior

qualificação do agente, são, em regra, praticados por integrantes das classes menos

favorecidas da sociedade, ou seja, pelas pessoas mais expostas ao sistema penal e,

consequentemente, as que mais sofrem com o desrespeito às garantais individuais.

Por fim, como se tratam de delitos praticados em todas as épocas e em

todas as sociedades, fornecem um ângulo privilegiado para uma adequada

compreensão do fenômeno de debilitação do princípio da legalidade.

- 15 -

O trabalho ainda adverte para o provável agravamento do problema

diante do maior protagonismo do juiz na conformação da conduta proibida, tendo em

vista a ampliação do objeto da tutela penal, a larga utilização de elementos

normativos do tipo e a já citada preferência do legislador pelos crimes de perigo

abstrato.

Nesse contexto, a reafirmação do princípio da legalidade aparece como a

primeira e indispensável etapa para tornar efetiva a estrutura de proteção individual

própria dos verdadeiros Estados Democráticos de Direito.

Afinal, conforme frisado pelos professores paranaenses Jacinto Coutinho

e André Giamberardino, “a legalidade segue sendo uma garantia do cidadão e não

pode ser banalizada de forma alguma e muito menos por aqueles que, por ela,

querem suprimir outros direitos e garantias constitucionais”.2

Demonstrado o desrespeito principiológico, o objetivo final do trabalho se

concentrou na eleição de um mecanismo capaz de controlar as violações da

legalidade e, assim, resgatar o prestígio do princípio como o mais importante

instrumento em prol da liberdade individual.

O marco teórico, utilizado como parâmetro de interpretação final das

situações investigadas e, também, como instrumento de controle do processo

metodológico, recaiu sobre a obra “Direito penal: fundamentos, estrutura, política”,

de Winfried Hassemer, que aborda a legitimidade do Direito a partir das

consequências da interpretação da lei penal e da crise do Direito Penal moderno.

Maior destaque imprimiu-se ao papel do Estado de Direito e seus

desdobramentos, fatores que permeiam o trabalho deste jurista alemão, sobretudo

quanto ao princípio da legalidade, concebido não como uma característica do

sistema de justiça penal, mas como sua tarefa e objetivo.3

Com a observância do princípio da legalidade se espera “uma vinculação

estrita da jurisprudência à lei e maior transparência na aplicação e justificação do

2 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Legalidade e reformas parciais do CPP: a excrescência da relativização das regras e princípios constitucionais. In.: BRANDÃO, Cláudio et. al. (Coord.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 512. 3 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 53.

- 16 -

Direito”, alcançando-se, desse modo, “melhor previsibilidade e controlabilidade do

que se passa na legislação e na jurisdição penais”.4

Neste contexto, a interpretação e a aplicação da lei deverão obedecer a

uma coerência com o ordenamento.

Conforme resultará evidente no decorrer do discurso, outro problema

fundamental enfrentado refere-se ao significado que se deve atribuir ao princípio da

legalidade no âmbito do Direito Penal, a seu fundamento técnico e às principais

garantias dele decorrentes.

As duas últimas questões serão oportunamente discutidas no curso dos

sucessivos capítulos e, por ora, dispensam maiores comentários.

Quanto ao significado do princípio, ao contrário, cabe de imediato uma

menção, pois ele não deve se limitar ao aspecto formal de construção de um

sistema legal de normas escritas, prévias e claramente determinadas, o que, por si

só, não impediria o Estado de implantar uma política criminal arbitrária.

O conceito deve ser mais amplo, afastando-se de seu aspecto meramente

formal, para proteger os direitos fundamentais insertos na Constituição da

República.

Esse significado material decorre da própria evolução histórica do

princípio, vinculando-se “à limitação do exercício do poder (inclusive o poder de

punir), à divisão das funções públicas entre os poderes do Estado, ao pacto social

que sustenta politicamente a convivência humana e a soberania popular

legitimadora das normas penais”.5

Desse modo, tanto a criação quanto a aplicação e o exercício do direito

de punir encontram-se limitados pelas disposições constitucionais, que atribuem,

com exclusividade, ao Poder Legislativo a primazia de indicar as condutas que serão

tipificadas como delitos e suas respectivas penas (art. 22, I, CF) e ao Poder

Judiciário a tarefa de conduzir o processo criminal.

4 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 53. 5 GIACOMOLLI, Nereu José. O princípio da legalidade como limite do “ius puniendi” e proteção dos direitos fundamentais. In.: Revista de Estudos Criminais, Ano VI, n. 23, Porto Alegre, jul./dez. 2006, p. 158.

- 17 -

Assim, conforme asseverado por Nereu José Giacomolli, “a essência da

legalidade penal está na legitimidade e na legitimação do exercício do poder de criar

a lei e de aplicá-la com um sentido de garantia à cidadania”.6

Portanto, o princípio da legalidade funciona como garantidor do

jurisdicionado em face do poder punitivo estatal, permitindo que se conheça de

antemão as condutas proibidas e suas respectivas sanções, cujos limites não

poderão ser ultrapassados pelo órgão acusador nem pelo julgador, pois a eles não

competem determinar os tipos penais (art. 5º, XLVI e XLVII, CF).

Nessa tonalidade, a distinção entre a denominada criminalidade clássica

(voltada para a repressão pontual de ofensas concretas a bens jurídicos) e a

criminalidade contemporânea (voltada para a prevenção abrangente de situações

problemáticas),7 embora significativa no campo da política criminal, mostra-se

descabida quando se trata da essência da tutela penal, pois, na verdade, sempre

que o tipo não se referir a condutas que lesionem ou coloquem em perigo concreto

bens jurídicos individuais ou coletivos, deve ter sua validade questionada, por ofensa

ao princípio da legalidade.

Por outro lado, a ampliação do campo de interesse do Direito Penal e os

reclamos sociais por maior segurança determinaram o surgimento de diferentes

teorias voltadas à construção de um sistema de legalidade diferenciado, para

vincular as consequências jurídicas aplicáveis (sanção de natureza penal ou

administrativa) à maior ou menor intensidade operativa das garantias que

disciplinam o sistema de imputação (relativização dos princípios de garantia).8

Por isso, parte-se da premissa de que a tarefa de dar efetividade ao

princípio compete mais diretamente ao Poder Judiciário – órgão ao qual cabe

declarar a inconstitucionalidade dos tipos penais violadores das garantias vinculadas

à legalidade, bem como limitar seu alcance às condutas que estiverem

objetivamente determinadas.

6 GIACOMOLLI, Nereu José. O princípio da legalidade como limite do “ius puniendi” e proteção dos direitos fundamentais. In.: Revista de Estudos Criminais, Ano VI, n. 23, Porto Alegre, jul./dez. 2006, p. 159. 7 Cf. HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 227. 8 YACOBUCCI, Guillermo Jorge. El dilema de la legalidad en el derecho penal de los derechos humanos. In.: MELLIÁ, Cancio; DÍEZ, Gómez-Jara (Coord.). Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Montevideo - Buenos Aires: Editorial B de f, v. 2, 2006. p. 1080.

- 18 -

Outra consideração reconhece que, em um país de dimensão continental,

caracterizado por significativa diversidade sociológica e pela reconhecida polaridade

dos milhares de órgãos judicantes, tanto na esfera estadual como na federal, exige

um especial esforço de proteção da legalidade, capaz de mobilizar todo o Poder

Judiciário.

Cumpre esclarecer, todavia, que mobilização não significa engessamento,

uma vez que a interpretação da matéria de proibição não deve perder de vista as

peculiaridades de cada caso concreto.

Proteger a legalidade é proteger o indivíduo e a própria democracia, o que

justifica a eleição de um órgão jurisidicional com atribuições específicas para tal

mister, no caso, o Superior Tribunal de Justiça.

Os recentes instrumentos instituídos para uniformizar a jurisprudência e

aperfeiçoar a harmonização da legislação infraconstitucional reforçam essa

compreensão, inclusive por meio da força vinculante de suas decisões, fazendo

realçar a importância da análise dos precedentes, tão própria dos países que

compõem a família do common law.

Conclui-se, assim, que a contenção do avanço arbitrário do Direito Penal

depende, como nunca, da firme disposição do Superior Tribunal de Justiça em

compatibilizar sua tarefa uniformizadora da legislação infraconstitucional com os

valores e garantias inerentes ao princípio da legalidade.

- 19 -

PRIMEIRA PARTE: HISTÓRIA, CONTEÚDOS E GARANTIAS DA LEGALIDADE

A burguesia ilustrada tentou assentar a intervenção do Estado no Direito Penal de modo particularmente estrito com uma série de leis gerais. E isto, com razão, em princípio, não se modificou até os dias de hoje. O desenvolvimento da teoria do Direito Penal desde o começo do séc. XIX é caracterizado pela tentativa de manter, de aperfeiçoar e assegurar o princípio da legalidade frente à ameaça do executivo e de revisar e reformular o seu “ethos” jurídico e sócio-político em face dos novos conhecimentos científicos e da nova linguagem científica.

HASSEMER. Introdução ... p. 334-5.

1 Origem e desenvolvimento do princípio

1.1 Nota histórica

Estudar o princípio da legalidade significa acompanhar o desenvolvimento

da própria sociedade, pois quanto mais efetiva a exigência de prévia determinação

legal dos delitos e de suas respectivas sanções, mais naturalmente se identifica a

fonte de produção do Direito Penal e mais acessível ao cidadão se torna a proibição,

realizando-se, assim, a garantia que remarca os pressupostos ideológicos e políticos

de tal princípio.

As condições sociais que permitiram o surgimento dos direitos

fundamentais não se deram por acaso; foram alcançadas através de um lento

processo histórico marcado por devastadoras lutas, insurreições, guerras e outras

revoltas transformadoras.9

Especificamente em relação ao princípio da legalidade, os requisitos

políticos e normativos de seu surgimento se densificaram com o Iluminismo, marco

9 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3 ed. São Paulo: RT, 2011. p. 16. Os autores afirmam categoricamente que, para se falar em direitos fundamentais, deve-se constatar a presença concomitante do Estado moderno (aparelho de poder centralizado capaz de controlar determinado território e impor suas decisões por meio da Administração Pública), Indivíduo (como ser moral, independente, autônomo e não social em contraste com as pessoas que, nas sociedades do passado, eram consideradas membros de coletividades como família, clã, feudo, reino, sendo subordinadas a eles e privadas de direitos próprios) e Constituição (texto regulador da relação entre Estado e indivíduos), condições essas que se apresentaram reunidas apenas na segunda metade do Século XVIII (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3 ed. São Paulo: RT, 2011. p. 22-24).

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divisor entre os dois grandes períodos do Direito Penal: o período do terror e o

período liberal.10

O período do terror foi marcado pela falta de método e de outros objetivos

maiores que o simples castigo do réu, muitas vezes determinados tão somente para

acomodar “situações desagradáveis aos detentores do poder político, traduzindo-se

em um instrumento de arbítrio estatal”.11

Não havia preocupação com a humanização da pena, a violência era

empregada de maneira desmedida e ilimitada e o cidadão não tinha nenhuma

garantia para se proteger do poder punitivo do Estado.

Durante todo o intervalo anterior ao Iluminismo, o Direito Penal foi

largamente utilizado para oprimir o povo mediante a aflição indiscriminada de dor.12

Isso não impediu que surgissem lampejos de legalidade na Grécia antiga,

no Direito Romano e na Idade Média.

Christos Dedes defende a tese de que o princípio nullum crimen nulla

poena sine lege tem sua gênese no antigo Direito Grego, em que, desde as décadas

próximas ao ano 600 a.C., a divulgação das normas se realizava mediante a

inscrição em tábuas, o que possibilitava a todos os cidadãos da polis conhecê-las.13

Embora limitado ao procedimento ordinário per quaestiones,14 o princípio

da legalidade também foi enunciado pelas fontes romanas, tal como percebido por

Luigi Ferrajoli, para quem se pode afirmar que “enquanto o princípio de mera

legalidade remonta ao direito romano, o princípio da estrita legalidade é obra do

pensamento iluminista”.15

10 Nesse sentido: BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 21. 11 BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 15. 12 Para análise mais detalhada das práticas punitivas anteriores ao Iluminismo, confira: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Trad. por Raquel Ramalhete. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. 13 DEDES, Christos. Sobre el origen del principio <nullum crimen nulla poena sine legge>. In.: Revista de Derecho Penal y Criminologia, 2. época, n. 9, 2002, p. 141-146. 14 Discussão abrangente sobre a origem das quaestiones em MALAN, Diogo; SAAD, Marta. Origens históricas dos sistemas acusatório e inquisitivo. Disponível em: <http://www.malanleaoadvs.com.br/artigos/origens_historicas_sistemas.pdf>. Acesso em: 15.02.2012. Os autores apontam a expansão do Estado romano verificada no final do período republicano como o fator histórico que ensejou a instituição das quaestiones. Tal expansão ocasionou o aumento significativo no número de causas de difícil investigação, notadamente a concussão praticada por magistrado provincial (crimen repetundarum ou pecuniae repetundae), tornando inviável seu processamento perante as grandes assembleias populares, o que exigiu a delegação das funções jurisdicionais por parte do Senado ou do Povo para tribunais ou juízes em comissão. 15 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 2000. p. 378.

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Por sua vez, Nelson Hungria observa que, no Direito Romano, ao tempo

do governo dos magistrados e do tribunal popular, já havia prefiguração de vários

crimes e prefixação das penas, mas somente a partir da instituição do tribunal de

jurados a condenação ficou condicionada à previsão expressa da lei, vedando-se,

inclusive, a analogia.16

Igualmente, mesmo no transcurso da Idade Média, quando foram

executadas as penas mais arbitrárias e violentas da história, fundamentadas no

pleno arbítrio dos juízes e no direito costumeiro, podem ser encontrados traços do

princípio na Magna Carta da Inglaterra (1215) e nas Petitions of rights norte-

americanas.17

Apesar dessas intuitivas e pontuais aparições, o princípio da legalidade,

tal como conhecido hoje, é fruto mesmo do Movimento Ilustrado, desenvolvido por

muitos pensadores do Século XVIII.

Vale ressaltar, com Gonçal Mayos, que os pensadores e personagens

ilustrados, em sua grande maioria, assim não se consideravam, pois, em meio aos

múltiplos conflitos e diversidades, era difícil imaginar a existência de uma atitude ou

perspectiva “ilustrada” comum ou, ao menos, que pudesse ser equiparada a um

“Movimento Ilustrado”.18

Sem embargo, tratando de dar respostas aos problemas de seu tempo,

tais pensadores começaram a manifestar ideias básicas e universais, “mesmo sem

possuírem uma visão unitária do passado, um diagnóstico sobre o presente e

16 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. I, t. I. p. 35. Todavia, como explica o autor, tal prática não durou muito tempo, sendo abolida com o advento do processo senatório-consular e do concomitante tribunal imperial, que repudiaram o princípio da legalidade rígida e reconheceram, como fonte do Direito Penal, além das antigas leis populares, a “Constitutio imperial, o rescriptum, o direito municipal, o direito local, e a consuetudo radicada no usus fori, permitindo-se a interpretação extensiva e o retorno da analogia através do julgamento ad exemplum legis” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. I, t. I, p. 35-37). 17 BRUNO, Aníbal. Direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1867, t. I. p. 206-207. O autor adverte, porém, que as disposições da Magna Carta não tinham o caráter geral que lhes foi atribuído, mas representa um movimento individualista, “que definia e delimitava, na mais grave das matérias, os poderes do Estado, embora os homens livres a que se referia o texto fossem os nobres, porque somente estes, na época, poderiam ser considerados capazes de reclamar direitos”. No mesmo sentido se pronunciava Asúa, que destacava ainda a Carta Magna de Don Alfonso, rei de Léon e da Galícia (1188), que continha preceitos atinentes à “reserva do Direito” (ASÚA, Luiz Jiménez de. Tratado de derecho penal. 2 ed. Buenos Aires: Losada, 1950, t. II. p. 385-386). 18 MAYOS, Gonçal. La ilustración. Barcelona: Editorial UOC, 2007. p. 9.

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tampouco um projeto coincidente de futuro”.19 Se havia algo em comum, ninguém o

assumia em todos os seus aspectos; porém, “havia certo ar de família nas atitudes e

nas esperanças, nos ideais, naquilo que se contestava e no que haveria de mudar,

nas experiências vividas e na visão da condição humana”.20

Aplicando as concepções ilustradas ao Direito Penal, Beccaria discorre

sobre o princípio da legalidade em sua obra intitulada Dos delitos e das penas,

publicada em 1764 e considerada por muitos o marco fundador do período liberal.21

Beccaria se contrapôs à ordem absolutista e originou uma nova fase do

Direito Penal ao propor obediência a princípios que, a um só tempo, exigiam respeito

à dignidade da pessoa humana e limitavam o poder punitivo dos detentores do

poder político.

O sistema de Beccaria se apoia em três princípios fundamentais: a

legalidade dos crimes e das penas, a separação de poderes e a utilidade da sanção.

A legalidade é o princípio que fundamenta todos os demais, constituindo-

se no instrumento adequado para distribuir a sanção penal desde os integrantes da

mais alta posição social, para guardar proporcionalidade entre o crime e a pena,

para determinar a irretroatividade da norma penal gravosa e para proibir a

analogia.22

Como decorrência da separação dos poderes, considera-se que apenas

as leis podem descrever o crime e estabelecer suas respectivas penas, limitando o

arbítrio do julgador, que não poderá ultrapassar os limites legais “sob qualquer

pretexto de zelo ou de bem público”.23

O aspecto utilitarista de sua doutrina pode ser extraído da seguinte

passagem:

19 MAYOS, Gonçal. La ilustración. Barcelona: Editorial UOC, 2007. p. 9. 20 MAYOS, Gonçal. La ilustración. Barcelona: Editorial UOC, 2007. p. 9. 21 Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias afirma que a “autoria” do princípio da legalidade, “no sentido de criação e senhorio em acepção moderna”, pertence indisputavelmente a Cesare Beccaria e ao seu imortal Dei delitti e delle pene (DIAS, Jorge de Figueiredo. Legalidade e tipo em direito penal. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: RT, 2008, p. 214). 22 BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 33. 23 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. por Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 44. Beccaria nega ao juiz até mesmo a função de interpretar a lei, concedendo-lhe apenas a possibilidade de verificar a existência de um “perfeito silogismo” entre os fatos praticados pelo réu e a conduta descrita como crime, o que se justificava, apesar do evidente excesso, diante do arbítrio generalizado daquela época (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. por Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 46).

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Da simples consideração das verdades até aqui expostas, resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido. É concebível que um corpo político, que, bem longe de agir por paixão, é o moderador tranqüilo das paixões particulares, possa abrigar essa inútil crueldade, instrumento do furor e do fanatismo, ou dos fracos tiranos? Poderiam os gritos de um infeliz trazer de volta do tempo sem retorno as ações já consumadas? O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo.24

A obra de Beccaria fica ainda mais realçada quando se percebe o

momento em que foi publicada – já no final da Idade Moderna, quando “os

sofrimentos impostos pelo uso de um Direito Penal não limitado pelo Princípio da

Legalidade deram continuidade ao terror que se verificou na Idade Média”.25

Com efeito, o Direito Penal era, então, utilizado pelos soberanos com o

objetivo declarado de manutenção do poder à custa do temor produzido pelos

brutais suplícios punitivos aplicados contra os que se opunham ao regime.

Não por acaso, Beccaria optou por não publicar sua obra em Milão,

preferindo, por cautela, encaminhar o texto a Livorno, sob os cuidados de Giuseppe

Aubert, diretor de imprensa do abade e poeta Marco Coltellini. Em julho de 1764, a

obra já circulava na Toscana, sendo coroada de pronto, ainda que tivesse aparecido

sem data, sem o nome de seu autor e sem divisão em parágrafos e capítulos.26

A coragem do Marquês foi reconhecida e aplaudida por todos, pois,

conforme Foucault, “o protesto contra os suplícios era encontrado em toda parte na

segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre

juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de doléances e entre os

legisladores das assembléias”.27

Naquele momento histórico, a fé generalizada no Direito Natural como

fonte e diretriz do Direito positivo já havia sido desacreditada pela teoria do

conhecimento do idealismo alemão e pela filosofia política do Iluminismo, o que

24 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. por Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa, 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 62. 25 BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 30. 26 ASÚA, Luiz Jiménez de. Tratado de derecho penal. 2 ed. Buenos Aires: Losada, 1956, t. I. p. 247. 27 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Trad. por Raquel Ramalhete. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 69.

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resultou no fortalecimento teórico das críticas que a teoria do contrato social

formulava ao Direito Penal. 28

Precisava-se punir de outro modo, eliminando-se a confrontação física

entre soberano e condenado, “entre a vingança do príncipe e a cólera contida do

povo”.29

Segundo Hassemer, a filosofia política do Iluminismo afastou-se do Direito

Natural e procurou justificar o Direito positivo na vontade do homem racional, na

volonté générale, pois sabia que a chave para a evolução se encontrava no critério

de “racionalidade”, na diferença entre a “vontade geral” e a “vontade de todos”, sede

em que possivelmente estaria o gérmen de um novo Direito, de um “Direito racional”,

imaginado idealmente e imposto através de um contrato ajustado entre todos os

integrantes de um Estado, o “contrato social” (Sozialvertrag).30 Em suas palavras:

“A ideia do contrato social é evidente e, de acordo com os precedentes, consequente. Sem a força normativa do Direito Natural reconhecido, todo homem é inserido em si mesmo. Com a reunião dos homens em grupos, em sociedade, em um Estado, todos se colocam ao mesmo tempo, uns diante dos outros, pois os limites da sua soberania e da sua liberdade resultam dos limites da liberdade dos demais, isto é, eles devem se reunir contratualmente (vertraglich) e aí acordar os limites da sua liberdade, os limites até os quais eles renunciam à sua soberania”.31

O princípio da legalidade encontrou no Direito Penal sua elaboração mais

refinada, convertendo-se no grande limitador do poder punitivo estatal e na essência

de todo sistema que ambicione a segurança jurídica.32 Sendo assim, não demorou

28 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 333. O autor observa que, na época do Direito Natural, o legislador tinha que se preocupar muito pouco em estabelecer com exatidão os preceitos legais, ao passo que o Iluminismo elevou o grau de exigências de legitimação e modificou a qualidade das leis. 29 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. Trad. por Raquel Ramalhete. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 69. Vale perceber, com o autor, que o suplício tornou-se rapidamente intolerável: “revoltante, visto da perspectiva do povo; vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima e perigoso, de qualquer ângulo, pelo apoio que nele encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do povo”. 30 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 333. 31 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 334. 32 Nesse sentido, BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 67.

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muito até que passasse a constar dos textos legislativos, de maneira expressa e

inquestionável.

Com efeito, o princípio da legalidade foi recepcionado pela Declaração de

Direitos da Virgínia (12.06.1776), cujo artigo 9º afirmava que “as leis com efeito

retroativo, feitas para punir delitos anteriores a sua existência, são opressivas e não

devem ser promulgadas”; pela Constituição americana (17.09.1787), que, na nona

seção do art. I, proibia a promulgação do decreto de proscrição (Bill of Attainder) ou

de lei retroativa (ex post facto Law), e, finalmente, pelo art. VIII da Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão (26.08.1789), que dispunha que a lei apenas deve

ditar penas estrita e evidentemente necessárias e que ninguém pode ser punido

senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente

aplicada.33

As primeiras codificações que adotaram expressamente o princípio foram

o Código Penal de D. José II, rei da Áustria, datado de 1787 (Josephina), as

ordenações de Frederico II, rei da Prússia e déspota esclarecido, datadas de 1794

(Parte Geral do Direito da Terra), e o Código Penal francês de 1810.

Contudo, sua sistematização dogmática só aconteceu em 1801, através

da obra de Feuerbach, que passou a considerá-lo como expressão e determinação

de uma organização jurídico-penal que sanciona “não porque casualmente existe

uma lei penal, mas porque necessariamente existe uma lei que reproduz a justiça”.34

Feuerbach unificou o conteúdo e a forma requerida pelo princípio da

legalidade ao condicionar a imposição de pena à existência de uma lei penal – nulla

poena sine lege –, de uma ação incriminada – nulla poena sine crimen – e de uma

lesão jurídica determinada – nullum crimen sine poena legali –, fórmulas latinas que

33 Conforme, BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 66. A redação original do art. VIII da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é a seguinte: “Nul ne peut être puni, qu´en vertu d´une loi étabile et promulguée antérieurement au délit et légalement appliquée”. 34 NAUCKE, Wolfgang. La progressiva pérdida de contenido del principio de legalidad penal como consecuencia de um positivismo relativista y politizado. In.: La insostenible situación del derecho penal. Granada: Comares, 2000 (Estudios de derecho penal, v. 15), p. 536. Ainda segundo o autor, para Feuerbach, o conceito de “conduta lesiva merecedora de pena” se pressupõe e pode ser reconhecido mesmo por quem não tem instrução sobre a lei, a qual somente acentua a infração jurídica.

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foram posteriormente condensadas na conhecida expressão nullum crimen nulla

poena sine lege.35

O princípio da legalidade, portanto, traduz a concepção utilitarista de

Feuerbach, encontrada em sua Teoria da Coação Psicológica, que se caracteriza

como o modelo “clássico” da prevenção geral. A pena é concebida como um

mecanismo meramente dissuasivo da realização da conduta, fundado na intimidação

através da ameaça de sua aplicação.36

Para produzir o efeito de uma coação psicológica e, naturalmente,

desestimular o potencial infrator a praticar crimes, torna-se imperioso que a lei

descreva previamente a conduta proibida e a pena cominada.37

Convém ressaltar que o destaque atribuído por Feuerbach ao momento

cominatório abstrato decorre de dois fatores: a concepção ilustrada e liberal do

homem como ser racional e a visão do Estado como instrumento a serviço dos

indivíduos, a partir de onde se pode fundamentar sob critérios racionais e

instrumentais o exercício do direito de punir.38

Sucederam essa concepção utilitarista de legalidade duas versões laicas

das antigas teorias absolutas ou retribucionistas, que atribuíam à pena o papel de

uma “retribuição ética”, justificada por meio do valor moral da lei penal violada pelo

agente, conforme o pensamento de Kant,39 ou uma “retribuição jurídica”, como

exigência da razão, na forma de resposta estatal que anula as consequências do

delito, como postulado por Hegel.40

35 Conforme, BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34. No mesmo sentido, Nilo Batista esclarece que, ao contrário do que se difunde frequentemente, das obras de Feuerbach não consta a fórmula ampla “nullum crimen nulla poena sine lege”, mas sim uma articulação das três fórmulas mencionadas (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 66). 36 FEUERBACH, Anselm von. Tratado de derecho penal. Trad. por Eugenio Raúl Zaffaroni. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 61. 37 Os contornos dessa teoria foram assim sintetizados por Cláudio Brandão: “Toda lesão jurídica contradiz o objetivo do Estado e, para evitar essas lesões, deve-se recorrer à lei penal, a qual cumpre um papel de exercer uma coação de índole psicológica. Se o indivíduo conhece a lei e o mal que ela comina à lesão, tenderá a refrear seus impulsos, que o levam ao cometimento da ação lesiva; assim, a lei penal produz uma coação psicológica que traz como conseqüência a intimidação dos sujeitos” (BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 34). 38 Conforme, GUIRAO, Rafael Alcácer. Los fines del derecho penal: una aproximación desde la filosofía política. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2004, p. 136. 39 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. 40 HEGEL, G. F. Filosofía del derecho. Trad. por Angélica Mendoza de Montero. Buenos Aires: Editorial Claridad, 1937.

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Com os primeiros lineamentos da escola positiva inicia-se uma terceira

etapa do “sistema de legalidade”, que passou a identificar na reação punitiva uma

medida de defesa social, priorizando a prevenção do crime em relação à sua

repressão.41

Apesar de privilegiar, na fundamentação da pena, a possibilidade de o

acusado voltar a delinquir, relativizando, desse modo, a estrita correspondência

entre o fato e a lei, a escola positiva não se afastou do princípio da legalidade, por

considerá-lo “imprescindível baluarte da liberdade individual”.42

Com as posições mistas ou ecléticas que sucederam a escola positiva, o

princípio da legalidade recobrou seu destaque na doutrina penal e converteu-se na

mais importante garantia do cidadão em face do poder punitivo do Estado.43

Hodiernamente, o princípio deve ser compreendido em sua estreita

relação com a exigência de respeito à dignidade da pessoa humana, corolário da

moderna concepção do Estado de Direito, o qual, na expressão de Roxin, não deve

apenas proteger o indivíduo através do Direito Penal, mas também protegê-lo do

próprio Direito Penal.

Nesse sentido, o ordenamento jurídico oferece os métodos e meios

adequados para a prevenção do delito ao mesmo tempo em que impõe limites ao

exercício do poder punitivo, garantindo que o cidadão “não fique desprotegido e à

mercê de uma intervenção arbitrária ou excessiva do ‘Estado Leviatã’”.44

1.2 Significado técnico do princípio da legalidade

41 CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979. p. 41. A autora denomina “sistema de legalidade” o conjunto de práticas enfeixadas em vários subsistemas com múltiplas redefinições da legalidade em seu interior. 42 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. I, t. I. p.23. Conforme assinala Martínez, “se os positivistas não postularam expressamente a eliminação do princípio da legalidade, foi porque o ambiente ainda não estava preparado para aceitar passivamente o desaparecimento de uma regra tão fundamental para a civilização europeia” (MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 23). 43 Luiz Flávio Gomes lembra que, por encontrar abrigo nas principais Cartas e Declarações de Direitos Humanos, o princípio da legalidade galgou a condição de “patrimônio cultural da humanidade, da civilidade e da cidadania” (GOMES, Luiz Flávio. Princípio da legalidade (ou da reserva legal) e os limites das “medidas provisórias” em direito penal. In.: Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: RT, 1999. p. 215). 44 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 137.

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Como visto, o princípio da legalidade deita raízes no pensamento

ilustrado e, para sua correta compreensão, torna-se necessário conhecer seus

fundamentos.

Na atualidade, de um modo geral, as exigências do princípio da

legalidade se aglutinam em três fundamentos: um, de ordem política, ainda como o

grande postulado liberal da repartição de poderes, agora enriquecido com a ideia de

liberdade conferida pelo Estado de Direito; outro, de origem jurídico-criminal, como

expressão da essência ou função social da norma e da sanção penal, e, por último,

um terceiro, vinculado à tutela do cidadão em face do poder punitivo do Estado.45

1.2.1 Conteúdo político

A exigência de vinculação do Poder Executivo e do Poder Judiciário às

leis formuladas pelo Poder Legislativo remonta ao Liberalismo e permanece

essencial nos dias de hoje.

A fundamentação democrática do princípio da legalidade, desenvolvida

desde Montesquieu e Beccaria, significa a proibição do Executivo e do Judiciário de

criar delitos e penas mediante seus atos. Essa faculdade, ensina Roxin, é restrita à

lei editada pelo Parlamento, instância que representa mais diretamente o povo como

titular do poder de Estado.46

Isso significa que o juiz não tem a função de criar o Direito, mas tão

somente a de aplicá-lo, enquanto o Executivo não exerce nenhuma interferência na

punição.47

A partir da exigência de lei formal, o princípio da legalidade passou

naturalmente a reivindicar a segurança jurídica, transformando-se num instrumento

de luta contra o arbítrio judicial, tão comum no Antigo Regime, quando os juízes,

45 Conforme MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 28. 46 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 141. 47 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 145.

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segundo as peculiaridades do caso, podiam aplicar penas de maior ou menor

gravidade do que aquelas cominadas em lei.48

Assim, não se pode contestar que, em toda a sua concreta evolução

histórica, o princípio da legalidade tem expressado um valor político antagônico

àquele que animava o princípio fundante do Estado absoluto.

Desse ponto de vista, é correto perceber, com Nicola Bassi, que a

afirmação da regra da legalidade como hoje é conhecida tem o mesmo significado,

em termos atualizados, de um dos mais antigos argumentos de teoria política: o da

intrínseca preferência por um governo regido por leis em oposição a um governo

regido por homens.49

Como assinala Carl Schmitt, o Estado absoluto tem seu traço

característico na vontade pessoal e no comando autoritário de um Chefe de Estado

que governa, ao passo que o Estado legiferante tem como manifestação típica a

normatização predeterminada, mensurável e determinável quanto ao conteúdo,

duradoura e geral. Em tal Estado, direitos e obrigações provêm das leis, e não dos

indivíduos, das autoridades ou de instâncias superiores. Em suas palavras:

As leis não regem, elas vigem apenas como normas. Domínio e puro poder simplesmente deixam de existir por completo. Quem exerce poder e domínio, age ‘com base em uma lei’ ou ‘em nome da lei’. Apenas faz valer, com legitimidade, uma norma vigente.50

O significado político que levou à proclamação do princípio da legalidade

tem, portanto, um sentido de luta contra a insegurança jurídica própria do Direito

Penal dos Estados monárquicos, pois a segurança política dos cidadãos somente

pode ser alcançada através da segurança jurídica característica do Estado de

Direito.

Entretanto, a justificação política do princípio, determinada pela divisão de

poderes, a par de proibir a utilização dos costumes e da analogia para criar tipos

penais e agravar as penas, não serve para fundamentar a proibição da

retroatividade da lei penal gravosa.

48 Conforme MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 29. 49 BASSI, Nicola. Principio di legalità e poteri amministrativi impliciti. Milano: Giuffrè, 2001. p. 146. 50 SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Trad. por Tito Lívio Cruz Romão. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 2.

- 30 -

Afinal, conforme observado por Roxin, “a retroatividade não afeta em

nada a vinculação do juiz à lei nem a hegemonia do legislativo, motivo pelo qual sua

inadmissibilidade só pode derivar de uma justificação jurídico-criminal”.51

1.2.2 Conteúdo jurídico-penal: anterioridade e reserva legal

Junto ao princípio da legalidade se construiu uma fundamentação jurídico-

penal decorrente do sentido material das normas, cuja função motivadora estende-

se sobre a generalidade dos cidadãos, os quais, por isso, devem receber o comando

normativo de modo claro, mediante a publicação prévia da lei, contendo a

identificação precisa do início de sua vigência.

Como consequência direta da garantia da anterioridade, nenhuma

conduta poderá ser castigada se não estiver tipificada como infração penal,

constituindo o princípio da reserva legal uma garantia ao cidadão de que não será

condenado por componentes criminais criados por via judicial, pelos costumes ou

por analogia.

1.2.2.1 Princípio da anterioridade

O primeiro significado fundamental proveniente do princípio da legalidade

se vincula com a proibição da retroatividade da lei penal, tendo por base a “teoria da

ação psicológica”, desenvolvida por Feuerbach.52

Como forma de motivar as pessoas a manterem um comportamento

conforme as normas, exige-se a descrição legal da conduta proibida e a cominação

51 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 144. 52 FEUERBACH, Anselm von. Tratado de derecho penal. Trad. por Eugenio Raúl Zaffaroni. Buenos Aires: Hammurabi, 1989, p. 58-60. Vale acrescentar a advertência feita por Roxin, para quem Feuerbach não é em absoluto o criador do dito princípio, que foi desenvolvido e também codificado antes dele. Coube a Feuerbach, além de sua formulação latina “nullum poena sine lege”, lhe adicionar uma fundamentação autônoma a partir da teoria da pena (ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 146).

- 31 -

da respectiva sanção penal para quem realizá-la fora das hipóteses excludentes da

ilicitude ou da culpabilidade.

Nesta perspectiva preventivo-geral da pena, que se efetiva através da

intimidação, a irretroatividade da lei penal gravosa tem singular importância, pois é

através da prévia previsão legal que os indivíduos podem conhecer o alcance da

conduta proibida e sua respectiva pena.

Por outro lado, o surgimento do princípio da anterioridade também remete

à necessidade de se impor limites ao arbítrio judicial, submetendo o juiz à lei, posto

que, em matéria penal, compete exclusivamente ao legislador a tarefa de determinar

o que é ilícito, bem como a espécie e o quantum da sanção.

Isso significa que somente a lei pode descrever determinada conduta

como criminosa e estabelecer a sanção aplicável, cujos efeitos, por exigência do

princípio da anterioridade, atingirão apenas as condutas praticadas após sua

entrada em vigor.

Como se percebe, a anterioridade da lei se entrelaça com a reserva legal,

garantindo que a aplicação da sanção penal ocorra nas estritas hipóteses em que o

agente pratique uma conduta previamente catalogada como crime, o que configura

inarredável limitação do poder punitivo do Estado em favor da segurança e certeza

jurídicas.

1.2.2.2 Princípio da reserva legal

O princípio da reserva legal identifica como fonte do Direito Penal

unicamente a lei em sentido estrito.

Primeiramente, cumpre explicitar o papel fundamental que o princípio da

separação de poderes exerce em prol da liberdade do cidadão nos Estados

Democráticos de Direito.

O Poder Executivo, órgão ao qual cabe administrar o Estado, não poderia

ficar também responsável pela edição das leis, uma vez que sempre haveria a

possibilidade de cair na tentação de criar textos abusivos no interesse da

Administração e em prejuízo dos indivíduos.

- 32 -

Com maior razão ainda, a criação legislativa não poderia recair sobre o

Poder Judiciário, já que a ele compete a fiel aplicação do ordenamento jurídico.

O ofício, portanto, é do Poder Legislativo, órgão ao qual cabe estabelecer

o direito positivo em nome do povo, conforme preconizado por Rousseau:

O legislador, a todos os respeitos, é no Estado um homem extraordinário. Se o deve ser por seu engenho, não o é menos por seu emprego; não é de modo algum magistratura, não é de nenhum modo soberania. O emprego, que constitui a república, não entra em absoluto em sua constituição; é uma função particular e superior, que nada tem de comum com o império humano; porque, se quem dirige os homens não deve dirigir as leis, quem dirige as leis não deve, pela mesma razão, dirigir os homens; do contrário, suas leis, ministras de suas paixões, perpetuariam muitas vezes suas injustiças, e ele jamais poderia evitar que intuitos particulares alterassem a santidade de sua obra”.53

Em segundo lugar, a materialização do princípio da legalidade, como

critério fundamental de legitimação do poder punitivo estatal, determinou o processo

de codificação do direito penal e a exclusiva atribuição do legislador para definir

crimes e cominar penas.

Essa garantia é superiormente cara ao direito penal devido às graves

implicações decorrentes da sanção penal, em especial, a pena privativa de

liberdade.

Exatamente por isso, as regras jurídico-penais devem expressar a

vontade popular como “condição de legitimação democrática por meio do poder

competente: o Poder Legislativo”.54

O princípio da reserva legal representa, portanto, uma ferramenta

indispensável para o controle do exercício do direito de punir do Estado e, via de

consequência, da própria segurança jurídica, representando importante garantia

política para o cidadão, expressiva do império da lei, “da supremacia do Poder

Legislativo – e da soberania popular – sobre os outros poderes do Estado”.55

Por ele, somente através da lei em sentido estrito, assim considerada

aquela proveniente do Poder Legislativo, poderá o Estado dispor sobre matéria

53 ROUSSEAU, Jeas-Jacques. Do contrato social. Trad. por Rolando Roque da Silva. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Mores, p. 57-58. Disponível em www.cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf Acesso em 14.9.2012. 54 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 38. 55 QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 38.

- 33 -

penal, proibindo ou impondo condutas sob a ameaça de sanções previamente

determinadas.

Ficam, por conseguinte, desautorizados no âmbito penal os atos

legislativos emanados dos demais poderes, como, por exemplo, as medidas

provisórias, bem como o emprego dos costumes, da analogia e dos princípios gerais

do direito para definir crimes ou cominar penas.

Desse modo, conclui Jair Leonardo Lopes, “a fonte da norma

incriminadora, que constitui o direito penal em sentido estrito, isto é, aquele que faz

a previsão dos crimes e das penas respectivas, há de ser sempre e unicamente a

lei”.56

1.2.3 Conteúdo de proteção do cidadão

O princípio da legalidade, como expressão política de garantia do

cidadão, destina-se hodiernamente à proteção das tradicionais esferas da liberdade

e da propriedade, determinando que qualquer limitação a tais direitos somente se

realize quando estiver expressamente contemplada e autorizada por lei.

O fundamento de garantia do princípio da legalidade – como proteção do

homem diante do poder punitivo – radica na intenção de se assegurar a liberdade

mediante a vinculação do Estado à lei abstrata.57

Por esse motivo é que se diz que “o Direito Penal se volta para o homem

através da legalidade, respeitando-o em sua dignidade”.58

Foi através do acolhimento do princípio da legalidade que o Direito Penal

passou a considerar a dignidade da pessoa humana, passando, por conseguinte, a

conjugar o exercício do jus puniendi com as inúmeras limitações hoje concebidas

como garantias dos cidadãos.

56 LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal. 3. ed. São Paulo: RT, 1999. p.44. 57 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 144-145. 58 BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do Princípio da Legalidade. Rio de janeiro: Forense, 2002. p. 41.

- 34 -

Da abrangência de tais garantias o texto se ocupará de modo mais

detalhado um pouco mais adiante.

1.3 Crise, rupturas e reafirmação do princípio da l egalidade: dois casos emblemáticos

As primeiras construções jurídicas que irromperam contra o princípio da

legalidade tiveram como pano de fundo o Positivismo Penal do final do Século XIX.

Conforme assinala Naucke, baseados na ideia de invulnerabilidade da lei,

de sua inquebrantável autoridade e de sua excelência, tão bem defendidos por

Binding, os positivistas já não reconheciam o princípio da legalidade como um

absoluto cultural, seja quanto ao conteúdo seja quanto à forma.59

Também se assiste a uma reação contra o princípio da legalidade,

especialmente em relação à exigência de prévia cominação da pena, entre os

penalistas da Escola Correcionalista e a Escola Positivista italianas, que defendiam

o arbítrio judicial e a sentença indeterminada, possibilitando ao Judiciário eleger o

tratamento mais adequado à pessoa do delinquente.60

Todavia, foi no campo político que o princípio da legalidade conheceu sua

mais profunda crise a partir do surgimento de “doutrinas políticas estranhas”,61

nomeadamente o nacional socialismo alemão e o denominado socialismo real na

União Soviética.

Com efeito, devido ao fato de seu significado se constituir em importante

limitação do direito de punir do Estado, protegendo o particular contra as

arbitrariedades dos detentores do poder, o princípio da legalidade não foi nem será

cultuado por nenhuma forma de ditadura, encontrando seu verdadeiro espaço

somente nos Estados de Direito.62

59 NAUCKE, Wolfgang. La progressiva pérdida de contenido del principio de legalidad penal como consecuencia de um positivismo relativista y politizado. In.: La insostenible situación del derecho penal. Granada: Comares, 2000. p. 536-537. (Estudios de derecho penal, v. 15) 60 Conforme MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 22. 61 Essa expressão é encontrada em PIRES, Ariosvaldo de Campos [colaboração e atualização de Sheila J. Selim de Sales]. Compêndio de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 76. 62 Sobre a política criminal dos Estados teocráticos e totalitários, refratários ao princípio da legalidade, cf. as pertinentes observações de Cláudio Brandão (BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal: análise do sistema penal à luz do princípio da legalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.43-69).

- 35 -

Mesmo após a consagração do princípio, esses regimes totalitários não

se constrangeram em excluí-lo do ordenamento jurídico para assentar o jus puniendi

na periculosidade social de certas ações, na prevalência dos interesses do Estado

sobre os direitos do indivíduo ou no são sentimento do povo.63

Excepcionalmente, a Itália nacionalista não suprimiu o princípio da

legalidade nem sequer admitiu a aplicação analógica, mas abrigou diversos traços

autoritários na parte especial do Código Penal, como, por exemplo, “o grande

número de tipos penais que tutelam a personalidade do Estado, com previsão da

pena capital para muitos deles e a larga utilização de tipos penais modelados sob a

forma de ‘atentado’, para tutelar os interesses do Estado fascista de então”.64

Felizmente, o princípio recuperou seu prestígio e se fortaleceu como um

dos principais alicerces do Estado Democrático de Direito, como se comprova por

sua expressa previsão nos artigos 22 e 23 do Estatuto de Roma, o principal tratado

internacional de Direito Penal da atualidade.65

1.3.1 União Soviética

O país que, inicialmente, rompeu com a tradição legalista do continente

europeu foi a União Soviética, cuja ditadura do proletariado inaugurou a “consciência

revolucionária” e, meses depois da implementação do regime comunista, em 30 de

novembro de 1918, derrogou a legislação tzarista para começar um “período de total

arbitrariedade”.66

63 Conforme PIRES, Ariosvaldo de Campos [colaboração e atualização de Sheila J. Selim de Sales]. Compêndio de direito penal. Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 76. 64 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 49-50. As seguidas ofensas ao princípio da legalidade foram destacadas no profundo estudo realizado pela autora sobre o significado ideológico da parte especial do Código Penal nos países socialistas não democráticos. 65 Artigo 22. Nullum Crimen Sine Leqe. 1. Nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, nos termos do presente Estatuto, a menos que a sua conduta constitua, no momento em que tiver lugar, um crime da competência do Tribunal. 2. A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambigüidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada. 3. O disposto no presente artigo em nada afetará a tipificação de uma conduta como crime nos termos do direito internacional, independentemente do presente Estatuto. Artigo 23. Nulla Poena Sine Lege. Qualquer pessoa condenada pelo Tribunal só poderá ser punida em conformidade com as disposições do presente Estatuto. 66 LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK, Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 115.

- 36 -

Como acentua Luiz Luisi, os juízes soviéticos orientavam-se

exclusivamente pela “ideia do direito socialista” até que, em 12 de dezembro de

1919, foram timidamente limitados com a promulgação de um elenco de princípios

destinados a servir de critérios em matéria penal, denominado “Princípios

fundamentais do Direito Penal da R.S.F.S.R.”.67

Os referidos princípios, prossegue o professor gaúcho, “continham

unicamente normas da parte geral” e nenhuma menção aos delitos em espécie e

suas respectivas sanções.68

Sheila Jorge Selim de Sales observa que o denominado “socialismo

penal” ou “direito penal socialista” tinha como uma de suas funções a “defesa e a

consolidação da ordem socialista instituída contra o ‘capitalismo’, as atitudes ‘contra-

revolucionárias’ e os ‘inimigos da classe proletária’”,69 constituindo-se basicamente

num veículo de luta contra os opositores do Comunismo.

Através do referido sistema, o direito se subordina à política de matiz

socialista, e a concepção formal de crime, como previsão legislativa, é substituída

por uma concepção material, passando a ser entendida como ação socialmente

perigosa.70

Esse período de gritante arbítrio só encolheu com a edição do primeiro

código penal soviético, que entrou em vigor no dia 1º de junho de 1922, sem,

contudo, resgatar o princípio da legalidade.

Com efeito, o art. 6º do referido estatuto estabelecia que “a lei penal se

aplica a toda ação ou omissão contra a sociedade soviética ou tendente a abolir a

67 LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK, Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 115. 68 LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK, Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 115. O autor explica ainda que eram enumerados cerca de 15 tipos diferentes de sanções, entre elas as privativas de liberdade, trabalhos forçados, declaração de ser inimigo da revolução, entre outros. 69 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 59. A professora da UFMG esclarece que o novo regime político passa a considerar “burguesa” a legalidade concretizada no Direito Penal liberal, que defendia a propriedade privada e os interesses capitalistas da classe privilegiada, passando o “sistema penal a ser concebido como instrumento de defesa da nova ordem instaurada pela revolução do proletariado” (SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 63). 70 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. p. 60.

- 37 -

ordem jurídica instituída pelo poder operário no período de passagem à sociedade

comunista”.71

Diante dessa fórmula ampla, permitia-se a punição de fatos não

tipificados como crimes que, a critério do julgador, mostrassem-se perigosos para o

alcance dos fins revolucionários.

Em novembro de 1926, foi editado novo código, que passou a vigorar no

dia 1º de janeiro de 1927, sofrendo inúmeras alterações até sua revogação, em

1961.72

Esse código manteve a definição substancial de crime, mas só permitiu a

criação de tipos penais pelo intérprete através da analogia.

Observa Luiz Luisi, no entanto, que a nova ordem normativa representou

um avanço relativamente ao período anterior, porque a aplicação analógica tinha por

base disposições da parte especial do código, ao passo que a lei revogada nem

sequer exercia esse papel exemplificativo para o juiz, que era, portanto, “guiado

quase exclusivamente pela consciência jurídica socialista e pelo interesse

revolucionário”.73

Assim, consoante o art. 16, a pena criminal poderia ser aplicada em duas

hipóteses: “se o fato fosse previsto em lei como crime e nas situações fáticas não

expressamente previstas, mas que se mostrassem ‘perigosas’ para a ditadura do

proletariado e se assemelhassem àquelas criminalizadas na parte especial,

mediante aplicação analógica”.74

Não satisfeitos com a larga aplicação da lei penal por analogia, admitida

expressamente nos Códigos de 1922 e 1926, os revolucionários mais radicais

71 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 65. 72 LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK, Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 117. 73 LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK, Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 117. No mesmo sentido, Sheila J. Selim de Sales acentua que, com a utilização da analogia ao lado da definição substancial do crime, a parte especial do código penal, que, antes, não era levada em consideração, passou a desenvolver uma função exemplificativa, “enquanto ponto de referência para que se proceda à aplicação analógica, ou analogia legis” (SELIM DE SALES. Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 74). 74 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 73. Vale transcrever a redação do art. 16: “quando algum ato socialmente perigoso não esteja expressamente previsto no presente código, o fundamento e a extensão de sua responsabilidade se determinarão em conformidade com os artigos deste, relativos aos delitos de índole analógica.”

- 38 -

quiseram tornar o sistema penal ainda mais arbitrário e voltado para os interesses

da classe operária.

Observa Luiz Luisi que, pouco tempo depois da entrada em vigor do

Código de 1926, o promotor Krylenko, tendo como companheiro o jusfilósofo

Paschukanes, “promoveu uma campanha visando a acabar com os restos da

jurisprudência capitalista e a construir um direito penal rigorosamente obediente ao

pensamento marxista”.75

O Projeto Krylenko pode ser considerado o ápice do modelo penal

socialista, pois propunha um código penal desprovido de parte especial e, portanto,

sem definição dos crimes nem a prévia cominação legal. O projeto, apesar de jamais

ter entrado em vigor, tem relevância histórica, por delinear as bases do Direito Penal

soviético daquela época, marcado pela incerteza do direito, pela absoluta

discricionariedade do “juiz proletário” e, nitidamente, voltado para alcançar as

finalidades políticas da revolução.76

O emprego da analogia não resistiu ao fim da Era Stalinista e, em 1956,

foi desautorizado após o XX Congresso do Partido Comunista, vindo a ser

expressamente proibido no Código Penal de 1960.77

A mudança, todavia, ocorreu nos moldes da “legalidade socialista”, que

passou a definir o crime como “toda ação ou omissão socialmente perigosa, prevista

na lei penal”.78

Em outras palavras, poderá haver exclusão do crime mesmo que um fato

concreto, ainda que tipificado em lei, não se mostre perigoso para o Estado

socialista.

Desse modo, assinala Sheila J. Selim de Sales, o juiz criminal

permaneceu com enorme âmbito de discricionariedade, permitindo que convicções

ideológicas influenciassem na decisão, pois só ele “poderá dizer, diante do caso

75 LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK. Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 118. 76 Para aprofundar o estudo sobre o Projeto Krylenko: SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005; LUISI, Luiz. Um direito penal do inimigo: o direito penal soviético. In.: STREK. Lenio Luiz (Org.). Direito penal em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 111-132. A propósito, diante das disposições exemplificativas de 65 delitos particularmente perigosos e 81 menos perigosos em seções separadas dos princípios gerais, o autor admite que, sem muito rigor técnico, há no projeto Krylenko uma parte especial contendo “exemplos” de crimes. 77 Conforme SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 74. 78 RAMACCI, Fabrizio. Corso di diritto penale. 2 ed. Torino: Giappichelli, 2001. p. 94.

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concreto, se o fato típico praticado pelo agente é ou não socialmente perigoso,

mesmo configurando-se todos os elementos da descrição legal”.79

Apesar da vivência do apogeu socialista, que consolidou a União

Soviética e confirmou a onipotência do partido do proletariado, os índices de

criminalidade mantiveram-se em permanente expansão, contrariando a ideia de que

a coletivização dos meios de produção bastaria para eliminar paulatinamente as

condutas desviadas.

Em vista dos excessos praticados pelos revolucionários e da profética

“sociedade dos iguais”, o Direito Penal socialista, também conhecido como

“socialismo real”, não tolerava os “diferentes”, revelando-se, no dizer de Mantovani,

“entre as maiores tragédias e fraudes da história humana”.80

1.3.2 Nacional socialismo alemão

A quebra da legalidade também alcançou expressão no âmbito do

nacional socialismo alemão.

Já em 1935, o legislador opôs ao comando liberal nullum crimen nulla

poena sine lege o princípio autoritário nullum crimen sine poena, inscrevendo, no §2

do StGB, a seguinte fórmula: “será punido quem comete um ato que a lei declara

como punível ou que merece pena de acordo com a ideia fundamental da lei penal e

com o são sentimento do povo”.81

Rescindiu-se, desse modo, um antes desenvolvido espólio de legalidade

que vinha expressamente reconhecido na legislação alemã desde o Code penal de

1810 e, por meio do StGB prussiano de 1851, chegou ao RStGB de 1871.82

79 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 75. 80 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale. 3 ed. Milano: Cedam, 1992. p. 20. 81 Conforme HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p.332. A redação original assegurava que “uma ação só pode ser sancionada com pena se esta pena estiver legalmente determinada antes da ação ser cometida” (ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 142). 82 Conforme HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p.332.

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A propósito, o princípio da legalidade também já havia sido alçado à

categoria constitucional ao ser inserido no art. 116 da Constituição de 1919, a

denominada Constituição do Reino de Weimar (WRV).83

A nova redação do §2 do Código Penal alemão admitiu expressamente o

emprego da analogia, o que representou o abandono das conquistas impostas

desde a Ilustração.84

Dessa maneira, os dirigentes do nacional-socialismo decidiam, mediante

suas próprias concepções, as condutas que deveriam ser castigadas, impondo-se

arbitrariamente em detrimento daqueles que ousavam desafiá-los.

Com efeito, o regime nazista estabeleceu uma série de leis especiais que,

a par de conviver com o Código Penal de 1871, desfigurou elementares princípios

de garantia do Direito Penal, em especial o princípio da legalidade.

Conforme observado por Nereu Giacomolli e Pablo Alflen da Silva:

[...] no período pós-guerra as maiores barbáries recaíram nas fontes do direito penal, pois, de um lado, afirmou-se o princípio da analogia in malam partem e, de outro lado, abriram-se, decisivamente, as fontes extralegais como, por exemplo, a ideia de são sentimento do povo, assim como interpretava o Führer (e instituída no direito penal alemão por Edmund Mezger, em sua obra Deutsches Strafrecht).85

O momento opressor por que passou o Direito Penal alemão foi bem

representado por Mantovani, ao lembrar que “o crime não era mais concebido como

ofensa típica de um bem juridicamente protegido, mas como um ato de infidelidade

da vontade individual contra a vontade do Chefe”, ao passo que a pena era

83 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p.332. 84 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 143. 85 GIACOMOLLI, Nereu José; SILVA, Pablo Rodrigo da. Panorama do princípio da legalidade no direito penal alemão vigente. São Paulo: Revista Direito GV, n. 12, jul.-dez. 2010. p. 569. Welzel, por sua parte, anotou que as leis nacional-socialistas foram redigidas de modo tão amplo e indeterminado, sobretudo a partir de 1942, que deram lugar ao direcionamento político da administração da justiça por parte do Ministério da Justiça (WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. 4 ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1993. p. 14). A isso deve somar-se as execuções de detratores do regime, legalizadas posteriormente por meio de uma lei de 3 de julho de 1934, com efeito retroativo à execução (GANDULFO, Eduardo. Qué queda del Principio de Nullum Crimen Nulla Poena sine Lege? Un enfoque desde la argumentación jurídica. Política Criminal, v. 4, n. 8, 2009, p. 296 (292-382). Disponível em: <http://www.politicacriminal.cl/Vol_04/n_08/Vol4N8A2.pdf>. Acesso em: 11.02.2012.

