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FREI LUIZ TURRA no coração da vida Temas diversos Programas radiofônicos vol. 3

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FREI LUIZ TURRA

no coraçãoda vida

Temas diversos

Programas radiofônicos

vol. 3

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Com o título No coração da vida, vols. 1-2-3, o autor repassa os vários momentos da vida de cada um: Fé – Festa – Paz – Páscoa – Morte – Vida e Crescimento interior são alguns dos temas tratados. O melhor da criativi-dade não é fazer tudo novo. A boa criatividade é aquela que consegue atua-lizar, qualificar e aprimorar, a partir do chão de suas conquistas já obtidas.

E o Papa Francisco diz no documento “A Alegria do Evangelho”, n. 113: “... Eu gostaria de dizer aos que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo, aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte de seu povo, e o faz com grande respeito e amor”.

É bem dentro desta caminhada humana, sempre exposta ao cansaço de viver, que Jesus Cristo chega e proclama: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso de vossos fardos, e eu vos darei des-canso...” (Mt 11,28).

Que estas mensagens possam ajudar a todos nos momentos de incerte-za, e sejam amplamente divulgadas entre aqueles que estiverem necessitan-do de uma palavra de conforto e alento.

Noemi Dariva fsp

Frei Luiz Turra, autor de várias obras publicadas por Paulinas, encaminhou para Pauli-nas Rádio diversas mensagens, textos simples, mas escritos com o coração, com a finalida-de de auxiliar muitos sacerdotes, religiosos/as, leigos/as, apresentadores de programas de rádio, que dispõem de pouco tempo para se preparar, para que, dependendo do assunto, possam escolher um texto, um exemplo ou uma mensagem especial em um dos livretos para ilustrar melhor sua fala. Cada tema tem cerca de um ou dois minutos de duração.

5304

0-9

ISBN: 978-85-356-4238-4

9 788535 642384

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Turra, LuizNo coração da vida : temas diversos : programas radiofônicos, vol. 3 / Frei

Luiz Turra. – São Paulo : Paulinas, 2016.

ISBN 978-85-356-4238-4

1. Comunicação - Aspectos religiosos - Igreja Católica 2. Vida cristã - Mensagens bíblicas (Programa de rádio) I. Título.

16-08123 CDD-248.4

Índice para catálogo sistemático:

1. Vida cristã : Mensagens bíblicas : Programa de rádio 248.4

1a edição

Ficha técnica – Livro

Direção-geral: Eliane De Prá Editora responsável: Noemi Dariva, fsp Organização dos textos: Noemi Dariva, fsp Revisão: Noemi Dariva, fsp Gerente de produção: Felício Calegaro Neto Capa e editoração: Manuel Rebelato Miramontes

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados.

Paulinas Rádio

Instituto Alberione Rua Dona Inácia Uchoa, 62, 5º andar, sl. 507

04110-020 – SÃO PAULO – SPFone: (11) 2125-3595; [email protected];

[email protected]

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SumárioApresentação ................................................................................................... 7

1. A ternura faz bem para todos ...................................................................... 8

2. Acordar a esperança adormecida ................................................................10

3. Andar parando e parar andando ............................................................... 12

4. A importância de um alfinete .....................................................................14

5. Advento, uma espera bem-sucedida ...........................................................16

6. Atenção... Hoje é o dia certo! .....................................................................18

7. Amizade de guarda-chuva ......................................................................... 20

8. A louca teimosia de se enganar .................................................................. 22

9. Ajudar e ser ajudado .................................................................................. 24

10. As sombras do nosso caminho ................................................................. 26

11. Abençoados e abençoadores ..................................................................... 28

12. Animados e animadores .......................................................................... 30

13. A alegria de viver agora ........................................................................... 32

14. A família que está em mim ...................................................................... 34

15. Andar parando e parar andando .............................................................. 36

16. A difícil tarefa de educar o coração ......................................................... 38

17. Buscando o bem do outro, encontramos o nosso ..................................... 40

18. Beleza sempre nova e atual ...................................................................... 42

19. Cruz nossa de cada dia ............................................................................ 44

20. Católico pode usar mantras? ................................................................... 46

21. Cada um pelos outros e Deus por todos! ................................................. 48

22. Chegando de novo ao fim de ano ............................................................ 50

23. Calendários e agendas de um novo ano ................................................... 52

24. Círculo vicioso ou virtuoso ..................................................................... 54

25. Deus é pai, não paternalista .................................................................... 56

26. “Erguei vossos olhos e vede...” (Jo 4,35) .................................................. 58

27. Eu amo minha Mãe Igreja ....................................................................... 60

28. Empatia para um futuro melhor ............................................................. 62

29. Generosidade vencendo a mesquinhez..................................................... 64

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30. Iluminados e iluminadores ...................................................................... 66

31. Jesus do povo, mas não populista ............................................................ 68

32. Jesus, homem surpreendente ................................................................... 70

33. Mais fácil fugir do que arriscar ............................................................... 72

34. Necessitados de uma especial alegria ........................................................74

35. Os cansaços do caminho ......................................................................... 76

36. O primeiro homem livre da história ........................................................ 78

37. Os primeiiros e os últimos ....................................................................... 80

38. Onde vão parar os idosos? ....................................................................... 82

39. Os sinos voltaram .................................................................................... 84

40. Outro jeito de ouvir a Palavra ................................................................. 86

41. Passar de ano, desejo de todos ................................................................. 88

42. Passo a passo o caminho se faz ................................................................ 90

43. Parece demais, mas é realidade ................................................................ 92

44. Qual poder vencerá? ............................................................................... 94

45. Quando as opiniões ajudam .................................................................... 96

46. Quando Deus quis se revelar .................................................................. 98

47. Recuperando a esperança ....................................................................... 100

48. Recuperando o senso de humanidade ....................................................102

49. Santificados e santificadores .................................................................. 104

50. Será que ainda vale a pena? ................................................................... 106

51. Se o ruim pode piorar, o bom pode melhorar ........................................ 108

52. Superando as crises da vida ....................................................................110

53. Superando a mesmice pela criatividade ..................................................112

54. Superando os medos ..............................................................................114

55. Superando os ranços da vida ..................................................................116

56. Superando o desânimo ...........................................................................118

57. Superando o “mais ou menos” ............................................................... 120

58. Superando a indiferença ........................................................................ 122

59. Surpreendidos pelo deslumbramento..................................................... 124

60. Tão humano assim, só Deus! ................................................................ 126

61. Tempo da medicina, mais do que doutrina ........................................... 128

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62. Um Deus apaixonado ........................................................................... 130

63. Um lírio no meio do lixo ........................................................................132

64. Um hino ao cotidiano da beleza............................................................ 134

65. Um gabarito para o vestibular da vida ................................................... 136

66. Uma escola para o bom senso ............................................................... 138

67. Uma Igreja de amores ou favores ............................................................140

68. Uma iniciativa de mãe que deu certo .....................................................142

69. Vida agitada e silêncio criador ............................................................... 144

70. Voltou-se a falar de alegria .....................................................................146

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ApresentaçãoComo falamos na apresentação do 1o volume, faríamos outros,

com as mensagens enviadas pelo Frei Luiz Turra, para auxiliar as pessoas que se dedicam à missão de divulgar os valores do Evangelho mediante programas radiofônicos.

O livro No coração da vida, vol. 3 contém mensagens com diver-sos assuntos e várias situações da vida de cada dia. Para favorecer a busca, estão dispostas por ordem alfabética de título. Portanto, quem for fazer um programa no rádio, dependendo da situação em que se encontra, escolherá um exemplo, um fato ou uma mensagem especial do livreto, podendo assim ilustrar bem melhor sua fala. Cada tema tem cerca de um ou dois minutos de duração.

O melhor da criatividade não é fazer tudo novo. A boa criatividade é aquela que consegue atualizar, qualificar e aprimorar a partir do chão de nossas conquistas já obtidas.

Às vezes nos sentimos sem ânimo e cansados!... Escreve o autor a um certo ponto: “Quem na vida não passa por horas de duras provações, onde nos vemos carentes e necessitados de algo? Como é importante quando alguém chega e nos pergunta: ‘Em que eu posso lhe ajudar?’”.

“... Eu gostaria de dizer aos que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo, aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte de seu povo, e o faz com grande respeito e amor” (cf. “A Alegria do Evangelho”, n. 113).

É bem dentro desta caminhada humana, sempre exposta ao cansaço de viver, que Jesus Cristo chega e proclama: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso de vossos fardos, e eu vos darei descanso...” (Mt 11,28).

Votos para que estas mensagens sejam amplamente divulgadas e conhecidas por todos aqueles que estão necessitando de uma palavra de alento e de conforto.

Noemi Dariva, fsp

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1. A ternura faz bem para todos

Nem sempre temos clareza do que seja a ternura, mas todos dela sentimos necessidade. Ternura revela um coração educado e sensível para quem a comunica e para quem a re-cebe, confirma uma necessidade humana favorável. Há quem diga: “Ternura não é tudo, ternura não dá lucro!”. A rigidez das leis, a impiedade de um capitalismo selvagem e o senso de desumanidade podem produzir tais convicções.

Porém, sem ternura a convivência humana seria um cenário desagradável de frieza, um purgatório antecipado e um jardim sem flores. Exatamente quando a humanidade experimenta a desconfiança, o desânimo e a depressão, faz-se ainda mais necessária a ternura como recurso de esperança, humanização e transformação.

As crianças de nosso tempo, muito mais do que objetos de distração, necessitam contar com a terna atenção de um pai e de uma mãe que os ajude a educar o coração. Os jovens, aparentemente frios e autossuficientes, tantas vezes se rebelam com suas formas de linguagem, como revolta por lhes faltar compreensão, ternura e o carinho dos adultos.

Os homens e as mulheres de nosso tempo esperam que alguém os escute. Todos sentem necessidade de palavras de ânimo e consolo, gestos de apoio e de bondade, proximidade de perdão e de alegria verdadeira. Somos chamados a levar a todos o abraço de Deus, que se inclina com ternura de mãe sobre nós.

A ternura de Deus é a expressão de sua misericórdia. Ele nunca chega para condenar, mas para salvar. A ternura do Pai

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do Filho pródigo move-o a ir ao encontro e não ficar esperan-do como juiz a volta do filho. Sua ternura não grita cobrando que o filho traga de volta a herança perdida, nem as roupas que ficaram no caminho. O que lhe importa é a volta do filho que estava perdido e foi encontrado, estava morto e reviveu. Essa ternura oferece festa em lugar de castigo, porque o Pai sabe que a bondade é o melhor remédio para tocar o coração. O bem sempre se difunde.

Se necessitamos de vigor para não sermos como caniços agitados pelo vento, também necessitamos da ternura para não sermos como a terra seca do sertão. A relação terna entre os cristãos, a sensibilidade pelas fragilidades que a todos po-dem atingir e a verdadeira fraternidade do “vede como eles se amam” é o primeiro e mais crível evangelho que podemos contar. Como Deus se manifesta “na brisa suave” e não no trovão, assim o testemunhamos entre os humanos, quando o revelamos na ternura.

Problemas existem e sempre existirão para todos, mas a forma terna de caridade com que os tratamos poderá ser o remédio mais eficaz para as feridas que nos machucam. “No tempo em que a fragmentação dá razão a um individualismo estéril e de massa e a fraqueza das relações desagrega e es-traga o cuidado do humano, somos convidados a humanizar as relações de fraternidade para favorecer a comunhão dos espíritos e dos corações no modo do Evangelho, porque existe uma comunhão de vida entre todos aqueles que pertencem a Cristo” (Papa Francisco).

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2. Acordar a esperança adormecida

Os últimos meses do ano, geralmente vão acumulando nos ombros, na mente e no coração um certo tipo de cansaço que dificulta o acordar da esperança. Mais ou menos acontece como no entardecer de um dia corrido, desgastante e carregado.

O fim do ano chega! Vemo-nos contagiados por certa sonolência que clama por férias, descanso e distração. Creio ser um bom direito poder desfrutar tempo para descontrair, dormir melhor e recarregar as energias para outra etapa que virá com a chegada do Ano-Novo.

Porém, neste meio-tempo de fim de ano e ano novo existe uma festa que se chama Natal. Ali desponta uma presença nova, um choro de criança, um cenário de indizível ternura e um acontecimento envolvente da máxima bondade de Deus. Só não vê e só não ouve bem quem não tem coração.

A proximidade do Natal é um período providencial para acordar a esperança e centrar o foco de nosso olhar, de nosso pensamento e nossas práticas naquele que é o princípio de toda a esperança: Jesus Cristo. Como se fosse o primeiro dia da criação é a novidade do Natal!

Nascimento não é simples palavra que rotula uma data. Nascimento é a própria dinâmica do amor criador e redentor de Deus. Não estamos aqui na terra para caminhar em direção à morte, nem para nos anular no envelhecimento e no tédio. Caminhamos na história em ritmo de nascimento.

Há momentos na vida, em que nos vemos necessitados de ajuda para acordar a esperança adormecida pela rotina e o desgaste de nosso cotidiano. Neste tempo vem a Igreja com

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a atualidade da liturgia, proclamar as palavras dos profetas, para apresentar João Batista e nos mostrar Maria, a Mãe da esperança.

