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O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA UM ARTIGO DE ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA

António José Saraiva e o 25 de Abril

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O 25 de Abril e a Historia

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Page 1: António José Saraiva e o 25 de Abril

O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA

UM ARTIGO DE ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA

Page 2: António José Saraiva e o 25 de Abril

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Índice

Introdução ...................................................................................................................... 3

O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA ................................................................................ 5

Conclusão ..................................................................................................................... 14

Bibliografia .................................................................................................................. 16

Livros e artigos ......................................................................................................... 16

Leis e Decretos .......................................................................................................... 17

Índice de figuras

Caixotes trazidos pelos retornados, junto ao padrão dos descobrimentos.........1

António José Saraiva nos anos 70 .............................................................................. 3

Comentário bastante crítico, publicado num jornal da época, sobre o enorme

êxodo derivado do abandono das colónias .............................................................. 6

Apelo ao julgamento público dos criminosos fascistas, numa manifestação

nas ruas de Lisboa......................................................................................................... 8

Agente da PIDE-DGS, salvo do linchamento popular por militares ................. 8

Primeira folha do relatório “Acção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na

Sanzala Mihinjo”, onde se relatam decepações executadas por um esquadrão

de tropas portuguesas ................................................................................................ 10

Mural da época fazendo referência ao regime ditatorial vivido em Portugal

durante quase 50 anos ................................................................................................ 11

Caricatura de José Vilhena, publicada na Gaiola Aberta de 1 de Dezembro de

1975 ................................................................................................................................ 12

Caricatura profética, publicada apenas dois dias depois do 25 de Abril de

1974 ................................................................................................................................ 13

O cravo envenenado....................................................................................................14

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3

António José Saraiva

Introdução

Menos de 4 anos depois do golpe militar do 25 de Abril, António José Saraiva escreveu um artigo contundente e demolidor, intitulado “O 25 de Abril e a História”, onde assentava afirmações como as que se seguem:

Os cravos do 25 de Abril […] fanaram-se sobre um monte de esterco.

Os militares portugueses […] fugiram [das colónias] como pardais, largando armas e calçado, abandonando

os portugueses e os africanos que confiavam neles.

Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.

Ao contrário do que poderia parecer, o autor daquelas linhas não era um reacionário de

direita ou um ex-ministro do regime ditatorial (como era o caso do seu irmão José Hermano Saraiva), mas sim um homem de esquerda, opositor do salazarismo e ex-militante do PCP1, que pagou com a prisão o fruto das suas convicções políticas, num tempo em que a maioria se acomodava e se calava, tendo inclusive sido impedido de leccionar em Portugal por ter apoiado abertamente a candidatura à Presidência da República do General Norton de Matos2.

1 A ruptura de António José Saraiva com o PCP verificou-se no início dos anos 60, aquando da segunda viagem que fez à URSS, a fim de participar no Congresso da Paz em Moscovo. Segundo as suas próprias palavras, “era um congresso a favor da Paz, mas os soviéticos estavam contra os chineses, os chineses entendiam que era preciso não condenar a guerra contra os inimigos do socialismo. (...) Até ao momento em que o Álvaro Cunhal disse que os camaradas soviéticos não queriam que se falasse em guerras coloniais. O meu documento era, exactamente, sobre a guerra colonial portuguesa. Era um documento bonito, que falava de guerra e flores, muitas flores, uma coisa ingénua... Eu estava a ouvir textos lindos, por exemplo o do Pablo Neruda, e de repente vi-me com um papel que me impingiram, um papel escrito sob indicação do Dr. Cunhal, que era a coisa mais desenxabida, mais «papel selado» que se possa imaginar. Disse: «eu não leio isto»; foi um pânico”. Dias depois António José Saraiva apresentou a sua carta de demissão do PCP. (Biografia de António José Saraiva, s.d.); (Gaião, 2012).