- 41 -

“drasticamente expressa como ameaça particularmente severa, cumprindo acima de

tudo o escopo de prevenção geral”.86

Após o fracasso nazista na Segunda Guerra Mundial, o §2 do Código

Penal alemão, ainda com sua redação nacional-socialista, foi imediatamente

declarado inaplicável pelos aliados, derrogado expressamente e substituído por uma

nova versão do princípio da legalidade.87

Hoje, não por acaso, o princípio da legalidade está previsto no §1 do

StGB e no artigo 103 da Lei Fundamental (GG), ao passo que o “são sentimento do

povo”, entre os penalistas, tornou-se uma expressão ignominiosa, pois foi “a

alavanca com a qual se afastou o princípio da legalidade do Direito Penal”.88

1.4 O princípio da legalidade no Direito Penal bras ileiro

1.4.1 O princípio da legalidade nas Constituições brasileiras

Desde a promulgação da Constituição imperial de 1824, o Brasil

conheceu nada menos que sete textos constitucionais, o que fragilizou de certo

modo não apenas estudos mais consistentes sobre seus enunciados, mas também a

realização material das garantias e dos direitos reconhecidos.89

Isso não impediu que o princípio da legalidade fosse expressamente

admitido em cada um deles, mesmo naqueles produzidos em períodos ditatoriais,

como em 1937, com o Estado Novo, e em 1967, com o regime militar.90

86 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale. 3 ed. Milano: Cedam, 1992. p. 21. 87 Conforme ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 143. Para uma melhor incursão de matiz histórico-evolutivo acerca do Código Penal alemão, confira GIACOMOLLI, Nereu José; SILVA, Pablo Rodrigo da. Panorama do princípio da legalidade no direito penal alemão vigente. São Paulo: Revista Direito GV, n. 12, jul.-dez. 2010. p. 565-582. 88 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p.332. 89 Nesse sentido, LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994. p. 175. Sobre a bibliografia básica a respeito das Constituições brasileiras, BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 57-62. 90 Cf. OLIVEIRA, Luciano. A lei é o que o Senhor Major quiser! Algumas achegas sociológicas ao princípio da legalidade no Brasil. In.: BRANDÃO, Cláudio et. al. (Coord.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 121-132.

- 42 -

Logo, não existe dúvida acerca da origem constitucional do princípio da

legalidade penal no ordenamento jurídico pátrio, o que torna ainda mais relevantes

as discussões a respeito de sua efetiva aplicabilidade.

1.4.1.1 Constituição imperial de 1824

No dia 4 de março de 1823, já proclamada a independência do Brasil, o

Imperador D. Pedro I instalou solenemente a Assembleia Nacional Legislativa

Constituinte, que, contudo, viria a ser dissolvida em 12 de novembro daquele mesmo

ano, abrindo caminho para que a Constituição viesse a ser outorgada91 por meio da

Carta de Lei datada de 25 de março de 1824.

A única Constituição do período imperial foi fortemente influenciada pelo

texto constitucional francês de 1814 e pelo português de 1822, motivo por que entre

seus preceitos de garantia já se encontrava expressamente previsto o princípio da

legalidade.

Com efeito, enquanto o item III do art. 179 fixava o princípio da

irretroatividade da lei, o item XI estabelecia que “ninguém será sentenciado senão

pela autoridade competente, por virtude de lei anterior, e na forma por ela prescrita”.

Como se percebe, os dispositivos contemplavam não apenas a reserva

legal, mas também a anterioridade e irretroatividade da lei penal, revelando o

espírito das ideias iluministas que provinham do estrangeiro e que aqui se

encontravam presentes, “inclusive no espírito do Imperador”.92

A Carta de 1824 determinou também urgência na elaboração do Código

Penal, que só foi promulgado em 1830 sob a denominação Código Criminal do

Império.

91 Os constitucionalistas distinguem três modalidades básicas de Constituição pelo aspecto histórico: a outorgada, a pactuada e a popular. Segundo Paulo Bonavides, do ponto de vista jurídico, “a Constituição outorgada é ato unilateral de uma vontade política soberana – a do outorgante, mas do ponto de vista político, representa quase sempre uma inelutável concessão feita por aquela vontade ao poder popular ascendente, sendo pois o produto de duas forças antagônicas que se medem em termos políticos de conservação ou tomada do poder: o princípio monárquico do absolutismo e o princípio democrático do consentimento” (BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 89). 92 Cf. PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2 ed. São Paulo: RT, 2001. p. 66.

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1.4.1.2 Constituição de 1891

A primeira Constituição republicana, de 1891, também dedicou expressa

previsão ao princípio da legalidade, mantendo praticamente a mesma redação

anterior: “ninguém será sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude

de lei anterior e na forma por ela regulada” (art. 72, §15).

O texto constitucional foi consideravelmente modificado pela reforma de

1926, que, contudo, também não promoveu alterações acerca da legalidade.

1.4.1.3 Constituição de 1934

A Constituição de 1934, que pôs fim à ditadura do Governo Provisório,

estabelecida após a Revolução de 1930, teve duração efêmera, “sendo um breve

parêntese constitucional entre dois períodos ditatoriais instaurados na década de

1930”.93

Em seus três anos e poucos meses de vigência, contemplou o princípio

da legalidade em seu art. 113, inciso 26, que dispunha: “ninguém será processado

nem sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior ao

fato, e na forma por ela prescrita”.

A disposição subsequente abrigava a proibição da retroatividade gravosa

nos seguintes termos: “a lei penal só retroagirá quando beneficiar o réu”.

1.4.1.4 Constituição de 1937

A Constituição de 1937, “repetindo a do Império, não foi votada nem

aprovada, mas outorgada”.94

Além disso, seu texto tem sido bastante criticado em razão dos preceitos

autoritários e de “instruções estranhas à índole e à tradição jurídica do País”.95

93 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 59. 94 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994. p. 179.

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As medidas políticas adotadas em seguida à Constituição para consolidar

a ditadura não pouparam o Direito Penal positivo, que recebeu significativo aporte de

novas leis incriminadoras, inclusive por meio de decreto-lei.

A propósito, Carlos Henrique Haddad lembra que os textos emanados dos

decretos-lei, “normas irmãs” das medidas provisórias, foram admitidos em nosso

ordenamento sem as controvérsias que hoje giram em torno destas, como faz prova

boa parte do arcabouço legislativo penal, como a Lei das Contravenções Penais,

que remanesceu do Decreto-Lei nº. 3.688/41, a Parte Especial do Código Penal,

oriunda do Decreto-Lei nº. 2.848/40 e o Código de Processo Penal, cuja vigência

brotou do Decreto-Lei nº. 3.689/41.96

Por seu turno, o princípio da legalidade, embora expressamente previsto

no art. 122, inciso 13, foi fortemente mitigado pelo artigo subsequente, “que servia

de obstáculo à pretensão do reconhecimento de qualquer direito ou garantia

individual”.97

Com efeito, a parte final do art. 123 da Constituição de 1927 determinava

que o uso dos direitos e das garantias nela estabelecidos tinha por limite “o bem

jurídico, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem

como as exigências da segurança da Nação e do Estado”.

Conforme percebido por Maurício Antonio Ribeiro Lopes, “a própria

legalidade penal poderia ter limitada sua imposição como garantia ante um daqueles

‘valores’ elencados pelo texto excetuante da Constituição”.98

1.4.1.5 Constituição de 1946

95 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 60. 96 O autor acrescenta que as mesmas objeções constitucionais à edição de normas penais incriminadoras por meio das medidas provisórias se aplicam aos decretos-lei, pelo que todo o arcabouço legislativo acima citado deveria ser considerado incompatível com a Constituição de 1988. Porém, prevaleceu o entendimento segundo o qual, “sob o aspecto formal, desde que a norma tenha sido elaborada e aprovada em consonância com as disposições constitucionais da época, possui validade, salvo disposição em contrário, e é recepcionada pelas novas constituições” (HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Normas penais brasileiras. In.: Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 41, abr./jun. 2008, p. 21). 97 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994. p. 180. 98 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994. p. 180.

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Após a superação do Estado Novo, iniciou-se outro ciclo constitucional,

com a promulgação da Constituição de 1946, de feição muito mais democrática e

voltada para as realizações de um verdadeiro Estado de Direito, tanto que foi

considerada uma das mais avançadas de sua época no plano dos direitos e das

garantias individuais.99

O princípio da legalidade foi recepcionado nos §§ 27 e 29 do art. 141

daquele Texto Constitucional. Enquanto o primeiro estabelecia que “ninguém será

processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei

anterior”, o segundo estatuía que “a lei penal regulará a individualização da pena e

só retroagirá quando beneficiar o réu”.

1.4.1.6 Constituição de 1967 e Emenda Constitucional n.º 1/1969

O golpe militar que se seguiu à crise política marcada pela renúncia

inesperada de um Presidente da República eleito democraticamente com ampla

maioria de votos determinou o rompimento com o Estado de Direito e a consequente

promulgação da Constituição de 1967, substancialmente alterada pela Emenda

Constitucional n.º 1/1969, de cunho nitidamente autoritário.

Curiosamente, observa Maurício Antonio Ribeiro Lopes que um dos

poucos avanços institucionais identificados no Texto Constitucional refere-se à

legalidade penal. Diz o autor que “pela primeira vez numa Constituição brasileira

figurava de forma inequívoca e clara o princípio da reserva legal, embora de forma

impura, posto que agregado à garantia do contraditório”.100

Rezava o art. 150, §16 da Constituição de 1967, reproduzido no art. 153,

§16 da Emenda Constitucional nº. 1/1969, que “a instrução criminal será

contraditória, observada a lei anterior quanto ao crime e à pena, salvo quando

agravar a situação do réu”.

99 Cf. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994. p. 180. 100 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: RT, 1994. p. 181.

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1.4.1.7 A atual Constituição de 1988

Superado o longo período de terror institucional e extraordinário arbítrio, o

país foi agitado pelos ideais da abertura política e redemocratização, criando um

ambiente propício para a consagração dos direitos e das garantias individuais, entre

eles, como não poderia deixar de ser, o princípio da legalidade.

O art. 5º, XXXIX, do Texto Constitucional exige que a conduta criminosa e

sua respectiva pena sejam previamente definidas em lei. Sua definição é por todos

conhecida: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia

cominação legal”.

Ocorre que o mesmo Texto Constitucional conferiu ao Poder Executivo a

faculdade de adotar medidas provisórias com força de lei para regular situações

excepcionais.

Tal recurso, que sucedeu o antigo decreto-lei, encontra previsão no art.

62 da Constituição Federal, que assim dispõe: “Em caso de relevância e urgência, o

Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei,

devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional”.

Através do confronto entre os referidos textos constitucionais percebe-se,

de plano, a necessidade de se indagar sobre o alcance do vocábulo “lei” – denotador

de uma “lei formal” aprovada pelo Poder Legislativo, de acordo com as etapas

próprias da criação das leis ordinárias, ou autorizador de outras práticas legislativas,

como as medidas provisórias, de iniciativa do Poder Executivo.

Em contundente crítica, Francisco de Assis Toledo enfatizou que o

constituinte “não estabeleceu expressamente limites objetivos para a edição das

medidas provisórias, exigindo apenas ‘relevância e urgência’, requisitos genéricos e

pouco confiáveis”,101 o que gerou incômoda controvérsia sobre a possibilidade de

sua utilização para a criação de tipos penais ou para a cominação de penas mais

graves.

Nesse contexto, então, o Direito Penal brasileiro conheceu medidas

provisórias incriminatórias, como as de número 153 e 156, ambas de 15 de março

de 1990, editadas durante o Governo Collor. A primeira definia os crimes de abuso

101 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 24.

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do poder econômico; a segunda instituía crimes contra a Fazenda Pública e

cominava sanções a contribuintes, servidores fazendários e terceiros que os

praticassem. Felizmente, referidas medidas vigoraram por curto espaço de tempo,

sendo revogadas pela Lei n.º 8.035, de 27 de abril de 1990.

Outro exemplo interessante é o colacionado por Carlos Henrique Haddad,

referente à Medida Provisória n.º 111/89, que dispunha sobre a prisão temporária e

alterava a lei de abuso de autoridade (Lei n.º 4.898/65), criando tipo penal atinente

ao prolongamento indevido da execução da prisão temporária. Segundo o autor, o

Supremo Tribunal Federal, acionado para controlar a constitucionalidade da medida

provisória, indeferiu medida liminar para suspendê-la (ADIn n.º 162-1-DF).

Posteriormente, a Lei n.º 7.960/89 converteu a medida provisória em lei, o que

prejudicou o julgamento do mérito pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, pode-se

afirmar, com o autor, que na legislação brasileira existe “tipo penal criado com base

em medida provisória”.102

Somente com o advento da Emenda Constitucional n.º 32, de 11 de

setembro de 2001, a polêmica chegou ao fim, com a expressa proibição de medidas

provisórias em matéria penal (art. 62, §1º, I, “b”).103

A solução foi acertada, pois, na verdade, a criação de normas penais

incriminadoras, agravadoras ou que, de algum modo, disciplinem ou limitem a

liberdade do cidadão é de competência exclusiva do Poder Legislativo, dependendo

sua validade da observância rigorosa de procedimento legislativo previsto na

Constituição.104

Muito embora as medidas provisórias tenham força de lei por expressa

previsão constitucional (art. 62), o Presidente da República não tem poderes para

102 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Normas penais brasileiras. In.: Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 41, abr./jun. 2008, p. 20. 103 A dúvida, todavia, persiste em relação à possibilidade de se utilizarem as medidas provisórias para dispor sobre normas penais não incriminadoras ou que, de algum modo, beneficiem o réu. A propósito, antes da alteração introduzida pela EC n.º 32, o Supremo Tribunal Federal já havia decidido a favor da validade das medidas provisórias em benefício do réu, nada impedindo que tal entendimento seja mantido. A favor da aplicação dos efeitos benéficos das medidas provisórias em matéria penal, cf., por todos, GIACOMOLLI, Nereu José. Função garantista do princípio da legalidade. In.: Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Ano 1, Porto Alegre, maio/ago. 2000, p. 54. 104 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da legalidade (ou da reserva legal) e os limites das “medidas provisórias” em direito penal. In.: Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: RT, 1999. p. 216.

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criar delitos e impor sanções penais ou qualquer outra restrição aos direitos

fundamentais.105

Um dos principais argumentos utilizados para resolver o conflito entre o

princípio da legalidade e as medidas provisórias refere-se exatamente à reserva de

lei.106

Essa interpretação, acrescenta Luiz Flávio Gomes, “reflete o espírito do

princípio da legalidade, ajusta-se às postulações do pensamento ilustrado, de onde

ele derivou, e se afina, sobretudo, com a natureza democrática da nossa

Constituição”.107

Francisco de Assis Toledo também defendeu a exigência de lei formal em

sentido estrito por duas ordens de consideração: primeiramente, porque a medida

provisória se classifica como espécie do gênero “lei delegada”, de eficácia

condicionada à expressa aprovação do Congresso Nacional; em segundo lugar,

porque a Constituição veda delegação em matéria de legislação sobre direitos

individuais (art. 68, §1º).108

Por outro lado, por mais relevante que seja o bem jurídico que se deseja

proteger, dificilmente a criação de normas penais incriminadoras apresentaria o

requisito de urgência exigido para a edição das medidas provisórias, até porque elas

se projetam exclusivamente para o futuro em face da proibição da retroatividade.

Além do mais, conforme anotado por Carlos Henrique Haddad, “para

situações urgentes, há previsão de normas excepcionais, que se caracterizam pela

ultra-atividade, mesmo após a revogação”.109

Por fim, Alberto Silva Franco lembra ainda que a medida provisória não

convertida em lei perde eficácia desde sua edição e, por isso, não poderia mesmo

harmonizar-se com os princípios que regem o Direito Penal.110

105 Sobre o tema, v. item 1.2.2.2, supra. 106 Nesse sentido, SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989. p. 363. 107 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da legalidade (ou da reserva legal) e os limites das “medidas provisórias” em direito penal. In.: Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias em direito penal. São Paulo: RT, 1999. p. 238 108 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 24. 109 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Normas penais brasileiras. In.: Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 41, abr./jun. 2008, p. 20. 110 FRANCO, Alberto Silva. A medida provisória e o princípio da legalidade. In.: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, n. 648, out. 1989. p. 366-368. Com efeito, a simples exigência de ratificação pelo Congresso Nacional retira o caráter de lex certa da medida provisória.

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Assim renovado, o princípio da legalidade reafirma sua primazia na

tradição constitucional brasileira, tendo atravessado incólume períodos de

retrocessos e avanços na construção de um verdadeiro Estado Democrático e Social

de Direito.

Sua presença explícita em todos os diplomas constitucionais brasileiros o

qualifica como uma “constante constitucional de núcleo rígido”, indispensável à

conservação dos valores democráticos do Estado, mais se aproximando de uma

garantia constitucional do que de um direito individual, “já que não tutela,

especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a prerrogativa de

repelir as injunções que lhe sejam impostas por outra via que não seja a lei”.111

1.4.2 O princípio da legalidade na legislação infraconstitucional brasileira

O Direito Penal brasileiro tem por tradição a forma escrita, inclusive

durante o período colonial, quando vigoravam entre nós as Ordenações

portuguesas.

No pós-descobrimento, as regras eram ditadas pelas Ordenações

Afonsinas, que foram substituídas em 1521 pelas Ordenações Manuelinas e, em

seguida, pelas Compilações de Duarte Nunes de Leão, já no ano de 1569.

Em 1603, foi promulgada a codificação denominada Ordenações Filipinas,

texto normativo marcado por ampla e generalizada criminalização, com predomínio

da pena de morte e outras severas sanções corporais.

Em nenhuma das Ordenações aplicava-se o princípio da legalidade,

competindo ao arbítrio do julgador a escolha da sanção aplicável. Essa rigorosa

legislação, acentua Cezar Roberto Bitencourt, “regeu a vida brasileira por mais de

dois séculos”, sendo ratificada em 1643 por D. João IV e em 1823 por D. Pedro I.112

Vale perceber, com Juarez Tavares, o problema prático de aplicação da

lei penal naquele tempo, devido à quase inexistência de exemplares das

111 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito penal, estado e constituição: princípios constitucionais politicamente conformadores do direito penal. São Paulo: IBCCRIM, 1997. p. 57. 112 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v.1. p. 88.

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Ordenações e aos amplos privilégios concedidos aos titulares das Capitanias, que

tinham um ilimitado poder de julgar segundo seus interesses.113

Todavia, desde o Império, o princípio da legalidade tem sido

historicamente consagrado como garantia individual nos textos constitucionais e

reproduzido na legislação penal de cada período, inclusive no primeiro Código

Penal, promulgado em dezembro de 1830.114

1.4.2.1 Código Criminal do Império (1830)

Sob a ótica das ideias iluministas, já recepcionadas pela Constituição

então vigente, o Código Criminal do Império foi sancionado no dia 16 de dezembro

de 1830, constituindo-se no primeiro código autônomo da América Latina.115

O projeto vitorioso de Bernardo Pereira de Vasconcelos, que conseguiu

adaptar os anseios liberais do Iluminismo à sociedade escravocrata da época,

obteve grande repercussão e prestígio, chegando, inclusive, a influenciar o Código

Penal espanhol de 1848, que, por sua vez, “se tornou fonte de inspiração em quase

toda a legislação do restante da América Latina”.116

O Código Criminal do Império já destinava ao princípio da legalidade o

emblemático artigo primeiro, assim redigido: “não haverá crime ou delicto (palavras

synonimas neste Codigo) sem uma lei anterior que o qualifique”.

1.4.2.2 Código Penal de 1890 e Consolidação das Leis Penais de 1932

113 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 753-769. 114 Cf. LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoría finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: SAFE, 1987. p. 123. 115 Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v.1. p. 88. 116 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 191. Observam os autores, contudo, que o sentido liberal do Código foi neutralizado em boa parte através de leis processuais como a de 1835, que cuidava do julgamento dos escravos que tivessem atentado contra a vida e segurança de seu senhor ou de suas famílias, bem como a de 1841, que criou o inquérito policial.

- 51 -

O Código Penal de 1890 também consagrou o princípio da legalidade em

seu primeiro artigo, o que viria a se tornar uma constante até os dias atuais.

Além disso, o enunciado legal do princípio ficou enriquecido com a

referência à proibição da analogia, in verbis: “ninguém poderá ser punido por facto

que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não

estejam previamente estabelecidas. A interpretação extensiva, por analogia ou

paridade, não é admissível para qualificar crime ou aplicar-lhes penas”.

Apesar do inegável avanço em relação à codificação imperial, o Código

republicano foi bastante criticado por não corresponder à ideologia positivista que

chegava ao Brasil através da obra de Ferri e de toda a escola criminológica

italiana.117

O número excessivo de leis extravagantes editadas no período de

vigência desse Código levou o Desembargador Vicente Piragibe a reunir os textos

legais em uma única redação a fim de facilitar sua atividade judicante.

O expediente se mostrou tão eficiente que se transformou em texto oficial

através do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932, tornando-se conhecido

como a “Consolidação das Leis Penais de 1932”, que vigorou até o dia 31 de

dezembro de 1941.

1.4.2.3 Código Penal de 1940 e reforma de 1984

Apesar de inúmeras tentativas de substituição do Código Penal de 1890,

com destaque para os projetos de João Vieira de Araújo (1893), Galdino Siqueira

(1913), Sá Pereira (1927, 1928 e 1935) e Alcântara Machado (1937), somente no

transcorrer do Estado Novo esse último foi apreciado por uma Comissão Revisora e,

após as correções consideradas oportunas, acabou sendo sancionado pelo Decreto-

117 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 192. Os autores fazem um verdadeiro desagravo ao legislador da época ao sinalizarem a origem ideológica das críticas, visto que, obviamente, “as tendências elitistas e racistas não poderiam ver no Código de 1890 algo diferente do que a materialização do liberalismo que satanizavam”.

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Lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940, passando a vigorar desde 1º de janeiro de

1942 até os dias atuais, embora significativamente reformado.118

Mais uma vez, o princípio da legalidade figurou no art. 1º com a seguinte

redação: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia

cominação legal”.

A disposição topográfica (art. 1º) e a definição do princípio da legalidade

permaneceram inalteradas com a entrada em vigor da Lei n.º 7.209/1984, que

instituiu uma nova Parte Geral, com clara influência finalista.119

Mais do que isso: a disposição legal foi praticamente reproduzida no art.

5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988, figurando no Título dos direitos e

garantias fundamentais.

A positivação constitucional e infraconstitucional do princípio da reserva

legal é de extremo significado para um Estado Democrático e Social de Direito, pois

constitui, quando menos, um inegável fator inibitório ao arbítrio.120

Todavia, apesar de sua consolidada presença no plano formal, deve-se

perguntar, assim como fez Jorge de Figueiredo Dias, se seus fundamentos,

conteúdo e efeitos se encontram definitivamente estabelecidos e esgotados ou se,

diversamente, o princípio da legalidade continua a constituir ponto de partida de

novos desenvolvimentos e enriquecimentos no caminho progressivo da

humanização da História.121

O próprio professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

é quem responde:

O princípio da legalidade, como conquista irrenunciável de civilização e de humanismo, deve preparar-se para subsistir; para subsistir, porém, não ao nível de uma espécie de direito natural clássico, rígido e imutável, mas de um direito natural em devir, que se vai enriquecendo e transformando com as aportações que servem uma mais perfeita definição, uma maior capacidade para exercer a sua precípua função no seio de uma sociedade cada vez mais complexa,

118 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v.1. p. 89. 119 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v.1. p. 89. 120 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Direito penal, estado e constituição: princípios constitucionais politicamente conformadores do direito penal. São Paulo: IBCCRIM, 1997. p. 57. 121 DIAS, Jorge de Figueiredo. Legalidade e tipo em direito penal. In.: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2008. p. 214.

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mas que se quer simultaneamente cada vez mais virada para o Homem e para a humanização do Mundo e da História.122

1.4.2.4 Lei de Execução Penal

No exercício do direito de punir, o Estado também está condicionado pelo

princípio da legalidade, que é exaltado na própria exposição de motivos da Lei de

Execução Penal (Lei n.º 7.210/1984) como “o corpo e o espírito do Projeto, de forma

a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a

humanidade do Direito Penal” (item 19).

Com efeito, reza o art. 45 da Lei n.º 7.210/1984: “Não haverá falta nem

sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar”.

Cláudio Brandão também destaca o princípio da legalidade como

fundamento da Teoria da Pena e principal instrumento de limitação do jus puniendi

estatal:

A pena se fundamenta no Princípio da Legalidade, o que é uma exigência do Estado Social e Democrático de Direito. Deste modo, ela está limitada pelo respeito à dignidade humana, não podendo subsistir no ordenamento penal penas cruéis ou corporais, porque seriam contrárias à teleologia do Princípio da Legalidade. Por sua própria natureza a pena é traduzida em um mal imposto pelo Estado a alguém, mas este mal não é ilimitado, porque o princípio nulla poena sine lege significa um comando limitador dirigido ao Estado, vedando a ele a inflição de penas que não respeitem a dignidade humana.123

Sendo assim, no curso da execução penal, somente poderão ser

aplicadas ao sentenciado as sanções administrativas que estiverem expressamente

definidas na Lei de Execução Penal ou na legislação estadual correlata.

122 DIAS, Jorge de Figueiredo. Legalidade e tipo em direito penal. Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 2008. p. 215. 123 BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 168.

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2 Principais garantias decorrentes do princípio da legalidade

Conforme destacado até agora, a partir do Século XX os países do

mundo ocidental passaram a entender o Estado Democrático de Direito como a

forma de governo a ser alcançada, “apontando para um Direito de conteúdo não

apenas ordenador (Estado Liberal) ou promovedor (Estado Social), mas, sim,

potencialmente transformador”.124

Nesse sentido, o “governo das leis”, em oposição ao “governo dos

homens”, encontra sua pedra angular no princípio da legalidade, principalmente em

matéria penal.125

Além de seu significado essencial, entendido como a necessidade de uma

reserva substancial e absoluta da lei, o princípio da legalidade estabelece múltiplas

exigências materiais que se concretizam em quatro proibições: proibição de leis

penais indeterminadas (lex certa); proibição de edição de leis retroativas que

fundamentem ou agravem a punibilidade (lex praevia); proibição do agravamento da

punibilidade pelos costumes (lex scripta) e proibição da analogia in malam partem

(lex stricta).126

Tais exigências se dirigem tanto ao legislador como ao juiz penal. O

primeiro deve formular as descrições típicas do modo mais claro e objetivo possível

(nullum crimen sine lege certa), bem como estabelecer a irretroatividade da lei penal

gravosa (nullum crimen sine lege praevia). Do segundo exige-se que suas decisões

sejam fundamentadas somente na lei escrita, e não no direito consuetudinário

(nullum crimen sine lege scripta), e que as interpretações não ampliem a lei escrita

em prejuízo do acusado, proibindo-se a analogia (nullum crimen sine lege stricta).127

124 STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. 3 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 4. 125 GANDULFO, Eduardo. Qué queda del Principio de Nullum Crimen Nulla Poena sine Lege? Un enfoque desde la argumentación jurídica. Política Criminal, v. 4, n. 8, 2009, p. 295 (292-382). Disponível em: <http://www.politicacriminal.cl/Vol_04/n_08/Vol4N8A2.pdf>. Acesso em: 11.02.2012. 126 Conforme TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 22. 127 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 335.

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2.1 Proibição de leis indeterminadas ( nullum crimen, nulla poena sine lege certa)

A primeira garantia proveniente do princípio da legalidade corresponde ao

princípio da taxatividade, que desautoriza a formulação vaga e imprecisa da conduta

proibida e sua respectiva sanção.

Com efeito, de nada adiantaria a exigência de prévia determinação legal

do crime e da pena se o legislador pudesse empregar fórmulas gerais e

indeterminadas na redação do tipo legal incriminador, o que resultaria, em última

análise, no regresso ao arbítrio judicial.128

Luiz Flávio Gomes destaca que a “consequência mais importante

derivada da constitucionalização do princípio da legalidade penal assenta-se na sua

força vinculante, inclusive e especialmente em relação a todos os poderes públicos”,

fazendo com que nem mesmo o legislador possa delegar o “monopólio de definir

crimes e estabelecer sanções”.129

No mesmo sentido, Nilo Batista considera correto extrair-se do texto

constitucional brasileiro (art. 5º, XXXIX) “um direito subjetivo público de conhecer o

crime, correlacionando-o a um dever do Congresso Nacional de legislar em matéria

criminal sem contornos semânticos difusos”.130

Compartilham dessa mesma ideia Fiandaca e Musco, assinalando que o

desrespeito ao princípio da taxatividade coloca em risco a própria eficácia do

sistema penal, uma vez que a precisão do tipo incriminador representa uma

condição indispensável para que a norma possa orientar de maneira eficaz o

comportamento do cidadão. E arrematam: “uma norma penal persegue o fim de ser

128 Exemplo eloquente de ofensa ao princípio da taxatividade no ordenamento positivo brasileiro é a definição das hipóteses que autorizam o regime disciplinar diferenciado no curso da execução penal, quando são utilizadas expressões como “subversão da ordem ou disciplina internas”, “alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade” e “fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas” (art. 52 e §§ da Lei n.º 7.210/1984). Andrei Schmidt cita vários outros exemplos de leis ofensivas ao princípio da taxatividade para concluir que o moderno Direito Penal brasileiro está estabelecido num modelo penal de “legalidade atenuada” (SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 248). 129 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da legalidade (ou da reserva legal) e os limites das “medidas provisórias” em direito penal. In.: Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: RT, 1999. p. 215. O autor lembra que, na formulação do tipo penal, eventuais e muitas vezes inevitáveis remissões a atos do Poder Executivo ou a valorações complementares do juiz não podem se afastar dos limites do estritamente indispensável. 130 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 80.

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obedecida, mas obedecida não pode ser se o destinatário não tem a possibilidade

de conhecer com suficiente clareza seu conteúdo”.131

Hassemer, por sua vez, denomina o princípio da taxatividade como

“mandato de certeza”, considerando-o corolário de um sistema jurídico organizado

sobre leis escritas.132

Para ele, a lei formulada de modo preciso é “a esperança natural de

qualquer legislador de que com o seu pronunciamento conseguirá impor

determinados efeitos dentro de uma comunidade jurídica”, constituindo-se, portanto,

num “interesse específico do legislador” que nem sequer lhe deveria ser

determinado.133

De um modo geral, portanto, são comumente atribuídas ao princípio da

taxatividade três funções principais: (1) impor a autolimitação do poder punitivo

estatal; (2) satisfazer a exigência contida no princípio da separação de poderes de

modo a impedir que o juiz, interpretando livremente a norma, invada a competência

do legislador e (3) permitir que todos os cidadãos alcancem a exata compreensão da

norma para que possam, desse modo, inibir eventual impulso criminoso através da

prevenção geral negativa, tal como concebido por Feuerbach em sua já citada teoria

da coação psicológica.

Todavia, entre as citadas funções do princípio da taxatividade e a

realidade do ordenamento penal vigente existe um verdadeiro abismo a separá-los.

Isto se deve não apenas à natural dificuldade de se estabelecer

objetivamente o nível de suficiente determinação do tipo incriminador, mas também

de um excessivo comedimento dos tribunais superiores, os quais, apesar de

131 FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009, p. 77. 132 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 335. 133 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 335. O autor, todavia, admite situações nas quais o legislador propositalmente não deseja a lex certa, reforçada pela “tendência à experimentação”, própria do “moderno legislador”, que se preocupa mais com os “efeitos empíricos de sua atuação” do que com os “valores irrenunciáveis da vida comunitária”. Essa conversão para a compreensão e o controle das consequências não favorece a lex certa. Em outras situações, o legislador pode preferir a lei indeterminada quando seu conteúdo não corresponder à sua própria “vontade”, delegando o desenvolvimento do texto normativo à jurisprudência. Por fim, existem situações em que se dever persistir no aperfeiçoamento devido à natural dificuldade para se alcançar a precisão requerida pelo tipo penal (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 335-337).

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reconhecerem o princípio, raramente realizam um efetivo controle sobre a

modalidade de tipificação legislativa do ilícito.134

Desse modo, a ameaça mais séria ao mandato de certeza se relaciona

com a capacidade do legislador de tornar as leis precisas.135

Nesse particular, deve-se admitir com humildade que o princípio da

taxatividade jamais se realizará plenamente, posto que a exata compreensão da

norma por todos os indivíduos exigiria um casuísmo exacerbado das figuras delitivas

e a utilização exclusiva de elementos descritivos nas respectivas redações típicas.

Mesmo assim, por maior que fosse o esforço do legislador e por mais que

se adicionassem artigos na parte especial do Código Penal, “não se alcançaria a rica

variedade de fatos que a vida real oferece”.136

Diante dessa realidade, na qual tampouco se pode renunciar à utilização

de elementos normativos, que implicam um juízo de valor por parte do intérprete, a

construção dos tipos penais deve ser ao menos “suficientemente concreta para que

restem satisfeitas as exigências de segurança jurídica”.137

Ao compartilhar esse conceito, Hassemer assinala que se deve buscar,

na construção da norma penal, “um equilíbrio sutil entre precisão e flexibilidade”,

permitindo que ela se adapte a “casos futuros” e, ao mesmo tempo, torne-se

impenetrável a “casos não imaginados”.138

Adverte, todavia, no sentido de que, não raras vezes, o legislador

depende da “lealdade da jurisprudência” para garantir a certeza dos tipos, uma vez

que, com a decisão pela “flexibilização”, o legislador amplia as margens de decisão

e desenvolvimento das normas e corre o risco de ver a jurisprudência interpretá-las

de maneira completamente diferente da que imaginou, ao passo que, com a decisão

pela “precisão”, corre o risco de originar decisões que certamente não desejava,

como, por exemplo, considerar qualificado o furto de uma máquina fotográfica

134 Nesse sentido, FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009, p. 78. 135 HASSEMER, Winfried. HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 337. 136 MIR, Jose Cerezo. Curso de derecho penal espanol: parte general, v. I, Madrid: Editorial Tecnos, 1990, p. 168. 137 MIR, Jose Cerezo. Curso de derecho penal espanol: parte general, v. I, Madrid: Editorial Tecnos, 1990, p. 168. 138 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 338.

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subtraída do interior de um automóvel e furto simples a subtração do próprio

automóvel junto com a máquina fotográfica.139

Vale acrescentar, por fim, que o princípio da taxatividade também se

projeta sobre o direito processual penal, bastando observar, com Fiandaca e Musco,

que sua inobservância afeta não apenas o princípio da obrigatoriedade da ação

penal, tornando defeituoso o critério de verificação de tal obrigação, mas também o

direito constitucional à ampla defesa, dada a dificuldade de se contrapor a uma

imputação precisa na ausência de uma pontual descrição legal do fato proibido.140

2.1.1 Taxatividade e convencionalismo penal

Luigi Ferrajoli identifica a taxatividade como um dos instrumentos centrais

do denominado “convencionalismo penal”, considerado por ele o primeiro elemento

da epistemologia garantista devido à exigência de determinação abstrata e precisa

do fato punível, tal como proposto pelo “princípio da estrita legalidade”.141

Duas condições são exigidas para tanto: “o caráter formal ou legal do

critério de definição do desvio” e “o caráter empírico ou fático das hipóteses de

desvio legalmente definidas”.142

A primeira condição refere-se à delimitação do fato-crime exclusivamente

pela lei penal, segundo a conhecida fórmula latina nulla poena et nullum crimen sine

lege.

A segunda condição, por sua vez, estabelece que a construção típica do

delito deve evitar alusões a “figuras subjetivas de status ou de autor e se ater a

139 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 338. O autor se refere à técnica do exemplo-padrão, que favorece a interpretação analógica, como uma alternativa eficaz para assegurar uma relação ideal do legislador com a jurisprudência em benefício do mandato de certeza, pois evita a precisão excessiva do tipo ao mesmo tempo em que obriga o juiz a argumentar de modo diferenciado, identificando no caso concreto o caráter exemplar descrito na norma (op. cit., p. 340-341). 140 FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009, p. 78. 141 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 2000. p. 6. 142 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 2000. p. 6.

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figuras empíricas e objetivas de comportamento, segundo a outra máxima latina

nulla poena sine crimine et sine culpa”.143

O autor aduz que a primeira condição equivale ao princípio da reserva

legal em matéria penal e da consequente submissão do juiz à lei, ao passo que a

segunda comporta, além disso, o caráter absoluto da reserva da lei penal, pelo que

o juiz deve se submeter somente à lei dotada de referências empíricas e fáticas

precisas.

A reserva legal é denominada “princípio de mera legalidade”, dirigido aos

juízes para aplicação da lei tal como formulada. A reserva absoluta de lei,

denominada “princípio da estrita legalidade”, tem por escopo orientar o legislador na

construção taxativa e empiricamente precisa do tipo penal.

Nos dizeres de Luigi Ferrajoli, o princípio da legalidade estrita não admite

“normas constitutivas”, mas somente “normas regulamentares” do desvio punível:

O princípio da legalidade estrita é proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter constitutivo e não regulamentar daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os desocupados e os vagabundos, os propensos a delinqüir, os dedicados a tráficos ilícitos, os socialmente perigosos e outros semelhantes.144

O convencionalismo penal representa, portanto, a garantia de que

somente será considerada criminosa a conduta que estiver previamente definida

como tal em preceitos exatamente identificados e associados à culpabilidade do

agente.

2.1.2 Taxatividade e elementos normativos do tipo

143 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 2000. p. 6. 144 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. p. 31.

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Os elementos que compõem o tipo penal são divididos em dois grandes

grupos: subjetivos e objetivos.

Segundo Sheila Jorge Selim de Sales, a distinção entre tipo objetivo e tipo

subjetivo é realizada “muito mais por razões de ordem prática e didática que por

motivos de ordem rigorosamente científica, facilitando, indubitavelmente, o estudo e

a exposição da matéria”.145

Os elementos subjetivos do tipo, também conhecidos como parte

subjetiva ou tipo subjetivo, podem ser conceituados como o conjunto de ingredientes

subjetivos ou anímicos do tipo, sendo o dolo o critério normal de imputação subjetiva

do fato ao agente.146

Além do dolo, alguns tipos podem conter elementos subjetivos especiais,

“implícita ou explicitamente referidos à esfera psíquica do sujeito ativo”.147

Os elementos subjetivos previstos nessas figuras delitivas são

identificados através de um especial fim de agir, ou, como acentuado por José Cirilo

de Vargas, “quando o agente realiza o tipo com certa e determinada intenção”.148

Os elementos objetivos do tipo, identificados também pelas expressões

“tipo objetivo”, “vertente objetiva”, “parte objetiva”, referem-se a todas as

circunstâncias da ação típica estranhas ao psiquismo do agente.

Na precisa lição de Assis Toledo, “esses elementos são objetivos porque

são independentes do sujeito agente, possuem uma validade externa que não se

restringe ao agente, mas que pode ser aferida, constatada, por outras pessoas”.149

A doutrina costuma distingui-los em elementos descritivos e elementos

normativos, muito embora entre eles não exista uma separação nítida e absoluta,150

havendo ainda os que sustentam, com bastante propriedade, a hipótese formulada

145 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Dos tipos plurissubjetivos. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 26. 146 Daniela de Freitas Marques conceitua os elementos subjetivos do injusto como “elementos do campo psíquico-espiritual do agente, traduzidos em especiais tendências, intenções ou propósitos (fim especial de agir), que condicionam ou que fundamentam o juízo de ilicitude do comportamento” (MARQUES, Daniela de Freitas. Elementos subjetivos do injusto. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p 119). 147 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Dos tipos plurissubjetivos. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 31. 148 VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 38. 149 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 153. 150 Cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 230. Parte da doutrina não concorda com a divisão do tipo objetivo em elementos descritivos e elementos normativos, preferindo classificá-los como elementos descritivos ou objetivos (como sinônimos), normativos e subjetivos. Cf., por todos, VARGAS, José Cirilo de. Introdução ao estudo dos crimes em espécie. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 109-110.

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por Erik Wolf, para quem todas as características do tipo têm, em maior ou menor

intensidade, caráter normativo. Nesse sentido, afirma Baumann que tanto a

característica normativa contém certa descrição quanto a característica descritiva

exige certa valoração.151

No mesmo sentido, Jescheck e Weigend consideram que não existe um

contraste nítido entre ambos os grupos, pois “tanto os conceitos descritivos

necessitam de interpretação em casos duvidosos como os elementos normativos

possuem aspectos centrais empíricos”.152

Zaffaroni e Nilo Batista advertem, contudo, que a renúncia à classificação

da parte objetiva do tipo em elementos descritivos e normativos resultaria em

perigosa confusão, “já que seriam então todos valorativos”, abrindo-se um campo

ilimitado para o “arbítrio legislativo” e, ao mesmo tempo, “desacreditando a

interpretação redutora pela remissão incontrolada do intérprete a critérios

axiológicos voluntaristas”.153

Juarez Tavares define os elementos descritivos como aqueles conceitos

que, para sua configuração, “independem da atuação ou da influência da vontade do

agente ou de juízos de valor [...] cuja apreensão de significado é acessível a todos”,

ao passo que os elementos normativos exigem, para sua compreensão, “um juízo de

151 BAUMANN, Jürgen. Derecho penal: conceptos fundamentales y sistema. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1981. p. 79. Filiando-se a tal posição, José Cirilo de Vargas acentua que “no fundo, todos os elementos do tipo têm caráter normativo, pois todos são conceitos jurídicos e, portanto, conceitos valorativos teleologicamente edificados” (VARGAS, José Cirilo de. Instituições de direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, Tomo I. p. 111). Ainda nessa linha, a lição de Juarez Cirino dos Santos, para quem “os elementos constitutivos do tipo se entrecruzam, de modo que elementos objetivos podem ser descritivos (coisa), ou normativos (alheia); igualmente, elementos subjetivos também podem ser descritivos (o dolo) ou normativos (a intenção de apropriação, na expressão para si ou para outrem, do furto). Em alguns tipos legais as dimensões subjetiva e objetiva estão entrelaçadas: assim, o artifício, ardil ou fraude, no estelionato (art. 171), referem acontecimentos externos impensáveis sem a consciência interna do engano.” (SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 38-9). Andrei Schmidt eleva o tom da crítica ao afirmar que a divisão entre elementares objetivas e normativas “sujeita-se à percepção de que a única diferença entre elas é uma aproximação linguística consensual ou um afastamento linguístico destoante”, acrescentando que, nesse sentido, “somente os ‘dogmas’ é que são capazes de convencer alguém da possibilidade de aplicação de uma norma mediante uma singela percepção sensorial” (SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 262). 152 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal: parte general. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. 5 ed. Granada: Editorial Comares, 2002. p. 138-9. 153 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, Vol. II, I. p. 132. A mesma opinião é compartilhada por Juarez Tavares, que considera a diferenciação entre elementos descritivos e normativos dogmaticamente importante na medida em que for útil para delimitar o início da execução ou a consumação do delito, os elementos do dolo e seu alcance, bem como na identificação das espécies de erro de tipo e erro de proibição (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 232).

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valor com base em circunstâncias ou indicações situadas geralmente fora da norma

penal”.154

Aos elementos descritivos corresponde a técnica de legiferação de

normatização descritiva, ao passo que aos elementos normativos corresponde a

técnica de legiferação sintética.

Na normatização descritiva, asseveram Ariosvaldo de Campos Pires e

Sheila Jorge Selim de Sales, “descreve-se o fato incriminado utilizando vocábulos

que indicam dados da realidade empírica”,155 ao passo que, na normatização

sintética, são inseridos nos tipos penais elementos normativos, “que levam o

intérprete a procurar dados externos à figura delituosa para realizar sua

interpretação”.156

A utilização de elementos normativos no tipo tem sido motivo de

preocupação para a doutrina, pois pode acarretar prejuízo para a segurança jurídica,

já que eles dependem de valoração. Por isso, na construção do tipo penal, deve-se

preferir a técnica de legiferação de normatização descritiva, mais hábil a garantir a

taxatividade dos tipos penais exigida pelo princípio da legalidade.

154 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 231. Para Assis Toledo, elementos descritivos são aqueles que “exprimem juízos de realidade, isto é, fenômenos ou coisas apreensíveis diretamente pelo intérprete (exemplo: ‘matar’, ‘coisa’, ‘filho’, ‘mulher’ etc.). Os segundos – os normativos – são os constituídos por termos ou expressões que só adquirem sentido quando completados por um juízo de valor, preexistente em outras normas jurídicas ou ético-sociais (exemplo: ‘coisa alheia’, ‘propriedade’, ‘funcionário público’, ‘mulher honesta’ etc.) ou emitido pelo próprio intérprete (exemplo: ‘dignidade’, ’decoro’, ‘reputação’ etc.).” (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 154). As definições se sucedem: “elementos normativos do tipo são aqueles para cuja compreensão é insuficiente desenvolver uma atividade meramente cognitiva devendo-se realizar uma atividade valorativa. São circunstâncias que não se limitam a descrever o natural, mas implicam um juízo de valor.” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 1. p. 342); “aos elementos puramente descritivos se juntam, em certas construções típicas, elementos normativos, os quais não bastam simples emprego da capacidade cognoscitiva, mas cujo sentido tem de ser apreendido através de particular apreciação por parte do juiz.” (BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, Tomo II. p. 346); “elementos para cuja determinação se faz necessário recorrer a uma valoração ética ou jurídica.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 411); “são aqueles criados e traduzidos por uma norma ou que, para sua efetiva compreensão, necessitam de uma valoração por parte do intérprete.” (GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Niterói: Impetus, 2008, v. I. p. 171); “são aqueles que exigem um juízo de valor para o seu conhecimento. Dizem respeito a certo dado ou realidade de ordem jurídica ou não.” (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 8. ed. São Paulo: RT, 2008, v. I. p. 316). 155 PIRES, Ariosvaldo de; SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Crimes de trânsito. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 39. 156 PIRES, Ariosvaldo de; SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Crimes de trânsito. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 40. Esclarecem ainda os autores que tais elementos exigem uma autointegração para determinação de seu significado, que pode ser encontrada em outra norma jurídica (elementos normativos jurídicos) ou em elementos estranhos ao texto legal (elementos normativos extrajurídicos).

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Após observar que a legislação moderna tem utilizado frequentemente a

técnica de normatização sintética e fortalecido essa tendência para o futuro, Aníbal

Bruno adverte para a redução da precisão e firmeza do tipo à medida que se

aumenta o número de elementos normativos, “alargando-se a função do juiz na

apreciação da conformidade típica do fato concreto, com prejuízo da segurança que

o regime dos tipos visa a estabelecer”.157

No mesmo sentido, Jair Leonardo Lopes afirma que “por constituir-se em

fator de insegurança, a presença do elemento normativo no tipo penal deve sempre

que possível ser evitada”.158

Ninguém duvida de que o ideal seria realizar a construção típica

empregando-se exclusivamente elementos descritivos, possibilitando a exata

compreensão das condutas proibidas ou impostas pela lei através da simples leitura

de seu texto.

Nesse sentido, o homicídio é considerado por muitos como o “tipo ideal

de crime”, posto que descrito da maneira mais objetiva possível: “matar alguém”.

Note-se que suas elementares são nitidamente objetivas e podem ser facilmente

apreendidas sem necessidade de se recorrer a nenhum recurso valorativo.

Todavia, como é impossível prever as infinitas possibilidades de

motivação do agente e os variados modos de execução do delito, muitas vezes

torna-se indispensável o recurso a elementos subjetivos e normativos na construção

do tipo penal.

Tal assertiva não autoriza o uso indiscriminado dos elementos normativos

por parte do legislador penal; antes, impõe a ele severa restrição, permitindo seu

emprego somente nas hipóteses em que “a conduta proibida, em face do

157 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, Tomo II. p. 346. 158 LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal: parte geral. 3.ed. São Paulo: RT, 1999. p.118. Tal opinião é compartilhada por Baumann, para quem, em matéria de Direito Penal, a exigência de segurança jurídica tem que ocupar o primeiro lugar (BAUMANN, Jürgen. Derecho penal: conceptos fundamentales y sistema. Trad. Conrado A. Finzi. Buenos Aires: Depalma, 1981. p. 80). Entretanto, Zaffaroni e Pierangeli observam que há elementos normativos perfeitamente delimitados, como o conceito de “funcionário público”, previsto no art. 327 do Código Penal, enquanto existem elementos descritivos que requerem esforço considerável para sua determinação, como o conceito de “obstáculo à subtração da coisa” (art. 155, §4°, I, do CP) ou o de “lugar ermo” (art. 150, §1°, segunda hipótese, do CP). (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2001. p. 475).

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conhecimento que dela possui a comunidade, por força da experiência de vida ou da

constante e reiterada observação, se mostre como substancialmente clara”.159

Apesar do conselho dos doutrinadores, observa-se exatamente o oposto

na legislação penal brasileira, ou seja, “uma inflação de normatizações elaboradas

com a técnica sintética de legiferação”.160

Em abono aos elementos normativos, Luciano Santos Lopes observa

duas vantagens em sua utilização pelo legislador: evita o emprego de minúcias que

poderiam resultar num tipo demasiadamente casuístico, bem como possibilita a

atualização do conteúdo valorativo de suas regras.161

Apesar disso, reconhece na atividade interpretativa dos elementos

normativos “um risco para o princípio da legalidade”, na medida em que “o

subjetivismo do magistrado permite ilações valorativas que podem reduzir a eficácia

da função garantista do tipo penal”.

Desse modo, apoiando-se na teoria da máxima taxatividade interpretativa,

cunhada por Zaffaroni, conclui no sentido de que um preceito penal composto por

elementos normativos somente não ofenderá a exigência da taxatividade se se

puder deduzir de sua redação típica um claro fim de proteção do bem jurídico

(necessidade da intervenção punitiva) e, ainda, um limite seguro contra eventual e

arbitrária interpretação extensiva. Ao contrário, sempre que não puder ser reduzido a

um núcleo determinável, deve ser considerado ofensivo aos direitos fundamentais

constitucionais (garantias individuais) e, consequentemente, sem validade.162

2.1.3 Taxatividade e normas penais em branco

159 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 230. No mesmo sentido, Córdoba Roda estabelece dois requisitos para a utilização de elementos normativos no tipo penal: em primeiro lugar, que a necessidade de seu emprego decorra da natureza do bem jurídico protegido e, em segundo lugar, que a norma penal seja minimamente definida (CÓRDOBA RODA, Juan. Consideraciones sobre el principio de legalidad. In.: Homenaje al Profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo. Navarra: Aranzadi, 2005. p. 241. 160 LOPES, Luciano Santos. Os elementos normativos do tipo penal e o principio constitucional da legalidade. Porto Alegre: SAFE, 2006, p. 130. 161 LOPES, Luciano Santos. Os elementos normativos do tipo penal e o principio constitucional da legalidade. Porto Alegre: SAFE, 2006, p. 130-131. 162 LOPES, Luciano Santos. Os elementos normativos do tipo penal e o principio constitucional da legalidade. Porto Alegre: SAFE, 2006, p. 141.

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As normas penais em branco não descrevem totalmente o conteúdo da

proibição e, por isso, necessitam de distintos preceitos jurídicos, oriundos de leis,

decretos, portarias, resoluções e outros, para sua complementação.

O primeiro aspecto a ser discutido diz respeito à hierarquia das normas à

que as leis penais em branco remetem. Um setor da doutrina considera “leis penais

em branco” somente aquelas cujo complemento deriva de outras instâncias

legiferantes ou de outras autoridades.163 Diverso setor doutrinário estende o conceito

de norma penal em branco às remissões previstas em leis de outros ramos do

ordenamento jurídico (não penais).164

Nessa última hipótese, considerando-se a origem das normas

complementares, fala-se em “normas penais em branco em sentido estrito” e

“normas penais em branco em sentido lato”. As primeiras são complementadas por

meio de “fonte formal heteróloga”, ou seja, diversa daquela que a editou, ao passo

que as segundas são regulamentadas mediante “fonte formal homóloga”,

provenientes da mesma instância legislativa.165

As normas penais em branco em sentido lato (homogêneas) convivem

harmoniosamente com o princípio da legalidade, uma vez que seus complementos

são fornecidos pela mesma fonte legislativa.

Contudo, à igual conclusão não se pode chegar quanto às normas penais

em branco em sentido estrito (heterogêneas), cujos complementos são emanados

de outros poderes. Nesses casos, afirmam Zaffaroni e Pierangeli, corre-se o risco de

se caracterizar uma “delegação de atribuição legislativa em matéria penal – que

compete ao Congresso da Nação – e que estaria vedada pela Constituição

Federal”.166

163 ASÚA, Jimenez de. Tratado de derecho penal. 2 ed. Buenos Aires: Editorial Losada, 1950, Tomo II. p. 353. 164 Nesse sentido, MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 52; CHAVES, Alberto Alpízar. Función de taxatividad del tipo penal (mandato de certeza ‘lex certa’). In.: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, n. 24, 2006, p. 38. 165 ALFLEN DA SILVA, Pablo Rodrigo. Leis penais em branco e o direito penal do risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 67-68. 166 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 388. Boa parte da doutrina também considera as normas penais em branco em sentido estrito ofensivas ao princípio da legalidade e, portanto, sem validade, uma vez que seu conteúdo pode ser modificado sem as formalidades próprias do procedimento legislativo. Nesse sentido, por todos, GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Niterói: Impetus, 2008, v. I. p. 24.

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No ordenamento jurídico brasileiro, podem ser citadas como exemplos de

normas penais em branco as relacionadas aos delitos de tráfico ilícito de

entorpecentes (Lei n.º 11.343/06, art. 33) e de omissão de notificação de doença

(CP, art. 269). Em relação às primeiras, a lista de substâncias entorpecentes,

psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial é elaborada pela Agência

Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), ao passo que à Secretaria de Vigilância

em Saúde compete editar portaria definindo quais são as doenças de notificação

compulsória.

Essa técnica legislativa, todavia, somente se justifica em relação aos tipos

penais que protegem bens jurídicos sensíveis à evolução social e econômica.

Dado que a norma penal, por sua peculiar natureza, não deve ser

submetida a contínuas reformas, o legislador delega a outras esferas competentes

em razão da matéria a determinação do âmbito concreto de sua incidência,

remetendo a normativas extrapenais de complemento a tarefa de integrar e precisar

a conduta proibida.167

Comentando decisões proferidas pela Corta Constitucional argentina,

Guillermo Yacobucci assevera:

Em matérias que apresentam contornos ou aspectos peculiares, distintos e variáveis que impeçam ao legislador prever antecipadamente a concreta manifestação que tenderiam os fatos [...] uma vez estabelecida a política legislativa, não resulta desarrazoado o reconhecimento de amplas faculdades regulamentares ao órgão executivo (Sentença, 199/483; 246/345; 300/392, 304/1898 e 315/942). A justificação destes raciocínios é de ordem político-criminal e possui aceitação constitucional desde que o órgão que incrimine, em suma, seja o legislativo. Por isso, considera o Tribunal que, no caso de questões cambiárias, econômicas, financeiras etc., que são “por essência movediças e proteicas, torna-se indispensável dispor de um instrumento ágil que possa descrever com rapidez condutas publicamente danosas e, por sua vez, descriminalizar outras que tenham deixado de sê-lo” (Sentença, 300/392).168

Os problemas decorrentes da lei penal em branco heterogênea em sua

relação com o princípio da taxatividade concentram-se em dois pontos: a

167 MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 52. 168 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 106.

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indeterminação da conduta proibida e a esquiva da reserva de lei, que contrasta com

a exclusiva competência do legislador em matéria penal.

Nesse sentido, deve ser declarada a inconstitucionalidade de leis que, na

prática, delegam ao órgão Executivo o poder de legislar em matéria penal,

extrapolando o caráter simplesmente regulamentar do complemento.

Não obstante isso, doutrina e jurisprudência têm considerado válidos os

tipos penais em branco desde que traduzam o denominado “núcleo essencial da

conduta” com um elevado grau de taxatividade.169

Significa dizer que o legislador penal deve, ao menos, possibilitar o

fundamento da jurisprudência independentemente do complemento da norma penal

em branco, cujo conteúdo, proveniente de outra fonte, não deve abranger a parte

fundamental da construção típica.

Nos dizeres de Guillermo Yacobucci:

O princípio da legalidade veda nesse aspecto que a regulamentação determine o essencial da matéria proibida, isto é, que defina o ilícito em si mesmo. A norma regulamentar ou integradora só tem por função especificar os pormenores ou detalhes, assinalar condições, circunstâncias etc.170

Afinal, consoante percebido por Rosario Martinez, “quando à descrição

típica se agrega uma remissão a normas sublegislativas, não se está ampliando,

mas restringindo o âmbito do proibido”.171

Outro mecanismo de enfrentamento dos problemas de indeterminação

das normas penais em branco é o denominado “sistema de cláusulas de remissão

inversa”.172

O sistema consiste em referências que, inseridas nas correspondentes

normas complementares e submetidas à mesma exigência de publicidade da lei

169 Nesse sentido, cf. MATEU, Juan Carlos Carbonell. Derecho penal: concepto e princípios constitucionales. Madri: Tirant lo Blanch, 1999. p. 124. 170 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 107. 171 MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 53. 172 MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 54.

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penal,173 advertem sobre as consequências criminais de seu descumprimento,

reforçando a vinculação entre o tipo penal em branco e seu preceito

complementador.