Estas figuras inconfundíveis do Advento nos lembram de algo que já sabemos, mas temos dificuldade de nos convencer. Por exemplo: que Deus é Pai e nos ama, que devemos amar-nos com sinceridade, que Cristo, nossa esperança nasce, morre e ressuscita. O cristianismo é simples! Por isso os simples o entendem tão bem e tão rapidamente.

Neste tempo especial percebemos que o cristianismo pode nos tornar pessoas simples e entusiasmadas com a vida. Se encararmos a fé cristã como complicada e uma ameaça à nossa liberdade, ainda não acordamos para o melhor da vida que ela nos oferece.

Para acordar a esperança necessitamos nos envolver pela simplicidade e pela ternura do Natal. É neste mistério de sin-geleza que Deus revela seu rosto e vem para descomplicar a caminhada humana, estabelecendo novas relações de amor.

Para acordar a esperança pouco ajudam os grandes baru-lhos da publicidade consumista e as sofisticadas vitrines de um mercado sem alma. O silêncio da contemplação e a “brisa suave” da beleza de Deus vão acordando a esperança que não nos decepciona no dia seguinte. Em cada Natal, acordamos a esperança e nos colocamos em ritmo de nascimento! Assim, podemos iniciar o caminho de um novo ano, como dom de Deus e alegre responsabilidade.

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3. Andar parando e parar andando

Convencionalmente o verbo parar leva a pensar em imobi-lidade e andar é fazer caminho. Quando se diz que um veículo parou, simplesmente se afirma que todo o conjunto mecânico já não se movimenta. Um animal pode parar de caminhar e deitar-se numa sombra, mas pode continuar ruminando e dinamizando todo o seu sistema biológico. Porém, todo o animal, ao morrer, cessa de existir, a não ser na lembrança de quem pertencia.

Quando decidi desenvolver uma breve reflexão com este título “andar parando e parar andando”, pensei nos humanos e em seu potencial, dignidade, valor e liberdade que transcen-dem a todas as máquinas do mundo e a todos os animais mais adestrados e encantadores. Geralmente andamos distraídos. Pouco pensamos no mistério que somos nós! Por termos tan-to dinamismo que se cruza em nossa convivência, às vezes preferimos nem pensar no humano que somos, para não nos complicar.

Andar, correr, agir, descansar e comer não é o lado único e nem o mais forte dos humanos. Também os animais assim se ocupam, adoecem, morrem e tudo termina. Não é de estranhar que nós, humanos, podemos nos equivocar e nos medir pela correria e por ocupações que preenchem a nossa agenda. Se, de um lado nos orgulhamos por andar de pressa, por outro lado nos expomos ao perigo de ir parando naquela dimensão que deveria nos sustentar como humanos na sociedade e no mundo e garantir a nossa eternização.

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Aqui penso em tanta gente que vai envelhecendo sem ga-rantir razões para manter a grandeza de uma vida e gostariam de desistir quanto antes de viver. Andar parando é próprio de quem já não sonha mais; vai estancando o veio da criatividade; ocupa-se em lamentar-se da vida e xingar as pessoas com quem convive ou quem os cuida. Andar parando é poder dispor de tantos recursos e possibilidades fechando-se numa vida sem horizontes e ocupando-se apenas em curtir amarguras.

Andar parando é próprio de quem é surpreendido por uma doença e se dá o atestado de desengano antes do tempo. Em nada mais pensa, a não ser em morrer. Nesta situação de fecha-mento para a vida, um dos primeiros acusados é Deus. Nesta situação, não é de estranhar ver pessoas que, durante toda a vida, foram piedosas, chegarem a negar seu passado de fé.

Mas se existe este risco de andar parando, felizmente é mais frequente o lado contrário, isto é, dos que param andando. São essa multidão de homens e mulheres que sabem envelhecer na ternura, dos que sabem de seus limites, mas neles não se prendem e vão driblando suas dores com bom humor, amor e gratidão por seus cuidadores. Param andando aquelas pesso-as que sabem se programar mudando sua rotina passada por leituras construtivas, orações e até escrevendo as conclusões de suas experiências de sabedoria.

Se corremos o risco de andar parando lembremos que a vida não para no tempo, mas se projeta para a eternidade. Por este motivo, é conveniente aprender parar andando, já que a vida nos oferece mil recursos que só o amor pode administrá-los.

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4. A importância de um alfinete

Para quem quer aprender, os acontecimentos da vida po-dem nos ensinar, desde que estejamos atentos às suas lições. Numa das tantas celebrações de casamento que já abençoei, presenciei um fato, posteriormente avaliado pela própria noiva. Todo o cenário era grandioso: arranjos de flores de rara beleza, orquestra de câmara com música clássica, cortejo de padri-nhos, aias e pajens para não por defeito e convidados a rigor.

Abre-se a porta para a entrada da noiva e começa a mar-cha nupcial. Quando todos se levantam para receber a noiva, acontece um suspense sem explicação. O grande véu, preso a uma coroa, cai ao chão. Os que perceberam se agitaram que-rendo ajudar. Por sorte a encarregada do cerimonial carregava consigo dois alfinetes. Com rapidez tudo se resolveu e o véu se firmou. Assim voltou a alegria de um ritual sonhado.

Passados alguns dias, vem o casal para uma Missa Do-minical. Logo na entrada a noiva comenta o fato ocorrido e conclui: “Aprendi a dar valor a um alfinete que me salvou de um constrangimento”. Em seguida o marido acrescentou: “Um susto inesperado nos deu uma lição: precisamos aprender a valorizar o que parece insignificante, porque tudo na vida tem sua importância”.

Fatos parecidos podem ocorrer a toda a hora. Um passo imprudente pode nos levar a uma queda de risco. Uma decisão acertada pode nos encaminhar a um grande projeto de vida. Um centavo somado a outros pode salvar uma economia. Um copo de água pode nos livrar da desidratação. Um tijolo

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sobre o outro constrói um edifício. É fácil sonhar com o todo e esquecer o valor das partes.

O cuidado e a atenção às pequenas coisas garantem o êxito das grandes. Aplicando ao modo como vamos tecendo o nosso viver cotidiano, creio ser de extrema verdade e sabedoria a exortação de Jesus Cristo: “Quem é fiel nas coisas mínimas, é fiel também nas grandes” (Lc 16,10). Na parábola dos ta-lentos o Rei chama os servos a quem havia confiado dinheiro e diz ao primeiro: “Muito bem, servo bom, uma vez que te mostraste fiel no pouco, recebe autoridade sobre dez cidades” (Lc 19,15-17).

Hoje, no cenário comercial, ressoam com força as palavras: super, hiper, macro etc. E até na Igreja dos humanos circula a tentação de avaliar a vitalidade da fé pelos números e pelas multidões. O Papa Francisco ganha a aprovação da humanidade pelos seus gestos humanos e humildes, desde um telefonema personalizado, uma carta, um abraço a uma criança e uma cadeira oferecida para um guarda cansado.

Se observarmos com atenção as Parábolas do Reino, comprovaremos a maneira como Cristo quer revelar as gran-des verdades. Serve-se da pequena porção de fermento, da semente, quase invisível da mostarda, do tesouro escondido etc. Encerro este artigo lembrando de novo a frase da Madre Teresa de Calcutá: “Em geral não somos capazes de fazer grandes coisas, mas todos podemos fazer as pequenas coisas com grande amor”.

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5. Advento, uma espera bem-sucedida

A espera sempre carrega consigo a incerteza: vem, não vem? Vai dar certo, não vai? O que foi prometido, vai ser cumpri-do? Vai chegar em tempo, ou não vai? Na espera há sempre uma tensão. E esta se torna maior quanto mais importante é o esperado. A espera de Israel pelo Messias foi um longo e penoso caminho, movido pela Aliança, muitas vezes ameaça-da e rompida pelo povo, mas sempre fiel por parte de Deus.

Como foi a espera da promessa de Deus a Abraão, a Moisés, aos patriarcas, profetas, a Maria e ao povo? Bem sabemos o elevado preço da espera de Israel, até que chegou a “plenitude dos tempos, quando Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à lei, para resgatar os que estavam sujeitos à lei e todos receberem a dignidade de filhos” (Gl 4,4).

A espera de Israel não foi uma página romântica, nem um resultado de ilusória promessa. Mesmo que “Ele tenha vindo para os seus e os seus não o tenham recebido” (cf. Jo 1,11), a espera foi bem-sucedida na acolhida de Maria, dos Pastores, dos Magos do oriente, do povo simples, especialmente dos sofredores, esmagados pelo peso da lei. Mesmo que a espera tenha sido ameaçada pela crucificação, o poder de Deus ga-rantiu seu êxito na ressurreição de Jesus.

A primeira espera garantiu seu sucesso há mais de dois mil anos. Nesta espera, bem-sucedida do povo de Israel, nós revivemos a nossa esperança, fixando o nosso olhar em Jesus Cristo. O tempo do advento, essas quatro semanas que prece-dem ao Natal, é um tempo iluminado pela Palavra de Deus. Esta faz memória da espera messiânica com suas promessas

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anunciadas pelos profetas e, ao mesmo tempo a concretização no acontecimento “Jesus Cristo”.

Nesta época do ano em que nos é dado viver o Advento, geralmente nos deixamos seduzir e contentar com as artísticas propagandas comerciais do Natal. Uma emoção que nos é despertada pelas músicas natalinas, pelos enfeites, símbolos e presentes, passa a movimentar compras e vendas e aquecer o mercado. Não se nega o valor da humana sensibilidade que nos motiva à troca de presentes e à preparação da ceia nata-lina. Porém, necessitamos ir além para não perder de vista o maior presente de Deus para toda a humanidade: Jesus Cristo.

Sem Cristo, toda a espera pode ser malsucedida. Daí a necessidade urgente de resgatar o encontro com a Palavra de Deus e confrontar a nossa caminhada na história com a luz trazida pelo Menino de Belém. Caso contrário, corremos o risco de decepcionar nossas esperanças, porque o dia seguinte ao Natal pode ser apenas portador de uma pesada ressaca e prejuízos que nos deixam vazios no coração e nos bolsos.

Seria de nos lamentar se, por acaso, nos deixássemos en-torpecer pelo encantamento das coisas descartáveis e pros-seguíssemos construindo o projeto da vida nos privando da necessária profundidade e segurança que nos é oferecida por Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida.

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6. Atenção... Hoje é o dia certo!

Se existe uma tarefa humana importante, mas também difícil, é a justa administração do tempo. O balanço de nossa vida oscila muito entre o ontem e o amanhã. Difícil é nos equilibrar no hoje e vivê-lo com toda a intensidade e com a melhor qualidade. Arriscamos viver de saudades, ou podemos nos iludir com um amanhã que hoje não é preparado. Também nos podemos equivocar ao levantar muralhas ao passado e ao futuro, criando um “presentismo” que não aceita a memória nem semeia para colher amanhã.

Dalai Lama, com sua sabedoria e experiência nos afirma: “Só existem dois dias no ano em que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã. Portanto, hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e, principalmente, viver”. Quando somos acolhidos pelo sono da noite, depois de termos vivido o dia certo, repousaremos tranquilos e acordaremos para mais um dia certo que a bênção da vida nos concede.

O Papa João XXIII, canonizado no dia 27 de abril de 2014, como o Santo da Bondade e o mentor do Concílio Vaticano II, em sua monumental experiência de vida assumiu um programa com dez compromissos. Todos eles iniciam com o refrão: “Só por hoje...” Em sua homenagem, peço licença aos leitores para registrá-los literalmente:

• “Só por hoje tratarei de viver exclusivamente este meu dia, sem querer resolver o problema da vida, todo, de uma vez.

• Só por hoje terei o máximo cuidado com o meu modo de tratar os outros: delicado nas minhas maneiras; não

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criticarei a ninguém, não pretenderei melhorar ou disci-plinar ninguém, senão a mim.

• Só por hoje me sentirei feliz com a certeza de ter sido criado para ser feliz não só no outro mundo, mas também neste.

• Só por hoje me adaptarei às circunstâncias sem pretender que as circunstâncias se adaptem todas aos meus desejos.

• Só por hoje dedicarei dez minutos do meu tempo a uma boa leitura, lembrando-me que assim como é preciso co-mer para sustentar o meu corpo, assim também a leitura é necessária para alimentar a vida da minha alma.

• Só por hoje praticarei uma boa ação sem contá-la a ninguém.

• Só por hoje farei uma coisa de que não gosto e, se for ofendido nos meus sentimentos, procurarei que ninguém o saiba.

• Só por hoje farei um programa bem completo do meu dia. Talvez não o execute perfeitamente, mas, em todo o caso, vou fazê-lo. E me guardarei bem de duas calamidades: a pressa e a indecisão.

• Só por hoje ficarei bem firme na fé de que a Divina Pro-vidência se ocupa de mim como se estivesse somente eu no mundo – ainda que as circunstâncias manifestem o contrário.

• Só por hoje não terei medo de nada. Em particular, não terei medo de gozar do que é belo e não terei medo de crer na bondade. Durante doze horas de um dia posso fazer bem o que me desanimaria se tivesse que fazê-lo durante toda a minha vida”.

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7. Amizade de guarda-chuvaDentre os tantos esquecidos, eu sou um deles. Nestes dias

andei fazendo uma meditação que brotou de repetidos esque-cimentos. Por incrível que pareça, o objeto esquecido que me fez pensar foi o guarda-chuva. Não são todos os dias, dias de chuva. Nem a chuva cai sem parar, de dia e de noite. A maio-ria dos dias e das noites são dias de sol ou de luar. Podemos dizer que no decurso do tempo os dias e as noites de chuva acontecem como algo extraordinário.

