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1 XIX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS 25 a 29 de outubro de 2005 GT 26 – Trabalho e Sindicatos na Sociedade Contemporânea PARA ALÉM DOS SINDICATOS: OS GRUPOS DE ATINGIDOS DO TRABALHO Diana Antonaz (UFPA) José Sérgio Leite Lopes (UFRJ) Resumo 1 O trabalho procura restituir o processo de constituição de grupos de “atingidos do trabalho” enquanto formas de reunião de trabalhadores que demandam o reconhecimento público de doenças e acidentes do trabalho, a partir da análise de estudos de caso no Brasil e da comparação com grupos semelhantes em outros países. Sua atuação se constitui em nova estratégia de trabalhadores no enfrentamento de empresas e instâncias de governo. Tais grupos – é assim que vamos nomeá-los em virtude de sua dimensão política – não se constituem, via de regra em organizações estruturadas, são dinâmicos, de composição variável e tem sua existência marcada tanto pela ação individual, quanto pela coletiva. Freqüentemente constituídos a partir das organizações sindicais, tendem algumas vezes a autonomizar-se e além de reivindicarem “reconhecimento e justiça”, ampliam sua atuação para outras esferas de direitos civis e sociais, produzindo junto com outros grupos (“atingidos de barragens”, “da base de Alcântara”) uma categoria cumulativa e mais geral de atingidos. Podemos dizer que, da mesma forma que em outras esferas, na do trabalho, verifica-se igualmente uma “ambientalização dos conflitos”. 1 Pesquisa em andamento: Movimentos sociais no sul-sul. Um estudo comparativo das tendências recentes de atuação de organizações de trabalhadores no Brasil, África do Sul, Índia e Tailândia.

ANTONAZ, LEITE LOPES - Para Além Dos Sindicatos - Os Grupos de Atingidos Do Trabalho

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    XIX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

    25 a 29 de outubro de 2005

    GT 26 Trabalho e Sindicatos na Sociedade Contempornea

    PARA ALM DOS SINDICATOS: OS GRUPOS DE ATINGIDOS DO TRABALHO

    Diana Antonaz (UFPA)

    Jos Srgio Leite Lopes (UFRJ)

    Resumo1

    O trabalho procura restituir o processo de constituio de grupos de atingidos do trabalho enquanto formas de reunio de trabalhadores que demandam o reconhecimento pblico de doenas e acidentes do trabalho, a partir da anlise de estudos de caso no Brasil e da comparao com grupos semelhantes em outros pases. Sua atuao se constitui em nova estratgia de trabalhadores no enfrentamento de empresas e instncias de governo. Tais grupos assim que vamos nome-los em virtude de sua dimenso poltica no se constituem, via de regra em organizaes estruturadas, so dinmicos, de composio varivel e tem sua existncia marcada tanto pela ao individual, quanto pela coletiva. Freqentemente constitudos a partir das organizaes sindicais, tendem algumas vezes a autonomizar-se e alm de reivindicarem reconhecimento e justia, ampliam sua atuao para outras esferas de direitos civis e sociais, produzindo junto com outros grupos (atingidos de barragens, da base de Alcntara) uma categoria cumulativa e mais geral de atingidos. Podemos dizer que, da mesma forma que em outras esferas, na do trabalho, verifica-se igualmente uma ambientalizao dos conflitos.

    1 Pesquisa em andamento: Movimentos sociais no sul-sul. Um estudo comparativo das tendncias recentes de atuao de organizaes de trabalhadores no Brasil, frica do Sul, ndia e Tailndia.

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    PARA ALM DOS SINDICATOS: A FORMAO DE GRUPOS DE ATINGIDOS DO

    TRABALHO

    1. A inveno da sade do trabalhador

    A partir da segunda metade dos anos 80, verifica-se a estruturao, nos principais sindicatos

    e centrais sindicais, de reas especializadas em sade do trabalhador. Essa temtica se

    destacava, j no incio da dcada, quando alguns dirigentes sindicais do eixo Rio So Paulo

    associam-se a profissionais de sade, que defendem profunda reestruturao das polticas de

    sade, atravs da realizao de uma reforma sanitria ampla, que envolva nas decises e

    aes a participao dos interessados. Em trabalhos anteriores (Antonaz, D., 2002; Leite

    Lopes, JS et al., 2004) mostramos como se d a emergncia dessa rea sade do trabalhador

    -, a partir de 1979, coincidindo com o processo de democratizao do pas, onde se encontram,

    por um lado, profissionais de sade, que haviam seja constitudo grupos de resistncia e

    transformao dentro das universidades, seja retornado do exterior, e por outro, sindicalistas

    de diferentes categorias de trabalhadores, que com estes organizam aes pela anistia e

    tambm pela democratizao da sade. Sade do trabalhador, que tem como diretrizes o

    protagonismo do prprio trabalhador e a interveno de especialistas voltados para os

    interesses dos trabalhadores contrape ao controle at ento exercido pelo Estado, atravs do

    Ministrio do Trabalho, e dominao das empresas nessa rea2. Esse movimento,

    centralizado inicialmente nos sindicatos dos mdicos do Rio de Janeiro e So Paulo, d origem

    ao DIESAT (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas e dos Ambientes de Trabalho

    1979), ao CESTEH (Centro de Estudos de Sade do Trabalhador e Ecologia Humana

    1984), a departamentos de sade do trabalhador nos sindicatos, sendo que os mais

    importantes contratam assessorias, e, ainda ao Instituto Nacional de Sade do Trabalhador da

    2 A disputa se d tambm e principalmente na esfera do simblico. Por um lado, os antigos departamentos de segurana e higiene do trabalho do Ministrio do Trabalho se especializam, refletindo isso em uma transformao da denominao: em 1976 passam a se denominar Secretaria de Engenharia de Segurana e Medicina do Trabalho. J nos anos 90, o Ministrio do Trabalho procura se adequar aos novos tempos e o setor ganha nova denominao: Secretaria de Segurana e Sade do Trabalhador. As empresas, por sua vez contratam especialistas em seus quadros (engenheiros e mdicos do trabalho)

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    CUT Ao longo dos anos 80, as articulaes freqentemente informais entre profissionais de

    sade pblica e trabalhadores produzem diversos efeitos de grande relevncia.

    De fato, at a dcada de oitenta, as doenas do trabalho so absolutamente ausentes

    das estatsticas do ento INPS (atual INSS). Os peritos seguem uma lgica atuarialjudicial,

    completamente dissociada das percepes de dor e doena dos trabalhadores; por outro lado,

    verifica-se o desconhecimento por parte de militantes sindicais e trabalhadores a respeito das

    manifestaes de dilapidao3 dos corpos nas fbricas e nos servios. A articulao

    profissionais de sade trabalhadores favorece uma troca, ou mais precisamente uma

    amlgama de informaes. Os primeiros passam a construir seu conhecimento, agregando a

    contribuio da experincia concreta dos trabalhadores, que desvenda processos de trabalho, o

    uso de produtos qumicos perigosos, o sofrimento do corpo resultante; os ltimos aprendem a

    construir uma relao entre condies de trabalho e adoecimento, a identificar sinais e

    sintomas, a nomear as doenas, a aprender novos direitos, passando a reunir, desta forma, as

    condies para enfrentar de forma mais eficaz o empresariado e exercer presso sobre

    instituies de governo. Ao longo da dcada de oitenta, milhares de doenas associadas ao

    trabalho so denunciadas, sendo que algumas vem a ser formalmente reconhecidas, seja

    administrativamente pelo INSS, seja por deciso judicial, gerando direitos previdencirios

    e/ou garantindo indenizao por parte das empresas, o que configura ao coletiva voltada

    para a aquisio de direitos anteriormente inexistentes.

