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ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL DOIS TEMPO BRASILEIRO Rio de janeiro, 1993

ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL · nas regiões do mundo onde as condiçõesnaturais ... ficado indiferentes diante dele.!Na ... Dedicando-se .aos problemas da industriali~ção dos países

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ANTROPOLOGIA

ESTRUTURAL

D O I S

TEMPO BRASILEIRO

Rio de janeiro, 1993

Coleção dirigida por EDUARDO PORTELLA,Professor da Universidade Federal do Rio de Janeil'O

Tradução e coordenação deMARIA DO CARMO PANDOLFO,

com a pariicipação deSONIA WOLOSKER, TANIA JATOBÁ,. CELINA MARIAMOREIRA DE MELLo, LUCIA PESSÕA DA SILVEIRA,PAULO AMÉLIO NASCIMENTO SILVA, EURíDICEFIGUEIREDO LETHEBRIDGE E CHAIM SAMUEL KATZ

Vos quoque pectoribus nostris haeretis, amíci,dícere quOl! eupío nomíne qunque ,uo.

Traduzido do original francêsAnthropologie Structurale Deux,Paris, Líbrairle Plon, 1973

Direitos reservados àsEDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA.

Rua Gago Coutinho, 61 - ZC-01 - TeI.: 205-594922.221 - Rio de Janeiro - RJ - BRASIL

manas irão se confundir com as ciências exatas e naturais, da quai8deixarão de se distinguir.

Convém, portanto, que a nova relação dê à palavra "tendência" seusentido mais rico e mais pleno; que se esforce em ser uma meditaçãoousada sobre o que ainda não existe, mais do que um balanço falsificadopelo embaraço de expor a insuficiência dos resultados conseguidos; que,ao preço de um esforço construtivo onde a imaginação terá seu papel,procure adivinhar as gestações latentes, esboçar os lineamentos de evo-luções indecisas; que se dedique menos a descrever o estado presente denossas ciências que a pressentir os caminhos onde poderão - talvezgraças a ela - engajar-se as ciências de amanhã.

AS DESCONTINUIDADES CULTURAIS E ODESENVOLVIMENTO ECONOMICO *

o PROBLEMADAS DESCONTINUIDADESCULTURAIS DIANTE DAETNOGRAFIA E DA mSTORIA

-)Foi no século XVI, com a desco1:lertado Novo Mundo, que o pro-blema das descontinuidades culturais se colocou à consciência ocidental,de modo súbito e dramático. Mas 'nesta época, ele se reduz a uma al-ternativa bem simples: ou os indígenas americanos são homens, e deveminteirar-se, porb~m ou por mal,' à ,civilização cristã, ou a humanidadelhes pode ser contestaãa, e dependem então da condição animal. Serápreciso, portanto, esperar o século xvm, para que o problema se colo-que em termos verdadeiramente históricos e sociológicos.Deve-se notarainda que, qualqu~r que seja a solução proposta, todos os autores estãode acordo sobre as· premissas, isto é, sobre a possibilidade de compararas sociedades que chamaríamos hoje primitivas com a civilização 00-

• Texto de uma comunicação à Table ronde sur les prémisses saciale.de l'industrialis!ltion, organizada pelo Conselho Internacional dasCiências Sociais. em setembro de 1961. Information sur les scienceasociales, voI. II-2, junho 1963. Mouton, Haia-Paris, p. '7-15. Republi-cada com a autorização do Conselho Internacional das Ciências So-ciais.

dental. Que L'i primeiras se situem, conforme acreditava Condorcet, noponto de partida de uma evolução progressiva e ascendente, ou, comoDtderot se comprazeu algumas vezes em sugerir, que elas constituamum apogeu a partir do qual a humanidade só conheceu uma decadênciacontínua; ou ainda, segundo o pensamento mais moderno e matizadode Rousseau, que seja preciso distinguir entre um estado de natureza,cuja noção é puramente teórica, e uma condição da humanidade aindahoje ilustrada pel05 povos selvagens, que representaria uma espécie deequilíbrio "optimum" entre o homem e a natureza: nenhuma destasconcepções põe em dúvida que as descontinuidades culturais subsistamcomo os testemunhos aparentes e os vestígios de um desenvolvimentosolidário.

Será sobretudo Auguste Cümte quem denunciará a fraqueza destavisão unitária do desenvolvimento da humanidade, concebida quer comouma progressão, quer como uma regressão, ou ainda como uma misturacomplexa das duas fórmulas. De fato, na 52~ lição do Cours de philoso-phie positive, Comte· critica 05 perigos de uma teoria unitária do desen-volvimento social e cultural. Ele diz que é preciso estudar o desenvolvi-mento como luna propriedade específica da civ1lizaçãoocidental, aindaque seja para adaptar posteriormente as conclusões obtidas à transfor-mação de sociedades diferentes. O marxismo confirma esta espec1f1cida-de das evoluções particulares: "Quem quisesse reduzir a Economia POU-tica da Terra do Fogo e a da Inglaterra atual às mesmas leis, só evi-denciaria os lugares comuns mais banais" <Engels,Anti-Dühring), COn-cordando com o Positivismo a este respeito, o Marxismo vê no desen-volvimento uma propriedade intrínseca da civilização ocidental: "As ve-lhas comunidades primitivas podem subsistir durante milênios, antesque o comércio exterior produza em seu seio diferenças de fortuna queacarretem sua dissolução". <Engels, Anti-Dühring),\ ~í Mas o pensamento marxista inova sobre dois pontos, de capital im-portância para o problema que estudamos, Em primeiro lugar, credita, à.svelhas civilizações primitivas, descobertas sem as quais seria inconcebí-vel o desen~olvimento da civilização ocidental, e em relação ao qual aamplitude desse desenvolvimento, tal como poderia ser encarado no sé-culo XIX, se reduz a modestas proporções:

A Antigüidade mais remota... tem como ponto de partida ohomem se distinguindo do reino animal e, como conteódo, a vi-tória sobre dificuldades tais que jamais se apresentarão simila-res aos homens associados do futuro. <EngeJs,AnU-Dfl1I.ring).

