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A radicalização do processo histórico de individualização da criança e a “crise social” da infância. Rita de Cássia Marchi [email protected] Universidade Regional de Blumenau (FURB/Brasil) Introdução: o processo histórico de individualização e a construção social da infância No cotidiano social e no discurso acadêmico (particularmente no âmbito da Sociologia da Infância - SI), tornou-se comum falar da existência de uma “crise social” da infância. Uma crise que, segundo analistas, acontece no nível das representações e aponta para o fato de que as “velhas idéias sobre a infância” já não parecem adequadas na atualidade (Buckingham, 2002; Prout, 2005), que estão sendo postas em causa imagens da infância/criança dominantes nos últimos 200 anos ou que o “lugar” da criança já não é o mesmo de antes (Sarmento, 2004). Esta chamada “crise” tem, de todo modo, como seu maior indício a polêmica tese do “desaparecimento da infância” (Postman, 1999). Mesmo seus mais veementes críticos entendem que esta, mesmo equivocada, é “sintomática de nossa época”. Mas do que é que trata esta “crise”? Que indícios ou evidências temos de sua existência? Ou da sensação de sua existência? Como os diversos analistas a compreendem? Foi tentando esclarecer estas questões que tratei deste tema em minha tese 1 , isto porque me intrigava a maneira como esta questão vinha sendo debatida no interior da SI e também porque eu compreendia que a chamada “crise social” da infância poderia ter uma outra interpretação se relacionada à infância pobre no Brasil. De inicio quero compartilhar a idéia de que a transformação das nossas representações tradicionais da infância ou as incertezas contemporâneas que cercam a infância podem ser localizadas no momento em que a legitimidade incontestada de sua natureza “natural” entra em declínio no confronto com sua natureza “construída” ou histórica. Esta desconstrução do fenômeno permite admitir-se a diversidade de infâncias e o fato do seu caráter ser “aberto” e sujeito a contínuas transformações. Assim, a partir de que a natureza imutável da infância e da criança deixam de ser dadas como certas, ficam disponíveis ao 1 MARCHI, Rita de C. Os Sentidos (paradoxais) da Infância nas Ciências Sociais: um estudo de Sociologia da Infância crítica sobre a “não-criança” no Brasil. Florianópolis: PPGSP/UFSC, 2007. Tese (Doutorado em Sociologia Política).

Rita Marchi

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A radicalização do processo histórico de individualização da criança e a

“crise social” da infância.

Rita de Cássia Marchi –[email protected]

Universidade Regional de Blumenau (FURB/Brasil)

Introdução: o processo histórico de individualização e a construção social da

infância

No cotidiano social e no discurso acadêmico (particularmente no âmbito da

Sociologia da Infância - SI), tornou-se comum falar da existência de uma “crise social” da

infância. Uma crise que, segundo analistas, acontece no nível das representações e aponta

para o fato de que as “velhas idéias sobre a infância” já não parecem adequadas na atualidade

(Buckingham, 2002; Prout, 2005), que estão sendo postas em causa imagens da

infância/criança dominantes nos últimos 200 anos ou que o “lugar” da criança já não é o

mesmo de antes (Sarmento, 2004). Esta chamada “crise” tem, de todo modo, como seu maior

indício a polêmica tese do “desaparecimento da infância” (Postman, 1999). Mesmo seus mais

veementes críticos entendem que esta, mesmo equivocada, é “sintomática de nossa época”.

Mas do que é que trata esta “crise”? Que indícios ou evidências temos de sua existência? Ou

da sensação de sua existência? Como os diversos analistas a compreendem?

Foi tentando esclarecer estas questões que tratei deste tema em minha tese 1, isto

porque me intrigava a maneira como esta questão vinha sendo debatida no interior da SI e

também porque eu compreendia que a chamada “crise social” da infância poderia ter uma

outra interpretação se relacionada à infância pobre no Brasil.

De inicio quero compartilhar a idéia de que a transformação das nossas

representações tradicionais da infância ou as incertezas contemporâneas que cercam a infância

podem ser localizadas no momento em que a legitimidade incontestada de sua natureza

“natural” entra em declínio no confronto com sua natureza “construída” ou histórica. Esta

desconstrução do fenômeno permite admitir-se a diversidade de infâncias e o fato do seu

caráter ser “aberto” e sujeito a contínuas transformações. Assim, a partir de que a natureza

imutável da infância e da criança deixam de ser dadas como certas, ficam disponíveis ao

1 MARCHI, Rita de C. Os Sentidos (paradoxais) da Infância nas Ciências Sociais: um estudo de Sociologia da Infância crítica sobre a “não-criança” no Brasil. Florianópolis: PPGSP/UFSC, 2007. Tese (Doutorado em Sociologia Política).

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inquérito muitas das suas características modernas ou “clássicas” (passividade, heteronomia,

dependência, obediência, inocência, etc.). Decorrente deste movimento, atualmente há uma

simultânea tendência entre uma “concepção global da infância” (isto é, o seu “caráter

homogêneo” enquanto estrutura de tipo geracional permanente nas sociedades”) e a crescente

consciência da sua diversidade ao redor do mundo (isto é, a sua heterogeneidade, marcada

pelas variáveis de classe, gênero, etnia, etc. (Prout, 2005).

Este artigo relaciona o processo moderno de individualização à “construção social”

da infância. Mas, mesmo tendo emergido com clareza das teses de Norbert Elias

(1994a;1994b) e Ariès (1981), esta associação tem sido pouco comum nos estudos. Assim,

uma outra idéia que eu gostaria de compartilhar e que assumo como um pressuposto desta

fala, é a de que o processo histórico de individualização, em sua forma inicial teve, como um

dos seus resultados, a separação das crianças do mundo adulto. E a hipótese é a de que

testemunhamos agora as “conseqüências” do processo de individualização das crianças: a

radicalização/agudização deste processo (na nova visão da criança como um “sujeito de

direitos”) pode estar a provocar na sociedade a idéia de uma ‘crise social’ da infância: isto é,

no quadro geral das “flexibilizações” contemporâneas a infância é também apanhada por uma

desnormalização do seu estatuto. Este é um processo que está dialeticamente relacionado às

profundas mudanças que têm atingido outras instituições sociais centrais à vida das crianças,

como a família e a escola e que, por sua vez, têm sua existência relacionada às dinâmicas

sociais mais amplas como as transformações econômicas no mundo da produção e do

trabalho. Argumento ainda que, um dos evidentes sintomas da desorientação e problemas que

este processo causa, no meio social, é também o surgimento dos chamados “novos estudos”

sociais da infância (dentre as quais, a SI) que tem sido entendida, justamente, como uma

resposta do discurso especialista à demanda das dificuldades educativas e da diversificação

dos modos de socialização contemporâneos (Sirota, 2006). Isto é, de certa forma, como uma

resposta das ciências sociais à chamada “crise social” da infância.

Norbert Elias, nos anos 30, evidenciou sócio-historicamente que o desenvolvimento da

idéia da criança enquanto ser individualizado, diferente do adulto, é produto de um (duplo)

processo: o de civilização por um lado e o de individualização (e privatização dos costumes)

por outro. Isto tendo inicio na esfera adulta das classes dominantes a partir do Renascimento

europeu. Portanto, a reflexão sobre o surgimento da infância não pode ser feita separada de

uma certa reflexão sobre o surgimento da própria modernidade e do papel que o “processo de

individualização”, aqui referido aos aspectos subjetivos e biográficos do processo de

civilização – desempenhou na construção social da infância.