Neste cenário minha referência é o guarda-chuva. Em dia de chuva o queremos junto; apreciamos sua ajuda; precisamos de sua proteção e lhe damos um valor imenso, mesmo que o compremos na rua, a preço baixo e insignificante. Ninguém estranha ver uma multidão com guarda-chuva aberto em dia de temporal. Seria estranho andar com ele armado em dia de sol.

Vou lembrar um fato ocorrido em Porto Alegre. No dia da festa de Corpus Christi, depois de uma intensa preparação e mobilização, uma multidão se reuniu para celebrar. Como o céu estava coberto de nuvens escuras, a maioria se preveniu com seu amigo guarda-chuva. Em plena praça, começando a Missa, presidida pelo Arcebispo, logo começou a chover. O cenário virou guarda-chuvas armados para defender a multidão da água que caía do céu. Como não demorasse serenar, logo foram fechados. Muitos os guardaram em sacolas, outros os colocaram debaixo das cadeiras e, assim, o amigo guarda--chuva deixou de ser importante.

No entardecer, as equipes de limpeza e ordenamento da estrutura utilizada ficaram surpresas por encontrarem tantos guarda-chuvas abandonados e, a maioria estava debaixo das cadeiras. Comentando o fato, um jovem falou: “Observem

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bem o que acontece com o guarda-chuva! Quando se precisa dele, logo é lembrado e valorizado. Quando não precisamos mais, facilmente é esquecido. Assim acontece com muitas amizades”.

Correr em busca de amigos em horas de crises e dificulda-des parece ser um fato humano muito normal. Fazer-se amigo de quem está passando dificuldades revela um alto senso de humanidade. O que não fica bem é esquecer os amigos feitos na crise, quando tudo anda bem para nós. Amizade de guarda--chuva é esse tipo de amizade oportunista que decepciona quem está sempre disposto a ajudar e servir.

Há sempre um risco para quem cultiva a amizade de guarda--chuva. Exercitar esse modo de fazer amigos pode se tornar um caminho de solidão.

Um dos critérios da verdadeira amizade é que seja durável. Usar os outros em proveito próprio e em momentos passa-geiros, vai criando um clima de desconfiança e isolamento.

É verdade que o amigo certo se manifesta na hora incerta. Mas não esqueçamos que o elegante trato com o guarda-chuva pede que o deixemos guardado com carinho e em condições, quando é dia de sol, para podermos contar com ele em dia de chuva. Amigos para sempre é o que nós devemos ser, na primavera ou em qualquer das estações, nas horas tristes, nos momentos de prazer, amigos para sempre.

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8. A louca teimosia de se enganar

Geralmente nos intrigamos com quem nos engana. Sentir-mo-nos enganados e traídos é uma agressão que nos atinge naquilo que é muito sagrado, isto é, o direito de integridade. Os enganos são sempre atentados que roubam em nós algo que prezamos. Toda investida enganadora é uma usurpação de nossa dignidade.

Temos muita facilidade de acusar quem nos engana. Cria-mos mecanismos de defesa para que ninguém invada nossa privacidade e nossa liberdade. Às vezes, nos armamos tão fortemente que nos permitimos o direito de nos enganar e nos achamos vítimas de todos, menos de nós mesmos.

A louca teimosia de nos enganar sempre acusa os outros como agentes de nossas amarguras e insucessos. Criamos couraças em torno de nós; projetamos imagens perfeitas de nossa identidade por conveniência e, às vezes tentamos até negociar com Deus nossos enganos para salvar nossas apa-rências. Já vi cidadãos, em tempo de política, frequentarem a Igreja, com alto estilo de piedade, para dizerem-se de bem com Deus e conquistarem o voto do povo.

O Evangelho tem páginas vivas, que registram a louca teimosia de se enganar. Uma delas é a parábola do fariseu e do publicano. O fariseu pôs-se em oração diante de Deus para louvar enganosamente a si mesmo. Desenhou uma imagem perfeita de um elegante sepulcro, escondendo a podridão que estava dentro dele. Este voltou para casa pior do que quando chegou. O publicano, ao contrário, abriu-se na sinceridade

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e se expôs assim como era diante de Deus. Este voltou para casa justificado (cf. Lc 18,9-14).

Outra página evangélica que denuncia a louca teimosia de se enganar é a parábola do homem rico que, diante da abundante colheita, manda demolir os celeiros antigos e pede que se construa tudo novo. Dizia a si mesmo: “Tens uma boa reserva... descansa, come, bebe, goza a vida!”. Mas Deus lhe diz: “Tolo! Ainda nesta noite tua vida será tirada...”

Em menor ou maior proporção, a louca teimosia de se enga-nar pode ser também a nossa tentação. Tantas vezes, sabemos o caminho e preferimos atalhos. Tantas vezes, temos clareza do que é justo e tropeçamos em injustiças no trato conosco mesmos, com os outros, com a natureza e com Deus. A busca da justa medida é o sábio caminho de quem busca superar a louca teimosia de se enganar.

Conta-se que Alexandre, príncipe e rei da Macedônia, antes de morrer chamou os súditos e expressou seus três últimos pedidos:

1o) Que os mais eminentes médicos da época carregassem o seu caixão para que não se enganassem que têm o poder de cura perante a morte.

2o) Que todos os seus tesouros conquistados em vida fos-sem espalhados no caminho até o cemitério, lembrando que os bens materiais aqui conquistados, aqui permanecem.

3o) Que o colocassem no caixão com as duas mãos expos-tas, balançando ao vento, para que ninguém se enganasse e todos se lembrassem que de mãos vazias viemos e de mãos vazias partimos. Só levamos o amor traduzido em obras de misericórdia.

Somos o que somos diante de Deus.

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9. Ajudar e ser ajudadoSomos seres em permanente necessidade de ajuda. Em

momento algum de nossa vida podemos dizer: “Eu não pre-ciso da ajuda de ninguém!”. Desde a nossa concepção e até a nossa partida deste mundo, necessitamos ser ajudados a todo o instante. Mas na mesma proporção podemos e devemos ajudar, pois “quem guarda a vida para si, perde-a!”.

Por incrível que pareça, é comprovado que, entre os huma-nos, é mais fácil ajudar do que reconhecer a necessidade de ajuda. A autossuficiência é uma tentação que ronda em todas as idades. Reconhecer-nos necessitados, parece uma certa afronta à nossa autoafirmação. A rebeldia de apropriar-se de todas as possibilidades por conta própria é um impulso natural. Porém, a lógica da vida não concorda com esta tendência.

Num ímpeto de vaidade, dizem que um famoso artista de sucesso internacional, ao chegar numa localidade onde iria apresentar-se, foi abordado por um humilde cidadão. Este lhe disse: “Bem-vindo à nossa cidade! Em que eu posso lhe ajudar?”. O artista cheio de sucesso e orgulho lhe disse: “Eu não preciso de ninguém! Todo o sucesso do mundo é meu, e pronto!”.

O humilde cidadão era um homem sábio e logo lhe disse: “Que ridícula sua afirmação: ‘Eu não preciso de ninguém!’. Quem lhe deu a vida? Quem lhe garante o ar para sua respira-ção, a luz do sol de cada dia e a água benfazeja? Quem lhe faz as brilhantes roupas e sapatos para se apresentar às multidões e lhe dá os aplausos para o sucesso? E o alimento para seus banquetes? Quem cultiva os campos e semeia o trigo para o pão de cada dia?”.

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Se existe algo ridículo para os humanos é autossuficiência. A interdependência é um constitutivo normal e lógico da vida e, principalmente, da convivência. Toda a natureza é um hino à vida em comunhão. Como poderia germinar a semente sem a água? E para que serviria a água se nada germinasse?

Quando nos reconhecermos como necessitados de muitas e permanentes ajudas, teremos mais facilidade de entender as pessoas que também experimentam a mesma lógica para viver. Se nos sentimos agraciados pelas muitas ajudas de cada dia que nos vêm dos outros, certamente nos abriremos para ajudar a quem necessita de nós. E quem não necessita?

A fé cristã é o melhor argumento para a gratidão em relação a toda a forma de ajuda. O que temos nós que não recebemos de Deus? E o que devemos fazer com tudo o que dele rece-bemos? Nosso reconhecimento só será justo se toda a ajuda recebida vai se transformando em ajuda para os outros. O dom recebido se multiplica quando se fizer doação e ajuda para os outros.

Ajudar e ser ajudado é uma via de duas mãos que possibi-lita o trânsito livre para a promoção da vida e a harmonia de uma convivência solidária. Superando a autossuficiência e o egoísmo, podemos ir construindo a civilização do amor com a mente, o coração e as mãos.

Quem na vida não passa por horas de duras provações, onde nos vemos carentes e necessitados de algo? Como é importante quando alguém chega e nos pergunta: “Em que posso lhe ajudar?”.

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10. As sombras do nosso caminho

Já vi gente brigando com a própria sombra imaginando estar sendo perseguido por alguém. Eu mesmo, em uma noite fria, ao ser chamado para atender um doente, acendi a luz da garagem e, com pressa, ao chegar perto do carro assustei-me do movimento de minha própria sombra, achando estar diante de um assaltante.

Também não faltam aqueles que reclamam quando as nuvens ou a neblina nos oferecem um dia de sombra. Dia cinzento pa-rece nos oprimir, deixando-nos em estado de natural mal-estar. Uma das atenções dos bons engenheiros atuais é o cuidado para que nenhuma repartição das casas, ou dos edifícios fique condenada à sombra. Popularmente, quando alguém passa a ser uma presença indesejada em nossa vida e nos persegue, logo o intitulamos como nossa sombra.

Em geral a sombra desperta nas pessoas uma relação de desconforto. Na própria Bíblia a realidade da sombra passa a ser uma figura simbólica também do limitado e do negativo. Na última oração, o Rei Davi declara: “Os nossos dias são como uma sombra que passa, e não podemos escapar da morte” (1Cr 29,15). Jó também desabafa e diz: “O ser humano, nascido de mulher, tem a vida curta, mas cheia de inquietações. É como a flor que se abre e logo murcha, foge como a sombra e não permanece” (Jó 14,1-2). “Como a sombra que se desfaz é todo o mortal!” (Sl 39,7).

Porém, é justo que nos demos conta também da relação positiva com as sombras do caminho. Um antigo provérbio chama atenção e nos ajuda a perceber o lado bom da sombra:

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“Nunca tenhas medo das sombras. Elas somente mostram que há uma luz que resplandece por perto”. É a lei dos contrastes. Não haveria sombra, se não houvesse luz! E, certamente não daríamos o devido valor à luz, se não existissem sombras e trevas.

Além do mais, temos muitas experiências na vida real da importância das sombras confortadoras. Num dia escaldante de sol, andamos e trabalhamos, suamos e cansamos e, ansio-samente, procuramos uma sombra amiga que nos abrigue. Bendita sombra que se dispõe a aliviar o peso e o calor do dia!

Se na Bíblia temos textos que situam a sombra como sím-bolo do negativo, também comprovamos citações positivas, que exaltam o simbolismo da sombra. Assim o Salmista reza: “Guarda-me como a pupila dos olhos, protege-me na som-bra de tuas asas” (Sl 17,8); “Tu que estás sob a proteção do Altíssimo e moras à sombra do Onipotente, dize ao Senhor: ‘Meu refúgio, minha fortaleza, meu Deus, em quem confio” (Sl 91,1-2). Isaías dá graças a Deus que acompanha seu povo: “Senhor, meu Deus... Tu te tornaste proteção para o fraco, sombra no tempo do calor” (Is 25,1-5).

Na vida, nem tudo é tão negativo como parece! Benjamin Franklin dizia: “Um otimista vê novas oportunidades em toda a calamidade. Um pessimista vê novas calamidades em toda a oportunidade”. Parece ser um tanto normal encararmos as sombras apenas pelo seu lado negativo. Porém, a vida real nos ensina que estas também têm sua dimensão positiva e verdadeira.

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11. Abençoados e abençoadores

Quem de nós não lembra uma prática simples de religio-sidade e familiaridade muito em voga no passado, onde os filhos pediam a bênção aos pais antes de dormir, ou na saída de casa? “Bênção, papai!” “Bênção, mamãe!” “Bênção, pa-drinho!” “Bênção, madrinha!” E a resposta saía do coração e dos lábios dos pais ou dos padrinhos, dizendo: “Deus te abençoe meu filho!”. “Deus te abençoe meu afilhado!” Tudo era tão próximo e carregado de amor e sintonia!

Hoje, muitos costumes da família patriarcal desapareceram. Em certas regiões, porém, continuam as tradições simples que fazem parte de uma relação sagrada e respeitosa. A bênção de pais a filhos ainda continua! Mesmo entre pessoas amigas que desejam se apoiar em momentos especiais da vida costuma-se desejar: “Deus te abençoe!”.

Se, de um lado, diminuiu a bênção familiar, a procura da bênção continua e aumenta nas praças onde esta é ofereci-da, seja por ocasião do Natal ou nas festas dos padroeiros. Sou testemunha disto quando a imagem de Santo Antônio é levada aos principais parques da capital, Porto Alegre. As filas são intermináveis e o clamor de cada pessoa brota das dores silenciosas, dos sonhos de uma vida melhor, de ajuste na vivência familiar, da angústia por trabalho e a certeza das atenções de Deus.