Em .segundo lugar" e principalmente, Marx inverteu a perspectlftpela qual .se consideram geralmente os processos de industriali-zação e de de.senvolv1mento.Para ele, a industrialização não é um fe-nômeno autônomo e que se procura introduzir, de fora, em civilizaçõesque permaneceram na pa;ss1v1dade.Ao contrário, a industrialização éuma função, e um rt!$ultado indireto, da condição das sociedades ditas"primitivas" ou, mais exatamente, da relação histórica entre elas e oOCidente..,--, O problema fundamental do Marxismo é saber porque e c.mo o tra-balho produz uma mais-valia. Ainda nia foi suficientemente notado quea resposta de Marx a este problema tem um caráter etnográfico. A hu-manidade primitiva era bastante reduzida para se estabelecer apenasnas regiões do mundo onde as condições naturais assegurassem um ba-lanço positivo ao seu trabalho. Por outro lado, é uma propriedade in-trínseca da cultura - no sentido que os etnólogos dão a este termo -estabelecer uma relação tal entre mais-valia e trabalhO que a primeirase acrescente sempre ao segundo. Por estas duas razões, uma de ordemlógica, outra de ordem histórica, podemos postular que, de saída, todotrabalho produz necessariamente mais-valia. A exploração do homempeló homem vem mais tarde, e aparece concretamente na história, soba forma de uma exploração do coloniZadopelo colonizador, ou seja, pelaapropriaçio, em beneficio do último, do excedente de mais-valia, de que,já vimos o primitivo dispõe por direito:

Suponhamos que sejam necessárias doze horas de trabalho parasatisfazer todas as necessidades de um desses insulares; Vê-seque o primeiro favor que a natureza lhe concede é muito 1uer.Para que o empregue produtivamente para si próprio, é prec1aOtodo um encadeamento de incidências históricas; para que ogaste em sobre-trabalho para outro, deve-se constrangê-Io pelaforça <Marx,O Capital, n).

.- > Resulta disto, primeiramente, que a colonização é histórica e log1ca-mente anterior ao capitalismo, e, em segUida, que o regime capitaUstaconsiste em tratar os povos do OCidente como o OCidente o fizera pre-cedentemente com as populações indígenas. Para Marx, a relação en-tre o capitalismo e o proletário é, portanto, apenas um caso particular /da relaçio entre colonIzador e colonizado. Deste ponto de vista, quasei--se poderia sustentar que, no pensamento marxista, a ciência econÔmicae a SOciologianasceJP.como dependentes da Etnografia. 1: em O Capital

(livro r, t. m, capo 31) que se prop6e a tese, com perfeita clareza: aorigem do regime capitalista remonta à descoberta das regi6es auriferas

e W'gentUerasda América; depois à. redução dos indígenas à. escravidão;em seguida, à conquista e pilhagem das índias orientais; enfim. à. traDB-formação da Africa numa "espécie de reserva comercial para a caça aospele-negras". "Eis os procedimentos idUicos de acumulação primitivaque marcam a era capitalista em sua aurora". Logo depois, estoura aguerra mercantil. "Era preciso a escravidão sem frase no NOVoMundo,como pedestal para a escravidão dissimulada dos assalariados da Eu-ropa".

Se se aceitam ou rejeitam as posiçõesmarxistas, essas consideraçõessão importantes, pois chamam a atenção sobre dois aspectos do' proble:'ma do desenvolvímento, que os pensadores contemporâneos tendem de-masiado a negligenciar.

,Em primeiro lugar, as sociedades qUe denominamos atualmente de"subdesenvolvidas" não o são por sua própria causa, e erraríamos emconcebê-Ias como exteriores ao desenvolvimentoocidental ou como tendoficado indiferentes diante dele. !Na verdade, são essas sociedades que,por sua destruição direta ou indireta entre os séculos XVI e XIX, tor-naram possível o desenvolvimento do mundo ocldental.jEntre elas e eleexiste uma relação de complementaridade. O próprio desenvolvimentoe suas exigências ávidas é que as fizeram tais como este desenvolvi-mento as descobre hoje em dia. Não se trata, portanto, de uma tomadade contato entre dois processos que se teriam dado tsoladamente. Arelação de estranheza entre as sociedades ditas SUbdesenvolvidase aclvilização mecA.nicaconsiste, sobretudo, no fato de que, nelas, esta ci-1UizaçãomecAnica reencontra seu próprio produto, ou, mais precisa-mente, a contrapartída das destruições que cometeu dentro delas paraInstaurar sua própria realidade. .

Em segundo lugar, a relação não pode ser concebida em abstrato.Não é possível negligenciar que ela se manifestou de modo concreto, himuitos séculos, pela violência, opressão e exterminação. Também desteponto de vista, o problema do desenvolvimento não é matéria de puraespeculação.A anilise que se pode fazer a este respeito, as soluções quese podem propor, devem necessariamente levar em consideração condi-ções históricas irreversiveis, e um clima moral, que formam o que sepoderia denominar a "carga dinâmica" da situação colonial.

Por conseguinte, jamais o desenvolvimento pode ser consideradocomo o fazia Mallnowskí: "resultado de um impacto de uma culturamais elevada e mais ativa sobre uma cultura mais simples e mais pas-siva" m. Malinowski, The D1Inami~of Culture ChangeLA "simpllcida-

de" e a "passividade" não são propriedades intrínsecas das culturas emquestão, mas o resultado da. ação do desenvolvimento, em seus p:i-mórdlos. sobre elas: uma situação criada pela brutalidade, rapina eviolência, sem as quais as condições históricas deste mesmo desenvolvi-mento não teriam sido reunidas (se o tivessem sido de maneira dife-rente, a situação de contato seria completamente distinta, e tal que nãoestamos aptos a imaginá-Ia). Não há. não pode havl:'r um "ponto zeroda mudança" (L. Mair) , a não ser que se aceite fixá-lo no único mo-mento em que realmente existiu. isto é. em 1492. nR véspera da deco-berta do Novo Mundo. Pela destruição, inicialmente deste próprio NovoMundo. e em seguida de muitos outros, reuniam-se as condições do de-senvolvimento em beneficio do Ocidente; estas permitiriam a produçãodeste desenvolvimento, que voltaria mais tarde a se impor, de fora,a sociedades previamente saqueadas para que o próprio desenvolvimentopudesse nascer e crescer sobre suas ruínas.

.- Jo que é verdadeiro no plano da ~ande história, o é também no dapequena. Dedicando-se .aos problemas da industriali~ção dos paísessubdesenvolvidos,a civilização ocidental encontra neles primeiramentea imagem deformada, e como que fixada pelos séculos, das destruiçõesque lhe foi preciso inicialmente fazer para existir. E do mesmo modo,se bem que numa escala mais reduzida, errariamos em pensar que atomada de contato entre a civilização mecAnicae essas populações, quelhe tinham permanecido completamente estranhas, se dê no abstrato.De fato, e muito antes que uma tomada de contato confessada se pro-duzisse, fizeram-se sentir seus efeitos antecipados, desde muitos anOlatras, e isto de duas maneiras: ora sob forma de uma segunda destrui-ção à distAncia, ora sob forma de uma "aspiração", equivalente tambéma uma destruição.