2 Embora durante os anos seguintes a tal impedimento conseguisse viver das suas publicações, viu-se mais tarde obrigado a emigrar primeiro para a França (tendo presenciado o Maio de 1968 em Paris) e depois para a Holanda (tendo lecionado cultura e literatura portuguesa na Universidade de Amsterdão como professor catedrático, até 1974).

António José Saraiva nos anos 70

Page 4: António José Saraiva e o 25 de Abril

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Como adiante se verá, através da transcrição do citado artigo, a crítica de

António José Saraiva não se dirigia ao 25 de Abril em si, senão à forma como foi

conduzido o “processo revolucionário”, rapidamente espezinhado por aqueles

que assumiram o poder. Reforce-se que se tratava do “primeiro intelectual de

esquerda a levantar com a maior frontalidade, sem quaisquer complexos, o

problema da trágica descolonização, que os seus responsáveis e colaboradores

insistem em apresentar como «exemplar»” (F., 1979). Para além disso, foi no

mínimo corajosa a sua denúncia à corrupção de um regime que não soube

condenar o anterior enquanto podia. Parafraseando as próprias palavras do

artigo, é preciso lê-lo com lágrimas de raiva e tirar dele as conclusões, por mais que nos

custe.

Page 5: António José Saraiva e o 25 de Abril

5

O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA3

Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de

dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias,

encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de

Abril.

Na perspectiva de então havia

dois problemas principais a resolver

com urgência. Eram eles a

descolonização e a liquidação do

antigo regime. Quanto à

descolonização havia trunfos para a

realizar em boa ordem e com a

vantagem para ambas as partes: o

exército português não fora batido em

campo de batalha; não havia ódio

generalizado das populações nativas

contra os colonos; os chefes dos

movimentos de guerrilha eram em

grande parte homens de cultura

portuguesa; havia uma doutrina, a

exposta no livro Portugal e o Futuro do

general Spínola (Spínola, 1974)4, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir

de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades

3 (Saraiva, O 25 de Abril e a História, 26 de Janeiro de 1979). Todas as notas de rodapé são da minha autoria.

4 O livro Portugal e o Futuro foi publicado no dia 22 de Fevereiro de 1974, pouco mais de um mês depois do General António de Spínola ter sido empossado como vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Apesar de não ter sido censurado, o livro era bastante polémico (um verdadeiro “manifesto da oposição”, nas palavras do então chefe do governo da ditadura, Marcelo Caetano), por afirmar que a solução para a guerra colonial, que durava há 15 anos, era política e não militar. No dia 14 de Março seguinte, Spínola foi demitido das suas funções, sobretudo perante a sua recusa em prestar vassalagem a Marcelo Caetano. Apenas dois dias depois, uma coluna militar do regimento das Caldas da Rainha avançou para Lisboa, numa tentativa falhada de derrubar o governo. Finalmente, no dia 25 de Abril, consumou-se o golpe

Capa da primeira edição de Portugal e o Futuro

Page 6: António José Saraiva e o 25 de Abril

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eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar,

uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada e honrosa.

Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma

debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem

nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado,

abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior

vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir5.

Comentário bastante crítico, publicado num jornal da época, sobre o enorme êxodo derivado do abandono das colónias

militar que derrotou o regime ditatorial. Simbolicamente, Marcelo Caetano entregou o poder nas mãos de Spínola, que passou a presidir a Junta de Salvação Nacional, sendo depois proclamado provisoriamente presidente da república, cargo que renunciou a 30 de Setembro do mesmo ano (Lusa, 2010).