Mesmo com tais cautelas, não se pode negar que os atos administrativos

que complementam as normas penais em branco passam a integrá-las, abrindo a

possibilidade de o Executivo legislar indiretamente em matéria penal, o que impõe a

exigência de requisitos rígidos para sua admissão.174

Por tal motivo, esse recurso técnico só deve ser utilizado em situações

estritamente imprescindíveis, ou seja, quando for impossível ao legislador alcançar

seu objetivo por outros meios. Tanto é assim que o Decreto n.º 4.176/2002, que

estabelece normas e diretrizes para a elaboração, a redação, a alteração, a

consolidação e o encaminhamento ao Presidente da República de projetos de atos

normativos de competência dos órgãos do Poder Executivo Federal, prescreve, no

parágrafo único do art. 11, que “a formulação de normas penais em branco deverá

ser evitada”. Desse modo, a lei penal deve descrever todos os elementos objetivos e

subjetivos que integram a conduta típica, salvo, justamente, aquele que não se pode

precisar tecnicamente sem o auxílio da norma complementar,175 a qual, de todo

modo, “deve procurar manter a coerência interna do sistema normativo e prezar pela

173 Alberto Chaves acrescenta que, a fim de tornar-se conhecida, a norma complementar se submete à mesma exigência de publicidade da lei penal (CHAVES, Alberto Alpízar. Función de taxatividad del tipo penal (mandato de certeza ‘lex certa’). In.: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, n. 24, 2006, p. 39). 174 Conforme VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. El principio de ‘certeza’ en las leyes penales en blanco. In.: Revista Peruana de Ciencias Penales, n. 9, 1999, p. 15. No mesmo sentido, Nilo Batista afirma que “a constitucionalidade das normas penais em branco de complementação heteróloga seria discutível à luz da reserva absoluta da lei”. E acrescenta: “em todo caso, o complemento administrativo que passa a integrar uma norma penal está sujeito a todas as exigências que derivam do princípio da legalidade: o contrário significa violação do próprio princípio” (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 73-74). Guillermo Yacobucci lembra que a doutrina do Tribunal Constitucional Espanhol estabelece os seguintes requisitos constitucionais para a validade da norma penal em branco: (a) reenvio normativo expresso; (b) justificação em virtude do bem jurídico ao qual se refere; (c) que a lei contenha a sanção penal; (d) que a lei contenha o núcleo essencial da proibição; (e) que se encontra satisfeito o princípio de certeza que possibilita o conhecimento e a motivação normativa (YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 108). 175 Conforme CHAVES, Alberto Alpízar. Función de taxatividad del tipo penal (mandato de certeza ‘lex certa’). In.: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, n. 24, 2006, p. 39.

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observância de princípios elementares do Direito Penal, tal como a irretroatividade

da lei penal prejudicial ao acusado”.176

2.2 Princípio da irretroatividade gravosa ( nullum crimen, nulla poena sine lege praevia)

A segunda exigência imposta pelo princípio da legalidade ao legislador

penal refere-se à proibição de promulgar leis para alcançar fatos passados.

Como bem afirmado por Roxin, a proibição da retroatividade da lei penal

gravosa tem permanente atualidade política em decorrência da natural tentação do

legislador em introduzir ou agravar penas como resposta a crimes de especial

gravidade.

Com efeito, buscando amenizar eventuais críticas ou indesejados

sentimentos de insegurança, o Poder Legislativo, não raras vezes, dispõe-se a

elaborar “leis penais ad hoc”, feitas na medida para o caso concreto e, em sua

maioria, com conteúdos deturpados pelas emoções do momento. Impedir a

produção de tais leis, prossegue o autor, “é uma exigência irrenunciável do Estado

de Direito”.177

A garantia da lex praevia encontra expressa previsão no inciso XL do art.

5º da Constituição da República178 e no art. 2º do Código Penal brasileiro,179

significando que o agente só pode responder criminalmente nos termos da lei

vigente no momento do fato.

176 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Normas penais brasileiras. In.: Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n. 41, abr./jun. 2008, p. 23. 177 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 161. Como assinala Hassemer, “uma lei que procura ter validade para um caso que é mais antigo do que ela mesma, é um fantasma do Estado de polícia” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 341). 178 Art. 5º, XL, CF: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. 179 Art. 2º, CP: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.

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Também de maneira expressa, o legislador brasileiro considera praticado

o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do

resultado (art. 4º, CP).180

O núcleo da proibição da retroatividade, destaca Hassemer, “é muito mais

a ‘proteção da confiança’ de todos de que os limites da liberdade estão marcados de

modo vinculante e possíveis de serem lidos em qualquer momento nas leis”.181

Da mesma forma, ao proibir a alegação de desconhecimento da lei para

afastar a responsabilidade penal do agente, o legislador admitiu a presunção

absoluta de que todos têm ciência dela no instante mesmo de sua publicação. Essa

regra perderia todo o sentido se fosse permitida a elaboração de novas proibições

com força retroativa.

A exceção ao princípio da irretroatividade da lei penal gravosa encontra-

se em seu oposto, ou seja, no princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu,

seja por descriminalizar uma conduta, seja por reduzir a margem punitiva ou por, de

qualquer modo, favorecer a defesa.

A retroatividade da lei penal mais favorável ao réu está contemplada no

parágrafo único do art. 2º do Código Penal,182 e sua dimensão de garantia

constitucional decorre da interpretação lógica do dispositivo que determina a

irretroatividade da lei penal gravosa.183

Para a doutrina majoritária, ressalta Rosario Martínez, o fundamento da

retroatividade favorável reside em razões político-criminais vinculadas ao princípio

da proibição do excesso, uma vez que a pena se torna excessiva a partir do

momento em que a conduta passa a ser socialmente tolerada e deixa de ser

180 Vale lembrar que, nos crimes permanentes, cuja execução se prolonga no tempo, aplica-se a lei em vigor na data do último ato de execução. 181 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 341. Essa confiança, segue afirmando, “é o substrato social que mantém de pé o Direito Penal de um Estado de Direito” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 342). 182 “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. 183 Nesse sentido, a lição de Luigi Ferrajoli, para quem “per gli stessi motivi per i quali la legge propriamente penale, cioè safavorevole al reo, dev’essere irretroativa – l’ingiustificabilità degli aggravamenti legalmente non predeterminati o non piú ritenuti necessari – la legge penale più favorevole al reo dev’essere infatti, rispetto a quella più sfavorevole, ultrattiva, se più vecchia, e retroattiva, se più nuova” (FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 2000. p. 377-378).

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formalmente descrita como crime no ordenamento jurídico penal.184 Igualmente, a

manutenção de uma pena que o ordenamento jurídico já considera desnecessária

ou excessiva só pode ser justificada através das teorias absolutas – que atribuíam

ao Direito Penal função meramente retributiva –, há muito superadas.

Por esse fundamento, torna-se desnecessário o período de vacância em

relação à lei benigna posterior, cuja vigência deve ser imediata.185

Discute-se se é possível a combinação de leis para atender aos princípios

da ultra-atividade e da retroatividade in mellius, possibilitando ao julgador extrair da

nova lei apenas os dispositivos que atendam aos interesses da defesa, desprezando

aqueles que a prejudiquem.

Conforme demonstrado por Zaffaroni e Nilo Batista, considerável número

de doutrinadores brasileiros opunha-se à articulação de preceitos de duas leis

distintas para aplicação conjunta, sob o argumento tradicional de que se estaria,

dessa forma, aplicando uma lei inexistente.186

Contudo, prosseguem os autores, “a fórmula irrestrita mediante a qual a

lei dispõe acerca da retroatividade da lex mitior fora dos casos de abolitio criminis

(‘de qualquer modo’ – art. 2º, par. ún. CP), bem como a natureza imperativa da

cláusula constitucional (art. 5º, inc. XL CR) gradativamente sensibilizaram a doutrina

e a jurisprudência nacionais”.187

Desse modo, cristalizou-se o entendimento a favor do aproveitamento dos

componentes mais benéficos dos textos legais concorrentes no tempo, ressalvada

184 MARTÍNEZ, Rosario de Vicente. El principio de legalidad penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p.

65. 185 A comissão instituída pelo Instituto de Ciências Penais - ICP para propor sugestões à Comissão do Senado Federal encarregada de elaborar anteprojeto de um novo Código Penal, propôs a inserção de outro parágrafo no art. 2º do Código Penal, com a seguinte redação: “a lei posterior que de qualquer maneira beneficiar o réu terá eficácia desde a data da publicação”. Da mesma forma, sugeriu a inserção no último artigo do Código Penal da seguinte regra de transição: “as disposições deste Código que de qualquer maneira beneficiar o agente terão aplicação desde a data da publicação”. O principal fundamento para a proposição reside na constatação de que o período de vacatio legis somente se justifica em relação aos dispositivos mais gravosos, pois, apenas estes têm a possibilidade de acarretar prejuízos à liberdade e exigem, dessa forma, que se assegure a todos a oportunidade de adaptarem-se aos novos comandos (Instituto de Ciências Penais. Relatório final sobre a reforma do Código Penal. Belo Horizonte: 2012). 186 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, v. II, I. p. 214. Em reforço ao argumento contrário à conjugação de leis, Heleno Fragoso lembrava ainda que o art. 2º, § 2º, do Código Penal de 1969 continha vedação expressa a respeito (FRAGOSO, Heleno Cláudio [atualização de Fernando Fragoso]. Lições de direito penal: parte geral. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 126). 187 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, v. II, I. p. 214.

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apenas as hipóteses em que a conjugação de leis provocar o desvirtuamento do

caráter unitário da legislação.

O princípio da irretroatividade da lei penal ainda enfrenta

questionamentos quando se reclama a extensão de sua aplicabilidade ao direito

processual, à jurisprudência, às medidas de segurança e às leis temporárias ou

excepcionais.

2.2.1 Princípio da irretroatividade e direito processual

Como regra geral, o processo penal rege-se pelas leis vigentes na data

da realização de cada ato processual, independentemente do dia em que o delito

tiver sido praticado, pois suas normas têm conteúdo processual, e não incriminador.

É o que se depreende do art. 2º do Código de Processo Penal, que

resguarda a validade dos atos até então realizados.188

Acontece, todavia, que, não raras vezes, ocorrem transferências entre o

Direito Penal material e o Direito Processual Penal, como, por exemplo, na recente

promulgação da Lei n.º 12.403/2011, que reestruturou o Código de Processo Penal

na parte em que trata da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória,

de efeitos materiais decisivos.

A nova lei inovou em prejuízo do réu ao dar nova redação ao art. 283 da

lei processual penal e, com isso, admitir o cabimento da prisão temporária no curso

do processo, ampliando a hipótese de aplicação da medida que, até então, só era

permitida na fase do inquérito policial, nos termos do art. 1º, inciso I, da Lei n.º

7.960/1989.189

188 Art. 2º, CPP: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. 189 Art. 283, CPP: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Art. 1° da Lei n.º 7.960/1989: “Caberá prisão temporária: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial [...]”.

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Nesses casos excepcionais, a doutrina tem ampliado a proibição da

retroatividade aos pressupostos processuais de cuja observância depende o

julgamento do mérito.190

Portanto, quando a nova lei processual prejudicar a defesa do acusado,

só será aplicada nos processos que tiverem por objeto infrações penais praticadas

após sua entrada em vigor.

E assim deve ser, acentuam Paulo Queiroz e Antônio Vieira, “inclusive por

força da crescente utilização do direito processual penal como instrumento de uma

política criminal eficientista, que, a pretexto de maximizar o controle da

criminalidade, vem de minimizar garantias”.191

Exatamente pela utilização do processo como instrumento de uma política

criminal voltada para o rigor punitivo é que se deve estender às normas processuais

a irretroatividade da lei penal mais severa.192 Nesse mesmo sentido, Felipe Martins

Pinto, rememorando Hassemer, afirma que, “na esfera penal, tanto no direito

material quanto no processo, a legalidade não é uma característica, ‘senão a sua

missão e objetivo’”.193

Por outro lado, a novel legislação também foi generosa com os interesses

da defesa ao estabelecer a prisão domiciliar e outras nove medidas cautelares

190 Nesse sentido, ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 165; WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan bustos Ramírez y Sergio Yáñez Pérez. 4 ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1993. p. 29; HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 345; JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Trad. por Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvaho. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 143. Na doutrina penal brasileira, SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 209-214; QUEIROZ, Paulo; VIEIRA, Antônio. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-processual-penal-e-garantismo/>. Acesso em: 29.02.2012; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro, Rio de Janeiro: Revan, 2010, v. II, I. p. 219-220. 191 QUEIROZ, Paulo; VIEIRA, Antônio. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-processual-penal-e-garantismo/>. Acesso em: 29.02.2012. 192 QUEIROZ, Paulo; VIEIRA, Antônio. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-processual-penal-e-garantismo/>. Acesso em: 29.02.2012. No mesmo sentido, a lição de Lycurgo de Castro Santos, para quem “todos os preceitos que agravam a situação do réu são normas materialmente penais e por isso estão submetidas à limitação de irretroatividade” (SANTOS, Lycurgo de Castro. O princípio da legalidade no moderno direito penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 4, n. 15, São Paulo: RT, jul.-set./1996. p. 195). 193 PINTO, Felipe Martins. Introdução crítica ao processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 141.

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diversas da prisão preventiva, entre elas a fiança sob nova roupagem – medidas

essas que deveriam representar significativa redução das hipóteses de prisão no

curso do processo.194

Nesse sentido, vale perceber que o princípio da presunção de não

culpabilidade foi tomado como diretriz principal a ser perseguida doravante. Tanto é

assim que a medida extrema somente será adotada se as demais se mostrarem

inadequadas ou insuficientes (art. 282, § 6º, CPP).195

Além do mais, a prisão em flagrante fica sem efeito caso não seja

motivadamente convertida em prisão preventiva (art. 310, CPP).196

Naturalmente, a norma processual retroagirá nessas hipóteses em que se

apresentar mais benéfica aos interesses da defesa do que a norma vigente ao

tempo da realização da conduta.197

A retroatividade da norma processual mais benéfica implica não apenas

sua imediata aplicação, mas também a renovação dos atos processuais que não

puderem ser convalidados.

Afinal, o princípio da legalidade, materialmente compreendido, impede a

emissão de juízo condenatório e a consequente aplicação de sanção penal sem a

observância de um processo público, presidido por magistrado e conduzido com a

observância de todas as garantias ao processado.198

194 Além da prisão domiciliar, regulamentada nos arts. 317 e 318 do Código de Processo Penal, a nova lei estabeleceu, no art. 319, as seguintes medidas cautelares diversas da prisão preventiva: (I) comparecimento periódico em juízo; (II) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares; (III) proibição de manter contato com pessoa determinada; (IV) proibição de ausentar-se da comarca; (V) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga; (VI) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira; (VII) internação provisória; (VIII) fiança, nas infrações que a admitem e (IX) monitoração eletrônica. 195 Art. 282, § 6º, CPP: “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. 196 Art. 310. “Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: (I) relaxar a prisão ilegal; ou (II) converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (III) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação”. 197 Cf, por todos, CÓRDOBA RODA, Juan. Consideraciones sobre el principio de legalidad. In.: Homenaje al Profesor Dr. Gonzalo Rodríguez Mourullo. Navarra: Aranzadi, 2005. p. 237-248-249. 198 GIACOMOLLI, Nereu José. Função garantista do princípio da legalidade. In.: Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Ano 1, Porto Alegre, maio/. 2000, p. 51.

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As normas meramente procedimentais, que não ampliam nem restringem

as garantias individuais, serão aplicadas tão logo entrem em vigor, respeitados os

atos validamente praticados (CPP, art. 2°). 199

Por fim, quando a nova lei favorecer o acusado e, ao mesmo tempo,

prejudicá-lo em outros aspectos – como aconteceu com as alterações determinadas

pela já citada Lei n.º 12.403/2011 –, cabe o mesmo disciplinamento destinado à

irretroatividade da lei penal, admitindo-se a combinação de leis desde que sejam

compatíveis, de modo a assegurar a irretroatividade das normas mais severas e

autorizar a retroatividade das mais favoráveis.

Ocorrendo o desvirtuamento de algum dos preceitos operados, pela

eventual subtração de dispositivos condicionantes de sua eficácia, afasta-se a

conjugação de leis e escolhe-se a norma aplicável ao caso levando-se em conta o

“significado político-criminal prevalecente da reforma para os interesses concretos

do acusado”.200

2.2.2 Princípio da irretroatividade e mudanças jurisprudenciais in malam partem

Em 9 de fevereiro de 2012, o Supremo Tribunal Federal discutiu a

validade da Lei n.º 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha,

por ocasião do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 19,

ajuizada pela Presidência da República com objetivo de proporcionar uma

interpretação judicial uniforme dos dispositivos nela contidos, e da Ação Direta de

Inconstitucionalidade (ADI) 4424, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República

quanto aos artigos 12, inciso I, 16 e 41 da norma.

Além de confirmar a constitucionalidade da lei, o voto condutor da decisão

colegiada, proferido pelo Ministro Luiz Fux, considerou legítimo o disposto no art. 41

da Lei n.º 11.340/06, afastando, por conseguinte, todas as disposições da Lei n.º

9.099/95 em relação aos crimes praticados contra a mulher no âmbito doméstico e

familiar.

199 Art. 2º do CPP: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”. 200 QUEIROZ, Paulo; VIEIRA, Antônio. Retroatividade da lei processual penal e garantismo. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-processual-penal-e-garantismo/>. Acesso em: 29.02.2012.

- 76 -

Desse modo, ao suposto agente não serão conferidos os institutos da

suspensão condicional do processo, da transação penal e da composição civil dos

danos.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal também decidiu que os delitos

de lesão corporal leve e culposa domésticos contra a mulher não dependem de

representação da ofendida, processando-se mediante ação penal pública

incondicionada.201

No que atine à competência prevista no art. 33, a Lei Maria da Penha

também não mereceu reparos, decidindo a Corte que uma adequada proteção da

mulher demanda completa análise do caso, tanto sob a perspectiva cível quanto

criminal, motivo pelo qual se torna-se essencial que o mesmo juízo tenha

competências cíveis e penais, sem que se possa nisso vislumbrar ofensa à

competência dos Estados para dispor sobre a organização judiciária local (art. 125, §

1º, c/c art. 96, II, “d”, CF).

A decisão do Supremo Tribunal Federal é mais um exemplo que revela a

importância da interpretação judicial no Direito Penal e a insuficiência da lei para

atribuir taxatividade ao tipo penal, tal como preconizado por Mariângela Gomes em

seu estudo sobre as súmulas vinculantes em matéria penal.202

A mesma autora considera inatingível a certeza absoluta do direito por

meio exclusivo da lei, reforçando a interpretação judicial como instrumento

indispensável para tanto, respeitado o “âmbito dentro do qual ao juiz é permitido

criar”.203

201 O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de Recurso Especial sob o rito da Lei dos Recursos Repetitivos, de evidente efeito vinculante, havia decidido de maneira oposta, considerando indispensável a representação da ofendida nos crimes de lesão corporal leve cometido no âmbito doméstico e familiar (STJ, REsp nº 1.097.042- DF (2008/0227970-6), Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 21.05.2010). Essa decisão, contudo, foi posteriormente revista diante do entendimento assumido pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido da desnecessidade de representação da vítima nos crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no âmbito familiar, por se tratar de ação penal pública incondicionada (STJ, AgRg no REsp 130.877/CE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 03.09.2012). 202 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 18, n. 84, maio-jun. 2010, p. 77-110. 203 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 18, n. 84, maio-jun. 2010, p.81.

- 77 -

Sendo assim, apesar de não figurar no elenco das fontes do ordenamento

jurídico penal, nem por isso a jurisprudência deixa de complementá-lo quando, de

modo reiterado, uniformiza critérios de interpretação e aplicação da lei.204

Conquanto a validade e a eficácia das decisões judiciais sejam, em regra,

circunscritas às partes, as proferidas pelos tribunais de cúpula projetam-se para os

demais segmentos do Direito e, até mesmo, para toda a sociedade.205

Com efeito, os tribunais estaduais introduzem bases interpretativas que

serão posteriormente unificadas pelos tribunais superiores, cujas decisões, embora

não vincule as demais instâncias, tendem a ser aceitas porque, é lícito deduzir,

representam a palavra final sobre a matéria discutida.

O entendimento jurisprudencial pacificado tem, portanto, um grande valor

para o conhecimento do direito positivo, constituindo-se em verdadeira e própria

criação do Direito.206

Na hipótese aqui analisada, a decisão do Supremo Tribunal Federal

tornou muito mais severa a resposta para os crimes associados à violência

doméstica, além de decidir pela natureza pública da ação penal, em franco prejuízo

aos interesses do réu.

A questão agora é saber se a posição jurisprudencial adotada pelo

Supremo Tribunal Federal poderá retroagir para disciplinar os fatos cometidos em

data anterior ao julgamento.

É vivo o debate na doutrina a respeito da proibição de retroatividade da

jurisprudência vinculante que estende o alcance do tipo penal ou, de qualquer modo,

prejudica a defesa.

Considerando que a atividade jurisprudencial não inova a legislação, mas,

tão somente, interpreta as leis vigentes, desenvolveu-se inicialmente a ideia de que

sua imediata aplicação não ofenderia o princípio da legalidade.

Por essa corrente, a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que

reconheceu a desnecessidade da representação da vítima nos casos de violência

204 MIR, Cerezo. Curso de derecho penal español: parte general, v. I, 3. ed, Madrid: Tecnos, 1990, p. 160. 205 ALVIM, Arruda. A alta função jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 38. 206 MIR, Cerezo. Curso de derecho penal español: parte general, v. I, 3. ed, Madrid: Tecnos, 1990, p. 160.

- 78 -

doméstica tem imediata aplicação, alcançando todos os processos em andamento,

inclusive aqueles referentes a fatos praticados anteriormente à decisão vinculante.

Ao negar a proibição de retroatividade da jurisprudência, Roxin argumenta

que a nova interpretação não pode ser considerada uma punição ou agravação

retroativa, mas tão somente a realização de uma vontade da lei que já existia e só

agora foi corretamente reconhecida.207

Por outro lado, prossegue o autor, o argumento da confiança do cidadão

nas decisões judiciais, que fundamenta a opinião contrária, não pode ser

compartilhado porque equipara legislação e jurisprudência, contrariando a ideia

básica do princípio da legalidade, que remete à separação dos poderes e “limita o

trabalho do juiz a formatar o marco da regulação legal, que é o único pelo qual se

deve orientar o cidadão”.208

Ademais, o cidadão não tem o dever de conhecer a jurisprudência –

tarefa, aliás, de difícil concretização para a maioria dos cidadãos – tampouco deve

confiar nela, mas somente no teor literal do texto legal.209

Por fim, anota que, nos casos em que o sujeito confia de modo não

reprovável nos limites definidos pelos tribunais, não é lícito castigá-lo diante de

eventual modificação da jurisprudência que amplie ou torne mais censurável

determina conduta típica. De todo modo, não se torna necessário estender a

proibição da retroatividade a essas hipóteses de mudanças da jurisprudência

porque, nesses casos, estará caracterizado o erro de proibição invencível, que

conduz naturalmente à absolvição do acusado.210

207 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 165-166. 208 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 166. 209 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 166. O autor acrescenta ainda que as modificações da jurisprudência devem se manter dentro do âmbito do sentido literal possível da lei e, por isso, tendem a ser menos gravosas que as modificações do próprio texto legislativo. 210 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 166. Hassemer também concede ao acusado um erro de proibição inevitável quando os juristas ainda não sabem o que está correto no caso concreto e respondem de modo diferente a questões jurídicas relevantes nas mais diversas instâncias. Para ele, “a ampliação fática da proibição da retroatividade à jurisprudência causaria imediatamente a sua estagnação” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 346).

- 79 -

Fazendo coro a essa linha de pensamento, Jakobs argumenta que,

apesar da eventual igualdade de efeitos entre a jurisprudência dos tribunais

superiores e a lei, a primeira não é afetada pela proibição da retroatividade, “pois a

igualdade de efeitos não corresponde a uma igualdade de funções”. E complementa:

[...] a jurisprudência tem por função fundamentar suas decisões na lei. As vinculações existentes, isto é, a vinculação legal e a obrigação de fundamentar ficam diluídas quando se lhes acresce a proibição da retroatividade [...] em outras palavras, um judiciário que fosse vinculado como um legislativo julgaria como se promulgasse leis.211

Após perceber que a jurisprudência vive de uma contínua recriação da lei,

uma vez que seu trabalho se desenvolve entre a limitada margem de liberdade

semântica concedida pelo texto legal e a frenética mudança social que acaba

refletindo na linguagem, Hassemer admite, excepcionalmente, a proibição da

retroatividade da jurisprudência somente para atender ao princípio da confiança nos

casos em que a jurisprudência constrói rigorosamente as diretrizes gerais de uma lei

e esses contornos são transmitidos com precisão aos afetados, como ocorre, com

frequência, nos crimes contra a ordem fiscal (o que se pode deduzir?), nos crimes

de imprensa (onde estão os limites entre os direitos de personalidade do acusado e

o direito à informação?) e nos crimes de trânsito (a partir de qual quantidade de

percentual de concentração de álcool no sangue o motorista perde a capacidade

para dirigir?).212

A questão cresce de relevância no Direito brasileiro diante da adoção do

sistema de súmulas em nossos tribunais, especialmente o Supremo Tribunal

Federal, pioneiro nessa atividade. As súmulas são editadas a partir da reiteração de

decisões sobre determinados fatos ou da pacificação sobre o alcance e sentido de

certos textos legais, conferindo verdadeira força de lei às decisões jurisprudenciais.

Basta verificar que a violação das súmulas editadas pelo Supremo Tribunal Federal

é equiparada à ofensa constitucional ou a uma questão de relevância federal para o

211 JAKOBS, Günther. Tratado de direito penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Trad. por Gercélia Batista de Oliveira Mendes e Geraldo de Carvaho. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 158-159. 212 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 346-347.

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efeito de autorizar a admissibilidade do recurso extraordinário contra as decisões

dos tribunais inferiores, nos termos do art. 325 de seu regimento interno.213

A fim de fomentar a uniformização da jurisprudência e, principalmente,

desafogar as secretarias do número excessivo de feitos, paulatinamente se criaram

outros institutos para vincular as decisões judiciais ao entendimento prévio dos

tribunais superiores.

Com efeito, por meio da Emenda Constitucional n.º 45/2004, foi

introduzido na Constituição Federal o art. 103-A, que prevê a possibilidade de o

Supremo Tribunal Federal aprovar súmulas que, a partir de sua publicação na

imprensa oficial, gozem de efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder

Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual

e municipal, bem como proceder a sua revisão e cancelamento, na forma

estabelecida pela Lei n.º 11.417/2006.

Além das denominadas súmulas vinculantes, outros instrumentos

procuraram conferir força de lei às decisões jurisprudenciais, como a repercussão

geral e a lei dos recursos repetitivos.

Consoante a Lei n.º 11.418/2006, que inseriu, no Código de Processo

Civil, os artigos 543-A e 543-B, o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível,

não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele

versada não oferecer repercussão geral.

Considera-se existente a repercussão geral sempre que o recurso

impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante no Tribunal ou

versar sobre questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou

jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, a Lei n.º 11.672/08 definiu

novo rito para o julgamento dos recursos repetitivos, criando um filtro recursal com a

mesma natureza da súmula vinculante adotada no Supremo Tribunal Federal.

Por este dispositivo, eventuais recursos especiais fundados na mesma

controvérsia permitem que o Presidente do Tribunal de origem ou o Ministro

sorteado como relator do recurso no Superior Tribunal de Justiça escolha o processo

213 Cf. TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 765.

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paradigma que deverá ser analisado e determina o sobrestamento de todos os

demais que versem sobre o mesmo dissídio.

Na Terceira Seção, responsável pelos casos relacionados ao direito

penal, três julgamentos se destacam entre aqueles que tramitaram sob a égide da lei

dos recursos repetitivos: (1) o que segue a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal e afasta a tipicidade material dos crimes tributários cujos débitos não

ultrapassem o limite de R$10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20, da

Lei nº 10.522/02214; (2) o que considera de ação penal pública condicionada à

representação os crimes de lesão corporal leve, cometidos em detrimento da mulher

no âmbito doméstico e familiar215 e (3) o que classifica como crime formal a

corrupção de menores, tipificada no art. 144-B, do Estatuto da Criança e do

Adolescente, e, portanto, considera desnecessária a prova da efetiva corrupção para

a configuração do delito, bastando que o maior imputável pratique um crime em

concurso com o adolescente.216

214 RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 105, III, A E C DA CF/88. PENAL. ART. 334, § 1º, ALÍNEAS C E D, DO CÓDIGO PENAL. DESCAMINHO. TIPICIDADE. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. I - Segundo jurisprudência firmada no âmbito do Pretório Excelso - 1ª e 2ª Turmas - incide o princípio da insignificância aos débitos tributários que não ultrapassem o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei nº 10.522/02. II - Muito embora esta não seja a orientação majoritária desta Corte (vide EREsp 966077/GO, 3ª Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 20/08/2009), mas em prol da otimização do sistema, e buscando evitar uma sucessiva interposição de recursos ao c. Supremo Tribunal Federal, em sintonia com os objetivos da Lei nº 11.672/08, é de ser seguido, na matéria, o escólio jurisprudencial da Suprema Corte. Recurso especial desprovido (STJ, REsp nº 1.112.748 – TO (2009/0056632-6), Rel. Min. Felix Fischer, DJe 13.10.2009). 215 RECURSO ESPECIAL REPETITIVO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PROCESSO PENAL. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA. IRRESIGNAÇÃO IMPROVIDA. 1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública condicionada à representação da vítima. 2. O disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, que veda a aplicação da Lei 9.099/95, restringe-se à exclusão do procedimento sumaríssimo e das medidas despenalizadoras. 3. Nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha, a retratação da ofendida somente poderá ser realizada perante o magistrado, o qual terá condições de aferir a real espontaneidade da manifestação apresentada. 4. Recurso especial improvido (STJ, REsp nº 1.097.042- DF (2008/0227970-6), Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 21.05.2010). 216 RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. PENAL. CORRUPÇÃO DE MENORES. PROVA DA EFETIVA CORRUPÇÃO DO INIMPUTÁVEL. DESNECESSIDADE. DELITO FORMAL. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DECLARADA DE OFÍCIO, NOS TERMOS DO ARTIGO 61 DO CPP. 1. Para a configuração do crime de corrupção de menores, atual artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se faz necessária a prova da efetiva corrupção do menor, uma vez que se trata de delito formal, cujo bem jurídico tutelado pela norma visa, sobretudo, a impedir que o maior imputável induza ou facilite a inserção ou a manutenção do menor na esfera criminal. 2. Recurso especial provido para firmar o entendimento no sentido de que, para a configuração do crime de corrupção de menores (art. 244-B do ECA), não se faz necessária a prova da efetiva corrupção do menor, uma vez que se trata de delito formal; e, com fundamento no artigo 61 do CPP, declarar extinta a punibilidade dos recorridos Peter Lima Mendes e Fleurismar Alves da

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Outro instrumento que pode contribuir para aliviar o número de feitos no

Superior Tribunal de Justiça é a repercussão geral adotada no Supremo Tribunal

Federal.

O Ministro Humberto Gomes de Barros lamentou que a Lei nº.

11.418/2006 não tivesse se estendido ao recurso especial.217 Todavia, o Pleno do

Superior Tribunal de Justiça aprovou o envio de Proposta de Emenda à Constituição

que insere a relevância da questão federal a ser decidida como requisito para

admissão do recurso especial. O mecanismo é semelhante ao da repercussão geral

e pretende evitar que o Recurso Especial seja utilizado como mero instrumento de

revisão de causa em terceira instância.218

A proposta de emenda constitucional transforma o parágrafo único do

artigo 105 em parágrafo 2º e introduz o parágrafo 1º com a seguinte redação:

No recurso especial o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.

Da mesma forma, o instituto da reclamação, que de simples construção

pretoriana, passando por norma regimental, encontra atualmente expressa previsão

constitucional nos artigos 102, I, alínea ‘l’, e 105, I, alínea ‘f’, da Carta Magna, entre

os feitos de competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior

Tribunal de Justiça.

O principal papel atribuído à referida ferramenta legal é a preservação da

competência jurisdicional do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores,

bem como zelar pela autoridade de suas decisões.219

Silva, tão somente no que concerne à pena aplicada ao crime de corrupção de menores (STJ, REsp nº 1.112.326 - DF (2009/0018958-2), Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 08.02.2012). 217 BARROS, Humberto Gomes de. Superior Tribunal de Justiça versus segurança jurídica: a crise dos 20 anos. Revista do advogado. São Paulo: AASP, nº. 103, p. 57-61, mai-2009. 218 Conforme noticio divulgada no site do Superior Tribunal de Justiça, no dia 14 de março de 2012, o presidente daquele Sodalício, ministro Ari Pargendler, entregou ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, a proposta de emenda constitucional (PEC) que institui a repercussão geral no STJ (Disponível em http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/. Acesso em: 24.04.2012). 219 Para maior aprofundamento sobre a reclamação constitucional, pode-se conferir: COELHO DOS ANJOS, João Miguel. Reclamação constitucional. In: Processo nos tribunais superiores. Coord.: FÉRES, Marcelo Andrade e CARVALHO, Paulo Gustavo M. São Paulo: RT, 2006, p. 35-67.

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As inovações destinadas a fomentar a atividade uniformizadora da

legislação constitucional e infraconstitucional no Direito brasileiro praticamente

determinaram a proibição da retroatividade da jurisprudência prejudicial à defesa.

Afinal, conforme destacado por Mariângela Gomes, “é importante eliminar

a possibilidade de alguém ser responsabilizado criminalmente de um modo que não

podia prever no momento em que atuou, em razão de um entendimento

sedimentado em sentido diverso do que lhe foi aplicado”.220

No mesmo sentido, Juarez Tavares afirma categoricamente que “a

jurisprudência vinculante, sendo sucedânea da lei e forma de criação do direito, não

pode ter efeito retroativo em prejuízo do réu”.221

Em favor desse entendimento, o autor sustenta que a imparcialidade do

juiz é um dos corolários do princípio da legalidade e não se circunscreve

especificamente à área processual, mas se desenvolve como consequência do

princípio da igualdade, hoje consagrado nas Constituições. Isso significa que a

liberdade somente é assegurada quando a decisão é igualitária, não apenas no

sentido de ser igual para todos, mas sim no de que, no momento da decisão, “não

se alterem as opiniões acerca do fato que já estavam em vigor no instante em que

foi cometido”.222

Vale transcrever na íntegra sua conclusão sobre o tema:

Especificamente, no que afeta a proibição de retroatividade, não é importante fundamentalmente a diferença entre interpretação e criação do direito. Podemos afirmar que, como princípio de garantia, a regra é sempre a proibição de retroatividade, sendo mais explícita na criação do direito que em sua mera interpretação. Para determinar se existe ou não submissão à regra geral, o decisivo não é a forma, senão o grau de intensidade vinculante de interpretação judicial, isto é, a medida em que essa interpretação se converte em uma norma para todos. A vinculação da jurisprudência como decisão de aceitação geral, integradora da proteção à confiança, se faz através de sua reiteração. É essa reiteração que a faz conhecida, a que gera confiança, a que estabiliza a imparcialidade. Sua variação, portanto, influi na vida comum e representa uma alteração da própria realidade jurídica, com repercussões no lícito e no ilícito, podendo dar lugar à

220 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, maio-jun./2010, Ano 18, n. 84, p. 107. 221 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 767. 222 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 767.

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caracterização mais evidente do erro de proibição. Mais vinculante todavia é a jurisprudência reunida em súmulas do Supremo Tribunal quando tem força de norma constitucional. Em tais hipóteses, se pode afirmar que a alteração jurisprudencial só se aplicará a fatos cometidos depois de sua edição, se é em prejuízo do réu.223

Zaffaroni e Nilo Batista também consideram inadmissível que se apene

quem não poderia conhecer a proibição, pois tal equivaleria a “pretender que os

cidadãos devessem abster-se não apenas daquilo que a jurisprudência considera

legalmente proibido, mas também daquilo possível de vir a ser julgado proibido (ou

seja, do ‘proibível’) em virtude de possíveis e inovadores critérios interpretativos”.224

A clara opção do legislador brasileiro pela busca da uniformização dos

julgamentos a partir da valorização do precedente jurisprudencial, a par de reforçar

os valores decorrentes do princípio da legalidade, exige que o intérprete esteja

atento para não ferir as garantias do princípio da legalidade expressas na proibição

de aplicação retroativa de entendimento desfavorável ao acusado.225

223 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudencia. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 768. No tocante à relevante questão do controle de constitucionalidade, a par das diversas técnicas existentes, como a interpretação conforme, a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade etc., ocorreu no Brasil um avanço operacional a partir da Lei 9.868/1999, que, acompanhando a legislação alemã e portuguesa, estabeleceu a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal temperar os efeitos da decisão através da denominada “modulação dos efeitos temporais” (BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 232-233). Ao analisar a modulação de efeitos na decisão de inconstitucionalidade, Georges Aboud vislumbra hipóteses em que ela é obrigatória diante da necessidade de se proteger interesse social e garantir os direitos do cidadão, e, ao contrário, é vedada porque precisa, necessariamente, ter efeitos retroativos a fim de garantir os mesmos direitos. Como exemplo dessa última hipótese, cita a decisão de inconstitucionalidade que repercute favoravelmente na esfera penal dos cidadãos, hipótese em que o Supremo Tribunal Federal não poderá limitar os efeitos da decisão (ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: RT, 2012, p. 296). 224 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, v. II, I. p. 224. 225 A favor da irretroatividade da jurisprudência gravosa, na doutrina nacional, GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10 ed. Niterói: Impetus, 2008, v. I. p. 121-122; SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 234-235; QUEIROZ, Paulo. Direito penal: parte geral. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 113: acrescenta o autor que, pela mesma razão, as alterações jurisprudenciais que favorecerem o réu devem retroagir, inclusive para admitir a revisão criminal. Especificamente sobre a ADI 4424, André Luiz Nicolitt considera que a decisão do STF não poderá atingir fatos ocorridos antes de seu trânsito em julgado: “a norma tem presunção de constitucionalidade e as pessoas se pautam em consonância com esta e, ainda, tendo a seu lado jurisprudência consolidada no STJ, no sentido de que a lesão corporal exige representação. Assim, não podem ser surpreendidas com o resultado de uma decisão em controle abstrato, cuja natureza é legislativa negativa, com resultado prejudicial ao indivíduo na medida em que fortalece o direito de punir” (NICOLITT, André Luiz. Declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade em matéria penal: reflexão a partir da ADI 4.424 e da ADC 19 – STF e as novas controvérsias sobre a Lei Maria da Penha. In: Boletim do IBCCRIM, nº. 234, maio/2012, p. 08-09).

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De todo o exposto resulta evidente que a proibição da retroatividade vale

somente in malam partem, ou seja, apenas enquanto a força retroativa da

jurisprudência prejudicar o acusado.

As interpretações judiciais favoráveis a ele (redução da pena,

descriminalização e outras), ainda que perturbem o sentido da ordem ou causem um

sentimento de favor ao réu, têm aplicação retroativa em homenagem à confiança

geral na justiça penal como instituição de controle social, que deve sempre decidir

ponderadamente, e não condenar de maneira ardilosa ou clandestina.

2.2.3 Princípio da irretroatividade e medidas de segurança

No Direito Penal alemão, a proibição da retroatividade alcança todos os

pressupostos da punibilidade de direito material, a supressão ou restrição das

causas de justificação, a pena e suas consequências acessórias, excepcionando,

todavia, as medidas de segurança.

Com efeito, nos termos do § 2º, VI, do Código Penal alemão, permite-se a

introdução de novas medidas de segurança ou um tratamento mais rigoroso para as

já existentes se a lei não dispuser de outro modo.226

Referida disposição legal se apoia na reflexão de que as medidas de

segurança não são uma resposta para o passado (retribuição do injusto), mas uma

segurança para o futuro (defesa contra ataques futuros), devendo se vincular ao

prognóstico.

Mesmo assim, a doutrina tedesca considera equivocada tal

regulamentação sob o argumento de que o princípio da legalidade tem um alcance

muito mais amplo do que a mera vinculação com o princípio da culpabilidade,

devendo proteger o indivíduo em face de sanções que não foram previstas antes do

cometimento do fato.227

Além disso, as medidas de segurança, principalmente as que prescrevem

a internação, podem restringir a liberdade do sentenciado de modo mais rígido que

226 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 163. 227 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 163.

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as penas privativas de liberdade, bastando lembrar que seu termo final depende do

quadro de cessação da periculosidade do agente.

Desse modo, ainda que o tratamento mais gravoso represente desejáveis

progressos em favor dos inimputáveis, sua imposição por meio do processo penal

deve permanecer limitada pelo princípio da legalidade, pois, conforme anotado por

Hassemer, “o que conta para o jurisdicionado – e sua confiança na justiça penal –

não é a roupagem teórica com a qual se reveste a consequência jurídico-penal, mas

é o peso real que ela leva consigo”.228

No Direito Penal brasileiro, a formulação original do art. 75 do Código

Penal de 1940 estabelecia que a lei aplicável à medida de segurança era a que

estava em vigor ao tempo da sentença, prevalecendo, entretanto, se diversa, a lei

vigente ao tempo da execução.

A correspondente Exposição de Motivos esclarecia que, muito embora

fosse proibido ao juiz aplicar medidas de segurança não previstas expressamente

em lei, estas não se confundiam com a pena e, por isso, encontravam-se imunes ao

princípio da anterioridade da lei.

Devido a isso, Heleno Fragoso concluiu que as disposições que preveem

as medidas de segurança devem ser taxativas e inextensíveis, mas, ao contrário do

que ocorre em relação à pena, não se exige para elas a anterioridade da lei ao fato

delituoso que é pressuposto de sua aplicação.229

Apesar de a matéria não ter sido regulamentada na nova Parte Geral do

Código Penal brasileiro, parcela da doutrina persistiu na compreensão de que as

medidas de segurança têm aplicação imediata devido a seu caráter terapêutico,

independentemente de representarem maior aflitividade ao sentenciado.230

A incongruência é visível, pois, apesar do avanço da legislação brasileira,

notadamente pela revogação do artigo que determinava expressamente a

retroatividade das medidas de segurança, a doutrina nacional não acompanhou o

desenvolvimento que a disciplina obteve na doutrina alemã.

228 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 343. 229 FRAGOSO, Heleno Cláudio [atualização de Fernando Fragoso]. Lições de direito penal: parte geral. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 128. 230 Cf., por todos, TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 41-42.

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Com efeito, considerando que a própria periculosidade do agente deixou

de ser constatada a partir de fatos predeterminados para ser estabelecida através de

uma valoração puramente discricionária do juiz, como prognose de comportamento

futuro que revele a probabilidade de realização de novos delitos, não se pode

atualmente renunciar ao princípio da anterioridade em relação às medidas de

segurança.231

Ademais, o argumento segundo o qual a aplicação imediata da medida de

segurança se justifica devido à sua natureza curativa não pode ser aceito sem

cautela porque, do mesmo modo, acabaria por autorizar a aplicação retroativa e

incondicionada da pena privativa de liberdade, dada sua função ressocializadora,

apregoada pela Lei de Execução Penal.232

Sendo assim, diante do silêncio do legislador e do caráter punitivo das

medidas de segurança, sua aplicação deve ser integralmente submetida ao princípio

da legalidade, inclusive em relação à proibição da retroatividade.

2.2.4 Princípio da irretroatividade e leis excepcionais ou temporárias

Segundo o art. 3º do Código Penal, a lei excepcional ou temporária,

embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a

determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.

Leis excepcionais são aquelas elaboradas para a proteção de

determinados bens jurídicos que eventualmente se tornem mais expostos por

ocasião de um período atípico vivenciado pela sociedade, cuja vigência se esgota

com o simples retorno da normalidade.

Leis temporárias, por seu turno, são feitas para vigorar por um prazo de

antemão conhecido, constando de seu próprio texto a data em que ocorrerá sua

autorrevogação ou um determinado acontecimento que a tornará sem objeto.

O caráter incomum de tais leis, editadas em períodos de convulsão social

ou de calamidade pública, costuma justificar a opção por sua ultra-atividade, pois, do

contrário, perderiam paulatinamente a efetividade diante de sua iminente revogação.

231 FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale. Roma: Laterza, 2000. p.815. 232 Cf. SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 219.

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Assim, anota Francisco de Assis Toledo, “ainda quando mais severa, a lei

temporária, por sua natureza, será sempre aplicável aos fatos cometidos durante

sua vigência”.233

A lição de Frederico Marques também é lembrada para explicar por que a

ultra-atividade da lei temporária ou excepcional não é limitada pelos princípios

constitucionais do direito intertemporal brasileiro. Segundo o autor, trata-se de uma

“descrição legal de figuras típicas onde o tempus delicti condiciona a punibilidade ou

maior punibilidade de uma conduta”. Sendo assim, a lei posterior que eventualmente

revogar ou modificar um fato punido mais severamente pela lei temporária “não

retroagirá porque as situações tipificadas são diversas”.234

Heleno Fragoso acrescenta que, no caso de suceder à lei temporária ou

excepcional outra lei que tenha o mesmo caráter, poderá haver, ou não,

retroatividade. Em suas palavras: “se se trata de leis determinadas pela alteração de

condições político-sociais, deve negar-se a retroatividade da nova lei”, ao passo que,

se a inovação legislativa for determinada pela necessidade de regular de modo mais

racional e equitativo a mesma matéria, “permanecendo substancialmente inalteradas

as circunstâncias excepcionais que sugeriram a legislação precedente”, impõe-se a

retroatividade da lei mais favorável.235

Apesar do tradicional entendimento doutrinário, uma parcela de penalistas

brasileiros abriu divergência ao negar a validade constitucional da lei temporária ou

excepcional, seguindo a orientação de Nilo Batista e Zaffaroni, para quem não se

pode excepcionar matéria que o constituinte erigiu a garantia individual, competindo

ao legislador, perante situações calamitosas que requeiram drástica tutela penal de

bens jurídicos, “prover para que os procedimentos constitucionalmente devidos

possam exaurir-se durante a vigência da lei”.236

233 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 44 234 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 1, Campinas: Bookseller, 1997, 1 ed. atualizada, p. 270. No mesmo sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v.1, 16 ed., São Paulo: Saraiva, 2011 e PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v.1, 8 ed., São Paulo: RT, 2008, p. 185. 235 FRAGOSO, Heleno Cláudio [atualização de Fernando Fragoso]. Lições de direito penal: parte geral. 17 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 126-127. 236 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro, v. II, I, Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 217. Acompanham este entendimento, entre outros, GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral, v. I, 10 ed., Niterói: Impetus, 2008, p. 116 e SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 231.

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2.3 Proibição dos costumes como fonte do Direito Pe nal (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta)

O direito consuetudinário, define Mantovani, “consiste na repetição geral,

constante e uniforme de um comportamento para adimplir uma obrigação ou exercer

um poder jurídico”.237

Trata-se de uma norma não escrita que absorve o objeto de um

determinado comportamento espontâneo, de caráter moral ou apenas social.

Seu nascimento é de difícil determinação, pois se verifica no instante em

que a repetição do comportamento, por sua constância, uniformidade e opinio juris,

alcança a intensidade necessária e suficiente para transformá-lo em norma jurídica.

Tal norma apresenta duplo fator de incerteza, referente a seu substrato e ao

momento em que entrou em vigor.238

Exatamente por isso, foi largamente utilizada como fonte jurídica no

período imediatamente anterior ao Movimento Ilustrado, funcionando como

justificativa eficaz para as maiores atrocidades realizadas pelos governantes em prol

da manutenção do poder.239

Não por acaso, um dos corolários do princípio da legalidade, endereçado

somente ao juiz,240 refere-se à necessidade de uma lei escrita para a incriminação

de condutas e para a imposição ou agravação da pena, ficando excluído o uso do

direito consuetudinário (nullum crimen nulla poena sine lege scripta).

Juarez Tavares recorda que essa postura só se tornou possível devido a,

pelo menos, duas circunstâncias: a criação do Estado, impessoal e representativo

da vontade geral, e a incerteza quanto à identificação de uma norma

consuetudinária.241

No âmbito do Direito Penal não é fácil definir corretamente o que vem a

ser o Direito Costumeiro, melhor identificado em outros ramos, como o Trabalhista e

237 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale. 3 ed. Milano: Cedam, 1992. p. 81. 238 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale. 3 ed. Milano: Cedam, 1992. p. 81. 239 Conforme asseverado por Juarez Tavares, “a exclusão do costume como fonte de norma penal incriminadora foi, antes de tudo, um ato político adotado pela revolução burguesa para opor-se ao regime feudal” (TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 764). 240 Nesse sentido, HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 348. 241 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 764.

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o Comercial, em que a infringência a determinados costumes ou modos de atuação

é considerada verdadeira violação do Direito, muito embora não prevista em lei.242

Considerando a reserva absoluta de lei para a definição de crimes e a

cominação de penas, esse modelo efetivamente não poderia mesmo conviver com o

Direito Penal.

Inclusive nas hipóteses em que a descriminalização de determinada

conduta é imposta politicamente através de uma argumentação baseada nos

costumes, como ocorrido, por exemplo, com o revogado crime de adultério, não se

há falar em direito consuetudinário no campo do Direito Penal, mas tão somente na

consequência da discussão pública acerca da política criminal adotada pelo

Estado.243

Com efeito, quando uma conduta típica passa a ser tolerada pela

sociedade, forma-se um argumento político-criminal que reclama tratamento mais

liberal para o caso, fundado na constatação de que cada vez mais pessoas

consideram aquela norma injusta e político-criminalmente errônea.244

Do mesmo modo, comportamentos lesivos a bens jurídicos valiosos que

não recebam a correspondente resposta estatal podem fomentar no seio social a

busca por um Direito Penal mais efetivo, seja por meio da tipificação de condutas até

então desconhecidas, seja através do aumento do rigor punitivo de outras já

existentes.

Essas propostas político-criminais, todavia, não servem para fundamentar

uma sentença condenatória contra a lei escrita, podendo-se afirmar que o Direito

Penal se realiza exclusivamente através do direito positivo.

Por fim, também se deve rechaçar a ideia de que os pressupostos gerais

da punibilidade possam conter certo grau de direito consuetudinário quando não

regulados expressamente em lei, como as teorias que estudam a relação de

causalidade, as que procuram distinguir meros atos preparatórios da tentativa

punível, as que definem o dolo eventual e a culpa consciente, as que tratam do erro

242 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 348. 243 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 349. 244 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005. p. 349.

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ou as que regulam o consentimento do ofendido, os delitos omissivos e a autoria

mediata.245

Diante das dificuldades para a codificação dos institutos acima

destacados, o legislador concedeu à jurisprudência a possibilidade de delimitá-los,

valendo-se, para tanto, das regras de interpretação, e não do caráter normativo

vinculante do direito consuetudinário.246

2.4 Proibição da analogia ( nullum crimen, nulla poena sine lege stricta)

A busca pela certeza absoluta do mandamento legal, que inspirou os

iluministas a proclamarem o juiz como a “boca da lei”, não ilude os operadores do

Direito de hoje, conformados com as necessidades de interpretação inerente a toda

norma, mesmo aquelas construídas com preceitos amplamente descritivos.247

Com efeito, o processo de criação da lei penal encerra elevado grau de

objetividade e imparcialidade, mas ainda insuficiente para garantir o cidadão, devido

às exigências interpretativas do texto normativo.

A interpretação torna-se, pois, um importante instrumento para se afastar

as contradições e os defeitos que a lei penal compreende, permitindo a identificação

de seus objetos vagos e imprecisos, além de eliminar eventual viés autoritário,

deixando-a, enfim, compreensível ao cidadão e limitada em seu alcance.248

Essa constatação importa no reconhecimento da atividade criadora do juiz

no momento de decidir, inclusive nos ordenamentos dotados da mais exigente

legalidade. Como destaca Mariângela Gomes, “o verdadeiro problema diz respeito

245 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 159. 246 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 160. 247 Nesse sentido, Claus Roxin lembra que o próprio conceito de “homem” não se encontra perfeitamente prefigurado, surgindo dúvidas sobre o exato momento em que deixa de ser considerado um feto, bem como o instante em que se transforma em cadáver, se com o fim das funções cerebrais ou dos batimentos cardíacos (ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 148). 248 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 757.

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ao grau de criatividade e aos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por

obra do Poder Judiciário”.249

Compartilhando do mesmo entendimento, Marques Dip atribui ao direito

jurisprudencial – doutrina e juízes – o papel de compreender e estabilizar o

significado normativo da lei penal.250

Ocorre que a finalidade do juiz vai além do deslinde da causa, procurando

fazer com que a decisão/interpretação do caso concreto possa ser considerada em

outros julgamentos similares. Por isso se diz que o direito se revela somente por

meio da atividade judicial, quando a lei escrita se insere efetivamente no contexto

social em que é aplicada.251

Nesse sentido, Ricardo Andreucci considera que o Direito nasce da

mediação entre as leis e a concretização dos fatos, determinando a necessidade de

“superação da concepção estática das normas”.252

Muito embora seja inegável que a jurisprudência cada vez mais acentua

sua parcela na função de criar o direito, a lei penal jamais poderá ser por ela

substituída na tradição do Direito escrito e dos princípios estruturadores do Estado

Democrático de Direito.

O papel da lei reside justamente na função de delimitar o âmbito dentro

do qual ao juiz é permitido criar, de maneira que a decisão seja “subsumível” a seu

texto.253

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Claus Roxin afirma que uma

aplicação do Direito à margem do marco de regulação legal (praeter legem), ou seja,

uma interpretação não coberta pelo sentido literal possível do preceito penal,

constitui inadmissível analogia fundamentadora da pena.254

A vinculação de interpretação ao limite do teor literal da norma deriva do

fundamento jurídico-político do princípio da legalidade, bastando lembrar que o

249 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, maio-jun./2010, Ano 18, n. 84. p. 80. 250 DIP, Ricardo Henry Marques. Princípio da legalidade penal: realidade e mito. In.: PENTEADO Jaques de Camargo (Coord.). Justiça Penal. São Paulo: RT, 2000, v. 7. p. 59. 251 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, maio-jun./2010, Ano 18, n. 84. p. 81. 252 ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito penal e criação judicial. São Paulo: RT, 1988. p. 63. 253 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, maio-jun./2010, Ano 18, n. 84. p. 81. 254 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 149.

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pretendido efeito preventivo da lei penal somente poderá ser alcançado se a conduta

proibida puder ser compreendida pelo cidadão a partir de uma simples leitura do

texto normativo.

Disso decorre a proibição de se utilizar a analogia para suprir eventuais

lacunas da lei penal, que, não raras vezes, deixa de tipificar fatos lesivos a bens

jurídicos importantes cuja proteção tenha escapado da previsão do legislador.

Raciocinar por analogia, assevera Carlos Maximiliano, equivale a “passar,

por inferência, de um assunto a outro de espécie diversa”. Segundo ele, a analogia

“se baseia na presunção de que duas coisas que têm entre si um certo número de

pontos de semelhança possam conseqüentemente assemelhar-se quanto a um

outro mais”.255

Na esfera jurídica, a analogia “consiste em aplicar a uma hipótese não

prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante”.256

Especificamente no campo do Direito Penal, o princípio da legalidade

limita o uso da analogia somente em favor do réu, exigindo do legislador uma

descrição clara e precisa do fato punível.

Apesar disso, conforme esclarecido por Francesco Palazzo, o significado

linguístico de uma expressão normativa não é de todo unívoca, de sorte que a

recondução de um fato às exigências semânticas do tipo implica sempre uma

operação valorativa com a qual os dois fatores, núcleo central do significado

linguístico e fato real, venham postos em relação para se estabelecer uma

semelhança entre eles, “nem mais nem menos como acontece no procedimento

analógico”.257

Do mesmo modo, Juarez Tavares admite ser praticamente impossível

estabelecer uma diferença segura entre interpretação e analogia, pois, no fundo,

“todo processo de interpretação é um procedimento analógico e negar este fato não

ajuda em nada a limitar o poder estatal”.258

255 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 206. 256 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 208. 257 PALAZZO, Francesco. Introduzione ai princìpi del diritto penale. Torino: G. Giappichelli Editore, 1999. p. 281. 258 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 758.

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Situada a questão em termos de proteção da liberdade individual,

considera que ela somente será alcançada “através da limitação exercida dentro do

próprio procedimento analógico e de sua subordinação ao sentido de proteção dado

pela norma”.259

Dito autor demonstra que a analogia no âmbito jurídico é mais complexa

que na Matemática, seara em que os elementos da relação são sempre

quantitativos, de modo que, formulados três pressupostos da proposição, o quarto

elemento é inferido automaticamente. Assim, por exemplo, se X é antecedente de Y

e Y antecedente de Z, está claro que X também é antecedente de Z. Essa forma de

analogia, válida somente para as denominadas relações transitivas, “é perfeitamente

deduzível e não apresenta problema para, uma vez identificada, proibir-se ou

permitir-se sua extensão”.260

Porém, prossegue o professor da Faculdade de Direito da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro, “a forma de analogia empregada no Direito

corresponde a que Aristóteles chamava de ‘procedimento de semelhança’, de onde

ressalta como aspecto fundamental a probabilidade”.261 Aqui não se têm mais os

três elementos quantitativos, relacionados entre si de forma a possibilitar a dedução

obrigatória de um quarto elemento. O raciocínio é outro: oferecidos três elementos

de uma proposição, o quarto elemento não vem dado com eles, constituindo a

relação apenas uma regra, uma experiência ou um sinal para encontrá-lo. O

desconhecimento de um elemento implica, pois, “estabelecer que provavelmente,

verificadas as condições dadas, um elemento surge como aqueles que já são

conhecidos e foram anteriormente delimitados”.262

A inserção da categoria qualitativa na determinação da analogia

“confunde o intérprete que pensa estar desdobrando a norma jurídica, como um

desenvolvimento natural e implícito, quando está criando algo antes inexistente”.263

259 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 759. 260 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 759. 261 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 759. 262 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 759. 263 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 759.