L. <.. 1Já se evocaram suficientemente as devastações das doenças intro-d~das pelo homem branco entre populações que ainda não tinhamdesenvolvido nenhuma imunidade contra elas, para que seja necessá-rio lembrar o exterminio de sociedades inteiras sob o efeito de doenças,o que começou no século XVI, e cujos efeitOs lamentâveis ainda veri-ficamos atualmente. Do mesmo modo como o cavalo se espalhou pelasPlanicies da América do Norte muito mais rapidamente do que a civi-lização ocidental conseguiu ai penetrar, transtornando as culturas indi-genas de certo modo por antecipação, os germes patogênicos viajamcom uma rapidez surpreendente: mesmo nas regiões mais recuadas doplaneta, onde se poderia supor que subsistissem sociedades intactas.

seus efeitos devastadores se fazem sentir vários anos e às vezes dezenasde anos antes que o contato propriamente dito se tenha dado.

Pode-se dizer o mesmo das matérias primas e das técnicas. Numartigo, "A revolução do machado" (Diogene, n9 25, 1959), Alfred Métrauxexpôs como a adoção de machados de ferro, mesmo facUltando e slm-pllflcando as atividades técnicas e econOmicas,pode acarretar uma ver-dadeira destruição das civ1l1zaçõesindigenas. OS Yir Yoront do norte daAustrália, estudados por Lauriston Sh&rp, perderam, com a adoção dosutens1110sde metal, o conjunto das instituições econOm1cas,.soc1a1sereligiosas que estavam ligadas à posse, utilização e transmissão doa ma-chados de pedra. A adoção de uma ferramenta mais aperfeiçoada acarre-tou o desmoronamento da organização soc1al e a decomposição do grupo.Ora, sob a forma de. utens1110susados ou danificados, até mesmo de su-catas indescritiveis, o ferro viaja mais rápido e mais longe que os ho-mens, através das guerras, dos casamentos e das trocas comerciais.

Essas destruições à distância podem tomar também a forma de umaverdadeira "aspiração" de grupos indígenas, feita por uma civ1l1zaÇãOque até então apenas os tocara de leve. Stanner lembrou recentementeuma antiga desventura, que outros etn610gos também experimentaram,na Austrália, na América do Sui e em outros lugares. Alertado, porvolta de 1930, por relatórios oficiais e oficiosos que indicavam a exis-tência de tribos ainda completamente selvagens numa região remotada Austrália, descobriu no local que estabelecimentos precários de euro-peus ou de chineses - que se sucederam na região há uns cinqüentaanos - tinham conseguido esvaziar uma população indigena, tomadaerrante em busca de utens010s metálicos, tabaco, chá, açúcar e roupas.06 pretensos "selvagens" eram apenas as últimas populações do inte-rior, aspiradas, assim como o foram suas congêneres, para a franja pio-neira, e já social e moralmente decompostas. Mas, nos territórios inex-pIorados, já não restava ninguém (W. S. H. Stanner, "Durmugam, aNangiomeri", tn Joseph B. Casagrande, ed. In the Company 01 Man,p. 7.-75>.

Após ter defin1do os quadros históricos concretos onde se manifes-tam as descontinuidades culturais, podemos tentar, com riscos menores.c:hJ,tinguiras causas profundas da resistência ao desenvolvimento.

Mas, in1cialmente, convém realçar os casos, aliás, excepcionais, emque a cultura indigena consegue se refUgiar parcialmente numa espécfede "nicho" cultural que lhe reserva a civ1l1zaçãoindustrial.

O exemplo mais célebre é o dos Iroqueses do estado de Nova Iorque,que fornecem, já há mais de meio século, as melhores equipes espeda-llzadas na montagem de estruturas metálicas: pontes, arranha-céus etc.Esta vocação se explica, de um lado, por um treinamento tradicionalem ultrapassar torrentes e precipicios; e porque estes indios encontra-ram, talvez, numa atividade cheia de riscos, geradora de prestígio ebastante bem remunerada - e também intermitente, implicando umcerto nomadismo - um substituto de suas velhas expedições guerreiras.

Menos durável, mas não menos surpreendente, foi o extraordináriofiorescimento das artes plásticas e gráficas na costa noroeste do Cana-dá e do Alasca, após o estabelecimento das feitorias para o comércio depeles. O aumento dos lazeres, combinando-se com a introdução de uten-s11106de ferro e um enriquecimento propicio à especulação, exacerbou.durante aproximadamente cinqüenta anos, uma orientação latente paraas lutas de prestigio, onde a posse, a exibição e a destruição de objetospreciosos representavam um papel de primeiro plano. ~ verdade que,nestes casos, a derrocada demográfica, conseqüência da introdução dedoenças européias, agia momentaneamente no mesmo sentido, já quenumerosos titulos nobiliários, na falta de herdeiros naturais, tomavam..se um objeto de cobiça e um meio de ascensão social para uma classede "novos ricos". Mas, com estes dois exemplos e alguns outros que po-deriamos ter acrescentado, s6 fazemos evocar curiosidades.

-":7 De um modo geral, as causas profundas da resistência ao desenvoI.V1Ínentoparecem ser três. PIimeiramente, uma tendência da maioria dassociedades ditas primitivas em preferir a unidade à mudança; em se-gundo lugar, um profundo respeito pelas forças naturais; enAm., a re-pugnância por engajar-se num devir histórico.

l'lvocou-se freqüentemente o caráter não competitivo de certas so-ciedades que denominamos primitivas, para explicar sua resistência aodesenvolvimento e à industrialização. SObre este ponto, é preciso fazeruma ressalva: a passividade e a indiferença, que chocaram os observa-dores, podem ser uma conseqüência do traumatismo consecutivo ao

~tato, e nio uma condição inicialmente dada. Contudo, deve-se insis-tir sobre o fato de que esta ausência de espírito competitivo, muito fre-qUentemente, não resulta de um estado induzido de fora OU de um con-dicionamento passivo anterior, porém muito. mais de um progresso~deliberado, correspondente a uma certa concepção das relações entre ohomem e o mundo, e dos homens entre si. Até que ponto atitudes, tiodiferentes das do mundo ocidental, podem estar profundamente enrai-.adas, vê-se, de maneira bastante espirituosa, numa observaçio feitarecentemente na Nova Guiné, entre os GahUku-Kama. Esses inc:Ugenaaaprenderam a jogar futebol com os missionários, mas ao invés de pro-curar a vitória de um dos times, multipllcam o número de partidas deIPCld.oque derrotas e vitórias se equillbrem. O jogo não termina quando..J;1á um !Vencedor,como entre nós, mas quando se assegura que não hiperdedor (R,ead, p. 429).

Em outras sociedades far-se-ão observações inversas, mas igUalmen-te incompatíveis com um verdadeiro espírito de competição: é assim.quando se dão jogos tradicionais entre dois times que representam 08

vivos e os mortos, e que devem terminar com a vitória dos primeiros.

