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Interacções número 4. pp. 92-99 © do Autor 2003 Antropologia Cultural e Serviço Social: Antropologia Cultural e Serviço Social: Antropologia Cultural e Serviço Social: Antropologia Cultural e Serviço Social: Antropologia Cultural e Serviço Social: Novas Práticas de Pesquisa e Intervenção Novas Práticas de Pesquisa e Intervenção Novas Práticas de Pesquisa e Intervenção Novas Práticas de Pesquisa e Intervenção Novas Práticas de Pesquisa e Intervenção Mário Nobre João Mário Nobre João Mário Nobre João Mário Nobre João Mário Nobre João Uma das consequências importantes do fim dos impérios coloniais e da independência das populações coloniais, a seguir à guerra de 39/ 45, é o efeito designado por António Perotti (1997) por boomerang: ‘A imigração dos antigos países colonizados da África, da Ásia e das Caraíbas, sobretudo depois do final dos anos 50, não é senão o boomerang da colonização’. Este movimento intercultural significa, em concreto, o afluxo de populações não europeias para os centros urbanos dos países metropolitanos, situação com forte impacto nas sociedades europeias e americana. Neste contexto, tem lugar, no pós- guerra, uma mudança dos campos de pesquisa social e, em particu- lar, um novo interesse por parte dos antropólogos – para além do paradigma originário, na história da disciplina, ou o estudo das ‘soci- edades primitivas’ – pelos espaços e culturas europeias, rurais e ur- banas. ‘Regressados a casa’, os antropólogos vão, afinal, confrontar- se com o ‘outro’ nos seus próprios territórios, onde era possível demarcar microcosmos, relações face a face, solidariedades e lógi- cas diferentes daquelas que caracterizavam as sociedade industriais ocidentais. Em suma, impõe-se uma nova visão: a de que a ‘diferença’ se po- derá reencontrar na própria sociedade do observador e que o antropó- logo tinha sido objecto de uma dupla ilusão: o de um ‘outro’ total- mente ‘diferente’, distante e, por outro lado, um ‘mesmo’ cultural- mente homogéneo, em função das conveniências dos grupos domi-

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    Interaces nmero 4. pp. 92-99 do Autor 2003

    Antropologia Cultural e Servio Social:Antropologia Cultural e Servio Social:Antropologia Cultural e Servio Social:Antropologia Cultural e Servio Social:Antropologia Cultural e Servio Social:Novas Prticas de Pesquisa e IntervenoNovas Prticas de Pesquisa e IntervenoNovas Prticas de Pesquisa e IntervenoNovas Prticas de Pesquisa e IntervenoNovas Prticas de Pesquisa e Interveno

    Mrio Nobre JooMrio Nobre JooMrio Nobre JooMrio Nobre JooMrio Nobre Joo

    Uma das consequncias importantes do fim dos imprios coloniais eda independncia das populaes coloniais, a seguir guerra de 39/45, o efeito designado por Antnio Perotti (1997) por boomerang: Aimigrao dos antigos pases colonizados da frica, da sia e dasCarabas, sobretudo depois do final dos anos 50, no seno oboomerang da colonizao. Este movimento intercultural significa,em concreto, o afluxo de populaes no europeias para os centrosurbanos dos pases metropolitanos, situao com forte impacto nassociedades europeias e americana. Neste contexto, tem lugar, no ps-guerra, uma mudana dos campos de pesquisa social e, em particu-lar, um novo interesse por parte dos antroplogos para alm doparadigma originrio, na histria da disciplina, ou o estudo das soci-edades primitivas pelos espaos e culturas europeias, rurais e ur-banas. Regressados a casa, os antroplogos vo, afinal, confrontar-se com o outro nos seus prprios territrios, onde era possveldemarcar microcosmos, relaes face a face, solidariedades e lgi-cas diferentes daquelas que caracterizavam as sociedade industriaisocidentais.