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O risco surge quando a interpretação judicial estende o sentido e a

abrangência do texto normativo, indo além da perspectiva de garantia individual e de

contenção do poder punitivo.

Citando como exemplo a súmula que admitia a arma de brinquedo para

majorar a pena do roubo, Juarez Tavares adverte que a luta em favor de um direito

escrito e certo não se encerra em simples enunciados do princípio da legalidade,

devendo-se, por isso mesmo, impor restrições à interpretação judicial.264

Nesse contexto, ganha relevância a definição de Guillermo Yacobbucci:

A interpretação não supõe então analogia in malam partem quando se respeita o campo semântico máximo que habilita o enunciado normativo, que, certamente, deve ser desenvolvido sob os critérios relacionados com a ratio decidendi e regulados pelos princípios materiais de ordem social (isto é, em nosso entender, bem comum político e dignidade humana). Dessa forma, unem-se o campo semântico com o campo valorativo, o qual sempre é dependente dos princípios de categoria constitucional.265

O principal limite à interpretação judicial deve fixar-se no bem jurídico

protegido pela norma, que deve ser precisamente identificado. Cabe advertir, porém,

que isto não é o bastante: a tutela de um determinado bem jurídico, por mais

precioso que seja, não autoriza o julgador a extrapolar o conteúdo da norma e sua

expressão mais clara, sendo válida somente quando realizada nos termos que

dispõe a lei.266

Por outro lado, embora o Direito Penal se esforce em busca da clara

determinação dos bens jurídicos protegidos, tal tarefa tem se mostrado cada vez

mais difícil diante dos seus novos campos de atuação, não sendo fácil discernir qual

bem jurídico está sendo tutelado.267

264 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 764-765. 265 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 115. 266 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In.: Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 766. 267 Nesse sentido, YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 112.

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SEGUNDA PARTE: JURISPRUDÊNCIA E CONTROLE DA LEGALID ADE

Em um período mais recente se percebem, na legislação penal e na teoria do Direito Penal, tendências que consideram de mínima relevância o princípio da legalidade e a vinculação do juiz à lei. Os campos da “moderna” Política Criminal (terrorismo e criminalidade organizada; ambiente; economia; drogas; processamento de dados) são ocupados por bens jurídicos universais descritos de modo vago. Na teoria do Direito Penal procura-se fazer do Direito a espada contra os “grandes transtornos” na moderna “Sociedade do risco”. A orientação pelas consequências, a funcionalidade do sistema, a flexibilidade e a capacidade de adaptação às crescentes e variáveis experiências de ameaça são os modelos fundamentais desta espécie de “modernização” do Direito Penal. Deve-se ter em vista que a vinculação do Direito Penal aos princípios e a vinculação do juiz criminal à lei constituem garantias diante dos instrumentos rigorosos do Direito Penal, com as quais contam, em especial medida, as sociedades complexas.

HASSEMER. Introdução ... p. 364.

1 A crise do Direito Penal e seus reflexos entre os princípios político-criminais

de garantia

A partir do segundo pós-guerra, esclarece Guilherme Yacobucci, “o direito

penal sofreu mudanças muito significativas, sobretudo nos fundamentos que o

justificam como expressão do poder político, como estrutura normativa do Estado e

como ciência jurídica”.268

Devido a isso, fala-se em “crise do Direito Penal” para se referir a esse

fenômeno, que não apenas coloca em dúvida o poder punitivo do Estado, como

também se afasta dos “critérios tradicionais com os quais a dogmática penal

costumava explicar a estrutura do injusto penal e da culpabilidade”.269

No prólogo da edição espanhola da obra coletiva do Instituto de Ciências

Criminais de Frankfurt, intitulada La insostenible situación del derecho penal, Silva

268 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 27. 269 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 27.

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Sánchez assim esclareceu a respeito do que se convencionou denominar “crise do

Direito Penal”:

Hace algunos años califiqué a la crisis como un “estado connatural al Derecho penal”. En efecto, me parecía – y me sigue pareciendo – que es inevitable que le complejo institucional a través del que se canalizan las pretensiones punitivas de la sociedad no alcance nunca una cómoda estabilidad, sino que se mantenga en una permanente y vigilante provisionalidad. Ahora bien, dentro del estado estructural de crisis, es cierto que aparecen coyunturas algo más “críticas”. La coyuntura en la que se mueve el Derecho penal en los últimos diez años es una de las más graves, pues compromete los rasgos definitorios de su propia identidad. En efecto, la crisis que se plantea en la análisis el ejercicio del “jus puniendi” para resolver sobre su posible limitación: lo que ha constituido la idea rectora de la comprensión del Derecho penal ilustrado por parte de los penalistas. Por el contrario, se trata precisamente de una crisis derivada de la tensión expansiva a que se está sometiendo al Derecho penal para que éste se encuentre supuestamente en condiciones de afrontar con éxito y de forma expeditiva la misión de lucha contra una criminalidad cuyo incremento en cantidad u dañosidad se afirma.270

Se entre os anos sessenta e setenta o abolicionismo penal conheceu seu

apogeu, a realidade dos dias atuais pende para o oposto, ou seja, assiste-se hoje a

uma expansão do direito penal insuflada, entre outras variáveis, por uma demanda

social de maior segurança.

Vale perceber, inclusive, que as mesmas correntes que outrora criticavam

o direito penal, como, por exemplo, os ambientalistas, hoje reclamam sua utilização

para a proteção de seus interesses, especialmente das ações dos poderosos

identificados com a corrupção política, a delinquência econômica e demais “crimes

do colarinho branco”.

Daí o clima de aparente contradição que instiga os incautos: por um lado,

se proclama a crise do Direito Penal e, por outro, a sociedade civil e o poder político

buscam cada vez mais sua utilização para o enfrentamento dos conflitos e

problemas da atualidade, transformando-o num “meio de resposta normativa cada

vez mais intenso e habitual”.271

270 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Prólogo a la edición española. In: La insostenible situación del derecho penal. Granada: Comares, 2000. (Estudios de derecho penal, v. 15), p. XI-XV. 271 Cf. YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 28. Sergio Moccia também analisa criticamente os novos alcances do direito penal, in MOCCIA, Sergio. La perenne emergenza. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1977.

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Ocorre que, na verdade, a contradição é meramente aparente, pois os

motivos de um fenômeno e outro se encontram em boa medida relacionados entre

si.

Quando se fala em “crise do Direito Penal”, deve-se relacioná-la aos

princípios de legitimação que, historicamente, permitiram sua edificação, ocorrida

entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX. Inspirado no

ideal iluminista, o Direito Penal surgiu com o propósito de proteger os direitos

fundamentais da pessoa contra o poder punitivo estatal, então dominado pela

arbitrariedade, violência e despotismo que caracterizavam o antigo regime.

Tais pressupostos fundamentais, que legitimaram o aqui denominado

“Direito Penal tradicional” 272, é que sofrem os efeitos da crise.

Neste trabalho não se pretende explicar toda a transformação no modo de

entender e legitimar o Direito Penal, mas somente destacar a desintegração

experimentada pelos princípios penais de garantia, em especial, a que atinge o

princípio da legalidade.

Vale, portanto, analisar a influência da política criminal no ordenamento

positivo, bem como confrontar a estrutura básica de legitimação do Direito Penal

tradicional com as rupturas anunciadas pelo Direito Penal da atualidade.

1.1 Das relações entre política criminal e sistema de Direito Penal

O direito penal se distingue dos demais ramos do ordenamento jurídico,

basicamente, por três características: em primeiro lugar, pelo rigoroso formalismo

que inspira todo o sistema, justificado pela grave maneira como incide sobre a

liberdade individual; a segunda característica é representada por uma particular

atenção dedicada à responsabilidade subjetiva, o que implica, como regra geral, na

exigência de uma conduta dolosa ou, excepcionalmente, culposa para a

conformação do fato típico; a terceira peculiaridade é a previsão da sanção criminal,

especialmente, a pena privativa de liberdade, utilizada pelo Estado como sua

272 Utiliza-se a expressão “direito penal tradicional”, identificado com os fundamentos e princípios derivados do Iluminismo, para evitar alusão ao termo “clássico”, que poderia se confundir com a “escola penal clássica”.

- 99 -

principal forma de intervenção para regular e controlar os fatos socialmente

danosos.273

Sendo assim, ao se permitir que a sanção penal recaia sobre direitos

fundamentais do indivíduo, cresce de importância a função a ela atribuída,

especialmente pela necessidade de se preservar a harmonia com o feixe de

garantias asseguradas pela ordem constitucional vigente.

Nessa perspectiva, vale ressaltar que o direito penal nasce de uma

particular exigência de natureza político-criminal: estabelecer uma pacífica

coexistência entre os cidadãos.274

Isso implica, acima de tudo, em uma atenta análise da matriz ideológica

que serve de pano de fundo ao ordenamento jurídico, de modo a definir o exato

papel exercido pela política criminal na construção do Direito Penal.

A ideologia, mais precisamente, pode ser definida como um modelo

através do qual são reguladas as relações sociopolíticas. Para tanto, necessita de

regras concretas, as quais só podem ser enunciadas e elaboradas sob o plano

normativo do direito.275

Portanto, pode-se afirmar, com Sergio Moccia, que o direito não nasce e

se desenvolve num espaço abstrato e isolado, mas se origina das relações

ideológico-existenciais, sobre a base de dados da realidade empírica, vale dizer,

sobre a estrutura dos fenômenos da realidade em que os cidadãos vivem. Nesse

contexto, é necessário verificar a incidência da ideologia nos diversos setores do

direito, como ocorre, indubitavelmente, no âmbito do direito constitucional, a quem

cumpre individuar e regular os fundamentos da existência sociopolítica da

comunidade. Nos demais setores jurídicos, tal influência não ocorre de modo

unívoco, mas se manifesta decisivamente no âmbito do direito penal, uma vez que a

ideologia sociopolítica influencia diretamente as escolhas fundamentais da política

criminal, estabelecendo, por exemplo, quais valores ideológicos serão alçados à

273 MOCCIA, Sergio. Il diritto penale tra essere e valore: funzione della pena e sistemática teologica. Roma: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 324. 274 MOCCIA, Sergio. Il diritto penale tra essere e valore: funzione della pena e sistemática teologica. Roma: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 324. 275 MOCCIA, Sergio. Il diritto penale tra essere e valore: funzione della pena e sistemática teologica. Roma: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 324.

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categoria de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico através dos

específicos tipos penais.276

A particular relação que une ideologia e ordenamento jurídico confirma a

validade do pressuposto metodológico que, partindo da importância das relações

entre política criminal e sistema de direito penal, assinala uma significativa

transformação na dogmática jurídico-penal.

Essa corrente doutrinária, iniciada através do importante estudo de Claus

Roxin, intitulado “Política criminal e sistema jurídico-penal”, rompe com o tradicional

limite que separa política criminal e sistema jurídico-penal, atribuindo àquela um

perfil ideológico tendente a realizar uma concreta e real unidade entre submissão ao

direito e adequação a fins político-criminais, “da mesma forma que Estado de Direito

e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade

dialética”.277

Nesta ótica, a integração entre a política criminal e a dogmática jurídico-

penal deve realizar-se na construção da teoria geral do delito; portanto, as três

categorias do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade) devem ser consideradas e

desenvolvidas do ponto de vista de suas funções político-criminais.278

Desse modo, compete ao fato típico satisfazer as exigências de

determinação e taxatividade, garantindo o princípio da legalidade; a antijuridicidade

é, ao invés, o lugar de resolução dos conflitos sociais, surgidos da colisão de

interesses individuais; a culpabilidade, por fim, representa o pressuposto

(necessário, mas não suficiente) e o limite para o exercício da pretensão punitiva,

fundada em termos de prevenção (geral e especial).279

Resumindo, as funções político-criminais dos três elementos do crime

são: a tutela da liberdade (fato típico); as soluções dos conflitos sociais

(antijuridicidade) e a explicação das finalidades de prevenção (culpabilidade).

Segundo as diretivas enunciadas por Roxin, estabelece-se, assim, um

estreito vínculo entre as normas jurídico-penais e as exigências de natureza político-

276 MOCCIA, Sergio. Il diritto penale tra essere e valore: funzione della pena e sistemática teologica. Roma: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992, p. 324. 277 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. por Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 20. 278 Cf. ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. por Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 29. 279 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. por Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 30-31.

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criminal (isto é, as exigências que os cidadãos consideram necessárias para uma

respeitosa convivência).280

1.2 Estrutura básica do Direito Penal tradicional

Cumpre registrar, de plano, que a noção de Direito Penal “tradicional” não

se encaixa em uma única escola, mas pode ser extraída das características que

constituem o modelo liberal ou garantista, de origem ilustrada, cujo núcleo axiológico

foi sedimentado na primeira metade do século XX.

Trata-se de um modelo publicista de Direito Penal voltado para a proteção

dos direitos individuais e, portanto, alheio a critérios teológicos, ordens políticas

autoritárias ou tradições monárquicas, com o objetivo de assegurar, mediante a

vinculação do poder do Estado à lei abstrata, a liberdade do cidadão frente às

intromissões da autoridade.281

Exatamente por isso o Direito Penal surge formalizado, vinculado à

legalidade e à jurisdicionariedade, tendo por escopo a proteção dos bens jurídicos

mais importantes.

Essa finalidade constitui-se no valor central de justificação do sistema

penal, representando importante limite ao legislador na medida em que proíbe a

criação de tipos penais desvinculados da tutela de um bem jurídico determinado,

certo e verificável.282

A essencial vinculação do poder/dever de punir do Estado às

formalidades da lei e à proteção de bens jurídicos revelou-se através do princípio da

legalidade, que, no direito penal, representa a regra fundamental da legitimação da

autoridade sancionadora.283

Desse modo, conforme visto na primeira parte deste trabalho, a lei penal

deve descrever a conduta proibida e cominar as respectivas sanções penais,

280 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. por Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 31. 281 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 144-145. 282 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 33. 283 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 34.

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observadas as exigências da forma escrita (“lege scripta”), a descrição clara e

objetiva da conduta proibida (“lege certa”), a irretroatividade da lei gravosa (“lege

praevia”) e a proibição da analogia (“lege stricta”).

Assim entendido como um Direito Público, fortemente formalizado por

meio da legalidade e voltado para a proteção de bens jurídicos essenciais, o Direito

Penal persegue fins preventivos por intermédio da ameaça de pena.284

A prevenção negativa, geral e especial, é complementada com o seu

aspecto “positivo”, destinado a estabilizar a fidelidade da população ao direito e a

construir em cada um a predisposição de se comportar conforme as normas.285

A pena ou a medida de segurança devem recompor a ordem normativa e

não satisfazer os interesses da vítima, que deve buscar reparação pelos danos

sofridos no âmbito civil.286

Por fim, o princípio da culpabilidade busca afastar a responsabilidade

objetiva no âmbito penal, exigindo que o delito represente uma expressão pessoal

do sujeito, manifestada pela presença do dolo (elemento subjetivo genérico) ou,

excepcionalmente, da culpa.

1.2.1 Acerca das teorias do bem jurídico-penal

Como visto acima, o que se deseja é a construção de um conceito de

bem jurídico capaz de regrar a atividade do legislador no momento da criação de

novos tipos penais.

Em sua estrutura original, o princípio da legalidade orientava-se no

sentido da proteção de direitos subjetivos – de ordem individual – e, a partir destes,

voltava-se para a proteção dos direitos do Estado.

Como resumo desse ponto de vista, pode-se citar a seguinte passagem

de Guillermo Yacobucci:

284 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 34. 285 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 146. 286 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 35.

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El presupuesto fundamental de esta visión política era el contractualismo, que sostenía la convivencia política, los derechos y los deberes relacionados con ésta. Por eso, la defensa de los derechos subjetivos era lo que habilitaba la coerción del poder y al mismo tiempo le otorgaba su propia legitimidad. Sin embargo, el nivel de abstracción contractual era de tal magnitud – con excepción de Locke – que, propiamente hablando, esos “derechos” se expresaban sólo a través de uno: “la libertad”, entendida como autonomía o seguridad en el ejercicio de la voluntad individual.287

De fato, Feuerbach apoiava-se na teoria do contrato social para perceber

no delito a ofensa a direitos subjetivos, vistos como objeto de proteção de todo

preceito penal.288

A construção ilustrada da legalidade sofreu importante impacto com o

abandono da noção de direito subjetivo e sua substituição pela ideia de bem jurídico.

Atribui-se a Birnbaum a criação do conceito de bem jurídico-penal em

oposição à versão iluminista do crime como “violação de um direito subjetivo”, cuja

acepção não explica a punição de fatos lesivos de bens considerados de particular

importância, como, por exemplo, a moralidade pública e o sentimento religioso, que

não se enquadram no modelo de direito subjetivo.289

Partindo da mesma premissa jusnaturalista de cunho contratualístico,

Birnbaum atribui ao bem jurídico função crítico-penalista de limite à liberdade do

legislador, condicionando os fatos merecedores de pena àqueles efetivamente

danosos para a coexistência social, isto é, materialmente ofensivos aos bens

tutelados pelo Direito Penal.290

Paulatinamente, o centro da noção de bem jurídico passou a se relacionar

com a pessoa que vive em sociedade, com seu desenvolvimento dentro desta e seu

modo de comunicar-se com terceiros, num contexto geral de ordem e segurança

garantido pelas normas.291

287 YACOBUCCI, Guillermo Jorge. El dilema de la legalidad en el derecho penal de los derechos humanos. In.: MELLIÁ, Cancio; DÍEZ, Gómez-Jara (Coord.). Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Montevideo - Buenos Aires: Editorial B de f, 2006, v 2. p. 1077. 288 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 115. 289 FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009. p. 7. 290 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale. 3 ed. Milano: Cedam, 1992. p. 213. 291 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 79.

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Isto permitiu a Binding reafirmar o caráter publicista do comportamento

delitivo sem prejuízo da lesão suportada pela vítima. A partir de sua obra, “a

categoria do bem jurídico passa a ser analisada em função do direito positivo

(concepção juspositiva ou imanentista), em contraposição à concepção inicial

(metapositivas, transcendentalistas ou jusnaturalistas)”.292

Nessa extensão, o bem jurídico é concebido como um “estado valorado

pelo legislador”,293 a quem compete identificar tudo o que resulta valioso para o

normal desenvolvimento da sociedade.

Em seguida, a denominada teoria metodológica promoveu um verdadeiro

esvaziamento do conceito de bem jurídico ao deixar de compreendê-lo como

entidade preexistente à norma, ao mesmo tempo em que passou a considerá-lo

como valoração realizada em cada elaboração típica, identificado com o escopo da

lei penal.

Relembra Sheila Jorge Selim de Sales que a teoria metodológica “não

cogita da necessidade do instrumento penal no momento em que se realiza a

normatização do direito penal: o recurso à pena criminal se justifica pela simples

motivação do legislador”.294

Desse modo, a função político-criminal e de garantia do bem jurídico foi

sendo encurtada até reduzi-lo a mero instrumento formal para a interpretação das

normas, desaguando num “positivismo jurídico sem limites”.295

Estava aberto o caminho para que posições ideológicas fossem alçadas à

categoria de bem jurídico, doravante confundido por conceitos como “violação de um

dever”, “desvalor da atitude interior” e “traição de uma relação de fidelidade ao

Estado”.296

Exemplo concreto de desvirtuamento do conteúdo do bem jurídico, a

“Escola de Kiel”, formada por estudiosos alemães de ideologia nacional-socialista,

292 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p, 116. 293 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v.1. p. 340. 294 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 118. 295 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 118. 296 Cf., SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 119.

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elegeu o “são sentimento do povo” como “fator determinante da danosidade dos

fatos puníveis”.297

No mesmo diapasão, o Direito Penal socialista reformulou

sistematicamente o conceito de bem jurídico a fim de estabelecer como

potencialmente lesivas as condutas contrárias aos “interesses econômico-políticos

do mundo do trabalho e da classe operária que o representa”.298

Contudo, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a consolidação do ideal de

liberdade e democracia determinou uma renovação do pensamento crítico dos

critérios de legitimação da intervenção punitiva no âmbito de um moderno Estado de

Direito.299

Duas orientações procuraram recuperar a função de garantia do bem

jurídico como conceito que dirige a criação da norma penal: a sociológico-

personalista, para quem o bem jurídico emana de fontes metajurídicas; e a de ordem

constitucional, que estabelece para ele uma fonte superior, ou seja, a própria

Constituição.300

De acordo com a mensagem central da primeira corrente, o ponto de

partida para o estabelecimento do bem jurídico são os interesses individuais, ficando

fora do domínio do Direito Penal as condutas que se dirigem unicamente contra

concepções morais, valores socialmente compartilhados ou interesses do Estado.

Nesse sentido, adverte Hassemer:

[...] para tanto, a ideia de bem jurídico deveria ser definida com a maior precisão possível, a fim de que seu emprego realmente sirva para isolar condutas, como no caso do Direito penal sexual, que não pode abranger os bons costumes sexuais, e sim a auto-determinação sexual e a saúde e proteção da juventude.301

Desse modo, as incriminações penais no Estado Democrático de Direito

somente estarão legitimadas se direcionadas à proteção de bens jurídicos, pois, do

297 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 119. 298 Cf., GREGORI, Giorgio. Saggio sull’oggetto giuridico del reato. Padova: CEDAM, 1978, p. 41. 299 FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009. p. 11. 300 SELIM DE SALES, Sheila Jorge. Escritos de direito penal. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 121. 301 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 223.

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contrário, criar-se-á um ambiente propício à escalada do arbítrio, enfraquecendo a

posição das liberdades individuais frente ao poder punitivo estatal.

A segunda corrente orienta-se pela ideia dos valores inseridos na

Constituição, dando origem à denominada “concepção constitucionalmente

orientada do objeto da tutela penal”, que resultou no estabelecimento de novos

parâmetros para o Direito Penal, como se verá a seguir.

1.2.2 Princípio da legalidade e tutela de valores

Apesar de admitirem que o conceito de bem jurídico atua como limitador

do Direito Penal, visto que vincula a sanção à prática de fatos que provoquem lesão

real ou potencial a determinado bem jurídico, Jescheck e Weigend reconhecem sua

insuficiência para justificar a pena, pois não responde às questões politico-criminais

postas, como a preservação ambiental.302

Essa insuficiência fez com que o bem jurídico passasse a ser

compreendido como valor com relevância constitucional, ou seja, a intervenção do

poder punitivo se realiza para evitar comportamentos que venham a negar os

valores constitucionalmente assegurados. Desse modo, “se proíbe matar porque o

homicídio supõe a negação da vida, que é um valor juridicamente reconhecido”.303

Vale destacar que a relevância constitucional não é atribuída somente ao

bem que estiver expressamente previsto pela Constituição da República, mas a

todos os valores dela emanados, ainda que de forma indireta, bem como àqueles

que não guardem com ela nenhuma incompatibilidade.304

Estar-se-ia, assim, nos dizeres de Luís Greco, diante de um “conceito

político-criminal de bem jurídico vinculante para o legislador, porque ele seria

302 JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Trad. Miguel Olmedo Cardenete. 5.ed. Granada: Editorial Comares, 2002. p. 276. 303 MATEU, Juan Carlos Carbonell. Derecho penal: concepto y principios constitucionales. 3 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 33. 304 MATEU, Juan Carlos Carbonell. Derecho penal: concepto y principios constitucionales. 3 ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 37.

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extraído diretamente da constituição, sendo portanto dotado de hierarquia

constitucional”.305

Ao que tudo indica, essa é a corrente preferida dos autores brasileiros

que defendem o conceito político-criminal de bem jurídico.306

Nesse prisma, Maurício Antonio Ribeiro Lopes observa que, além de

elencar os bens jurídicos, à Constituição compete graduar e selecionar

criteriosamente com que intensidade penal eles deverão ser concretamente

tutelados pelo legislador.

E complementa:

Óbvio que não se espera que a Constituição comine as penas, mas que ofereça determinações de como estas devem – segundo um princípio geral de proporcionalidade e racionalidade – ser orientadas na composição de uma escala que represente o nível de dignidade constitucional de cada bem jurídico-penal.307

A problemática do conceito constitucional de bem jurídico reside no

caráter aberto e impreciso das Constituições, que acolhe inúmeros valores -

inclusive conflitantes entre si -, o que demonstra de plano sua incapacidade para

limitar o poder do legislador, especialmente diante de uma Constituição analítica

como a do Brasil.308

Pode-se afirmar que o bem jurídico, fundamentado nesta concepção

constitucional, acabou desfigurado pelas exigências da moderna “sociedade do

risco”, pouco podendo fazer para conter o interesse político-criminal em uma

criminalização ampla, cuja aptidão expansiva foi-se mostrando na medida em que se

305 GRECO, Luís. Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 82. 306 Nesse sentido, BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 96; GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: RT, 2002, p. 86; PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: RT, 1996, p. 67; STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério Público, 3 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 21. 307 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: RT, 2000. p. 660. 308 Cf., GRECO, Luís. Modernização do direito penal, bens jurídicos coletivos e crimes de perigo abstrato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 82.

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incorporavam os denominados bens jurídicos universais, representativos dos

interesses de “caráter coletivo, intangíveis e com vitimização difusa”.309

Considerando que a interpretação sobre a Constituição da República

deve ter caráter dinâmico para acomodar as mudanças sociais, políticas e culturais

que se vão produzindo, os valores coletivos nela positivados passaram à categoria

de bens jurídicos penais a fim de fazer frente aos perigos decorrentes da atividade

humana em assuntos relacionados aos direitos humanos, ao meio ambiente, à

ordem econômica, ao sistema financeiro, etc.

A necessidade de proteção desses bens jurídicos coletivos, pertencentes

a um número indeterminado de pessoas, decorre da ideia de que o Estado

Democrático de Direito encontra-se necessariamente comprometido com os direitos

fundamentais, o que demanda inexoravelmente a criação de novos tipos penais.310

O direito penal secundário311, então, determinou o avanço da

criminalização de condutas ofensivas a bens jurídicos supraindividuais e, portanto,

de titularidade generalizada, contribuindo para o fenômeno da expansão do Direito

Penal.

1.3 Estrutura básica do Direito Penal da atualidade

A função primordial do Estado Social e Democrático de Direito é garantir o

maior grau de liberdade através da menor interferência possível.

309 PIRES, Adriane Pinto Rodrigues da Fonseca. O princípio constitucional da legalidade da intervenção penal e tipicidade penal: algumas questões acerca do direito penal secundário. In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 10, n. 41, abr./jun. 2011, p. 117. 310 PIRES, Adriane Pinto Rodrigues da Fonseca. O princípio constitucional da legalidade da intervenção penal e tipicidade penal: algumas questões acerca do direito penal secundário. In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 10, n. 41, abr./jun. 2011, p. 119. Resgatando a função de garantia do bem jurídico, Regis Prado propõe o critério da “danosidade social” como “requisito necessário para assegurar a adequada relevância e dimensão social do interesse protegido”. In: PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: RT, 2. ed., 1997, p. 87. 311 Expressão utilizada, entre outros, por Jorge de Figueiredo Dias para designar “o conjunto de normas de natureza punitiva que constituem objeto da legislação extravagante e contêm, na sua generalidade, o sancionamento de caráter administrativo”. Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário. In: Direito penal secundário: estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. Coord. por D’ÁVILA, Fábio Roberto e SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. São Paulo: RT, 2006, p. 27. No mesmo sentido: PIRES, Adriane Pinto Rodrigues da Fonseca. O princípio constitucional da legalidade da intervenção penal e tipicidade penal: algumas questões acerca do direito penal secundário. In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 10, n. 41, abr./jun. 2011, p. 117.

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Dessa forma, sendo o Direito Penal o instrumento de mais grave

ingerência à disposição do Estado, supõe-se que sua atividade seja restringida ao

máximo, como forma de propiciar uma alta liberdade ao cidadão.

No dizer de Carbonell Mateu, “o ideal seria assegurar as liberdades sem

restringir nenhuma”; porém, como hoje isso é impraticável, deve-se contentar com

“as mínimas intervenções possíveis para conseguir tutelar o máximo de bens

jurídicos”.312

Todavia, a progressiva conquista de maior espaço de liberdade e de

democracia determinou uma reformulação crítica dos critérios de legitimação da

intervenção punitiva no âmbito de um moderno Estado de Direito.313

Os últimos anos têm-se caracterizado por um desmedido protagonismo

do Direito Penal, marcado pela complexidade das relações sociais, políticas,

econômicas e jurídicas da atualidade, que colocam em evidência as dificuldades

enfrentadas pelo princípio da legalidade para atender ao novo campo de interesse

do Direito Penal, qual seja, a proteção de bens jurídicos macrossociais, coletivos e

difusos, relacionados com a humanidade, o planeta e o futuro da população.314

Determinadas características do direito penal tradicional, com efeito,

foram, paulatinamente, perdendo vitalidade no curso do atual direito penal, onde

importantes mudanças se processaram e outras se anunciam.

A começar pela limitação do caráter público do direito penal determinada

pela crescente tendência de se aceitar a intervenção da vítima no processo penal.

Várias consequências decorrem de tal situação, como o aparecimento de

outros modos de extinção do delito ou de não aplicação da pena quando o imputado

transige com a vítima ou repara o dano.315

312 MATEU, Juan Carlos Carbonell. Reflexiones sobre el abuso del derecho penal y la banalización de la legalidad. In.: MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad Salamanca, 2001, v. I. p. 130. 313 FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009. p. 11. 314 YACOBUCCI, Guillermo Jorge. El dilema de la legalidad en el derecho penal de los derechos humanos. In.: MELLIÁ, Cancio; DÍEZ, Gómez-Jara (Coord.). Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Montevideo - Buenos Aires: Editorial B de f, 2006, v 2. p. 1078. 315 Cf., YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 40. No direito penal brasileiro pode-se citar o art. 74 da Lei nº. 9.099/1995 e, mais recentemente, os artigos 105 e 106 do anteprojeto de Código Penal (Requerimento nº. 756/2011).

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O novo papel da vítima também permite aceitar a ideia de um direito

penal de três vias, “em que a reparação passa a ter relevância ao lado das penas e

das medidas de segurança como opção válida dentro do processo penal”.316

As negociações e acordos firmados com o acusado igualmente interferem

no conceito de bem jurídico, pois afastam o caráter público do objeto da tutela penal

e resgatam a ideia de direito subjetivo, de contorno “claramente individual e

disponível em muito maior medida”.317

Percebe-se, ainda, a afirmação da teoria da imputação objetiva como

instrumento complementar das teorias causais do resultado, fazendo com que a

acusação, para além de comprovar meros cursos causais, impute consequências ao

réu (ações ou resultado). 318

Por outro lado, a necessidade de se atender a situações especiais em

áreas complexas da denominada “sociedade do risco”, enfraquece as exigências

decorrentes do princípio da legalidade ao mesmo tempo em que favorece a

proliferação de normas penais em branco319, crimes omissivos320, de perigo

abstrato321 e a abusiva utilização de elementos normativos no tipo, entregando cada

vez mais ao intérprete a tarefa de realizar a conformação final da conduta proibida.

Desse modo, os conceitos da teoria do delito vão se espiritualizando,

perdendo contato com a realidade, fazendo com que as obrigações e deveres

predominem como objeto de proteção do tipo penal.

Como visto, as necessidades valorativas do Direito Penal o tornam

extremamente sensível às mudanças verificadas no âmbito político e jurídico, assim

como aos novos horizontes axiológicos determinados pela realidade social da pós-

modernidade.

316 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 41. 317 YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 42. 318 Cf., YACOBUCCI, Guillermo Jorge e GOMES, Luiz Flávio. As grandes transformações do direito penal tradicional. São Paulo: RT, 2005, p. 46. 319 Especialmente nos campos da economia, da regulação do mercado bancário e financeiro, do meio ambiente e da saúde pública. 320 No momento atual, exige-se das pessoas que se ocupam das atividades de risco, como médicos, farmacêuticos, gerentes de banco, financeiras etc., que impeçam a concretização do perigo. Observe-se, a propósito, a série de obrigações e responsabilidades atribuídas às entidades bancárias e financeiras criadas pela Lei nº. 9.613/1998. 321 O fundamento do incremento dos tipos de perigo abstrato reside na compreensão de que a tutela penal dos bens macrossociais é tão grave que deve se antecipar a lesão, punindo-se de imediato a situação de perigo.

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Foi assim que o direito penal mínimo, idealizado tanto pelas principais

teorias legitimadoras do Direito Penal322 como pelo funcionalismo redutor de

Zaffaroni,323 fracassou diante das “necessidades de tutela em uma sociedade cada

vez mais complexa”.324

Com efeito, a difundida e almejada contenção do Direito Penal parece não

mais repercutir na seara legislativa, marcada que se encontra pelo acolhimento de

tipos penais destinados a proteger bens jurídicos de importância duvidosa, pela

indiscriminada elevação do rigor punitivo e, sobretudo, pelo afrouxamento dos

princípios político-criminais de garantia.

Sem negar o abusivo recurso à legislação penal por parte do parlamento,

inclusive como forma de oferecer aparente solução aos inúmeros problemas sociais,

“deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração de princípios, que

tranquiliza a opinião pública) o que deveria resolver-se no nível da instrumentalidade

(de proteção efetiva)”, Silva Sánchez acrescenta às causas do fenômeno a mudança

de expectativa das diversas camadas sociais em relação ao papel que cabe ao

Direito Penal, o que resulta em “verdadeira demanda social por mais proteção”, a

qual, em regra, é canalizada de modo irracional como “demanda por mais

punição”.325

322 Reconhecem a legitimidade do Estado para exercer o jus puniendi e se orientam pela redução do Direito Penal como forma de se manter mais vigoroso e eficaz. Classificam-se em três grandes grupos: teorias absolutas, relativas e mistas. As primeiras negam qualquer fim utilitário ou preventivo ao Direito Penal, enxergando a pena como um imperativo categórico da ideia de justiça (Kant), ou como uma exigência da razão, constituindo-se numa resposta estatal que anula as consequências do crime praticado (Hegel). Para as teorias relativas, a pena previne novos delitos diante de sua simples ameaça (prevenção geral negativa); restaura a confiança na norma (prevenção geral positiva), garante a estabilidade do sistema e a integração social (Jakobs) e evita a reincidência (prevenção especial). Por fim, as teorias mistas atribuem à pena a prevenção geral subsidiária de delitos (Roxin) e dos castigos injustos (Ferrajoli). 323 A par de negar a legitimidade do direito de punir do Estado, o autor reconhece que a sociedade de hoje não prescinde da reação punitiva oficial, cuja irracionalidade deve ser contida através de sua redução máxima como tática para que seja abolida no futuro. Essa função redutora, todavia, é realizada de maneira inteligente, atuando como um filtro de contenção do poder punitivo. Em suas palavras: “Si se entiende que la tarea del derecho penal es de contención y filtro de la irracionalidad y la violencia, las compuertas del dique penal deben funcionar inteligentemente. No se trata de que pase cualquier agua ni en cualquier forma, sino que su cantidad, calidad y forma de paso deben ser predeterminadas. El poder punitivo es un hecho político de fuerza irracional, y el derecho penal debe ceder solo a la parte de este que menos comprometa la racionalidad: la selección penal debe ser racional para compensar, hasta donde pueda, la violencia selectiva del poder punitivo” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 376). 324 Expressão tomada da exposição de motivos do Código Penal espanhol de 1995. 325 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. por Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 29-30. O autor questiona ainda o fato de as instituições do Estado não somente acolherem tais

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O referido autor procede a uma investigação das causas determinantes

do que denomina “expansão do Direito Penal”, justificando o fenômeno a partir de

dez circunstâncias, a saber: os “novos interesses”; o efetivo aparecimento de novos

riscos; a institucionalização da insegurança; a sensação social de insegurança; a

configuração de uma sociedade de “sujeitos passivos”; a identificação da maioria

com a vítima do delito; o descrédito de outras instâncias de proteção; os gestores

“atípicos” da moral; a atitude da esquerda política e o “gerencialismo”.326

Ao objeto de estudo do presente trabalho interessa destacar essas

causas da expansão do Direito Penal.

1.3.1 Das causas de expansão do Direito Penal

Em primeiro lugar, dado que sua missão é proteger os bens jurídicos mais

importantes, torna-se razoável a concessão de um espaço para crescimento, a fim

de abrigar tipos penais voltados para a proteção de bens jurídicos determinados

pelos “novos interesses”.

Distintas causas podem configurar a ampliação dos bens jurídico-penais,

como as constantes mutações da realidade social, especialmente nas sensíveis

áreas econômica e financeira; a deterioração de situações normalmente abundantes

que se tornaram paulatinamente escassas e, por isso, passaram a gozar de um

valor que antes não tinham, como, por exemplo, o meio ambiente; ou o incremento

de um valor determinado pela evolução social e cultural, como o que recai sobre o

patrimônio histórico-artístico, entre outros fatores.

Em tais situações, encontra-se justificado o incremento do Direito Penal,

devendo-se evitar tão somente seu crescimento desarrazoado, impulsionado pela

proteção de “novos interesses” sem dignidade penal, e os demais fatores

mencionados por Silva Sánchez.327

demandas irracionais sem nenhuma reflexão, sequer para introduzir algum elemento de racionalização, como ainda as realimentam em termos populistas. 326 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. por Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 33. Cada causa da expansão do Direito Penal foi devidamente identificada e comentada pelo autor no primeiro capítulo de sua obra (p. 33-96). 327 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 34-35.

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Em segundo lugar, o efetivo aparecimento de novos riscos referentes a

danos não delimitáveis, globais e quase sempre irreparáveis, que afetam todos os

cidadãos e surgem de decisões humanas, levou à caracterização da denominada

“sociedade do risco”.

Com efeito, as variáveis que interferem no âmbito econômico e o

aparecimento de inovações tecnológicas sem paralelo em toda a história da

humanidade promovem repercussões positivas e negativas ao bem-estar individual.

Sem embargo, Silva Sánchez destaca seu aspecto negativo:

[...] configuração do risco de procedência humana como fenômeno social estrutural [...] representado pelos danos mais ou menos diretos para os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos etc.) que derivam das aplicações teóricas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações etc.328

Além disso, o aspecto competitivo imposto pela sociedade tecnológica

deslocou para a marginalidade considerável número de trabalhadores, “que

imediatamente são percebidos pelos demais como fonte de riscos pessoais e

patrimoniais”.329

O progresso técnico dá lugar ainda ao incremento da delinquência dolosa

tradicional mediante a adoção de novas técnicas como instrumento capaz de

produzir resultados especialmente lesivos, além de fazer surgir novas modalidades

delitivas para a proteção de bens jurídicos forjados pela evolução tecnológica, com

destaque para a denominada “ciberdelinquência” e o desenvolvimento de novas

O autor cita um exemplo de lei que promove, a um só tempo, a expansão justificada e injustificada do Direito Penal: “a entrada maciça de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotráfico) em um determinado setor da economia provoca uma profunda desestabilização desse setor, com importantes repercussões lesivas. É, pois, provavelmente razoável que os responsáveis por uma injeção maciça de dinheiro negro em um determinado setor da economia sejam sancionados penalmente pela comissão de um delito contra a ordem econômica. Mas, vejamos, isso não faz, por si só, razoável a sanção penal de qualquer conduta de utilização de pequenas (ou médias) quantidades de dinheiro negro na aquisição de bens ou retribuição de serviços. A tipificação do delito de lavagem de dinheiro é, enfim, uma manifestação de expansão razoável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance muito limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação as quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante)”. 328 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 35-36. 329 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 36.

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formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem

um dos novos riscos para a sociedade e o Estado.330

Por último, o problema nuclear deflagrado pelos novos riscos diz respeito

às consequências lesivas da “falha técnica”, uma vez que se admite a inevitabilidade

de certo percentual de acidentes graves e, portanto, restrito ao âmbito próprio do

risco permitido.331

Como terceira causa da expansão, a “institucionalização da insegurança”

demonstra o modo como a sociedade pós-industrial, para além de uma “sociedade

de riscos”, apresenta-se com outras características individualizadoras que a

demarcam como uma sociedade de “objetiva” insegurança.332

O emprego de meios técnicos, a comercialização de produtos ou a

utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e

somente se manifestarão muito depois da realização da conduta, “introduzem um

importante fator de incerteza na vida social”.333

O problema, portanto, não radica mais nas decisões humanas que geram

os riscos, mas sim nas decisões humanas que os distribuem.334

Tudo isso torna evidente a enorme complexidade das relações sociais de

hoje, em que a interação individual alcançou níveis até então desconhecidos em

face das necessidades de cooperação e de divisão funcional.

Como, em muitos casos, as consequências lesivas somente serão

conhecidas a longo prazo, gerando incertezas sobre a causalidade, o legislador tem

330 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 36. 331 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 37. 332 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 37. 333 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 37. Vale reproduzir o seguinte trecho: “O cidadão anônimo diz: ‘Estão nos matando, mas não conseguimos ainda saber com certeza nem quem, nem como, nem a que ritmo’. Em realidade, faz tempo que os especialistas descartaram a excessivamente remota possibilidade de neutralizar os novos riscos, significando que é preferível aprofundar-se nos critérios de distribuição eficiente e justos dos mesmos – existentes e em princípio não neutralizáveis”. Para confirmar essa observação, o autor cita os conhecidos episódios das “vacas loucas”, da “gripe aviária” e da “gripe suína”. 334 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 37.

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evitado os tipos de lesão e recorrido cada vez mais aos tipos de perigo,

especialmente em sua configuração formal (perigo presumido).335

Por outro lado, a crescente interdependência dos indivíduos na vida

social, prossegue Silva Sánchez, dá lugar a que, sempre em maior medida, a

indenidade de bens jurídicos dependa da realização de condutas positivas de

controle de riscos por parte de terceiros.336

Tal fenômeno determinou também a atual tendência de crescimento dos

delitos de omissão imprudente, a ponto de Klaus Günther elevá-los à categoria de

novo paradigma do conceito de delito.337

Um último aspecto vinculado à desorientação causada pela

“institucionalização da insegurança” refere-se ao fenômeno da “criminalidade de

massas”, que enxerga o “outro” como inimigo e converge para as propostas

clássicas de movimentos como o de “Lei e Ordem”, cuja ideologia tem-se expandido

para setores sociais bem mais amplos.

A quarta causa da expansão do Direito Penal identificada por Silva

Sánchez refere-se à “sensação geral de insegurança”.

Deve-se concordar com Silva Sánchez quando afirma que os meios de

comunicação, apesar de não criarem o medo da criminalidade, incrementam

claramente esse fenômeno, que pode ser traduzido como uma “elevadíssima

sensibilidade ao risco”, desaguando em um apelo irracional por mais segurança

mediante a ampliação da proteção penal e a “flexibilização das garantias”.338

Em quinto lugar, também interessa ao estudo da legalidade a crescente

tipificação de delitos de perigo, incrementada pela “configuração de uma sociedade

335 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 38. 336 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 38-39. 337 GÜNTHER, KLAUS. De la vulneración de un derecho a la infracción de un deber. Un <cambio de paradigma> en el Derecho Penal?. In.: La insostenible situación del Derecho Penal. Granada: Editorial Comares, 2000. p. 489-530. Segundo o autor, o estudo do “desenvolvimento continuado” da concepção de delito, desde sua elaboração como “vulneração de um direito”, passando pela predominante definição de “lesão de um bem jurídico”, deve abranger desde o dever de evitar ingerências ao direito subjetivo de outrem até o exame da pluralidade de deveres indeterminados de organizar o uso de uma liberdade plena de riscos, de modo a evitar a exposição a perigo ou a lesão de bens jurídicos, configuradores da situação atual em que o delito de omissão imprudente converte-se no paradigma do conceito de delito. 338 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 51.

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de ‘sujeitos passivos’”. Nesse ponto, o autor parece se reportar à atual sociedade

brasileira:

Pensionistas, desempregados, destinatários de serviços públicos educacionais, sanitários etc., pessoas ou entidades subvencionadas (beneficiários, enfim, da transferência de riqueza, mais que criadores dos excedentes objetos de transferência) se convertem nos cidadãos, os eleitores por excelência. Inclusive com relação ao cidadão abstrato se realça sua dimensão “passiva” de consumidor, ou de sujeito paciente dos efeitos nocivos do desenvolvimento (sobre o meio ambiente, por exemplo).339

Diante disso, a classe ativa e empreendedora tende a se encolher cada

vez mais, em um movimento oposto ao período marcado pelo desenvolvimento

industrial do Século XIX e primeira metade do Século XX.

A sobrevaloração essencial da segurança diante da liberdade de ação

implica a diminuição dos níveis de risco permitido, extraído a partir da ponderação

dos custos e benefícios da realização de determinada conduta.340

Ocorre que a fórmula do risco permitido por meio de uma

proporcionalidade entre custos e benefícios, ou entre liberdade de comportamento e

colocação em perigo de bens, vê-se prejudicada pela falta de critérios adequados de

valoração, sem os quais todo cálculo perde sua validade.341

As indagações de Jakobs são desconcertantes: quanto vale uma vida

humana no tráfego viário, ou, mais concretamente, no tráfego viário de particulares

num feriado? Que valor corresponde ao risco existente para a saúde no posto de

trabalho em comparação com as condições de produção rentáveis? Onde está na

educação de um filho o ponto ótimo entre a liberdade, carregada de riscos, e a

tutela, que necessariamente comporta restrições ao livre desenvolvimento?342

339 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 52. 340 Jakobs explica o resultado de um cálculo de custos e benefícios: “o benefício estaria constituído pela liberdade de comportamento que se obtém com ajuda da permissão de riscos, enquanto que os custos seriam a perda daqueles bens a cuja destruição conduz o risco, devendo ambos os lados manter uma relação adequada” (JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Trad. por André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2000. p. 36). 341 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Trad. por André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2000. p. 36. 342 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Trad. por André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2000. p. 36.

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A resposta a tais perguntas escapa do âmbito jurídico para se vincular

aos aspectos identificadores da própria sociedade, pois “o socialmente adequado

precede ao Direito” e “sua legitimação se obtém do fato de que constitui uma parte

da configuração social que deve ser preservada”.343

Desse modo, “a liberdade negativa diante do dano se impõe sobre a

liberdade positiva de ação”, resultando na inevitável “transformação do infortúnio em

injusto” e, consequentemente, na ampliação da esfera de atuação do Direito

Penal.344

A sexta causa da expansão do Direito Penal é a que mais de perto

interessa ao presente trabalho.

Trata-se da “identificação da maioria com a vítima do delito”, favorecida,

inclusive, pela retro analisada configuração de uma sociedade formada

majoritariamente pela classe passiva.345

O Direito Penal já não é mais visto como mecanismo de proteção do

indivíduo em face do poder punitivo estatal, mas sim como instrumento legítimo para

promover a segurança “por meio” do Estado.

A concepção da “Carta Magna do delinquente”, cunhada por Von Liszt, foi

estendida para abrigar também a vítima a partir do momento em que o Direito Penal

passou a se projetar não apenas como instrumento de opressão do delinquente

desvalido, mas, sobretudo, como “a espada da sociedade contra a delinquência dos

poderosos”.346

343 JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Trad. por André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2000. p. 37. 344 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 62: “É como se em nossas sociedades fosse sempre necessário, diante da produção do dano, o valor simbólico-comunicativo da imputação”. 345 Ao citar Forsthoff, Silva Sánchez demonstra como a insegurança se relaciona com a perda do domínio, de uma orientação clara e o incremento da dependência: “Deste modo o homem moderno não somente vive no Estado senão também do Estado. A perda do espaço vital dominado e das reservas existenciais que o acompanham lhe expõem ao Estado. Sabe-se dependente do Estado e lhe transfere a necessidade de segurança e garantia de sua existência, que já não encontra satisfeita em sua frágil esfera individual” (SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 64). 346 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 65: “Vale dizer que se começa a constatar a operatividade do Direito Penal contra os powerful, e não somente contra os powerless. Ao passo que os representantes dos powerless vão alcançando crescentes parcelas de influência, política ou ao menos social (movimento associativo, mass media etc.).”

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E uma ideia da lei penal como a “Carta Magna da vítima” não pode deixar

de interferir no modo de se trabalhar o princípio da legalidade.

Com efeito, os sintomas mais agudos dessa compreensão podem ser

sentidos na forma como a doutrina e a jurisprudência têm contornado as proibições

dos costumes (lex scripta) e da analogia (lex stricta) na interpretação da lei penal.347

Para Silva Sánchez:

[...] não causa surpresa constatar interpretações restritivas de base teleológica, quando não autênticas hipóteses de redução teleológica, no campo das eximentes e atenuantes, ao tempo que a própria flexibilidade dos tipos propicia contínua extensão de seu alcance.348

A política criminal intervencionista e expansiva é aclamada por muitos

setores sociais como forma de reação contra a criminalidade dos poderosos,

representada pela criminalidade organizada (narcotráfico, terrorismo, pornografia

infantil), pela criminalidade das empresas (delitos fiscais, contra o meio ambiente,

contra as relações de consumo – saúde e interesses econômicos), pela corrupção

político-administrativa ou abuso de poder e, inclusive, pela violência doméstica e

pelo assédio sexual.349

Ocorre que, a par da maior operatividade do Direito Penal contra os

poderosos (powerful), a seletividade do sistema penal ainda reina absoluta,

afetando, em sua esmagadora maioria, os delinquentes mais débeis, recrutados

entre as camadas mais pobres da sociedade (powerless).

Daí a advertência de Silva Sánchez:

[...] a aposta, que parece decidida, por uma expansão do Direito Penal, que conglobe a relativização dos princípios de garantia e regras de imputação no âmbito da criminalidade dos poderosos, sendo criticável em si mesma, pode incorrer ademais no erro adicional de repercutir sobre a criminalidade em geral, incluída a dos

347 Mais uma vez, pode ser aqui citada a recalcitrante interpretação acerca dos conceitos de “arma”, “violência” e “momento consumativo” nos crimes patrimoniais realizada pela jurisprudência nacional, bem como as fórmulas matemáticas empregadas para justificar a condenação com base no reconhecimento informal realizado pela vítima, nas suas declarações e nos depoimentos de policiais responsáveis pela ocorrência. 348 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 67-68. 349 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 68.

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powerless, algo que aparentemente se ignora na hora de propor as reformas antigarantistas.350

O “descrédito de outras instâncias de proteção” – sétima causa – também

contribui decisivamente para a expansão do Direito Penal.

As situações antes mencionadas poderiam ser resolvidas através de

mecanismos não jurídicos, como as normas da moral social, ou mesmo por meio de

normas jurídicas não penais, como o Direito Civil e o Administrativo.

As normas da moral social, como resultado das representações que os

integrantes de uma comunidade têm em comum, exprimem o conhecimento coletivo

e confrontam o atuar do indivíduo com seus critérios.

Ocorre que, conforme percebido por Silva Sánchez, “as sociedades

modernas, nas quais durante décadas se foram demolindo os critérios tradicionais

de avaliação do bom e do mau, não parecem funcionar como instâncias autônomas

de moralização, de criação de uma ética social que redunde na proteção de bens

jurídicos”.351

Sem a reprovação social, a moral deixa de exercer seu poder sobre o

indivíduo e, em consequência, acaba favorecendo a escalada da delinquência.

O Direito Civil, por sua vez, não consegue mais expressar a reprovação

do ilícito, especialmente com o advento do instituto do seguro, pois, se o dano está

previamente segurado, o agente não tem por que manter os níveis de diligência.352

Na expressão de Schünemann, “o direito civil, no fundo, não tem

nenhuma função repressiva, senão uma função compensatória, a qual não impede a

lesão do bem jurídico, mas a pressupõe”.353

No campo do Direito Administrativo, o princípio da oportunidade, a

burocratização e a corrupção têm debilitado os aparelhos de proteção da

350 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 70-71. 351 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 70-75. 352 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 78: “o modelo do seguro tem como consequência um decréscimo da eficácia preventiva que o direito de responsabilidade civil por danos poderia ter em relação a condutas individuais danosas”. 353 SCHÜNEMANN, Bernd. El derecho penal es la ultima ratio para la protección de bienes jurídicos! Sobre los límites inviolables del derecho penal en un Estado liberal de derecho. Trad. por Ángela de la Torre Benítez. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2007. p. 54.

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Administração Pública, o que, por si só, demonstra sua incapacidade para substituir

o Direito Penal na proteção dos bens jurídicos mais importantes.354

Como fator adicional da expansão – o oitavo –, Silva Sánchez descortina

o surpreendente apoio dos “gestores atípicos da moral”, expressão utilizada para

designar a mudança de posição de boa parte da criminologia de esquerda que

desaguou no surgimento de alguns novos defensores da moral coletiva e do recurso

ao Direito Penal.355

Se, antes, o movimento da “Lei e Ordem” era apoiado pela direita

conservadora, hoje encontra adeptos mais fervorosos entre as associações

ecologistas, feministas, de consumidores, de moradores, pacifistas,

antidiscriminatórias ou, em geral, as organizações não governamentais (ONGs)

defensoras dos direitos humanos.

Todas elas “encabeçam a tendência de uma progressiva ampliação do

Direito Penal no sentido de uma crescente proteção de seus respectivos

interesses”.356

Diante dessa cegueira histórica irrompe a política criminal da social-

democracia europeia (nona causa), baseada no discurso da segurança por meio do

Direito Penal a fim de favorecer os mais débeis: “enquanto os ricos habitam em

bairros tranquilos com segurança privada, a delinquência das ruas ameaça

principalmente as pessoas mais humildes que vivem nos bairros mais perigosos”.357

Como décima e última causa da expansão do Direito Penal, Silva

Sánchez aponta um fator colateral: o “gerencialismo”.

Após enfatizar que a ingênua busca por segurança no seio de uma

coletividade que se autocompreende como vítima conduz a certa resistência ao

formalismo e às garantias do direito e do processo penal, vistos como “sutilezas que

se opõem à uma solução real dos problemas”, o autor critica os modelos de justiça

354 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 70-79: “Desconfia-se das Administrações Públicas nas quais se verifica uma tendência a buscar, mais do que meios de proteção, cúmplices de delitos socioeconômicos de várias espécies”. 355 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 80-81. 356 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 82. 357 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 85.

- 121 -

negociada, “nas quais a verdade e a justiça ocupam, quando muito, um segundo

plano”.358

Com efeito, além de se confrontar com os princípios norteadores de um

Estado de Direito, o abandono das formalidades do Direito Penal provoca inegável

retração da eficácia preventiva da pena, que resultará em uma compensação

extraída a partir do aumento do rigor punitivo.

Desse modo, segundo a visão do autor, somente através de uma reação

impecável “será possível ir reduzindo progressivamente o conteúdo da reação em si;

isso até o dia, em um futuro distante, em que a pura forma, a mera declaração

simbólica da comissão de um ato delitivo, surta o efeito preventivo perseguido”.359

1.3.2 A relativização do princípio da legalidade no Direito Penal brasileiro

Diante dessa evidente transformação do sistema penal tradicional, o

problema da legalidade passou a ocupar um lugar central, “já que é impossível falar

de mudança sem levar em conta o princípio fundamental que regula o exercício da

atividade punitiva do poder político”.360

Basta simples cotejo da recente legislação penal do ordenamento jurídico

brasileiro para se perceber o incremento dos tipos penais vinculados à proteção de

bens jurídicos universais como, por exemplo, o sistema financeiro (Lei n.º

7.492/1986), a tributação (Lei n.º 8.137/1990), o meio ambiente (Lei n.º 9.605/1998),

a lavagem de dinheiro (Lei n.º 9.613/1998), as drogas (Lei n.º 11.343/2006) e o

interesse público (Lei n.º 12.550/2011).

Note-se, igualmente, que, não raras vezes, os respectivos tipos penais

são formulados com deformações que se chocam frontalmente com as garantias do

princípio da legalidade.

358 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 90. 359 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 95. 360 YACOBUCCI, Guillermo Jorge. El dilema de la legalidad en el derecho penal de los derechos humanos. In.: MELLIÁ, Cancio; DÍEZ, Gómez-Jara (Coord.). Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Montevideo - Buenos Aires: Editorial B de f, 2006, v 2. p. 1073.

- 122 -

Nos crimes contra o sistema financeiro (Lei n.º 7.492/1986), sobressaem

a vagueza e a imprecisão de expressões como “gerir fraudulentamente” (art. 4º,

caput) e “gestão temerária” (art. 4º, parágrafo único), ofensivas à taxatividade.

O mesmo procedimento se repete na execução penal (Lei n.º 7210/1984).

A Lei n.º 10.792/2003 estabeleceu o “regime disciplinar diferenciado” para o

sentenciado que praticar fato previsto como crime doloso que ocasione “subversão

da ordem ou disciplina internas” (art. 52, LEP), apresentar “alto risco para a ordem

ou a segurança do estabelecimento” (art. 52, § 1º, LEP) ou sobre o qual “recair

fundadas suspeitas de envolvimento de envolvimento ou participação, a qualquer

título, em organizações criminosas” (art. 52, § 2º, LEP).361

Em relação aos crimes contra a ordem tributária, a exigência do trânsito

em julgado na instância administrativa acerca da redução ou supressão do tributo

(art. 1º da Lei n.º 8.137/1990) criou a “estranha figura do fato com tipicidade

pendente de determinada condição”.362

Por fim, a crescente preferência pelos crimes de perigo abstrato, como os

tipos penais da Lei dos Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/1998), da Lei Antidrogas

(Lei n.º 11.743/2006), do Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.926/2003) e do

Código de Trânsito (Lei n.º 9.503/1997), cujo delito de embriaguez ao volante (art.