Aliás, são esses mesmos Gahuku-Kama que, como acontece fre-qUentemente na Nova Guiné, repartem as responsabilldads pollticas en-tre o chefl! e o orador; a este último incumbe manifestar aberta eAgressivamp.oteos conflltos, enquanto o chefe intervém para apaziguar,pacificar e indicar soluções medianaS. Deste ponto de vista, é bastanteáUrpreendente que, na quase totalldade das sociedades ditas "primitivas",a idéia de um voto decidido pela maioria seja inconcebível, preferindo-se a coesAo social e o entendimento amigável no grupo ao invés dequalquermovaçio. ConseqUentemente, só se tomam aí decis6es unAni-mea. Algumas vezes mesmo, e isto se verlflca em muitas regi6es domundo, precedem-se as dellberaç6es por combates simulados, no decursodos quais se resolvem as velhas rixas. O voto SÓ se dá depois que ° grupo,restaurado e renovado, realizou interiormente as condições de uma una-nimidado indispensável.

A concepçio que mUitas sociedades primitivas têm da relação entrenatureza e cultura pode também expllcar certas resistências ao desen-volvimento. COm efeito, este impllca numa prioridade incondieional re-

conhecida à cultura sobre a natureza, prioridade que quase nunca liadmitida fora da área da civilização industrial. Sem dúvida, a descon-tinuidade entre os dois reinos é universalmente reconhecida, e não existesociedade, por mais humilde que seja, que não atribua um valor eml.•nente às artes da civillzaçáo, cuja descoberta e uso separa a humani-dade da animalidade. COntudo,entre os povos ditos "primitivos" a noçãode natureza tem sempre um caráter ambíguo: a natureza é pré-culturae também subcultura; mas é especialmente ° terreno no qual o homem, pode esperar entrar em contato com os ancestrais, os espíritos e os, deuses. Portanto, na noção de natureza há um componente "sobrenatu-/] ral", e esta "sobre-natureza" está tio incontestavelmente acima da cul-I tura como a própria natureza está abaixo desta.

Nestas condições, não devemos admirar-nos de que as técnicas e osobjetos manufaturados sofram, no pensamento indigena, uma espécie dedesvalorização, quando se trata do essencial, isto é, das relações entre ohomem e o mundo sobrenatural. Tanto na Antiguidade clássica e nãoclássica como no folclore ocidental e nas sociedades indígenas contem-porâneas, encontrar-se-iam exemplos inumeráveis de proscrição de obje-tos locais manufaturados, ou de objetos de introdução recente, par&todos os atos da vida cerimonial e nos diversos momentos do ritual.Como foi o caso da proscrição do empréstimo com juros feita pelos pa-dres da Igreja e pelo Islão, traduz-se assim uma resistência muito pro-funda ao que poderíamos chamar "a lnstrumentalldade", que modela asatitudes, para além da finalidade confessada desta ou daquela proibiçll.o.

Mais do que uma conseqüência imediata do regime econômico ouda propriedade coletiva do solo, é desse modo que convém interpretara repugnância pelas transações ÚJlobillé.rias.Por exemplo, se miseré.veiscomunidades indígenas dos Estados Unidos, compreendendo apenas al:'gumas dezenas de famfllas, se rebelam diante da perspectiva de expro-priação comportando indenizações da ordem de centenas de milharea,às vezes mesmo de muitos milhões de dólares, é, de acordo com o pró-prio testemunho dos interessados, porque concebem o local onde Vivemcomo uma "mãe", e não podem desfazer-se dele. nem trocA-Io. Esten-dendo este raciocinio, conheceram-se populações de coletores de grãosselvagens (os Menomini da região dos Grandes Lagos), perfeitamente apar das técnicas agrícolas de seus vizinhos (os Iroqueses, no caso), masrecusando-se a apUcé.-las à produçio de seu allmento de base (o arrozselvagem), entretanto, muito próprio par& ° cultivo: isto porque lhesera proibido "fe~ir sua miíe, a terra", Nestes casos, trata-se bem àe uma

prioridade de principio atribuida à natureza sobre a cultura, que noaacivilização também conheceu no passado, e que reaparece às vezes emperiodos de dúvida e crlse, mas que, nas 80ciedads ditas "primitivas",existe como um sistema de crenças e práticas solidamente edificadas.

Com efeito, é a mesma oposição que dá seu fundamento teórico àdivisAo de trabalho segundo os sexos. iPor mais variável que esta possaparecer, quando se comparam as sociedades entre si comporta elemen-tos constantes, que sio diversamente interpretados e cujas aplicaçõesdiferem de lugar para lugar. Assim é a homologia.entre a oposição na-furem/cultura. e a oposição jémea./macho: reservam-se às mulheres for-mas de atividade concebidas como sendo da ordem da natureza (comoa jardinagem), ou as que colocam o artesão em contato direto. com osprodutos ou objetos naturais (cerA.m1camodelada à mão, tecelagem-entrançamento); ao passo que o homem tende a absorver os mesmoStipos de atividade quando esta exige a intervenção da cultura, sob afórma de utensmos e máquinas cuja fabricação atinge um certo uiveIde. complexidade (relativo, aliás, segundo as sociedades).

mesmo vizinho próximo, é considerado sujo e grosseiro, freqUentementecheca-se até a negar-lhe a qualidade de homem. Mas inversamente, aestrutura social interna tem uma trama bem mala cerrada, um cenirlobem mais rico do que nas cl.vil1zaç6escomplexas. Nada é deixado aoacaso, e o duplo principio de que é preciso \1m lugar para cada coisa e

---/que cada coisa deve estar em seu lugar, impregna toda a vida morale aoclal. Explica também como sociedades de uiveI técnico-econômicomuito baixo podem experimentar um sentimento de bem-estar e pleni-tude, e que cada uma delas acredite oferecer aos seus membros a únicavida que vale a pena ser Vivida. Talvez elas lhes proporcionem, assim,mala felicidade. Mas porque esta felicidade se quer completa, cada for-ma é inevitavelmente separada das outras, e 6 fixada de direito, senão.sempre, de fato.''---.

Nesta dupla perspectiva, vê-se o quanto é vão colocar o problemadas sociedades "sem história". Não se trata de saber se as sociedadesditas "primitivas" têm ou não uma história, DO sentido que atribuimosa este termo. Estas sociedades estio na temporalidade como todas asoutras, e com os mesmos direitos que elas, mas diferentemente do queacontece entre nós, recusam-se à história, esforçam-se por esterilizar emseu seio tudo o que poderia constituir o esboço de um devir histórico.Como o diz, de modo nostálgico e significativo, um provérbio dos LovedU

. da Africa do Sul: o ideal é recolher-se à sua própria casa, Já que, no'~o da mãe, ninguém jamais voltará •..