    Em suma, impe-se uma nova viso: a de que a diferena se po-der reencontrar na prpria sociedade do observador e que o antrop-logo tinha sido objecto de uma dupla iluso: o de um outro total-mente diferente, distante e, por outro lado, um mesmo cultural-mente homogneo, em funo das convenincias dos grupos domi-

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    nantes e das ideologias nacionalistas. Por outras palavras, todas asmanifestaes culturais mais marginais cultura dos grupos domi-nantes da sociedade do antroplogo eram vistas como resduos oufolclore. A persuaso de Boaventura S. Santos (2002) fala acerca daspermanncias e resistncias mudana e das redes de entreajuda,baseadas em laos de parentesco ou de vizinhana, atravs das quaispequenos grupos sociais trocam bens e servios numa base no mer-cantil, antes solidria ou de reciprocidade, impe, porm, algumasinterrogaes. Assim, estaremos, verdadeiramente, perante frmulasarcaicas ou de insistncia tradicional ou perante estratgias culturaisonde imperam outras lgicas para alm da oposio entre tradio emodernidade e que vm merecendo a ateno dos socilogos e dosantroplogos, reinterpretadas luz do conhecimento acumulado peloestudo da cultura do outro? Parece-me que a resposta est na segun-da parte da proposio para a qual o antroplogo se encontra especi-almente sensibilizado pela sua dupla experincia cientfica, na ex-presso de Balandier (1974):

    [os textos antropolgicos] manifestam o reencontro e a conjugaode uma dupla experincia cientfica: a do antroplogo que, desde1946 e principalmente em frica, interroga sociedades e culturasque se dizem na diferena, a do socilogo que apreende a sua pr-pria sociedade, pelo que ela revela de si prpria nos seus problemasmais actuais.

    Tambm Claude Lvi-Strauss (1958) teve em ateno os represen-tantes de culturas perifricas que vieram habitar nos espaos da so-ciedade urbana, moderna e industrial. Lvi-Strauss v a uma oportu-nidade de troca, j que esses

    representantes das culturas perifricas tm muito que dar aoetngrafo: linguagens, tradies orais, crenas, concepes do mun-do, atitudes diante dos seres e das coisas. Mas eles confrontam-setambm muitas vezes com problemas reais e angustiantes: isola-mento, desorientao, desemprego, incompreenso do meio do qualeles foram provisria ou definitivamente afastados, muitas vezes contraa sua vontade ou pelo menos na ignorncia do que os esperava [...] eno que diz respeito ao antroplogo: ele poder tambm ser chamadoa contribuir (ao lado do especialista de outras disciplinas) para oestudo de fenmenos interiores, desta vez na sua prpria sociedademas que se manifestam com o mesmo carcter de distanciao.

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    Noutra perspectiva, agora focalizada na sociedade francesa maiscontempornea, Gerard Althabe (1988) define-se assim o problema:

    Vou-vos falar hoje de um domnio bem preciso e limitado: o investi-mento etnolgico no presente de uma sociedade como actual-mente a sociedade francesa, uma Etnologia que escolhe os seusterrenos nos lugares centrais da sociedade (a cidade, a empresa, aadministrao) e de modo algum as suas margens (p.89).

    O autor situa o interesse pelos novos terrenos, no caso da antro-pologia francesa, por volta dos anos 80, considerando que o mpetodesse interesse procura de pesquisa etnogrfica no campo do urba-nismo nas periferias das grandes cidades, no sentido de aproveitar aspotencialidades socioculturais dessas populaes. Os termos carac-tersticos desta nova linguagem analtica so quotidiano, partici-pao dos actores sociais, o homem como sujeito, e abandonam-se as explicaes totalizantes que caracterizavam as prticas anterio-res. Mas Althabe discute, porm, a dificuldade dos antroplogos emresponder a estas novas exigncias:

    como explicar esta ausncia de estratgia da parte do etnlogos emtirar proveito desta oportunidade? E mais, como explicar a dificulda-de que tm os etnlogos franceses em se confrontarem com o pre-sente da sua prpria sociedade? (p.90).

    Segundo este autor, alguns campos de estudo que conviriam novaantropologia seriam o estudo dos processos de criao de identidadescolectivas; os estudos sobre minorias estrangeiras; os bandos de delin-quentes das periferias urbanas e outros excludos. Ainda no que dizrespeito antropologia urbana, Yves Delaporte (1986) afirma que a apli-cao do mtodo etnogrfico s cidades vai permitir ultrapassar oslimites do inqurito sociolgico. Admite, no entanto, a especificidadedo espao urbano e a necessidade de adaptar os mtodos a esses no-vos contextos, dada a necessidade em, nomeadamente, definir e limi-tar o objecto, visto que o espao de observao se coloca de mododiferente no quadro da antropologia das sociedades tradicionais.