306) transmudou-se de perigo concreto para perigo abstrato (Lei n.º 11.705/2008),

sacrifica as bases do Direito Penal liberal em nome da simplificação da

imputabilidade, sem que se realize a prometida melhora na prevenção.

A crítica de Daniela Ferreira Marques é contundente:

Na realidade, a tese do perigo abstrato é insustentável, porque importa em presunção absoluta de resultado. Diga-se mais: a tese do perigo abstrato é insustentável, ainda que a conduta típica contenha o perigo como elemento integrante de sua descrição, porque há violação ao princípio da causalidade e a violação à própria culpabilidade. Por último, a tese do perigo abstrato é insustentável,

361 A respeito do regime disciplinar diferenciado, Paulo César Busato o considera produto de um direito penal do inimigo e adverte sobre o perigo representado por uma política criminal equivocada, defendida no Brasil como uma aposta de futuro (BUSATO, Paulo César. Régimen disciplinario diferenciado como producto de um derecho penal del enemigo. In.: ALFARO, Luis Reyna; TERÁN, Sergio Cuaresma (Coord.). Derecho penal y estado de derecho: reflexiones sobre la tensión entre riesgos y seguridad. Montevideo-Buenos Aires: Editorial B de F, 2008. p. 1-16. 362 PIRES, Adriane Pinto Rodrigues da Fonseca. O princípio constitucional da legalidade da intervenção penal e tipicidade penal: algumas questões acerca do direito penal secundário. In.: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 10, n. 41, abr./jun. 2011, p. 122.

- 123 -

porque condutas de mera desobediência ou de mera infração são levadas a tipos-de-ilícito.363

Essa opção pelos crimes de perigo abstrato demonstra que, para os

novos desenvolvimentos da política criminal, o ilícito penal deixou de representar

uma causação de dano e se transformou em simples atividade que o legislador

incrimina.364

Vale destacar os dizeres de Hassemer:

O combate, ou melhor, o tratamento do crime parece muito pequeno como tarefa do Direito Penal. Agora, trata-se de guarnecer as políticas de subsídios, do ambiente, da saúde e das relações internacionais. De repressão pontual a ofensas concretas a bens jurídicos, converte-se em prevenção abrangente de situações problemáticas.365

A relativização do princípio da legalidade sob o pretexto – nunca

demonstrado – de uma política criminal mais eficiente no combate à criminalidade

secundária afronta o contexto constitucional, conforme amplamente demonstrado

por Gustavo Silva em sua dissertação de mestrado:

Enfim, a relativização de princípios e garantias fundamentais, notadamente do princípio da legalidade, encontra óbice dogmático instransponível no contexto constitucional. A função de garantia do princípio da legalidade é essencial à criação do ambiente de segurança jurídica, premissa fundamental inerente ao Estado Democrático de Direito. Além disso, mitigar o princípio da legalidade não consiste em medida de política criminal eficiente. Tal relativização, ao permitir a arbitrariedade estatal, favorece à insegurança jurídica e contribui para o desenvolvimento de um ambiente propício à criminalidade.366

363 MARQUES, Daniela de Freitas. Sistema jurídico-penal do perigo proibido e do risco permitido. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 2008, p. 69. 364 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 228. Para maior aprofundamento dos crimes de perigo abstrato na legislação brasileira, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato, 2 ed., São Paulo: RT, 2010. 365 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 227. 366 SOUZA E SILVA, Gustavo Henrique. O princípio da legalidade e o direito penal econômico: análise sob a perspectiva do estado democrático do direito. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, 2011, p. 164.

- 124 -

Desse modo, o direito penal secundário se obriga também a manter

absoluta fidelidade aos princípios e garantias individuais, sem nenhuma concessão

ou relativização, preferindo-se a mediação de outros ramos do direito caso as

exigências da legalidade tornem inviável a elaboração típica.

1.4 Concepções sobre o limite e o alcance do princí pio da legalidade

1.4.1 Nota introdutória: o surgimento de bases teóricas diversas para a proteção dos

bens jurídicos supraindividuais

As referências à crise, expansão e relativização das garantias constituem

um dos tópicos mais importantes no debate dogmático dos tempos atuais.

As páginas anteriores trataram de realçar que o princípio da legalidade,

apesar de se desenvolver há mais de dois séculos, ainda não se impôs plenamente

no ordenamento jurídico-penal e agora corre o risco de se deteriorar diante da

relativização de seus preceitos, tanto na órbita do Poder Legislativo, por ocasião da

elaboração de novos tipos penais, como no âmbito do Poder Judiciário, em sua

função interpretativa.367

A complexidade atual das relações sociais, políticas, econômicas e

jurídicas evidenciam que não se pode responder de modo totalmente preciso à

pergunta acerca de como o princípio da legalidade poderá atender aos objetivos de

segurança e objetividade no Direito Penal contemporâneo.

Por outro lado, a ampliação do campo de interesse do Direito Penal e as

exigências sociais têm determinado uma notória transformação da técnica

legislativa, “proporcional à distância que existe entre o jus puniendi aplicado à tutela

dos direitos subjetivos e o poder punitivo do Estado dirigido à proteção, realização

ou reafirmação dos objetivos comunitários, bens macrossociais, programas de

desenvolvimento, interesses difusos etc”.368

367 O tipo penal funciona, ao mesmo tempo, como instrumento ou veículo de aplicação do princípio da legalidade e objeto de valoração do intérprete, de modo que sua existência é indispensável para a formação do juízo de tipicidade, primeiro elemento do conceito analítico de crime. 368 YACOBUCCI, Guillermo Jorge. El dilema de la legalidad en el derecho penal de los derechos humanos. In.: MELLIÁ, Cancio; DÍEZ, Gómez-Jara (Coord.). Derecho penal del enemigo: el discurso penal de la exclusión. Montevideo - Buenos Aires: Editorial B de f, 2006, v 2. p. 1079.

- 125 -

Tal desafio fez surgir bases teóricas diversas para seu enfrentamento,

sendo inerente a todas elas a construção de um sistema de legalidade diferenciado.

A propósito, vale delinear as duas principais correntes que procuram

responder a essa indagação.

1.4.2 Direito Penal de duas velocidades

Após diagnosticar com bastante lucidez as causas que determinaram a

expansão do Direito Penal, Silva Sánchez se mostra cético quanto a um retorno ao

“velho e bom Direito Penal liberal”, reduzido e limitado à proteção da vida, da saúde,

da liberdade e do patrimônio.

Nesse cenário, que reputa ideal do ponto de vista academicista, todas

essas normas penais voltadas para a tutela dos bens jurídicos universais deveriam

ser “devolvidas” ao Direito Administrativo sancionador.

Todavia, a configuração e as aspirações das sociedades atuais mostram

o oposto, ou seja, cada vez mais, o Direito Penal atrai sanções importadas do Direito

Administrativo, “com regras de imputação de rigidez decrescentes e no campo de

princípios político-criminais flexibilizados”.369

Assim resignado com a impossibilidade de se frear a “expansão” através

do fortalecimento de outras instâncias de proteção, Silva Sánchez propõe uma

configuração dualista do sistema do Direito Penal, com regras de imputação e

princípios de garantia de dois níveis, correspondentes às duas velocidades do

Direito Penal: uma primeira velocidade, destinada aos delitos punidos com pena

privativa de liberdade, nos quais devem prevalecer os princípios político-criminais

clássicos, as regras de imputação e as garantais processuais; e uma segunda

velocidade, para os delitos punidos com penas restritivas de direitos ou pecuniárias,

quando aqueles princípios e regras poderiam ser flexibilizados proporcionalmente à

menor intensidade da sanção.370

369 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. por Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 178. 370 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. por Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 2. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 193.

- 126 -

1.4.3 Direito Administrativo sancionador

Outra linha defende que a maior parte do fenômeno expansivo do Direito

Penal deve ser reconduzida ao Direito Administrativo sancionador.

Considerando que a função preventiva geral só é alcançada quando as

sanções cominadas são efetivamente aplicadas, a tipificação de condutas voltadas

tão somente para atender a uma normatização simbólica dos novos interesses

deveria ser evitada.

Também a introdução de medidas alternativas à prisão e a ampliação das

penas substitutivas no Direito Penal permitem concluir pela suficiência da sanção

administrativa para inibir a prática de crimes menores e contravenções, inclusive

pela possibilidade de sua imediata aplicação.371

Ainda mais quando esses crimes e contravenções são punidos

exclusivamente com pena pecuniária de duvidoso efeito ressocializante.

Com isso, a sanção administrativa poderia se firmar como instrumento

alternativo da clássica sanção penal, com um sistema próprio e capacidade de

expandir-se sobre condutas controladas pelo Direito Penal.

Demonstrando ceticismo quanto a uma necessária retração do direito

penal no atual momento histórico vivenciado pela sociedade, no qual a pena de

prisão encontra-se banalizada pela frequência com que é utilizada, Luís Augusto

Sanzo Brodt se posiciona firmemente em favor de uma reforma que, no lastro de

legislações europeias, “crie uma categoria intermediária entre o delito e o mero ilícito

administrativo, a que em Portugal se chama contraordenações, ficando reservada a

intervenção penal às violações mais graves dos bens jurídicos mais importantes,

capazes de justificar a medida extrema da privação da liberdade”.372

Nesse mesmo sentido, conforme percebido por Ramacci:

[...] ao invés de uma decisiva despenalização dos fatos não merecedores de estigmatização penal, assiste-se a um constante incremento de previsões de novos tipos penais e, sobretudo, de normas penais que reforçam normas não penais, enquanto tais privadas de um específico preceito de relevância penal porque se

371 BUONINCONTI, Ave Gioia. Profili di diritto penale amministrativo. Europolis: Roma. 2005. p.10. 372 BRODT, Luís Augusto Sanzo. O peso das penas. Disponível em < http://www.direitopenalvirtual.com.br/artigos/o-peso-das-penas>. Acesso em: 20.6.2011.

- 127 -

reduzem a sancionar a inobservância das leis vigentes a uma determinada matéria.373

O legislador distancia-se, assim, do princípio da proporcionalidade, que

obriga a ponderar a gravidade da conduta, o bem jurídico protegido e a

consequência jurídica, perquirindo-se até que ponto a intervenção do Direito Penal é

conveniente para obtenção da tutela do bem jurídico; se a matéria é própria do

Direito Penal e se compensa a utilização do poder punitivo do Estado.374

Após perceber que a crítica à práxis penal a partir de suas

consequências, a ênfase em fins da pena passíveis de verificação posterior e a

vinculação do legislador penal ao dever de se concentrar em bens jurídicos

palpáveis obtiveram relativo êxito na busca pela humanização e pelo controle

aprimorado da tutela penal, Hassemer considera que tais instâncias esgotaram suas

potencialidades, uma vez que a modernização ameaça inverter seu curso, sendo

chegada a hora de “compatibilizar as tendências modernas do Direito Penal com

suas tradições”.375

Desse modo, o autor se posiciona igualmente contrário à orientação

expansiva do Direito Penal, de sua operacionalização como instrumento de política

de segurança pública e do desmantelamento de seus limites clássicos, erigindo um

“moderno Direito interventivo” como local apropriado para o enfrentamento dos

problemas da sociedade atual.376

Em suas próprias palavras:

Poder-se-ia também sugerir que aqueles problemas das sociedades modernas que levaram à modernização do Direito penal fossem disciplinados por um específico “Direito de intervenção”, situado entre o Direito penal e o Direito das contravenções, entre o Direito Civil e o Direito administrativo. Decerto, ele poderia contar com garantias e

373 RAMACCI, Fabrizio. Os modelos de justiça penal: entre mito e história, uma crise de transformação? Trad. por Sheila Jorge Selim de Sales. In.: MARCHI JÚNIOR, Antonio de Padova; MARTINS PINTO, Felipe (Coord.). Execução penal: constatações, críticas, alternativas e utopias. Curitiba: Juruá, 2008. p. 41. 374 Nesse sentido, MATEU, Juan Carlos Carbonell. Reflexiones sobre el abuso del derecho penal y la banalización de la legalidad. In.: MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos. Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha/Ediciones Universidad Salamanca, 2001, v. I. p. 132. 375 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 245. 376 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 244.

- 128 -

formalidades processuais menos exigentes, mas também seria provido com sanções menos intensas contra o indivíduo. Tal Direito “moderno” seria normativamente menos censurável e, ao mesmo tempo, faticamente melhor equipado para lidar com os problemas específicos da sociedade moderna.377

Fabrizio Ramacci também reforça esse ponto de vista ao enfatizar

categoricamente que, para se continuar falando em direito penal em sentido estrito e

próprio, “é necessário reduzir o direito penal vigente ao direito natural penal e

canalizar os preceitos residuais no âmbito de um direito punitivo de caráter

administrativo”.378

1.4.4 O ponto em comum: o absoluto respeito às garantias em relação ao Direito

Penal tradicional

Independentemente da opção político-criminal adotada para o

enfrentamento da criminalidade contemporânea, se no seio do próprio Direito Penal

– nos mesmos moldes da criminalidade clássica ou com alguma flexibilidade em

relação a determinadas garantias – ou no campo do Direito Administrativo

sancionador, o esfacelamento do princípio deve ser estancado de imediato.

O ponto em comum que une as vertentes acima destacadas é a

necessidade de se manter o rigor das regras de imputação e dos princípios de

garantia – em especial a legalidade – em relação ao denominado “Direito Penal

tradicional”, que reúne os delitos que, em regra, são praticados pelos indivíduos

mais expostos ao sistema penal.

Tal missão toca primordialmente ao Poder Judiciário, órgão ao qual

compete declarar a inconstitucionalidade dos tipos penais violadores das garantias

377 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008. p. 262. 378 RAMACCI, Fabrizio. Os modelos de justiça penal: entre mito e história, uma crise de transformação? Trad. por Sheila Jorge Selim de Sales. In: Execução penal: constatações, críticas, alternativas e utopias. Coord.: Antonio de Padova Marchi Júnior e Felipe Martins Pinto, Curitiba: Juruá, 2008, p. 41.

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vinculadas à legalidade, bem como limitar seu alcance às condutas que estiverem

objetivamente determinadas.

Nesse sentido, Enrique Bacigalupo afirma que as questões afetas às

proibições da analogia e da retroatividade gravosa pressupõem a aplicação da lei a

um caso concreto, pelo que devem ser solucionadas pelos próprios tribunais, os

quais devem exercer um “estrito autocontrole que impeça um excesso interpretativo

das leis penais”.379

Também parece evidente que o princípio deve necessariamente se impor

perante a denominada criminalidade clássica e, assim fortalecido, estender idênticas

exigências à criminalidade própria da “sociedade do risco”, caso se entenda mesmo

conveniente seu controle por parte do direito penal.

A concepção meramente formalista do princípio da legalidade considera

criminoso um fato quando, no momento de sua realização, estiver descrito em uma

norma penal que contenha previamente a respectiva pena cominada.

Todavia, para se converter em garantia do indivíduo, não depende

somente dessa estruturação formal, calcada na construção de tipos penais claros e

precisos, pois, conforme a advertência de Nereu Giacomolli, “o Estado também pode

atuar legalmente implementando uma política criminal do terror e vingativa com

suporte em disposições legais”.380

Por isso, o alcance de seu conceito é mais amplo, excedendo a esfera

estritamente formal do nullum crimen nulla poena sine lege para se vincular

materialmente às garantias que interferem na descrição típica (garantia criminal), na

delimitação da sanção (garantia penal), no cumprimento da pena (garantia de

execução) e no devido processo (garantia jurisdicional).381

A efetividade do princípio da legalidade, portanto, deve ser perseguida

através de cada julgamento, de cada sentença, de cada acórdão.

379 BACIGALUPO, Enrique. Las bases institucionales de la política criminal española en los últimos anos: el principio da legalidad como tarea inconclusa. In: BAIGÚN, David et al. De las penas: homenaje al profesor Isidoro de Benedetti. Buenos Aires: Depalma, 1997, p. 24. 380 GIACOMOLLI, Nereu José. Função garantista do princípio da legalidade. In: Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Ano 1, Porto Alegre, maio/agosto de 2000, p. 46. 381 GIACOMOLLI, Nereu José. Função garantista do princípio da legalidade. In: Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Ano 1, Porto Alegre, maio/agosto de 2000, p. 47.

- 130 -

2 Princípio da legalidade e a indispensável interpr etação da lei penal

Para cumprir sua função de prevenção geral, a lei penal deve ser

elaborada da maneira mais clara e direta possível, de tal modo que possa ser

compreendida por todos os componentes da sociedade em que vige.

Esse objetivo, todavia, jamais será alcançado em sua inteireza, o que o

torna uma utopia positiva, restando ao legislador o ideal de sempre caminhar nessa

direção a fim de se aproximar cada vez mais do modelo preconizado pelo Estado

Democrático de Direito.

A perspectiva que se centra no uso da linguagem comum para deixar o

texto legislativo acessível a um maior número de pessoas não escapa da

ambiguidade e incertezas próprias do léxico corrente, posto que os termos

empregados nem sempre refletem os mesmos aspectos dos dados reais

simbolizados, tornando inevitável certo desencontro entre linguagem e realidade.382

Além do mais, ao contrário do que possa parecer, o ato de interpretar a lei

penal não se esgota na identificação do significado linguístico da disposição,

competindo ao juiz considerar o objetivo de tutela perseguido pelo legislador.383

Segundo Jair Leonardo Lopes, mesmo que a lei fosse redigida de modo a

traduzir com absoluta fidelidade a vontade nela contida, ainda assim não se poderia

dispensar a interpretação. 384

Esta opinião é compartilhada por Aníbal Bruno, que considera a lei como

expressão verbal do pensamento e, portanto, necessitada de interpretação. Para

ele, o velho adágio in claris non fit interpretatio significa que, sendo a lei clara, não

cabe procurar-lhe um sentido diferente daquele que resulta evidentemente do texto:

“apenas se a lei é clara, a interpretação é instantânea. Conhecido o texto, apreende-

se imediatamente o seu conteúdo”.385

A própria pretensão iluminista de retirar do juiz a tarefa de interpretar a lei

no instante de aplicá-la mostrou-se desde logo falaciosa.

382 FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009, p. 115. 383 FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009, p. 115. 384 LOPES, Jair Leonardo. Curso de direito penal. 3. ed., São Paulo: RT, 1999, p. 48. 385 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral, tomo I, 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 127.

- 131 -

Isto porque, apesar do louvável interesse em atacar a manifesta

arbitrariedade judicial que aquele momento histórico registrava, a razão humana, ao

contrário do que se supunha, não seria capaz de elaborar um texto normativo tão

perfeito a ponto de dispensar qualquer interpretação.

Ao rememorar o natural distanciamento entre a linguagem legal e a

linguagem popular, Juarez Tavares acrescenta que por mais ampla, clara e precisa

que seja a norma jurídica, sempre existirão conceitos necessitados de valoração.386

Assim, prevalecem hoje entendimentos como o de Mariângela Gomes,

que considera implícita a tarefa de interpretar na definição do significado de

intenções, fatos e indícios. Por isso, mesmo se acompanhar precisamente os

precedentes já pacificados na jurisprudência como a leitura correta da lei, o juiz

estará, de certa forma, reinterpretando o direito, pois “quando repete as mesmas

palavras já ditas anteriormente, elas assumem significado diferente na sua boca,

uma vez que as formas de falar nunca são idênticas umas às outras”.387

A indisponibilidade de interpretação judicial da norma apresenta-se,

portanto, como uma realidade, uma vez que “toda norma precisa ser aplicada e toda

aplicação, por mais clara que seja a norma, requer uma interpretação”.388

Nesse sentido, a interpretação se converte na operação mais importante

de concretização do direito: é o vínculo que une norma e realidade, tornando

possível e atualizável a proibição legal ou a determinação de conduta,

caracterizando-se, no fundo, como uma “recriação do próprio direito”.389

2.1 Limites para uma interpretação válida

Para não se tornar arbitrária, a interpretação judicial encontra seu limite

na analogia, cuja prática é vedada pelo princípio da legalidade (item 2.4, infra).

386 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 757. 387 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 30-31. 388 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 31. 389 TAVARES, Juarez. Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 754.

- 132 -

Sendo assim, o ideal de segurança jurídica que deve nortear as decisões

judiciais não prescinde de uma correta identificação do objeto jurídico da norma e

das variáveis que o fato concreto encerra, além de outros critérios indicados pela

dogmática penal para tornar o ato decisório mais seguro, previsível e controlável.

Tais diretivas, porém, não garantem a conformidade da decisão com o

princípio da legalidade, mas, ao menos, fornecem um cenário extraordinário de

informações a respeito do verdadeiro conteúdo do imperativo legal, ou seja, “um

conjunto ordenado cuidadosa e claramente pelos juristas em comentários e

repertórios de decisões sempre prontos para servirem de auxílio à decisão”.390

Desse modo, a jurisprudência logrou êxito na definição do alcance de

alguns tipos penais, estabilizando conceitos como os de dolo e culpa, integridade

física, local habitado etc.

Todavia, mesmo os conceitos já estabilizados podem sofrer mutações

determinadas por novas circunstâncias sociais ou por necessidades próprias do

“caráter vivo da linguagem e do Direito”.391

Nesse momento é que se percebe a importância da proibição da analogia

a fim de evitar que o acusado seja surpreendido pela interpretação judicial.

Ela não pretende determinar o resultado da interpretação, sempre sujeita

às interferências das concepções pessoais do julgador, sua visão política,

preconceitos e impulsividades, mas apenas assegurar que a decisão não se

distancie demasiadamente do alcance literal da lei.

O problema reside em estabelecer uma diferença clara entre

interpretação válida e analogia proibida, pois, conforme asseverado por Juarez

Tavares, “no fundo, todo processo de interpretação é um processo analógico”.392

Deve-se admitir, com Hassemer, que a proibição da analogia “não é um

limite seguro à interpretação nem uma garantia confiável para situações jurídicas;

390 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 58. 391 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 59. 392 TAVARES, Juarez Interpretación, principio de legalidad y jurisprudência. In: Anuario de derecho penal y ciencias penales. Madrid, v. 40, n. 3, set./dez. 1987, p. 758.

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ela é simplesmente um argumento”, que deve bastar para a contenção do Direito

Penal simplesmente porque não se pode obter mais do que isso.393 E complementa:

A força da proibição da analogia é sua força como argumento. Ela luta por uma interpretação da lei penal que se mantenha, tanto quanto possível, estritamente na literalidade predeterminada pelo legislador, que examine argumentativamente o significado coloquial e jurídico das palavras, que não procure romper um limite imposto pela literalidade com remissão a outra espécie de “sentido da lei” e, sempre que a proibição da analogia possa ser ofendida, argumente abertamente acerca dessa ofensa.394

Resulta daí a necessidade de se construir um mecanismo que possibilite

maior controle da jurisdição e o acompanhamento crítico de suas decisões pela

opinião pública.395

Afinal, a desejável segurança jurídica não dispensa o estabelecimento de

mecanismos de controle que depurem as incertezas decorrentes da interpretação de

determinados tipos penais de ilícito, sobretudo, daqueles construídos sob a

modalidade de crimes de perigo abstrato, tão utilizados pelo Direito Penal da

atualidade.

E a busca pela uniformização dos entendimentos jurisprudenciais a partir

da valorização do precedente judicial, assevera Mariângela Gomes, “apresenta-se

como uma importante via para assegurar ao cidadão os valores contidos na

expressão nullum crimen nulla poena sine lege”.396

2.2 O princípio da legalidade nos sistemas do civil law e do common law

393 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 66. 394 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 67-68. 395 Um remédio eficaz contra uma justiça que viola o Direito, assinala Hassemer, “consiste na sua observação crítica por uma opinião pública vigilante, interessada e informada”. Afinal, prossegue o autor, por força de mandamento constitucional é que, em regra, as decisões judiciais são públicas. Todavia, o princípio da publicidade das decisões só se mostra útil quando a opinião pública efetivamente se interesse por elas (HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 67). 396 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 86. Em sentido diametralmente oposto, contrário à aplicação das súmulas vinculantes em matéria criminal, TEBET, Diogo. Súmula vinculante em matéria criminal. São Paulo: IBCCrim, 2010, p. 211.

- 134 -

O padrão de clareza exigido pelo princípio da legalidade, em

contraposição às limitações naturais da linguagem para representar o real

significado da norma, estabeleceu um conflito que é enfrentado de maneira distinta

pelos dois maiores sistemas do direito contemporâneo: o civil law e o common law.

O primeiro, de feição romano-germânica, segue a tradição do Direito

escrito, onde as normas são fixadas previamente e ordenadas em codificações, o

que realça a importância do significado da linguagem empregada no texto legal.

O segundo sistema, do common law, é caracterizado pela supremacia da

atividade jurisprudencial no âmbito da evolução do direito, desenvolvendo uma

função estratégica no processo de produção desse mesmo direito, além de participar

em alto grau na construção científica do sistema penal. 397

Nos subitens seguintes, procurar-se-á demonstrar a forma encontrada por

cada sistema para preservar o princípio da legalidade e como a globalização,

marcada pela necessidade de proteção de bens jurídicos supraindividuais, fez surgir

vias de aproximação entre eles.

2.2.1 Do tipo penal como instrumento da legalidade (civil law)

No sistema continental de organização jurídica, a lei exerce uma função

padronizadora das decisões, convertendo-se na principal referência para o

julgamento do caso. Por isso, além da exigência de anterioridade, a lei escrita deve

obedecer a um ritual próprio no qual os representantes eleitos do povo (deputados)

e de cada estado da federação (senadores) devem trabalhar o texto e votá-lo com

redobrada cautela antes de encaminhá-lo à sanção presidencial.

Hassemer destaca o trabalho legislativo cuidadoso que deve ser devotado

às leis em razão de sua centralidade nos sistemas jurídicos baseados em

codificações:

Junto com a lei, a linguagem faz carreira. Justiça, Executivo, associações, instituições, particulares, todos que indagam o que vige aqui como Direito são remetidos à lei e, com isso, a um objeto que

397 CADOPPI, Alberto. Introduzione allo Studio del diritto penal e comparato, 2 ed., Verona: CEDAM, 2004, p. 161-162.

- 135 -

não é apenas linguagem, pois os precedentes também o são, mas é simultaneamente o resultado de esforços especiais em torno da precisão e segurança do significado linguístico: a lei é, de um lado, o ponto de cristalização da teoria jurídica e da metodologia; de outro, da dogmática; ela é flanqueada por regras sobre como proceder com as próprias leis e enriquecida com as paráfrases de seu conteúdo; ela se aloja no Direito judicial e nas explicações e nos esclarecimentos adicionais da dogmática cientificamente conduzida; ela é, em resumo, o centro de uma atividade gigantesca em torno de signos linguísticos.398

Desse modo, o tipo penal funciona, ao mesmo tempo, como objeto de

valoração do intérprete e instrumento ou veículo de aplicação do princípio da

legalidade, posto que sua existência é indispensável para a formação do juízo de

tipicidade, primeiro elemento do conceito analítico de crime.

Nas palavras de Alberto Silva Franco, “princípio da legalidade e tipicidade

estão intimamente conectados na medida exata em que a função técnica da

legalidade se realiza, formal e materialmente, no processo tipificador”.399

Também para Luiz Luisi, a doutrina do tatbestand representa o princípio

da legalidade na dogmática penal porque lhe compete traduzir, em termos técnicos

jurídicos, a exigência de certeza na configuração das figuras delituosas, limitando,

desse modo, o arbítrio dos governantes e, principalmente, daqueles que julgam.400

Em igual percepção, Jorge de Figueiredo Dias ensina que o conteúdo de

sentido do princípio da legalidade penal implica, necessariamente, num momento

“inicial” de pura subsunção lógico-formal ao mesmo tempo em que estabelece o

texto da lei incriminadora como um limite intransponível de toda a tarefa de

aplicação ao caso concreto, pois só deste modo pode desempenhar a função

político-criminal de garantia absoluta que lhe cabe no quadro do Estado de

Direito.401

Enfatiza ainda o professor luso que, do ponto de vista substancial, “a

função precípua do tipo de ilícito é dizer as condutas às quais se liga um sentido de

398 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 49. 399 FRANCO, Alberto Silva et. al. Código penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: RT, 6 ed., v. I, t. I, 1997, p. 62. 400 LUISI, Luiz. O tipo penal, a teoría finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: SAFE, 1987, p. 13. 401 DIAS, Jorge de Figueiredo. Legalidade e tipo em direito penal. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: RT, 2008, p. 216.

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desvalor jurídico-penal que as torna ilícitas e, por conseguinte, em princípio

criminalmente puníveis”.402

O tipo penal, portanto, se vincula funcional e político-criminalmente ao

princípio da legalidade e à sua teleologia no sistema.403

Ocorre que, diante da impossibilidade da descrição pormenorizada de

todos os fatos configuradores de uma relevante lesão ou perigo de lesão ao bem

jurídico, o legislador opta por utilizar uma técnica que remete o julgador a uma fonte

estranha ao tipo penal, como a realidade cultural da sociedade, a maior ou menor

sensação de segurança, o impacto que a sentença representará para o réu, entre

outras variáveis de ordem subjetiva.

Essas denominadas “formas de indefinição do tipo” se apresentam como

elementos normativos, expressões vagas, cláusulas genéricas e outros termos

sensíveis às transformações da realidade social e, portanto, sujeitos à valoração por

parte do intérprete.

Foi assim que o Poder Judiciário passou a ser reconhecido como um

mediador indispensável entre os cidadãos e a lei, pois somente através de sua

interpretação se pode compreender o verdadeiro alcance da norma.404

Afinal, nem mesmo o necessário culto ao princípio da legalidade pode

desconsiderar as limitações próprias da atividade legiferante, a qual “sempre deixará

espaços, voluntária ou involuntariamente, para a atuação do juiz, com papel

criador”.405

Portanto, as leis penais devem ser interpretadas sob o ângulo dos

princípios que regem essa área dogmática, não bastando sua mera existência formal

para que ostentem a indispensável legitimidade, somente alcançável após sua

402 DIAS, Jorge de Figueiredo. Legalidade e tipo em direito penal. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: RT, 2008, p. 217. 403 DIAS, Jorge de Figueiredo. Legalidade e tipo em direito penal. In Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: RT, 2008, p. 217. 404 Vale lembrar que, conforme destacado em linhas anteriores (segunda parte, item 2.2), o novo papel da vítima estabeleceu a reparação como opção válida dentro do processo penal, possibilitando, muitas vezes, a solução do litígio sem a interferência do juiz. 405 ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito penal e criação judicial. São Paulo: RT, 1989, p. 81. No mesmo sentido, Arnoldo Wald considera efetivamente a jurisprudência como fonte formal do Direito (WALD, Arnoldo. A contribuição do Superior Tribunal de Justiça na consolidação do princípio da confiança. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 33).

- 137 -

conformação material com os direitos e garantias constitucionalmente

assegurados.406

Outra consequência determinada pela indispensável interpretação da lei

penal é a desvinculação da exigência de taxatividade do tipo com o seu significado

literal.

Mariângela Gomes argumenta que é de se questionar a insistência com

que parte da doutrina refere-se à interpretação literal do tipo como forma de se

assegurar o valor amplamente celebrado da certeza jurídica, contrapondo-se à

constatação de que “qualquer significado que se dê a uma palavra constitui um

resultado interpretativo sujeito às mais variadas forma de subjetivismo”.407

A propósito, a Corte Constitucional da Itália, no julgamento acerca da

legitimidade do art. 403 do Código Penal italiano408, cuja indeterminação da noção

de vilipêndio concederia ao juiz excessiva discricionariedade na individualização do

juízo de tipicidade, julgou improcedente a arguição de violação do princípio da

legalidade por entender que a locução “vilipêndio”, embora de caráter genérico, é de

óbvia compreensão, podendo ser facilmente extraída dos conceitos da experiência

comum e dos valores ético-sociais objetivamente acessíveis ao intérprete.

Na oportunidade, o órgão máximo da justiça italiana observou que a

necessária taxatividade do tipo penal não se resume nem se identifica com o maior

ou menor aspecto descritivo de seus elementos.409

Desse modo, uma vez que o alcance do tipo penal não decorre

exclusivamente do sentido literal de seus elementos, resta concluir, com Mariângela

Gomes, pela inarredável margem de subjetivismo do intérprete e, portanto, “da

variabilidade nas aplicações da lei, mesmo nas suas formulações mais simples”.410

Essas observações evidenciam que o juiz, sem nenhuma ofensa à

separação de Poderes, não atua como simples longa manus do Legislativo,

406 Nesse sentido, CERNICCHIARO, Luiz Vicente. RDD – Regime disciplinar diferenciado. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 451. 407 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 33. 408 Art. 403. - (Offese a una confessione religiosa mediante vilipendio di persone). – Chiunque pubblicamente offende una confessione religiosa, mediante vilipendio di chi la professa, è punito con la multa da euro 1.000 a euro 5.000. Si applica la multa da euro 2.000 a euro 6.000 a chi offende una confessione religiosa, mediante vilipendio di un ministro del culto. 409 Disponível em www.giurcost.org/decisioni/1975/0188s-75.html, acesso em 17.6.2012. 410 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 37.

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competindo a ele reconhecer a legitimidade de uma norma somente quando estiver

ajustada aos princípios do sistema jurídico.411

Logo, o que se pode fazer para evitar a erosão da taxatividade é indicar

ao julgador os critérios que deve seguir no processo hermenêutico, minimizando,

assim, a influência dos aspectos subjetivos para a tomada de decisão da causa.

Luiz Vicente Cernicchiaro dá a receita:

A norma jurídica somente se adapta aos Princípios Fundamentais quando ajustar-se (formal e materialmente) à Carta Política. No primeiro aspecto, reclama-se, por dedução, a norma ordinária guardar harmonia com a que lhe é hierarquicamente superior: a lei ordinária, relativamente à Constituição; o decreto, por sua vez, quanto à lei. Do ponto de vista material, impõe-se comparação entre os preceitos das normas, a fim de a derivada não contrariar ideologicamente a que lhe é referência. Em se ilustrando: a Constituição não pode contrastar princípios ideológicos. A lei ordinária, também ideologicamente, precisa estar em harmonia com a Carta Política, do mesmo modo que o decreto ajusta-se imediatamente à lei ordinária e, mediatamente, vincula-se à Lei Maior e aos Princípios Gerais do Direito. Com isso, ganham-se legalidade e legitimidade.412

Por outro lado, diante da pouca agilidade para adequar o sistema jurídico

aos complexos problemas sociais e às rápidas mudanças da modernidade, o Poder

Legislativo tem cada vez mais confiado à jurisprudência a complementação das

diretrizes normativas, valendo-se, para tanto, da generalização dos delitos de perigo

abstrato, bem como de leis obscuras e com amplas margens de decisão.413

A constatação desse fenômeno fez com que Hassemer percebesse que a

aplicação da lei representa hoje muito menos o objeto dos esforços de compreensão

jurídica do que as diretivas do direito judicial, da jurisprudência dos tribunais

superiores.414

Assim as coisas, a análise dos precedentes judiciais, tradicionalmente

adotada nos países do common law, deve merecer maior atenção da doutrina e dos

411 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. RDD – Regime disciplinar diferenciado. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 452. 412 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. RDD – Regime disciplinar diferenciado. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 452. 413 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 50. 414 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 50.

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aplicadores da lei para que possa contribuir da melhor maneira possível para o

respeito aos direitos fundamentais.

2.2.2 O princípio da legalidade no sistema do common law

O fundamento que conforma a teoria do criminal law encontra-se

basicamente na aplicação prática, privilegiando os resultados e não o modo pelo

qual se chega a eles.415

Seus pilares são os elementos do delito e as defesas gerais ou especiais.

Esta formulação se vê consagrada no aforismo latino actus non facit reum, nisi mens

sit rea, de onde emanam os dois elementos constitutivos do delito incorporado pela

tradição anglo-saxônica: actus reus (elemento externo) e mens rea (elemento

interno).

Tal dispositivo representa não apenas uma garantia para o acusado, mas

também um princípio metodológico e expositivo, remetendo a toda parte especial

para se inserir em cada um dos delitos tipificados.416

Desse modo, actus reus e mens rea funcionam, respectivamente, como

elemento objetivo e subjetivo do tipo (offence definition).

Sem embargo, a concorrência desses dois elementos não autoriza a

condenação do agente, sendo necessário ainda atestar a ausência das

circunstâncias que a lei ou o common law consideram como excludentes da

responsabilidade penal. Estas circunstâncias são denominadas “defesas gerais” (na

medida em que se aplicam à generalidade dos delitos) ou “defesas especiais” (cuja

aplicação se restringe a alguns delitos).417

Em resumo, a estrutura da teoria do delito no sistema anglo-saxão exige,

por uma parte, a afirmação da concorrência dos elementos que integram a definição

415 ROCHEFORT, Juan Ignácio Piña. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 20. 416 Conforme observado por Piña Rochefort, a “offence definition” consiste na descrição que a lei (“statute”) ou o “common law” dão a todos os elementos integrantes do “actus reus” (parte objetiva) e da “mens rea” (parte subjetiva), de modo que devem estar todos presentes no fato para que se possa afirmar a responsabilidade do autor. Em outros termos, “offence definition” é a expressão correlata ao tipo de injusto da formulação continental (ROCHEFORT, Juan Ignácio Piña. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 16). 417 ROCHEFORT, Juan Ignácio Piña. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 18.

- 140 -

do delito e, por outra, a negação da concorrência de alguma defesa. Somente assim

se pode responsabilizar criminalmente o agente.418

Conforme observado por Alberto Cadoppi, nos países do common law a

forma não escrita da lei representa hoje uma exceção, uma vez que em tais

ordenamentos, como regra geral, encontram-se em vigor “veri e propri codici penali”,

como nos Estados Unidos (a nível estadual e não federal), Canadá, Nova Zelândia e

em alguns estados da Austrália, ao passo que em outros, como Inglaterra, Escócia,

alguns estados da Austrália e a justiça federal dos Estados Unidos não vigoram

códigos penais, mas grande parte do direito criminal é encontrado em normas

escritas (statutes).419

Mas o mais importante para o autor é que todos os países do common

law estão procedendo a uma obra de “codificação” - onde um código ainda não vige

- ou de “recodificação penal”.420

Por outro lado, no Direito continental (civil law), cuja única fonte formal é a

lei, cada vez se torna mais evidente o papel criador do juiz na definição do real

alcance dos tipos penais, o que também aproxima os dois grandes sistemas do

direito penal.

Estabelecidas estas linhas gerais, deve-se registrar que o presente

estudo, por óbvio, não pretende exaurir todo o seu complexo mecanismo, mas

apenas identificar sinteticamente o modo como se opera a análise do precedente

jurisprudencial e sua contribuição para a preservação do princípio da legalidade,

destacando as práticas que possam ser aqui utilizadas com o mesmo objetivo.

Afinal, a tendência amplificadora do papel interpretativo do juiz e a

proliferação de súmulas e outras decisões com força vinculante, aproximou o

sistema jurídico brasileiro dos países da família do common law, em que os julgados

constituem precedentes que se aplicam a casos futuros e onde desenvolveu-se uma

técnica especial de interpretação.

418 Cf., ROCHEFORT, Juan Ignácio Piña. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 18. 419 CADOPPI, Alberto. Introduzione allo Studio del diritto penal e comparato, 2 ed., Verona: CEDAM, 2004, p. 171-172. Assevera o autor que na Inglaterra o homicidio doloso ou culposo é definido com base na “common law”, o que não sucede para o furto, regulado juntamente com outros crimes contra o patrimônio pela “Theft Act” de 1968. 420 CADOPPI, Alberto. Introduzione allo Studio del diritto penal e comparato, 2 ed., Verona: CEDAM, 2004, p. 172.

- 141 -

Ao estudar a atuação dos precedentes no ordenamento do common law

para construir um modelo de súmula vinculante aplicável ao Direito brasileiro,

Mariângela Gomes observou que nele vigora a doctrine of precedents, ou seja, a

regra do precedente (stare decisis), sendo que, assim como se deu nos sistemas

romano-germânicos, tal regra também surgiu a partir da necessidade de se atribuir

alguma estabilidade na regulação das relações sociais num período em que a

produção legislativa ainda era escassa ou nula.421

A autora analisa que, se por um lado a estruturação do sistema romano-

germânico obedeceu a uma ordem racional de conceitos, em que o direito aparece

como um conjunto de preceitos (sistema) a fim de evitar o casuísmo na lei e, ao

mesmo tempo, proporcionar o ideal de certeza jurídica através das generalidades

racionais que as legislações codificadas apresentam, de outra sorte, no common

law, a doutrina dos precedentes também almeja a estabilidade do direito e o

afastamento do arbítrio, devendo as causas serem julgadas por princípios

apreendidos indutivamente da experiência judicial do passado, ao invés de serem

deduzidas de regras arbitrariamente estabelecidas pela vontade do soberano.422

A citação de Pound sintetiza com precisão a essência desse sistema:

A doutrina do common law é uma razão voltada à experiência, que é vista como apta a dar os fundamentos mais satisfatórios para guiar a ação e os princípios da decisão; a lei não é algo para ser feito a partir de um capricho da vontade soberana, mas deve ser descoberta pela experiência judicial das regras e dos princípios que guiaram as decisões no passado.423

Esta práxis poderia pressupor que o sistema do common law concederia

ao juiz poderes mais amplos, com os quais se transformaria no verdadeiro criador do

direito, substituindo-se ao legislador.

421 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 89. 422 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 89-90. 423 POUND, Roscoe. The spirit of the common law. Boston: Marshall Jones Company, 1921, p. 182-183, apud GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 90.

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Ocorre que a atividade criadora de novas figuras delitivas pelo magistrado

encontra sérias limitações, como, por exemplo, nas regras ditadas pelo stare decisis,

que vincula o juiz a seu próprio precedente.424

É preciso notar ainda, que o direito do common law, enquanto

manifestamente reconhecido como “direito dos juízes”, criou uma série de

mecanismos compensatórios desta maior liberdade potencial dos julgadores em

relação à criação do tipo penal, de ordem substancial e processual, os quais “fazem,

de certo modo, retornar pela janela a legalidade que havia saído pela porta”.425

Pense-se, particularmente, no propósito tendencialmente vinculante do

precedente jurisprudencial, que o sistema do common law divide em ratio decidendi

e obiter dictum.

A relevância da distinção entre estas duas partes da decisão repousa na

“necessidade de identificar as razões que levaram à formação da jurisprudência

constante para que, nos casos futuros, possa ser verificada a identidade ou a

similitude do caso em exame com os anteriormente decididos, a fim de aferir a

aplicabilidade daquilo que já está assentado”.426

Esta, talvez, seja a grande contribuição que o sistema do common law

pode oferecer ao direito penal brasileiro, pois aqui a tradição tende a valorizar

apenas o resultado concreto da decisão e, por conseguinte, a desprezar o

precedente como um todo, o que levou Mariângela Gomes a constatar a frequência

com que os operadores do direito, mesmo em relação às súmulas de jurisprudência

sem efeito vinculante, se esquecem da importância da pesquisa sobre as razões

temporais, sociais e culturais que determinaram sua edição.427

Na verdade, o teor de uma decisão judicial representa o ápice da

demonstração do raciocínio jurídico, voltada que é para a aplicação do direito ao

caso concreto. Trata-se, sem dúvida, de um ato complexo, que exige um minucioso

estudo do significado das disposições normativas abstratas e sua adequação para a

solução do litígio, consideradas as peculiaridades que remarcam cada processo.

424 CADOPPI, Alberto. Introduzione allo Studio del diritto penal e comparato, 2 ed., Verona: CEDAM, 2004, p. 397. 425 CADOPPI, Alberto. Introduzione allo Studio del diritto penal e comparato, 2 ed., Verona: CEDAM, 2004, p. 172 426 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 90. 427 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 91.

- 143 -

Deve-se ponderar que o juiz não prolata a sentença friamente, como um

matemático que lida com fórmulas e equações, sendo indispensável que “ele

expresse textualmente os passos deste percurso intelectual, formule um juízo

racional, valendo-se, para tanto, de argumentos, sua grande ferramenta de

trabalho”.428

Ocorre que, no texto de uma sentença, podem coexistir diversos

argumentos, cada qual com um peso relativo na composição da cadeia

argumentativa que conduz à solução da causa.

Nos sistemas jurídicos do common law, nos quais os julgados constituem

precedentes que se aplicam a casos futuros, desenvolveu-se uma técnica especial

de classificação desses argumentos judiciais.

Considerando que a sentença é um texto discursivo, verificou-se a

necessidade de se criar um mecanismo conceitual que identificasse seus

fundamentos principais, separando-os daqueles circunstanciais, relativos somente

ao caso concreto. Procurou-se, dessa forma, transformar o estudo dos precedentes

em uma atividade mais racional, uma técnica que possibilitasse maior interação

entre os operadores do direito e a jurisprudência.

A lição de Conrado Hübner Mendes é esclarecedora:

O juiz, no processo de subsunção, articula diversas espécies de razões. Cada uma destas razões desempenha um determinado papel, possui um certo grau de relevância no todo. Há aquelas fundamentais para a decisão. Outras cumprem papel subsidiário. Outras, ainda, são pura retórica, absolutamente secundárias. Não se pode perder de vista, porém, seu valor argumentativo, simbólico, emocional. A doutrina jurídica dos sistemas de common law criou um código para facilitar este sopesamento de razões. Existem razões que compõem a ratio decidendi (ou holding). Correspondem aos fundamentos definitivos para decidir, à prescrição que pode ser aplicada a casos futuros. Há um segundo grupo chamado de obiter dictum. Estes são os componentes marginais ao argumento geral, coisas ditas a propósito do caso concreto em si e que não lhe transcendem, nem alcançam os casos futuros. Localizam-se na periferia da decisão.

428 MENDES, Conrado Hübner. Lendo uma decisão: obter dictum e ratio decidendi. Racionalidade e retórica na decisão. Disponível em http://ebookbrowse.com/19-estudo-dirigido-ratio-decidendi-e-obter-dictum-conrado-hubner-mendes-pdf-d46106398. Acesso em: 22.6.2012.

- 144 -

Portanto, torna-se imperioso distinguir, no conteúdo da fundamentação, o

que se comporta como ratio decidendi e o que representa obter dictum, o que muitas

vezes não se apresenta como tarefa fácil.

Ratio decidendi, como visto, são os fundamentos jurídicos utilizados no

julgado sem os quais o resultado teria sido diverso. Trata-se, em outras palavras, da

tese jurídica acolhida pelo julgador (rule of law).

Para a correta inferência da ratio decidendi nada impede que se tome

emprestado critério similar ao processo de eliminação de Thyrén utilizado para a

verificação da causalidade: suprime-se mentalmente o teor do núcleo decisório e,

em seguida, verifica-se se a conclusão também desaparece, hipótese em que a tese

originária poderá ser considerada como ratio decidendi do julgado; caso contrário, a

resposta será negativa.429

Por sua vez, o obiter dictum consiste na argumentação periférica à

motivação da sentença, classificando-se como argumentos expostos de passagem,

juízos acessórios, elementos secundários que não determinam de modo relevante e

substancial a decisão da causa. 430

Exatamente por isso, somente os argumentos jurídicos decisivos para a

solução do litígio (ratio decidendi) são dotados de força vinculativa, o que não ocorre

com os elementos periféricos (obiter dictum) vinculados à motivação.

Dada a relevância da matéria no domínio de um sistema jurídico estribado

na observância compulsória dos precedentes, cabe a advertência feita por José

Rogério Cruz e Tucci, para quem “as razões de decidir devem prever e sopesar a

repercussão prática que determinada decisão poderá oferecer para o ordenamento

jurídico globalmente considerado”.431

Outro mecanismo bastante empregado nos ordenamentos do common

law é o distinguishing, através do qual o juiz pode diferenciar o caso concreto a ser

julgado e, assim, decidir de maneira diversa do precedente.

Se toda situação de fato é nova e única, pondera Mariângela Gomes,

“impõe reconhecer que sempre existe a possibilidade de ‘distinguir’ em relação aos

precedentes, ou de ‘argumentar a contrário’ – até porque, segundo o princípio da

429 TUCCI, José R. Cruz. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 177. 430 TUCCI, José R. Cruz. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 177. 431 TUCCI, José R. Cruz. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004, p. 176.

- 145 -

igualdade, levar em consideração os precedentes não é, necessariamente, reiterar a

jurisprudência”.432

Desse modo, quanto mais pormenorizada a ratio decidendi, maior a

possibilidade de o juiz distinguir o caso em julgamento, favorecendo resultados

interpretativos diferentes daqueles anotados no precedente.433

Esta possibilidade de se restringir os limites da ratio decidendi evidencia

que as proposições linguísticas constantes dos enunciados jurisprudenciais carecem

de interpretação tanto quanto aquelas conformadoras dos enunciados legislativos, o

que leva à inevitável constatação da relativa perda de eficácia dos precedentes.

Ainda assim, por se relacionar proximamente ao caso concreto, a norma emanada

dos precedentes é muito mais determinada do que aquela ditada pelo legislador.434

Por fim, o prospective overruling constitui um expediente utilizado nos

ordenamentos do common law para evitar que o acusado seja surpreendido por uma

mudança do precedente que venha prejudicá-lo, a exemplo do que ocorre com o

princípio da irretroatividade da lei penal desfavorável.

Afinal, a sentença deve atender às especificidades vigentes na época do

fato delituoso, sem com isso impedir a evolução do Direito de acordo com as novas

valorações. Caso se decida pela modificação do precedente, o novo entendimento

será prontamente aplicado se for favorável ao acusado; do contrário, trazendo-lhe

prejuízos, “não será aplicado a ele, mas somente aos acusados que praticarem a

infração a partir da nova orientação jurisprudencial”.435

A comunicação da iminente mudança de critério pela Corte atende, desse

modo, às necessidades da segurança jurídica e de preservação dos comandos

inerentes ao princípio da legalidade.

2.2.3 As vias de aproximação dos dois sistemas penais

432 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 91. 433 Cf., GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 91. 434 Cf., GOMES, Mariângela G. Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 92. 435 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 93.

- 146 -

O valor dos precedentes jurisprudenciais não alcança no Brasil o sentido

amplo e vinculante do stare decisis dos países do common law, mas, nem por isso,

deixa de cumprir relevante função motivadora da convicção dos juízes, seja pela

força persuasiva dos argumentos ou pelo “prestígio e importância dos magistrados

que subscreveram os acórdãos fornecedores da jurisprudência”.436

A informatização crescente dos órgãos do Poder Judiciário permite maior

agilidade e presteza na consulta jurisprudencial, deixando decisões e acórdãos ao

alcance de um simples toque no computador, contribuindo, assim, para uma ampla

utilização de julgados na fundamentação das peças processuais, em especial, as

sentenças definitivas.

De se observar, igualmente, o modo como o precedente judicial tem

crescido de importância na medida em que são criados novos instrumentos

uniformizadores da jurisprudência brasileira (cf. item 2.2.2 – primeira parte), como as

“súmulas de jurisprudência dominante”, adotado bem antes pelo Supremo Tribunal

Federal, depois pelo Superior Tribunal de Justiça e, em menor escala, pelos

tribunais estaduais, ganhou também notável impulso.437

As súmulas nada mais são do que um “resumo do que foi decidido em

sucessivos acórdãos do Tribunal, que hajam adotado idêntica interpretação em

determinada norma ou conjunto de normas”.438

Não se envolvendo da eficácia de lei, procuram motivar os operadores do

Direito a adotar determinada exegese como forma de se alcançar a desejável

estabilidade das decisões jurídicas.439

436 CARNEIRO, Athos Gusmão. O papel da jurisprudência no Brasil. A súmula e os precedentes jurisprudenciais. Relatório ao Congresso de Roma. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 328. 437 CARNEIRO, Athos Gusmão. O papel da jurisprudência no Brasil. A súmula e os precedentes jurisprudenciais. Relatório ao Congresso de Roma. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 336. O autor lembra que, sob a iniciativa pioneira do Ministro Victor Nunes Leal, a partir de 1963 o Supremo Tribunal Federal, “visando melhor revelar, dar ao conhecimento geral sua “jurisprudência dominante” sobre temas polêmicos e de maior interesse, resolveu passar a resumir tal jurisprudência em enunciados breves, ou seja, em súmulas”. Estas súmulas atuam como método de trabalho e método de divulgação, proporcionando ao mundo jurídico um “mais fácil conhecimento da orientação da Alta Corte” (CARNEIRO, Athos Gusmão. O papel da jurisprudência ....., op. cit., p. 336). 438 CARNEIRO, Athos Gusmão. O papel da jurisprudência no Brasil. A súmula e os precedentes jurisprudenciais. Relatório ao Congresso de Roma. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 336. 439 CARNEIRO, Athos Gusmão. O papel da jurisprudência no Brasil. A súmula e os precedentes jurisprudenciais. Relatório ao Congresso de Roma. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 337.

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A súmula vinculante pretende solucionar o problema da sobrecarga de

processos nos tribunais superiores sem restringir a competência recursal,

objetivando, ao contrário, atuar preventivamente para evitar novo pronunciamento

sobre questões legais já apreciadas em grau suficientemente seguro de sua

jurisprudência dominante.440

A influência da jurisprudência sumulada também pode ser facilmente

percebida nos procedimentos recursais previstos no direito processual brasileiro,

que, através da própria lei ou do regimento interno dos tribunais, autoriza a decisão

monocrática pelo Relator em substituição ao julgamento colegiado quando o objeto

do inconformismo for contrário ao entendimento dominante do respectivo tribunal, do

Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior (CPC, art. 557, caput).

Do mesmo modo, ocorrendo a situação inversa, ou seja, a decisão

recorrida é que se encontra em evidente contrariedade com “súmula ou com

jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior”, o

Relator poderá, também em decisão monocrática, dar provimento ao recurso (CPC,

art. 557, §1º-A).

A força do precedente não passou despercebida pelo Ministro Luiz Fux,

que assim se pronunciou por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no

Recurso Especial nº. 477585/DF, in verbis:

A força da jurisprudência foi erigida como técnica de sumarização dos julgamentos dos Tribunais, de tal sorte que os Relatores dos apelos externos, como soem ser o recurso extraordinário e o recurso especial, têm o poder de substituir o colegiado e negar seguimento às impugnações por motivo de mérito. Deveras, a estratégia político-jurisdicional do precedente, mercê de timbrar a interpenetração dos sistemas do civil law do common law, consubstancia técnica de aprimoramento da aplicação isonômica do Direito, por isso que para “casos iguais”, “soluções iguais”.441

Conforme percebido por Ricardo Andreucci, citando Dawson, na prática

da lei já não mais existe uma grande diferença entre o direito anglo-americano e os

sistemas jurídicos onde a lei é toda codificada, pois também nestes “os precedentes

440 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. A função dos tribunais superiores. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 158. Vale destacar que a Lei nº. 11.417/2006 disciplinou a edição, revisão e o cancelamento de súmulas com efeito vinculante pelo Supremo Tribunal Federal. 441 STJ, AgRg no REsp 477585/DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 05/05/2003, p. 235.

- 148 -

cada vez mais têm a sua importância aumentada e o espírito criador do juiz no

exercício de suas funções encontra reconhecimento cada vez mais crescente”.442

Outro fator que tem favorecido o diálogo entre as tradições penais

continental e do common law é o processo de integração europeia, que vislumbrou a

necessidade de coordenar esforços para encontrar soluções uniformes a problemas

jurídico-penais que transcendem as fronteiras nacionais.443

Os mecanismos desenvolvidos nos países da família do common law, já

acostumados a lidar com a interpretação e a aplicação dos precedentes

jurisprudenciais, podem e devem ser compreendidos, adaptados e aplicados de

modo eficiente e legítimo no direito brasileiro a fim de fazer frente à atual tendência

de se trabalhar com a “eficiência quantitativa” mediante o artifício de “alta

produtividade de decisões” e de “uniformização superficial dos entendimentos pelos

tribunais”.444

Vale destacar a advertência feita por Maurício Westin:

Trazer à tona os precedentes que deram origem ao Enunciado, separar as razões de decidir relevantes daquelas que serviram apenas de reforço argumentativo, confrontá-las com o caso que ora se examina, questionar a consistência de sua fundamentação (se é que ela realmente existe) são alguns mecanismos para se debelar o efeito mitificador da Súmula.445

Especialmente no que toca à expansão dos tipos penais pela

jurisprudência, cresce de importância a análise dos precedentes que vinculem as

instâncias inferiores (item 2.2.2 – segunda parte).