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Ao investigar o que chamou de processo civilizador, Elias (1994a) não tinha por foco o

fenômeno do individualismo “em si” ou como valor característico ou dominante da sociedade

moderna. Tampouco o seu objeto era a história da “descoberta” da infância. Elias descreve o

processo de construção de um novo mundo adulto (através da noção de “civilidade”) que teve

como uma de suas conseqüências o aumento da distância entre adultos e crianças. Esta

inversão é particularmente interessante pois não se refere a uma intenção deliberada dos

adultos em relação à delimitação/segregação de um mundo infantil a partir da “descoberta” ou

“consciência” de sua particularidade; se isto acontece é, antes, como resultado de uma

intenção em delimitar um “novo mundo” adulto. A privatização dos impulsos e a

“conspiração de silêncio” que se forma em torno das crianças sobre certos fatos da vida

propõe a idéia de que a infância é antes resultado de uma nova concepção da idade adulta do

que uma deliberada concepção da “idade infantil”: são os adultos que, inicialmente, se

distanciam entre si, e, neste movimento, também das crianças.

Esta sutil diferença de perspectiva em relação ao estudo de Ariès, parece colocar a

versão de Elias mais de acordo com uma idéia não-essencialista da infância: ela não estaria

ali como algo dado, latente, à sombra, pronta a ser “descoberta”, valorizada ou iluminada em

sua “verdadeira” essência. Assim, entendo que sua obra nos abre a possibilidade de ver a

construção social moderna da infância e sua educação como um projeto essencialmente

político: a burguesia nascente projetava um “novo mundo” em direção crescente à liberdade e

à individualização igualitária de seus membros.

Este lema político pensado inicialmente como as relações ideais entre homens

emancipados da ordem tradicional que se estava deixando para trás estaria, na visão de alguns

analistas, atingindo contemporaneamente as crianças, enquanto “indivíduos” (Renaut, 2005;

de Singly, 2004). Também C. Jenks (2005) considera que as filosofias morais e políticas que

geraram algumas de nossas visões sobre a infância não podem ser isoladas de grandes

projetos históricos: assim, a “criança do Iluminismo” e o seu forte legado contemporâneo foi

parte de uma visão utópica da construção de uma nova sociedade.

Da interpretação de Elias sobre a construção social da infância, apenas destacarei

aspectos que considero importantes para colocar como pano de fundo da argumentação que

seguirei. Para Elias, como para Ariès, na época que antecedeu a moderna era pequena a

distância entre os padrões de comportamento de adultos e crianças porque as noções de

privacidade, pudor, vergonha e individualidade ainda não estavam suficientemente

desenvolvidas. A “mistura cotidiana” entre adultos e crianças era, portanto, culturalmente

aceita. Além disto, a cultura oral não possibilitava a definição que veio a ser estabelecida,

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entre o adulto como individuo competente na leitura e na escrita e a da criança como a

incompetente nestes atos.

Em O Processo Civilizador encontramos exemplos de como as “paredes invisíveis”

que passam a se erguer entre as pessoas são os indícios do processo crescente de

individualização, entre adultos, que vai afetar também as crianças e os sentimentos a elas

relacionados. De acordo com isto, para Elias “(...) quanto mais intenso e multifacetado é,

numa sociedade, o controle dos instintos exigidos pelo correto desempenho dos papéis e

funções adultos, maior se torna a distância entre o comportamento dos adultos e o das

crianças” (1994b, p. 104) e “torna-se mais difícil e demorado” o processo civilizador

individual (leia-se “educação”). Assim, à medida que aumenta o hiato entre o comportamento

espontâneo das crianças e a atitude exigida dos adultos, aumenta o tempo de preparação para

a idade adulta. No aumento desta distância a infância se constitui como um tempo segregado,

especial, no qual as pessoas vão, aos poucos, passar os primeiros doze, quinze e agora quase

vinte anos de suas vidas. (Elias, 1994a, p. 175). A “infância” foi, portanto, “alongada” e

foram criadas para ela “instituições especialmente organizadas” para o seu preparo.

No curso do processo civilizador as pessoas procuram também suprimir em si todas as

características que julgam “animais” (suscetíveis de despertar embaraço e nojo). A tendência

passa a ser impedir que o “desagradável” e “repugnante” estejam à vista (Elias, 1994a). As

“funções corporais humanas” afastadas para o “fundo da cena social” ou para dentro da

“casa” como lugar da “vida privada”, são justamente aquelas que serão também afastadas da

convivência com as crianças (os segredos do sexo e da procriação, doença, morte). A isto

Giddens (2002) chama de “segregação da experiência”: processos de ocultação e separação de

determinados fenômenos das rotinas da vida ordinária. Ou seja, processos de “exclusão

institucional” de questões existenciais fundamentais que apresentam dilemas morais para o

homem e que não cessam, no entanto, de efetuar um “eterno retorno”2. São estas ocorrências

“naturais”, até então ao alcance da visão e interpretação das crianças e das quais o indivíduo

adulto aprende a ter vergonha e a lidar com pudor, que constituirão o que se chama de

“segredos” aos quais as crianças só paulatinamente e na medida de seu crescimento e

educação em direção ao mundo adulto passarão a ter acesso

2 Um pequeno, mas significativo exemplo da “ocultação” de funções corporais e da “resistência” que se

estabelece no cotidiano, foi a “amamentação de protesto”, noticiada pela imprensa mundial em 2005, onde mães se organizaram para combater a discriminação e defender o direito de amamentar seus filhos em público. (FSP-18.06.05 – Amy Harmon, New York Times). Este fato pode ser visto também como um exemplo dos paradoxos contemporâneos associados à infância, elencados por Qvortrup (1995).

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Outro aspecto importante a destacar na obra de Elias e Ariès, é o “caráter de classe”

que eles evidenciam presente na construção social da infância. A infância é uma idéia de

inicio social e espacialmente localizada que passa a se espraiar em todas as direções como

norma universal. A SI e a “crise social” da infância No âmbito da SI, de maneira geral, considera-se a ocorrência de um processo de

enfraquecimento das rígidas distinções entre adultos e crianças na forma como foram

estabelecidas na modernidade: a infância estaria passando por profundas mudanças

juntamente com outras transformações que atingem as instituições sociais no quadro da

segunda modernidade (Prout, 2005). Assim, a chamada “crise social da infância” tem sido

também entendida como uma “crise da autoridade” e uma “crise da educação” em sua dupla

face (escolar e familiar) (Renaut, 2005). Para alguns analistas, as transformações

contemporâneas de nossas representações da infância estão especialmente expressas na

Convenção de 1989 que instituiu a criança como nosso “igual paradoxal” – um sujeito com

direitos (de liberdade, de participação) e, ao mesmo tempo, objeto de proteção. (Renaut, 2005;

Singly, 2004). Para outros, a emergência do movimento global pelos “direitos das crianças”

tanto levou à discussão da sua participação social e liberdade quanto, paradoxalmente, a

níveis crescentes de seu controle institucional (Prout, 2005). De forma geral, os analistas

oscilam entre um franco pessimismo em relação ao “futuro” da infância e um otimismo que vê

nestas mudanças o surgimento de relações mais “democráticas” na família e na escola (e,

portanto, na sociedade), passando por uma posição que não vê nestas transformações “nada

além” de um “caos normal” que se poderia esperar de um fenômeno que, sendo histórico, está

igualmente sujeito às transformações mais amplas ocorridas na sociedade.