    O processo de organizao dos trabalhadores em torno da sade e sua articulao com

    especialistas no caso, poder-se-ia falar em anti-experts (Pollak, M., 1993), uma vez que estes

    aplicam novos mtodos e impem novos resultados -, ao viabilizar a aquisio, por parte dos

    trabalhadores, de categorias e conhecimentos da esfera mdica, no apenas produz

    transformaes na relao com mdicos e peritos de empresas e INSS, mas permite que se

    expressem de forma eficaz na esfera pblica. Desta forma, elaboram dossis pessoais e

    coletivos, constroem manifestaes, que possibilitam ampla divulgao das denncias e

    repercusso na mdia, sendo que as matrias publicadas na imprensa passam a engrossar o

    material documental4. Tal estratgia exerce presso sobre os representantes das instituies

    3 A respeito do uso de dilapidao, cf. Leite Lopes, J.S., 1978. 4 Tendo como referncia Boltanski, L. (1984), podemos dizer que os trabalhadores aprendem a construir um caso que ganha visibilidade pblica.

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    governamentais, produzindo em algumas circunstncias efeitos concretos5. Essa linguagem

    eficaz facilita, alm disso, a construo de organizaes informais em torno da doena, bem

    como a reproduo desse conhecimento junto aos trabalhadores6. Trata-se aqui de um

    processo de formao e de reproduo de intelectuais - ou especialistas orgnicos, em torno

    dos quais se formam grupos de atingidos pelo trabalho. Inicialmente, a organizao tem

    lugar no interior de cada sindicato, sendo que por iniciativa de uma ou mais entidades de

    trabalhadores so organizados fruns intersindicais. Em algumas ocasies, as organizaes

    sindicais no se envolvem com os trabalhadores doentes, e estes passam a se reunir e a

    empreender aes atravs do engajamento de um ou mais trabalhadores atingidos e do apoio e

    envolvimento pessoal de algum especialista.

    Constata-se, igualmente o surgimento de novos especialistas e instncias nas esferas

    de governo. A articulao especialistas trabalhadores favorece a construo de

    conhecimento diferenciado por parte destes profissionais, que passa a englobar dados

    concretos, transformando substancialmente a qualidade de seus mtodos e a obteno de

    resultados. Por outro lado, essa articulao se constitui em grupo de presso capaz de

    modificar a estrutura das formas de governo, com a criao de novas instncias pblicas como

    os Programas de Sade do Trabalhador (dentro do SUS, em nvel local) e rgos

    especializados nos nveis estaduais e federais, alm de espaos de debate7. Tambm, aponta-se

    o curso pioneiro do CESTEH/Fiocruz (Centro de Estudos de Sade do Trabalhador e Ecologia

    Humana da Fundao Oswaldo Cruz) de especializao em sade do trabalhador, que tem

    como foco central a sade vista a partir do trabalhador, como forma de divulgar

    conhecimentos e principalmente instituir uma forma de pensar em nvel nacional8. Em

    decorrncia, diversos novos cursos de especializao em sade do trabalhador passaram a ser

    5 Como por exemplo, elaborao de novas normas tcnicas no mbito do INSS, Ministrio da Sade, Ministrio do Trabalho. 6 Elaborao de cartilhas, reunies peridicas com militantes da rea e/ou especialistas, participao em eventos. 7 Citamos desde a primeira Conferncia nacional de sade dos trabalhadores at a RENAST (Rede Nacional de Sade do Trabalhador), criada por Portaria do Ministrio da Sade em 2002, e atualmente em processo de implantao. A RENAST constitui-se em rede nacional que visa organizar e articular aes de sade em nvel nacional, contando com a representao dos estados e dos trabalhadores. Toda a sua essncia gira em torno do controle sociala ser exercido pelos trabalhadores. 8 Esses cursos contrapem-se, como formulao, aos cursos de especializao em engenharia de segurana e medicina do trabalho - de carter normativo e voltados para a lgica da produo -. No entanto, Pode-se dizer que movimento de sade do trabalhador cria uma nova cultura que se reflete at mesmo nesses cursos e na forma de pensar de funcionrios de organizaes mais tradicionais como o Ministrio do Trabalho.

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    ministrados nas universidades, freqentemente demandados pelas prefeituras. Novos

    mestrados de sade do trabalhador vm sendo criados.

    As presses dos trabalhadores e a constituio de um conhecimento diferenciado

    propiciam a instituio de Conselhos e fruns especializados bi e tri-partites: O Conselho

    Estadual de Sade do Rio de Janeiro, apoiado pelo PST (Programa de Sade dos

    Trabalhadores) no nvel estadual, constitudo por representantes de instituies e

    representantes de sindicatos, tem sua formao inspirada na existncia de um grupo no

    institucionalizado que obteve importantes avanos no reconhecimento de doenas do trabalho.

    O Conselho uma instncia pioneira, protagonista de embates com o empresariado e o

    Ministrio do Trabalho, e que foi capaz de produzir importantes transformaes no mbito dos

    direitos dos trabalhadores, em associao com outras instncias como a Comisso de Sade e

    Meio Ambiente da Assemblia Legislativa (RJ) e o Ministrio Pblico do Trabalho9. Por outro

    lado, principalmente em So Paulo, foi criada uma verdadeira rede de ateno sade do

    trabalhador, com aes que podem ir desde a interveno nas fbricas, ao atendimento mdico

    dos trabalhadores, ao estudo em combinao com especialistas de universidades e centros de

    pesquisa.

    Nos anos 80 e parte dos anos 90, h um importante investimento dos sindicatos na rea

    de sade do trabalhador, o que se verifica ao lado de uma tendncia mais geral

    descorporativizao e, j no final dos anos 90 onguizao10. A partir da segunda metade

    da dcada de 90, alguns dos sindicatos mais atuantes vem-se atropelados por processos de

    privatizao e demisses que atribuem ao processo de globalizao, alm de reestruturao

    dos postos de trabalho e do aumento da terceirizao das atividades. O processo de onguizao

    persiste, mas algo muda em sua forma: passam da articulao concreta e aliana com

    organizaes populares a espaos mais amplos, que desde o incio do governo Lula vm se

    multiplicando, alm da participao em fruns internacionais11. Os sindicatos no conseguem

    mais dar conta do cotidiano dos trabalhadores doentes e apenas alguns ainda mantm

    9 Participao de comisses de trabalhadores de vrias categorias em aes de fiscalizao, o que constitui um evento indito; legislao estadual proibindo o uso de jato de areia nas operaes industriais. Leite Lopes (2004), referindo-se ao PST (RJ), fala em atuao subterrnea do estado. 10 Cf. Veras, R. O (2002) 11 Como o SIGTUR (Congress of Southern Initiative on Globalisation and Trade Unions Rights) que j est em sua stima edio (Bangkok, junho 2005) e do qual participam entre outros CUT, COSATU (frica do Sul), KCTU (Coria), ACTU (Austrlia), oposies sindicais indiana e tailandesa. (cf. Lambert, 2005).

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    assessorias permanentes nessa rea, conforme se verificava nos anos 90. A sade do

    trabalhador, junto com outras temticas como meio ambiente, economias solidrias,

    internacionalizao das organizaes sindicais, continuam na ordem do dia12, no entanto, no

    que se refere aos trabalhadores atingidos no so mais suficientes para dar conta dos

    trabalhadores doentes, que so remetidos ao sistema de sade. Muitos sindicatos continuam

    apoiando formalmente os grupos de atingidos do trabalho, cedendo-lhes espaos, recursos e

    advogados e publicando boletins e cartilhas, mas nem sempre h algum na estrutura sindical

    pronto para ouvir a expresso do sofrimento cotidiano dos trabalhadores, seja aquele sentido

    no corpo, seja aquele freqentemente resultante do pouco caso de algumas instituies de

    governo e do no reconhecimento formal de seus males, o que produz, nos atingidos, profundo

    sentimento de injustia, que s pode ser reparado com o reconhecimento da doena do

    trabalhador. O que ocorre que o corpo do trabalhador se contrape de forma contundente

    aos discursos contemporneos politicamente corretos das empresas e s instncias de governo

    que demonstram fracassar em sua ao de fiscalizao do trabalho13.