O significado da palavra “bênção” vem do latim: “bene--dicere” = falar bem de..., desejar algo bom a alguém. Quem primeiro bendiz é Deus. Sua bênção sempre é eficaz. Por isso a suplicamos, porque nos sentimos necessitados desta força de

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vida. Na verdade, Cristo chega no meio de nós como a bênção personificada de Deus. Por onde passa chega a bênção. Nele se junta a bênção que vem e a bênção que vai. Por ele nos tornamos abençoados e abençoadores.

A bênção é sempre o encontro de Deus conosco. O bem desejado por Deus a todos os que a ele recorrem e a nossa acolhida se unem na bênção. Se Cristo é a bênção maior, há muitas outras bênçãos que nos são oferecidas em cada momento de nosso viver. A própria vida e possibilidade de convivência já são uma bênção permanente. Há incontáveis bênçãos dentro de nós, ao nosso redor, em nossa frente, acima de nós. Somos abençoados sempre! Importante é exercitar a sintonia com as mil bênçãos que nos envolvem.

Sendo tão abençoados, também somos chamados a ser abençoadores. Sempre, e a todos, podemos desejar “algo bom”. Bendizer é o contrário de maldizer. Bênção é o contrário de maldição. A medida da bênção que nós desejamos e quere-mos, deve ser também a medida da bênção que precisamos comunicar aos outros.

Deus te abençoe! É uma expressão carregada do melhor que podemos desejar a alguém. Este desejo que brota do senso de humanidade e da fé, pode sair dos lábios de todos. Porém, se torna mais autêntico quando brota do coração que sintoniza com Deus sempre pronto a nos abençoar.

Deus te abençoe ao começar o dia, ao sair para o trabalho ou para a escola, ao empreender uma viagem ou iniciar uma obra! Deus te abençoe na doença para que chegue a cura! Deus te abençoe sempre é o que sempre podemos desejar, sem medo de nos enganar.

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12. Animados e animadoresConhecer a origem da palavra pode nos ajudar a entender

melhor sua verdade e densidade. A palavra “ânimo” vem da língua latina. Tem a ver com vida, disposição de espírito, coragem e determinação. Penso que mais do que a simples palavra é tão importante ser animado e animador, como con-viver com pessoas animadas e animadoras.

Ânimo e desânimo andam lado a lado, como o bem e o mal, o ótimo e o péssimo. O cenário dos humanos vê um pouco de tudo: gente animada e empreendedora e gente desanimada e desanimadora. Há pessoas andando com toda a velocidade, motivadas em acumular para si e há gente magnânima que investe todas as energias em promover os outros. Vemos ao nosso redor, pessoas que não param de lutar por causas justas e por grandes amores, e gente que deixa o tempo correr sem qualquer empenho construtivo. O que é pior é ver pessoas como um imenso potencial destruindo vidas e bens da sociedade.

O que torna alguém animado e animador do jeito certo? O tempo é o grande juiz. Já ouvimos falar muito de “fogo de palha”. Acende rápido e se apaga rapidamente. Assim são as pessoas que se entusiasmam num momento de forte clima emocional; prometem mudar de vida e fazer milagres e, pas-sando ao cotidiano da normalidade da vida, terminam o gás e voltam à mediocridade.

Animados e animadores do jeito certo, são as pessoas que carregam consigo um combustível para a vida, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e até à morte. Francisco de Assis, sempre foi animado. Até os vinte e cinco anos, de um jeito equivocado. Depois dos vinte e cinco anos, entrando no processo de conversão, tornou-se animado e animador a

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ponto de abraçar, com ânimo e louvor a criação e o Criador, na doença e na morte.

Animados e animadores do jeito certo são os que carregam e cultivam um segredo interior, chamado mística cristã. É como uma fonte e um rio subterrâneo que abastece as nascentes do caminho sem jamais secar. Não são anjos, mas humanos que se agarram no Mistério Pascal de Cristo. Estes e estas conseguem fazer a leitura pascal da vida e da história na certeza de que a cruz faz parte de nossa bagagem cotidiana, mas a ressurreição é sempre o final feliz de nosso investimento de amor.

Às dez mil pessoas, congressistas da Diocese de Roma, no dia 19 de junho de 2013, o Papa Francisco dizia animado e animador: “Os cristãos devem ser revolucionários. Não devemos ficar sentados rezando, lamentando-nos ou esperan-do uma ajuda do céu. Temos que atuar! Ir às periferias, não desanimarmos, embora não seja fácil. Coragem! É a palavra chave. Sem coragem não vamos a lugar nenhum”.

Continua o Papa: “Cada vez mais adolescentes estão sem esperança. Fala-se de suicídios, depressões. A primeira tarefa do cristianismo é restaurar a Esperança, restaurar a Vida com V maiúsculo”. Enfim, em tempos de acentuados desencan-tos entre tantos meios sofisticados e com fins equivocados, necessitamos resgatar o ânimo de viver, habitar esta terra e conviver segundo os projetos de nosso Deus sempre animado e animador.

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13. A alegria de viver agoraÉ comprovado que os assuntos mais comentados, hoje,

nos encontros informais, nas ruas, nas famílias, no trabalho e também nos meios de comunicação social, são assuntos de crises, doenças, dificuldades, decepções e desalentos. E o pior é que, em lugar de melhorar o discurso do cotidiano, parece complicar-se cada vez mais, porque os problemas de hoje são globalizados. Rapidamente mudam os cenários e também as disposições de investir no melhor.

Nesta situação, corremos o risco de encarar os tempos novos, como sendo tempos que devemos viver inevitavel-mente. Por isso nos resignamos passivamente; afligimo-nos e vamos tecendo nossas lamentações, ampliando a lista de nossas agruras. Outra forma de nos trair é procurar fugir do nosso momento presente, repetindo o refrão: “No passado era melhor!”. Com o pretexto de que estamos envolvidos na incerteza e nos desafios dos tempos novos, arriscamos duvidar de tudo e de todos. Na queda da confiança deslizamos para um isolamento no tempo e no espaço, aumentando a multidão dos solitários.

A primeira coisa que se pede a nós, cristãos, é que amemos o nosso tempo, que não vivamos de amargas lamentações e nem sonhemos com uma paz que não nasça da cruz. Cada um de nós é chamado a descobrir e cultivar a responsabilidade, a dor e o júbilo da nossa hora, as exigências renovadoras de nosso tempo. É importante para a vida e a fé repetir sempre de novo a sábia pergunta: “O que me pede hoje o Senhor?”. O que esperam e aguardam hoje de mim os meus irmãos e minhas irmãs?

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Diante dos novos e muitos desafios do nosso tempo, resta uma única resposta: a fidelidade ao nosso momento, a alegria insubstituível de viver este único tempo colocado por Deus à nossa disposição. “Minha alma está agora conturbada! O que direi? Pai, livra-me desta hora? Foi precisamente para esta hora que eu vim” (Jo 12,27).

O que significam os tempos novos? Como se apresentam? É lógico que qualquer tempo, vivido em plenitude, é novo todo dia. Quando entramos na monotonia da vida e nos deixamos envolver pela ideia de que os dias são irremediavelmente iguais, envelhecemos logo. Assim tudo se torna pesado e triste, seja o trabalho, a convivência familiar e social e até mesmo nossas práticas religiosas. As coisas repetidas diariamente com superficialidade e sem amor, nos cansam.

Os tempos novos, com suas incontáveis descobertas e pro-gressivos avanços em seus meios, pressionam sempre mais as pessoas à exterioridade e à superficialidade. Possivelmente aqui está uma grande causa de nosso desconforto e insegurança. É neste contexto que se manifesta o incontido clamor de nossa interioridade a fazermos a experiência de Deus.

Os tempos novos são também fecundados pela ação do Espírito Santo e tempos favoráveis. É a alegria de viver agora, nestes tempos difíceis do Reino, mas providenciais para uma fé mais vigorosa, uma esperança mais animadora e um amor mais sincero.

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14. A família que está em mim

Conta-se que em 1938 no campo de concentração de Da-chau, Alemanha, no meio das torturas e humilhações, um prisioneiro foi interrogado por um companheiro sobre a sua família de origem e a experiência de dor da separação. Com sabedoria, o prisioneiro respondeu que a dor profunda de seu coração não vinha da separação familiar, mas da indignação de estar vivendo a atrocidade que o fazia companheiro de tantos inocentes, vítimas da inexplicável maldade humana.

O companheiro de infortúnio insistiu em perguntar a respeito da dor da separação familiar. Foi então que ele respondeu: “Eu sei amenizar esta dor, porque, perto ou longe, no infortúnio ou na esperança, a família está em mim”. Esta declaração pode parecer simplista e pequena, mas carrega consigo uma verdade de imenso significado.

Cada leitor, onde quer que esteja, sabe que não é um ser desvinculado e avulso, nem alguém que apareceu por geração espontânea. A família está em mim! Até certa medida eu posso dizer “eu sou eu!”. Porém, em outra medida, tão importante quanto a primeira, eu devo dizer: “eu sou nós!”, isto é, família, comunidade e humanidade.

É desastroso para a pessoa ver-se e tratar-se como alguém desvinculado, cujo ser proclama total individualismo e au-tonomia. Talvez aqui se encontre uma das graves causas de tantas famílias que se constituem e logo se dissolvem. Pior ainda, quando, a uma falência familiar, sucede-se uma segunda, uma terceira ou mais. A grande competência para constituir

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família, começa pelo ser família que a pessoa em si mesma deve cultivar.

A relação com o outro ou a outra, começa na interioridade, onde a pessoa cultiva uma sadia abertura para a alteridade. É bem verdade que existem pessoas com quem todos gosta-riam de conviver, mas em contrapartida, existem outras com quem ninguém consegue conviver. Isto não depende do nível cultural, nem de classe social, nem da pertença religiosa. Ser família é um dom que já nos é concedido com a vida e a graça da convivência. Porém, tornar-se família é uma tarefa a ser exercitada no cotidiano de nossa história, desde o início até o fim.

Nesta experiência de família que está em mim, é importante a consanguinidade, mas ser família é muito mais. O próprio Cristo nos questionou sobre este assunto e nos respondeu: “Quem é a minha Mãe e quem são os meus irmãos?”. E, olhando em volta para os que estavam sentados ao seu re-dor, disse: “Eis minha Mãe e meus irmãos. Pois quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe” (Mc 3,33-35).

Concluindo, podemos dizer que a família que está em mim me permite uma globalidade de relações enriquecedoras, desde as primárias e humanas, até as mais divinas e infinitas. Sabe-se muito bem o preço para harmonizar a individualidade com a familiaridade, pois todos somos diferentes, mas é nesta diferença que a unidade se torna fecunda e se enriquece. A família está em mim!

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15. Andar parando e parar andando

Convencionalmente o verbo parar leva a pensar em imobi-lidade e andar é fazer caminho. Quando se diz que um veículo parou, simplesmente se afirma que todo o conjunto mecânico já não se movimenta. Um animal pode parar de caminhar e deitar-se numa sombra, mas pode continuar ruminando e dinamizando todo o seu sistema biológico. Porém, todo o animal, ao morrer, cessa de existir, a não ser na lembrança de quem pertencia.

Quando decidi desenvolver uma breve reflexão com este título “andar parando e parar andando”, pensei nos humanos e em seu potencial, dignidade, valor e liberdade, que trans-cendem a todas as máquinas do mundo e a todos os animais mais adestrados e encantadores. Geralmente andamos dis-traídos. Pouco pensamos no mistério que somos nós! Por termos tanto dinamismo que se cruza em nossa convivência, às vezes preferimos nem pensar no humano que somos, para não nos complicar.

Andar, correr, agir, descansar e comer não é o lado único e nem o mais forte dos humanos. Também os animais assim se ocupam, adoecem, morrem e tudo termina. Não é de estranhar que nós, humanos, podemos nos equivocar e nos medir pela correria e por ocupações que preenchem a nossa agenda. Se, de um lado, nos orgulhamos por andar de pressa, por outro, nos expomos ao perigo de ir parando naquela dimensão que deveria nos sustentar como humanos na sociedade e no mundo e garantir a nossa eternização.

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Aqui penso em tanta gente que vai envelhecendo sem ga-rantir razões para manter a grandeza de uma vida e gostaria de desistir quanto antes de viver. Andar parando é próprio de quem já não sonha mais; vai estancando o veio da criativi-dade; ocupa-se em lamentar-se da vida e xingar as pessoas com quem convive ou com quem as cuida. Andar parando é poder dispor de tantos recursos e possibilidades fechando-se numa vida sem horizontes e ocupando-se apenas em curtir amarguras.

Andar parando é próprio de quem é surpreendido por uma doença e se dá o atestado de desengano antes do tempo. Em nada mais pensa, a não ser em morrer. Nesta situação de fecha-mento para a vida, um dos primeiros acusados é Deus. Nesta situação, não é de estranhar ver pessoas que, durante toda a vida, foram piedosas, chegarem a negar seu passado de fé.

Mas se existe este risco de andar parando, felizmente é mais frequente o lado contrário, isto é, dos que param andando. São essa multidão de homens e mulheres que sabem envelhecer na ternura, dos que sabem de seus limites, mas neles não se prendem e vão driblando suas dores com bom humor, amor e gratidão por seus cuidadores. Param andando aquelas pessoas que sabem se programar mudando sua rotina passada por leituras construtivas, orações e até escrevendo as conclusões de suas experiências de sabedoria.