Embora os indícios da crise apontados pelos analistas sejam controversos, podem ser

assim resumidos: o acesso irrestrito das crianças a certos saberes da vida adulta (a revelação

de “segredos” proporcionada pelos meios de comunicação), a crise das instâncias de

legitimação da infância (família, escola) no quadro dos processos de desinstitucionalização e

de declínio da autoridade e a sua reinstitucionalização através de novos papéis e estatuto

social atribuído às crianças; a diversidade e a desigualdade de condições sociais entre

infâncias e crianças; a individualização da criança e a sua ‘descoberta’ como ativa participante

do mundo em que vive. A seguir exponho brevemente a forma como diversos autores (de

acordo com seus próprios pressupostos) discorrem sobre a atual “crise” dos fundamentos

modernos da infância.

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Sarmento (2004, p.7) entende que, ao invés do “fim da infância”, estamos assistindo

a processos de sua “reinstitucionalização” tanto no plano estrutural quanto simbólico: “(...)

mudanças que conjugam a plena expansão dos fatores modernos de institucionalização da

infância [a criação da escola, o centramento das crianças na família, a produção de saberes

periciais na administração simbólica da infância e a presença do Estado na criação de leis

protecionistas] com a crise das instâncias de legitimação e com as narrativas que a

justificam, têm sérias implicações no estatuto social da infância e nos modos, diversos e

plurais, das condições atuais de vida das crianças.”

Buckhingham (2002, p.37) considera que as teses que apontam para o

“desaparecimento” da infância “encarnam um sentimento crescente de angústia pela

mudança social e, em particular, pela mudança nas relações de poder entre adultos e

crianças”. Sua análise diagnostica uma “visão essencialista” da infância entre os cultores

destas teses pois, embora reconheçam o caráter histórico e construído do fenômeno (e o fato

de ser passível de transformações), voltam, em última instância, à idéia da infância como um

fenômeno ‘natural’ que, implicitamente, se considera eterno e imune à mudanças.

Qvortrup (1995) elenca uma série de “desajustes” entre os níveis individuais (das

famílias) e estruturais no que diz respeito à ambigüidade” de nossa cultura acerca da infância.

Para este autor não se trata de hostilidade dos adultos e sim da “indiferença estrutural” da

sociedade em relação às crianças pois recebem pouca atenção por parte da cultura, da

economia e da política. Considera que o atual “boom” das pesquisas sobre a infância reside no

fato desta ser vista atualmente como um “problema social” ou “fonte prolífica de problemas

sociais” tendo emergido em simultâneo em determinadas sociedades que exibem em grande

parte o mesmo numero de características sociais em um “mundo globalizado”.

Para Sirota (2006), a infância passa da invisibilidade “à cena de frente” na sociologia,

num movimento sobre um objeto de “fascinação” e “tormentos” onde os diagnósticos oscilam

entre a “criança-rei” e a “criança vítima”, mas sempre a “criança-problema”. Para a autora:

“Não é mais possível pensar os problemas educativos, quer digam respeito à escola, à família

ou à mídia, sem nos interrogarmos sobre o novo estatuto da criança(...). Um bem tornado

raro, ela cristaliza e encarna, no coração de um movimento geral de desinstitucionalização,

de um lado, um dos últimos laços sociais e de outro, todas as dificuldades da transmissão,

interrogando e sacudindo violentamente nossos quadros de representação e de interpretação

dos modos de socialização contemporânea.” (Sirota, 2006, p. 6)

Dando “adeus à infância (e à escola que a educava)” Narodowski (1999), autor que

adere sem críticas às teses do desaparecimento da infância, sugere o “fim da infância tal como

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nós a conhecemos” tendo por “pontos de fuga” dois grandes pólos: o da infância hiper-

realizada e o da infância des-realizada.3 A primeira é a das crianças que deixaram o lugar do

“não-saber” pois têm à disposição “computadores, internet, os canais de TV a cabo, os

videogames”. Elas são o pesadelo (“pequenos monstros”) de pais e professores: ao invés de

depender destes, passam a “guiá-los em um mundo de caos” e não costumam despertar o

carinho e ternura tradicionalmente reservados à infância. A segunda é a infância

“independente”, “autônoma” porque vive na rua, porque trabalha. Estes dois pontos de fuga

produzem crianças que não se conformam à imagem tradicional do “aluno” que entra, então,

em crise juntamente com a instituição que a criou.

Para Alain Renaut (2005), a chamada “crise social da infância” pode ser entendida

como uma “crise da autoridade” (e da educação) que tem na escola o seu “paradoxo

institucionalizado”.4 A escola tornou-se uma espécie de “ilhota de resistência à dinâmica

democrática” (Renaut, 2005, p. 68) pois está baseada em relações hierárquicas de tipo natural

entre mestre e alunos. Para Renaut, a Convenção de 89 desestabilizou o dispositivo tradicional

da nossa relação com a criança que era tida até agora, acima de tudo, como aquela que os

adultos deviam proteger e educar. Este dispositivo entra em conflito com a representação da

criança à qual reconhecemos direitos universais. A criança torna-se, portanto, uma figura

particularmente temível dos paradoxos da identidade democrática, pois a relação moderna

com a infância não pode ser concebida senão sob a forma contraditória de uma relação de

igualdade e, ao mesmo tempo, de desigualdade em direitos5.

Na mesma linha de reflexão das dificuldades de articulação entre os “direitos-

liberdade” e os “direitos-proteção” trazidas pela Convenção de 89”, Singly (2004) discute a

“individualização da criança” contemporânea que transforma o modelo educativo.6 A

educação não tem mais por função modelar a criança segundo os desejos das gerações

anteriores. O período educativo deve ser aquele em que a criança desenvolve seus próprios

recursos e assume sua singularidade. A criança individualizada, segundo Singly, tem, no

entanto, uma educação ainda mais “socializada” que a das gerações precedentes pela

3 Este autor entende que a “criança” no sentido moderno (obediente, passiva, dependente, suscetível de ser

amada, etc.) é uma idéia que passa por uma “crise de decadência”. 4 Para este autor, a “fragilização” ou “declínio” da autoridade nas sociedades contemporâneas se revela

particularmente visível nas relações entre adultos e crianças. 5 Este paradoxo, segundo o autor, somente pode ser compreendido com a releitura da história da infância no

Ocidente e da modernização progressiva de nossas sociedades: ao invés de exclusão e reclusão (como defendem as teses clássicas de Ariès e Foucault), a história da infância moderna se caracterizaria por um movimento social e político de paulatina “libertação das crianças”.