    O Reino Unido um dos pases europeus que mais tem investidoem polticas viradas para a integrao dos seus imigrantes, manifes-tado na produo de obras directamente relacionadas com o serviosocial ou trabalho social ou orientados para a produo de quadrostericos sobre grupos tnicos. Para isso, contribuiu tambm a impor-

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    tante British Association of Social Workers interessada em promovera discusso neste domnio e a qualidade da prtica dos seus profissi-onais. Um campo importante a questo tnica e racial e as relaesentre etnicidade e doena mental, particularmente associada s ques-tes da ruptura familiar, marginalizao, a vitimao das crianas e oproblema da terceira idade em minorias tnicas, questes fundamen-tais de interseco, prtica e terica, entre a antropologia cultural e oservio social. J. Owusu-Bempah (1999) refere que:

    A instituio do servio social [social work] um microcosmo daestrutura social. Assim, compreendendo a influncia da raa noservio social devia ajudar a compreender a sua dinmica na socie-dade mais alargada ... Este artigo discute alguns dos modos pelosquais a raa continua a influenciar o trabalho social (p.50).

    Neste campo e explorando a via etnopsiquitrica, Tobie NathanProfessor de Psicologia Clnica e Patolgica na Universidade de Paris-VIII, Director do Centro Georges Devereux, vocacionado para a ajudapsicolgica s familias migrantes. No prefcio que escreveu para olivro do psiclogo clnico Claude Mesmin (2001), Nathan diz que

    o problema mais agudo que dever tratar a Frana no futuro prxi-mo a integrao das suas populaes migrantes, necessariamentemais e mais numerosas e, cada vez mais, culturalmente longnquas[...]. Tratar do bem estar das periferias das cidades , talvez, comearpor formar melhor os psiclogos escolares, no na psicanlise daselites de alto escalo da stima circunscrio de Paris, mas no funci-onamento psquico real das populaes imigradas (p.8).

    No caso concreto tratado no livro de Mesmin as dificuldadessentidas pelos pais e filhos de imigrantes face ao sistema escolar os trabalhadores sociais participam no dispositivo etnopsiquitricodestinado a restabelecer os cdigos culturais que permitiro mediaro dilogo entre a cultura de origem e a cultura do pas de acolhimen-to. Alm destas situaes, outras apelam tambm para a colaboraointerdisciplinar com consequncias na interveno social. FranoiseCouchard (1999) escreve o seguinte:

    o psicanalista deve, como o antroplogo e como o socilogo, ter emconta fenmenos da sociedade e da nova doena de civilizao[malaise dans la civilisation ]. Esta doena traduz-se por crises e

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    rupturas no grupo familiar que se desfaz, com famlias divididas edepois recompostas, por um pr em causa de todas as instncias deautoridade et superegoicas, por uma deliquescncia dos valores epor uma perda dos limites entre real e fantasma, entre os sexos e asgeraes. (p.89).

    E poderamos acrescentar a este cenrio a questo dos grupos t-nicos e das novas etnicidades na sociedade contempornea. Natural-mente que os trabalhadores sociais se confrontam, eles tambm, comesta malaise dans la civilisation e encontram, cada vez mais, impli-cados numa prtica de interveno e de pesquisa que exige novasestratgias e exigncias em termos de discursos, prticas e aspira-es multiculturalistas que, na verdade, aparecem triunfantes, quan-do se pensava, ainda h algum tempo, que a globalizao tornariahistorica e culturalmente obsoletas as formas de particularismo cul-tural, quando, ao contrrio, da disperso e hibridao cultural quese trata. O que est em causa, em termos de pesquisa e possibilida-des epistemolgicas, so novas condies para o estudointerdisciplinar da diversidade cultural. A psicologia e apsicossociologia foram referenciadas mais acima, precisamente namedida em que se tratando de disciplinas que implicam contactosculturais e aculturao aproximam-se, intrinsecamente, do objectoantropolgico, pelas consequncias sobre a psique humana das expe-rincias interculturais. evidente tambm o interesse destas ques-tes na formao terica e na prtica dos trabalhadores sociais para ainterveno em espaos sociais caracterizados pela diversidade cul-tural, como o caso das migraes e grupos tnicos transnacionais nasociedade europeia contempornea, inspirando, igualmente, novasprticas de pesquisa no servio social.