    A antropologia e sociologia do trabalho vm de alguma forma registrando essas

    transformaes. Nos anos setenta, abordam os temas mais diversos a respeito do trabalho e

    das classes trabalhadoras. A produo da poca procura sublinhar a lgica das relaes de

    trabalho, centrando as anlises nas formas de dominao e resistncia das classes

    trabalhadoras, no disciplinamento do corpo e do esprito dos operrios. Os trabalhos

    acadmicos comeam a valer-se, ento, dos relatos orais e das histrias de vida, e na voz dos

    prprios operrios que ecoa o sofrimento no trabalho. Desta forma, os cientistas sociais

    passam a dar visibilidade ao sofrimento no cho da fbrica. A categoria marxista consumo do

    corpo, associada extrao de mais-valia, renomeada e reinterpretada. Fala-se ento em

    desgaste operrio, em dilapidao do corpo em desgaste e/ou sofrimento mental14.

    Outra denominao corrente nos textos vtimas do trabalho15. Em estudos mais recentes,

    voltados para as transformaes das organizaes sindicais e de suas agendas, a sade do

    12 Entre as mais recentes est outra construo a do assedio moral, que implica a criminalizao de presses e coeres sofridas no trabalho, tendo uma estreita conexo com o adoecimento, quando a superviso exige que o trabalhador exera funes perigosas. 13 Vale sublinhar que o executivo federal responsvel por mltiplas funes: fiscaliza, percia e reconhece (ou no) a doena e paga o benefcio. 14 Refiro-me aqui a autores como Asa Cristina Laurell, Jos Srgio Leite Lopes e Edith Seligmann Silva. 15 Cf. Faleiros V. e Cohn, A., por exemplo.

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    trabalhador aparece como tpico importante de ao sindical e de negociao, no entanto, as

    organizaes de trabalhadores atingidos no tem sido explorada no mbito das cincias

    sociais. Nos anos 70, os cientistas sociais amplificavam o significado da explorao,

    empreendendo sua leitura atravs da dilapidao do corpo dos operrios, utilizando, fazendo

    ecoar, com freqncia, a prpria voz dos trabalhadores. A construo de grupos de atingidos

    do trabalho se constitui em representao exemplar, enquanto drama vivenciado e

    representado publicamente da explorao no trabalho. Antonaz (2001) mostra a relao entre o

    aparecimento de dor em telefonistas e as transformaes sociais no mbito do trabalho que

    culminam com o fim da profisso e a privatizao da empresa. Na pesquisa preliminar, que

    deu origem ao presente texto, verifica-se, em alguns dos casos onde pudemos recuperar a

    histria, uma crise de origem que marca o ato inaugural desses movimentos. No caso dos

    leucopnicos de Volta Redonda, a privatizao da CSN e a tomada do sindicato por grupo que

    condena os enfrentamentos, deixando sem espao um movimento, cuja prpria existncia a

    essncia da contestao. O mesmo ocorre com outros grupos, conforme ser apontado mais

    adiante nesse trabalho.

    A nomeao dos grupos de atingidos do trabalho.

    No decorrer da pesquisa que fundamenta esse trabalho, localizamos nmero expressivo

    de grupos constitudos, ou em formao, de trabalhadores doentes, cada um, e cada

    personagem dentro deste com uma histria de sofrimento e ao cotidiana, seja voltada para

    resolver problemas mais sentidos, seja ampliando a ao para esferas mais distantes dos

    interesses imediatos. Apesar de diversidades e algumas semelhanas entre eles, abordaremos

    trs casos empricos que demonstrem as especificidades e caractersticas desses grupos, a

    partir dos quais realizaremos nossa anlise. Dentre os grupos localizados, citamos os

    seguintes: associao brasileira dos expostos ao amianto (ABREA); associao de expostos e

    intoxicados por mercrio metlico (AEIMM); associao de combate aos poluentes orgnicos

    persistentes (associao dos contaminados por poluentes orgnicos persistentes) (ACPO)16;

    16 O movimento iniciado pelos trabalhadores contaminados por agrotxicos na Rohdia, em Cubato, nos primeiros anos da dcada de 90. A entidade possui um a pgina na internet com o memorial dos intoxicados.

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    associao das vtimas de contaminao por chumbo (AVICCA); associao em defesa dos

    reclamantes e vitimados por doena do trabalho na cadeia de produo do alumnio (ADRVT-

    CPA); trabalhadores contaminados por benzeno em refinarias; trabalhadores contaminados por

    benzeno em siderrgicas, e entre estes a pioneira associao dos leucopnicos17 de Volta

    Redonda; associao das vtimas do csio 137; associao dos trabalhadores contaminados por

    substncias radioativas18; trabalhadores contaminados por agrotxicos no campo (diversas

    associaes em diferentes estados); associao de portadores de LER (diversos grupos em

    diversos estados)19.

    A simples relao acima mostra a dramaticidade e a dimenso do problema. Mas antes

    de procedermos, consideramos oportuno esclarecer os motivos que nos levaram a utilizar a

    categoria contida no ttulo. Como bem podemos ver, no se trata de categoria nativa, e sim

    tomada de emprstimo pelos autores de outros grupos os atingidos pelas barragens - ao

    tentar expressar uma sntese de todos os significados que esses grupos evocam. Os atingidos

    por barragem uma categoria construda pelas organizaes que permite englobar todos no

    apenas aqueles que sofrem a desapropriao de suas terras, mas tambm outros que se sentem

    prejudicados com a construo da barragem20, e so tambm os movimentos que se organizam

    em funo dos danos sofridos pelos seus participantes. Ao associarmos a palavra atingidos a

    trabalho, a expresso ganha novas leituras: a profundidade histrica da explorao, a

    construo de efeitos visveis, a busca de reconhecimento de um estatuto e de direitos. As

    categorias utilizadas pelos grupos incluem expostos, contaminados, intoxicados,

    vtimas, vitimados, reclamantes, leucopnicos, portadores. Quase todas as categorias

    so passivadas, procuram expressar pessoas que sofreram danos irreversveis, causados por

    algum (as empresas no caso) e que demandam reparao. Apenas a categoria reclamante

    Em 1999 a ACPO incorpora as causas ambientais empreendendo campanha contra a transferncia de rejeitos txicos para regies mais vulnerveis. 17 A leucopenia se caracteriza pela reduo do nmero de leuccitos no sangue, constituindo-se no principal sintoma inicial da doena. Ataca o processo de produo do sangue, podendo o trabalhador vir a desenvolver leucemia. 18 Trata-se dos trabalhadores na ex-empresa Nuclemon, sediada em So Paulo- SP,subsidiria da ex-estatal Nuclebrs, que trabalharan durante anos na extrao e processamento de areias monasticas, para purificao e posterior extrao de urnio. A empresa, hoje fechada, armazena toneladas de resduos ainda sem destino. 19 Distrbios osteo-musculares atribudos execuo de atividades que demandam movimentos repetitivos, tanto na indstria, particularmente na montagem de peas, quanto no setor servios (digitao, leitura de cdigo de barras por caixas de supermercados, entre outras). Ver a este respeito Antonaz, D., 2001. 20 Para um estudo acurado a respeito da categoria atingido, ver Vainer, C. 2002.