6 Para a criança, significa que sua primeira dimensão identitária não reside na origem familiar ou social, mas ao direito, desde que nasce, ao reconhecimento de uma identidade estritamente pessoal (Singly, 2004).

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diversidade de interlocutores e de espaços em que circula. Esta aprendizagem

“horizontalizada”, não diminuiria o peso do coletivo apenas diversificaria as fontes,

permitindo um distanciamento de cada um dos pertencimentos (família, escola, grupo de

pares, etc.) A palavra chave nesta análise é a da “democratização” das relações educativas (na

família, na escola), contestando a “inversão de lugares” presente na idéia da “criança-rei”

como decorrente da mudança no estatuto da criança.

Prout (2005) reconhece a diluição das fronteiras firmemente estabelecidas pela

modernidade entre adultos e crianças, mas afirma que os comentadores do “fim da infância”

interpretam as suas atuais transformações como sinais do seu desaparecimento. Ou seja,

estariam confundindo as “novas formas” da infância com o questionamento de seu status

ontológico. Isto porque as novas representações das crianças constroem-nas como mais ativas,

mais problemáticas e mais causadoras de problemas. Para este autor a infância está mudando

juntamente com as mudanças que ocorrem no “mundo globalizado”. O processo de

globalização cultural que tanto homogeneíza quanto diferencia as condições sociais da

infância faz surgir a simultânea tendência entre sua concepção global e a crescente

consciência da sua diversidade ao redor do mundo e o movimento universal pelos direitos das

crianças que tanto leva à discussão de sua participação social e liberdade quanto,

paradoxalmente, a níveis crescentes de seu controle institucional.

Curiosamente, a idéia da possibilidade do “fim” da infância foi, pela primeira vez,

anunciada por aquele que anunciou seu “nascimento”. No final dos anos 70 Ariès assinalou

que “existe o risco de que na sociedade de amanhã (...) a criança não siga concentrando em

si, como acontece há um século ou dois, todo o amor e a esperança do mundo”.(Ariès, [1979]

1986, p. 17). O historiador francês se refere a uma sociedade que estaria deixando de ser

“child-oriented” como se verificara até os anos 60 e localiza nos EUA (onde principalmente

se “rendera culto” à criança) o lugar onde mais se evidenciava o “refluxo” em relação à

importância da infância ou o surgimento de uma franca hostilidade a seu respeito.

Scheper-Hughes e Sargent (1998, p.29) corroboram o que consideram ser a

“previsão” feita por Ariès no fim da sua vida. Para as autoras, “a idéia moderna de infância

está desaparecendo e as crianças estão perdendo terreno” no quadro da recente proliferação

de políticas públicas que lhes são hostis nos EUA, Canadá e Reino Unido. Políticas que estão

rapidamente desmantelando o “welfare state” e instaurando, no contexto da nova economia

global, a idéia de uma “sociedade sem deveres” (“duty-free society”): a retirada gradual do

Estado das questões do bem-estar de populações vulneráveis, especialmente mães e crianças.

Assim, para aqueles que acreditavam na idéia moderna de infância como um tempo especial

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(a ser protegido) no ciclo da vida, a “sociedade sem deveres” é a maior tragédia do

florescente neoliberalismo do final do século XX : a idéia de inocência e vulnerabilidade da

criança – como uma idéia central no seu estatuto moderno – estaria sendo rapidamente

substituída por políticas e atitudes hostis à criança nas sociedades contemporâneas.

Teoria social contemporânea e a modernidade radicalizada

A teoria social contemporânea oferece quadros de interpretação para as transformações

sociais que presenciamos na atualidade: as posições expressadas por Giddens (1991, 2002),

Bauman (2001) e Beck (2001), à parte suas divergências, convergem quando afirmam que as

mudanças ocorridas a partir dos anos 70 nas diversas esferas institucionais da modernidade

significam a radicalização das condições postas no seu inicio. Para Giddens (1991), estas

transformações são as “conseqüências da modernidade” em sua “fase tardia”. Para Bauman

(2001), a sociedade contemporânea é tão “moderna” quanto há cem anos atrás, pois o que a

distingue de todas as épocas históricas anteriores é o seu duplo e constante processo de

modernização e de individualização. Para Beck (2001), igualmente, as rupturas atuais

acontecem no interior de uma modernidade que se emancipa dos contornos da sociedade

industrial clássica para adotar as características do que ele denomina “sociedade de risco”.7

Nos limites deste artigo cabe apenas ressaltar que as principais mudanças apontadas

como sintomas das transformações sociais em curso são: a flexibilização da produção e da

participação no mundo do trabalho8, o declínio das instituições e do Estado-Nação, a

descrença no poder da razão e da ciência em direção a um progresso planejado, novas formas

de entender o tempo e o espaço, ritmo extremo e alcance global sem precedentes das

mudanças, sentimentos generalizados de incerteza, insegurança e risco, expansão e

fragmentação das redes de conhecimento, entre outras mudanças.

A teoria social contemporânea oferece quadros de interpretação das transformações

sociais que atingem também a infância na atualidade. Beck (2001) no quadro mais amplo da

“individualização da desigualdade social” e Bauman (2001) no quadro da “liquefação” dos

laços sociais analisam – mesmo brevemente – a atual situação da infância ao abordar os

conflitos no interior da família. Para Beck (2001), a dinâmica da individualização e da

7 O conceito de “sociedade de risco” está relacionado ao de “individualismo institucionalizado” e de

“modernização reflexiva” que é o termo adotado por Giddens, Beck, Lash (1997) para a capacidade da sociedade de repensar a si mesma a partir dos riscos gerados no seu interior.

8 A idéia de “pós-modernidade” nasce associada à passagem do modelo fordista para o chamado regime de produção e acumulação “flexível”. A emergência de “modos mais flexíveis de acumulação” e um novo ciclo de “compressão do tempo/espaço” na organização do capitalismo podem ser considerados como vetores de outras grandes transformações, tais como as que ocorrem na “esfera da intimidade”.

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destradicionalização das instituições engendradas pelo processo de modernização não recua

diante das portas da família. Pelo contrário, ela a invade e transforma suas formas e as

relações de parentesco, as formas de reprodução e contracepção, a divisão do trabalho

doméstico, a vida do casal e também a das crianças. O mercado de trabalho que, na primeira

modernidade, pressupunha a “prole” e, portanto, uma família “por detrás” do trabalhador

assalariado, na modernidade reflexiva pressupõe uma sociedade isenta de famílias e casais:

“O indivíduo do mercado é o indivíduo sozinho, desembaraçado de todo empecilho

relacional, conjugal ou familiar. A sociedade de mercado a que chegamos é também uma

sociedade sem crianças.” (Beck, 2001, p. 257, grifo no original).9

Assim, na “sociedade de risco” os casais têm que buscar soluções privadas para

problemas que, estando dadas as possibilidades que a sociedade lhes oferece, se resumem a

uma repartição interna dos riscos, atualizando assim duas das características centrais desta

sociedade (repartição dos riscos e individualização de problemas socialmente criados).