Nossas sociedades ocidentais são feitas para mudar _ é o principiode Sua estrutura e de sua organização. As sociedades ditas "primitivas"nos aparecem como tais, sobretudo porque foram concebidas por seusmembros para durar. Sua abertura para o exterior é muito reduzida, eo que se chamaria de "espirito end6geno"l as domina. O estrangeiro,

1 No texto. "esprft de clocher": ligação particularmente forte com ocirculo estreito das pessoas e coisas que nos cercam habitualmente(N. C.).

manas irão se confundir com as ciências exatas e naturais, da quai8deixarão de se distinguir.

Convém, portanto, que a nova relação dê à palavra "tendência" seusentido mais rico e mais pleno; que se esforce em ser uma meditaçãoousada sobre o que ainda não existe, mais do que um balanço falsificadopelo embaraço de expor a insuficiência dos resultados conseguidos; que,ao preço de um esforço construtivo onde a imaginação terá seu papel,procure adivinhar as gestações latentes, esboçar os lineamentos de evo-luções indecisas; que se dedique menos a descrever o estado presente denossas ciências que a pressentir os caminhos onde poderão - talvezgraças a ela - engajar-se as ciências de amanhã.

AS DESCONTINUIDADES CULTURAIS E ODESENVOLVIMENTO ECONOMICO *

o PROBLEMADAS DESCONTINUIDADESCULTURAIS DIANTE DAETNOGRAFIA E DA mSTORIA

-)Foi no século XVI, com a desco1:lertado Novo Mundo, que o pro-blema das descontinuidades culturais se colocou à consciência ocidental,de modo súbito e dramático. Mas 'nesta época, ele se reduz a uma al-ternativa bem simples: ou os indígenas americanos são homens, e deveminteirar-se, porb~m ou por mal,' à ,civilização cristã, ou a humanidadelhes pode ser contestaãa, e dependem então da condição animal. Serápreciso, portanto, esperar o século xvm, para que o problema se colo-que em termos verdadeiramente históricos e sociológicos.Deve-se notarainda que, qualqu~r que seja a solução proposta, todos os autores estãode acordo sobre as· premissas, isto é, sobre a possibilidade de compararas sociedades que chamaríamos hoje primitivas com a civilização 00-

• Texto de uma comunicação à Table ronde sur les prémisses saciale.de l'industrialis!ltion, organizada pelo Conselho Internacional dasCiências Sociais. em setembro de 1961. Information sur les scienceasociales, voI. II-2, junho 1963. Mouton, Haia-Paris, p. '7-15. Republi-cada com a autorização do Conselho Internacional das Ciências So-ciais.

dental. Que L'i primeiras se situem, conforme acreditava Condorcet, noponto de partida de uma evolução progressiva e ascendente, ou, comoDtderot se comprazeu algumas vezes em sugerir, que elas constituamum apogeu a partir do qual a humanidade só conheceu uma decadênciacontínua; ou ainda, segundo o pensamento mais moderno e matizadode Rousseau, que seja preciso distinguir entre um estado de natureza,cuja noção é puramente teórica, e uma condição da humanidade aindahoje ilustrada pel05 povos selvagens, que representaria uma espécie deequilíbrio "optimum" entre o homem e a natureza: nenhuma destasconcepções põe em dúvida que as descontinuidades culturais subsistamcomo os testemunhos aparentes e os vestígios de um desenvolvimentosolidário.

Será sobretudo Auguste Cümte quem denunciará a fraqueza destavisão unitária do desenvolvimento da humanidade, concebida quer comouma progressão, quer como uma regressão, ou ainda como uma misturacomplexa das duas fórmulas. De fato, na 52~ lição do Cours de philoso-phie positive, Comte· critica 05 perigos de uma teoria unitária do desen-volvimento social e cultural. Ele diz que é preciso estudar o desenvolvi-mento como luna propriedade específica da civ1lizaçãoocidental, aindaque seja para adaptar posteriormente as conclusões obtidas à transfor-mação de sociedades diferentes. O marxismo confirma esta espec1f1cida-de das evoluções particulares: "Quem quisesse reduzir a Economia POU-tica da Terra do Fogo e a da Inglaterra atual às mesmas leis, só evi-denciaria os lugares comuns mais banais" <Engels,Anti-Dühring), COn-cordando com o Positivismo a este respeito, o Marxismo vê no desen-volvimento uma propriedade intrínseca da civilização ocidental: "As ve-lhas comunidades primitivas podem subsistir durante milênios, antesque o comércio exterior produza em seu seio diferenças de fortuna queacarretem sua dissolução". <Engels, Anti-Dühring),\ ~í Mas o pensamento marxista inova sobre dois pontos, de capital im-portância para o problema que estudamos, Em primeiro lugar, credita, à.svelhas civilizações primitivas, descobertas sem as quais seria inconcebí-vel o desen~olvimento da civilização ocidental, e em relação ao qual aamplitude desse desenvolvimento, tal como poderia ser encarado no sé-culo XIX, se reduz a modestas proporções:

A Antigüidade mais remota... tem como ponto de partida ohomem se distinguindo do reino animal e, como conteódo, a vi-tória sobre dificuldades tais que jamais se apresentarão simila-res aos homens associados do futuro. <EngeJs,AnU-Dfl1I.ring).

Em .segundo lugar" e principalmente, Marx inverteu a perspectlftpela qual .se consideram geralmente os processos de industriali-zação e de de.senvolv1mento.Para ele, a industrialização não é um fe-nômeno autônomo e que se procura introduzir, de fora, em civilizaçõesque permaneceram na pa;ss1v1dade.Ao contrário, a industrialização éuma função, e um rt!$ultado indireto, da condição das sociedades ditas"primitivas" ou, mais exatamente, da relação histórica entre elas e oOCidente..,--, O problema fundamental do Marxismo é saber porque e c.mo o tra-balho produz uma mais-valia. Ainda nia foi suficientemente notado quea resposta de Marx a este problema tem um caráter etnográfico. A hu-manidade primitiva era bastante reduzida para se estabelecer apenasnas regiões do mundo onde as condições naturais assegurassem um ba-lanço positivo ao seu trabalho. Por outro lado, é uma propriedade in-trínseca da cultura - no sentido que os etnólogos dão a este termo -estabelecer uma relação tal entre mais-valia e trabalhO que a primeirase acrescente sempre ao segundo. Por estas duas razões, uma de ordemlógica, outra de ordem histórica, podemos postular que, de saída, todotrabalho produz necessariamente mais-valia. A exploração do homempeló homem vem mais tarde, e aparece concretamente na história, soba forma de uma exploração do coloniZadopelo colonizador, ou seja, pelaapropriaçio, em beneficio do último, do excedente de mais-valia, de que,já vimos o primitivo dispõe por direito:

Suponhamos que sejam necessárias doze horas de trabalho parasatisfazer todas as necessidades de um desses insulares; Vê-seque o primeiro favor que a natureza lhe concede é muito 1uer.Para que o empregue produtivamente para si próprio, é prec1aOtodo um encadeamento de incidências históricas; para que ogaste em sobre-trabalho para outro, deve-se constrangê-Io pelaforça <Marx,O Capital, n).