442 DAWSON, John P. As funções do juiz. Trad. por Janine Ivonne Ramos Peres e Arlete Pastor Centurion. In: Aspectos do direito americano. Rio de Janeiro, 1963, apud ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito penal e criação judicial. São Paulo: RT, 1989, p. 65. 443 ROCHEFORT, Juan Ignácio Piña. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”. Granada: Editorial Comares, 2002, p. 3. 444 Expressões tomadas de THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle e BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. In: Revista de processo. Ano 35, n. 189, Nov./2010. Coord. Por Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: RT, p. 30. No mesmo sentido, LOVIS, Angelo Barbosa. Súmula vinculante: exemplo da interpenetração entre os sistemas da common law e da civil law. In: Processo nos tribunais superiores. Coord. Por Marcelo Andrade Féres e Paulo Gustavo M. Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 402. 445 WESTIN, Maurício. A evolução da súmula por meio das descontinuidades históricas: elemento forjador de consenso. In: História do direito. Novos caminhos e novas versões. Org. por Miracy Barbosa de Souza Gustin, Jacqueline Passos da Silveira e Caroline Scofield Amaral, Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, p. 192.

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Atentos a esse fenômeno, Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes e

Alexandre Bahia rememoram, em boa hora, que a ciência jurídica precisa lidar com

três tipos de litigiosidade: (a) individual ou “de varejo”, sobre a qual se desenvolveu a

dogmática e onde se discutem lesões e ameaças a direitos individuais; (b) coletiva, a

respeito de direitos coletivos e difusos reclamados pelo Ministério Público,

associações representativas e outros legitimados e (c) litigiosidade em massa ou de

alta intensidade, gerando distribuição de ações repetitivas ou seriais, que

apresentam questões comuns para a solução da causa.446

Especialmente em relação a esses últimos, torna-se preocupante a

tendência técnica de criação de mecanismos de “padronização decisória” para a

resolução quantitativa das demandas sociais:

Técnicas de julgamento liminar (arts. 518, §1º, e 285-A, do CPC atual e art. 317 da PLS 166/2010), súmulas, repercussão geral, recursos especiais repetitivos e o projetado incidente de resolução de demandas repetitivas, mostram que se busca, mediante um pressuposto exegeta, padronizar comportamentos mediante decisões padrão que não conseguirão e não conseguem (como os grandes Códigos do século XIX não conseguiram) fechar o mundo nos textos (antes os Códigos, hoje as decisões padrão).447

Os mesmos autores afirmam que não se pode perder de foco a vocação

do Poder Judiciário para decidir causas e não valorar teses, pois não se pode

estabelecer “standards interpretativos” a partir do julgamento de alguns casos:

Um tribunal de “maior hierarquia”, diante da multiplicidade de casos, os julgaria abstraindo-se de suas especificidades e tomando-lhes apenas o “tema”, a “tese” subjacente. Definida a tese, todos os demais casos serão julgados com base no que foi pré-determinado; para isso, as especificidades destes novos casos também serão

446 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle e BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. In: Revista de processo. Ano 35, n. 189, Nov./2010. Coord. Por Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: RT, p. 9-52, p. 24. 447 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle e BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. In: Revista de processo. Ano 35, n. 189, Nov./2010. Coord. Por Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: RT, p. 30.

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desconsideradas para que se concentre apenas na “tese” que lhes torna idênticos aos anteriores.448

Baptista da Silva também critica a busca pela uniformização da

jurisprudência por meio das súmulas vinculantes devido a dois motivos. Primeiro,

porque entende equivocado seu pressuposto metodológico, que considera possível

a uniformidade abstrata de julgados, supostamente idênticos, com implícita recusa

ao poder criador da jurisprudência. A segunda razão repousa na constatação de que

o propósito da “súmula vinculante” não é propriamente contribuir para a evolução do

sistema jurídico, mas, ao contrário, aprisioná-lo ao passado, “impedindo que a

elaboração jurisprudencial lhe permita progredir em constante convivência com a

realidade social que lhe caiba disciplinar”.449

O rigor dessas críticas torna indispensável a problematização do caráter

vinculante das decisões tomadas pelos tribunais de segunda ou superior instância,

especialmente quando se percebe que o Poder Judiciário já não se preocupa tanto

com eventuais violações da proibição da analogia, priorizando soluções pragmáticas

em detrimento do plano da lei.450

Este padrão de atuação é ainda reforçado pela benevolência do

legislador, que cada vez mais utiliza critérios vagos e indeterminados na construção

dos tipos penais.

Em franca oposição às censuras formuladas em desfavor do instituto das

súmulas vinculantes, Mariângela Gomes considera natural que a novidade viesse

acompanhada de certo receio de que a função legislativa fosse usurpada pelo Poder

Judiciário, além de uma dose de insegurança sobre seus limites e alcance.

448 THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle e BAHIA, Alexandre. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. In: Revista de processo. Ano 35, n. 189, Nov./2010. Coord. Por Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: RT, p. 24-25. 449 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. A função dos tribunais superiores. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 158. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. A função dos tribunais superiores. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 159. 450 Segundo Hassemer, “o juiz penal de hoje parece mais inclinado a buscar soluções ‘sensatas’ do que seguir ‘cegamente’ a letra da lei, atuando assim mais teleologicamente do que gramaticalmente – uma tendência perigosa para o direito penal, de se tornar um ‘juiz do rei’” (HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 31-32).

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No entanto, acredita que o instituto “trouxe ao ordenamento jurídico

nacional uma nova forma de pensar o direito, que se dá por meio dos precedentes

judiciais”.451

E complementa:

A busca pela uniformização dos entendimentos jurisprudenciais, a partir da valorização do precedente judicial, apresenta-se como uma importante via para assegurar ao cidadão os valores contidos na expressão nullum crimen nulla poena sine lege. Este, aliás, é o caminho apontado por grande parte da doutrina estrangeira. É que não faria sentido que, num Estado cuja Carta Política acolhe os princípios da segurança jurídica, da igualdade e da unidade da Constituição, o ordenamento jurídico-penal não pudesse lançar mão de meios aptos a dirimir eventuais divergências hermenêuticas – principalmente se considerado que é finalidade própria do Estado moderno tornar previsível ou presumível, com antecipação, a atuação do Poder Público.452

No mesmo sentido, Alberto Cadoppi considera que a lógica do

“precedente” também se aplica nos sistemas onde vigoram as leis escritas, sendo

certo que as regras derivadas ou complementadas pela jurisprudência tendem a ser

mais claras e objetivas do que o texto normativo de origem, sendo mais facilmente

aplicadas pelo julgador em eventuais casos similares.453

Deve-se, todavia, advertir sobre a necessidade de se observar a inteira

similitude da hipótese discutida na súmula vinculante com o caso em julgamento,

cuja comparação não pode se restringir ao disposto em seu enunciado. Do contrário,

tanto a segurança jurídica como o princípio da legalidade ficariam prejudicados, pois

o efeito vinculante acabaria induzindo respostas iguais para situações diferentes.

Além do mais, para que o preceito sumulado seja compreendido e

adequadamente aplicado, torna-se imprescindível, pelo menos, “o conhecimento dos

acórdãos que deram origem à edição da súmula; e, em relação a eles, não é

suficiente a simples leitura da ementa”.454

451 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 78. 452 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 86. 453 CADOPPI, Alberto. Introduzione allo studio del diritto penale comparato, 2 ed., Verona: CEDAM, 2004, p. 116-117. 454 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Notas sobre as súmulas vinculantes em matéria penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 84, São Paulo: RT, maio-jun./2010, p. 97.

- 152 -

Essa advertência corresponde, com maior ênfase, ao Direito Penal, pois

não existe identidade perfeita entre um crime e outro, dado que as motivações, o

modo de execução, o poder agir de outro modo, enfim, o próprio juízo de censura é

único e incomparável.

Na verdade, o precedente vale por seus fundamentos enquanto “razões

de decidir”, vinculados ao caso concreto e suas especificidades, não como mera

proposição abstrata que o julgador deva seguir independentemente das razões que

o justificaram.455

Logo, o intérprete deve extrair de cada caso sua singularidade, aquele

dado que o destaca dos demais, para, só então, verificar se o precedente

jurisprudencial também a ele se aplica.

Afinal, conforme observado por Hassemer, “para cada decisão de uma

situação de fato com base na lei, a pessoa encarregada da decisão necessita de

informações que não se obtêm na lei, mas são igualmente determinantes na

decisão”.456

Sendo assim, a correta análise do precedente judicial é indispensável

para que a jurisprudência vinculante favoreça a segurança jurídica e torne efetivas

as garantais decorrentes do princípio da legalidade.

Não se pode, portanto, deixar de reconhecer o valor científico e

dogmático das decisões jurisprudenciais, mesmo nos países de tradição romano-

germânica, em que, diante da reconhecida tendência amplificadora do papel

interpretativo do juiz, a busca pela uniformização dos entendimentos jurisprudenciais

a partir da valorização dos precedentes também pode significar um importante

instrumento para o revigoramento do princípio da legalidade.

455 Cf. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. A função dos tribunais superiores. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 158. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. A função dos tribunais superiores. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 161. 456 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 83.

- 153 -

3 Violações da legalidade na práxis da jurisprudênc ia do Tribunal de Justiça do

Estado de Minas Gerais nos crimes contra o patrimôn io

3.1 Nota introdutória: o constante e progressivo ri gor punitivo na interpretação

judicial dos tipos penais

Procurou-se demonstrar até aqui a importância do princípio da legalidade

para a aplicação racional da lei penal; sua aceitação imediata e constante na

tradição jurídica brasileira; as dificuldades de sua efetiva observância e a corrosão

de seus preceitos, inclusive no plano internacional, determinada pela expansão do

Direito Penal.

Destacou-se também o ponto em comum das tendências político-criminais

da atualidade, consistente na reafirmação do princípio ao menos em relação à

criminalidade clássica, bem como a dissonância verificada quando se refere à tutela

dos bens jurídicos mais ameaçados pela criminalidade atual, se através do Direito

Administrativo sancionador ou do Direito Penal de duas velocidades.

Por outro lado, a preocupante tendência de se buscar a relativização dos

princípios de garantia como tática para se alcançar uma resposta punitiva mais

concreta em desfavor das condutas lesivas ao sistema financeiro, ao meio ambiente,

aos crimes cibernéticos, enfim, àquela gama de novos tipos penais voltados para a

proteção de bens jurídicos coletivos, difusos ou universais, influencia decisivamente

o tratamento dispensado aos crimes tradicionais, praticados, em regra, pelos

indivíduos mais expostos ao sistema penal.

Isso torna o Direito Penal ainda mais seletivo e irracional, como se pode

constatar pela crescente intolerância da jurisprudência em relação aos crimes

patrimoniais. Não que os julgados desconsiderem o valor e a importância dos

princípios de garantia: uma similar acusação seria certamente gratuita e ao mesmo

tempo exagerada. Ocorre que, em matéria tão recorrente, o repetido exame de

casos similares, acrescidos do expressivo volume de trabalho a cargo do juiz

criminal, conduz no campo penal a um quase imperceptível – porém constante –

aumento do rigor das sentenças, atravessando, em seu conjunto e somatória, os

limites impostos pela proibição da analogia.

- 154 -

Analisando a sobrecarga da decisão concreta e a crise do Judiciário, João

Maurício Adeodato afirma que as instâncias decisórias têm sua importância

significativamente aumentada no mundo contemporâneo com a crescente

judicialização dos conflitos, o que leva a um acentuado protagonismo do Poder

Judiciário na interpretação e concreção das normas, pois, ao decidir, o juiz lança

mão de critérios fornecidos não apenas pelas fontes do Direito, mas também por

suas inclinações pessoais, “inseridas em um contínuo de indeterminação que é

simplesmente impossível de esclarecer em sua totalidade”.457

Logo, mesmo reconhecendo no princípio da legalidade uma formidável

garantia, isso não impede que, na tarefa de interpretar a lei, a jurisprudência acabe

ampliando os limites da moldura típica.

O primeiro exemplo a lançar um facho de luz sobre a violação da

legalidade pela jurisprudência é a progressiva antecipação do momento consumativo

do furto e do roubo.

3.2 Da antecipação do momento consumativo do furto e do roubo

A questão aqui gira em torno da interpretação do núcleo dos respectivos

tipos penais, representado, em ambos os casos, pelo verbo “subtrair”.

No léxico português, o verbo “subtrair” significa “abater, deduzir,

descontar, extrair, retirar”.458

Seu significado jurídico, no entanto, tem gerado intensos debates tanto na

academia como na jurisprudência.

A doutrina tradicional considera que a subtração vai além da mera

detenção ou posse, tornando-se completa somente a partir da “sujeição da coisa ao

exclusivo poder de disposição do agente”.459

457 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. Para uma teoria da dogmática jurídica. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 278. 458 DICIONÁRIO HOUAISS: sinônimos e antônimos. 2. ed. São Paulo: Publifolha, 2008. p. 779. 459 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII: arts. 155 a 196, 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 27-28. Nesse mesmo sentido, Heleno Cláudio Fragoso cita Mezger para definir a subtração como “o rompimento do poder de fato alheio sobre a coisa e o estabelecimento de um novo” (FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte especial, v. I, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 316).

- 155 -

Firme nesse entendimento, a quase totalidade dos penalistas brasileiros

que primeiro cuidaram de interpretar as descrições típicas do Código Penal de 1940

ponderava que a consumação, tanto do furto quanto do roubo, dependia da posse

mansa e tranquila da coisa pelo autor da subtração.

Com efeito, Nélson Hungria se posicionou decididamente pela solução

que considera o furto consumado somente quando a custódia ou vigilância do dono

tiver sido totalmente iludida. Em suas palavras:

O furto é uma espoliação da propriedade, e não é espoliado patrimonialmente o dominus que, atacado na sua posse, a defende in continenti e a retoma. Não se pode considerar espoliação uma intercorrente detenção momentânea e apoquentada da coisa pelo atacante. Para que se possa falar propriamente em perda da posse, em desfalque do domínio, é indispensável que, embora passageiramente, se estabeleça a posse exclusiva e sossegada do ladrão. É preciso que este, ainda que por breve tempo, possua a coisa a salvo de hostilidade.460

Do mesmo modo, Heleno Cláudio Fragoso considera que o próprio

conceito de “subtração” exige o rompimento do poder material de detenção sobre a

coisa e o estabelecimento de um novo, o que, consequentemente, leva à

constatação de que o furto somente se consuma “quando a coisa for tirada da esfera

de vigilância do sujeito passivo, do seu poder de fato, submetendo-a o agente ao

próprio poder autônomo de disposição”.461

Mais recentemente, Weber Martins Batista, após aprofundado estudo

sobre o tema, concluiu que o furto se consuma quando a coisa subtraída não é

recuperada em sua totalidade ou quando o agente consegue tirá-la da esfera de

vigilância do lesado e logra submetê-la a seu próprio poder, ainda que por breve

tempo.462

Entre os doutrinadores contemporâneos, Rogério Greco mantém-se fiel

ao entendimento de que “somente se pode concluir pela consumação quando o

460 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, v. VII: arts. 155 a 196, 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 26. 461 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte especial, v. I, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p. 318. 462 BATISTA, Weber Martins. O furto e o roubo no direito e no processo penal. Doutrina e jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 54.

- 156 -

bem, após ser retirado da esfera de disponibilidade da vítima, vier a ingressar na

posse tranquila do agente, mesmo que por um curto espaço de tempo”.463

Os penalistas até aqui referidos integram a corrente que estende as

mesmas exigências para a consumação do furto ao crime de roubo, ou seja, não se

pode falar em consumação antes que o sujeito agente obtenha a posse tranquila da

coisa, ainda que por breve espaço de tempo.464

Outra parcela da doutrina, todavia, acompanhou o movimento

jurisprudencial que antecipou o momento consumativo do roubo, passando a

lecionar que a consumação se opera com a simples retirada da coisa da esfera de

disponibilidade da vítima mediante o emprego de violência ou grave ameaça,

independentemente da posse tranquila, ou mesmo passageira, por parte do

agente.465

Essa posição tornou-se majoritária na jurisprudência desde o final do

século passado, tendo como referência o histórico julgamento do Recurso

Extraordinário nº.102.490-9 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal,

oportunidade em que os Ministros Moreira Alves e Néri da Silveira divergiram em

seus bem fundamentos votos, inclusive com citação de ampla doutrina nacional e

estrangeira.

O acórdão ficou assim ementado:

Roubo. Momento de sua consumação. - O roubo se consuma no instante em que o ladrão se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave ameaça ou violência. - Para que o ladrão se torne possuidor, não é preciso, em nosso direito, que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, mas, ao contrário, basta que cesse a clandestinidade ou a violência, para que o poder de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse, ainda que seja possível ao antigo possuidor retomá-la pela

463 GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Parte especial. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 17. 464 Cf., por todos, GRECO, Rogério. Curso de direito penal. Parte especial, v. III, 5 ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 73; COSTA JUNIOR, Paulo José da. Direito penal: curso completo. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 326. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Parte Especial, v. 2, 2 ed., São Paulo: RT, p. 396. 465 Nesse sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte especial, v. 3, 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 116; CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. Parte especial, v. 2, 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 386; NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5 ed. São Paulo: RT, 2005, p. 638. Contraditoriamente, este mesmo autor afirma que, com relação ao crime de furto, embora a consumação ocorra do mesmo modo que no roubo, não se deve desprezar a posse tranquila da coisa em mãos do ladrão, sob pena de se transformá-lo em um crime formal, em que se pune a simples conduta e não se exige o resultado naturalístico.

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violência, por si ou por terceiro, em virtude de perseguição imediata. Aliás, a fuga com a coisa em seu poder traduz inequivocamente a existência de posse. E a perseguição – não fosse a legitimidade do desforço imediato – seria ato de turbação (ameaça) à posse do ladrão. Recurso extraordinário conhecido e provido.

Na defesa de suas posições, os ministros desenvolveram cerrada

argumentação em seus votos, valendo-se, inclusive, do direito comparado.

O Recurso Extraordinário interposto pela Procuradoria-Geral de Justiça

do Estado de São Paulo foi admitido com base no dissídio jurisprudencial verificado

entre o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, que deu

provimento ao recurso da defesa e desclassificou o delito de roubo para a forma

tentada, e julgados do próprio Supremo Tribunal Federal.

Pelo acórdão recorrido, o fato de o criminoso ter sido preso momentos

após a subtração indica que ele não teve a posse tranquila da res furtiva e, por isso,

o roubo não se consumou.

Por outro lado, a simples admissão do Recurso Extraordinário demonstra

que o Supremo Tribunal Federal já havia decidido de maneira diversa, considerando

o crime consumado mesmo sem o agente desfrutar da posse do bem subtraído.

O Ministro Moreira Alves, ao proferir o voto vencedor, iniciou sua

argumentação precisando o objeto da contenda: saber quando se consuma a ação

de “subtrair”.

Destacou que quatro são as principais teorias que procuram caracterizar

o momento de consumação do furto e, consequentemente, nesse particular, também

do roubo:

a) A teoria da contrectatio, para a qual a consumação se dá pelo simples contacto entre o agente e a coisa alheia; b) A teoria da apprehensio, (para outros, amotio), segundo a qual se consuma esse crime quando a coisa passa para o poder do agente; c) A teoria da ablatio, que tem a consumação ocorrida quando a coisa, além de apreendida, é transportada de um lugar para outro; e d) A teoria da illatio, que exige, para ocorrer a consumação, que a coisa seja levada ao local desejado pelo ladrão para tê-la a salvo.

Em seguida, argumentou, com base no direito comparado, que a teoria

dominante é a da apprehensio, situando a divergência na caracterização do que vem

a ser “apreensão”:

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Enquanto a doutrina dominante – e o mesmo sucede coma jurisprudência – entende que a subtração e apossamento (que é, no caso, a apreensão) são correlatos, sendo que a apreensão se verifica no momento em que a coisa é retirada do poder da vítima ainda que não fique no poder do ladrão (como sucede com o punguista que ao puxar a carteira do bolso da vítima a deixa cair ao chão), as opiniões dissidentes, por via de regra, admitem que haja subtração sem o consequente apossamento (apreensão), e só consideram consumado o furto quando se dê o apossamento por parte do ladrão, e, para caracterizá-lo, têm de conceituar o que é a apreensão como meio de aquisição da posse. Esse segunda colocação – que, em última análise, só tem como consumada a subtração quando, além de ser a coisa retirada do poder da vítima, o ladrão passa a tê-la em seu poder (em outras palavras: é preciso que à posse da vítima se substituta a posse do ladrão) – se situa também no âmbito da teoria da aprrehensio, e é a que se me afigura correta ainda nos países em que o Código Penal não alude a apossamento por subtração, mas se adstringe a referir-se a esta, como sucede na Alemanha, na Espanha e no Brasil.

Note-se que, ao se filiar à segunda posição, o Ministro parece cair em

contradição, visto que decidiu exatamente como os adeptos da primeira corrente,

que prescindem do apossamento para a caracterização da subtração.

É que, na construção do seu voto, tornou ainda mais preciso o objeto da

pesquisa: saber quando é que ocorre o início da posse do ladrão pela apreensão e,

consequentemente, a extinção da posse da vítima.

A partir daí, entende que o conceito de posse no Direito Penal não pode

divergir do conceito de posse do Direito Civil:

Com efeito, se a lei penal não tem elementos de que se possa extrair, indubitavelmente, um conceito penalístico de posse diverso do que lhe dá o direito civil – e essa ausência de elementos ocorre, indiscutivelmente, no furto e no roubo -, não tem sentido que, em se tratando de direito penal cuja segurança dos conceitos é garantia indispensável à liberdade, se deixe ao critério subjetivo da doutrina ou dos juízes a fixação do que vem a ser posse para o direito penal, ao invés de se observar a sua disciplina legal no campo do direito – que é o civil – onde se elaborou esse conceito.

Depois, prosseguindo em sua tese, o Ministro Moreira Alves se vale dos

institutos do Direito Civil para assim concluir:

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[...] para haver a aquisição da posse por apreensão e a consequente perda da posse contra a vontade do antigo possuidor, é preciso que se tenha poder de fato sobre a coisa, imediatamente depois de cessada a clandestinidade ou a violência, tanto assim que o possuidor esbulhado (e, portanto, o que perdeu a posse pela apreensão de outrem) poderá restituir-se (o que implica dizer: recuperar a posse) por sua própria força, se agir imediatamente, ou após breve intervalo de tempo.

E provoca, por fim:

Com base em que, senão no arbítrio, se poderá pretender, no Brasil, que alguém quando subtrai coisa alheia por ato violento ou clandestino, cessada a violência ou a clandestinidade, ainda não é possuidor, mas meramente detentor enquanto não sair da esfera de possibilidade de vir a ser seguido, de imediato, pela vítima? O Código Civil é categórico no sentido de que há, nesses casos, posse imediatamente após a cessação da violência ou da clandestinidade, tanto assim que o esbulhado pode recuperar a posse perdida se a retomar do esbulhador ainda que em virtude de perseguição imediata.

O voto divergente, proferido pelo Ministro Néri da Silveira, não é menos

contundente em seus fundamentos.

De início, cita um artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo,

edição de 20.10.1985, assinado pelo Procurador de Justiça Luís Carlos Galvão de

Barros, em que se demonstra como era vivo o embate entre as duas correntes no

âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Curiosamente, a orientação tradicional era a que considerava consumado

o roubo no momento em que se dava a subtração mediante violência ou grave

ameaça, independentemente da circunstância de ter o agente tido a posse pacífica,

ainda que breve, da coisa subtraída.

Somente por volta da década de 80 é que a corrente mais liberal passou

a dividir a preferência dos integrantes da mais alta Corte do País.

Portanto, foi com o elevado propósito de assentar-se a orientação

pretoriana, que o ministro relator trouxe aquele julgamento a Plenário.

Depois, abriu divergência amparado pelas lições de Nélson Hungria,

Heleno Cláudio Fragoso, Magalhães Noronha e, principalmente, Sebastián Soler,

cuja leitura das proposições romanas referentes à consumação do furto merecem

ser aqui transcritas:

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Pero dentro del derecho romano habia una razón fundamental para determinar las más severas teorías acerca del momento consumativo del hurto, y era ésta: no existiendo en el derecho romano la noción de la tentativa, era necesario “anticipar el elemento de la consumación, considerando ya consumado el hurto con sólo tocar la cosa, sin necesidad de llevársela. Una vez admitida en la doctrina y en la legislación la teoría de la tentativa, resulta evidente que no se hacía necesaria una delimitación tan avanzada del momento consumativo del delito como la propugnada por algunos (attrectatio). He ahí el motivo por el cual modernamente no goza de predicamento la primera de las recordadas teorías. Por motivos opuestos, puede decirse igualmente rechazada la doctrina que requiere un desarrollo muy avanzado y excesivo de la acción, cual es la que hace consistir el hurto en que la cosa hurtada haja sido puesta a buen recaudo por parte del ladrón. El hurto está consumado mientras el ladrón se lleva la cosa, aun cuando no haja llegado a su destino (SOLER, Sebastián. Derecho penal argentino, tomo IV, 1951, págs.. 182-183).

Assim, após destacar outros votos de seus pares, manteve o

entendimento que vinha esposando, na Corte, desde 1981, e negou provimento ao

recurso “por ver, efetivamente, na espécie, identificada, apenas, a tentativa de

roubo, qual reconheceu o acórdão”.

Ao término desta controvertida decisão plenária, que decidiu, por maioria,

considerar consumado o roubo com a simples apreensão da coisa mediante

violência ou grave ameaça466, a matéria se apaziguou no Supremo Tribunal

Federal467 e se irradiou para as instâncias inferiores.

Quanto ao Superior Tribunal de Justiça, desde a sua criação, ocorrida no

dia 7 de abril de 1989, prevalece a orientação assumida pelo Supremo Tribunal

Federal no sentido de que basta a inversão de posse da res para que tenha lugar a

consumação do crime, ainda que o bem não saia da esfera de vigilância da vítima

em virtude da perseguição empreendida ao agente.

466 O extrato da ata registrou o seguinte: “Conheceu-se do recurso unanimemente, e se lhe deu provimento, vencidos os Ministros Aldir Passarinho e Néri da Silveira. Plenário, em 17.09.87. Presidência do Senhor Ministro Rafael Mayer. Presentes à sessão os Senhores Ministros Djaci Falcão, Moreira Alves, Néri da Silveira, Oscar Corrêa, Aldir Passarinho, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Carlos Madeira e Célio Borja. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Rezek. Procurador-Geral da República, o Dr. José Paulo Sepúlveda Pertence”. 467 Excepcionalmente, algumas decisões do Supremo Tribunal Federal reconhecem o roubo tentado quando o caso dos autos contém uma peculiaridade que afasta a aplicação da orientação já pacificada, como, por exemplo, no julgamento do HC 104.593/MG, em que a Corte considerou que, estando monitorados pela Polícia antes mesmo do ataque ao bem jurídico, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade dos agentes (STF, HC 104.593/MG, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 8.11.2011).

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Note-se, pelos julgados abaixo, que os fundamentos ainda remontam ao

julgamento em plenário do Recurso Extraordinário nº. 102.490, realizado pelo

Supremo Tribunal Federal no longínquo dia 17 de setembro de 1987:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO. ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO À SUBTRAÇÃO DA COISA. MOMENTO CONSUMATIVO DO DELITO. PENA AQUÉM DO MÍNIMO, EM RAZÃO DA OCORRÊNCIA DE ATENUANTES. IMPOSSIBILIDADE. I - O delito de furto se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da res subtraída, pouco importando que a posse seja ou não mansa e pacífica. Assim, para que o agente se torne possuidor, é prescindível que a res saia da esfera de vigilância da vítima, bastando que cesse a clandestinidade (Precedentes do STJ e do c. Pretório Excelso). II - A jurisprudência do STF (cf. RE 102.490, 17.9.87, Moreira; HC 74.376, 1ª T., Moreira, DJ 7.3.97; HC 89.653, 1ª T., 6.3.07, Levandowski, DJ 23.03.07), dispensa, para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da chamada "esfera de vigilância da vítima" e se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da "res furtiva", ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata" (cf. HC 89958/SP, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ 27/04/2007) (STJ, 5ª Turma, REsp 982895/RS, Rel. Min. Félix Fischer, DJ 12.5.2008).

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. FURTO QUALIFICADO PELO CONCURSO DE AGENTES. APLICAÇÃO DO AUMENTO PREVISTO PARA O ROUBO CIRCUNSTANCIADO. ANALOGIA. INADMISSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ. TENTATIVA. POSSE MANSA E TRANQÜILA DA RES. DESNECESSIDADE. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. - É firme o entendimento neste Tribunal Superior que a consumação do furto se dá quando o agente consegue retirar o bem da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que não haja posse tranqüila da res, ou seja, quando o ofendido não possa mais exercer os poderes inerentes à sua posse ou propriedade (Agravo Regimental no Recurso Especial nº. 981990/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJ 30.6.2008).

Em relação ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, a

jurisprudência também se consolidou nesse sentido, pelo menos no que se refere ao

crime de roubo, encontrando-se pouquíssimas divergências no período pesquisado,

ou seja, do ano 2000 até a presente data.468

468 Veja no apêndice quadro demonstrativo com acórdãos das Câmaras Criminais dos Tribunais de Alçada e de Justiça do Estado de Minas Gerais desde o ano 2000. Até a fusão dos tribunais, ocorrida em março de 2005, a competência para julgamento dos recursos referentes aos crimes contra o patrimônio era exclusiva do primeiro, razão pela qual, em períodos anteriores, os julgados das 1ª, 2ª e

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ROUBO AGRAVADO PELO EMPREGO DE ARMA E CONCURSO DE PESSOAS - FALSA IDENTIDADE - RESISTÊNCIA - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - CONDENAÇÕES QUE SE IMPÕEM - PROVIDO O RECURSO MINISTERIAL E IMPROVIDO O RECURSO DA DEFESA. Não há qualquer relevância no fato de inexistir posse mansa e pacífica, ou que seja transitória, ou que o autor seja preso em flagrante de delito, ou que seja perseguido e preso instantes após o desapossamento. É pacífico que nos crimes de roubo - crime complexo - perpetrados mediante violência ou grave ameaça, a despeito de pretérita controvérsia quanto ao momento consumativo do crime, a maciça jurisprudência hoje já sedimentou o entendimento de que a consumação dá-se no momento exato da subtração com violência à pessoa ou grave ameaça, não tendo a questão temporal qualquer relevância, bem como independe da posse tranqüila da res, como têm decidido os tribunais, inclusive o STF (TJMG, 1ª Câmara Criminal, Apelação n. 1.0024.03.966260/001, Rel. Des. Sérgio Braga, DJ 04.05.2004).

PENAL - CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO - ROUBO DUPLAMENTE MAJORADO - EMPREGO DE ARMA E CONCURSO DE PESSOAS - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - AMPLO CONJUNTO PROBATÓRIO - RECONHECIMENTO EFETUADO PELAS VÍTIMAS - TENTATIVA - CRIME CONSUMADO - REDUÇÃO ACRÉSCIMO REINCIDÊNCIA. Havendo nos autos provas indiscutíveis da autoria, como as declarações da vítima, confirmadas por outros elementos de provas, a condenação é de rigor. Para que haja a consumação do crime de roubo basta que o agente exerça a violência sobre a vítima e faça a subtração da coisa tornando-se assim seu possuidor (TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação n. 1.0701.98.014908-5/001, Rel Des. Maria Celeste Porto, DJ 25.04.2006).

APELAÇÃO - ROUBO - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - RECONHECIMENTO DA TENTATIVA - AUSÊNCIA DE POSSE MANSA E PACÍFICA - IRRELEVÂNCIA - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE FURTO - PROVA DA GRAVE AMEAÇA CONTRA A VÍTIMA - PARTICIPAÇÃO DE MENOR IMPORTÂNCIA - NÃO OCORRÊNCIA - CUSTAS - ISENÇÃO DE OFÍCIO. - A palavra da vítima adquire especial relevância em delitos patrimoniais, se em consonância com as demais provas dos autos. - Para a consumação do roubo não é necessária a posse mansa e pacífica da ''res furtiva'', bem como é irrelevante que o bem tenha sido posteriormente restituído à vítima. - Comprovado o emprego da grave ameaça, capaz de intimidar a vítima, por meio da simulação de arma de fogo, a desclassificação para o crime de furto é incabível. - Provado que a ré praticou atos relevantes para a prática do delito, não há que se falar que sua participação foi de menor importância. - Cabe isentar do pagamento das custas processuais o réu assistido por defensor

3ª Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais referiam-se somente a casos conexos a outros delitos de sua competência. Com a fusão, o tribunal passou a contar com cinco câmaras criminais. Por fim, em 2010 foram criadas e instaladas as 6ª e 7ª Câmaras Criminais, motivo pelo qual, em relação a elas, só existem julgados a partir da data em que foram instaladas.

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público, com base no art. 10, da Lei 14.939/2003 (TJMG, 6ª Câmara Criminal, Apelação n. 1.0079.10.060964-7/001, Rel. Des. Catta Preta, DJ 31.01.2012).

No tocante ao crime de furto, todavia, a divergência se estendeu por

período mais longo, existindo até bem pouco tempo uma corrente que exigia a posse

mansa e tranquila da coisa para a consumação do delito.

A propósito, os julgados abaixo469:

CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO – FURTO SIMPLES – TENTATIVA – ABRANDAMENTO DO REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA – POSSIBILIDADE – PENA NO MÍNIMO – SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE – INCOERÊNCIA. A consumação do delito de furto verifica-se no momento em que o bem é retirado da esfera de vigilância da vítima e fica em poder tranquilo, ainda que passageiro, do meliante [...] Não houve consumação do delito, pois o agente não deteve a posse tranquila e desvigiada, mesmo que por curto espaço de tempo, da res furtiva (TAMG, 2ª. Câmara Mista, Apelação criminal nº 2.0000.00.396806-9/000, Rel. Juíza Maria Celeste Porto, DJ 1º/04/2003).

FURTO – CONSUMAÇÃO – MOMENTO – RETIRADA DA ESFERA DE VIGILÂNCIA DA VÍTIMA. Na conformidade da doutrina e jurisprudência dominantes, resta consumado, e não tentado, o delito de furto quando o agente, após subtrair os bens, é perseguido pela vítima, mas consegue desvencilhar-se dela, momento em que retira a res furtiva da esfera de vigilância da vítima, e passa a ter a sua posse e disponibilidade mansa e pacífica [...] Ora, é assente na doutrina e jurisprudência pátria que o crime de furto consuma-se quando o agente retira a res furtiva da esfera de vigilância da vítima, passando a deter a posse mansa e pacífica da coisa, ainda que por breve lapso temporal (TAMG, 2ª Câmara Mista, Rel. Juiz Antônio Armando dos Anjos, DJ 07.02.2004).

PENAL - FURTO - RECONHECIMENTO DO DELITO NA MODALIDADE TENTADA - IMPOSSIBILIDADE - RETIRADA DO BEM DA ESFERA DE DISPONIBILIDADE E VIGILÂNCIA DA VÍTIMA - RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. Voto: O Pretório Excelso também firmou, em Plenário, o entendimento aqui endossado, ao julgar caso semelhante ao que ora se apresenta, a saber: "Firmou-se em plenário a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o roubo está consumado se o ladrão é preso em decorrência de perseguição imediatamente após a subtração da coisa, não importando assim que tenha, ou não, posse tranqüila desta" (STF - HC - 74481/SP - Rel. Min. Sidney Sanches). In casu, conforme se extrai do caderno probatório, em especial do

469 Cf. quadro constante do apêndice.

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conteúdo do APFD (f. 5/9) e dos demais depoimentos constantes dos autos, a vítima, logo que percebeu o furto, perseguiu o acusado, efetuou a sua detenção e recuperou o bem subtraído. Portanto, a posse mansa e pacífica, conforme entendimento majoritário, não é requisito para a consumação do furto e, portanto, não há falar em furto tentado. Anoto, portanto, ter sido acertada a decisão primeva, já que o caso em tela amolda-se perfeitamente ao tipo penal previsto no art. 155, caput, do Código Penal (TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0313.07.235925-7/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 1º.12.2008).

Este último acórdão, julgado no dia 18 de novembro de 2008, permite

duas conclusões importantes: a primeira revela como ainda continuou repercutindo,

também em Minas Gerais, a decisão plenária do Supremo Tribunal Federal relatada

pelo Ministro Moreira Alves; em segundo lugar, demarca com precisão o período em

que a matéria começou a se pacificar no tribunal mineiro no tocante ao crime de

furto, pois registra o exato momento em que o Desembargador Pedro Vergara

mudou sua orientação, conforme por ele mesmo registrado no acórdão:

Voto: Sr. Presidente, venho reiteradamente decidindo que, para se consumar o delito de furto, era necessária a retirada do bem da alçada de vigilância da vítima; no entanto, após acurado estudo acerca da espécie, principalmente daquelas decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, estou-me reposicionando acerca da consumação do delito. Assim, voto com o Relator na espécie e passo também a considerar que o crime de furto, assim como o delito de roubo, conforme o entendimento do Supremo Tribunal Federal, consuma-se com a mera detenção da res e inimportando a posse mansa e pacífica, bem como a retirada da alçada de disponibilidade da vítima. Reposicionando, então, passo a votar desta forma e para tanto estou negando provimento (TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0313.07.235925-7/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 1º.12.2008).

A partir de então, como se constata pelo quadro descrito no apêndice, a

Justiça mineira terminou por unificar também o posicionamento a respeito do

momento consumativo do furto, prevalecendo o mesmo tratamento dispensado ao

roubo, ou seja, considerando-o consumado com a simples apreensão da coisa,

independentemente de ter o agente sua posse tranquila.

Vale insistir que o fundamento preponderante para essa tomada de

posição foi o histórico julgamento realizado plenário do Supremo Tribunal Federal,

antes destacado:

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APELAÇÃO - FURTO SIMPLES - TENTATIVA - DESCARACTERIZAÇÃO - REINCIDÊNCIA - DUPLA VALORAÇÃO - BIS IN IDEM - IMPOSSIBILIDADE - PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - SÚMULA 241 D0 STJ - REFORMA DA SENTENÇA. Conforme reiterados posicionamentos do STF, o delito de furto se consuma com a retirada do bem da esfera de disponibilidade da vítima, independente da posse mansa e pacífica do bem subtraído pelo réu. Voto: [...] Quanto ao recurso defensivo, que pretende a desclassificação para furto tentado, não deve ser dado provimento. É que o apelante teve a posse da res, ainda que por breve espaço de tempo, pois foi preso por policiais momentos após a prática do furto, ainda com os bens subtraídos em mãos. Assim, o objeto material saiu da esfera de vigilância da vítima e entrou na livre disposição do autor, caracterizando o furto consumado. Na polêmica sobre a consumação do delito do art. 157, o Plenário da Suprema Corte decidiu: "Firmou-se em Plenário a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que "o roubo está consumado se o ladrão é preso em decorrência de perseguição imediatamente após a subtração da coisa, não importando assim que tenha, ou não, posse tranqüila desta" (RTJ 135/161)". (STF - HC-74481 / SP - Rel. Min. SYDNEY SANCHES). Este entendimento é válido tanto para o roubo quanto para o crime de furto que possuem o mesmo momento consumativo. Desta forma, não importa que o réu tenha tido posse perturbada da coisa ou por pequeno lapso temporal, já que houve a retirada do bem da esfera de vigilância da vítima (TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0433.05.154365-3/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 39.05.2006).470

De todo o exposto, conclui-se, então, que a interpretação relativa ao

momento de consumação do furto e do roubo, realizada pelo Tribunal de Justiça do

Estado de Minas Gerais, tem, como um de seus fundamentos, a posição assumida

pelo Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento em plenário do Recurso

Extraordinário nº. 102.490, relatado pelo Ministro Moreira Alves.

Acontece que aquela decisão foi proferida na vigência do Código Civil de

1916 e da Constituição Federal de 1967 - substancialmente alterada pela Emenda

Constitucional nº. 1/1969, de cunho nitidamente autoritário, demonstrando, de

maneira clara, a tradição da jurisprudência brasileira de se orientar pelas ementas

dos precedentes e não por seus fundamentos, tal como criticado por Mariângela

Gomes (v. item 3.2.2, infra).

470 Note-se que o HC citado no voto remete ao julgamento do Recurso Extraordinário nº. 102.490, relatado pelo Ministro Moreira Alves.

- 166 -

Certamente, a interpretação poderia ser outra caso fossem considerados

os princípios constitucionais de garantia, posto que, num sistema regido pela

Constituição, as normas infraconstitucionais devem nela encontrar seu sopro de

validade material.

Hodiernamente não se justifica buscar no Direito Civil o conceito de posse

para ser aplicado na interpretação dos tipos penais de crime, devendo-se optar pela

interpretação que proporcione um sentido conforme a Constituição e o Estado

Democrático e Social de Direito.

De outra banda, a observância do princípio da legalidade implica a

definição de um conceito restritivo do verbo “subtrair”, elemento reitor dos tipos

penais do furto e do roubo, pois, diante da exigência de estruturação clara das

condutas criminosas, não se pode conceber que a interpretação ultrapasse o sentido

semântico do verbo, bem como resulte em significados distintos, segundo o tipo

penal no qual se encontra inserido.

Por último, o princípio da lesividade estabelece a superveniência de dano

ou perigo de dano para o objeto jurídico tutelado – no caso, o patrimônio alheio - e,

por isso, não se pode considerar caracterizado consumado o delito patrimonial antes

que a coisa subtraída ingresse no livre poder de disposição do agente, perdendo-se

de modo definitivo para a vítima.

Além do mais, a matéria, no mínimo, deveria ser rediscutida com a

entrada em vigor da Lei nº. 1.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo

Código Civil brasileiro, o qual, em seu art. 1.204, deu nova definição para o

momento de aquisição da posse, revogando, assim, o antigo art. 493, que havia

servido de fundamento para o voto vencedor do Ministro Moreira Alves.

Veja a discrepância existente entre a antiga e a nova redação do Código

Civil a respeito da aquisição da posse:

Art. 493 (Código Civil antigo): Adquire-se a posse: I – pela apreensão da coisa, ou pelo exercício do direito; II – pelo fato de se dispor da coisa, ou do direito; III – por qualquer dos modos de aquisição em geral. Art. 1.204 (Novo Código Civil): Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade.

- 167 -

Ora, se é verdade que o conceito de posse deve ser extraído do Direito

Civil, tal como ponderou o Ministro Moreira Alves em seu voto, a nova definição

formulada pelo atual Código Civil brasileiro conduziria à conclusão oposta à que ele

chegou, uma vez que a mera apreensão ou tomada do objeto não torna possível, de

imediato, o “exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à

propriedade”, sendo impossível imaginar um ladrão em fuga dispondo da coisa como

se proprietário fosse.

Portanto, ao estender os limites objetivos do momento consumativo do

furto e do roubo para além do significado semântico possível do verbo “subtrair”, a

jurisprudência contornou a proibição da analogia e, por conseguinte, do princípio da

legalidade.

Diferentemente da alteração formal da lei, que ocorre mediante a

manifestação de vontade do legislador ordinário, na ampliação do tipo penal pelo

órgão judiciário produz-se uma ruptura do princípio da legalidade.

Com efeito, quando se anuncia que determinado elemento típico está

sendo expandido de forma prejudicial à defesa, rompe-se com o espírito da

legalidade na medida em que o julgador acaba por modificar o tipo penal sem o

devido processo legislativo.

Portanto, pode-se concluir que a ampliação do momento de consumação

do furto e do roubo pela jurisprudência não obedece hoje aos limites impostos pela

descrição típica e pelos princípios constitucionais de garantia, traduzindo-se em

inequívoca afronta à proibição da analogia.

3.3 Do significado dos elementos especializantes do crime de roubo

Se no item anterior os contrastes jurisprudenciais se apresentam ao longo

do tempo, sendo, por isso, chamados “diacrônicos”, aqui eles ocorrem

concomitantemente e são denominados “sincrônicos”. 471

471 Segundo Mariângela Gomes, os contrastes diacrônicos são a melhor expressão da norma jurídica como um organismo capaz de se adaptar às mudanças do ambiente em que se encontra, afastando a ideia de um preceito cujo significado seja eternamente imutável (GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Direito penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008, p. 77).

- 168 -

Já não se trata da superação de uma jurisprudência consolidada e que

não mais corresponde às expectativas sociais, mas da convivência de duas ou mais

interpretações sobre a mesma norma ou princípio.

As divergências sincrônicas, além de afetarem a segurança jurídica e o

princípio da igualdade, transmitem a sensação de insegurança e tornam a Justiça

desacreditada.

Um caminho seguro para se evitar essa indesejada situação é prestigiar,

na sentença, o princípio da legalidade, tanto no sentido lato ou formal de reserva de

lei como no sentido estrito ou substancial de taxatividade penal.

Com efeito, a descrição utilizada pelo legislador no tipo do roubo

seguramente se destaca entre aquelas que têm desafiado a doutrina e a

jurisprudência em relação ao verdadeiro sentido e alcance de seus elementos

normativos.

Como é sabido, o roubo é um tipo penal especial em relação ao furto e

dele se difere através dos elementos especializantes ligados ao modo de execução

da subtração, que deve se realizar mediante grave ameaça, violência a pessoa ou

qualquer outro meio que reduza a vítima à impossibilidade de resistência (violência

imprópria).

Na interpretação de tais elementos, prevalece a carga normativa dos

termos, exigindo do intérprete um juízo de valor para o seu conhecimento.

Tratando-se de elementos normativos do tipo, devem ser valorados pelo

intérprete segundo os fatos e as características que determinaram o caso concreto

(v. item 2.1.2 – primeira parte).

Disso resulta que se deve esperar maior subjetividade ou

discricionariedade do juiz, servindo a proibição da analogia tão somente para

impedir interpretações extremas.

Todavia, o aumento vertiginoso da criminalidade, a sensação de

insegurança das grandes cidades e o despropositado volume de processos que

abarrotam os juízos criminais formam um ciclo vicioso que dificulta a concreção do

princípio da legalidade, em especial no crime de roubo, na medida em que,

paulatinamente, a jurisprudência tem expandido o conceito de seus elementos

especializantes sem obedecer aos limites impostos pela taxatividade.

- 169 -

Os métodos tradicionais de interpretação, a saber, gramatical, lógico e

sistemático, se mostraram insuficientes para conceituá-los, ratificando a lição de

Paulo Bonavides, para quem referidos métodos “são de certo modo rebeldes a

valores, neutros em sua aplicação, e por isso mesmo impotentes e inadequados

para interpretrar direitos fundamentais“.472

Com efeito, o advento da teoria material da Constituição e os novos

métodos interpretativos dela decorrentes representaram significativo avanço em

relação à hermenêutica clássica mediante a verificação da normatividade dos

princípios e valores, determinando daí por diante o constante aperfeiçoamento dos

mecanismos de proteção dos direitos e garantias constitucionais.

Deve-se optar, assim, por uma interpretação garantista dos elementos

especializantes do roubo, baseada na principiologia própria do Estado Social e

Democrático de Direito, “que deve servir de topos hermenêutico para confortar a

produção de sentido do novo texto advindo do processo constituinte derivado”.473

Nessa ordem de ideias, o princípio da legalidade indica a necessidade de

se realizar uma interpretação restritiva para tornar mais clara e precisa a conduta

efetivamente proibida pelo tipo, afastando, assim, o gérmen da insegurança jurídica.

O princípio da igualdade, por sua vez, reforça tal exigência para evitar

julgamentos desiguais. Afinal, o modo de execução da subtração funciona como

fator discriminador da conduta, transformando o furto em roubo (delictum sui

generis). Considerando-se que o elemento divisor não pode, isoladamente, fornecer

o critério de sua validade, a finalidade do agente deve ser considerada para análise

do acerto da discriminação. No crime de roubo, tal finalidade é voltada para a

subtração de coisa alheia móvel, consistindo a eleição da grave ameaça ou violência

em discrímen devido à maior probabilidade de êxito por parte do agente. Ocorre,

todavia, que outros modos de execução podem ser tão ou mais eficazes, como, por

exemplo, a fraude, o que torna injustificada a opção do legislador em censurar de

maneira mais grave aqueles em contraste com este.

472 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 607. 473 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 107.

- 170 -

Inteiramente procedente a lição de Assis Toledo, para quem “a tipificação

deve acentuar um comportamento particular, isto é, o fato-do-agente, não a pessoa-

agente por sua forma de vida”.474

Também por isso, a interpretação do vocábulo deve ser restritiva.

Relativamente ao conceito de “grave ameaça”, torna-se imperioso

perceber, de imediato, que o legislador, não por acaso, valeu-se do adjetivo “grave”

para significar que não é qualquer ameaça durante a subtração que transforma o

furto em roubo, mas somente aquela capaz de, efetivamente, intimidar a vítima e

torná-la indefesa frente ao ataque do agente.

O argumento segundo o qual a palavra da vítima ou outras provas

indiretas bastariam para caracterizar a grave ameaça não pode ser aceito sem

maiores cautelas, devendo o julgador se basear em dados concretos para o

julgamento.

Sob esse ângulo, o princípio da legalidade não vem sendo respeitado em

algumas decisões do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, como a que

reconheceu o emprego de grave ameaça na conduta de quem, após arrebatar um

aparelho celular que se encontrava em poder da vítima, “faz menção de estar

armado colocando uma das mãos sob a camisa” (TAMG, 1ª Câmara Mista,

Embargos Infringentes nº. 2.0000.00.420968-1/001, Rel. Juiz Eduardo Brum, DJ

02.03.2005); empolga um “espetinho de bambu” (TJMG, 5ª Câmara Criminal,

Apelação nº. 2.0000.00.488612-4/000, Rel. Des. Maria Celeste Porto, DJ

1º.07.2005) ou simula o “porte de algum instrumento apto a ferir” (TJMG, 6ª Câmara

Criminal, Apelação nº. 1.0024.09.754354-0/001, Rel. Des. Furtado de Mendonça, DJ

18.10.2011).

A propósito do vocábulo “violência”, a dificuldade de se conceituá-lo

reside no fato do legislador, na construção do tipo incriminador, tê-lo utilizado como

espécie e não como gênero.

Assim, a violência, como gênero, é representada no Código Penal

brasileiro através das espécies violência física (violência propriamente dita) e

violência moral (ameaça); violência contra a pessoa e violência contra a coisa;

violência real e violência presumida; violência própria e violência imprópria.

474 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 137.

- 171 -

Quanto à “violência moral”, o Código Penal sempre se refere a ela através

da expressão grave ameaça, havendo consenso na doutrina e jurisprudência em

excluí-la quando o tipo referir-se somente ao termo violência.

A “violência contra a coisa” fica também excluída do vocábulo “violência”

tendo em vista o princípio da proporcionalidade, uma vez que a “violência contra a

pessoa” revela em nosso ordenamento jurídico um maior desvalor da ação.

Logo, quando o vocábulo “violência” figurar sozinho na descrição típica de

determinado delito, deve também ser interpretado restritivamente nesse aspecto,

circunscrevendo apenas a hipótese de violência contra a pessoa.

Finalmente, considerando ainda que o princípio da ofensividade exclui as

hipóteses de violência presumida e vias de fato, pode-se concluir que o vocábulo

“violência”, quando inserido isoladamente no tipo, deve ser interpretado

restritivamente como “violência física contra a pessoa da qual resulta lesão

corporal”.475

Desse modo, questões práticas que há muito buscam consenso na

doutrina e jurisprudência poderiam ser facilmente resolvidas, como é o caso de se

saber se a subtração de coisa alheia móvel mediante o artifício da “trombada”

caracteriza o crime de furto ou roubo.

Aplicando-se o conceito de violência acima obtido, a questão se resolve

através da análise de cada caso concreto, devendo-se perquirir inicialmente se

resultou lesão corporal caracterizadora do emprego de violência.

Em caso negativo, embora afastado de plano o emprego de violência, a

hipótese de roubo não fica automaticamente descartada, podendo as simples vias

de fato caracterizar a grave ameaça desde que tenha interferido no poder de reação

da vítima e esteja, ao menos implicitamente, descrita na denúncia.

O certo, porém, é que a jurisprudência continua instável quando se trata

de considerar o emprego de violência para a subtração de coisa alheia móvel,

encontrando-se, não raras vezes, decisões que estendem o conceito do vocábulo

para muito além do seu sentido literal, conferindo-lhe uma interpretação extensiva

em clara ofensa ao princípio da legalidade.

475 MARCHI JÚNIOR, Antônio de Padova. Do conceito de violência na parte especial do código penal. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2002, p. 176.

- 172 -

A título de exemplo, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de

Minas Gerais já formulou um juízo de tipicidade do roubo na ação de quem subtrai

coisa alheia através de um simples contato físico (TJMG, 2ª. Câmara Criminal,

Apelação nº. 1.0183.04.064004-1/001(1), Rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires, DJ

20.6.2008), vias de fato (TJMG, 5ª. Câmara Criminal, Apelação nº.

1.0672.06.205375-2/001(1), Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 21.4.2007) ou violência

contra a coisa (TJMG, 4ª. Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0702.06.323040-

4/001(1), Rel. Des. Walter Pinto da Rocha, DJ 04.04.2008).

Tais excessos interpretativos acabam ocasionando graves rupturas em

nosso ordenamento jurídico diante do tratamento desproporcional concedido a

situações jurídicas semelhantes.

Exatamente por isso, a jurisprudência deve impedir a arbitrariedade da

decisão, impondo limites ao conceito das expressões típicas.

3.4 Sobre a conformação da tipicidade material no c rime de furto

Outro ponto de incômoda divergência presente na jurisprudência do

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais se refere ao tratamento dispensado

ao princípio da insignificância nos crimes patrimoniais.

Nessa quadra se percebe uma oscilação tanto em relação à discussão

sobre a legislação brasileira ter recepcionado ou não o princípio como quais ofensas

ao patrimônio devem ser consideradas bagatelares.

A primeira controvérsia pode ser facilmente deduzida do contraste entre

decisões tomadas em direções opostas, como se depreende dos acórdãos abaixo:

APELAÇÃO CRIMINAL. FURTOS SIMPLES CONSUMADO E TENTADO. INVOCAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. OBJETOS SUBTRAÍDOS COM AVALIAÇÃO ÍNFIMA. IRRELEVÂNCIA DA CONDUTA NA ESFERA PENAL. AUSÊNCIA DE PERICULOSIDADE SOCIAL DA AÇÃO. REDUZIDO GRAU DE REPROVABILIDADE DO COMPORTAMENTO DO AGENTE. CABIMENTO. Pelo princípio da insignificância, é necessário que haja proporção entre a gravidade da conduta que se pretende punível e a proporção da intervenção estatal, não sendo, portanto, a ofensa a determinados bens jurídicos suficiente para a configuração do injusto penal, por não apresentar nenhuma relevância material. Não

- 173 -

configuradas a lesividade da conduta do agente e a periculosidade social da ação, sendo mínima a ofensividade da conduta e reduzido o seu grau de reprovabilidade, cabível a aplicação do princípio da insignificância para absolver o acusado. As condições pessoais do agente, como a reincidência, por exemplo, pouco importa para o reconhecimento do princípio da insignificância, pois o referido princípio possui natureza meramente objetiva, pouco importando, para o deslinde da ação, elementos subjetivos do réu. Apelação provida (TJMG, 2ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0480.10.010158-7/001, Rel. Des. Nelson Missias de Morais, DJ 31.01.2012).

APELAÇÃO CRIMINAL - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INAPLICABILIDADE - PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. O princípio da insignificância não foi contemplado em nosso ordenamento jurídico penal, que se contenta com a tipicidade formal. Tal princípio é aplicado em momento anterior à elaboração da lei, servindo como orientador do legislador para a seleção de condutas penalmente relevantes a serem tipificadas conforme o grau de lesividade ao bem jurídico protegido (TJMG, 7ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0699.09.104241-5/001, Rel. Des. Marcílio Eustáquio Santos, DJ 03.02.2012).

A segunda controvérsia é menos incisiva, posto que circunscrita àqueles

que defendem a aplicação do princípio, sendo certo que o tribunal mineiro, mais uma

vez, passou a se orientar pelos precedentes oriundos do Supremo Tribunal Federal

e do Superior Tribunal de Justiça, condicionando a aplicação do princípio a quatro

requisitos, a saber: (a) a mínima ofensividade da conduta; (b) a falta de

periculosidade social da ação; (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do

comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.476

Referentemente a este último requisito, prevalece entre os integrantes da

cúpula judicial mineira o entendimento de que a lesão patrimonial será insignificante

caso o valor econômico do bem subtraído não alcance o percentual de 10% (dez por

cento) do salário mínimo vigente.477

476 Nesse sentido: TJMG, 2ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0273.10.000489-7/001, Rel. Des. Nelson Missias de Morais, DJ 27.01.2012; TJMG, 1ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0024.11.057449-8/001, Rel. Des. Walter Luiz, DJ 03.02.2012; TJMG, 2ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0456.10.000606-7/001, Rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires, DJ 09.02.2012. 477 Nesse sentido: TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0000.08.480824-5/000, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 20.10.2008; TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0414.05.011279-9/001, Rel. Des. Pedro Vergara, DJ 02.06.2007; TAMG, 2ª Câmara Criminal, Apelação nº. 2.0000.00.356431/000, Rel. Juiz Erony da Silva, DJ 28.05.2002.