A “rarefação de crianças” é problema que tem afetado centralmente os chamados países

desenvolvidos e apontado por Qvortrup (1995) como um dos paradoxos relacionados à

infância: os casais estão menos dispostos a gerar e educar crianças e a sociedade lhes

proporciona cada vez menos tempo e espaço, apesar do discurso universal de sua

valorização.10 A “ambigüidade” é, portanto, a característica das relações entre adultos e

crianças a partir das mudanças verificadas na família e na sociedade em meados do século

XX. Para alguns sociólogos da infância o quadro social que se configura a partir destas

modificações aponta para a criança como um “problema” em torno do qual a decisão de fazê-

las, ou não, vir ao mundo, torna-se um ato com profundas implicações na vida do casal e do

indivíduo (principalmente da mulher). Assim, considero que o “irrefreável” e “constante”

processo de individualização na sociedade moderna, tais como o definem os seus teóricos,

tem implicações diretas nesta questão. Se a individualização na modernidade tardia consiste

em transformar a identidade humana de um “dado” em uma “tarefa” a cargo e

responsabilidade dos próprios indivíduos e onde responder pelas conseqüências (tanto as

previstas quanto as indesejadas) da própria escolha faz parte do risco social; ser responsável

9 Isto não significa que o “mercado” não tenha interesse pelas crianças elas próprias; pelo contrário, o consumo

relacionado à infância é, como demonstram os estudos, incrivelmente promissor; mas a criança permanece sendo, para a sociedade, como assinalou Qvortrup (1995), um problema (privado) dos pais.

10 A baixa natalidade significa uma ameaça ao já sobrecarregado sistema previdenciário das nações desenvolv.

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pelo desenvolvimento e educação de crianças torna-se na atualidade uma escolha cujas

conseqüências tendem a se tornar cada vez mais imprevisíveis. 11

Embora Bauman (2001) não inclua as relações geracionais (particularmente as

existentes no interior da família) em suas reflexões sobre as relações sociais na “modernidade

líquida”, as profundas mudanças atuantes no quadro desta não podem deixar de modificar

profundamente também as relações entre pais e filhos ou entre crianças e adultos no que este

autor diagnostica como os atuais sintomas de “liquefação dos laços” conjugais ou nas relações

que estabelece entre o processo de individualização e o ato compulsivo do “vício da compra”.

Para Bauman, o tipo de liberdade que “a sociedade dos viciados em compras” elevou ao valor

máximo pode ser traduzido como “a capacidade de tratar qualquer decisão na vida como

uma escolha de consumidor”“(idem, p. 104, grifo meu). Se a “lista de compras”, segundo

Bauman, não tem fim, podemos pensar que a decisão de ter ou não filhos (e quantos) como

mais um dos itens desta lista. Esta possibilidade emerge da incorporação, por este filósofo, da

análise de Giddens sobre os aspectos da mercantilização das parcerias humanas,

particularmente a noção de “relação pura” como típica da construção da auto-identidade na

modernidade tardia.12 Neste sentido, pode-se dizer que a criança é um investimento a “longo

prazo” num mundo em que o “curto prazo” passou a ser o paradigma nas relações: Num

mundo inseguro e imprevisível, o viajante “esperto” fará o possível para “viajar leve” e sem

nada que lhe atrapalhe os movimentos, incluídas aí as crianças. No quadro do diagnóstico da

extrema volatilidade das relações e das exigências de flexibilidade da vida (pós-) moderna,

pode-se dizer que a criança é uma escolha que, uma vez feita, não se pode “voltar atrás” (sem

sérias conseqüências). As crianças são “involuntárias mas, duráveis conseqüências das

parcerias, como afirma Bauman (2001, p. 105) numa única referência a elas.

Beck (2001;2003) afirma que no curso do processo de individualização na família, a

relação com a criança e a qualidade do laço “pais e filhos” se transforma. Porque, se de um

lado a criança se torna um obstáculo ao processo de individualização dos adultos, por outro,

ela é um dos últimos laços primários que subsiste, insubstituível e irrevogável. Os casamentos

e casais vão e vêm, mas a criança permanece. Assim, a criança pode ser vista como um tipo

de forma privada de “reencantamento do mundo”: com as crianças podemos cultivar e

celebrar uma espécie de experiência social “anacrônica” (Beck, 2001, p. 60). De toda a forma, 11 Para Beck (2001) e Giddens (2002) viver na “modernidade reflexiva” é viver em situação de dúvida metódica

e de cálculo constante em relação às possibilidades da ação e de previsão dos riscos e conseqüências desta. A imprevisibilidade faz parte do risco que não pode ser totalmente mensurado.

12 Este autor é cético em ver estas transformações como veículos de emancipação e garantia de uma nova felicidade pela autonomia individual e liberdade de escolha, tal como se configuraria para Giddens. (Cf. Bauman, 2001, p. 105).

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o “problema” permanece: as crianças são dependentes e “custam tempo e dinheiro”. Um

problema que talvez já esteja sendo “resolvido” (ainda que com evidentes limites) com a

crescente “individualização” e “emancipação” também das crianças. As posições dos analistas

que vão do “esbatimento” das fronteiras entre crianças e adultos ao “fim da infância” parecem

sugerir ser o que está, em alguma medida, ocorrendo.

Tendo sido abordado o problema da criança “não desejada” (a criança a “atrapalhar” as

liberdades individuais) não se pode deixar de abordar o fenômeno oposto a este, o da “criança

desejada”. De forma ampla e culturalmente abordada, a possibilidade de se controlar a

procriação aponta para um avanço capital na história do individualismo: “l’enfant du desir”

(Gauchet, 2004; Dagenais, 2004) é a criança do desejo privado, do casal intimizado, da

família desinstitucionalizada, de indivíduos que vêem na parentalidade uma experiência

pessoal/individual. Neste sentido, apontam para uma relação contemporânea com a criança

que é fundamentalmente “narcísica” e que se expressa na possibilidade atual (cujo

fundamento é o reconhecimento da personalidade jurídica do indivíduo) de não se reproduzir

mais para a sociedade, mas para si.13

Embora pareçam fenômenos opostos (e o são, enquanto fenômenos concretos), o fato

de se evitar ou, ao contrário, desejar ter uma criança, está visivelmente – para os autores que

analisam estes fenômenos – relacionado ao desenvolvimento do processo de individualização

contemporâneo. Assim, o que parece estar sob o foco destas análises, não é tanto o valor

(positivo/negativo) da criança em si (e das responsabilidades que sua presença acarreta) mas,

o reconhecimento do individualismo como força propulsora destas mudanças.

Esta é também a posição de Neyrand (2005). Para este autor, a obrigação de “realizar a

si mesmo” – palavra de ordem de nossa “hipermodernidade” – é a “tela de fundo” da

evolução contemporânea das imagens sobre a criança. A lógica de afirmação da subjetividade

infantil, segundo o autor, é tridimensional e se erige no cruzamento do surgimento do ideal

democrático nas relações privadas (em torno das noções de liberdade individual,de

autodeterminação e de igualdade entre pessoas), da psicologização expressa na vulgarização

midiática da problemática do sujeito e do desejo e da ação mercadológica e publicitária da

mídia. Nestas 3 dimensões, a promoção da criança em sujeito/ator segue caminhos

divergentes que vão erigir imagens diversas e complexas da criança como sujeito-cidadão,

sujeito psicanalítico e sujeito consumidor. A este complexo vem se juntar, recentemente, a 13 Contemporaneamente não se trata somente da decisão de ter crianças, mas também a possibilidade de tornar-

nos “consumidores de bons genes” através dos progressos da genética e das técnicas da biomedicina (Neyrand, 2005). A análise de Bauman sobre a possibilidade contemporânea de tratar qualquer decisão na vida como uma escolha de consumidor, parece fazer aqui todo sentido.