Se corremos o risco de andar parando, lembremos que a vida não para no tempo mas se projeta para a eternidade. Por este motivo, é conveniente aprender a parar andando, já que a vida nos oferece mil recursos que só o amor pode administrar.

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16. A difícil tarefa de educar o coração

A vida ensina que, a tudo o que é muito fácil, se dá pouco valor. Em tudo o que é mais difícil está escondido um ines-timável valor. Assim acontece também no caminho de nossa maturidade humana e em nossa conversão cristã. Educar o coração é uma missão que temos ao comando de nossa res-ponsabilidade. Podemos ser ajudados ou atrapalhados, favo-recidos ou impedidos, mas, em última instância a educação do coração passa por nossa consciência livre e responsável.

Por incrível que pareça, a história conhece pessoas de uma celebridade imensa, gente que deixou obras altamente benéficas para a humanidade, portadoras de uma genialidade sem par, mas seriamente mal resolvidas em seu temperamen-to, em seus sentimentos e em suas relações. Cada dia mais comprovamos que existem grandes inventos, excelentes para os outros, mas que pouco ou nada ajudaram o inventor a me-lhorar o seu coração.

Educar o coração da gente é uma missão ininterrupta que envolve cultivo e cuidado naquele campo indevassável, onde somente a pessoa e Deus conseguem se entender. Não é tarefa fácil lidar consigo mesmo. Ao natural, em cada pessoa sempre existe o impulso de querer mudar os outros e esconder a si mesmo de toda mudança.

Há uma página do Evangelho, onde Cristo bate de frente com os fariseus que viviam se justificando com suas leis hu-manas e iam endurecendo sempre mais o coração ao bem, à verdade e à beleza da vida. A hipocrisia era a realidade mais detestável que Jesus denunciava.

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Num momento de ensino e denúncia, Jesus chama a mul-tidão perto de si e declara: “O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior... É de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, am-bições, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas essas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7,14-23).

Se, por desgraça, é do coração humano que partem tantos males, também é por graça, que é do coração humano que brotam tantos bens. São as atitudes construtivas e positivas que contrastam com a listagem anterior denunciada por Cristo, como frutos de corações malformados e falsos.

Para educar o coração não há escolas especializadas, nem universidades qualificadas. Há pessoas que podem ajudar, mas não mestres perfeitos, educadores do coração humano. O cristão tem um referencial de absoluta confiança na difícil tarefa de educar o coração: Jesus Cristo. “Aprendei de mim porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).

O Mestre Jesus sempre ensina como ser, como fazer e o que dizer. Ele é o Mestre da compaixão, porque seu coração, educado no amor do Pai, refletia a grande paixão pelos huma-nos sofredores e necessitados de cura, de perdão, de inclusão e de vida plena. Por isso que, para Cristo, nada do que era dos humanos lhe era estranho.

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17. Buscando o bem do outro, encontramos o nosso

Em meus longos anos de sacerdócio, já acompanhei e acompanho muitas pessoas em sua hora derradeira, também celebrando funerais. Mesmo que o sacramento da Unção dos enfermos e o ritual de exéquias sejam os mesmos para todos, cada pessoa teve e tem uma história diferente. A intensidade vivida ou a formalidade conveniente, até mesmo a indiferença destes momentos, depende da história que cada pessoa viveu ou vive.

Dizem os bons observadores, que para podermos ver o todo de uma paisagem, precisamos nos posicionar num vértice favorável. Para avaliarmos a vida, nada melhor do que nos vermos a partir da morte. A morte é o espelho da vida. De forma espontânea, durante o velório, ou até mesmo em depoimentos provocados, as pessoas com quem conviveram sabem tecer elogios às pessoas de bem e fazer memória da bondade, dos gestos, da dedicação amorosa à família, das obras de caridade, do bom trato ao semelhante e da sinceridade da fé.

Quando pouco ou nada se diz, quando poucos ou ninguém acompanha o funeral, quando o ritual transcorre em tom de conveniência, algo estranho foi tecendo a vida desta pessoa que partiu. Antes de Cristo, Platão dizia: “Buscando o bem de nosso semelhante, encontramos o nosso”.

O bem realizado em favor das pessoas, vai eternizando a nossa vida e a nossa passagem pela terra. Dizem que o pior da morte não é morrer, mas ser esquecido. Quem planta o bem nos corações, já aqui na terra vai colhendo frutos de satisfação interior, de felicidade e realização. Ao morrer, as pessoas do

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bem não morrem, mas permanecem na lembrança e na sau-dade como luzeiros no firmamento. O amor eterniza a vida.

A Ressurreição de Cristo não aconteceu por decreto, nem mesmo por um gesto de favoritismo de Deus. Se é buscando o bem do outro que encontramos o nosso, não poderia ter acontecido diferente para Jesus. Num dos discursos, Pedro afirma à gente de Cornélio: “Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia, a começar pela Galileia, depois do Batismo pregado por João: como Jesus de Nazaré foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Por toda a parte ele andou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo; porque Deus estava com Ele... Os Judeus o ma-taram, mas Deus o Ressuscitou no terceiro dia”.

O critério de avaliação de uma vida não vem pelos títulos, nem pelas posses, nem mesmo por se dizer membro de uma denominação religiosa, mas pelo bem concreto que praticou. “Não nos cansemos de fazer o bem, pois no devido tempo colheremos o fruto, se não desanimarmos. Portanto, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos, principalmente aos da família da fé” (Gl 6,9-10).

A busca do bem do outro é uma oportunidade permanente que pode ser exercida de incontáveis modos, desde um sor-riso dado a quem chega, uma palavra amiga de valorização e apoio, um gesto de atenção e escuta, uma ajuda solidária, até uma pequena ou grande ação caritativa na hora das carências humanas.

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18. Beleza sempre nova e atual

Nos primeiros momentos do pontificado do Papa Francis-co, chamou-me atenção a nobreza de seus gestos e palavras no encontro dos comunicadores que estiveram trabalhando durante o Conclave. Diante de mais de cinco mil pessoas, manifestou seu reconhecimento pelo bom desempenho e elo-giou sua contribuição nesta hora, onde as atenções do mundo estavam conectadas com o Vaticano.

Com fino trato, não deixou de dar um recado para chamar os comunicadores à corresponsabilidade na promoção e difusão da verdade, do bem e da beleza. A verdade e o bem parecem estar na entrada da porta da lógica de qualquer instituição séria. Mas a beleza parece despontar como uma realidade que deverá merecer uma nova atenção.

Aliás, João Paulo II e Bento XVI já se referiam à beleza como um componente necessário na Liturgia, para a humani-zação do mundo e para a nova evangelização. Igualmente os últimos cardeais responsáveis do Conselho Pontifício para a Cultura, como Paul Poupard e Gianfranco Ravazi, apontaram a beleza como porta de entrada para aproximar o mundo atual de Deus e do Evangelho.

Lembramos aqui um depoimento de Santo Agostinho, re-gistrado no seu livro das Confissões: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu fora. Estavas comigo e não eu contigo. Exalaste perfume e respirei. Agora anelo por ti. Provei-te, e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz”.

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Evidentemente não tratamos aqui a beleza numa visão esteticista, nem apenas artística. A Beleza primeira, fonte de toda a beleza, é o coração e o rosto de nosso Deus. Ele é a máxima beleza e todas as belezas verdadeiras dele procedem. Sabemos que a beleza é uma das propriedades fundamentais de todo o ser, de todas as criaturas.

A beleza de Deus, está também escrita em nossos corações, pois nós nos confirmamos como: “sua imagem e semelhança”. Por este motivo, não podemos estranhar em nós o incontido desejo de harmonia e maravilhamento. Essa beleza pode dar--se na natureza que nos rodeia e nos aponta para um mistério velado e revelado. São Francisco, em seu Cântico das cria-turas, confirma-se como um ótimo leitor da beleza de Deus na criação.

Beleza inesgotável e sempre viva é também aquela que se dá nas obras artísticas produzidas pelo ser humano. Estas conseguem expressar, na matéria, maravilhas intuídas e ao mesmo tempo desconhecidas. Só ao ser humano é permitida a captação da beleza. Esta se torna um aspecto fundamental na educação, pois é através dele que se consegue alcançar um inestimável aprofundamento na captação do ser e na riqueza da experiência.

A preocupação pela verdadeira beleza em nossa experiên-cia cristã, não é um luxo da vaidade humana, mas uma porta necessária para a experiência de Deus. A Transfiguração de Cristo, onde se manifestou toda a beleza, foi uma amostra antecipada de sua ressurreição para animar os apóstolos a enfrentarem o que viria na hora da Cruz. Final feliz e be-leza eterna inaugura-se definitivamente para nós, no Cristo Ressuscitado.

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19. Cruz nossa de cada diaA cruz é assunto difícil de se falar. Mais difícil é aceitá-la e

pesada demais para carregá-la. Num encontro informal de ami-gos, depois de terem participado da celebração da Sexta-feira Santa, abriu-se um diálogo interessante. Inclusive comentava--se o sermão do Padre. Um amigo dizia para o outro: “Eu tenho dificuldade de pensar e de ouvir falar da cruz, mas acho que preciso me acostumar, porque não dá para pensar e falar de Cristo, sem cruz”. Outro afirmava: “Eu detesto a cruz e não a aceito de jeito nenhum!”. Um terceiro, muito calmo, dizia: “Eu também não lido fácil com a cruz, mas preciso aceitá-la porque sem ela não consigo viver minha fé”.

Cruz é assunto para não se falar em qualquer lugar e nem de qualquer modo. Neste bate-papo dos amigos, há verdades muito sábias. O primeiro desabafo revela um caminho de conversão. “Preciso me acostumar!”. Esta não parece ser uma atitude passiva de um acomodado na fé. Este amigo, como tanta gente, gostaria de seguir um Cristo fácil e festivo, elegante e light, mas a sua sinceridade de fé não lhe permite. Ele sabe que sem o Crucificado, não existiria o Ressuscitado. Então sua fé seria vã. Tantos deuses sem cruz já foram inventados na história!

O segundo amigo confessou que não aceitava a cruz de jeito nenhum e ponto final. Então surge a pergunta: como pode uma pessoa assim participar de uma cerimônia de Sexta-Feira Santa? Quem o conhecia melhor sabia que ele era um bom cristão, mas não admitia a cruz imposta a ele e a tanta gente. Cruz imposta não se pode aceitar! São tantas cruzes que pe-sam demais nos ombros dos pobres, desprezados e excluídos; são as cruzes insuportáveis das crianças abandonadas e dos

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jovens que se veem aprisionados pela droga; são as cruzes que se multiplicam nas periferias sociais e existenciais. Foi por estas e tantas outras que o Cristo foi crucificado para garantir a possibilidade de redenção.

O terceiro amigo se faz, um pouco, representante de todos nós que nos dizemos cristãos. Sabemos de nossa tendência natural de fugir da cruz e adorar apenas o Ressuscitado. Porém, este Ressuscitado nos disse: “Se alguém quiser seguir-me, tome a sua cruz, cada dia, e siga-me!” (Mc 8,34).

Nós somos discípulos da cruz proposta e não imposta. Esta cruz tem um nome que se chama: “AMOR”. Até mesmo, porque não existe amor sem cruz e nem cruz libertadora sem amor. Acolher a cruz proposta não é masoquismo, mas sabedoria e dignidade: “Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, não poderá produzir frutos” (Jo 12,24).

A proposta da cruz traz consigo a lógica da vida nova. Só há certeza que a chama se acende, quando há uma vela que se doa. Só há um filho que nasce, quando há uma mãe que se dispõe para o parto. Só há um dia que amanhece quando uma noite chega e se dispõe a passar. É assim: “Quem quiser guardar a vida para si, perde-a e quem a doa por amor, garante-a” (cf. Mc 8,35). Bem-vinda à cruz nossa de cada dia!

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20. Católico pode usar mantras?

A palavra Mantra tem origem no Sânscrito, antigo idioma da Índia. Para os Hindus, pronunciar ou ouvir um mantra é uma forma que favorece a ativação das qualidades divinas, abrindo nossas mentes e nossos corações para os planos su-periores. “Um mantra é basicamente uma oração” (Swami Vagishanada). O segredo do mantra é a repetição que favo-rece a concentração da mente, o relax corporal e a sintonia do espírito. Mantra não é o ponto de chegada, mas uma ajuda para se pôr em estado de meditação.

Originariamente, mantras designam sons repetidos que atingem a corrente sanguínea e provocam a entrega da mente. Aliás, a dimensão da passividade correta é um elemento indis-pensável para a experiência do mistério. Se para nós cristãos não cabe o mantra segundo a sua origem, como som difuso e indefinido, não há porque duvidar do “estilo mântrico” como um ótimo recurso para a oração, a meditação e a contemplação.

Nossa linguagem e nosso pensamento são limitados e, até mesmo, inadequados para expressarem e refletirem a simplicidade e a atualidade deste mistério que nos envolve. Na realidade não é só de linguagem, nem só de pensamento que precisamos. Necessitamos sintonizar com o mistério que existe em nós, com o silêncio, dentro do qual vemos nosso próprio espírito. Uma palavra ou uma expressão forte pode nos ajudar. E a ajuda é tanto maior quanto melhor é o estilo musical.