- 174 -

Lúcio Antônio Chamon Júnior criticou a maneira aproblemática como a

doutrina e a jurisprudência assumiram a interpretação do juízo de tipicidade a partir

de uma “suposta” aplicação constitucional do Direito Penal.478

Sua principal observação reside na constatação de que os critérios

utilizados para demarcar a insignificância da subtração, ou seja, a “mínima

ofensividade da conduta”, a “falta de periculosidade social da ação”, o

“reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento” e a “inexpressividade da

lesão”, encontram-se atrelados a interpretação do Direito Penal em termos político-

criminais e, portanto, “orientados ao alcance de certas finalidades quando de sua

aplicação”, o que, em outros termos, representa a corrosão do sistema do Direito e

sua substituição pelo sistema da Política.479

Afinal, a argumentação assim pautada pressupõe uma ordem concreta

que determina os “parâmetros” da reprovabilidade da conduta, “que acaba se

transmutando numa reprovabilidade ética e não efetivamente jurídica”.480

Desse modo, o princípio não poderia ser assumido como medida

mensurável valorativamente em torno de razões pragmatistas, morais ou éticas, mas

em face de argumentos jurídicos a concluir pelo seu “significado atípico”.

Insignificância, então, implicaria uma “não realização do tipo”, e jamais uma

“pequena, insignificante, realização do tipo...”.481

Termina por fazer um apelo em prol da definição da insignificância penal

de uma conduta num devido processo legislativo, onde os parâmetros - “sempre

interpretáveis principiologicamente à luz dos futuros casos concretos” - deveriam ser

construídos como forma de se evitar que a força normativa do Direito fosse

violentada a cada decisão fundada em meras convicções pessoais do julgador.482

478 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal. Contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149. 479 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal. Contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 153. 480 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal. Contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 162. 481 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal. Contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 165. 482 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal. Contribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 166.

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De todo modo, não é correto deixar de aplicar o princípio da

insignificância sob o argumento de que ele não foi recepcionado pela legislação

brasileira, pois a questão se resolve mesmo no âmbito do juízo da tipicidade.

Ao definir a conduta típica, o legislador não pode prever as infinitas

possibilidades de sua realização, sendo, por isso, necessário corrigir seu alcance

para impedir que condutas desprovidas de potencialidade lesiva ao bem jurídico

venham a ser punidas com a privação da liberdade ou a restrição de direitos do

indivíduo.

Com efeito, a subtração de pequena monta não configura ofensa concreta

ao patrimônio da vítima, o que afasta o juízo de tipicidade material da conduta tanto

em relação ao furto como ao roubo.

Em relação a este último, percebe-se uma discriminação jurisprudencial

fundada na natureza complexa do delito, estabelecendo que o emprego de grave

ameaça ou violência, por si só, afastaria a possibilidade de aplicação do princípio da

insignificância, o que tem provocado diversas condenações gritantemente

desproporcionais.

Na verdade, sendo o delito de roubo espécie de crime complexo, a

conformação do juízo de tipicidade depende, necessariamente, da efetiva lesão de

ambos os bens jurídicos protegidos pelo tipo, o patrimônio e a integridade física ou

liberdade da pessoa.

Se o bem subtraído não possuir valor econômico relevante, não haverá

ofensa ao patrimônio; se a ameaça não for suficiente para intimidar a vítima, não

haverá “grave ameaça”; por fim, se da agressão física não resultar lesão corporal,

não haverá “violência”. Em todos os casos, a insignificância da conduta, seja em

relação ao bem subtraído, seja em relação ao modo de execução do crime, afasta o

juízo de tipicidade do roubo.

Mais uma vez, a relutância em se admitir a insignificância no roubo tem

provocado contrastes jurisprudenciais sincrônicos que afetam não apenas a

segurança jurídica, mas também o princípio da igualdade, fazendo reluzir a

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observação de José Marcelo Menezes Vigliar no sentido de que ao jurisdicionado

deve ser reservado mais que a simples sorte à moda lotérica483:

APELAÇÃO - ROUBO - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - CRIMES COM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA - DELITO COMPLEXO - TIPICIDADE MATERIAL - NECESSIDADE DE OFENSA A AMBOS OS BENS JURÍDICOS TUTELADOS - DESCLASSIFICAÇÃO - CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE - DECADÊNCIA DO DIREITO DE REPRESENTAÇÃO. I - É possível a incidência do princípio da insignificância mesmo nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, porque o juízo de tipicidade material não passa pela análise do comportamento da vítima, ou seja, seu dissenso ou contrariedade à ação do agente e, sim, em um juízo de lesividade da conduta - "nullum crimem sine iniuria". II - Sendo o delito de roubo espécie de crime complexo, a lesividade da conduta para se adequar a este tipo penal deve abranger necessariamente os dois valores protegidos pela norma, sendo imprescindível significativa lesão ao patrimônio e à pessoa, cumulativamente. III - Não havendo lesividade relevante ao patrimônio da ofendida, ocorre a descaracterização do crime complexo de roubo, resultando na desclassificação do delito para o subsidiário crime de lesão leve, descrito no art. 129 do codex. IV - Opera-se a decadência do direito de representação se o ofendido não o exerce dentro de seis meses, contado do dia em que veio saber quem é o autor do crime (TJMG, 5ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0433.03.093369-4/002, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 13.07.2009).

APELAÇÃO CRIMINAL. ARTIGO 157, § 2º, II, DO CÓDIGO PENAL. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. CONFISSÃO JUDICIAL. PALAVRA DA VÍTIMA. TESTEMUNHOS COLHIDOS SOB O CRIVO DO CONTRADITÓRIO. CONDENAÇÃO MANTIDA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. Havendo prova cabal da autoria e materialidade do delito de roubo majorado descrito na denúncia, consubstanciada na palavra da vítima, em consonância com testemunhos colhidos sob o crivo do contraditório, resulta inviável a súplica absolutória. Inviável a aplicação do princípio da insignificância ao roubo, uma vez que a violência e a grave ameaça contidas no tipo penal não podem ser consideradas de menor importância. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça (TJMG, 2ª Câmara Criminal, Apelação nº. 1.0461.04.0215333-1/002, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ 30.09.2011).

Considerando que a razão de ser do princípio da legalidade reside na

distribuição regular e igualitária da lei penal, bem como na possibilidade de cada

cidadão conhecer exatamente quais são as condutas proibidas e suas respectivas

483 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Uniformização de jurisprudência como garantia do jurisdicionado. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: USP, s/d, p. 252.

- 177 -

sanções, a existência de uma jurisprudência contraditória, na qual a sorte do

acusado depende da distribuição do seu processo, impede a concreção de seus

postulados e acentua a irracionalidade do sistema penal.

- 178 -

4 Uniformização da interpretação da legislação infr aconstitucional e controle

da legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça

4.1 Função institucional do Superior Tribunal de Ju stiça

4.1.1 Origem e competência

A justiça comum brasileira é dividida entre as esferas estadual e federal.

Paralelamente a elas desenvolvem-se as justiças especializadas Eleitoral, Militar e

Trabalhista.

A Justiça Estadual está estruturada em duas instâncias: o primeiro grau,

formado pelos juízes estaduais, lotados por entrância (art. 93, II, CF) e o segundo

grau, representado pelo Tribunal de Justiça.

A Justiça Federal também possui a mesma dicotomia: enquanto a

primeira instância fica a cargo dos juízes federais, a segunda instância é repartida

entre os Tribunais Regionais Federais.

O Supremo Tribunal Federal, até 1988, atendia como exclusivo órgão de

cúpula da justiça comum, competindo-lhe, através do recurso extraordinário, o

controle e a uniformização do direito constitucional e infraconstitucional.

A estrutura do órgão, ou pelo menos sua composição, praticamente se

manteve desde a Constituição de 1891, quando era formado por quinze Ministros.

Em 1924 passou a ser composto por onze Ministros e assim se manteve até 1967,

quando alcançou dezesseis Ministros e, depois, a partir da Emenda Constitucional

nº. 1 de 1969, retornou à formação com onze Ministros, que perdura até hoje.

O aumento significativo da população brasileira, o avanço industrial e o

desenvolvimento econômico, aliados às grandes transformações políticas e sociais

ocorridas no período, determinaram o estrangulamento do Supremo Tribunal

Federal, o qual, com seus onze Ministros, não tinha como julgar os recursos

extraordinários que ali aportavam diariamente.

A não apreciação dos recursos extraordinários contaminou a justiça

comum como um todo, fazendo com que surgissem divergências de interpretação da

lei ordinária entre as Justiças Estaduais e entre estas e a Justiça Federal.

- 179 -

Como não poderia deixar de ser, os meios jurídico e acadêmico passaram

a se preocupar com o problema, que ficou conhecido como a “crise do Supremo

Tribunal Federal”.484

As medidas paliativas se sucederam e vários óbices procedimentais foram

sendo paulatinamente estabelecidos para filtrar, cada vez com mais intensidade, a

subida dos recursos extraordinários, a ponto do regimento interno da Corte adotar o

instituto do “Agravo de Relevância” com o propósito de permitir a apreciação das

demandas que, barradas pelos óbices, apresentassem grande repercussão social.

A criação do Superior Tribunal de Justiça foi a mais contundente medida

adotada pelos constituintes de 1988 para o enfrentamento da crise, mas a sua

concepção remonta à época anterior à elaboração do novo texto constitucional.

Com efeito, a mesa redonda realizada pela Fundação Getúlio Vargas em

1965 é frequentemente lembrada como o acontecimento no qual foram lançados os

fundamentos do Superior Tribunal de Justiça, com a incumbência de velar pela

autoridade e uniformidade do direito federal.485

A Ministra Eliana Calmon Alves destaca ainda outros dois episódios que a

levaram à conclusão de que, ao se instalar a Assembléia Nacional Constituinte em

1987, já havia um consenso quanto à criação de um tribunal nacional: o discurso de

aposentadoria do Ministro Aliomar Baleeiro, do Supremo Tribunal Federal, ocorrido

em 1975 e o encaminhamento de um anteprojeto de “Reforma do Judiciário” feito

pelo Tribunal Federal de Recursos ao Congresso Nacional no ano de 1976, onde era

proposta a descentralização da Justiça Federal, com a criação dos Tribunais

Regionais Federais, ao tempo em que era destacada a imprescindível criação de um

órgão uniformizador do Direito Federal.486

Foi, portanto, para assegurar a “inteireza positiva, a validade, a autoridade

e a uniformidade de interpretação das leis federais”487 que, em 7 de abril de 1989,

instalou-se o Superior Tribunal de Justiça.

484 Cf. ZVEITER, Waldemar. O sistema federalista no Brasil e o Superior Tribunal de Justiça. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 422. 485 VELOSO, Carlos Mário da Silva. O Superior Tribunal de Justiça na Constituição de 1988. In, Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, vol. 77, nº. 638, p. 15-29, dez./1988. 486 ALVES, Eliana Calmon. O Superior Tribunal de Justiça na Constituição. In, http://bdjur.stj.jus.br, 2000. 487 NAVES, Nilson. Discurso de posse no cargo de Presidente do Superior Tribunal de Justiça. In, http://bdjur.stj.jus.br.

- 180 -

Lapidar é a definição de Arruda Alvim precisamente sobre a função

institucional do Superior Tribunal de Justiça:

A função jurisdicional exercida pelo Superior Tribunal de Justiça representa a culminância e o fim da atividade judicante em relação à inteligência de todo o direito federal de caráter infraconstitucional. Significa sempre a última e definitiva palavra sobre o seu entendimento e a sua aplicação. O conhecimento do direito positivo federal infraconstitucional, na sua percepção final e última, é indesvinculável da casuística em que se estampa a interpretação do STJ.488

Desse modo, o Poder Judiciário brasileiro passou a contar em sua

estrutura com dois órgãos regentes, o Supremo Tribunal Federal e o Superior

Tribunal de Justiça.

O primeiro, como visto, é composto de onze Ministros489, brasileiros natos

(CF, art. 12, §3º, IV), escolhidos entre cidadãos com mais de 35 e menos de 65 anos

de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada (CF, art. 101), nomeados pelo

Presidente da República após aprovação da escolha pela maioria absoluta do

Senado Federal.

A tarefa fundamental do Supremo Tribunal Federal é a guarda da

Constituição, executada tanto através do controle concentrado por meio das ações

diretas de (in)constitucionalidade, como mediante o controle difuso, que ocorre

principalmente quando do julgamento dos recursos extraordinários.490

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, é composto de, no mínimo,

trinta e três Ministros, divididos em seis Turmas491, estas com competência em razão

da matéria. A Primeira e a Segunda Turmas compõem a Primeira Seção,

especializada em temas de Direito Público; a Terceira e a Quarta Turmas, a

Segunda Seção, especializada em Direito Privado; e a Quinta e Sexta Turmas, a

Terceira Seção, especializada em Direito Penal.

488 ALVIM, Arruda. A alta função jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no âmbito do recurso especial e a relevância das questões. In: STJ 10 anos: obra comemorativa. Brasília: STJ, 1999, p. 37. 489 O título de Ministro, no Poder Judiciário, é reservado aos juízes que integram os Tribunais Superiores. 490 Nesse sentido, CARNEIRO, Athos Gusmão. O papel da jurisprudência no Brasil. A súmula e os precedentes jurisprudenciais. Relatório ao Congresso de Roma. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 328. 491 Designação dos órgãos fracionários dos tribunais superiores.

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Dois terços dos integrantes do Superior Tribunal de Justiça são

provenientes da Magistratura Federal e Estadual de 2º grau, e o terço restante do

Ministério Público e da Advocacia, todos escolhidos pelo Presidente da República

entre os nomes constantes de lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal, e

nomeados após aprovação pelo Senado (CF, art. 104 e parágrafo único, I e II).

O Superior Tribunal de Justiça possui a missão de assegurar a aplicação

e a uniformidade da legislação infraconstitucional, sendo sua competência dividida

em três grandes grupos, consoante o art. 105 da Constituição Federal.

O primeiro refere-se à competência originária estabelecida pelo inciso I do

referido artigo.

Pelo texto constitucional, compete ao Superior Tribunal de Justiça

processar e julgar, originariamente, as autoridades detentoras de foro privilegiado

expressamente indicadas na alínea a do mencionado dispositivo.

No âmbito civil, o Superior é responsável pelo julgamento dos mandados

de segurança e habeas data contra ato dos Ministros de Estado, dos Comandantes

da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, e de seus próprios Ministros (alínea b).

A competência original também foi estabelecida para os habeas corpus,

quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea a, ou

quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição, Ministro de Estado ou

Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência

da Justiça eleitoral (alínea c).

A competência originária se completa com as alíneas d a i, do inciso I, art.

105, da Constituição Federal.

O segundo grupo de competência refere-se às hipóteses de recurso

ordinário, em que o Superior Tribunal de Justiça faz o papel de verdadeiro órgão de

revisão, como ocorre nos habeas corpus e mandados de segurança decididos em

única instância pelos Tribunais Regionais Federais ou Tribunais Estaduais, quando

denegatória a decisão (art. 105, II, alíneas a e b, CF).

Do mesmo modo acontece nas causas em que forem partes Estado

estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, do outro, Município ou

pessoa residente ou domiciliada no País (art. 105, II, alínea c).

Por fim, como terceiro e último grupo de competência, o Superior Tribunal

de Justiça julga, através do recurso especial, as causas decididas em única ou

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última instância, pelos Tribunais Regionais Federais, Estaduais ou do Distrito

Federal e Territórios, quando a decisão recorrida (a) contrariar tratado ou lei federal,

ou negar-lhes vigência; (b) julgar válido ato de governo local contestado em face de

lei federal e (c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído

outro tribunal (art. 105, III, CF).

4.1.2 A especial função de proteção da liberdade através do controle da legalidade

Quanto mais desenvolvido o estágio civilizacional de uma nação, mais a

liberdade estende suas fronteiras na disputa permanente contra o arbítrio.

Exatamente por isso, cumpre ao Tribunal da Cidadania manter-se

ajustado à realidade social, política e econômica do país, respeitando os anseios da

sociedade por maior liberdade e democracia.

No campo estritamente penal, a lógica da seletividade deve ser revertida

em prol da igualdade de todos perante a lei, superando a crise de legitimidade que

há tempos afeta o sistema, conforme demonstrado por Vera Regina Pereira de

Andrade:

A segurança do homem tem sido colonizada e hegemonizada pela exigência de segurança do próprio sistema social que o sistema penal contribui a reproduzir, exercendo seu poder contra alguns homens – os mesmos expropriados na partilha real do poder – em benefício de outros – os seus detentores.492

Criticando as oportunidades que se oferecem de maneira diferenciada

aos diversos grupos sociais, Vincenzo Ruggiero endossa os dizeres da criminóloga

brasileira:

Las desigualdades sociales determinan grados diversos de libertad, por lo que los individuos gozan de garantías para cierto número de decisiones y un rango específico de potenciales acciones que podrían realizar. Cada nivel de libertad ofrece una posibilidad de actuar, de elegir objetivos para el proprio comportamiento, y medios para hacer posibles las decisiones. A mayor grado de libertad, mayor

492 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 314.

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rango de opciones des de predecir de manera realista los resultados y las consecuencias.493

Logo, a proteção da liberdade e o ideal de igualdade devem encontrar nos

tribunais superiores um acentuado reforço, conforme anotado por Pinto Ferreira,

para quem “a liberdade limita a lei e não a lei limita a liberdade”.494

O referido autor ainda destaca:

A Constituição é justamente uma força de contenção e os tribunais se apresentam como os grandes instrumentos de guarda da Constituição e da lei, especialmente os tribunais superiores e entre eles no Brasil o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, o primeiro como guarda da Constituição e o segundo como guarda da ordem jurídica federal.495

A missão constitucionalmente atribuída ao Superior Tribunal de Justiça,

de atuar como tutor da inteireza positiva, da autoridade e da uniformidade

interpretativa da lei federal, se funde com a destacada tarefa de “guardiã da

liberdade”, na feliz expressão do Relator-Geral da Assembleia Nacional Constituinte,

Senador Bernardo Cabral496.

E defender a liberdade na seara penal significa defender o princípio da

legalidade, não por acaso expressamente previsto no primeiro artigo do Código

Penal. Afinal, ele tem sua origem no movimento ilustrado que se rebelou contra o

arbítrio e a opressão que remarcavam o sistema penal do final do século XVIII.

Com efeito, conforme registrado na nota histórica (cf. item 1.1 - primeira

parte), a liberdade como direito individual somente se consagrou por força do

princípio da legalidade, quando então o poder punitivo do Estado ficou restrito às

hipóteses previamente descritas em lei e limitado pela respectiva sanção cominada.

Sendo assim, a tarefa exclusiva do Superior Tribunal de Justiça de

interpretar e uniformizar o Direito federal ganha ainda mais importância na esfera do

493 RUGGIERO, Vincenzo. Delitos de los débiles y de los poderosos: ejercicios de anticriminologia. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005, p. 217. 494 FERREIRA, Pinto. O Superior Tribunal de Justiça. In: STJ 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: STJ, 1999, p. 193. 495 FERREIRA, Pinto. O Superior Tribunal de Justiça. In: STJ 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: STJ, 1999, p. 193. 496 CABRAL, Bernardo. Superior Tribunal de Justiça: 10 anos. In: STJ 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: STJ, 1999, p. 55.

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Direito Penal, que possui, como um de seus principais pilares, o princípio da

legalidade.

Referido princípio, entretanto, não está isolado no sistema, conectando-se

aos demais direitos e garantias fundamentais que ditam o Estado Democrático de

Direito.

Tais comandos elevaram expressamente a dignidade da pessoa humana

como fundamento do Estado (CF, art. 1º, III) e a inviolabilidade do direito à liberdade

como um objetivo a ser perseguido e repeitado por todos (CF, art. 5º, caput).

Para que o texto normativo seja válido, não basta a simples obediência

formal ao procedimento legislativo, exigindo-se ainda uma perfeita sincronia com a

ideologia do ordenamento jurídico como um todo.

Ao Poder Judiciário compete, então, promover a crítica através dos

princípios vigentes, afastando-se de um raciocínio meramente formal para encontrar

o sentido material e ideológico da lei.

Outra não é a lição de Luiz Vicente Cernicchiaro:

O Judiciário não pode desenvolver mero raciocínio formal. As premissas também precisam ser objeto de crítica. Dentre os – “Princípios Fundamentais” – da Carta Política – o art. 1º, no inciso III, realça a – dignidade da pessoa humana! Costumo dizer, a Carta Política, como as demais normas jurídicas, encerra propósitos para caracterizar o Estado Democrático; busca realizar a “igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (Preâmbulo). A Constituição, como o restante do ordenamento jurídico, tem em mira promover a – justiça material. Representa momento histórico de transição! [...] O trabalho do legislador deve ser analisado no sentido material e ideológico! A lei é meio, trânsito para realizar – valores! Se os contraria, evidente, perde legitimidade. Aqui, resplandece a grande importância do Poder Judiciário. Toda norma (legislada, ou não) precisa passar pela crítica de dois referenciais: a) crivo formal (obediência ao procedimento legislativo); b) crivo material (obediência aos princípios do Direito, de que a Constituição é aspecto importante). A própria Carta Política torna-se objeto de análise, dado poder encerrar dispositivos que desviem do referencial teleológico de suas normas [...] O casuísmo, entretanto, cede espaço à principiologia que, aliás, dispensa, para sentir-se sua extensão, o ditado do legislador. Cultura, respectivos valores, independem de declaração formal. Impõem-se, ao contrário, ao próprio legislador. E também ao Poder Judiciário. Assim o é porque a lei, além de obedecer ao procedimento legislativo (aspecto

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formal), precisa submeter-se aos princípios axiológicos (ainda que não explicitados), o que corresponde à legitimidade!497

Desse modo, o Superior Tribunal de Justiça, ao analisar materialmente a

legislação infraconstitucional, promove a interpretação condizente do tipo com o

espírito do ordenamento imposto pelo Estado Democrático de Direito, adequando

seu alcance até o limite permitido pelo princípio da legalidade.

A competência de zelar pela uniformização da lei federal não pode e nem

deve ser repartida com o Supremo Tribunal Federal, que por vezes tem extrapolado

suas relevantes funções para decidir causas em que a palavra final competiria ao

Superior Tribunal de Justiça, transmudando-o de órgão final a mera instância de

passagem.498

O Ministro Nilson Naves discorreu sobre o tema e, ao final, concluiu:

1. É do Superior toda a jurisdição infraconstitucional (direito ordinário), salvo hipóteses que dizem respeito a determinados membros de Poder, como o presidente da República (Constituição, art. 102, I, b e d). 2. No exercício das competências previstas nos incisos I e II do art. 105, livremente o Superior também dispõe do contencioso constitucional. Por certo, é-lhe lícito o modelo difuso-incidental de controle de constitucionalidade. Sua palavra não é final; em tese, sempre haverá o recurso extraordinário. 3. No exercício da competência prevista no inc. III do art. 105, amplamente o Superior dispõe do contencioso infraconstitucional. Em princípio, não tem o contencioso constitucional. Tê-lo-á em uma ou duas hipóteses, podendo fazer, incidente e previamente, declaração de inconstitucionalidade. Não, se em benefício da parte recorrente. 4. É do Supremo a jurisdição constitucional. É o Tribunal da Constituição, órgão mais de natureza política - Corte de Justiça Política. Do Supremo esperar-se-ia, como alhures se esperou, se substituísse ao poder moderador. Melhor ficaria se transformado em Corte Constitucional, exclusivamente. 5. Para zelar pela guarda da Constituição, todos os instrumentos são úteis, necessários e legítimos ao Supremo. Ao lado do modelo difuso-incidental, compete-lhe, e somente a ele, o modelo concentrado-abstrato de controle de constitucionalidade. 6. Não é útil, conveniente e nem é legítimo ao Supremo entrar na matéria infraconstitucional, cuja jurisdição pertence ao Superior.

497 CERNICCHIARO, Luiz Vicente. RDD – Regime disciplinar diferenciado. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 15 anos. Brasília: STJ, 2005, p. 452-456. 498 A súmula 610 do STF é um exemplo claro de intromissão em assuntos da competência do STJ, pois define – contra legem – que “há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima”.

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Significa que é vedado o conhecimento do extraordinário a pretexto de ofensa à Constituição e, em seguida, o desfecho da causa fundado no direito infraconstitucional (provimento). De acordo com o sistema vigente, apenas o Superior tem autorização constitucional, mediante o recurso especial, para decidir as causas aplicando-se-lhes o direito ordinário. 7. As decisões do Superior, tratando-se de matéria infraconstitucional, hão de ser finais, irrecorríveis, com autoridade de coisa julgada, tanto como já o são as oriundas de recurso especial, quanto haverão de sê-lo as provenientes do exercício das competências originária e ordinária.499

A respeito do contencioso constitucional a cargo do Superior Tribunal de

Justiça, destacado na citação acima, cabe uma pequena referência.

Em decorrência do reconhecimento do Superior Tribunal de Justiça como

guardião da legalidade penal, além das inovações já introduzidas para vincular o

teor de suas decisões às demais instâncias judiciárias, propõe-se, de lege ferenda,

outras medidas para assegurar o controle concentrado da legalidade, o que

demandaria, por certo, novos e abrangentes estudos sobre o tema que não cabem

na presente pesquisa.

Por ora, é de extremo significado destacar apenas que já existem

instrumentos para o controle da legalidade penal pelo Superior Tribunal de Justiça.

Com efeito, verificada a procedência da alegação do recorrente, de que o

tribunal a quo, por exemplo, deu interpretação extensiva a determinado tipo (lei

federal), o Superior Tribunal de Justiça, dando provimento ao Recurso Especial,

cassará o acórdão recorrido e, na fase seguinte do julgamento (juízo de revisão),

enfrentará o mérito do caso concreto, oportunidade em que, exercendo o controle da

legalidade, estabelecerá o alcance correto da conduta proibida ou, não sendo

possível precisá-la sem recorrer à analogia proibida, declarará a falta de validade da

norma e, incidentemente, a sua inconstitucionalidade, respeitada a reserva de

plenário estabelecida no art. 97 da Constituição Federal e regulamentada pelo artigo

11, inciso IX, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.500

499 NAVES, Nilson Vital. O Superior Tribunal e a Questão Constitucional. Revista dos Tribunais. São Paulo, RT, vol. 797, p. 28-42, mar. 2002. 500 A ressalva estabelecida pela Corte Especial do STJ em outros julgamentos, como, p. ex., no REsp n. 215.881-PR (DJU 08.04.2001, p. 111), de que somente seria possível o reconhecimento da inconstitucionalidade se em desfavor do recorrente, não teria aplicação diante da alta tarefa de resguardo da legalidade. Sobre a possibilidade do STJ, no juízo de revisão, reapreciar provas, examinar ex officio matéria de ordem pública e declarar, pela Corte Especial, a inconstitucionalidade de lei e ato normativo, ver o denso estudo de Nelson Nery Júnior (NERY JUNIOR, Nelson. O STJ e o

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Por outro lado, a clara identificação do tribunal encarregado de

intermediar a relação entre a legislação penal e sua interpretação favorece a

necessária transparência da jurisdição e o seu acompanhamento crítico pela opinião

pública, dois fatores relevantes para a realização da proibição da analogia.501

A transparência da jurisdição afasta o receio de que uma pessoa possa

ser prejudicada pela livre interpretação do tipo penal por determinados juízes, pois a

proibição da analogia é controlável por um complexo sistema de informação,

controle e correção recíprocos, conforme destacado por Hassemer:

A jurisdição é “vinculada” a si mesma (mais que à lei, mas também a ela de muitos modos na prática): instâncias inferiores se vinculam à decisão das superiores na mesma questão jurídica; todos se vinculam à “opinião dominante” ou às próprias tradições do tribunal. A maioria dessas vinculações é informal, mas nem por isso menos efetiva; em regra, elas impedem ímpetos decisórios voluntaristas.502

De outra banda, não se está aqui advogando a valoração da opinião

pública como fundamento das decisões judiciais, até porque, conforme já criticado

(item 1.3.1 – segunda parte), muitas vezes provém de um discurso distorcido sobre

política de segurança propositalmente direcionado a uma irracional aplicação da lei

penal.

O que se entende como importante mecanismo de controle da legalidade

é o acompanhamento crítico das decisões do Superior Tribunal de Justiça por parte

das universidades, dos doutrinadores e dos operadores do direito como um todo, ou

seja, trata-se de uma opinião pública qualificada.

Novamente, vale ressaltar a lição de Hassemer:

Um remédio eficaz contra uma justiça que viola o Direito consiste na sua observação crítica por uma opinião pública vigilante, interessada e informada. Por força da Constituição, a justiça tem que realizar a mais importante parcela do seu trabalho publicamente. Do ponto de

controle de constitucionalidade de lei e ato normativo. In: Doutrina do Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa – 20 anos. Brasília: STJ, 2009, p. 467). 501 Nesse sentido, HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 67. 502 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 67.

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vista da política do Direito, esse princípio só se mostra útil quando a opinião pública não perde a justiça de vista.503

Com as incertezas que rondam o Direito Penal nos dias de hoje, a

judicatura criminal do Superior Tribunal de Justiça deve se preparar para reagir

contra o perene estado de emergência difundido pelos meios de comunicação

sensacionalistas, os quais, estimulados por setores governistas carentes de uma

política criminal inteligente e que, acima de tudo, contam com a subserviência do

Congresso Nacional, pressionam pelo aumento do rigor punitivo através de uma

inconsequente inflação legislativa que faz tábula rasa do princípio da legalidade e,

portanto, do sagrado direito à liberdade.

Após destacar alguns exemplos da alta judicatura exercida pelo Superior

Tribunal de Justiça em homenagem ao mandamento constitucional de proteção da

dignidade da pessoa humana, Renê Ariel Dotti finaliza seu artigo invocando a

“oração da sapiência”, de Domingues de Andrade504:

O juiz deve ser o intermediário entre a norma e a vida, o instrumento vivente que transforma o comando abstracto da lei no comando concreto da sentença. Será a viva voz do Direito, ou mesmo a própria encarnação da lei. Porque a lei, com efeito, só tem verdadeira existência prática tal como é entendida e aplicada pelo juiz.505

Em conclusão, mais do que uniformizar o Direito Penal, o Superior

Tribunal de Justiça, como Corte máxima infraconstitucional do País, tem a missão de

proteger a liberdade mediante a reinterpretação das normas penais calcada nas

garantias e valores estabelecidos na Constituição Federal, em especial, o princípio

da legalidade.

4.2 O princípio da legalidade como limite da jurisp rudência com força

vinculante

503 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. por Adriana Beckman Meirelles et al. Porto Alegre: SAFE, 2008, p. 67. 504 Antológico discurso sobre o sentido e o valor da jurisprudência proferido pelo Prof. Domingues de Andrade na Faculdade de Direito de Coimbra no dia 30.10.1953. 505 DOTTI, Renê Ariel. Uma jurisprudência humanitária. In: STJ 10 anos: obra comemorativa 1989-1999. Brasília: STJ, 1999, p. 232.

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O caráter imperativo dos precedentes atribui verdadeiro poder criador à

jurisprudência506 e possibilita uma maior influência política-ideológica sobre a

atividade interpretativa no âmbito do Direito Penal, especialmente onde a tutela de

interesses coletivos de particular importância (administração pública, economia,

meio ambiente, ordem democrática etc) solicita dos juízes uma atividade supletiva

apta a suprir um poder político reconhecidamente incapaz e ineficiente.

Diante desse quadro, Fiandaca e Musco observam que, nos setores

acentuados, “emerge um ‘direito penal jurisprudencial’ que tende a superar os limites

de tutela legislativamente demarcada”, o que evidencia de maneira macroscópica o

componente “criador” de “uma atividade interpretativa politicamente orientada”.507

Ocorre que, como decorrência fundamental do princípio da legalidade, a

garantia da reserva legal identifica como fonte do Direito Penal somente a lei em

sentido estrito (v. item 1.2.2.2 – primeira parte).

Logo, em respeito ao princípio da legalidade, a interpretação judicial não

pode liberar-se dos parâmetros do legislador, ou, de outro modo, tornar mais grave a

sanção penal, pois a aplicação do Direito “é um processo circular entre a lei e o

caso, comparável a um espiral que se eleva, corrige e aperfeiçoa em um processo

mútuo de compreensão entre a norma e a situação fática”.508

Exatamente aí reside o dilema da proibição da analogia, pois, como visto

(item 2.1 – segunda parte), entre ela e a interpretação permitida existe apenas uma

linha tênue, que não pode ser precisada sem a devida valoração dos

acontecimentos fáticos.

A doutrina alemã costuma distinguir a interpretação da integração de

lacunas fixando os limites da primeira: pode ser considerada interpretação toda

inteligência que ainda se compreenda nos limites do sentido literal possível;

ultrapassada esta linha demarcatória, já se estará ingressando no domínio da

analogia, que no Direito Penal só se permite in bonam partem.509

506 Nesse sentido, LOVIS, Ângelo Barbosa. Súmula vinculante: exemplo da interpenetração entre os sistemas da common law e da civil law. In: Processo nos tribunais superiores. Coord. Por Marcelo Andrade Féres e Paulo Gustavo M. Carvalho. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 402. 507 FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto penale: parte generale. 6 ed. Bologna: Zanichelli Editore, 2009, p. 116. 508 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Trad. da 2ª edição alemã por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: SAFE, 2005, p. 358. 509 ROXIN, Claus. Derecho penal parte general. Trad. por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Diaz y Garcia Conlledó e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 66.

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Certo é que se trata de uma garantia irrenunciável do cidadão e sua

substituição pelo “bom senso do juiz”, pelos “interesses sociais” ou pela “defesa

social”, enfim, por argumentos pragmáticos, morais ou éticos, traz em si o perigoso

risco do casuísmo e da arbitrariedade, que não escolhe as vítimas de sua atuação.

Quando a jurisprudência consolida o entendimento de que basta a

simples apreensão do objeto para que o furto e o roubo estejam consumados, retira

a possibilidade do juiz, na análise do caso concreto, reconhecer a mera tentativa em

face das circunstâncias específicas da conduta que está sendo julgada.

Desse modo, na defesa do princípio da legalidade, o Superior Tribunal de

Justiça tem a nobre missão de assegurar que a interpretação judicial se atenha à

baliza imposta pela semântica textual da conduta proibida, salvaguardando o tipo de

uma extensão ilimitada, valendo-se, inclusive, dos instrumentos uniformizadores

para, sempre que possível, modular a matéria de proibição.

Afinal, “só existe um princípio da legalidade penal, que não conjuga o

plural, não se modifica nem tolera graduações ou compromissos: admitir um

princípio da legalidade mais ou menos estrito deixa de ser legalidade”.510

510 NAUCKE, Wolfgang. La progressiva pérdida de contenido del principio de legalidad penal como consecuencia de um positivismo relativista y politizado. In: La insostenible situación del derecho penal. Granada: Comares, 2000. (Estudios de derecho penal, v. 15), p. 546.

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CONCLUSÃO

PRIMEIRA PARTE: HISTÓRIA, CONTEÚDOS E GARANTIAS DA LEGALIDADE

1 Origem e desenvolvimento do princípio

O princípio da legalidade tem sua gênese vinculada ao movimento

iluminista, estudado que foi por muitos pensadores do século XVIII e condensado no

famoso opúsculo “Dos delitos e das penas”, publicado no ano de 1764.

A obra de Beccaria, considerada por muitos como o marco fundador do

período liberal, foi uma resposta à aplicação desmedida do Direito Penal, cujo único

propósito à época era a manutenção do poder à custa do temor produzido pelos

suplícios em desfavor daqueles que se opunham ao regime.

Importante destacar que a origem do princípio da legalidade se vincula,

portanto, à luta pela defesa da liberdade individual.

Com efeito, no Estado Liberal que se seguiu à Revolução Francesa, a

função do Direito Penal, orientado pelo princípio da legalidade, passou a ser a

proteção do indivíduo frente à opressão estatal.

Coube a Feuerbach a sistematização dogmática do princípio, ocorrida em

1801, estabelecendo a unidade entre o seu conteúdo e forma ao condicionar a

aplicação da pena à existência de uma lei (nulla poena sine lege), de uma ação

incriminada (nulla poena sine crimine) e de uma lesão jurídica determinada (nullum

crimen sine poena legali), fórmulas latinas que foram posteriormente reunidas na

conhecida expressão “nullum crimen nulla poena sine lege”.

Não demorou muito para que o princípio da legalidade passasse a constar

dos textos legislativos e, posteriormente, das próprias Cartas Constitucionais de

diversos países de índole democrática.

Na atualidade, com a superação do Estado Liberal pelo Estado Social e

deste pelo Estado Democrático de Direito, o significado técnico do princípio pode ser

elaborado a partir de três fundamentos.

O primeiro fundamento é de conteúdo político, representado pela

separação de poderes que atribui ao Poder Legislativo a primazia para a elaboração

- 192 -

das leis; ao Poder Judiciário a função de aplicar o Direito e ao Poder Executivo a de

executar a sentença condenatória sem, contudo, interferir na modalidade e

dosimetria da punição.

O segundo fundamento, de conteúdo jurídico-penal, repousa na

necessidade de se divulgar, mediante publicação prévia da lei, a data precisa do

início de sua vigência, afastando-se a possibilidade de alguém vir a ser condenado

por condutas criadas a partir de interpretações judiciais baseadas nos costumes ou

analogia.

O terceiro fundamento radica na tutela do cidadão em face do poder

punitivo do Estado, assegurando-se a liberdade através da vinculação do Estado à

lei abstrata.

Como dado histórico, dois casos emblemáticos de ruptura do princípio da

legalidade, verificados na União Soviética e no nacional socialismo alemão,

representaram a imediata perda da liberdade individual. A referência a esses dois

episódios contemporâneos reforça ainda mais a ideia de que o princípio da

legalidade se conecta diretamente com a proteção da liberdade enquanto

fundamento do Estado Democrático de Direito.

No ordenamento jurídico brasileiro, o princípio da legalidade é

tradicionalmente cultuado, presente que se encontra nos textos constitucionais

desde a Carta imperial de 1824 e nas codificações penais a partir do Código

Criminal do Império, de 1830.

2 Principais garantias decorrentes do princípio da legalidade

O princípio da legalidade pode ser representado pelas quatro garantias

que dele decorrem, a saber: proibição de leis penais indeterminadas (lex certa);

proibição de edição de leis retroativas que fundamentem ou agravem a punibilidade

(lex praevia); proibição do agravamento da punibilidade pelos costumes (lex scripta)

e proibição da analogia in malam partem (lex stricta).

A proibição de leis indeterminadas corresponde ao princípio da

taxatividade, que impõe ao legislador a descrição mais objetiva e clara possível da

- 193 -

conduta proibida e de sua respectiva sanção, evitando-se a utilização de vocábulos

vagos e imprecisos na redação típica.

O ideal de precisão da definição legal do crime pretende cumprir três

funções principais, quais sejam: (1) impor a autolimitação do poder punitivo estatal;

(2) fortalecer a separação de poderes evitando que o juiz invada a competência do

legislador no momento de interpretar a norma e (3) permitir que todos os cidadãos

conheçam com exatidão a conduta proibida e suas consequências como forma de

inibir eventual impulso criminoso (prevenção geral negativa).

Tais objetivos, contudo, jamais poderão ser cumpridos plenamente devido

à falibilidade da linguagem e a indispensável interpretação da norma penal,

cumprindo ao legislador lapidar a descrição típica de modo a torná-la

suficientemente objetiva para satisfazer ao máximo as exigências da segurança

jurídica.

A segunda garantia decorrente do princípio da legalidade repousa na

proibição da retroatividade da lei penal gravosa, significando que o agente só pode

responder criminalmente nos termos da lei vigente no momento do fato.

Tal proibição deve ser estendida às mudanças jurisprudenciais in malam

partem, especialmente no momento em que se difundem no Direito brasileiro

instrumentos destinados a valorizar o precedente e vincular as decisões judiciais ao

entendimento prévio dos tribunais superiores, como as súmulas vinculantes, a

repercussão geral e a lei dos recursos repetitivos.

A proibição do agravamento da punibilidade pelos costumes representa o

terceiro corolário do princípio da legalidade. Por ele, fica imposta a necessidade de

uma lei escrita para a incriminação de condutas e para a imposição ou majoração da

sanção penal, ficando excluído o uso do direito consuetudinário.

A quarta e última garantia refere-se à proibição da analogia in malam

partem.

Diferentemente do imaginado pelos iluministas, toda e qualquer norma

contém necessidades valorativas que autorizam uma atividade criadora do juiz no

momento de decidir.

Mesmo assim, a lei jamais poderá ser substituída pela jurisprudência na

tradição do Direito escrito, posto que a decisão judicial deve sempre se subsumir ao

sentido literal possível do preceito típico.

- 194 -

Desse modo, diante de eventual lacuna da lei penal, fica vedada a

aplicação de uma disposição relativa a um caso semelhante que não seja favorável

ao réu.

Considerando a dificuldade de se estabelecer uma distinção segura entre

interpretação válida e analogia proibida, a primeira deve se restringir ao campo

semântico máximo permitido pelo enunciado normativo, associando-se ao bem

jurídico protegido e às razões de decidir do caso concreto.

Apesar do bem jurídico funcionar como um referencial significativo para

se estabelecer os contornos da conduta proibida, os novos campos de atuação do

Direito Penal têm dificultado sua identificação, o que torna ainda mais complexas as

discussões sobre a melhor forma de enfrentamento das condutas que colocam em

risco os interesses transindividuais da sociedade e do próprio regime democrático,

conformadoras da expansão do Direito Penal e das modernas formas de

criminalidade, objetos de reflexões na segunda parte do trabalho.

SEGUNDA PARTE: JURISPRUDÊNCIA E CONTROLE DA LEGALID ADE

1 A crise do Direito Penal e seus reflexos entre os princípios político-criminais

de garantia

Delimitada a origem do princípio como instrumento de proteção da

liberdade, bem como o rico desenvolvimento experimentado nos regimes

democráticos de Direito e, em especial, no Direito Penal brasileiro, a segunda parte

da pesquisa concentrou-se na análise da jurisprudência e do controle da legalidade.

Na esteira da doutrina de Claus Roxin, as relações entre política criminal

e sistema de Direito Penal advertem para a necessidade de se identificar a matriz

ideológica que orienta o ordenamento jurídico e, consequentemente, sua influência

na construção do Direito positivo.

Essa constatação ajuda a compreender o momento de crise do Direito

Penal, identificada a partir do antagonismo surgido entre as correntes liberais, que

defendem uma função limitadora do conceito de bem jurídico, e as de orientação

- 195 -

constitucionalista, que postulam seu redimensionamento para o enfrentamento dos

conflitos de ordem coletiva.

Mais do que a transformação no modo de entender e legitimar o Direito

Penal é importante atentar para a desintegração experimentada pelos princípios

penais de garantia, em especial, a que atinge o princípio da legalidade.

Com efeito, o Direito Penal “tradicional” surge formalizado, vinculado à

legalidade e à jurisdicionariedade, tendo como objetivo a proteção de bens jurídicos

certos e verificáveis. Entendido como um Direito Público persegue fins preventivos

por intermédio da ameaça da pena (prevenção negativa), bem como da

estabilização da fidelidade da população ao Direito (prevenção positiva). A sanção

penal reclama a recomposição da ordem normativa, não se preocupando com a

satisfação dos interesses da vítima, que deve buscar reparação na seara cível. Por

fim, o princípio da culpabilidade afasta a responsabilidade objetiva ao exigir a

presença do dolo ou, excepcionalmente, da culpa na conduta do agente.

A partir da concepção constitucionalmente orientada do objeto da tutela

penal, novos parâmetros foram estabelecidos para o Direito Penal, a começar pela

sua expansão para atender às exigências da moderna “sociedade do risco”.

Significativa também é a limitação do caráter público do Direito Penal

determinada pela acentuada intervenção da vítima no processo, fazendo surgir

novos modos de extinção do crime ou de não aplicação da pena mediante transação

ou reparação do dano.

No campo da causalidade, a teoria da imputação objetiva firmou-se como

instrumento complementar das teorias causais do resultado.

Todavia, a mudança mais significativa se deve à incorporação

constitucional de direitos coletivos e sociais, que passaram também a demandar a

proteção do Estado em áreas como a sonegação fiscal, os crimes contra o sistema

financeiro, a lavagem de dinheiro e os delitos contra o meio ambiente.

A proteção de bens jurídicos como os acima citados promoveu o embate

entre bases teóricas diversas diante das incertezas quanto à capacidade do Direito

Penal cumprir tal desiderato.

Conformado com a impossibilidade de se estabilizar a “expansão” do

Direito Penal mediante o fortalecimento de outras instâncias de proteção desses

novos bens jurídicos, Silva Sánchez propõe um sistema com “dois níveis de

- 196 -

velocidade”. O primeiro nível se destina aos delitos punidos com pena privativa de

liberdade, no qual devem prevalecer os princípios político-criminais clássicos, as

regras de imputação e as garantias do processo. O segundo nível, voltado para os

delitos punidos com penas restritivas de direitos ou pecuniárias, permite a

flexibilização de tais princípios e regras voltadas à amplitude de defesa do acusado.

Outra corrente sustenta que boa parte dessa nova criminalidade deve ser

reconduzida ao Direito Administrativo sancionador, que pode se firmar como

instrumento alternativo da clássica sanção penal, pois conta com um sistema próprio

e capacidade de expandir-se sem ofender os princípios constitucionais de garantia.

Nessa quadra, convencido de que somente através da limitação do direito

positivo se pode prosseguir falando de um verdadeiro e próprio Direito Penal, o

trabalho vincula-se firmemente a favor da necessidade de um “Direito de

Intervenção”, situado entre o Direito Penal e o Direito Administrativo, conforme

postulado por Hassemer, Ramacci, Figueiredo Dias e outros.

De qualquer modo, independentemente da opção político-criminal

adotada para o enfrentamento da criminalidade contemporânea, a efetividade do

princípio da legalidade deve ser resgatada em sua inteireza.

2 Princípio da legalidade e a indispensável interpr etação da lei penal

Como “expressão verbal do pensamento” – na feliz definição de Aníbal

Bruno – a lei penal sempre necessitará de interpretação, impondo ao legislador o

desafio de descrever a conduta do modo mais objetivo possível e, ao intérprete, a

tarefa de identificar seu alcance sem invadir o campo desautorizado da analogia.

Ambas as atividades, de criação e interpretação da lei penal, são

realizadas a partir da noção de bem jurídico, cuja função político-criminal responde

em grande parte pela limitação e racionalização do direito de punir do Estado.

Todavia, desde a sua estruturação original, formulada pelos iluministas e

voltada para a proteção de direitos subjetivos, o conceito de bem jurídico foi sendo

paulatinamente desvirtuado até se reduzir a mero instrumento formal para a

interpretação das normas, desaguando num positivismo jurídico que permitiu a

construção de sistemas penais ideológicos.

- 197 -

Somente a partir do segundo pós-guerra, com a consolidação do ideal de

liberdade e democracia, procurou-se restabelecer a função de garantia do bem

jurídico como forma de legitimar a intervenção punitiva na esfera de um moderno

Estado de Direito.

Ocorre que, como visto, o legislador brasileiro parece ter se vinculado ao

conceito político-criminal de bem jurídico, concebido como um valor

constitucionalmente relevante.

O conceito de bem jurídico fundamentado nesta concepção constitucional

acabou igualmente desfigurado pelas exigências da sociedade atual, determinando

a incorporação dos denominados valores universais, representativos de interesses

impalpáveis, de caráter coletivo e com vitimização difusa, bem como favorecendo a

expansão acentuada do Direito Penal, especialmente diante de uma Constituição

analítica como a do Brasil.

A dificuldade de se tipificar tais condutas obrigou a uma técnica de

legiferação voltada preferencialmente para a construção de tipos omissivos, de

perigo abstrato, com a abusiva utilização de elementos normativos e de normas

penais em branco, através da qual o legislador praticamente delega ao intérprete a

definição da matéria proibida.

Somando-se a tudo isso a reconhecida insuficiência da proibição da

analogia para manter a interpretação dentro do limite imposto pela literalidade da lei,

o aspecto generante da jurisprudência não pode mais ser desdenhado, resultando

daí a necessidade de se construir mecanismos que possibilite maior controle da

jurisdição e a uniformização dos entendimentos jurisprudenciais.

A valorização do precedente judicial, tradicionalmente adotada nos países

do common law, surge, assim, como importante via para se assegurar a almejada

segurança jurídica.

A criação de cortes internacionais penais e a busca pela uniformização da

legislação europeia também estimulam o estreitamento dos sistemas do common

law e civil law.

O certo é que, na busca pela redução das incertezas decorrentes da

interpretação dos tipos de ilícito, o Direito Penal brasileiro, acompanhando o fluxo de

aproximação entre os diversos sistemas do Direito moderno, também começa a

valorizar a análise dos precedentes jurisprudenciais.

- 198 -

3 Violações da legalidade na práxis da jurisprudênc ia do Tribunal de Justiça do

Estado de Minas Gerais nos crimes contra o patrimôn io

A obstinada procura de uma resposta punitiva para o enfrentamento dos

conflitos de feição transindividual, ainda que à custa da relativização dos princípios

penais de garantia, terminou por contaminar também o tratamento dispensado aos

crimes tradicionais, tornando o Direito Penal ainda mais seletivo e irracional.

Como exemplo dessa afirmativa, a jurisprudência do Tribunal de Justiça

do Estado de Minas Gerais paulatinamente tem aumentado o rigor na interpretação

dos delitos contra o patrimônio, por vezes extrapolando os limites da própria

proibição da analogia.

Assim é que o momento de consumação dos crimes de furto e roubo foi

se estendendo até superar o significado semântico do verbo “subtrair”; os conceitos

de “grave ameaça” e “violência” alcançaram uma dimensão etérea capaz de

identificá-los com o simples arrebatamento da coisa ou com as vias de fato e, por

fim, a relutância em se admitir o princípio da insignificância determinou o

reconhecimento da tipicidade material do furto e do roubo mesmo em casos de

subtração de ínfimo valor.

A existência de uma jurisprudência contraditória impede a concreção das

garantias e acentua a irracionalidade do sistema penal, motivo pelo qual não se

pode responder de modo totalmente preciso à pergunta acerca de como o Direito

Penal pode alcançar o profundo respeito ao princípio da legalidade.

Em todo caso, é evidente que deve começar pela denominada

criminalidade clássica e somente depois intensificar esta tendência à criminalidade

contemporânea, caso se entenda mesmo conveniente seu controle por parte do

Direito Penal.

Assim sendo, no exercício de sua função de guarda e intérprete oficial da

legislação federal, o Superior Tribunal de Justiça tem a responsabilidade de proteger

o cidadão mediante o controle da interpretação formulada pelas instâncias ordinárias

acerca da validade e alcance dos tipos penais.

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4 Uniformização da interpretação da legislação infr aconstitucional e controle

da legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça

O Superior Tribunal de Justiça foi instalado no dia 7 de abril de 1989 com

o elevado propósito de zelar pela aplicação isonômica e uniformidade interpretativa

da legislação federal.

Consideradas as peculiaridades próprias do Direito Penal, essas funções

se tornam ainda mais significativas, pois se voltam para a proteção da liberdade de

cada cidadão.

O principal instrumento de garantia do indivíduo frente ao poder punitivo

estatal é o princípio da legalidade, cuja origem histórica remonta à luta contra o

arbítrio e a opressão impostos pelo sistema penal do final do Século XVIII.

Portanto, mais do que favorecer a igualdade de todos perante a lei, a

busca pela uniformização da interpretação da lei penal visa à proteção da liberdade

individual, somente alcançável através da estrita observância do princípio da

legalidade.

Para desincumbir-se da grave tarefa de uniformizar a legislação penal e

harmonizá-la com o princípio da legalidade, o Superior Tribunal de Justiça conta

com novos instrumentos para diminuir o número de processos em tramitação e,

assim desafogado, fomentar a reflexão necessária sobre inúmeros temas que

precisam ser superados, especialmente em seus desdobramentos referentes à

segurança jurídica e à previsibilidade das decisões judiciais.

Todas as inovações que tenham por objetivo tornar mais efetivo o

princípio da legalidade são importantes, especialmente no campo do Direito Penal,

onde o verdadeiro sentido e alcance de inúmeros tipos penais ainda desafiam a

doutrina e os operadores do Direito.

Por outro lado, as súmulas e demais instrumentos voltados para a

filtragem dos processos não pode impedir o monitoramento da legalidade sobre a

inteireza do ordenamento jurídico penal, sendo importante repisar a proposta, de

lege ferenda, de criação de mecanismos de controle concentrado da legalidade pelo

Superior Tribunal de Justiça.

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Conclusão geral

Num Estado em que tradicionalmente a Carta Política acolhe o princípio

da legalidade em todas as suas nuances, o ordenamento jurídico-penal deve conter

meios aptos a dirimir eventuais divergências hermenêuticas sobre a validade, o

alcance e a extensão da conduta proibida.

Compete ao Superior Tribunal de Justiça, na qualidade de uniformizador

da legislação infraconstitucional e guardião da sua estrita obediência, exercer o

controle da interpretação que as instâncias ordinárias derem aos inúmeros tipos

penais, afastando as exegeses que desbordarem dos limites impostos pelo princípio

da legalidade.

A interpretação do tipo penal formalizada pelo Superior Tribunal de

Justiça possui eficácia em razão do seu papel constitucional de intérprete soberano

da lei federal, devendo ser seguida como forma de se evitar soluções divergentes

pelas demais instâncias.

A atuação desse específico órgão de cúpula permite ainda a interferência

de outros domínios sociais no controle da legalidade, como a opinião pública

construída a partir das universidades, institutos e doutrina especializada.

Para que a jurisprudência vinculante favoreça a segurança jurídica e

desempenhe as garantias do princípio da legalidade, imprescindível a correta

análise do precedente, sobretudo sua identidade ou similitude com o caso em

julgamento.

Os filtros recursais instituídos para limitar a subida de processos, a par de

potencializarem as altas atribuições da Corte, não podem impedir o controle da

legalidade sobre a totalidade da legislação penal, motivo pelo qual, como sugestão

para uma futura reforma do ordenamento, propõe-se a criação de mecanismos de

controle concentrado da legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça.

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Anexo I

Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Momento de consumação do crime de roubo

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Anexo I - Momento de consumação do crime de roubo

Tribunal de Alçada

O delito de roubo consuma-se no instante em que o agente se torna possuidor da coisa subtraída, não sendo necessário que a mesma saia da esfera de vigilância da vítima e que a posse seja tranqüila, bastando a fuga do meliante (TAMG, Apelação criminal nº. 2.0000.00.337559-1/000, Rel. Juíza Maria Celeste Po rto, DJ 17.11.2001 ). Para que haja a consumação do crime de roubo basta que o ladrão exerça a violência sobre a vítima e faça a subtração da coisa tornando-se assim seu possuidor. O delito de roubo consuma-se no instante em que o agente se torna possuidor da coisa subtraída, não sendo necessário que a mesma saia da esfera de vigilância da vítima e que a posse seja tranqüila, bastando a fuga do meliante meliante (TAMG, Apelação criminal nº. 2.0000.00.421221-7/000, Rel. Juíza Maria Celeste Porto, DJ 17.04.200 4).

Tribunal de Justiça

Julgados de 2000

2ª Câmara Criminal Ora, evidencia-se, no caso, com clareza uma progressão criminosa que se cristalizou num crime de roubo qualificado, consumado, com emprego de arma de fogo e concurso de mais de duas pessoas, não tentado como entendido pelo d. magistrado, visto que os agentes esgotaram os atos executórios tirando o bem móvel da esfera de disponibilidade da vítima, ficando comprovado que a polícia não saiu em perseguição imediata ou logo após, mas somente realizou comunicações de praxe visando a realização de barreiras policiais, o que acabou dando certo, todavia, diante do caso concreto, os elementos subjetivo e objetivo do crime já haviam ocorrido para a consumação do delito, anunciando Luiz Regis Prado e Cezar Roberto Bitencourt que nesse crime: "Vem se firmando o entendimento sobre a desnecessidade de posse tranqüila, mesmo passageira, do agente" (idem, ob.cit., p. 561). Nesse sentido a jurisprudência dos Tribunais Superiores (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.186082-4/000, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 31.08.2000 ). O crime de roubo tem o seu momento consumativo com a subtração da coisa, mesmo que o ladrão seja preso em razão de perseguição imediata, não importando que dela tenha, ou não, posse tranqüila (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.162584-7/000, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 29.02.2000 ).

3ª Câmara Criminal Examinando o mérito, verifica-se que o crime de roubo diverge, fundamentalmente do crime de furto - é que no crime de furto se exige que a res furtiva fique na posse mansa e pacífica dos agentes. No crime de roubo, o que importa é a violência praticada contra a pessoa e, assim, expropriados os bens, ainda que deles não se tenha a posse mansa e pacífica, consumado está o crime, tanto que a jurisprudência do S.T. F. afirma que, havendo morte, ainda que nada tenha sido roubado, consumado está o crime de latrocínio (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.160574-0/000, Rel. Des. Gomes Lima, DJ 16.02.2000 ).