.- > Resulta disto, primeiramente, que a colonização é histórica e log1ca-mente anterior ao capitalismo, e, em segUida, que o regime capitaUstaconsiste em tratar os povos do OCidente como o OCidente o fizera pre-cedentemente com as populações indígenas. Para Marx, a relação en-tre o capitalismo e o proletário é, portanto, apenas um caso particular /da relaçio entre colonIzador e colonizado. Deste ponto de vista, quasei--se poderia sustentar que, no pensamento marxista, a ciência econÔmicae a SOciologianasceJP.como dependentes da Etnografia. 1: em O Capital

(livro r, t. m, capo 31) que se prop6e a tese, com perfeita clareza: aorigem do regime capitalista remonta à descoberta das regi6es auriferas

e W'gentUerasda América; depois à. redução dos indígenas à. escravidão;em seguida, à conquista e pilhagem das índias orientais; enfim. à. traDB-formação da Africa numa "espécie de reserva comercial para a caça aospele-negras". "Eis os procedimentos idUicos de acumulação primitivaque marcam a era capitalista em sua aurora". Logo depois, estoura aguerra mercantil. "Era preciso a escravidão sem frase no NOVoMundo,como pedestal para a escravidão dissimulada dos assalariados da Eu-ropa".

Se se aceitam ou rejeitam as posiçõesmarxistas, essas consideraçõessão importantes, pois chamam a atenção sobre dois aspectos do' proble:'ma do desenvolvímento, que os pensadores contemporâneos tendem de-masiado a negligenciar.

,Em primeiro lugar, as sociedades qUe denominamos atualmente de"subdesenvolvidas" não o são por sua própria causa, e erraríamos emconcebê-Ias como exteriores ao desenvolvimentoocidental ou como tendoficado indiferentes diante dele. !Na verdade, são essas sociedades que,por sua destruição direta ou indireta entre os séculos XVI e XIX, tor-naram possível o desenvolvimento do mundo ocldental.jEntre elas e eleexiste uma relação de complementaridade. O próprio desenvolvimentoe suas exigências ávidas é que as fizeram tais como este desenvolvi-mento as descobre hoje em dia. Não se trata, portanto, de uma tomadade contato entre dois processos que se teriam dado tsoladamente. Arelação de estranheza entre as sociedades ditas SUbdesenvolvidase aclvilização mecA.nicaconsiste, sobretudo, no fato de que, nelas, esta ci-1UizaçãomecAnica reencontra seu próprio produto, ou, mais precisa-mente, a contrapartída das destruições que cometeu dentro delas paraInstaurar sua própria realidade. .

Em segundo lugar, a relação não pode ser concebida em abstrato.Não é possível negligenciar que ela se manifestou de modo concreto, himuitos séculos, pela violência, opressão e exterminação. Também desteponto de vista, o problema do desenvolvimento não é matéria de puraespeculação.A anilise que se pode fazer a este respeito, as soluções quese podem propor, devem necessariamente levar em consideração condi-ções históricas irreversiveis, e um clima moral, que formam o que sepoderia denominar a "carga dinâmica" da situação colonial.

Por conseguinte, jamais o desenvolvimento pode ser consideradocomo o fazia Mallnowskí: "resultado de um impacto de uma culturamais elevada e mais ativa sobre uma cultura mais simples e mais pas-siva" m. Malinowski, The D1Inami~of Culture ChangeLA "simpllcida-

de" e a "passividade" não são propriedades intrínsecas das culturas emquestão, mas o resultado da. ação do desenvolvimento, em seus p:i-mórdlos. sobre elas: uma situação criada pela brutalidade, rapina eviolência, sem as quais as condições históricas deste mesmo desenvolvi-mento não teriam sido reunidas (se o tivessem sido de maneira dife-rente, a situação de contato seria completamente distinta, e tal que nãoestamos aptos a imaginá-Ia). Não há. não pode havl:'r um "ponto zeroda mudança" (L. Mair) , a não ser que se aceite fixá-lo no único mo-mento em que realmente existiu. isto é. em 1492. nR véspera da deco-berta do Novo Mundo. Pela destruição, inicialmente deste próprio NovoMundo. e em seguida de muitos outros, reuniam-se as condições do de-senvolvimento em beneficio do Ocidente; estas permitiriam a produçãodeste desenvolvimento, que voltaria mais tarde a se impor, de fora,a sociedades previamente saqueadas para que o próprio desenvolvimentopudesse nascer e crescer sobre suas ruínas.

.- Jo que é verdadeiro no plano da ~ande história, o é também no dapequena. Dedicando-se .aos problemas da industriali~ção dos paísessubdesenvolvidos,a civilização ocidental encontra neles primeiramentea imagem deformada, e como que fixada pelos séculos, das destruiçõesque lhe foi preciso inicialmente fazer para existir. E do mesmo modo,se bem que numa escala mais reduzida, errariamos em pensar que atomada de contato entre a civilização mecAnicae essas populações, quelhe tinham permanecido completamente estranhas, se dê no abstrato.De fato, e muito antes que uma tomada de contato confessada se pro-duzisse, fizeram-se sentir seus efeitos antecipados, desde muitos anOlatras, e isto de duas maneiras: ora sob forma de uma segunda destrui-ção à distAncia, ora sob forma de uma "aspiração", equivalente tambéma uma destruição.

L. <.. 1Já se evocaram suficientemente as devastações das doenças intro-d~das pelo homem branco entre populações que ainda não tinhamdesenvolvido nenhuma imunidade contra elas, para que seja necessá-rio lembrar o exterminio de sociedades inteiras sob o efeito de doenças,o que começou no século XVI, e cujos efeitOs lamentâveis ainda veri-ficamos atualmente. Do mesmo modo como o cavalo se espalhou pelasPlanicies da América do Norte muito mais rapidamente do que a civi-lização ocidental conseguiu ai penetrar, transtornando as culturas indi-genas de certo modo por antecipação, os germes patogênicos viajamcom uma rapidez surpreendente: mesmo nas regiões mais recuadas doplaneta, onde se poderia supor que subsistissem sociedades intactas.

seus efeitos devastadores se fazem sentir vários anos e às vezes dezenasde anos antes que o contato propriamente dito se tenha dado.