Quando as pessoas prestam atenção ao que há de melhor em si mesmas, escutam suas vozes íntimas, percebem que são o

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eco de outra voz anterior. Dessa percepção temos expressões em todas as culturas. Ninguém pode deter essa verticalidade que se expressa simbolicamente na arte, nos mitos etc.

Em se tratando de “estilo mântrico” como recurso de acolhimento e sintonia, Santa Teresa nos lembra que o mais importante na oração consiste em nos dispormos a aceitar e receber. “Não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm 8,26). A quietude e o silêncio são elementos universais do espírito humano.

Com muita frequência o conselho prático dos mestres de oração se resume num simples incentivo: “Proclame o seu mantra”. Uma palavra, ou uma breve súplica carrega dentro de si uma riqueza que, na medida da sintonia, vai se revelando e nos enriquecendo.

A admirável tradição do mantra na oração cristã, pode ser atribuída, sobretudo à sua eloquente simplicidade. Ele nos leva a uma quietude atenta da mente, do corpo e do espírito. Ninguém fica excluído por não saber ler ou por ser simples. “Deus se revela aos simples e pequeninos”.

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21. Cada um pelos outros e Deus por todos!

Existem ditos populares e assuntos antigos que chegam como novidade e até de forma surpreendente. Há pensadores inesperados que provocam reflexões tiradas do cotidiano, onde e quando parece que ninguém pensa. Certas pessoas que cultivam um elevado senso crítico não se enquadram com a moda de conversas vazias e pouco construtivas.

Começo falando assim, para referir-me a um diálogo dife-rente de um jovem que, após uma das Missas, procurou-me para conversar. Tendo ouvido as leituras Bíblicas do dia, criou-se nele um conflito entre a proposta da Palavra de Deus e uma frase conhecida no meio do povo. Referia-se à frase: “Cada um por si e Deus por todos”.

Neste caso, dizia o jovem, ou a Palavra de Deus estava errada, ou a mentalidade popular não era verdadeira. Pergun-tei qual era a sua opinião. Disse-me então que esse negócio de “cada um por si” não fechava com a proposta da Palavra de Deus. Porém, concordava com a segunda parte da frase: “Deus por todos”.

Seguindo o diálogo, perguntei se ele não estava disposto a corrigir a frase: “Cada um por si e Deus por todos”. Disse--me ter tido uma ideia boa, nascida do conflito. A correção que propunha era: “Cada um pelos outros e Deus por todos”. Pensando bem, a proposta do jovem aproxima-se muito bem da forma cristã de viver e conviver.

O outro, na experiência da espiritualidade da comunhão, faz parte de mim, como eu faço parte do outro. No momento em que excluo alguém, uma parte de mim é excluída por mim

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mesmo. Na medida em que procuro aproximar e integrar o outro ao meu viver, eu mesmo me integro e me enriqueço.

Substituir o “cada um por si” pelo “cada um pelos outros” é a estratégia mais correta para garantir que os outros também se interessem por mim. Se o individualismo é a pior doença do nosso tempo, a solidariedade poderá despontar como um grande remédio para curar tantas depressões, abandonos e indiferença.

Depois da agradável conversa com este mencionado jovem, procurei ler novamente os textos bíblicos do dia. Constatei como ele havia prestado atenção à Liturgia da Palavra e nela havia encontrado motivos para sua inquietação. O profeta Ezequiel diz: “Se eu disser ao ímpio que ele vai morrer, e tu não lhe falares, advertindo-o a respeito de sua conduta, o ímpio vai morrer por própria culpa, mas eu te pedirei contas da sua morte” (Ez 33,8). O Apóstolo Paulo insiste: “Não fi-queis devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama ao próximo está cumprindo a lei” (Rm 13,8-10). O Evangelho do dia de Mateus 18,15-20 indica os recursos para a correção fraterna, começando pelo diálogo pessoal.

Enfim, na vida cristã não há como se acomodar ao “cada um por si”. Ninguém é feliz sozinho. Não somos chamados apenas a cultivar uma comunhão circunstancial, mas a assu-mir com os outros uma comunhão de destino. Céu é amor e comunhão que se prepara na prática real da vida cotidiana.

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22. Chegando de novo ao fim de ano

A nossa história e, dentro dela, o nosso viver e conviver, tem um ritmo que, cada vez parece mais acelerado. Todo mundo se queixa que o tempo passa cada vez mais rápido. Não se sabe bem se é a idade que avança para todos, se são as ocupações que aumentam sempre mais e não nos deixam sentados no tempo. Enfim, começa ano e termina também. Parece que foi ontem o abraço de “Feliz ano Novo” e já esta-mos nos preparando para a corrida de São Silvestre!

Geralmente são maiores as lamentações de que o tempo passa, do que as alegrias de somarmos mais vida aos anos que se vão. E o pior disso acontece quando as pessoas, por verem o tempo correr, fogem para o vazio, achando que não adianta plantar porque não se consegue colher e nem realizar plenamente os próprios sonhos. O ritmo do tempo, mesmo acelerado entre o começo e o fim de ano, necessita de acolhi-mento como a mais bela peça musical que vai fazendo parte do repertório de nossos hinos.

Pensando bem, nota-se como é importante começar e ter-minar o ano. Quanta gente começa e não vê o final! Quanto acidente há no percurso! Mas também, quantas oportunidades nos são oferecidas para construir, com elegância divina, o edifício de nossa existência.

A chegada de fim de ano nos confirma que o caminho é irreversível. Passam os anos, passam os meses, passam os dias e as horas também. O tempo passa e nele nós também passamos. Porém, se os calendários vão sendo substituídos por outros, nós continuamos passando sem substituição, porque

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não somos apenas moradores do tempo, mas, na medida em que somamos anos à vida, necessitamos somar mais vida aos anos e caminhar para a plenitude, na eternidade.

Na cultura consumista que nos envolve, também corremos o risco de achar, que ao consumir coisas, também se possa ir consumindo com a vida. E a vida não nos é dada para ser consumida, mas para ser construída com o passar dos anos. Uma das grandes causas de frustrações e decepções humanas é ceder à tendência de tornar a vida descartável, como se o amanhã não nos cobrasse o investimento de sua qualificação.

Se o passado é a herança que vamos acumulando e a escola que vai nos ensinando, o presente é a nossa oportunidade que necessitamos administrar como um tesouro envolto em vasos de barro. Somos chamados a nos alegrar e nos encantar com o tesouro, porém, não podemos esquecer seu cuidado para que o vaso de barro se rompa e o tesouro se perca.

Mais uma vez estamos chegando ao fim de ano. Este fim não vem fechar as portas da vida, mas carrega consigo as chaves do novo que vai se abrir para a nossa liberdade responsável. A luz de Cristo é a mesma do passado, mas o trecho do caminho é novo para o futuro. Se cansamos com o trajeto percorrido no ano que termina, certamente não nos faltarão as energias do Espírito para renovar o nosso vigor no empreendimento de uma nova jornada. “Deus não nos deu um espírito de covardia, mas de força e de coragem” (2Tm 1,7).

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23. Calendários e agendas de um novo ano

Parece ingenuidade pensar em algo tão comum, familiar e aparentemente insignificante: ano-novo, novos calendários e novas agendas. Nós, humanos, temos tantas dependências e necessidades de ajuda, que muitas vezes não paramos para pensar o que significam os pequenos auxílios que nos são ofe-recidos por realidades tão simples. Assim pode acontecer com o amigo calendário e a companheira agenda de um nosso ano.

Mesmo com calendários que carregamos nos celulares e agendas eletrônicas, ainda contamos com o calendário de parede e de mesa como um instrumento de rápida consulta e necessário auxílio de cada dia para nos situar no tempo. Não é difícil nos perder no tempo! A rotina da vida parece nos convencer de que todos os dias são iguais. Se não vamos ao calendário nos situar, quando menos pensamos, nos vemos desatualizados e perdidos no tempo.

Por ser este companheiro tão simplesmente importante, na maioria das casas e repartições públicas achamos um calendá-rio. Em todos temos as mesmas datas, comuns ou especiais. Porém, os formatos são os mais diferentes possíveis. Alguns apresentam o ano todo numa página, outros veiculam mensa-gens e disponibilizam a cada mês um espaço especial, outros ainda, com estampas religiosas, fotos regionalizadas e fami-liares parecem trazer o tempo mais dentro de nossa história.

Uma coisa é certa: podemos nos servir do calendário para exercitar a nossa fé. Posso encará-lo além de um objeto e per-ceber que, num simples número de um mês e de uma semana, estão vinte e quatro horas do dia a meu dispor. Posso então

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dizer: “Obrigado, Senhor, por este dia que amanhece e me é concedido como preciosa oportunidade para viver e fazer o bem!”. Mas sendo uma graça, o dia que me é concedido, tam-bém se faz responsabilidade. Posso administrá-lo do melhor ou do pior modo, dependendo de minhas intenções, decisões e respostas concretas.

Bem-vindo é o calendário de minha visibilidade permanente. Assim vou me dando conta que um dia chega e passa. Sem retorno, o dia de cada semana deverá me ajudar a perceber “o tempo favorável e oportuno!” (2Cor 6,2). O calendário de minha casa ou do meu espaço de trabalho, ajuda-me a me manter vigilante e atento, pois não sabemos nem o dia, nem a hora.

Falei de calendário e pouco falei de agenda. Mesmo que tenha calendário, esta se torna um instrumento diferenciado em nosso uso cotidiano. Nela estão nossos compromissos e tarefas, as cobranças de nossa família, de nossa missão, os serviços a serem prestados em dia e hora marcada e as ocu-pações que não podem falhar.

Diante da agenda há quem se sinta pressionado; há quem treina a sua liberdade responsável; há os compromissos e comprometidos e, enfim os que conseguem valorizar ao má-ximo o tempo da vida. Agenda cheia pode revelar a vida de pessoas organizadas, determinadas e comprometidas, mas também de gente apressada e atropelada por um ativismo desmedido, arriscando comprometer a saúde e a qualidade de vida e convivência. Tudo vai pela justa medida. Abençoados sejam os calendários e agendas do ano que começamos!

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24. Círculo vicioso ou virtuoso

Quem observa diariamente, com atenção, os fatos pu-blicados, logo percebe que um mal nunca vem sozinho. É tendência natural que uma desgraça fragilize as pessoas, turve as situações e estas passem a desencadear outros males. Sabe-se que a violência não soluciona a violência, que o fogo não apaga o fogo, nem uma doença cura outra doença, mas, ao natural as coisas podem descambar e criar um círculo vicioso. Tantos homens e mulheres lamentam com dor: “Nada mais está dando certo em minha vida, tudo vai de mal a pior”!

Círculo vicioso é um processo decorrente de situações que podem nos apanhar de surpresa e nos deixar machuca-dos, mas é também um processo que vai adoecendo nossa mente, nosso coração e nossa vontade. O que é o desânimo senão a perda progressiva da coragem de reagir diante das dificuldades e desafios da vida? O que é a decepção senão a fragilização emocional, ou afetiva diante de algo que se desejava ou alguém que se confiava e não deu certo?

O povo, por aí, afirma que um mal nunca vem sozinho! Esta afirmação faz parte da sabedoria popular que se con-firma na realidade do dia a dia. Uma vez, um médico me disse algo muito simples: “Observa, Frei, que uma gripe mal curada pode gerar uma pneumonia, uma pneumonia, não tratada, pode virar câncer de pulmão e este provocar a morte”. Uma pequena rachadura na parede de uma casa, se não for corrigida logo, pode ir comprometendo a parede toda e esta, se não for restaurada pode danificar toda a casa.

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A velha história do círculo vicioso, pode atingir a vida da pessoa, das coisas ao nosso redor e corromper uma sociedade inteira. Hoje, o círculo vicioso dos maus tratos à vida está se ampliando tanto, a ponto de pôr em risco o Planeta terra. No acontecer do círculo vicioso, a maioria se põe em busca de quem é culpado, quem são os causadores das desgraças que se sucedem. O enfraquecimento causado por um círculo vicioso chega a causar o desespero, acusando o próprio Deus como o culpado de que a vida não dá certo.

Mas, se existe o círculo vicioso, é certo também que existe o círculo virtuoso. Este começa, quando a pessoa, com suas capacidades se sente responsável, trava o processo de risco para dar a volta por dentro, por cima e por todos os lados. Isto é possível desde que a pessoa se determine e reúna todos os recursos para reagir e começar de novo. Melhor ainda, quando a pessoa potencial humano da reação que Deus colocou em nós.

Concluindo, podemos afirmar convictamente que, se “um mal nunca vem sozinho, um bem, também nunca vem so-zinho”. Quando começamos a processar o círculo virtuoso, necessitamos exercitar o senso da valorização, pois quanto melhor acolhemos e apreciamos o bem, mais o mal vai desaparecendo. O melhor é ocupar-nos com a positividade da vida, das coisas e da história e aprender a celebrar as pequenas conquistas de cada dia.

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25. Deus é pai, não paternalista

Facilmente transferimos para a dimensão da fé, a medida de nossas limitadas experiências humanas. Queremos puxar para o nosso lado, ao tamanho de nossos desejos, até a nossa experiência religiosa. Brigamos com Deus, porque ele confia em nós e não admite acomodação. Tantas vezes imploramos milagres fáceis, imediatos e, possivelmente, duradouros. Há em nós uma tendência de sentar na sombra de nossos como-dismos e até suplicar para não faltar a água fresca em tempo de verão.