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Julgados de 2001

2ª Câmara Criminal

O delito de roubo consuma-se no instante em que o agente se torna possuidor da coisa móvel subtraída mediante grave ameaça ou violência (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.220333-9/000, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 08.06.2001 ). Entende-se consumado o delito de roubo se a "res furtiva" fora arrebatada da esfera de proteção da vítima, ainda que por um curto espaço de tempo, e mesmo que os infratores tenham sido presos em flagrante e a coisa recuperada (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.210080-8/000, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 12.06.2001 ). Consumado o roubo, o acusado e seus comparsas empreenderam fuga, mas foram perseguidos pela polícia militar, trocando tiros com os milicianos, sendo afinal detido e autuado somente o apelante, sendo que os outros meliantes conseguiram evadir-se. Neste cenário, ao contrário do sentenciado, o acusado perpetrou o crime de roubo consumado e não de tentativa. A tese esposada na v. sentença encontra-se há muito superada, pela firme e tranqüila jurisprudência do STF. Verbis: "O Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, firmou jurisprudência no sentido de que o delito de roubo "já está consumado se o ladrão é preso em decorrência de perseguição imediatamente após a subtração da coisa, não importando assim que tenha, ou não, posse tranqüila desta" (RE 108.479). (STF - 1ªT - Min. Sydney Sanches - DJU 27.08.83). "Habeas corpus. Momento de consumação do crime de roubo. - O roubo se consuma no instante em que o ladrão se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave ameaça ou violência. - Para que o ladrão se torne possuidor, não é preciso, em nosso direito, que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, mas, ao contrário, basta que cesse a clandestinidade ou a violência, para que o poder de fato sobre a coisa se transforme de detenção em posse, ainda que seja possível ao antigo possuidor retomá-la pela violência, por si ou por terceiro, em virtude de perseguição imediata. Aliás, a fuga com a coisa em seu poder traduz inequivocadamente a existência de posse. E a perseguição - não fosse a legitimidade do desforço imediato - seria ato de turbação (ameaça) à posse do ladrão. - Habeas Corpus indeferido (STF - 1ªT - Min. Moreira Alves - DJU 19.06.92)" (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.240696-5/000, Rel. Des. Herculano Rodrigues, DJ 05.10.2001 ).

3ª Câmara Criminal A consumação do crime de roubo dá-se, ainda que o agente seja preso tão logo se aproprie de bens da vítima, mesmo que dela não sejam retirados. Disso decorre a inaplicabilidade da tese apresentada pela Defesa - é que, diante da violência atual, especialmente nas grandes cidades, a proteção do cidadão deve ser levada em conta, acima da proteção dos bens (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.220799-1/000, Rel. Des. Gomes Lima, DJ 31.10.2001). Como é sabido, o roubo se consuma quando o agente, após empregar a violência e arrebatar a coisa, obtém êxito em retirá-la da esfera da vigilante observação da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.198649-6/000, Rel. Des. Mercêdo Moreira, DJ 18.04.2001). Para a consumação do crime de roubo basta a posse, não disputada e ainda que breve, da coisa subtraída (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.216735-1/000, Rel. Des. Mercêdo Moreira, DJ 13.06.2001 ).

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Julgados de 2002

2ª Câmara Criminal Configura-se o roubo consumado na hipótese de o bem sair do domínio da vítima e ficar em poder do agente, com a apreensão realizada posteriormente pela polícia (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.244421-4/000, Rel. Des. Reyn aldo Ximenes Carneiro, DJ 1º.02.2002). O roubo se consuma no momento em que o ladrão se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave ameaça ou violência. Para a configuração do crime de corrupção de menores, é indispensável que se demonstre a sua efetiva corrupção(TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.232047-1/000, Rel. Des. José Antonino Baía Borges, DJ 08.02.2002). Considera-se consumado o crime de roubo se a "res furtiva" sai da posse da vítima e passa à do agente (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.265119-8/000, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 05.06.2002 ).

Julgados de 2003

1ª Câmara Criminal

Consuma-se o roubo no instante em que o agente torna-se possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave ameaça ou violência. Desnecessário que ele saia da esfera de vigilância do antigo possuidor, bastando que cesse a clandestinidade ou a violência (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.281913-4, Rel. Des. Tibagy Salles, DJ 21.02.2003 ).

2ª Câmara Criminal Aliás, a jurisprudência tem entendido, no que tange à consumação do delito em questão, que prescinde de posse tranqüila a coisa roubada com violência ou grave ameaça (neste sentido, STJ, RESP 326051, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 03/02/03, p. 341) (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.298813-7/000, Rel. Des. Herculano Rodrigues, DJ 19.03.2003). O crime de roubo consumado não é incompatível com a prisão em flagrante, devendo ser reconhecida a consumação do delito se o agente teve, ainda que por instantes, a posse tranqüila da coisa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.342276-3/000, Rel. Des. José Antonino Baía Borges, DJ 05.11.2003 ).

3ª Câmara Criminal O roubo se consuma no momento em que o objeto sai da esfera de disponibilidade da vítima, sobretudo se somente foi recuperada parte da "res furtiva", independentemente do fato de ser a posse do mesmo tranqüila (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.00.298961-4000, Rel. Des. Mercêdo Moreira, DJ 04.06.2003 ).

Julgados de 2004

1ª Câmara Criminal Segundo entendimento recente firmado por nossas Cortes Superiores, a consumação

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do delito de roubo ocorre com a inversão da posse da "res furtiva", independentemente de que esta seja tranqüila ou que haja imediata perseguição policial (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0000.04.001729-8/001, Rel. Des. Márcia Milane z, DJ 12.11.2004).

Julgados de 2005

1ª Câmara Criminal No direito brasileiro, para a consumação do crime de roubo, é irrelevante que o assaltante tenha a posse tranqüila da coisa, ou o tempo de sua duração, ou que não tenha saído da esfera de vigilância da vítima; cessada a violência ou grave ameaça, tendo o agente a posse da "res furtiva", ainda que a perca logo em seguida, perseguido, ou não, o roubo se consumou (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0317.03.035796-4/001, Rel. Des. Sérgio Braga, DJ 06.09.2005 ).

2ª Câmara Criminal O roubo se consuma no momento em que o ladrão se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída mediante grave ameaça ou violência, não importando que tenha ou não exercido sobre a coisa posse duradoura e tranqüila (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0016.03.033837-6/001, Rel. Des. José Antonino Baí a Braga, DJ 10.03.2005 ).

3ª Câmara Criminal O crime de roubo se consuma no momento em que o meliante se torna possuidor da res furtiva, não sendo necessário, em nosso direito, que o bem saia da esfera de vigilância da vítima, seu antigo possuidor, mas, antes pelo contrário, ele se considera consumado assim que cessa a clandestinidade ou a violência, para que o poder de fato sobre a coisa se transmude de mera detenção em posse (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0778.03.000105-2/001, Rel. Des. Paulo Cezar Dias, DJ 04.02.2005 ).

Julgados de 2006

2ª Câmara Criminal O roubo se consuma no instante em que o agente se torna, mesmo que por pouco tempo, possuidor da res subtraída mediante grave ameaça ou violência. A rápida recuperação da coisa e a prisão do autor do delito não caracterizam a forma tentada (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.05.215560-6/001, Rel. Des. Beat riz Pinheiro Caires, DJ 09.06.2006 ).

4ª Câmara Criminal A consumação do roubo ocorre quando o agente obtém a posse tranqüila da coisa, ainda que temporariamente, colocando-a fora da esfera de disponibilidade da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 2.0000.00.511545-1/000, Rel. Des. Eli Lucas de Mendonça, DJ 29.05.2006).

5ª Câmara Criminal Tem-se delito de roubo consumado quando o acusado subtrai os bens da vítima mediante grave ameaça, evadindo-se em seguida do local, não se podendo admitir que a eficiência da polícia em rastreá-lo e prendê-lo na posse da res caracterize a figura da tentativa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.05.787025-5/001, Rel. Des. Vieira de Brito, DJ 07.07.2006 ). O critério para a caracterização do roubo consumado não é a posse mansa e pacífica da res furtiva. Na esteira da orientação dos Tribunais Superiores, consuma-se o delito de roubo

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com a inversão da posse, ainda que por breves instantes. Recurso desprovido (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.05.702542-1/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 26.05.2006).

Julgados de 2007

4ª Câmara Criminal A consumação do roubo ocorre quando o agente obtém a posse da coisa, ainda que temporariamente, colocando-a fora da esfera de disponibilidade da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0481.06.054384-2/001, Rel. Des. Eli Lucas de Mendonça, DJ 03.05.2007).

5ª Câmara Criminal Conforme entendimento francamente dominante na jurisprudência, o crime de roubo consuma-se com o mero apossamento da res, mediante violência ou grave ameaça, sendo prescindível que os agentes tenham a posse mansa e pacífica do objeto subtraído (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.06.000823-2/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 17.03.2007 ).

Julgados de 2008

1ª Câmara Criminal O crime de roubo consuma-se a partir do momento em que a coisa é retirada da esfera de disponibilidade do ofendido e fica em poder do agente, ainda que de forma passageira, sendo desnecessária a posse tranqüila da 'res' subtraída (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.06.202950-9/001, Rel. Des. Fernando Starling, DJ 25.07.2008).

4ª Câmara Criminal Como é sabido, a consumação do crime de roubo se dá no instante em que o agente logra êxito em subtrair o bem da vítima mediante violência ou grave ameaça, sendo irrelevante que permaneça na posse da coisa roubada por um pequeno lapso de tempo ou ainda, que não haja posse tranqüila (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0105.07.238460-2/001, Rel. Des. Delmival de Almei da Campos, DJ 11.12.2008 ).

5ª Câmara Criminal Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal, no roubo a consumação independe da posse mansa e pacífica dos bens subtraídos, bastando a retirada da esfera de disponibilidade da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0684.07.000107-9/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 13.10.2008 ).

Julgados de 2009

2ª Câmara Criminal O Superior Tribunal de Justiça, acompanhando o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, tem entendido que, para consumação do crime de roubo, desnecessária a posse mansa e pacífica sobre o bem, bastando a breve posse e a

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cessação da violência (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0148.07.054306-8/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ 02.07.2009 ). Para a consumação do crime de roubo basta apenas que o bem deixe a esfera de disponibilidade da vítima, desnecessária a posse mansa e pacífica pelo agente, bastando aquela momentânea (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.08.434846-8/001, Rel. Des. Herculano Rodrigues, DJ 09.03.2009 ).

3ª Câmara Criminal Consoante reiterada jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal e do colendo Superior Tribunal de Justiça, a consumação do roubo se contenta com a verificação de que, cessada a grave ameaça ou a violência, o agente tenha tido a posse da res subtraída, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.08.269401-9/001, Rel. Des. Jane Silva, DJ 18.08.2009 ).

Julgados de 2010

6ª Câmara Criminal É desnecessário, para a consumação do crime de roubo, que o agente saia da esfera de vigilância da vítima, bastando, para a sua configuração, que ele se torne possuidor da ''res furtiva'', com o emprego de grave ameaça ou violência (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0231.09.144912-5/001, Rel. Des. Júlio César Lorens, DJ 21.10.2010).

7ª Câmara Criminal No crime de roubo, a consumação se dá no momento em que a vítima perde a posse do bem, mediante a cessação da violência ou da grave ameaça, sendo irrelevante a existência de posse mansa e pacífica da res (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0251.09.030544-1/001, Rel. Des. Cássio Salomé, DJ 22.11.2010 ).

Julgados de 2011

1ª Câmara Criminal No crime de roubo, embora já tenha havido controvérsia acerca do seu momento consumativo, encontra-se sedimentado o entendimento de que a consumação se dá no exato momento em que a vítima perde a posse de seus bens, mediante a cessação da violência ou grave ameaça, sendo irrelevante o fato de inexistir posse mansa e pacífica da 'res', ou que o autor seja perseguido e preso instantes após o desapossamento (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0518.10.000736-9/001, Rel. Des. Alberto Deodato Neto, DJ 26.04.2011).

4ª Câmara Criminal O roubo consuma-se com a inversão da posse, após o emprego de violência ou grave ameaça empregada para a subtração. Para a consumação do roubo, dispensa-se a posse mansa e pacífica da coisa pelo agente, sendo irrelevante, pois, que o bem tenha sido retomado por meio de perseguição imediata (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0079.06.275841-6 Rel. Des. Júlio Cez ar Gutierrez, DJ 06/07/2011 ).

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5ª Câmara Criminal Consuma-se o delito de roubo quando o agente retira mediante violência ou grave ameaça a res furtiva da vítima, sendo prescindível a posse mansa e pacífica (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.09.708083-2/001, Rel. Des. Pedro Vergara, DJ 24/05/2011 ).

6ª Câmara Criminal O crime de roubo consuma-se a partir do momento em que a coisa é retirada da esfera de disponibilidade do ofendido e fica em poder do agente, ainda que de forma passageira, desde que passada a violência. Desse modo, a brevidade da posse não descaracteriza o roubo consumado, pois, para que o delito se consume, é desnecessária a posse definitiva ou prolongada da coisa, bastando a posse efêmera (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0702.09.58224304/001, Rel. Des. Rubens Gabriel Soares, DJ 12/01/2011 ).

7ª Câmara Criminal Conforme entendimento majoritário mais recente dos Tribunais Superiores, o crime de roubo consuma-se com a mera inversão da posse da res, sendo prescindível que o agente tenha a posse mansa e pacífica do objeto subtraído ou, mesmo, que o bem saia da esfera de vigilância da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0672.04.130359-1/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 10/06/2011 ).

Julgados de 2012

1ª Câmara Criminal O crime de roubo se consuma com a inversão da posse, não se podendo falar em tentativa se o agente foi preso, em flagrante, logo após a prática da infração, tendo, ainda que por breve tempo, a posse dos objetos subtraídos (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.10.061504-9/001, Rel. Des. Sila s Vieira, DJ 31/01/2012 ).

2ª Câmara Criminal Para a consumação do crime de roubo, não se exige a posse mansa e pacífica sobre o bem, bastando a breve posse e a cessação da violência. Precedentes do STF e STJ (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.11.029364-7/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ 15/06/2012 ).

4ª Câmara Criminal A consumação do crime de roubo se verifica quando o agente retira o objeto da esfera de disponibilidade da vítima, com a inversão da posse da res, independentemente, portanto, da posse pacífica e desvigiada da coisa pelo agente. Precedentes do STJ (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.11.176966-7/001, Rel. Des. Hebert Carneiro, DJ 24/04/2012 ).

5ª Câmara Criminal Certo é que os bens, subtraídos com o emprego de grave ameaça, saíram da esfera de disponibilidade das vítimas, passando para a posse dos réus, sendo

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desnecessário o locupletamento, ou seja, dispensa posse mansa e pacífica da res, de forma que o crime em tela restou consumado (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.07.524790-8/001, Rel. Des. Júlio César Loren s, DJ 06/03/2012 ).

6ª Câmara Criminal

Para a consumação do roubo não é necessária a posse mansa e pacífica da ''res furtiva'', bem como é irrelevante que o bem tenha sido posteriormente restituído à vítima. - Comprovado o emprego da grave ameaça, capaz de intimidar a vítima, por meio da simulação de arma de fogo, a desclassificação para o crime de furto é incabível (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0079.10.060964-7/001, Rel. Des. Catta Preta, DJ 06/03/2012 ).

7ª Câmara Criminal Não há falar em tentativa de roubo, se ocorreu a inversão da posse da ‘res furtiva’, mesmo que tenha o agente sido perseguido e preso, logo após a subtração dos objetos da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.08.193318-6/001, Rel. Des. Duarte de Paula, DJ 29/03/2012 ).

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Anexo II

Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

Momento de consumação do crime de furto

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Anexo II – Momento de consumação do crime de furto

Julgados de 2000

Tribunal de Alçada Retirada a res furtiva da esfera de vigilância do dono, torna-se tranqüila sua posse e consumado o furto (TAMG, Apelação criminal nº. 273.476-1, Rel. Juiz Er ony da Silva, DJ 30.05.2000 ).

3ª. Câmara Criminal Examinando o mérito, verifica-se que o crime de roubo diverge, fundamentalmente do crime de furto - é que no crime de furto se exige que a res furtiva fique na posse mansa e pacífica dos agentes. No crime de roubo, o que importa é a violência praticada contra a pessoa e, assim, expropriados os bens, ainda que deles não se tenha a posse mansa e pacífica, consumado está o crime, tanto que a jurisprudência do S.T. F. afirma que, havendo morte, ainda que nada tenha sido roubado, consumado está o crime de latrocínio [...] No caso dos presentes autos, a posse desvigiada ocorreu, pois os bens saíram da esfera de vigilância das vítimas, tendo sido levados para local distante [...] Assim, dúvida não há: o caso presente é de roubo consumado (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.16574-0/000, R el. Des. Gomes Lima, DJ 16.02.2000 ).

Julgados de 2001

1ª. Câmara Criminal

Não tem ela razão quando afirma que o delito não passou de uma tentativa, porquanto fora o réu preso logo após o cometimento do crime. No caso em tela, o furto restou plenamente configurado, com a posse não disputada da res furtiva, mesmo que por um curto espaço de tempo, tendo conseguido o réu sair da esfera de vigilância da vítima, que só depois acionou a polícia, que o localizou, identificou e prendeu (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.200872-0, Rel. Des. Luiz Carlos Biasutti, DJ 02.02.2001 ).

3ª. Câmara Criminal Indiscutivelmente os acusados tiveram a posse tranqüila da res, pois além de removê-la, ocultaram-na por várias horas em um imóvel desocupado, nas imediações da Igreja Matriz, tendo-a, portanto, à sua disposição (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.202974-2, Rel. Des. Mercêdo M oreira, DJ 03.05.2001 ).

Julgados de 2002

2ª. Câmara Criminal Se o réu foi surpreendido quando saía da casa da vítima, carregando a "res furtiva", e, a partir daí, passou a ser perseguido, não logrando êxito em obter a livre disponibilidade da coisa, não há que se falar em crime consumado, sendo aplicável

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a causa de diminuição de pena em razão da tentativa (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.270770-1/000, Rel. Des. José Antonino Baí a Borges, DJ 18.10.2002 ).

3ª. Câmara Criminal Consuma-se o delito de furto quando a "res furtiva" sai da esfera de vigilância da vítima e passa para a posse do agente, depois de percorrido o "iter criminis", não havendo que se falar em tentativa, pouco importando o fato de a "res" ter sido posteriormente recuperada (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.236736-5/000, Rel. Des. Roney Oliveira, DJ 28.08.2002 ).

Julgados de 2003

2ª. Câmara Criminal

Se o agente teve a posse tranqüila da res furtiva, apesar do pouco tempo, de forma totalmente desvigiada, é indiscutível a ocorrência de furto consumado, sendo, portanto, irrelevante o tempo de duração da disponibilidade da coisa (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.307352-5/000, Rel. D es. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 14.05.2003 ). O crime de furto se consuma no momento em que o bem subtraído sai da esfera de vigilância da vítima, pouco importando que a res seja recuperada e devolvida a seu verdadeiro dono (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.319380-2/000, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, DJ 22.05.2003 ). Furto qualificado pelo concurso de agentes - Autoria comprovada - Desclassificação para tentativa - Impossibilidade - A posse livre e desvigiada, ainda que por pequeno lapso de tempo, induz em consumação do crime de furto - Corrupção de menores - Absolvição decretada - Trata-se de delito de natureza material, sendo imprescindível a comprovação da efetiva corrupção do menor, inexistente nos autos [...] Nota-se que os objetos subtraídos saíram, de fato, da esfera de vigilância das vítimas, tanto que os réus, antes de serem presos, ainda tiveram tempo de ocultar metade deles, na casa de José Ferrante, na Cidade de Araporã (TJMG, Apelação criminal n. 1.0000.00.323989-4/000, Rel. Des. Mercêdo Moreira, DJ 24.09.2003 ).

Julgados de 2004

1ª. Câmara Criminal O furto consumado não se elide pela brevidade da posse, pois, para que o delito de furto se consume é prescindível a posse definitiva ou prolongada da "res furtiva", bastando, para tanto, a posse efêmera, com a retirada da coisa da esfera de proteção de seu dono (TJMG, Apelação criminal n. 1.0024.02.827310-0/001, Rel. Des. Tibagy Salles, DJ 07.05.2004 ). À consumação do crime de furto basta que a coisa saia da esfera de vigilância da vítima, ainda que por breve lapso temporal, sendo irrelevante que as autoras sejam localizadas horas depois em outra cidade (TJMG, Apelação criminal n. 1.0657.04.910501-5/001, Rel. Des. Sérgio Braga, DJ 17.11.2004 ).

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2ª. Câmara Criminal A consumação do crime de furto se esgota com e na apreensão da coisa pelo agente, não importando que tenha ou não exercido sobre a coisa posse duradoura e tranquila, ou que tenha realizado a devolução dos objetos furtados (TJMG, Apelação criminal n. 1.0705.02.046732-0/001, Rel. Des. José Antonino Baía Borges, DJ 18.11.2004 ).

3ª. Câmara Criminal Mesmo estando no interior do estabelecimento, é nítida a inversão da posse, pois o apelante, ainda que por pouco tempo, reteve as barras de forma tranqüila, fora da vigilância da vítima, quando as guardou em seus armários (TJMG, Apelação criminal n. 1.0180.03.012494-5/001, Rel. Des. Erony da Silva, DJ 28.10.2004 ).

Julgados de 2005

1ª. Câmara Criminal

É pacífico o entendimento no sentido de que o fato de terem ficado por pouco tempo na posse do bem subtraído não descaracteriza o furto consumado, se, efetivamente, se demonstrar que não houve perseguição e que o bem realmente saiu da esfera de vigilância da vítima. Assim, para que tenha configurada a consumação do furto, necessita-se, apenas, que a coisa saia da esfera de vigilância da vítima, ainda que por breve lapso temporal que, no caso, nem breve foi, para consumação do furto (TJMG, Apelação criminal n. 1.0607.04.018420-4/001, Rel. Des. Sérgio Braga, DJ 24.05.2005). O furto se consuma quando o agente, depois de tirar o objeto da vítima, tem a disponibilidade da coisa subtraída, ainda que por um curto lapso temporal (TJMG, Apelação criminal n. 1.0471.04.036944-2/001, Rel. Des. Armando Freire, DJ 18.11.2005).

Diante destas circunstâncias, resta evidenciado que os agentes, após retirarem a res da esfera de vigilância de seu legítimo proprietário, tiveram sua posse tranqüila, ainda que por poucos minutos. E, assim sendo, consumada a prática do furto (TJMG, Apelação criminal n. 1.0024.04.353919-6/001, Rel. Des. Márcia Milanez, DJ 10.12.2005).

2ª. Câmara Criminal

Não há que se falar que o fato de os objetos terem sido recuperados elidiria a culpa do acusado. A sua conduta foi típica e os furtos foram consumados, vez que o agente teve a posse tranqüila dos objetos subtraídos e só os restituiu quando foram descobertos os delitos (TJMG, Apelação criminal n. 1.0696.03.000238-5/001, Rel. Des. José Antonino Baía Borges, DJ 11.06.2005 ).

3ª. Câmara Criminal

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O delito de furto se considera consumado quando o agente, embora por pequeno lapso temporal, tem a posse tranqüila da coisa, sendo irrelevante que tenha sido preso pouco tempo depois da subtração da res furtiva, com a conseqüente devolução ao lesado do bem subtraído (TJMG, Apelação criminal n. 1.0702.04.138753-2/001, Rel. Des. Paulo Cézar Dias, DJ 14.06.2005 ).

Julgados de 2006

1ª. Câmara Criminal Não há que se falar em tentativa de furto, se a 'res' saiu da esfera de vigilância da vítima, mormente tendo o increpado a escondido próximo do local onde fora preso pela eficaz ação policial (TJMG, Apelação criminal n. 1.0209.05.049144-5/001, Rel. Des. Eduardo Brum, DJ 1º.08.2006 ). Quanto ao pedido de reconhecimento da forma tentada, não assiste razão ao ilustre defensor. A bicicleta foi furtada no Bairro Gutierrez e somente foi apreendida em poder do acusado na favela do Morro da Ventosa, quando Alan já se aproximava de sua residência. Paira nítido, portanto, que a res furtiva foi retirada da esfera de vigilância, sendo que o apelante teve sua posse tranqüila, ainda que por pouco tempo, o que denota a consumação delitiva (TJMG, Apelação criminal n. 1.0024.02.685804-3/001, Rel. Des. Márcia Milanez, DJ 09.08.2006 ).

4ª. Câmara Criminal A consumação do crime de furto se verifica a partir do momento em que, invertida a posse da res furtiva, é ela retirada da esfera de vigilância da vítima, não importando o tempo que tal inversão persista e que seja mansa e pacífica (TJMG, Apelação criminal n. 1.0672.05.159060-8/001, Rel. Des. Walter Pinto da Rocha, DJ 27.06.2006). O crime de furto consuma-se com a simples posse tranqüila da res furtiva, ainda que efêmera (TJMG, Apelação criminal n. 1.0713.04.036354-9/001, Rel. Des. William Silvestrini, DJ 03.10.2006 ). É consumado, e não tentado, o crime se o réu é surpreendido na posse mansa e pacífica da res, mesmo que isso ocorra pouco tempo depois de praticada a subtração (TJMG, Apelação criminal n. 1.0342.05.053261-9/001, Rel. Des. William Silvestrini, DJ 10.10.2006 ).

5ª. Câmara Criminal O crime de furto consuma-se com a retirada do bem, ainda que momentaneamente, da esfera de disponibilidade e vigilância da vítima (TJMG, Apelação criminal n. 1.0024.05.823322-2/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 07.07.2006 ). Impossível falar em tentativa, quando a consumação do delito de furto opera-se no momento em que a res é retirada da esfera de vigilância da vítima e fica em poder dos acusados, de forma tranqüila, ainda que por breve lapso temporal (TJMG, Apelação criminal n. 1.0271.01.002848-5/001, Rel. Des. Vieira de Brito, DJ 21.07.2006).

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Considera-se consumado o furto, quando o autor da infração tem a posse tranqüila da res, ainda que por breve tempo (TJMG, Apelação criminal n. 1.0209.05.046987-0/001, Rel. Des. Pedro Vergara, DJ 29.09.2006 ).

Julgados de 2007

1ª. Câmara Criminal Para a consumação do crime de furto basta que a coisa saia da esfera de vigilância da vítima, ainda que por breve lapso temporal, sendo irrelevante que o bem seja localizado logo depois (TJMG, Apelação criminal n. 1.0611.05.014789-5/001, Rel. Des. Sérgio Braga, DJ 24.05.2007 ). O delito de furto consuma-se quando o agente, após a subtração, retira as coisas subtraídas da esfera de vigilância da vítima, e passa a ter à sua disponibilidade a posse mansa e pacífica, pouco importando que em curto período de tempo seja surpreendido e preso pela polícia, na posse dos produtos do crime (TJMG, Apelação criminal n. 1.0223.03.113274-7/001, Rel. Des. Judimar Biber, DJ 12.06.2007). O delito de furto consuma-se quando o agente, após a subtração, retira as coisas subtraídas da esfera de vigilância da vítima e passa a ter à sua disposição a posse mansa e pacífica, pouco importando que em curto período de tempo seja surpreendido e preso pela polícia, na posse do produto do crime (TJMG, Apelação criminal n. 1.0024.05.773866-8/001, Rel. Des. Judimar Biber, DJ 19.09.2007 ).

2ª. Câmara Criminal Para fins de consumação do crime de furto, é majoritária a Teoria da Inversão da Posse, segundo a qual entende-se consumado o delito quando o agente tem a posse tranqüila da coisa, ainda que por pouco tempo, fora da esfera de vigilância da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.02.021469-1/001, Rel. Des. Herculano Rodrigues, DJ 22.08.2007 ). Da análise do caso vertente, a conclusão a que se chega é a de que a res furtiva saiu da esfera de vigilância da vítima e entrou na livre disposição do apelante, alcançando a fase de consumação, fazendo com que reste sobejamente comprovado o delito de furto consumado e não tentado, como requereu alternativamente a defesa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0701.02.011000-6/001, Rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires, DJ 22.08.2007 ). Ao exame dos autos e quanto ao último delito assinalado, é certo que a prisão do apelante aconteceu cerca de vinte minutos após a respectiva prática (f. 58), período durante o qual, no entanto, houve a posse tranqüila da coisa furtada, pelo réu e sua cúmplice, tendo havido, na verdade, sorte da vítima e de um amigo em encontrá-los logo, pois estavam "(dando) umas voltas pelo bairro Roosevelt quando, então, avistaram os autores" (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0702.06.308897-6/001, Rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires, DJ 04.09.2007 ).

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3ª. Câmara Criminal Decorre dos autos que o réu teve a posse tranqüila da res, uma vez que foi preso quando a bicicleta já estava escondida em local combinado pelos cúmplices, distinto de onde ocorreu o furto, conforme se verifica, inclusive, do depoimento do próprio acusado (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0704.06.047472-0/001, Rel. Des. Paulo Cézar Dias, DJ 31.08.2007 ). O crime de furto consuma-se no momento em o agente adquire a posse da res, retirando, da vítima, o poder de vigilância e disponibilidade (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0686.03.074952-3/001, Rel. Des. Antô nio Carlos Cruvinel, DJ 05.09.2007). Considera-se consumado o delito de furto quando o agente, embora por pequeno lapso temporal, tem a posse tranqüila da coisa, sendo irrelevante que tenha sido preso pouco tempo depois da subtração da 'res furtiva', com a conseqüente devolução ao lesado do bem subtraído (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0313.03.075003-5/001, Rel. Des. Paulo Cezar Dias, DJ 13.09.2007).

4ª Câmara Criminal O furto se consuma com a retirada dos objetos subtraídos da esfera de proteção e vigilância da vítima, não havendo que se falar em tentativa se os bens são encontrados após a prática do delito, em local diverso da subtração, em razão da efetiva atuação policial (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0079.02.000955-5/001, Rel. Des. Walter Pinto da Rocha, DJ 27.03.2007 ). O crime de furto se consuma quando a res furtiva sai da esfera de disponibilidade e proteção do ofendido, mesmo que a posse do agente não se prolongue (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0456.04.024071-9/001, Rel. Des. Eli Lucas de Mendonça, DJ 04.04.2007). A consumação do delito de furto ocorre quando o agente obtém a posse tranqüila da coisa, ainda que temporariamente, colocando-a fora da esfera de vigilância da vítima. Basta que, como no caso, a res furtiva tenha saído da esfera de disponibilidade e proteção da vítima, mesmo que a posse pelo agente não se prolongue (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0701.03.047743-7/001, Rel. Des. Eli Lucas de Mendonça, DJ 25.07.2007 ).

5ª Câmara Criminal A consumação do delito de furto verifica-se no momento em que o bem é retirado da esfera de vigilância da vítima e fica em poder tranqüilo, ainda que passageiro, do agente (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0209.06.055919-9/001, Rel. Des. Maria Celeste Porto, DJ 24.02.2007 ). O crime de furto consuma-se com a retirada do bem, ainda que momentaneamente, da esfera de disponibilidade e vigilância da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.05.890071-3/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 06.03.2007). A consumação do delito de furto opera-se no momento em que a res é retirada da esfera de vigilância da vítima e fica em poder tranqüilo do acusado, ainda que por

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breve lapso temporal (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0344.06.030626-5/001, Rel. Des. Vieira de Brito, DJ 15.09.2007 ).

Julgados de 2008

1ª. Câmara Criminal No crime de furto, segundo precedentes do Pretório Excelso, é dispensável a posse mansa e pacífica para a consumação, sendo necessária tão-somente a retirada do bem da esfera de disponibilidade da vítima (teoria da 'amotio'), o que, extraordinariamente, não ocorreu no caso em tela, uma vez que o acusado foi surpreendido por milicianos no exato momento em que arregimentava a 'res furtiva', oportunidade em que abandonou tudo e saiu em desabalada carreira, sendo preso logo em seguida por eles (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0210.06.035403-7/001, Rel. Des. Eduardo Brum, DJ 09.05.2008 ). Uma vez subtraída a res da vítima, com o conseqüente desapossamento, pouco importará o tempo em que o objeto ficou na posse do autor, ou seja, não há que se aplicar, no caso vertente, conceitos mais próprios do Direito Civil, enfim, de posse mansa, tranqüila e pacífica da res, ao Direito Penal. Em síntese, repito, bastando o mero desapossamento, mantenho a decisão condenatória e nego provimento ao recurso. V.v. Consoante se verificou, o acusado, em momento algum, teve a posse tranqüila da res, haja vista que foi avistado pela vítima logo após ter deixado a residência, o que lhe possibilitou imediata perseguição e recuperação dos objetos por ele levados (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0137.07.005991-0/001, Rel. Des. Márcia Milanez, DJ 24.10.2008 ). O argumento da defesa de que o bem foi apreendido em local próximo, sendo carregado pelo réu, expõe por completo a consumação do crime de furto pela inevitável conclusão de que o bem foi retirado da esfera de vigilância da vítima, ainda que por breve momento, sendo desnecessária posse mansa e pacífica da coisa subtraída (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0720.07.034607-0/001, Rel. Des. Judimar Biber, DJ 25.11.2008 ).

2ª. Câmara Criminal A remoção e retirada da 'res furtiva' da esfera de vigilância da vítima, ainda que momentaneamente, em consonância com a vertente doutrinária denominada 'amotio', acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, acarreta a plena consumação do delito, não havendo que se falar em crime tentado (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0701.03.047131-5/001, Rel. Des. José Antonino Baí a Borges, DJ 24.05.2008 ). O crime de furto resta consumado com a retirada da res da esfera de disponibilidade da vítima, sendo irrelevante que a posse exercida pelo agente seja por breve lapso temporal e que seja ou não tranqüila (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0479.07.139115-1/001, Rel. Des. Vieira de Brito, DJ 07.10.2008).

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O crime de furto se consuma quando o agente retira a 'res furtiva' da esfera de vigilância da vítima, passando a deter sua posse, ainda que por breve lapso temporal. (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0431.06.028538-1/001, Rel. Des. Hyparco Immesi, DJ 22.10.2008 ).

3ª. Câmara Criminal

Impossível acolher também a pretendida desclassificação do delito de furto para sua forma tentada, pois, no crime de furto, assim como no roubo, a consumação ocorre quando o agente retira a res furtiva da esfera de vigilância da vítima, pouco importando se longo ou breve o espaço de tempo no qual teve a posse mansa e pacífica da mesma (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0433.06.188528-4/001, Rel. Des. Antônio Armando dos Anjos, DJ 07.03.2008 ). O delito de furto efetivamente se consumou, pois conseguiu o agente a posse tranqüila do veículo subtraído e dos produtos subtraídos, ainda que por curto espaço de tempo. (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0558.06.002852-6/001, Rel. Des. Sérgio Resende, DJ 04.06.2008 ). Estando, pois, comprovado que ocorreu a inversão da posse da res furtiva, ainda que por um breve lapso temporal, não há como acolher a súplica de se desclassificar o delito para a sua forma tentada (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0223.03.113258-0/001, Rel. Des. Antônio Armando d os Anjos, DJ 04.06.2008 ).

4ª. Câmara Criminal A consumação do delito de furto ocorre quando a res furtiva sai da esfera de vigilância da vítima e passa para a posse do agente, ainda que por curto intervalo de tempo. (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0079.05.208907-9/001, Rel. Des. Ediwal José de Morais, DJ 09.01.2008 ). O crime consumou-se ao ser a res furtiva retirada da esfera de disponibilidade da vítima, ou seja, com a inversão da posse, visto a sua apreensão ter se dado após a fuga dos apelantes, tendo o declarante acionado a policia, a qual em rastreamento conseguiu prender os acusados (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0027.07.123346-7/001, Rel. Des. Walter Pinto da Rocha, DJ 04.04.20 08). O delito efetivamente se consumou, pois conseguiu o agente subtrair os bens da vítima, somente sendo preso em flagrante, algum tempo depois, em face da atuação diligente da Polícia Militar, tornando irrelevante o fato de ter sido tal posse desvigiada ou não (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0699.07.066715-8/001, Rel. Des. Ediwal José de Morais, DJ 31.05.2008 ).

5ª. Câmara Criminal Invertida a posse direta das rei furtivae, não há que se falar em mera tentativa de furto, estando este consumado (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0183.03.058000-9/001, Rel. Des. Adilson Lamounier, DJ 07.06.2008 ).

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A consumação do crime de furto verifica-se quando o agente retira o bem da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que por pouco tempo, não sendo necessária a posse mansa e pacífica (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0694.07.038430-0/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 28.06.20 08). Considera-se consumado o delito de furto, quando o autor da infração, ainda que por breve tempo, tem a posse mansa e pacífica do objeto subtraído. (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0701.03.048473-0/001, Rel. Des. Pedr o Vergara, DJ 15.09.2008 ).

Julgados de 2009

1ª. Câmara Criminal O furto somente se consuma no instante em que o agente se torna, mesmo que por pouco tempo, possuidor da 'res' subtraída, do contrário estaremos diante da figura do crime tentado (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0589.06.011350-6/001, Rel. Des. Delmival de Almeida Campos, DJ 15.05.2009 ). O argumento da defesa de que o bem foi apreendido logo após o fato, expõe por completo a consumação do crime de furto pela inevitável conclusão de que o bem foi retirado da esfera de vigilância da vítima, ainda que por breve momento, sendo desnecessária posse mansa e pacífica da coisa subtraída. Recurso não provido (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0105.08.246229-9/001, Rel. Des. Judimar Biber, DJ 15.05.2009). O crime de furto consuma-se com a inversão da posse da 'res', sendo irrelevante o período de duração da disponibilidade da coisa pelos ofensores do patrimônio (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0386.04.000844-6/001, Rel. Des. Eduardo Brum, DJ 31.07.2009).

2ª. Câmara Criminal Também não prospera a argumentação no sentido de que os acusados não tiveram a posse mansa e pacífica da "res furtiva", o que configuraria a prática do delito em sua forma tentada. A uma razão, porque o apelante teve sim a posse mansa e pacífica da coisa roubada, já que vendeu a faca e gastou ou guardou a quantia em dinheiro - que não foi recuperada. A duas, porque não há qualquer relevância no fato de inexistir posse mansa e pacífica da res furtiva, ou que esta seja transitória, ou que o autor seja preso em flagrante delito, ou seja perseguido e preso instantes após o desapossamento (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0386.04.000923-8/001, Rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires, DJ 13.05.2009 ). De acordo com o entendimento que venho adotando no julgamento de casos semelhantes, eventual a perseguição do infrator não leva ao reconhecimento da tentativa, uma vez que a consumação do furto prescinde do elemento "posse mansa e pacífica", ocorrendo desde o momento em que houve a inversão da posse. Esse, aliás, o entendimento há muito sufragado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0672.08.308296-2/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ 28.07.200 9).

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O furto se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da coisa móvel alheia subtraída, não importando que tenha ou não exercido sobre a coisa posse duradoura e tranqüila (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0672.08.291388-6/001, Rel. Des. José Antonino Baía Borges, DJ 07.1 0.2009).

3ª. Câmara Criminal A consumação do furto exaure-se com a simples retirada da res furtiva da esfera de vigilância da vítima, pouco importando se longo ou breve o espaço de tempo no qual teve a posse mansa e pacífica da mesma (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0074.07.035248-4/001, Rel. Des. Antônio Armando d os Anjos, DJ 17.06.2009 ). Consoante reiterada jurisprudência do STF e do STJ, a consumação do furto se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade, o agente tenha tido a posse da res subtraída, ainda que retomada em seguida (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0713.07.076782-5/001, Rel. Des. Jane Silva, D J 08.07.2009). Para a consumação do delito de furto, basta a retirada dos bens da posse da vítima, ainda que dentro de sua esfera de vigilância, situação que, como visto, foi amplamente caracterizada. A jurisprudência do STF, bem como do STJ corrobora a tese ora expedida. Confira-se: (...) “A jurisprudência do STF (cf. RE 102.490, 17.9.87, Moreira; HC 74.376, 1ª T., Moreira, DJ 7.3.97; HC 89.653, 1ª T., 6.3.07, Levandowski, DJ 23.03.07), dispensa, para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da chamada ‘esfera de vigilância da vítima’ e se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da res furtiva, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata (STF - HC 89.958/SP – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – 1. T - DJ de 24.04.2007, p. 68)” [...] “Considera-se consumado o crime de furto, assim como o de roubo, no momento em que o agente se torna possuidor da res furtiva, ainda que não obtenha a posse tranqüila do bem, sendo prescindível que objeto do crime saia da esfera de vigilância da vítima (STJ - REsp 765.610/RS – Rel.Min. Laurita Vaz – 5. T - DJ de 20.03.2006, p. 346)” (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.02.803050-0/001, Rel. Des. Jane Silva, DJ 03.12.2009 ).

4ª. Câmara Criminal A consumação do delito de furto ocorre quando a res furtiva sai da esfera de vigilância da vítima e passa para a posse do agente, ainda que por curto intervalo de tempo (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0287.08.044701-7/001, Rel. Des. Ediwal José de Morais, DJ 23.09.2009 ). O crime efetivamente se consumou, pois conseguiram os agentes subtrair os bens da vítima, somente sendo presos em flagrante, no dia seguinte, em face do reconhecimento realizado por testemunhas. Repare-se que os agentes se mantiveram na posse dos objetos subtraídos por considerável período tempo. E, ainda que assim não fosse, o crime de furto consuma-se com a posse desvigiada da coisa, pouco importando o período de duração da indisponibilidade (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0476.07.005603-3/001, Rel. Des. Ediwal José de Morais, DJ 23.09.2009).

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O crime de furto se consuma com a efetiva retirada da coisa da esfera de disponibilidade da vítima, ou seja, com a inversão da posse da res furtiva, o que, no presente caso, ocorreu. Pouco importa se o agente é perseguido em seguida à subtração, não tendo, por isso, posse tranquila do objeto furtado [...] De igual modo, o entendimento que mais recentemente vem prevalecendo no STJ é o de que basta a inversão de posse da res para que tenha lugar a consumação do crime, ainda que o bem não saia da esfera de vigilância da vítima, em virtude da perseguição empreendida por essa ao agente. Veja-se: "O crime de furto se consuma com a mera posse do bem subtraído, ainda que por um breve período, não se exigindo para a consumação do delito a posse tranquila da res" (STJ, 5a Turma, Resp 750341/RS, Rel. Laurita Vaz, j. 28/2/2008, DJ 7/4/2008. Grifei. Ementa Parcial) (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0699.06.057235-0/001, Rel. Des. Herbert Carneiro, DJ 15.10.2009 ).

5ª. Câmara Criminal O crime de furto se consuma a partir do momento em que a posse da res furtiva é invertida, deixando ela a esfera de disponibilidade da vítima, não bastando para descaracterizar a consumação o fato de o agente ter sido preso logo em seguida à prática criminosa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.08.497740-7/001, Rel. Des. Adilson Lamounier, DJ 08.09.2009 ). Verifica-se a consumação do delito de furto quando há inversão da posse do bem, ainda que por pouco tempo, ainda que haja perseguição e prisão em seguida, não sendo necessária a posse mansa e pacífica. (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.04.121525-5/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, DJ 09.11.2009 ). O furto registra consumação quando o objeto material é retirado da esfera de disponibilidade da vitima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0433.04.122535-3/002, Rel. Des. Maria Celeste Porto, DJ 30.11.2009 ).

Julgados de 2010

1ª. Câmara Criminal

A consumação do delito de furto ocorre quando a 'res furtiva' sai da esfera de vigilância da vítima e passa para a posse do agente, ainda que por curto intervalo de tempo (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0290.02.000325-4/001, Rel. Des. Ediwal José de Morais, DJ 07.05.2010 ). O intervalo de tempo havido entre a subtração da coisa e a prisão em flagrante do agente, não tem o condão de desfazer a consumação delitiva, já ocorrida, considerando que o furto é crime de consumação instantânea. Considera-se o crime consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (artigo 14, inciso I, do Código Penal). V.v. Se, no delito de furto, o agente não retira o objeto da esfera de vigilância da vítima, não obtendo sua posse desvigiada, ainda que por pouco tempo, não há dúvidas de que o crime permaneceu na esfera da tentativa. (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0183.08.148412-7/001, Rel. Des. Alberto Deodato Neto, DJ 29.10.2010 ).

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Também não merece guarida o pedido de desclassificação para a modalidade tentada do delito. Houve a nítida inversão da posse da res furtiva, com o desapossamento da vítima a partir do afastamento da esfera de vigilância desta [...] Pela distância percorrida entre o encerramento da execução delitiva e a abordagem do apelante pela Polícia, afigura-se claro que o apelante teve a posse mansa e pacífica da res furtiva, restando descabido falar em mera tentativa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0183.08.148412-7/001, Rel. Des. Albe rto Deodato Neto, DJ 29.10.2010).

2ª. Câmara Criminal No crime de furto, a consumação se verifica quando a res furtiva é retirada da posse e disponibilidade do ofendido, ainda que por curto prazo de tempo e sem que seja necessária a obtenção da vantagem patrimonial visada (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.09.472843-3/001, Rel. Des. Nelson Missia s de Morais, DJ 16.11.2010 ). Para a consumação do delito de furto não se exige a posse mansa e pacífica sobre o bem, bastando a breve posse e a cessação da clandestinidade. Precedentes do STF e STJ (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0148.06.042231-5/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ 1º.12.2010 ). O furto é delito instantâneo, cuja consumação se cumpre num só instante e aí mesmo se esgota. Assim, ocultada a 'res' pelo agente, de modo a não poder a vítima exercer seu poder de disposição, tem-se o crime por consumado (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0116.08.015316-0/001, Rel. Des. Beat riz Pinheiro Caires, DJ 02.06.2010).

3ª. Câmara Criminal Consoante reiterada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a consumação do furto ocorre com a verificação de que, cessada a clandestinidade, o agente tenha tido a posse da res subtraída, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0452.09.043912-9/001, Rel. Des. Jane Silva, DJ 19 .01.2010). No crime de furto, a consumação do delito se dá com a posse desvigiada do bem subtraído, ainda que por curto lapso temporal (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0223.05.162798-0/001, Rel. Des. Fortuna Grion, DJ 30.04.2010). O delito de furto se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da "res furtiva", ainda que por curto período de tempo, não mais se exigindo a posse mansa e duradoura (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0116.05.002366-6/001, Rel. Des. Paulo Cézar Dias, DJ 10.09.2010 ).

4ª. Câmara Criminal A consumação do delito de roubo dá-se no momento da inversão da posse da res futiva, sendo irrelevante o fato de o bem não ter saído da esfera de vigilância da vítima. Precedentes do STF (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.08.279503-0/001, Rel. Des. Doorgal Andrada, DJ 20.01.2010 ).

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Entre as várias teorias a respeito da consumação do crime de furto, a jurisprudência consagrou a orientação da inversão da posse, entendendo-se consumado o furto quando o agente tem a posse tranqüila da coisa, ainda que por pouco tempo, ou que esteja a coisa fora da esfera de vigilância da vítima, ainda que próxima desta, mas sem seu conhecimento (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0407.10.000830-6/001, Rel. Des. Eduardo Brum, DJ 1º.09.2010 ). Dá-se a consumação do furto quando a coisa subtraída sai da esfera patrimonial da vítima, passando à disponibilidade do réu, ainda que momentaneamente (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0720.09.053201-4/001, Rel. Des. Eduardo Brum, DJ 09.11.2010).

5ª. Câmara Criminal Considera-se tentado o crime de furto quando o agente sequer retira a res furtiva da vítima, inocorrendo a inversão da posse (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.05.274911-9/001, Rel. Des. Pedro Vergara, DJ 13.01.2010). Conforme iterativa jurisprudência, para a consumação do delito de furto basta a inversão da posse do objeto subtraído, desimportando que tenha o agente a posse mansa e pacífica do bem (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0283.07.007162-8/001, Rel. Des. Adilson Lamounier, DJ 31.08.2010 ). Vale frisar que não é imprescindível neste delito que a coisa subtraída saia da esfera de vigilância da vítima, bastando a fuga com o bem para se caracterizar a existência da posse do meliante, não importando assim que esta seja, ou não, tranqüila. Hoje, esta 5ª Câmara Criminal, à unanimidade, com respaldo nos precedentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça entende que a consumação do delito de furto se dá com a simples posse, ainda que breve, da coisa alheia subtraída, sendo mesmo desnecessário que o bem saia da esfera de vigilância da vítima, bastando a cessação da clandestinidade (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0106.08.037212-6/001, Rel. Des. Mari a Celeste, DJ 1º.09.2010 ).

6ª. Câmara Criminal Todavia, tenho que não há que se falar em tentativa de furto, pois, no caso, verifica-se que houve a consumação do delito, uma vez que o apelante percorreu todas as etapas do iter criminis, ficando, inclusive, na posse da res furtiva até a intervenção da Polícia Militar. Ora, após adentrarem no veículo, os agentes subtraíram o aparelho de som da vítima, evadindo-se do local, consumando, assim, o delito de furto, pois ficou inegavelmente demonstrada a retirada da res furtiva da esfera de vigilância da vítima, sendo certo que a sua célere recuperação não obsta a consumação do delito e não caracteriza a forma tentada (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.04.286942-0/001, Rel. Des. Júlio César L orens, DJ 05.11.2010 ). Reunidos todos os elementos da definição do crime de furto, tem-se sua consumação, pois o agente, efetivamente, retirou o objeto material da esfera de proteção, vigilância e disponibilidade da vítima, sendo que a prisão em flagrante, ocorrida em virtude de rotineiro patrulhamento, não se presta à configuração da colimada tentativa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0518.10.000296-4/001, Rel. Des. Furtado de Mendoça, DJ 06.10.2010 ).

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Para a consumação do furto, basta a retirada do bem da posse da vítima, ainda que dentro de sua esfera de vigilância, não havendo que se falar, via de consequência, na necessidade de o agente obter a posse mansa e pacífica da coisa. Precedentes STF e STJ (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.09.557216-3/001, Rel. Des. Evandro Lopes da Costa Teixeira, DJ 07.10.2010 ).

7ª. Câmara Criminal No "iter criminis" do furto (CP, art. 155), a consumação dá-se quando a coisa subtraída passa ao poder do agente, mesmo que num curto espaço de tempo, independentemente de deslocamento ou posse mansa e pacífica do objeto (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0702.08.523383-2/001, Rel. Des. Cássio Salomé, DJ 15.09.2010). Tem-se o delito de furto consumado, quando ocorre a inversão da posse, perdendo o ofendido o controle de disposição dos bens subtraídos, ainda que por breve lapso temporal. Não se pode admitir que a eficiência da polícia em rastrear o agente e, em seguida prendê-lo na posse da res, restituindo-a ao seu proprietário, caracterize a figura da tentativa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0460.09.035433-9/001, Rel. Des. Agostinho Gomes de Azevedo, DJ 06.10.2010 ). A consumação no delito de furto dá-se quando a coisa subtraída passa ao poder do agente, mesmo que num curto espaço de tempo, saindo da esfera de disponibilidade da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.07.464518-5/001, Rel. Des. Cássio Salomé, DJ 22.11.2010 ).

Julgados de 2011

1ª. Câmara Criminal O delito de furto consuma-se quando o agente, após a subtração, retira a coisa subtraída da esfera de vigilância da vítima e passa a ter à sua disponibilidade, pouco importando que, em curto período de tempo, seja surpreendido e preso pela polícia (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.09.547619-8/001, Rel. Des. Judimar Biber, DJ 20.05.2011). A consumação do delito de furto ocorre quando a 'res furtiva' sai da esfera de vigilância da vítima e passa para a posse do agente, ainda que por curto intervalo de tempo (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0114.05.058135-3/001, Rel. Des. Ediwal José de Morais, DJ 27.05.2011 ). O delito efetivamente se consumou, pois conseguiu o agente a posse tranquila do dinheiro furtado, ainda que por breve espaço de tempo. Sem embargo, colhe-se com muita segurança que a res furtiva saiu da livre disponibilidade da vítima, somente sendo recuperada em face da atuação diligente dos policiais militares. Assim sendo, entende-se que o apelante se apoderou com animus rem sibi habendi do dinheiro do ofendido, privando-o de sua livre utilização, ainda que por breve espaço de tempo, com posse tranquila, o que caracteriza o delito consumado (TJMG, Apelação

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criminal nº. 1.0382.10.007668-8/001, Rel. Des. Ediw al José de Morais, DJ 1º.07.2011).

2ª. Câmara Criminal Para consumação do delito de furto não se exige a posse mansa e pacífica sobre o bem, bastando a breve posse e a cessação da clandestinidade. Precedentes do STF e do STJ (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0284.10.002518-8/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ 19.04.2011 ). Inviável, também, a desclassificação para a modalidade tentada sob o fundamento de que a res furtiva não saiu da esfera de vigilância da vítima. É que, da detida análise dos autos, verifico que o delito de furto restou consumado, já que o agente retirou a res da esfera de vigilância e disponibilidade da vítima, fato este que, por si só, caracteriza a consumação do ilícito (f. 08 e f. 89). Aliás, tenho o posicionamento firmado no sentido de que o delito de furto consuma-se no momento em que a res furtiva é arrebatada pelo agente, ou seja, quando a vítima é despojada de seu pertence, perdendo o controle de disposição do mesmo, conforme ocorreu, in casu (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.10.147310-6/001, Rel. Des. Nelson Missias de Morais, DJ 18.05.2011 ). Para a consumação do furto basta a simples inversão da posse do bem subtraído, ainda que por breve espaço de tempo, não sendo sequer necessário que a 'res furtiva' saia da esfera de vigilância da vítima, bem como que ela seja retomada, após imediata perseguição do agente (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0685.10.007323-2/001, Rel. Des. Beatriz Pinheiro Caires, DJ 27.05. 2011).

3ª. Câmara Criminal Ademais, conforme entendimento doutrinário, para a consumação do furto é suficiente que o agente desfrute, ainda que seja por mínima fração de tempo, da possibilidade de dispor da res (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0313.10.032280-6/001, Rel. Des. Maria Luíza de Marilac, DJ 18.11.2 011).

4ª. Câmara Criminal No crime de furto, segundo precedentes do Pretório Excelso, é dispensável a posse mansa e pacífica para a consumação, sendo necessária tão somente a retirada do bem da esfera de disponibilidade da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0382.08.092118-4/001, Rel. Des. Eduardo Brum, DJ 25.05.2011). O crime de furto consuma-se com a inversão da posse da coisa, ainda que por breve lapso, longe da área de vigilância do ofendido. Irrelevante que a prisão tenha se dado logo em seguida à consumação, porquanto ocorrida após rastreamento policial (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0713.10.001853-8/001, Rel. Des. Júlio Cezar Guttierrez, DJ 20.07.2011 ).

5ª. Câmara Criminal O fato de a res furtiva permanecer por pouco tempo na posse do agente, não sendo tal posse, ainda, pacífica e tranquila, não é óbice à consumação do furto. Uma vez invertida a posse do objeto subtraído e efetivamente retirado ele da esfera de

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disponibilidade da vítima, não há que se cogitar de mera tentativa do crime (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.05.691513-5/001, Rel. Des. Adilson Lamounier, DJ 14.01.2011). É entendimento tranqüilo que para a consumação do delito de furto, basta o simples apossamento da coisa subtraída, sendo prescindível que o agente tenha tido a posse mansa e pacífica da res, sendo suficiente que a vítima tenha sido privada de seu controle e disposição, mesmo que por breve intervalo temporal (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0145.10.016053-3/001, Rel. Des. Eduardo Machado, DJ 04.05.2011).

6ª. Câmara Criminal Reunidos todos os elementos da definição do crime de furto, tem-se sua consumação, pois o agente, efetivamente, retirou o objeto material da esfera de proteção, vigilância e disponibilidade da vítima, sendo que a prisão em flagrante, ocorrida em virtude de rotineiro patrulhamento, não se presta à configuração da colimada tentativa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0016.10.004385-6/001, Rel. Des. Furtado de Mendonça, DJ 26.05.2011 ). Nos termos em que consagrado pela melhor jurisprudência do país, a consumação do crime de furto se dá quando o agente retira o bem da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que por pouco tempo, não sendo necessária a posse mansa e pacífica da coisa subtraída (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0474.10.003757-8/001, Rel. Des. Catta Preta, DJ 11.10.2011 ).

7ª. Câmara Criminal No mérito do recurso ministerial, entendo que a ele se deve dar provimento. É que acompanho o entendimento professado pelo ilustre Promotor de Justiça, secundado pelo eminente Procurador, de que os crimes de furto e de roubo consumam-se com o mero apossamento da res por parte do agente, invertendo-se o poder de disposição sobre a coisa (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0026.09.040876-1/001, Rel. Des. Hélcio Valentim, DJ 1º.04.2011 ). Consuma-se o delito de furto quando o infrator detém a posse da “res" fora da esfera de vigilância da vítima e com inversão da posse, ainda que por curto espaço de tempo (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0027.10.006688-8/001, Rel. Des. Marcílio Eustáquio Santos, DJ 12.08.2011 ).

Julgados de 2012

4ª. Câmara Criminal O crime de furto consuma-se com a inversão da posse da res furtiva, sendo irrelevante o período de duração da disponibilidade da coisa pelo agente, ou se saiu da esfera de vigilância da vítima. Precedentes do STF e STJ (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.11.212586-9/001, Rel. Des. Delm ival de Almeida Campos, DJ 16.05.2012).

7ª. Câmara Criminal

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Não há falar em tentativa de furto, se ocorreu a inversão da posse da ‘res furtiva’, mesmo que tenha o agente sido perseguido e preso, logo após a subtração dos objetos da vítima (TJMG, Apelação criminal nº. 1.0024.08.193318-6/001, Rel. Des. Duarte de Paula, DJ 29.03.2012 ).