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imagem da “criança-vítima” que pretende dar conta dos riscos da manipulação midiática, da

ideologia do consumismo e da criança abusada. Para Neyrand esta imagem começa a se tornar

central e a fragilizar a imagem da criança-ator, constituindo-a em objeto passivo tanto da

violência adulta quanto da “alienação consumista”. Neste sentido, assinala, a defesa dos

direitos da criança, importante e necessária que é, corre o risco de levar a um retorno às idéias

de inocência e passividade da criança.

A “crise social” da infância e a desigualdade de infâncias no Brasil A “consciência da diversidade” e da “desigualdade entre infâncias” (tendo sido

recentemente “descoberta” ao redor do mundo e enunciada pela SI), está presente há muito

tempo em países como o Brasil e não se configura portanto como um “fato novo”. Desta

forma, o que no Brasil, desde os anos 90, alguns autores vêm denominando de “crianças em

infância” e, desde os anos 70, como a existência de uma profunda “divisão no interior da

categoria infância” entre “crianças” e “menores”, me permite expressar uma certa sensação de

“dejá vu” em relação à discussão que se estabelece em torno de sua “crise social” tal como

debatida na SI.

Para alguns autores, o atual discurso dos direitos da criança pressupõe um

“individualismo igualitário” que permanece antitético no quadro das hierarquias sociais

características da sociedade brasileira (Scheper-Hughes e Hoffman, 1998). Conferir direitos

iguais para “todas” as crianças requer uma significativa redistribuição de recursos, poder e

capital simbólico. E aí reside o profundo obstáculo do projeto democrático. Democracia

política não é suficiente se as condições sociais e econômicas que tornam a cidadania possível

não estiverem presentes. Na sociedade brasileira em que prevalece a exclusão social, uma

“democracia sem cidadãos” (Pinheiro, 1996 apud Hughes e Hoffman, 1998) não é estranha à

idéia de crianças “sem-infância” ou à infância como “privilégio” de poucos.

O enfraquecimento das proteções sociais a partir dos anos 70, também detectado nos

países centrais, aponta o surgimento de uma “precariedade social” que substitui a “sociedade

salarial” (direitos trabalhistas consistentes, proteção social, pleno emprego). As conseqüências

disto sobre o indivíduo contemporâneo (que Bauman vê como a distância entre seu estatuto

jurídico e as possibilidades de sua realização concreta) Castel (2006) denomina de

“individualização precária”, que diz respeito ao individuo que não dispõe de um mínimo de

recursos, suportes e direitos para conduzir sua existência com alguma autonomia. No contexto

das atuais mudanças no mundo do trabalho (que apelam a novos imperativos como

responsabilidade, iniciativa, autonomia, liberdade de movimento,etc.) alguns têm recursos

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para se conduzir positivamente como “indivíduos” e tirar benefícios destas mudanças mas

outros não: são os que vivem num estado permanente de precariedade.

Aqui nos defrontamos com promessas não cumpridas da modernidade que a 2ª

modernidade se apressa a retirar. No que diz respeito à infância, talvez por isto não tenha

bastado universalizar o ensino obrigatório – pois isto não foi suficiente para garantir

“infância” a todas as crianças, assim como também não foi suficiente a luta (tanto a de fins do

século XIX na Europa, quanto a mais recente, que envolve os países “em desenvolvimento”)

contra o trabalho infantil e que pode ser vista como outra grande etapa no processo de

tentativa de universalização do modelo moderno de infância/criança.

Nesta direção, compreendo que a luta pelos direitos da criança (nomeadamente na

Convenção de 1989), pode ser compreendida como mais um movimento no imenso tabuleiro

de defesa da “norma da infância”. Uma parte da sociedade se organiza para que a idéia de

criança/infância não “desmanche no ar”, como já previa Marx em relação aos “sólidos“ da

modernidade.

O processo de individualização contemporâneo e a radicalização da infância: o

esgotamento ou crise de um modelo

Neste artigo argumento que a radicalização do processo histórico de individualização,

inserido nas transformações sociais, culturais e político-econômicas que ocorrem desde a

segunda metade do século XX nas sociedades contemporâneas, é a dinâmica propulsora da

chamada “crise social” da infância. Se o processo de individualização - como a outra face do

processo civilizador e de modernização - está na base da construção moderna da infância, sua

agudização não pode igualmente deixar de afetar aquela. Ao desenvolver este argumento

tenho em mente a relação dialética entre sociedade e individuo como foi inicialmente

introduzida no pensamento social por Marx e, depois, por Elias. Mas, tenho em mente

também a forma como autores contemporâneos (e próprio Elias, no fim da vida) entendem

que esta dualidade vem se configurando na direção do indivíduo. Isto é, na direção de uma

institucionalização da individualização.14

Para a compreensão das atuais transformações que envolvem a idéia de infância é

preciso, de inicio, levar às últimas conseqüências o fato de que a infância/criança moderna,

com as características que lhe são normativamente atribuídas, é originariamente uma idéia de

classe que, depois de longo período, começa a dar sinais de esgotamento e provas de sua não

14 Não discuto, no entanto, a questão das conseqüências “negativas” ou “positivas” que esta tendência pode

trazer aos chamados “laços sociais” ou às possibilidades de “realização pessoal” em sociedade.

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universalização. Podemos compreender que aquilo que Postman (1999) chama de

“desaparecimento da infância” podemos denominar de “esgotamento” de um determinado

modelo na histórica imposição de uma idéia ou representação particular de infância/criança.

Esgotamento em relação ao “modelo autoritário” da socialização/educação das crianças (na

família e na escola) que entra em contradição com os princípios de individualização (e os de

democratização nas relações interpessoais) na segunda modernidade e não universalização das

condições sociais e econômicas que tornariam a adoção do modelo preconizado não somente

necessária, mas também possível para classes sociais mais amplas. No entanto, o que chamo

de “esgotamento” na imposição de determinado modelo pode apontar, não para o fim da

infância, mas para a sua radicalização: a hipótese é a de que testemunhamos as

“conseqüências” do processo histórico de individualização das crianças (ou a sua

intensificação).

Esta tese só faz sentido se considerarmos que, como toda construção social, também a

idéia burguesa de infância/criança e sua institucionalização se desenvolveu presa ao contexto

em que surgiu. Ou seja, a criança da primeira modernidade está ligada a uma sociedade

patriarcal, monogâmica, onde o modelo de adulto é dado por papéis sociais e sexuais

definidos. A criança deste período é a criança escolarizada, higienizada e suas características

são suas faltas: ela é heterônoma, assexuada, sem razão e, portanto, sem capacidade de ação.