Ser paternalista ou maternalista é ir cedendo ao desejo dos filhos, sem nada exigir nem provocar para que assumam suas responsabilidades como sujeitos da história. O pior, é que muitos filhos fazem tudo para forçar paternalismos e materna-lismos e assim não se aventurarem num caminho de desafios e garra diante da vida. Tantas crianças e jovens portadores de um imenso potencial para a criatividade e o desenvolvimento, investem suas artimanhas para fazer de seus pais reféns de seus egoísmos, às vezes até ameaçando-os de morte.

Na relação com Deus, não é de se estranhar que aconteça algo parecido. Queremos um deus mágico, paternalista e milagreiro. Esse deus é um ídolo que tem boca, mas não fala, tem olhos, mas não enxerga, tem ouvidos, mas não ouve. Então, quem decide fazer o que quer, mesmo que seja totalmente errado, passa atribuir a esse deus o que o próprio egoísmo decide.

Conta-se que num domingo à tarde, um ilustre intelectual que se achava propagador de uma bela ideologia, foi visitar os bairros de sua cidade. Passava e observava as ruas das

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favelas. Lá via esgotos correndo a céu aberto, crianças nuas e sujas, homens e mulheres malvestidos e casas amontoadas. Na medida em que ia passando, aumentava nele a indigna-ção. Depois vieram as muitas perguntas, dentre elas, algumas dirigidas a Deus.

Terminado o dia, resolveu ir a um templo e olhar de frente uma grande imagem do Crucificado. Lá começou a reclamar e questionar o Cristo: “Se tu vieste para fazer uma grande revolução na humanidade, por que deixas toda essa gente no abandono e no sofrimento? O que fazes para sanar tantas desgraças?”. Depois de tanta reclamação e tantas perguntas, silenciou e ouviu uma voz que lhe dizia: “Meu filho, eu fiz a ti!”.

Deus é Pai Criador. A nós confia o cuidado da criação; concede-nos dons de todos os tipos e nos brinda de qualidades imensas para transformar e aperfeiçoar o mundo. Ele não é paternalista que faz por nós o que a nós compete fazer. Acolher o amor do Pai e crer nele significa arregaçar as mangas para fazer a parte que nos cabe. “Não são os que dizem: Senhor, Senhor, que vão entrar no Reino dos céus, mas aqueles que fazem a vontade do Pai que está nos céus” (Mt 7,21).

Quando Jesus nos ensinou chamar o seu Pai de nosso Pai, na oração do Pai-nosso, dá-nos um programa de fé, onde se confirma a permanente ação amorosa de Deus a nosso favor, mas também o nosso compromisso com seu Reino de verdade, justiça e amor.

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26. “Erguei vossos olhos e vede...” (Jo 4,35)

Existem expressões simbólicas que expressam experiências reais da vida e situações que nos atingem. Andar de olhos baixos pode simbolizar desânimo, tristeza, desesperança, cansaço, distração, entrega, alienação, indiferença...

Olhos baixos podem ser sintoma de uma nova doença que se chama “presentismo”, própria de nossa sociedade de consumo que não cultiva o reconhecimento e a gratidão ao passado e nem tem muito interesse de investir no futuro. Usufruir ao máximo as satisfações do “agora”, como diziam os Romanos: “Comamos e bebamos porque amanhã morreremos!”.

Olhos baixos pode ser uma atitude simbólica e provoca-dora do individualismo de nossa época, que faz tanto mal à convivência social, à atividade humana, às instituições e estruturas que dependem da pronta participação e contribui-ção das pessoas. É verdade que há situações e momentos na vida e na história, que pesam demais, contagiam e forçam as pessoas a baixar os olhos.

Olhos erguidos, ao contrário, são uma simbologia de coragem, ânimo, alegria, esperança, altruísmo, atenção, sintonia, pers-pectiva, comunicação, vigilância, sensibilidade e compaixão. A energia interior da pessoa move todo o seu ser para mantê-la erguida, com olhar amplo e perspectivas esperançosas.

Nos momentos críticos, nos quais vivemos atualmente, faz-se necessário ouvir e acolher de novo o apelo que Cristo fez aos discípulos na Samaria, onde colheu as primícias de sua missão: “Erguei vossos olhos e vede os campos: estão prontos para a colheita” (Jo 4,35).

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Jesus Cristo é protótipo do homem de olhar erguido. Ele não passou distraído em nossa terra. Por viver em sintonia com a vontade do Pai, estava sempre de olhar atento à rea-lidade humana e o mundo que o rodeava. “Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc 6,34). Vendo a multidão necessitada, “tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e, partindo os pães, os abençoou e entregou aos discípulos e os discípulos para as multidões” (Mt 14,19).

A síntese do Evangelho, proclamado por Jesus nas Bem--aventuranças, ao povo que o seguia, começa afirmando: “Naquele tempo, Jesus levantando os olhos para os seus discí-pulos, disse...” (Lc 6,20). Aos discípulos de olhar mesquinho, Jesus diz: “Vocês têm o coração endurecido. Vocês têm olhos e não enxergam, têm ouvidos e não escutam” (Mc 8,17-18).

Se tantas vezes temos motivos humanos para andar de olhos baixos, são muito maiores os motivos para erguer nosso olhar com a inesgotável força da esperança, que jamais decepciona. Em nome da fé cristã, jamais podemos deixar de olhar a rea-lidade que nos cerca, mesmo que seja assustadora. Em nome da mesma fé também não podemos desviar o nosso olhar do Crucificado-Ressuscitado, pois ele é a razão da fé e a força secreta da esperança. Agora e sempre escutemos esta ordem: “Erguei vossos olhos e vede...” (Jo 4,35).

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27. Eu amo minha Mãe Igreja

Ao visitar um jovem paraplégico, fiquei impressionado com sua alegria e sua fé. Em conversa espontânea, ia contando como ele ocupa o tempo em sua casa na cadeira de rodas. Além do artesanato que faz, ocupa-se em escutar rádio e acompanhar os programas religiosos das televisões católicas. Diz o jovem que num dia recebeu a visita de um amigo que o deixou inquieto. Este também ouvia rádio e via televisão, mas procurava dar atenção a tudo o que se referia ao negativo da Igreja para forçá-lo a deixar de ser católico.

Num momento de discussão o jovem paraplégico disse ao amigo: “Eu respeito a tua escolha, mas peço que tu respeites a minha, pois eu amo minha Mãe Igreja!”. Depois continuou seu discurso provando que nunca deixou de amar a sua mãe de sangue, mesmo com seus defeitos e suas doenças, porque ela era a sua mãe! Assim é com a Mãe Igreja.

Creio que não há necessidade de escolher belas palavras e argumentos lógicos e nem teológicos para amar a Mãe Igreja. Sempre foi e sempre será humana e divina. Enquanto divina pensamos a Igreja em seu lado melhor e perfeito conforme o pensamento de Deus e o amor de Cristo. Enquanto humana, a Igreja que somos nós, carrega os nossos pecados, inconsis-tências e feridas, mas também as virtudes de tantos santos e santas dos altares e das ruas, das igrejas e das casas.

O saudoso e querido Papa João XXIII publicou uma célebre Encíclica para iluminar a evolução social à luz da doutrina cristã: “Mater et Magistra”. Começa sua carta dizendo: “Mãe e Mestra de todos os povos, a Igreja foi fundada por Jesus

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Cristo, a fim de que todos, vindos no seu seio e no seu amor, através dos séculos, encontrem plenitude de vida e penhor de salvação” (1).

A figura da Mãe sempre esteve presente para definir simbo-licamente a Igreja. Vale lembrar, com senso de humanidade, as palavras do jovem paraplégico. É exatamente na hora em que a Mãe se encontra mais doente e ferida que mais necessita do carinho e da presença dos filhos. É lastimável quando se ouve de pessoas católicas, ou até de responsáveis em serviços e pastorais, criticando a própria Mãe Igreja, quase torcendo para que continue piorando. Esse instinto de morte só tem a prejudicar as esperanças da humanidade.

Quando um católico aponta com o dedo indicador os defeitos da Igreja, lembre-se que os outros três dedos estão voltados para ele. Afinal: “Eu sou Igreja, tu és Igreja, nós somos a Igreja do Senhor!”. Diz o Papa Francisco: “Nós, mulheres e homens de Igreja estamos no meio de uma história de amor. Cada um de nós é um elo desta cadeia de amor. E se nós não entendemos isso, não entendemos nada do que seja a Igreja. Então, o que é a Igreja no concreto? É Mãe!... E nós, todos juntos, somos uma família na Igreja que é nossa Mãe” (Ho-milia na Missa do dia 24/04/2013).

Creio que uma boa campanha de autoestima poderia me-lhorar a nossa identidade como Igreja e torná-la mais fermento de transformação. Francisco começou reconstruindo a Igreja! Podemos fazer a nossa parte.

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28. Empatia para um futuro melhor

Paira no ar uma acusação que nos intriga, num momento histórico que se orgulha de suas conquistas e mudanças. O individualismo e a globalização da indiferença, não parecem ser o melhor clima para o desabrochar de um futuro esperan-çoso. Em geral, sabemos lidar com novos meios técnicos, científicos e de comunicação, cada vez mais aperfeiçoados. Porém, por vergonha, temos a sincera dificuldade de lidar com o humano mais humano e simples que somos e queremos ser.

Certos componentes da vida e convivência, parecem-nos secundários e pequenos demais para merecerem grandes atenções. Este engano pode nos causar tremendos prejuízos e desencadeia riscos para o futuro da humanidade. Um desses componentes merecedores de nossa atenção é a empatia, como um caminho para o futuro da sociedade.

Empatia é essa capacidade do ser humano de se colocar no lugar do outro, não para invadir sua justa privacidade, nem para conquistá-lo em proveito próprio. Empatia é a capacidade psicológica e espiritual de sentir o que a outra pessoa sente, compreendê-la, acolhê-la e criar relações de mútua ajuda. Quando uma pessoa consegue sentir a dor ou o sofrimento do outro, ao colocar-se no seu lugar, desperta a vontade de ajudar e de agir seguindo princípios morais. Quanto mais pessoas com empatia, mais haverá dedicação para mudar a sociedade.

A empatia está ligada ao altruísmo, isto é, ao amor e ao interesse pelo próximo. Até nosso organismo, em seu sistema hormonal, reage positivamente pela empatia. Isto nos ajuda a sermos mais saudáveis e felizes, superando a violência e

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contribuindo para um maior desempenho no trabalho e na criatividade. Se nós queremos paz no mundo precisamos quebrar as ilusões de separação dos outros.

No acontecer da empatia, faz-se necessário abrir o coração. A cordialidade nos fará perceber a necessidade de justiça social, de respeito à dignidade humana e construção de um clima favorável à vida e à paz. Exemplificando: quanto mais famílias abrirem o coração, menos adolescentes vão se sentir expostos às drogas e à violência. Faz-se urgente a restauração da harmonia interpessoal em nível mais profundo nas famílias e nas escolas.

O carinho pelos filhos e pelos alunos não dispensa a disci-plina. Desde cedo é importante mostrar à criança que, qualquer ação sua, provoca uma reação no outro, tanto de alegria, como de dor. Sabemos que os atuais modelos pedagógicos, ainda estão contagiados pelo senso de competição, pela vontade de querer ser mais. Isto dificulta o exercício e o aperfeiçoamento da capacidade empática. Necessitamos exercitar um modelo pedagógico que incentive o trabalho cooperativo em grupo.

E para nós, adultos, que ainda não aprendemos bem a arte da empatia, ainda é possível vivê-la? Podemos e devemos nos exercitar, diariamente, a sermos mais cristãos e francis-canos, aprendendo a nos colocar no lugar do outro, seja ele desconhecido ou irmão.

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29. Generosidade vencendo a mesquinhez

Lembro-me de uma experiência muito singular que jamais esquecerei. Um pequeno gesto de generosidade deixou-me uma grande lição para a vida. Numa longa viagem de ônibus para uma cidade do interior da Bahia, fizemos baldeação numa cidade que ficava a uns 150 quilômetros do destino. Na medida em que íamos chegando, a seca e o calor nos mostravam um cenário de sofrimento generalizado. No percurso do cami-nho paramos para o lanche do meio-dia que os passageiros levavam consigo.

Como eu não estivesse prevenido, nada levei para o lan-che. A meu lado uma senhora idosa e pobre percebeu. Então abriu uma caixinha de papelão e me ofereceu um bolinho dos poucos que tinha. Agradeci seu gesto e disse não estar com fome. Então ela me disse: “Tenho pouco, mas é tudo o que tenho e lhe ofereço de coração!”. Sensibilizado, aceitei! Seu modo de proceder e a alegria em partilhar de sua pobreza fez do bolinho um banquete inesquecível para mim.

Diante de atitudes de generosidade, não há como ficar indi-ferente! O transbordamento generoso do coração chega às mãos e das mãos faz acontecer gestos de bondade. A generosidade do amor cristão não se fixa na quantidade, mas na qualidade das intenções do coração. Lembramos aqui a oferta da viúva que o Evangelho de Marcos 12,41-44 nos narra. Enquanto os ricos se ostentavam em depositar grandes somas, a viúva, generosamente, colocou no cofre duas moedinhas. A qualidade da intenção lhe valeu o grande elogio de Cristo: “Esta pobre viúva deu mais do que todos os outros”.