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    remete diretamente ao, no entanto, a articulao de associao e vtima evoca igualmente

    a busca de reparao. Algumas categorias so mais amplas, como vtimas e vitimados e

    respondem tambm por situaes mais gerais, como no caso, os intoxicados por chumbo, que

    associam trabalhadores e a populao mais geral (esse grupo inclui os trabalhadores e

    moradores de Santo Amaro da Purificao na Bahia, onde uma empresa do grupo francs

    Penarroya abandonou toneladas de resduos, contaminando famlias inteiras)21, ou ainda as

    vtimas do csio 137, que remete ao caso de Goinia, incluindo moradores da cidade e

    trabalhadores que executaram tarefas de descontaminao, e os vitimados de Barcarena, que

    envolvem trabalhadores afetados por numerosas doenas ao longo do ciclo de produo do

    alumnio, desde a extrao de bauxita em atividades de minerao, at a produo de alumina

    e sua reduo para transformao em alumnio primrio. As categorias expostos,

    contaminados e intoxicados, so referidas a substncias e compostos qumicos e assinalam

    diferenas importantes. Assim, a utilizao de expostosem relao ao amianto (ou asbesto)

    refere-se particularidade dos efeitos dessa fibra sobre o corpo, uma vez que a doena22 pode

    vir a se manifestar, de forma devastadora, dcadas aps ter ocorrido a exposio. Qualquer

    pessoa que tenha aspirado fibras do mineral, independentemente da quantidade e da durao

    da exposio e do tempo em que ocorreu pode vir a desenvolver asbestose, mesotelioma ou

    cncer. Com isso, qualquer pessoa exposta um doente em potencial. O nome da associao

    indicativo de que esta pretende englobar no apenas aqueles que j se encontram doentes, mas,

    igualmente, os que o so potencialmente, uma vez que as doenas provocadas pelo asbesto

    independem da quantidade de fibras inaladas e do tempo de exposio substncia e se

    caracterizam por sua longa latncia23. A sutileza desta nomeao aponta para o fato de que

    21 No site www.midiaindependente.org datado de 13.06.05, encontra-se uma matria contendo a denncia e intitulada Brasileiros vitimados por chumbo dos franceses. O texto inicial tem os seguinte teor: mais que a dor da contaminao , no termos respostas concretas que venham fazer justia e reparos aos nossos doentes, vitimados pela empresa do grupo Penarroya hoje metal Europa. (...) O chumbo deixado pelas ruas da cidade contaminou lavouras e deixoou marcas profundas na populao. No artigo relatado que foram utilizados rejeitos para a pavimentao das ruas, alm de terem sido abandonados montanhas de resduos aps o fechamento da fbrica. Sempre segundo o artigo, as crianas so as vtimas principais. Em uma primeira testagem, 555 em 600 crianas encontravam-se com nveis de chumbo no sangue acima dos nveis normais. A associao foi formada em 2002, com o objetivo de defender os trabalhadores e a populao da cidade, obter indenizaes e tratamento do INSS e, principalmente para garantir a descontaminao da cidade. 22 A asbestose caracteriza-se pela formao de quistos compactos em torno das fibras depositadas nos pulmes, provocando grande reduo da capacidade respiratria; em alguns casos as pessoas podem desenvolver um cncer de pleura raro e grave, denominado mesotelioma. 23 Podem ocorrer at mesmo trinta anos aps a exposio.

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    todos somos potencialmente doentes e para a necessidade de banimento do amianto, uma das

    grandes bandeiras da associao. A anlise da sutileza das diferentes nomeaes implica no

    reconhecimento de diferentes identidades de atingidos atravs dos diferentes processos que

    constroem o doente e que so verbalizados pelos intelectuais orgnicos dos movimentos, e por

    vezes por especialistas que lhes do sustentao ou que participam diretamente dos

    moviementos.

    Os atingidos do trabalho: estudos de caso

    Entre os estudos de caso das pesquisas efetuadas, escolhemos trs, por serem

    representativos de diferentes formas de constituio e ocorrerem em momentos diversos, e

    tambm por se tratar dos coletivos, em relao aos quais, possumos maior nmero de dados.

    Caso 1: Os leucopnicos de Volta Redonda

    Os leucopnicos de Volta Redonda so pioneiros em sua constituio enquanto grupo;

    sua existncia intervm intensamente no processo de transformao vivido pela cidade nos

    ltimos vinte anos e seu caso exemplar no sentido de revelar agentes constroem conexes

    entre sade do trabalhador e meio ambiente. O sindicato dos metalrgicos de Volta Redonda,

    que se reconstri aps a ditadura militar em torno de sindicalistas como Juarez Antunes24,

    importou a experincia do sindicato dos metalrgicos de Santos que representa os

    trabalhadores da COSIPA25. Por sua vez, duas mdicas do sindicato, com essas informaes,

    passaram a pedir exames de sangue de trabalhadores que apareciam com sintomas da doena,

    passando a descobrir a existncia da intoxicao por benzeno entre operrios da CSN. As

    duas mdicas do Sindicato de VR. e doentes associam-se ao grupo que discute agravos

    sade dos trabalhadores, constitudo no Rio de Janeiro e obtm que seja publicada uma

    portaria da Superintendncia INSS do Rio reconhecendo a doena. De imediato, so

    diagnosticados cerca de 300 casos. Exames admissionais de rotina em empresas da regio 24 Como presidente do sindicato dos metalrgicos esteve frente da greve de 1988, durante a qual a CSN foi invadida pelo exrcito para retirar os trabalhadores que a ocupavam e mantinham os fornos em operao e que culminou com o assassinato de trs metalrgicos por soldados do exrcito. Elegeu-se deputado federal e prefeito da cidade. Desapareceu em acidente de automvel em janeiro de 1989, a poucos dias da posse. 25 Para a descoberta da leucopenia em Santos, foi decisiva a pesquisa realizada pela mdica sanitarista Lia Giraldo, que desenvolveu esse tema em sua dissertao de mestrado.

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    constatam a presena da doena em trabalhadores que nunca haviam entrado na Siderrgica. A

    divulgao desse evento produz entre os moradores da cidade um sentimento coletivo de

    ameaa e medo. Esse terreno frtil favorece a ao ambientalista tanto de entidades privadas,

    quanto pblicas. nesse campo que se travam as disputas centrais entre empresa, de um lado,

    e prefeitura, movimentos sociais e governo do estado (na poca da privatizao), de outro. A

    ambientalizao dos conflitos (cf. Leite Lopes et al., 2004) desencadeada a partir da

    organizao dos leucopnicos, que se afastam do sindicato quando metalrgicos que defendem

    uma poltica de parceria com a empresa ganham as eleies. O metalrgico, hoje aposentado

    por doena do trabalho, e coordenador da comisso relata como se deu o processo de

    autonomizao do grupo. Segundo o entrevistado, ex-empregado da coqueria da usina, lugar

    onde so emitidos os vapores de benzeno originados da queima do coque, a nova diretoria do

    sindicato passou a tentar reduzir o nmero de leucopnicos afastados26. O s trabalhadores

    comearam a ficar preocupados como o seu destino e resolveram se organizar como

    comisso, enfrentando o sindicato e a empresa. Passaram a atuar fora da estrutura sindical,

    indo a programa de televiso para denunciar a sua doena. Constituram a associao, com

    estatuto e coordenao, tendo-a registrada em 1995. Passam, desta forma, a atuar em esfera

    prpria, participando como grupo legitimado na agenda 21 local, na comisso de sade, no

    programa de sade do trabalhador e eventualmente em fruns extra-locais27. O meio-ambiente

    passa a ser o espao, - a linguagem do entendimento possvel entre diferentes agentes. A

    visibilidade alcanada pelo grupo dos leucopnicos permeia a formao de acordos,

    interveno de agentes externos como o Ministrio Pblico e a criao e multiplicao de

    novos fruns de participao popular e de negociao com a empresa28. O grupo se mantm

    sem o apoio da diretoria do sindicato, cuja tendncia, eleita por ocasio privatizao se

    mantm, mas vinha recebendo algum apoio da prefeitura local. Mais recentemente, foram

    constitudos duas associaes de mbito nacional de contaminados por benzeno, uma em

    siderrgicas, outra em refinarias, mas cujo processo, bastante diferente do da pioneira

    associao dos leucopnicos de Volta Redonda, sendo criado na defesa dos trabalhadores

    doentes, mas tambm, como forma de exercer presso (e, possivelmente inspirado por) sobre o 26 Em 1993, havia cerca de 500 metalrgicos afastados do trabalho com leucopenia e cerca de 1.200 casos diagnosticados. 27 No perodo ps-privatizao a prefeitura comeou a ganhar importncia, havendo sido criados vrios fruns de 28 As duas mdicas do sindicato foram sucessivamente secretrias municipais de sade

  • 12

    grupo interinstitucional do benzeno, instituio tripartite, que se prope a normatizar os

    limitesde exposio e os parmetros para o diagnstico da doena.