5 Deve-se fazer aqui um parêntesis ao texto de António José Saraiva para acrescentar que a debandada dos militares levou ao êxodo de civis – os chamados “retornados” –, ainda que muitos deles tivessem nascido já em África. Veja-se, por exemplo o que referiu Silvestre Félix a este respeito (em entrevista a Rita Garcia, sobre o livro SOS Angola - Os Dias da ponte aérea): "Já antes, noutros escritos, tenho reconhecido quanto é importante para a minha geração beber e sentir o outro lado da descolonização. Eu, militar em 1975, também fui dos milhares que gritaram nas ruas de Lisboa: Nem mais um soldado p’ras Colónias!; nem mais um soldado p’ra Guerra!; nem mais um soldado p’ra Angola!, numa altura em que, do outro lado, lá nas Colónias, os civis portugueses, muitos nascidos já em África, ficaram sozinhos com a história contra eles e, a única alternativa, em desespero, foi conseguirem lugar nas centenas de voos com destino a Lisboa deixando tudo para trás na maior parte dos casos e viajando só com a roupa que tinham vestida” (Bravos "Retornados", Espoliados, Deslocados..., s.d.).

Page 7: António José Saraiva e o 25 de Abril

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Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e

inqualificável deve-se a duas causas:

Uma foi que o PCP, infiltrado no exército, não estava interessado num

acordo nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato que fizesse

cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de

resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias

portuguesas insere-se na estratégia africana da

URSS, como os acontecimentos subsequentes

vieram mostrar.

Outra causa foi a desintegração da

hierarquia militar a que a insurreição dos

capitães deu início e que o MFA explorou ao

máximo, quer por cálculo partidário, quer por

demagogia, para recrutar adeptos no interior das

Forças Armadas. Era natural que os capitães

quisessem voltar depressa para casa.

Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse

instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um

bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários». E

nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que

lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização num momento

em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército para que a

retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil

é a retirada; exige em grau elevadíssimo o moral da tropa. Neste caso a tropa foi

atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos

inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento

nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas

dos que desorganizaram conscientemente a cadeia de comando, aos que

Folha de rosto do Programa do MFA

Page 8: António José Saraiva e o 25 de Abril

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Apelo ao julgamento público dos criminosos fascistas, numa

manifestação nas ruas de Lisboa

Agente da PIDE-DGS, salvo do linchamento popular por militares

lançaram palavras de ordem que nas circunstâncias do momento eram

puramente criminosas.

Isto quanto à descolonização, que na realidade não houve. O outro

problema era da liquidação do regime

deposto.

Os políticos aceitaram e aplaudiram

a insurreição dos capitães, que vinha

derrubar um governo, que segundo eles,

era um pântano de corrupção e que se

mantinha graças ao terror policial:

impunha-se, portanto, fazer o seu

julgamento, determinar as

responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse

começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um

critério rigoroso e valores definidos.

Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o

julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as

acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou

eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi

responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu

Page 9: António José Saraiva e o 25 de Abril

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repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem

encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse

tido a consagração oficial. Em qualquer caso já hoje não é possível fazer a

condenação dos escândalos do antigo regime, porque outras talvez piores os

vieram desculpar.

Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante

longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS.

Notícia sobre a fuga da prisão de Alcoentre de 88 ex-agentes da PIDE-DGS, a 29 de Junho de 1975. A dita prisão tinha sido inaugurada nesse mesmo ano e era

considerada uma das prisões de maior segurança da Europa Ocidental.

Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha

desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de

atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos6. A maior parte dos

6 Ver a este respeito a “evolução” das leis que puniam a PIDE e seus colaboradores: Decreto Lei 171/74, de 25 de Abril; Lei 8/75, de 25 de Julho; Decreto Lei 349/76, de 13 de Maio; Lei 13/75, de 12 de Novembro; Lei 16/75, de 23 de Dezembro; Lei 18/75, de 26 de Dezembro;

Page 10: António José Saraiva e o 25 de Abril

julgados saiu em liberdade

responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da

suspeita de conluio com os

acusados, antes e depois do 25

de Abril.

Havia, também, um

malefício imputado ao antigo

regímen, que era o dos crimes

de guerra, cometidos nas

operações militares do

Ultramar8.

Sobre isto lançou

véu de esquecimento. As Forças

Armadas Portuguesas foram

alvo de suspeitas que ninguém

quis esclarecer e que, por isso,

se transformaram em

pensamentos recalcados.