A criança como projeto político do outro (Marchi, 2007) tem na família e na escola as

instituições que estão encarregadas de sua “formação” em direção à fase adulta. Assim, os

dois eixos em torno dos quais se erigiu a infância moderna, individualização por um lado

(cujo ápice é a consagração dos direitos individuais da criança a partir dos direitos do homem

e do cidadão historicamente produzidos no século XVIII e atualmente estendidos

diferencialmente às crianças) e socialização por outro (pela institucionalização de instâncias

próprias: escola, família nuclear), entram contemporaneamente em conflito aberto. Um

conflito que parece “se resolver” pelo que Beck chama de “socialização para a

individualização”, uma “socialização contraditória” em cujo âmbito, pela primeira vez, o

indivíduo pode estar se convertendo na unidade básica da reprodução social.

Se entendermos, como os especialistas, que a modernidade não cessa de se instaurar e

sendo sua característica fazer de cada sujeito um indivíduo “responsável” por sua

autoconstrução, podemos entender que as crianças não ficam fora deste movimento; pelo

contrário, o processo de individualização contemporâneo radicalizado (Beck, 2001) leva à

“flexibilização” também do modelo instituído de infância. Os concomitantes processos

históricos de civilização, de individualização e de modernização compreendidos como

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responsáveis pela origem tanto de uma nova concepção da idade adulta quanto como tendo

“inventado” a infância, não se esgotaram. Pelo contrário, analistas apontam um movimento

constante de (re)instalação da modernidade e, por isto, a chamam “reflexiva”. Assim como no

Renascimento europeu um “individualismo cortês” (ou “dos costumes”) mudou para o

individualismo burguês e nos construiu “adultos” e “crianças” modernos, o individualismo

institucionalizado, atualmente, radicaliza o processo de individualização nas sociedades

contemporâneas. Surge uma nova concepção de adulto, de trabalho, de amor, de vida em

família e voilà, de infância e criança.

Faleiros (1995, p. 51) assinala que no Brasil vivemos o complexo processo “da

construção de uma infância concebida como independente e autônoma do poder dos pais

(...)”. A infância pode ser vista, então, como um último reduto, uma espécie de ilha onde o

processo de individualização contemporâneo batia às margens mas não conseguia penetrar

devido à forte institucionalização a que estava submetida em sua “forma clássica”. Creio que,

por isto, a infância/criança “individualizada” o era no sentido negativo do “abandono” (da

família), da “delinqüência”, da “vida de rua” – longe das instituições socializadoras, as únicas

capazes de transformar “seres associais” em “membros legítimos da sociedade”. Mas a

“libertação das mulheres” (conjugado ao declínio da autoridade masculina) no limiar da

segunda modernidade impeliu o processo de individualização também à infância. Este penetra

na família e atinge, por força das circunstâncias, todos os seus membros. Neste contexto, a

família e a escola entram no que se denomina de sua “crise” institucional.

Assim, se a segunda modernidade se caracteriza pelo fato de fazer de cada membro da

sociedade um “individuo” responsável por sua “auto-construção”, ao fazer de cada criança um

“indivíduo de direitos” liberta-a relativamente dos laços que a atavam solidamente (na

primeira modernidade) às instituições família e escola. Portanto, a radicalização

contemporânea do princípio da individualização, exprimindo-se pela atribuição aos indivíduos

da obrigação de auto-regulação se exprime, quanto às crianças, na promoção do princípio de

autonomia, com o declínio da autoridade (paterna, institucional, etc.). Assim, a “nova norma”

da infância, expressa em termos do “indivíduo-criança sujeito de direitos” da segunda

modernidade enuncia-se como auto-normatização biográfica.

Mas, a individualização radicalizada das crianças atinge diferentemente crianças e

infâncias e é percebido de modo diverso na sociedade. Pode-se dizer que, como qualquer

outro fenômeno social, o processo de individualização enquanto relacionado ao processo de

modernização ou de civilização (e, neste sentido, diz respeito a todas as pessoas) se reflete de

forma diferenciada junto aos atores concretos. Ou seja, não é independente das posições que

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os indivíduos ocupam no espaço social. É neste sentido pertinente a análise de Bauman sobre

o abismo entre a individualidade ‘jurídica’ e a individualidade ‘de fato’ e que esta distância

não pode ser ultrapassada sem o exercício da cidadania. Isto também no que diz respeito à

“realização” da infância (nos moldes modernos e no quadro dos seus direitos) para todas as

crianças: algumas terão acesso à infância, outras serão ‘crianças’ apenas no plano jurídico.

O que hoje entendemos como “crise da educação” correlata à “crise da família” e da

“autoridade” que começa a atingir crianças de classes abastadas, esteve sempre presente no

meio social das crianças pobres. Mas, se a individualização e a conquista de autonomia são

recomendadas como parte do processo de formação da infância realizada (a criança “livre

para fazer suas escolhas”- Singly, 2004), a autonomia e a independência em crianças pobres

têm sido historicamente vistas como “precoces” ou “anti-sociais”. Desta forma, os processos

de autonomia e individualização das crianças na modernidade tardia, que refletiria,

positivamente, (n)uma “democratização” das relações no interior da família e da escola

(Singly, Renaut), e, negativamente, no “desaparecimento da infância”, está presente de forma

perversa e proscrita (devido ao não acesso aos direitos básicos da infância) entre as crianças

pobres. Assim, a individualização destas crianças é um processo contraditório porque não tem

correspondência na realização de sua cidadania. Entre muitas destas crianças o processo

radicaliza-se pelo fato de que acontece à revelia das instituições socializadoras e, portanto, à

revelia dos adultos (caso das crianças “de rua”).

Utilizo, de forma enviesada, a discussão de Alain Renaut (2005)15, para sugerir uma

pista de compreensão deste processo: modos contrastados de lidar historicamente com a

infância – proteção e homogeneização das diferenças individuais por um lado e liberação e

individualização por outro – vêm se ombreando historicamente. O primeiro modo dominou

por um longo tempo sem que o outro desaparecesse. Na verdade, o segundo manteve-se

presente mais evidentemente na individualização da criança “hors de norme” ou

“delinqüente”, na criança “não socializada” e, atualmente, é visto como colocando a própria

idéia de infância em risco, porque aflora também entre a infância normatizada.

Assim, se o problema de Postman está na perda da autoridade de adultos e no “mau-

comportamento” das crianças – o que justificaria sua classificação como “conservador moral”

– meu entendimento é de que o processo de individualização pode, de forma dialética,

provocar também nas crianças uma recusa em se conformar a um certo modo de ser “criança”

na segunda modernidade. Não se trata de ação deliberada das crianças de fazer frente ao

15 Para uma discussão sobre o livro “A libertação das crianças” de Alain Renaut, ver Le Debat, 2002.

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modelo. Como todas as mudanças sociais, esta “crise” da infância implica uma complexidade

que envolve, a partir de sua desconstrução, a reconstrução contemporânea de sua definição

num jogo de forças entre diversos atores e grupos sociais (incluídas as próprias crianças). O

fato é que, se a recusa ou não adequação à norma se restringia até agora às crianças que não

acessavam, por falta de condições materiais e simbólicas, o modelo hegemônico de infância,

esta não adequação começa a se manifestar ou a ser percebida em outras camadas sociais. A

infância burguesa, por tanto tempo submetida aos processos verticais de autoridade e

socialização dentro da família e da escola (sofrendo a “quarentena” a que se refere Ariès, ou à

disciplina que se refere Foucault), excluída do mundo adulto (dos seus direitos e deveres),

enfim, uma infância que cumpria sua “norma”, passa, contemporaneamente, a ser desinvestida

e, ao mesmo tempo, a desinvestir-se dela.16 A partir deste momento o atual “problema” da

infância se coloca, passando a atrair a atenção dos especialistas.