    Caso 2: A ABREA associao brasileira de expostos ao amianto

    A ABREA foi criada em 1995 no municpio de Osasco (SP), principalmente em

    virtude da suspeita e confirmao da existncia de trabalhadores doentes em virtude de

    exposio anterior a fibras de amianto, conforme constatado pela engenheira da DRT,

    Fernanda Giannasi, tambm scia fundadora da ABREA. A constituio da associao foi

    ocasionada pela falta de resposta dos sindicatos de trabalhadores diretamente relacionados

    com a produo de amianto (minerao e fbricas de artefatos de amianto), cujos dirigentes se

    demonstram preocupados em defender empregos a qualquer custo (at mesmo o da vida dos

    trabalhadores), bem como a sobrevivncia das prprias organizaes sindicais29. A associao

    possui uma estrutura leve, sem cargos, apenas os de coordenao, que podem ser facilmente

    deslocados de um para outro dos associados. Possui atualmente cerca de 1.000 associados que

    se encontram em estgio avanado de doenas relacionadas com o amianto. Apesar da doena

    empenham-se em esclarecer vizinhos e organizaes a respeito dos riscos do amianto, por

    vezes expondo publicamente seus prprios casos e aconselham aos consumidores o uso de

    produtos alternativos. Alm da sede de So Paulo, possui representaes e associados no Rio

    de Janeiro (onde estavam localizadas as fbricas de artefatos de amianto Eternit e Asberit) e na

    Bahia (minerao e produo). Formalmente a ABREA tem como propsitos: a) aglutinar

    trabalhadores e expostos em geral; b) cadastrar expostos e vtimas em geral; c) encaminhar

    expostos para exames mdicos; d) conscientizar a populao em geral, trabalhadores e opinio

    pblica sobre os riscos do amianto; e) propor aes judiciais em favor de seus associados; f)

    integrar-se a outros movimentos sociais e ONGs pr-banimento do amianto em nvel nacional

    e internacional; f) Lutar pelo banimento do amianto (cf. Castro, H., Giannassi, F. e Novello,

    Cyro, 2003; Scavone, L., Giannasi, F., Thbaud-Mony, A.).

    A ABREA como diversas das congneres atua em dois nveis, no do cotidiano, do

    interesse imediato dos scios doentes, que o mbito do concreto: da esfera mdica (exames, 29 Note-se que h uma srie de importantes interesses em jogo. No caso da mina de Munuau, os impostos recolhidos correspondem a 30% arrecadao do municpio. Alm disso, as empresas que exploram e produzem o amianto so grandes multinacionais francesas, que vm deslocando sucessivamente suas instalaes (ou ampliando-as) em pases onde a extrao e produo de amianto ainda so permitidas.

  • 13

    diagnsticos, tratamentos) e processos judiciais, e, ainda da agregao de novos companheiros

    e em uma esfera de articulao mais ampla: com sindicatos, movimentos de sade do

    trabalhador, instituies de governo, ONGs nacionais e internacionais, redes e redes de

    redes. A primeira a esfera da urgncia, de pessoas que tm pressa, que freqentemente tm

    os dias de vida contados. H uma intensa atividade no dia-a-dia, que tem como objetivo, sob

    variadas formas, obter respostas concretas para os trabalhadores doentes e freqentemente

    esposas e filhos igualmente doentes. O acompanhamento de processos uma dessas atividades

    (a entidade est promovendo atualmente cerca de 2.500 processos), sendo que as informaes

    a respeito do andamento das aes circulam rapidamente entre os associados. A morte

    daqueles que esto frente da organizao no tem trazido dissoluo de continuidade nas

    aes do cotidiano. Seu Miguel, uma importante liderana do movimento, e recentemente

    falecido, lembrado com sua foto que contm todos os signos da doena: magro, sentado na

    cama de uma casa modesta, um tubo penetrando a narina, o olhar perdido no vazio. Sua

    imagem, exposta em um cartaz da ABREA, em evento no Sindicato dos Petroleiros de Santos

    ocorrido em agosto de 200530, mostra, por um lado a necessidade de construo da memria,

    como elemento da prpria construo do movimento, e contm, alm disso, todos os

    elementos que expressam a explorao no trabalho, o sofrimento, a indignao com a

    injustia, enfim, a concretizao da vtima.

    A atuao em outros nveis envolveu, mesmo antes da criao formal da associao,

    em 1994, a realizao do Simpsio Uso controlado do amianto: banimento ou uso

    controlado?, sob o patrocnio da Fundacentro (Fundao Jorge Duprat Figueiredo de

    Segurana e Sade no Trabalho) e da CUT (Central nica dos Trabalhadores), no decurso da

    qual, foi divulgada a declarao de So Paulo a favor do total banimento do amianto

    (contrapondo-se a instituies que defendiam o uso controlado e seguro do amianto) e criando

    a redes Asbestos free world , Ban asbestos international e a Rede virtual cidad pelo

    banimento do amianto na Amrica Latina, da qual, atualmente, Fernanda Giannasi a

    coordenadora. Nessa esfera que envolve relaes externas entidade, a internet tem sido um

    instrumento poderoso de circulao de denncias e informaes. A ABREA possui uma

    pgina na internet e vrios entre seus scios dispem de endereo eletrnico.

    30 Simpsio Nacional do Trabalhador contaminado por susbstncias qumicas, 11 e 12 de agosto de 2005.

  • 14

    Caso 3: A ADRVT-CPA - associao em defesa dos reclamantes e vitimados por doena do

    trabalho na cadeia de produo do alumnio.

    O municpio de Barcarena est localizado no Par, a uma distncia de Belm que pode

    ser percorrida de uma a duas horas, dependendo do meio de transporte utilizado. At vinte

    anos atrs, poca de instalao da Albrs -, a populao local vivia exclusivamente de pesca,

    extrativismo e agricultura. Nesta fbrica, so produzidos lingotes de alumnio a partir de

    alumina, que era importada at 1995, data de inaugurao da Alunorte, onde processada a

    bauxita, e transformada em alumina. O acionista principal das duas empresas a Companhia

    Vale do Rio Doce, que responde por grande parte dos negcios de minerao e de metalurgia,

    do Estado do Par, exercendo grande no governo do estado e na mdia local. A produo de

    alumnio uma das mais poluidoras do mundo, envolvendo inmeros produtos qumicos31. As

    empresas enfrentam o problema da poluio com alguma tecnologia, especialistas e discurso.

    Isto resulta na produo de uma hegemonia do conhecimento tcnico a respeito da poluio,

    que privativo da empresa, desqualificando qualquer representao nativa, baseada na

    experincia, cuja leitura feita a partir da observao da natureza e das transformaes

    vivenciadas pelos corpos individuais e apreendidas coletivamente. E essa hegemonia

    representada didaticamente, de forma repetida, nos eventos de poluio causados por outras

    empresas, que so controlados pelos departamentos de meio ambiente do complexo industrial,

    e no pelas instncias pblicas competentes, municipais e estaduais, conforme seria de se

    esperar. A primeira vista, o que est em jogo a imagem da empresa junto a seus parceiros

    internacionais, que procuram, a todo custo, evitar que um caso clamoroso de poluio

    venha atingir a imagem do empreendimento junto aos clientes. Esta representao, bem como

    as repetidas demonstraes pblicas de conhecimento privilegiado, produzem efeitos

    simblicos de grandes dimenses, mostrando, a todos, quem manda na regio. Esse tipo de

    demonstrao exemplar repetido em outras esferas (na rea social, obras em vias pblicas,

    31 A respeito das representaes e significados da poluio entre as famlias que exercem atividades de pesca, agricultura e extrativismo, cf. Antonaz, D., 2004 .

  • 15

    presena permanente na mdia), ampliando a presena das fbricas de alumnio (e da

    Companhia Vale do Rio Doce como um todo no Par).