Em resumo, não se fez a

liquidação do antigo regímen,

como não se fez a

Decreto Lei 349/76, de 13 de Maio; e finalmente, o artigo 309º do Decreto DD66/7Abril, que aprovava a Constituição da República Portuguesa.

7 De facto, segundo números de 1986, sabepelo Tribunal Militar a ex-membros da PIDE107 ficaram com os seus direitos políticos suspensos, 1014 um mês de prisão, 847 (ou seja, 31 % do total) do total), foram punidos com penas entre seis meses de prisão e dois anode prisão apenas foram condenados 43 réusacrescentar que, dado que a maioria das sentenças só foram redigidas 2 ou 3 anos após a prisão preventiva, uma vez descontado pouco mais tempo cumpriram

8 (Canelas & Salema, Relatório militar revela que tropas portuguesas participaram em decapitações, 2012); ("Acção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na Sanzala Mihinjo" [Relatório militar do 1.º Esquadrão de Dragões], 1961)vem, quem o fez e em que circunstâncias", 2012)

Primeira folha do relatório “Acção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na Sanzala Mihinjoonde se relatam decepações executadas por um

esquadrão de tropas portuguesas

julgados saiu em liberdade7. O público não chegou a saber, claramente; as

ades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da

o com os

acusados, antes e depois do 25

Havia, também, um

malefício imputado ao antigo

regímen, que era o dos crimes

de guerra, cometidos nas

perações militares do

Sobre isto lançou-se um

véu de esquecimento. As Forças

Portuguesas foram

alvo de suspeitas que ninguém

quis esclarecer e que, por isso,

se transformaram em

pensamentos recalcados.

Em resumo, não se fez a

liquidação do antigo regímen,

como não se fez a

Decreto Lei 349/76, de 13 de Maio; e finalmente, o artigo 309º do Decreto DD66/7Abril, que aprovava a Constituição da República Portuguesa.

De facto, segundo números de 1986, sabe-se que, entre as 2775 sentenças promulgadas membros da PIDE-DGS e informadores, 175 réus foram absolvidos,

aram com os seus direitos políticos suspensos, 1014 (ou seja, 37 % do total) (ou seja, 31 % do total) entre um a seis meses, e apenas 569 (ou seja, 20%

, foram punidos com penas entre seis meses de prisão e dois anos. Acima dos dois anos de prisão apenas foram condenados 43 réus, alguns deles fugidos no estrangeiro

dado que a maioria das sentenças só foram redigidas 2 ou 3 anos após a prisão descontado esse tempo, muitos dos réus saíram logo

pouco mais tempo cumpriram (Pimentel, 2011). (Canelas & Salema, Relatório militar revela que tropas portuguesas participaram em

("Acção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na Sanzala Mihinjo" [Relatório militar do 1.º Esquadrão de Dragões], 1961); (Canelas, "Este documento sei de onde vem, quem o fez e em que circunstâncias", 2012); (Salema, 2012).

10

cção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na Sanzala Mihinjo”, onde se relatam decepações executadas por um

esquadrão de tropas portuguesas

. O público não chegou a saber, claramente; as

ades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da

Decreto Lei 349/76, de 13 de Maio; e finalmente, o artigo 309º do Decreto DD66/76, de 10 de

se que, entre as 2775 sentenças promulgadas DGS e informadores, 175 réus foram absolvidos,

(ou seja, 37 % do total) apanharam entre um a seis meses, e apenas 569 (ou seja, 20%

s. Acima dos dois anos , alguns deles fugidos no estrangeiro. Deve-se ainda

dado que a maioria das sentenças só foram redigidas 2 ou 3 anos após a prisão logo em liberdade, ou

(Canelas & Salema, Relatório militar revela que tropas portuguesas participaram em ("Acção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na Sanzala Mihinjo"

(Canelas, "Este documento sei de onde

Page 11: António José Saraiva e o 25 de Abril

11

descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os homens não

substituíram os mesmos; a um regímen monopartidário substituiu-se um

regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado

e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de

retórica: «a longa noite fascista».