    Portugal est, neste momento, a viver uma nova experincia comopas que recebe imigrantes e no mais apenas como uma tpica soci-edade da Europa do Sul com uma estrutural tradio emigratria..Pela primeira vez, no nosso pas, tem lugar uma experincia em ex-panso, na qual populaes, rurais e urbanas, se confrontam comuma diversidade de pessoas e culturas soleira da porta diferentesdos tradicionais ciganos ou espanhis. Estas novas condies pro-duzem mudanas em termos polticos, econmicos, sociais e educa-cionais, da mesma forma que tornam imperativa a preparao teri-co e prtica dos trabalhadores sociais e novos projectos formativos ede interveno por parte das escolas de servio social.

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    Os processos acelerados de mudana que as sociedades contem-porneas atravessam em termos tecnolgicos inscritas em novas re-laes sociais e at pessoais nomeadamente, as consequncias daInternet, da cultura electrnica global e sobre os fluxos migratrios ena gesto do espao urbano crescentemente multi-tnico etransnacional so questes centrais para a antropologia culturalcontempornea, em colaborao com socilogos, psiclogos e as-sistentes sociais, no sentido de uma nova prtica analtica e novascondies para, a partir da pesquisa, influenciar a transformao de-mocrtica da sociedade. Franois Laplantine (2001) muito expressi-vo a respeito destas relaes entre pesquisa, teoria e interveno:

    a pesquisa antropolgica, que nada tem de uma actividade de luxo,sem nunca se substituir aos projectos e s decises dos prpriosactores sociais tem hoje por vocao principal propor no solues,mas instrumentos de investigao que podero ser utilizados, no-meadamente, para reagir ao choque da aculturao, isto , ao riscode um desenvolvimento mal concertado, conduzindo violncianegadora das particularidades econmicas, sociais, culturais de umpovo. (pp.25-6).

    REFERNCIAS REFERNCIAS REFERNCIAS REFERNCIAS REFERNCIAS

    Althabe, Gerard1988 Vers une Ethnologie du Prsent. Revue de lInstitut

    de lULB, 3. p.89-98.Balandier, George1974 Anthropo-logiques. Paris. PUF.Couchard, Franoise1999 La Psychologie Clinique Interculuturelle. Paris: Dunod.Delaporte, Yves1986 LObject et la Mthode: Quelques Reflexions Autour

    dune Enqute dthnologie Urbaine. LHomme, 97-8.pp.155-169.

    Laplantine, Franois2001 LAnthropologie. Paris: Payot & Rivages.Lvi-Strauss, Claude1958 Anthropologie Structurale. Paris: Plon.

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    Mesmin, Claude2001 La Prise en Charge: Ethnoclinique de lEnfant de

    Migrants. Paris: Dunod.Owusu-Bempah, J.1999 Race. In The Blackwell Companion to Social Work.

    Editado por David Martin. Oxford: Blackwell. pp.50-63.Perotti, Antonio1997 Apologia do Intercultural. Lisboa: Edio do

    Secretariado Coordenador dos Programas de EducaoMulticultural.

    Santos, Boaventura Sousa2002 O Estado da Nao. Revista Viso, 470. pp.6-9.

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    SumrioSumrioSumrioSumrioSumrio

    A migrao de populaes das regies colo-nizadas pelas potncias ocidentais em direc-o aos antigos pases metropolitanos cons-titui um facto fundamental da cultura e dasociedade transnacional contempornea. Ocrescimento da diversidade tnica emulticultural dos pases ocidentais , nestesentido, a fonte, simultaneamente, de umanova comunidade e de novos problemas so-ciais. A antropologia cultural e o servio so-cial encontram, neste cenrio actual, impor-tantes pontos de convergncia no trabalhodestas disciplinas, sobretudo como novasmetodologias de pesquisa e anlise conver-gem com novas responsabilidades de inter-veno transformativa na comunidade.

    Cultural Anthropology and Social Work:Cultural Anthropology and Social Work:Cultural Anthropology and Social Work:Cultural Anthropology and Social Work:Cultural Anthropology and Social Work:New Practices of Research and InterventionNew Practices of Research and InterventionNew Practices of Research and InterventionNew Practices of Research and InterventionNew Practices of Research and Intervention

    SummarySummarySummarySummarySummary

    The migration of people from regions colo-nized by the western powers towards theformer metropolitan countries constitutes afundamental fact of culture and transnationalcontemporary society. The growth of the eth-nic and multicultural diversity within the west-ern countries is, in that sense, a source ofboth a new community and new social prob-lems. Cultural anthropology and social workfind in this actual scenario important pointsof convergence for the work of these disci-plines, especially as new methodologies ofresearch and analysis associate with new re-sponsibilities of transformative interventionin the community.