    Os trabalhadores do complexo so representados por dois sindicatos. O sindicato dos

    metalrgicos do Par representa os trabalhadores da Albrs e o sindicato dos qumicos os da

    Alunorte. O primeiro, aps uma etapa de enfrentamento, que tem seu clmax na greve de 1990,

    adota uma relao de parceria com a empresa, que, como estratgia concede com facilidade

    algumas vantagens por ocasio das negociaes coletivas, tentando produzir o

    descontentamento entre os trabalhadores qumicos, que no recebem o mesmo tratamento, e o

    desgaste do sindicato junto aos trabalhadores (cf. Antonaz, D., 2004 a.).

    As reclamaes referentes a doenas dos trabalhadores da Albrs e da Alunorte, vm se

    reproduzindo ao longo dos ltimos dez anos. Uma antiga reivindicao de pagamento de

    adicionais de salrio por condies de risco, permite o acmulo de uma discusso que acaba se

    transformando muito rapidamente na percepo de adoecimento coletivo. As primeiras

    tentativas de reconhecimento de doenas e leses graves decorrentes de acidentes do trabalho

    so rechaadas pela empresa, que, como resposta, demite trabalhadores doentes, exigindo que

    comprovassem suas denncias. A partir de determinado momento, os doentes de ambas as

    empresas se agregam em torno do sindicato dos qumicos, uma vez que o sindicato dos

    metalrgicos assume e reproduz o discurso da empresa, recusando-se a representar os

    trabalhadores. Isolados em Barcarena, os trabalhadores buscam alianas extra-locais,

    nacionais (CUT e outros sindicatos da regio) e internacionais (Frum Carajs, organizao

    que rene organizaes de trabalhadores e de populaes atingidas pelos projetos de

    minerao e produo de alumnio e entidades alems de apoio). Com o objetivo de se

    fortalecer localmente, o sindicato dos qumicos promove um grande evento sobre a produo

    de alumino, onde a sade do trabalhador era a tnica, com a presena de convidados nacionais

    e internacionais. Em decorrncia da repercusso do evento, a delegacia regional do trabalho

    empreende uma tmida investida e convocada audincia pblica para debater o assunto na

    assemblia legislativa estadual. Passados alguns meses, quando a repercusso do caso perde

    seu efeito, as empresas comeam a processar os dirigentes sindicais por injria e difamao, e

    vasculham as suas vidas pessoais, promovendo o desarquivamento de uma investigao

    envolvendo o presidente do sindicato, o que tem como conseqncia sua desestabilizao

    emocional e a instalao de um temor indefinido a respeito do que poderia vir a ocorrer com

  • 16

    outras lideranas sindicais. Esse momento de instabilidade produz um enfraquecimento

    temporrio do sindicato e deixa conseqncias. Havendo perdido, pelo menos formalmente, o

    espao de sustentao possvel, os trabalhadores, com auxlio externo, de representantes do

    Frum Carajs, de profissionais de sade locais e do Rio de Janeiro, que procuram realizar

    diagnsticos positivos dos casos de doena (fluoroses, intoxicaes por alumnio, por

    hidrocarbonetos aromticos, exposio a cidos e calor, entre outras) constituem a sua prpria

    associao. Tendo a frente um trabalhador, que sofre de srios problemas neurolgicos, so

    articulados apoios externos e propostas aes de reconhecimento das doenas e de

    indenizao. Os dirigentes da associao, em sua maioria afastados do trabalho h longo

    tempo, esto presentes em fruns de articulaes coletivas, procurando, assim, as formas

    possveis de romper o isolamento, de granjear apoio sindical e extra-sindical e de estabelecer

    relaes com especialistas (no caso, principalmente a Fundao Osvaldo Cruz), que possam

    apia-los em suas demandas.

    Os personagens frente das associaes

    H sempre algumas pessoas, cuja ao fundamental para a constituio das

    associaes e o enfrentamento que a condio de atingido do trabalho implica. Algumas

    pessoas doentes ou especialistas destacam-se nesse processo e assumem posies de

    liderana. Procuraremos esboar, aqui, quem so esses personagens e o que os leva para a

    linha de frente. Entre os trabalhadores doentes h alguns indivduos especiais32, que

    inicialmente se vem diante da impossibilidade de acreditar que a situao que experimentam

    se situa no campo dos possveis. Em seguida, a realidade concreta da dor e do sofrimento os

    leva a romper uma relao encantada com a empresa. A indignao que sentem por se

    sentirem enganados e freqentemente abandonados socialmente leva-os a exigir o

    reconhecimento de suas doenas e sentem a necessidade de fazer justia. So esses os

    moventes principais reconhecimento e justia que os fazem percorrer hospitais e

    instituies pblicas, buscar alianas, reunir iguais em diferentes nveis, estruturar grupos, 32 Refiro-me aqui a alguns trabalhadores muito especiais que conduziram esse processo e que encontrei ao longo de minhas pesquisas: Ivan metalrgico (Rio), atingido pela silicose; Fabinho do metr, atingido por asbestose (Rio); Vantuil, metalrgico leucopnico (VR) ; Edna, telefonista atingida por LER (RJ); Damasceno, metalrgico do alumnio, doente neurolgico por afeco qumica em indstria de alumnio (Barcarena).

  • 17

    contribuir para a transformao de agendas sindicais, buscar informaes, vasculhar a internet,

    livros e jornais. H grandes diferenas internas e diferentes possibilidades pessoais de

    construo do enfrentamento. A simples deciso de exposio pblica de sua prpria histria,

    pode, por vezes, causar ressonncias de tais dimenses, que permitam que medidas sejam

    tomadas imediatamente. Este foi o caso de Fabinho, trabalhador do metr do Rio de Janeiro,

    acometido por asbesto, em decorrncia de seu trabalho, que consistia em lixar sapatas de freio

    de amianto em uma cabine fechada. Vamos nos deter rapidamente na histria de Fabinho,

    porque contm dimenses que sero objeto de nossa anlise posterior. Fabinho, trabalhador

    negro e forte, havia trabalhado na construo do metr. Analfabeto, no teria acesso a

    emprego na ento recm-inaugurada Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro, que

    exigia segundo grau completo de seus empregados. No entanto, conforme revelado por

    supervisores da empresa, havia sido contratado para uma tarefa manual em virtude de sua

    grande capacidade de trabalho. Aps alguns anos de atividade, comeou a ser internado

    sucessivamente em hospitais, em virtude de deficincia respiratria. Aparentemente, sua

    doena no foi diagnosticada, e a cada alta mdica voltava a seu trabalho. A sua doena foi

    descoberta por uma equipe de pesquisadores do DIESAT (Departamento intersindical de

    estudos e pesquisas dos ambientes de trabalho), e a denncia que se seguiu, produziu o

    imediato reconhecimento da doena e substituio das pastilhas de amianto por outro material.

    Fabinho foi aposentado e suas condies foram piorando ao longo do tempo.

    Em outros casos, o processo longo e difcil: exames mdicos sucessivos, percias sem

    fim, recursos das empresas, enfrentamento de peritos hesitantes. O reconhecimento das

    doenas e as compensaes devidas s ocorrem em muitos casos aps a morte dos

    trabalhadores. Os atingidos do trabalho, por isso, tm urgncia: no dispem de tempo para

    esperar os longos trmites judiciais. H sempre algum frente dos processos que contribui

    enquanto tem foras, quando vai sendo substitudo por outro. Com efeito, as associaes de

    atingidos diferenciam-se de outras organizaes, que, freqentemente, atuam de forma

    pontual quando ocorre algum problema ou situao capaz de motivar sua ao (cf. Leite

    Lopes, J.S. et al., 2004). No podemos deixar de apontar, no entanto, as dificuldades que essas

    aes significam para os trabalhadores. Para os trabalhadores afetados por uma das doenas do

    amianto, andar algumas centenas de metros, subir uma escada representam imenso esforo

    fsico, que pode representar isoladamente resultados muito modestos, ou at mesmo nenhum

  • 18

    resultado, alm de muitas vezes sofrerem o que vivenciam como humilhaes por parte de

    funcionrios, mdicos e peritos. Mas, as organizaes de atingidos, embora tenham como

    objetivo o reconhecimento de seu estado e a eliminao do risco para outros trabalhadores

    intervm na estrutura do estado, garantindo (e inventando) novas leis e servios. Com sua

    sofrida experincia, indicam um modus facendi extremamente eficaz de atuao junto ao

    estado e s empresas, contribuindo para transform-los.