Defendo que, no caso da infância pobre, não se trata de “crise” mas de não-realização

da infância nos moldes em que a instituiu a modernidade; do não acesso de crianças às

condições materiais e simbólicas necessárias a esta realização. Neste sentido, a idéia do

“desaparecimento” da infância/criança faz sentido apenas junto à infância realizada (junto à

infância com meios materiais e simbólicos para a sua efetivação), porque a idéia de

infância/criança junto às famílias pobres sempre foi uma idéia-problema, tendo a sua

institucionalização “perturbada” por dois grandes “tipos” de dificuldades: os que podemos

chamar de “pedagógicos” e que tem no chamado “fracasso” ou “insucesso” escolar a sua mais

definida expressão (ainda que ideologicamente camuflada na idéia socialmente aceita de

meritocracia) e as dificuldades relacionadas ao comportamento “desajustado” ou “desviante”

da criança na família ou na comunidade e que tem na chamada “delinqüência juvenil” a sua

face mais expressiva.

Assim, considero que Buckhingham (2002) tem razão ao afirmar que, se sempre houve,

entre as crianças e jovens das classes baixas, problemas relacionados à sua “educação”

(drogas, gravidez, delinqüência, indisciplina) o fato “alarmante” é que hoje estes problemas

começam a surgir entre os filhos das classes médias, o que faz com que pais e professores

passem a se preocupar com estas mudanças no seu comportamento. Se o propagado “fim da

infância” ou sua “crise social” podem antes ser entendidos como problemas relacionados à

imposição de uma norma ou um “tipo ideal” de infância/criança, o fato é que, quando ainda

somente relacionados à “infância pobre”, estes problemas tornavam antes “caso de polícia” do

16 A “norma” da infância é a prescrição de saberes sobre a criança que integra seu “processo de

institucionalização” na primeira modernidade e convenciona padrões de “normalidade/anormalidade”.

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que caso “de ciência”, como o demonstra a história das políticas de assistência à infância

pobre no Brasil e América Latina (cf. Pilotti e Rizzini, 1995). Assim, se pode considerar que a

propagada “crise social” da infância não tem o mesmo significado para todas as crianças:

muitas crianças no Brasil e no mundo estão há muito tempo sendo fruto da negação da infância

tal qual modernamente estabelecida.

No entanto, cabe assinalar: quaisquer mudanças nas representações sociais da infância

ou da criança não podem deixar de afetar todas as crianças seja quais forem as suas condições

concretas de vida. As desiguais condições de realização da infância de crianças pobres

tendem, na verdade, a se tornar ainda mais dramáticas se a sociedade realmente estiver

desconstruindo a idéia de infância como um período da vida a ser priorizado e protegido

socialmente.17

A discussão travada por Alain Renaut (2005), ao concentrar-se no problema da

articulação entre os “direitos-proteção” e os “direitos-liberdade” estabelecidos pela

Convenção de 89 ainda não encontrou espaço na discussão que se trava no Brasil, centrada

antes na possibilidade de efetivação dos direitos-proteção. No Brasil, trata-se ainda de garantir

igualdade entre crianças. A igualdade da criança na relação com o adulto enfatizada por

Renaut,– ou seja, enquanto um ser livre – resta, por motivos macro-estruturais, em segundo

plano na sociedade brasileira. Este é o motivo – aliado à concepção tradicional das crianças

como essencialmente passivas e indefesas – pelo qual a criança brasileira pobre permanece

sendo preferencialmente vista nos estudos das Ciências Sociais como essencialmente “vítima”

das estruturas (cf. Castro, 2005; Marchi,2007).

Pode-se sugerir, portanto, que a discussão contemporânea sobre a infância e sua “crise”

está restrita em grande parte às especificidades dos contextos nacionais. Para Sirota (2006) o

fato das pesquisas no Brasil estarem concentradas nas políticas de proteção à criança pobre

pode gerar uma “sociologia da infância crítica” que questiona as ideologias e categorizações

das políticas que associam pobreza à delinqüência e crianças “de rua” à abandono familiar,

entre outros estereótipos.

Pode-se considerar que, ao abordar a “crise social da infância” a SI tem, em grande

parte, permanecido presa às crianças que seguem a norma da infância ou àquelas que exercem

o que ela própria reconhece ser o “duplo oficio” de toda criança (ser filho, ser aluno). Os

desafios teóricos e epistemológicos colocados pelas crianças que escapam à norma não têm 17 No sentido das políticas públicas voltadas às crianças - no quadro da “sociedade sem deveres” (S. Hughes e

Sargent, 1998) - e no nível dos limites simbólicos da infância, como ilustra decisão de juiz brasileiro em absolver acusado de estupro de uma menina pela suposição de que não existem crianças e sim“mulheres de 12 anos” (devido à abertura que a televisão proporciona em relação ao sexo).

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sido, exceto poucas exceções, considerados no interior desta nova disciplina. O panorama que

viemos traçando para o “futuro da infância” continua caracterizado, assim, por dois tipos

(ainda que o considerado “tipo ideal” – o modelo burguês de criança – esteja passando por

transformações): a infância individualizada que tem na sociedade de consumo a sua condição

de realização e a infância não realizada (onde, paradoxalmente o processo de individualização

não deixa de estar presente, mas com outro significado).

A idéia da “flexibilização” da infância (formas e tempos que cada “tipo” de infância

pode assumir) pode assim ser exercida em prol não das crianças e seus modos diferenciados

de viver sua idade com mais ou menos de autonomia, mas em proveito de uma lógica

econômica onde cada família deve arcar com os custos de determinada infância. No

capitalismo a infância foi também transformada em mercadoria e, como toda mercadoria, não

é gratuita. Nem disponível a todos. Para o pensamento econômico dominante, a criança não é

mais sinônimo de não consumidor ou de consumidor indireto. Que assumam sua posição em

nossa “democracia de consumidores” (Sennet, 2000) desde a mais tenra idade é a ordem para

que a infância não seja um desperdício de tempo e energia social. Desde cedo ela precisa “pagar”

(ou que paguem por ela) por seu lugar no mundo.

Assim, perceber todas as crianças como tendo “infância” é apostar numa igualdade no

nível biológico e representacional (no caso das crianças “de rua” a igualdade não se dá nem

neste ultimo nível pois não são percebidas como “crianças”, cf. Marchi, 2007), mas que é

negada nas condições concretas de existência das crianças. Nesta compreensão, a desigualdade

deixa de surgir como contradição intrínseca à construção moderna da infância para ser

entendida como uma “lamentável contingência” de contextos sociais diferenciados: temos aqui

ocultado seu caráter de classe. O movimento inverso seria o de subtrair a infância do plano

metafísico em que parecem se congregar ideologias e consensos em torno de sua importância

e direitos.

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