Pode-se dizer o mesmo das matérias primas e das técnicas. Numartigo, "A revolução do machado" (Diogene, n9 25, 1959), Alfred Métrauxexpôs como a adoção de machados de ferro, mesmo facUltando e slm-pllflcando as atividades técnicas e econOmicas,pode acarretar uma ver-dadeira destruição das civ1l1zaçõesindigenas. OS Yir Yoront do norte daAustrália, estudados por Lauriston Sh&rp, perderam, com a adoção dosutens1110sde metal, o conjunto das instituições econOm1cas,.soc1a1sereligiosas que estavam ligadas à posse, utilização e transmissão doa ma-chados de pedra. A adoção de uma ferramenta mais aperfeiçoada acarre-tou o desmoronamento da organização soc1al e a decomposição do grupo.Ora, sob a forma de. utens1110susados ou danificados, até mesmo de su-catas indescritiveis, o ferro viaja mais rápido e mais longe que os ho-mens, através das guerras, dos casamentos e das trocas comerciais.

Essas destruições à distância podem tomar também a forma de umaverdadeira "aspiração" de grupos indígenas, feita por uma civ1l1zaÇãOque até então apenas os tocara de leve. Stanner lembrou recentementeuma antiga desventura, que outros etn610gos também experimentaram,na Austrália, na América do Sui e em outros lugares. Alertado, porvolta de 1930, por relatórios oficiais e oficiosos que indicavam a exis-tência de tribos ainda completamente selvagens numa região remotada Austrália, descobriu no local que estabelecimentos precários de euro-peus ou de chineses - que se sucederam na região há uns cinqüentaanos - tinham conseguido esvaziar uma população indigena, tomadaerrante em busca de utens010s metálicos, tabaco, chá, açúcar e roupas.06 pretensos "selvagens" eram apenas as últimas populações do inte-rior, aspiradas, assim como o foram suas congêneres, para a franja pio-neira, e já social e moralmente decompostas. Mas, nos territórios inex-pIorados, já não restava ninguém (W. S. H. Stanner, "Durmugam, aNangiomeri", tn Joseph B. Casagrande, ed. In the Company 01 Man,p. 7.-75>.

Após ter defin1do os quadros históricos concretos onde se manifes-tam as descontinuidades culturais, podemos tentar, com riscos menores.c:hJ,tinguiras causas profundas da resistência ao desenvolvimento.

Mas, in1cialmente, convém realçar os casos, aliás, excepcionais, emque a cultura indigena consegue se refUgiar parcialmente numa espécfede "nicho" cultural que lhe reserva a civ1l1zaçãoindustrial.

O exemplo mais célebre é o dos Iroqueses do estado de Nova Iorque,que fornecem, já há mais de meio século, as melhores equipes espeda-llzadas na montagem de estruturas metálicas: pontes, arranha-céus etc.Esta vocação se explica, de um lado, por um treinamento tradicionalem ultrapassar torrentes e precipicios; e porque estes indios encontra-ram, talvez, numa atividade cheia de riscos, geradora de prestígio ebastante bem remunerada - e também intermitente, implicando umcerto nomadismo - um substituto de suas velhas expedições guerreiras.

Menos durável, mas não menos surpreendente, foi o extraordináriofiorescimento das artes plásticas e gráficas na costa noroeste do Cana-dá e do Alasca, após o estabelecimento das feitorias para o comércio depeles. O aumento dos lazeres, combinando-se com a introdução de uten-s11106de ferro e um enriquecimento propicio à especulação, exacerbou.durante aproximadamente cinqüenta anos, uma orientação latente paraas lutas de prestigio, onde a posse, a exibição e a destruição de objetospreciosos representavam um papel de primeiro plano. ~ verdade que,nestes casos, a derrocada demográfica, conseqüência da introdução dedoenças européias, agia momentaneamente no mesmo sentido, já quenumerosos titulos nobiliários, na falta de herdeiros naturais, tomavam..se um objeto de cobiça e um meio de ascensão social para uma classede "novos ricos". Mas, com estes dois exemplos e alguns outros que po-deriamos ter acrescentado, s6 fazemos evocar curiosidades.

-":7 De um modo geral, as causas profundas da resistência ao desenvoI.V1Ínentoparecem ser três. PIimeiramente, uma tendência da maioria dassociedades ditas primitivas em preferir a unidade à mudança; em se-gundo lugar, um profundo respeito pelas forças naturais; enAm., a re-pugnância por engajar-se num devir histórico.

l'lvocou-se freqüentemente o caráter não competitivo de certas so-ciedades que denominamos primitivas, para explicar sua resistência aodesenvolvimento e à industrialização. SObre este ponto, é preciso fazeruma ressalva: a passividade e a indiferença, que chocaram os observa-dores, podem ser uma conseqüência do traumatismo consecutivo ao

~tato, e nio uma condição inicialmente dada. Contudo, deve-se insis-tir sobre o fato de que esta ausência de espírito competitivo, muito fre-qUentemente, não resulta de um estado induzido de fora OU de um con-dicionamento passivo anterior, porém muito. mais de um progresso~deliberado, correspondente a uma certa concepção das relações entre ohomem e o mundo, e dos homens entre si. Até que ponto atitudes, tiodiferentes das do mundo ocidental, podem estar profundamente enrai-.adas, vê-se, de maneira bastante espirituosa, numa observaçio feitarecentemente na Nova Guiné, entre os GahUku-Kama. Esses inc:Ugenaaaprenderam a jogar futebol com os missionários, mas ao invés de pro-curar a vitória de um dos times, multipllcam o número de partidas deIPCld.oque derrotas e vitórias se equillbrem. O jogo não termina quando..J;1á um !Vencedor,como entre nós, mas quando se assegura que não hiperdedor (R,ead, p. 429).

Em outras sociedades far-se-ão observações inversas, mas igUalmen-te incompatíveis com um verdadeiro espírito de competição: é assim.quando se dão jogos tradicionais entre dois times que representam 08

vivos e os mortos, e que devem terminar com a vitória dos primeiros.

Aliás, são esses mesmos Gahuku-Kama que, como acontece fre-qUentemente na Nova Guiné, repartem as responsabilldads pollticas en-tre o chefl! e o orador; a este último incumbe manifestar aberta eAgressivamp.oteos conflltos, enquanto o chefe intervém para apaziguar,pacificar e indicar soluções medianaS. Deste ponto de vista, é bastanteáUrpreendente que, na quase totalldade das sociedades ditas "primitivas",a idéia de um voto decidido pela maioria seja inconcebível, preferindo-se a coesAo social e o entendimento amigável no grupo ao invés dequalquermovaçio. ConseqUentemente, só se tomam aí decis6es unAni-mea. Algumas vezes mesmo, e isto se verlflca em muitas regi6es domundo, precedem-se as dellberaç6es por combates simulados, no decursodos quais se resolvem as velhas rixas. O voto SÓ se dá depois que ° grupo,restaurado e renovado, realizou interiormente as condições de uma una-nimidado indispensável.