    Por outro lado, a conexo dos atingidos com organizaes e redes internacionais se d

    por meio da interveno de intermedirios: especialistas e militantes de ONGs e o acesso de

    informaes atravs da internet, para os trabalhadores em particular acaba ficando restrito, s

    vezes por dificuldade de acesso a computadores e quase sempre em virtude do idioma. No

    entanto, nem sempre os especialistas atuam apenas como intermedirios. Para alguns (ou

    melhor dizendo, algumas)33 o trabalho na associao se transforma no prprio objetivo de

    vida. Este o caso de Fernanda Giannasi, engenheira, e de Ceclia Zavariz, mdica, ambas da

    DRT de So Paulo que so scias fundadoras respectivamente da ABREA e da AEIMM.

    Outras pertencem a programas de sade do trabalhador, a ONGs ou assessorias sindicais.

    Fernanda, na sua funo inspeciona empresas, onde o amianto utilizado ou os artefatos so

    produzidos. As conversas com os trabalhadores leva suspeita de que existam trabalhadores

    doentes, sendo localizados os primeiros e encaminhados para exames mdicos. O Congresso

    internacional realizado em So Paulo amplia a sua ao e a dos atingidos, que empunham a

    bandeira do banimento do amianto. Em decorrncia de seu trabalho, Fernanda acaba sofrendo

    investigao no servio pblico e processo por parte das empresas de amianto. Em seu apoio,

    corre uma lista na internet, que assinada por especialistas e militantes de ONGs do mundo

    inteiro. Fernanda mantm seu vnculo estreito com os trabalhadores, acompanhando o

    cotidiano de cada um, mas tambm ganhou relevo internacional, enquanto especialista em

    amianto, sendo convidada a participar de fruns organizados por instncias internacionais,

    como a OIT, a OMS, o Parlamento Europeu.

    Notas etnogrficas de uma reunio

    33 Em todos os casos por ns levantados, as especialistas envolvidas com as associaes eram todas do sexo feminino.

  • 19

    Enquanto estvamos preparando este paper, participamos em 11 e 12 de agosto do

    simpsio nacional de sade do trabalhador contaminado por substncias qumicas, realizado

    no Sindicato dos Petroleiros de Santos. O encontro, promovido propunha-se a organizar as

    propostas dos trabalhadores atingidos para a 3a. Conferncia Nacional de Sade do

    Trabalhador34. O amplo auditrio do sindicato, no segundo andar, representava dificuldade de

    acesso para muitos dos participantes, que subiam a escada devagar, parando a cada degrau.

    No auditrio, um palco elevado, onde se sucediam oradores oficiais das secretarias e

    ministrio de sade e alguns especialistas. O ponto alto do evento foi realizado em horrio fora

    da programao do evento noite ganhando a carter especial e cerimonial: a audincia

    pblica de direitos humanos, econmicos, sociais e culturais35, conduzidos por Lia Giraldo da

    Silva Augusto36, durante a qual, os trabalhadores relataram seu sofrimento, tanto fsico, quanto

    moral, e apresentaram queixas a respeito das humilhaes recebidas por representantes de

    empresas, profissionais em hospitais e principalmente os peritos do INSS, na direo dos

    quais, as queixas e denncias so unnimes.

    No evento propriamente dito, deslocamos nossa ateno do foco central o palco

    onde se apresentam os palestrantes, para percorrer a platia, onde integrantes de diferentes

    associaes se mantm juntos, e principalmente as paredes do auditrio, nas quais, cartazes,

    faixas e painis representam simbolicamente os grupos de atingidos. Cada grupo procura

    manter seu material em espaos contguos, porm, no h propriamente uma ordem e por

    vezes os materiais se superpem e misturam. Aproximando o olhar do material exposto

    verificamos a existncia de material bastante antigo, de 1988, no caso das intoxicaes de

    mercrio na Eletrocloro e 1991, outro caso de intoxicao de mercrio na fbrica de lmpadas

    Sylvania. Alguns materiais no so datados, mas os cartazes e faixas expostos so como

    quadros sucessivos a contar histrias. Figuras centrais nessas histrias, so os trabalhadores

    34 Trata-se de um evento realizado de dez em dez anos. O primeiro foi realizado em 1986. Congrega organizaes de trabalhadores, de instncias de governo e representantes de empresas, tendo o objetivo de atualizar as polticas de sade dos trabalhadores. 35 No pudemos assistir a este evento, as informaes foram repassadas por Fernanda Giannassi e duas trabalhadoras do Rio de Janeiro que desenvolveram doenas decorrentes da exposio ao amianto e com quem almocei no dia seguinte. Estavam tomando o lugar de uma colega frente do movimento, que se encontrava enfraquecida .Alm disso, as doenas associadas ao asbesto haviam matado o marido e o filho no ltimo ano. 36 Lia Giraldo, mdica, a partir de seu estudo com petroleiros no sindicato de Santos, correlacionou a leucopenia intoxicao por benzeno. Pertence atualmente aos quadros da Fundao Osvaldo Cruz de Recife e relatora da ONU de direitos humanos ao meio ambiente.

  • 20

    mortos as vtimas -. A foto de seu Miguel destaca-se isolada sobre uma cartolina amarela e

    por si s conta uma histria: um cmodo modesto de casa de operrio, Seu Miguel, magro,

    sentado sobre a colcha estampada de uma cama de solteiro, no canto direito uma garrafa de

    oxignio ligada a um tubo introduzido em uma das narinas. O outro trabalhador morto, Nilson

    Domingos da Conceio, vtima do acidente da Sylvania, est em uma pgina de jornal. O

    primeiro foi militante, algum que esteve prximo, como algum da famlia, diferenciando-se

    do segundo, que no teve tempo de exercer a militncia. O que h de fundamental nesses

    cartazes e faixas, que contam uma histria, que mostram a necessidade de construo de uma

    memria das doenas a partir da experincia cotidiana. Desta forma, a produo da memria

    constitui um capital social coletivo dos trabalhadores, que expressa e denuncia, de forma

    concreta, teimosamente, a cada momento, a explorao do capital, em uma poca em que

    bandeiras empresarias, tais como, parcerias com empresas, tica, responsabilidade social,

    preocupao ambiental, parecem borrar tenses, conflitos e interesses de classe.

    De forma a emprestar maior intensidade as histrias, so exibidos cartilhas e cartazes

    contendo informaes tcnicas a respeito dos efeitos dos produtos qumicos. Tudo feito de

    forma muito didtica, seja dividindo-se o texto em tpicos temticos, seja indicando os efeitos

    das substncias qumicas sobre uma figura do corpo humano, apontando o que ocorre com os

    diferentes rgos. A ABREA, alm disso, faz a apresentao da entidade em um dos painis.

    Alm disso, h ainda, inmeras faixas e cartazes exigindo o banimento das substncias.

    As e cartazes, reproduz em denncias, como: AIEMM - Basta de vtimas de doenas do

    trabalho e de intoxicao por mercrio; ABREA - No Brasil, o amianto legal... at

    quando?; AEIMM Estamos de luto e na luta pela eliminao do uso do mercrio no

    Brasil. Ainda outros materiais chamam para a ao e organizao em movimentos mais

    amplos: Sindicatos dos qumicos unificados - Marcha em defesa do meio ambiente e pela

    qualidade de vida; Encontro nacional para lanamento da campanha: CPI para apurar

    conivncia dos peritos do INSS e mdicos de empresas; AIEMM no dia 28 de abril

    estamos presentes para relembrar os trabalhadores mortos e lutar pela vida com dignidade.

    A ofensiva contra a atuao de peritos do INSS est tomando corpo, outra reunio do

    mesmo tipo foi realizada em Porto Alegre, em junho de 2005, promovida pelo Movida-Brasil,

    visando organizar um movimento para a instalao de CPI contra a postura arbitrria da

    percia mdica do INSS.