Mural da época fazendo referência ao regime ditatorial vivido em Portugal durante quase 50 anos

Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de

Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a

irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e,

com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em

Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior;

mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois, como

num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de

democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquios, a

substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares,

Page 12: António José Saraiva e o 25 de Abril

resultado da traição

do comando, no

campo das operações;

vieram os

contrabandistas e os

falsificadores de

moeda em lugares de

confiança política ou

administrativa; veio o

compadrio quase

declarado, nos

partidos e no

Governo; veio o

controlo da Imprensa

e da Radiotelevisão,

pelo Governo e pelos

partidos9, depois de

se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o

interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a

impossibilidade de esclarecer um critéri

oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar

um meio honesto de viver.

candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram

monte de esterco.

9 António José Saraiva refereelementos representantes dos partidos da coligação governamental no chamado “Conselho de Imprensa”, órgão supostamente indComunicação Social durante o período de vigência do Governo Provisório”, segundo o artigo 17º da Lei de Imprensa (Decretodeste diploma colaboraram, entre outros, Francisco Pinto Balsemão e Marcelo Rebelo de Sousa. Apesar do que dizia o decreto de lei, o certo é que, uma vez findado o Governo Provisório, continuou a existir o Conselho de ImprensaDecreto-Lei 816-A/76, de 10 de Novembro

Caricatura de José Vilhena, publicada na Gaiola Abertade 1 de Dezembro de 1975

se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o

interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a

impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os

oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como

um meio honesto de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos,

tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram

ntónio José Saraiva refere-se provavelmente à inclusão, entre outros, de selementos representantes dos partidos da coligação governamental no chamado “Conselho de Imprensa”, órgão supostamente independente que deveria funcionar “junto do Ministério da Comunicação Social durante o período de vigência do Governo Provisório”, segundo o artigo

ecreto-Lei n.° 85-C/75 de 26 de Fevereiro). Note-se que para a redação deste diploma colaboraram, entre outros, Francisco Pinto Balsemão e Marcelo Rebelo de Sousa. Apesar do que dizia o decreto de lei, o certo é que, uma vez findado o Governo Provisório, continuou a existir o Conselho de Imprensa, agora junto à Assembleia da República, conforme

A/76, de 10 de Novembro.

12

Gaiola Aberta

se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o

interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a

o que joeirasse os patriotas e os

se o endividamento como

Os cravos do 25 de Abril, que muitos,

tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um

se provavelmente à inclusão, entre outros, de seis elementos representantes dos partidos da coligação governamental no chamado “Conselho de

ependente que deveria funcionar “junto do Ministério da Comunicação Social durante o período de vigência do Governo Provisório”, segundo o artigo

se que para a redação deste diploma colaboraram, entre outros, Francisco Pinto Balsemão e Marcelo Rebelo de Sousa. Apesar do que dizia o decreto de lei, o certo é que, uma vez findado o Governo Provisório,

, agora junto à Assembleia da República, conforme

Page 13: António José Saraiva e o 25 de Abril

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas

rasgou-se um véu que encubra uma realidade insuportável.

nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não

demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades

presentes, que vão agravar

Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do

sacrifício necessário para as superar,

nação independente.

Caricatura profética, publicada apenas dois dias depois do 25 de Abril de 1974

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas

se um véu que encubra uma realidade insuportável.

escreveu-se na nossa

história uma página

ignominiosa de cobardia e

irresponsabilidade, página

que, se não for resgatada,

anula, por si só todo o

heroísmo e altura moral que

possa ter havido noutros

momentos da nossa

e que nos classifica como

um bando de rufias

indignos do nome de nação.

Está escrita e não pode ser

arrancada do livro.

É preciso lê

lágrimas de raiva e tirar dela

as conclusões, por mais que

nos custe. Começa por aí o

nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não

demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades

presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente.

Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do

sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar

desipotecados e dignos do

nome de povo livre e de

profética, publicada apenas dois dias depois do 25 de Abril de 1974

13

Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas

Para começar,

se na nossa

história uma página

ignominiosa de cobardia e

irresponsabilidade, página

o for resgatada,

anula, por si só todo o

heroísmo e altura moral que

possa ter havido noutros

momentos da nossa história

e que nos classifica como

um bando de rufias

indignos do nome de nação.

Está escrita e não pode ser

arrancada do livro.

É preciso lê-la com

lágrimas de raiva e tirar dela

as conclusões, por mais que

nos custe. Começa por aí o

nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não

demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades

las, moralmente.

Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do

então poderemos considerar-nos

desipotecados e dignos do

nome de povo livre e de

Page 14: António José Saraiva e o 25 de Abril

14

Conclusão

À imagem hipertrofiada que Portugal tinha de si mesmo durante o regime

ditatorial10 (são célebres certas máximas salazaristas como Orgulhosamente sós

ou Portugal não é um País pequeno, ou, como dizia Marcelo Caetano, Portugal era

um oásis de paz), fomentada por um nacionalismo cego, que escondia as

condições de miséria e o analfabetismo de uma parte importante da população

portuguesa, seguiu-se, com o 25 de Abril, uma distorcida contra-imagem de

Portugal, uma nova imagem aparentemente oposta à do Estado Novo, mas que

contudo, funcional e estruturalmente era

exactamente a mesma11.

António José Saraiva, ao ser um dos

primeiros intelectuais (indubitavelmente, o

primeiro de esquerdas) a denunciar

assertivamente tal realidade, merece um

lugar de destaque em qualquer análise

historiográfica póstuma que se debruce

sobre o 25 de Abril. Ainda assim, é incrível

como hoje, passados mais de 40 anos, se

continue a ver o 25 de Abril de 1974 como

se se tratasse duma revolução popular,

quando o que ocorreu não foi mais que um

golpe de estado executado por militares, ou

melhor dizendo, por capitães que estavam fartos da guerra colonial e que

queriam acabar com ela. Se é certo que essa foi a principal motivação, não é

menos certo que o problema não se resolveu, pois à descolonização (ou

abandono das colónias, melhor dizendo) seguiram-se décadas de guerras civis,

que só demonstram que António José Saraiva tinha razão. A segunda

motivação dos militares, e não menos importante, era a liquidação do regime

10 (Lourenço, 1992, p. 28): “Não vivíamos num país real, mas numa «Disneylandia» qualquer, sem escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas”.

11 (Lourenço, 1992, pp. 58-59).

Page 15: António José Saraiva e o 25 de Abril

15

político. É certo que, depois de algumas tropelias no chamado Verão Quente de

75, a democracia veio para ficar, mas a condenação do anterior regime ficou

aquém das expectativas. António José Saraiva refere, com toda a precisão, que

“o princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na

consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns

homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como

se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial”. Certeiras e proféticas

palavras estas, num país onde política e corrupção parecem hoje andar de braço

dado, e onde o povo não condena a corrupção senão que diz abertamente que se

lá estivesse, faria o mesmo.

O texto de António José Saraiva mantém assim, apesar dos seus quase 40 anos de idade, uma actualidade assustadora.

Page 16: António José Saraiva e o 25 de Abril

16

Bibliografia

Livros e artigos

25 de Abril - Base de Dados Históricos. (s.d.). Obtido de http://www.25abril.org/

"Acção Punitiva de Pacificação de 250930 ABR na Sanzala Mihinjo" [Relatório militar do 1.º Esquadrão de Dragões]. (27 de 4 de 1961). Obtido de http://static.publico.pt/docs/cultura/relat%C3%B3rioDRAG%C3%95ES%20.docx

Almeida, S. J. (20 de Abril de 2014). Os Últimos Filhos do Império. Obtido de Público: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/os-ultimos-filhos-do-imperio-1632525

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Bravos "Retornados", Espoliados, Deslocados... (s.d.). Obtido de http://retornadosdafrica.blogspot.pt/

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