A concepçio que mUitas sociedades primitivas têm da relação entrenatureza e cultura pode também expllcar certas resistências ao desen-volvimento. COm efeito, este impllca numa prioridade incondieional re-

conhecida à cultura sobre a natureza, prioridade que quase nunca liadmitida fora da área da civilização industrial. Sem dúvida, a descon-tinuidade entre os dois reinos é universalmente reconhecida, e não existesociedade, por mais humilde que seja, que não atribua um valor eml.•nente às artes da civillzaçáo, cuja descoberta e uso separa a humani-dade da animalidade. COntudo,entre os povos ditos "primitivos" a noçãode natureza tem sempre um caráter ambíguo: a natureza é pré-culturae também subcultura; mas é especialmente ° terreno no qual o homem, pode esperar entrar em contato com os ancestrais, os espíritos e os, deuses. Portanto, na noção de natureza há um componente "sobrenatu-/] ral", e esta "sobre-natureza" está tio incontestavelmente acima da cul-I tura como a própria natureza está abaixo desta.

Nestas condições, não devemos admirar-nos de que as técnicas e osobjetos manufaturados sofram, no pensamento indigena, uma espécie dedesvalorização, quando se trata do essencial, isto é, das relações entre ohomem e o mundo sobrenatural. Tanto na Antiguidade clássica e nãoclássica como no folclore ocidental e nas sociedades indígenas contem-porâneas, encontrar-se-iam exemplos inumeráveis de proscrição de obje-tos locais manufaturados, ou de objetos de introdução recente, par&todos os atos da vida cerimonial e nos diversos momentos do ritual.Como foi o caso da proscrição do empréstimo com juros feita pelos pa-dres da Igreja e pelo Islão, traduz-se assim uma resistência muito pro-funda ao que poderíamos chamar "a lnstrumentalldade", que modela asatitudes, para além da finalidade confessada desta ou daquela proibiçll.o.

Mais do que uma conseqüência imediata do regime econômico ouda propriedade coletiva do solo, é desse modo que convém interpretara repugnância pelas transações ÚJlobillé.rias.Por exemplo, se miseré.veiscomunidades indígenas dos Estados Unidos, compreendendo apenas al:'gumas dezenas de famfllas, se rebelam diante da perspectiva de expro-priação comportando indenizações da ordem de centenas de milharea,às vezes mesmo de muitos milhões de dólares, é, de acordo com o pró-prio testemunho dos interessados, porque concebem o local onde Vivemcomo uma "mãe", e não podem desfazer-se dele. nem trocA-Io. Esten-dendo este raciocinio, conheceram-se populações de coletores de grãosselvagens (os Menomini da região dos Grandes Lagos), perfeitamente apar das técnicas agrícolas de seus vizinhos (os Iroqueses, no caso), masrecusando-se a apUcé.-las à produçio de seu allmento de base (o arrozselvagem), entretanto, muito próprio par& ° cultivo: isto porque lhesera proibido "fe~ir sua miíe, a terra", Nestes casos, trata-se bem àe uma

prioridade de principio atribuida à natureza sobre a cultura, que noaacivilização também conheceu no passado, e que reaparece às vezes emperiodos de dúvida e crlse, mas que, nas 80ciedads ditas "primitivas",existe como um sistema de crenças e práticas solidamente edificadas.

Com efeito, é a mesma oposição que dá seu fundamento teórico àdivisAo de trabalho segundo os sexos. iPor mais variável que esta possaparecer, quando se comparam as sociedades entre si comporta elemen-tos constantes, que sio diversamente interpretados e cujas aplicaçõesdiferem de lugar para lugar. Assim é a homologia.entre a oposição na-furem/cultura. e a oposição jémea./macho: reservam-se às mulheres for-mas de atividade concebidas como sendo da ordem da natureza (comoa jardinagem), ou as que colocam o artesão em contato direto. com osprodutos ou objetos naturais (cerA.m1camodelada à mão, tecelagem-entrançamento); ao passo que o homem tende a absorver os mesmoStipos de atividade quando esta exige a intervenção da cultura, sob afórma de utensmos e máquinas cuja fabricação atinge um certo uiveIde. complexidade (relativo, aliás, segundo as sociedades).

mesmo vizinho próximo, é considerado sujo e grosseiro, freqUentementecheca-se até a negar-lhe a qualidade de homem. Mas inversamente, aestrutura social interna tem uma trama bem mala cerrada, um cenirlobem mais rico do que nas cl.vil1zaç6escomplexas. Nada é deixado aoacaso, e o duplo principio de que é preciso \1m lugar para cada coisa e

---/que cada coisa deve estar em seu lugar, impregna toda a vida morale aoclal. Explica também como sociedades de uiveI técnico-econômicomuito baixo podem experimentar um sentimento de bem-estar e pleni-tude, e que cada uma delas acredite oferecer aos seus membros a únicavida que vale a pena ser Vivida. Talvez elas lhes proporcionem, assim,mala felicidade. Mas porque esta felicidade se quer completa, cada for-ma é inevitavelmente separada das outras, e 6 fixada de direito, senão.sempre, de fato.''---.

Nesta dupla perspectiva, vê-se o quanto é vão colocar o problemadas sociedades "sem história". Não se trata de saber se as sociedadesditas "primitivas" têm ou não uma história, DO sentido que atribuimosa este termo. Estas sociedades estio na temporalidade como todas asoutras, e com os mesmos direitos que elas, mas diferentemente do queacontece entre nós, recusam-se à história, esforçam-se por esterilizar emseu seio tudo o que poderia constituir o esboço de um devir histórico.Como o diz, de modo nostálgico e significativo, um provérbio dos LovedU

. da Africa do Sul: o ideal é recolher-se à sua própria casa, Já que, no'~o da mãe, ninguém jamais voltará •..

Nossas sociedades ocidentais são feitas para mudar _ é o principiode Sua estrutura e de sua organização. As sociedades ditas "primitivas"nos aparecem como tais, sobretudo porque foram concebidas por seusmembros para durar. Sua abertura para o exterior é muito reduzida, eo que se chamaria de "espirito end6geno"l as domina. O estrangeiro,

1 No texto. "esprft de clocher": ligação particularmente forte com ocirculo estreito das pessoas e coisas que nos cercam habitualmente(N. C.).