  • 21

    A referncia ao dia 28 de abril da outra faixa, dia da sade dos trabalhadores (dia

    nacional em memria das vtimas de acidentes do trabalho e doenas do trabalho) assinala a

    morte de 78 mineiros americanos, na mina de Farmington, no ano de 1969. A comemorao

    da data anualmente organizada por diversas entidades de trabalhadores, dentre as quais o

    Frum nacional de militantes em sade do trabalhador , outra organizao surgida nos ltimos

    anos a partir desses movimentos e que se prope a manter sua independncia, tendo-se

    recusado a fundir-se no RENAST, conforme sugerido por alguns tcnicos do setor sade. Na

    programao de 2005 foi includa a realizao do tribunal do amianto.

    A instituio desta data internacional marca um evento significativo para as classes

    trabalhadoras, comparvel a 1o. de maio e 8 de maro. Nos trs casos, o evento de origem

    semelhante e visa produzir efeitos semelhantes, mas principalmente fortalecer simbolicamente

    a memria dos trabalhadores, que constituem centralmente sua identidade atravs da

    construo cotidiana de uma memria coletiva.

    Alguns significados dos grupos de atingidos do trabalho

    O material acima mostra amplas e mltiplas possibilidades de anlise. No entanto,

    devido s limitaes deste paper, limitar-nos-emos a alguns aspectos que consideramos mais

    relevantes.

    Cabe acrescentar, que esse objetivo inicial se expande para ocupar espaos sociais e

    polticos mais amplos. O que se observa, mais recentemente, a formao de grupos de

    atingidos que intervm diretamente atravs de sua ao e de sua voz na defesa de interesses

    especficos e mais gerais, como meio ambiente e direitos humanos de modo amplo. A

    atuao dos grupos de atingidos do trabalho se d mais intensamente em reas contguas,

    como sade e meio ambiente. Verifica-se com freqncia um trnsito entre essas reas e o e a

    linguagem subjacente ao discurso que engloba e relaciona os danos sade dos trabalhadores

    e o meio ambiente tem se mostrado muito eficaz. Tambm est presente a uma articulao

    entre justia social e justia ambiental, uma vez que so os sentimentos de perplexidade e

    injustia que mobilizam os atingidos do trabalho.

    A atuao dos grupos de atingidos do trabalho se d mais intensamente em reas

    contguas, como sade e meio ambiente. Verifica-se com freqncia um trnsito entre essas

  • 22

    reas e o e a linguagem subjacente ao discurso que engloba e relaciona os danos sade dos

    trabalhadores e o meio ambiente tem se mostrado muito eficaz. Tambm est presente a uma

    articulao entre justia social e justia ambiental, uma vez que so os sentimentos de

    perplexidade e injustia que mobilizam os atingidos do trabalho.

    Cabe comentar rapidamente a recente estruturao das grandes empresas, com suas

    gerncias de meio ambiente, a contratao de consultores internacionais (mdicos e

    engenheiros do trabalho) e os recm-implantados setores de responsabilidade social, como

    resposta a esses novos movimentos e s presses do mercado internacional. Tambm no nvel

    do Estado h iniciativas de articulao internacional como o sistema globalizado humanizado

    de classificao e rotulagem de produtos qumicos, decorrente do captulo 19 da agenda 21. A

    reunio da qual participamos a esse respeito pareceu-nos apontar para, ouvidos os tcnicos, a

    criao de um grande consenso internacional do que seria ou no perigoso.

    Observa-se, comparando os vrios casos estudados, uma sucessiva autonomizao dos

    grupos de atingidos do trabalho. A sua origem se d freqentemente a partir de uma

    articulao com especialistas funcionrios do estado e com o apoio dos sindicatos das

    respectivas categorias. Um estudo na longa durao mostra que esses grupos tendem a se

    autonomizar em momentos de crise, seja devido a mudanas de orientao na estrutura

    sindical, como nos casos de Volta Redonda e Barcarena; seja devido a crises ou

    transformaes do poder local, como na situao especfica de Volta Redonda e a se associar a

    redes nacionais e internacionais.

    Uma pesquisa internacional recm-iniciada pelos autores deste trabalho mostra que

    esses grupos tambm se constituem em contraposio a estados autoritrios, nos quais a ao

    sindical intensamente vigiada. Cita-se o caso da organizao Assembly of Patients from

    Occupational Hazards and Environment37, que atua participando e em colaborao com a

    Assembly of the Poor38. Esses grupos de atingidos tendem a se articular em rede com outras

    organizaes nacionais e internacionais39, extrapolando seus objetivos iniciais e fazendo parte,

    freqentemente, de importantes grupos de presso. Nesse sentido, a categoria atingidos

    37 Leite Lopes, J.S.; Antonaz, (2004 b) 38 Esta organizao incluiu, em sua agenda, crticas s polticas de desenvolvimento, voltadas, entre outros problemas para reforma agrria, barragens riscos industriais graves, condies de trabalho perigosas, discusso ambiental e violao de direitos humanos. 39 Isso se verifica nos trs casos estudados.

  • 23

    acaba tendo seu significado inicial - voltado para as populaes que sofrem os efeitos dos

    grandes projetos e das barragens em particular ampliado para outros grupos, implicando

    isso, tambm, na ampliao da ao coletiva.

    Finalmente, a pergunta que nos colocamos : afinal, que grupo esse? Como pode ser

    comparado aos movimentos existentes?

    Castro, H. et al. (op. cit.) sugerem se inseririam dentro dos chamados novos

    movimentos sociais, incensados por alguns cientistas sociais por sua plasticidade e seu

    potencial de empoderamento, e que se constituem enquanto um contra-poderes,

    distanciando-se das organizaes sindicais que freqentemente se aliam aos patres em uma

    pretensa defesa do emprego.

    Os dados apresentados neste trabalho parecem confirmar tal plasticidade, no entanto,

    parece-nos que os atingidos do trabalho no se enquadrariam facilmente nos novos

    movimentos sociais, uma vez que a identidade de seus integrantes essencialmente de

    trabalhadores e, freqentemente lanam mo de estruturas de sindicatos, que esto

    imediatamente disponveis.

    Quanto ao primeiro aspecto, essas organizaes no possuem diretorias estruturadas,

    mas apenas coordenaes bastante flexveis. fato, tambm, que se articulam em redes

    nacionais e internacionais e que a internet se transformou em novo instrumento de denncia,

    mobilizao e organizao. No entanto, tanto por limitaes fsicas, de escolaridade e

    econmicas, ou mesmo de capital social, nem todos os trabalhadores tm condies de

    participar de eventos nacionais e internacionais, ou de utilizar a internet e conectar-se com as

    redes em ingls. Com efeito, so apenas alguns especialistas e trabalhadores de posio e

    escolaridade mais elevadas que tem acesso a esses recursos. Portanto, essa insero e essa

    participao dependero de apenas algumas pessoas que se transformam em porta-vozes das

    organizaes e de sua capacidade de transportar o mundo para o movimento e o movimento

    para o mundo.

    Os grupos de atingidos do trabalho distanciam-se dos chamados novos movimentos

    sociais em diversos aspectos: a forte marca da identidade de trabalhadores e a construo,

    cotidianamente, de uma classe, que se ope claramente aos interesses do capital (embora

    sem esta inteno), denunciando o lado mais sombrio das organizaes empresariais e das

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    instncias de governo, os objetivos claramente estabelecidos, alm de sua ao cotidiana e

    duradoura. A dor, o sofrimento fsico e moral, o profundo sentimento de injustia estabelecem

    pr-condies diferenciadas para os movimentos de atingidos do trabalho.

    Se alguma aproximao pode ser feita, acreditamos, que em alguns aspectos, os grupos

    aqui estudados estejam mais prximos dos grupos de parentes de mortos e desaparecidos,

    tanto na forma de ao (tribunais pblicos, indenizao), como na necessidade de recontar a

    histria e constituir uma memria, usando essencialmente as fotos das vtimas, tanto em um

    como em outro grupo, como representao simblica de uma memria que no pode ser

    destruda e da dor.

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