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Quando Paulo escreve a segunda carta aos Coríntios procura incentivá-los à generosidade e à superação da mesquinhez. Acena para as Igrejas da Macedônia que, em sua extrema pobreza e grandes tribulações, pedem a graça de participar da coleta em favor dos santos de Jerusalém. Diante de tal generosidade convida também a comunidade de Corinto à sinceridade da caridade.

Paulo, em sua sabedoria, sente que a generosidade precisa ir além de uma qualidade humana. É necessária uma motiva-ção maior para que a generosidade seja duradoura. Por este motivo aponta para o Mestre da generosidade, Jesus Cristo e diz: “Na verdade, conheceis a generosidade de Nosso Senhor Jesus Cristo: de rico que era, tornou-se pobre por causa de vós, para que vos torneis ricos por sua pobreza” (2Cor 8,1-9).

A generosidade pode ser exercitada de muitos modos, não apenas dando coisas, mas acima de tudo, dando-se em amor. Posso ser generoso partilhando bens materiais, mas posso também ser generoso dando do meu tempo para dialogar, para deixar uma criança mostrar-me os trabalhos de aula, esperando um apoio adulto.

Posso ser generoso na visita aos doentes e sofredores, nos serviços voluntários que ajudam na promoção humana. Há mil modos para exercitar a generosidade e isto nos realiza, “pois é dando que se recebe” (São Francisco).

“Quem semeia pouco, também colherá pouco, e quem semeia com generosidade colherá com largueza... Deus ama a quem dá com alegria” (2Cor 9,6-7).

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30. Iluminados e iluminadores

Pensei no título deste artigo a partir de uma belíssima canção do Padre Zezinho, situada no CD “Cuida bem da Pa-lavra”, faixa 02, Comep. Assim ele se expressa: “Somos velas acesas por Ti! Cabe a nós acender outras luzes! Iluminados, iluminadores, queremos ser, ó Senhor! Tu és a grande luz e nós pequenas luzes; levaste a grande cruz e nós pequenas cruzes. És quem és e nós somos quem somos. Somos velas acesas em ti e por Ti, cabe a nós iluminar!”.

Na verdade, antes de sermos iluminadores, somos ilumi-nados. Não temos luz própria! Não há como acender uma luz sem que esteja conectada à rede e esta na fonte da energia. Quando alguém se aventura a brilhar por si, se expõe ao apagão. A experiência da luz que vem e passa adiante é um dos fenômenos mais significativos da vida.

A luz sempre se apresenta como símbolo da criação: tira do nada noturno um dia majestoso, iluminado e iluminador. A Luz é uma realidade tão significativa e portadora de vida que toda a história das religiões sempre jogou com o sim-bolismo contrastante da luz e das trevas. Desde os povos antigos cultivou-se o reconhecimento de Deus como autor e fonte da luminosidade. Assim como o reino das trevas sempre foi visto como a morada natural dos demônios. A primeira ação de Deus registrada na Bíblia é a separação da luz e das trevas (Gn 1,3-5).

“Deus é luz e nele não há trevas... se caminhamos na luz, como ele está na luz, então estamos em comunhão uns com os outros” (1Jo 1,5-7). Paulo nos afirma: “Vós todos sois

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filhos da luz e filhos do dia. Não somos da noite, nem das trevas” (1Ts 5,5). Somos filhos da luz. Todo o nosso viver é iluminado, porque Deus habita em nós.

Com muita frequência ouve-se dizer: “Fulano, fulana é um iluminado!”. Na verdade todos somos iluminados a partir daquele que é a Luz. O que necessitamos é acolher esta luz e deixar-nos iluminar. Quando nos aprisionamos em nosso egoísmo, fechamos portas e janelas e não deixamos a luz do sol entrar. Se caminharmos na luz estamos em comunhão uns com os outros, mas se nos fecharmos nas trevas aumentamos a multidão dos solitários, pois não reconheceremos o rosto e nem o coração de quem convive conosco.

Nossa vida cristã nos é dada para sermos iluminados e iluminadores, pois aquele que disse: “Eu sou a Luz do mun-do, quem me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12), também disse: “Vós sois a luz do mundo... Assim brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que vejam vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,13-16).

O tema desta reflexão pode nos inquietar ou nos deixar indiferentes. Em geral sabemos o que queremos, mas nem sempre nos deixamos questionar para que este querer se concretize. Creio que fica bem deixar esta reflexão em aberto servindo-nos das simples perguntas: Como podemos culti-var uma vida iluminada e quando nos tornamos realmente iluminadores? Quem são os iluminados? Por onde andam os iluminadores?

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31. Jesus do povo, mas não populista

Em Jesus, tudo chama atenção, mas algo é mais notório nos Evangelhos. Trata-se de sua aceitação popular, por ser homem do povo. Para os chefes de Israel, Jesus foi um pro-blema que despontou como indesejável, por seu procedimento que não se enquadrava em suas perspectivas messiânicas. Porém, o povo simples encontra em Jesus uma resposta que vem confirmar: o que é de Deus, o que é bom, o que é luz e um tempo novo que vai começar. Este é o Reino chegando!

Foi entre os pescadores e camponeses que Jesus recrutou os seus primeiros discípulos e escolheu seus apóstolos. Jesus não tinha qualquer preconceito. Como homem do povo rece-bia os publicanos e se hospedava em suas casas. Conhecia a verdadeira situação do povo sofrido e excluído; sintonizava com sua mentalidade religiosa e suas aspirações políticas.

Jesus não viveu num mundo ideal, numa Palestina de sonhos, onde só havia problemas de ordem religiosa. Viveu num país ocupado por estrangeiros e os zelotas, guerrilheiros daquele tempo. Quando inaugurou sua pregação, anunciando a chegada do reino, suas palavras repercutiam fortemente em seus contemporâneos inquietos, esperançosos, mas também confusos, confiavam que Jesus declarasse guerra santa aos romanos.

A expectativa messiânica colocou Jesus num cenário con-turbado e perigoso, mas o povo o procurava sempre mais e o comprimia para ouvi-lo, vê-lo e alimentar suas esperanças. Jesus era simples e identificado com seu povo. Não era uma pessoa estudada, nem era da classe alta, nem sacerdotal. O

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povo sintonizava muito com sua mensagem, pois falava tudo diferente e dizia coisas novas que tocavam a vida.

O que impressionava o povo em Jesus era seu jeito de ensinar e o poder que saía dele para purificar. “Todos se admiravam perguntando uns aos outros: Que é isso? Um ensinamento novo com autoridade! Até mesmo aos espíri-tos impuros ele dá ordens e eles lhe obedecem!”. Seu modo de ensinar e a questão da pureza era o espinho no pé que incomodava as autoridades religiosas da Galileia. O povo notava a diferença e ficava encantado com o que vinha acon-tecendo. Todos viam o mesmo Jesus, escutavam as mesmas palavras e observavam os mesmos fatos, mas a reação não era a mesma. O povo simples vibrava, mas as autoridades se irritavam. Se de um lado o povo sintonizava, por outro lado, os fariseus e os escribas se viam ameaçados e preocupados em defender a religião.

Na verdade, Jesus de Nazaré quis viver até as últimas consequências sua condição de homem do povo. Sobre ele recaíam todas as suspeitas, mas ele sempre prosseguiu seu caminho e assumia até a última consequência a fidelidade à sua missão. Como qualquer homem do povo não conheceu nenhum privilégio. Ninguém jamais intercedeu por ele, a não ser depois de sua morte e, mesmo assim para obter o seu cadáver.

Jesus era homem do povo, mas em momento algum per-mitiu ser populista. O risco do fanatismo era de todo pos-sível diante dos milagres, mas ele sempre proibia qualquer declaração de prodígios por sua intervenção.

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32. Jesus, homem surpreendente

Há pessoas que despontam em todos os lugares, como sur-preendentes em alguns aspectos, seja na genialidade artística, na capacidade de liderança, na habilidade administrativa, na popularidade, na beleza e até mesmo pelo elevado nível de santidade. Porém, Jesus de Nazaré em tudo e por todo o seu viver e agir foi surpreendente.

Jesus não frequentara escolas, mas conhecia muito bem as Escrituras. “Como pode ser ele preparado em letras sem ter estudado?” (Jo 7,15). Todos ficavam admirados ou cho-cados com a originalidade de suas palavras e atitudes. “As multidões que o ouviam ficavam admiradas de sua doutrina” (Mt 22,23). Diante de tamanha capacidade de chamar aten-ção e persuadir, seus inimigos ficavam escandalizados. Os escribas e fariseus lhe faziam muitas perguntas. A nenhuma deixou sem resposta. Quando os interrogou, não souberam responder (Mt 21,24-25).

Frequentemente surpreendia os discípulos retirando-se à montanha para rezar em silêncio, ou até mesmo na solidão. Como judeu não deixava de frequentar as sinagogas e o tem-plo nas grandes solenidades. Mas em momento algum Jesus ofereceu um sacrifício. Ele estava vivendo e preparando o sacrifício de si mesmo. Para o sacrifício da Nova Aliança, escolheu a casa de um amigo. O sacrifício da Cruz aconteceu fora da cidade. A cruz tornou-se o altar do mundo e o lugar do encontro com Deus que, a partir da cruz o Ressuscitou.

A soberana liberdade de Jesus era sempre surpreendente. Ele inaugurou a hora em que os adoradores do Pai o adorariam

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em espírito e verdade e não mais na montanha da Samaria, nem no templo de Jerusalém. No cristianismo, só a pessoa humana é um lugar absolutamente sagrado.

Diante da lei, Jesus também surpreende. Para um israelita a Lei podia ser interpretada, mas jamais modificada, especial-mente a lei do sábado. A conduta e as palavras de Jesus rom-peram esta atitude religiosa: “O sábado é feito para o homem e não o homem para o sábado... O Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,27). Neste universo centrado na lei, Jesus se vê diante do grande conflito que o conduzirá à morte.

O modo como Jesus tratava os pecadores públicos: pros-titutas e publicanos era outra surpresa que escandalizava os judeus. Lembramos aqui a pecadora pública, a mulher adúltera, a parábola do filho pródigo, o modo de acolher Zaqueu. Jesus nada tinha de moralista, mas tudo de misericórdia.

Diante de Herodes e Pilatos, no meio de todas as acusações sem algum fundamento, Jesus surpreende a todos por não dizer palavra alguma. Sua única defesa era o silêncio do grão de trigo que iria ser lançado à terra para produzir muito fruto. A dignidade, como enfrentou o drama de sua paixão e morte, jamais será esquecida no coração da história da humanidade.

Mas de toda a história da passagem de Jesus, o homem surpreendente, a maior surpresa foi a sua ressurreição. Esta não estava nos cálculos de nenhum humano, nem mesmo de Maria, João e de nenhum apóstolo. Menos ainda dos que o haviam condenado e crucificado. Da aparente derrota, acon-teceu a maior vitória.

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33. Mais fácil fugir do que arriscar

Afirma-se com critérios objetivos que nós estamos atraves-sando agora uma “mudança de época”, não apenas época de mudanças rápidas e profundas, como nos afirmava o Concílio Vaticano II. Nossa tendência natural é a de nos acomodar no pequeno mundo de nossos costumes e práticas tradicionais. O ninho quente de nosso mundo pessoal, familiar, ou institucional nos puxa a garantir a segurança, dificultando alçar voos para novos horizontes. Acolher as mudanças é sempre um risco necessário para quem quer superar a mesmice.

O poeta, filósofo e historiador alemão Friedrich Von Schiller diz: “Quem nada arrisca, nada tem direito a esperar”. Popular-mente também se diz: “Quem nunca arrisca por medo de errar, já errou por não arriscar”. É mais fácil fugir do que arriscar. Porém, este tipo de atitude é uma das formas de trair nossa condição humana e nossa missão como cristãos no mundo e na história.

Dizia o Cardeal Pirônio: “Quem não é capaz de arriscar a própria segurança humana, ainda não aprendeu a ser cristão”. Não se trata de embrenhar-se em loucas aventuras, nem desper-diçar a própria vida na busca fugaz e superficial de novidades. Trata-se de assumir a cruz pascal como fonte inesgotável do que é sempre novo no Cristo Ressuscitado: “Eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).

Diante dos riscos e desafios dos tempos novos, há uma única resposta: a fidelidade ao nosso momento. Este é o único tempo colocado por Deus à nossa disposição. “Minha alma está perturbada. E que direi? ‘Pai, livra-me desta hora? Mas

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foi precisamente para esta hora que eu vim” (Jo 12,27). Dar--nos conta da nossa hora e desejar administrá-la com alegre responsabilidade, é garantir que nossa passagem pela história não é vã, nem de mais alguém, mas de uma pessoa que é única, intransferível, livre e responsável.

Nesta hora de “mudança de época”, a Igreja e o mundo, somos agraciados por uma pessoa cristã que veio “do fim do mundo” para testemunhar a coragem da fé: o Papa Francisco. Sem ficar lamentando a idade, nem fugindo da hora crítica que nos envolve, toma em seus ombros a missão de alavancar a “reconstrução da Igreja” que se vê ameaçada por ruínas.

Em seu primeiro pronunciamento aos Cardeais dizia: “Che-ga de pessimismo!”. Na abertura do Congresso da Diocese de Roma recordou que “alguns cristãos parecem devotos da deusa lamentação”. Acrescentava que “é necessário dar um testemunho forte e ir em frente, mas também suportar as coi-sas que não podem mudar”. No mesmo momento convocava os presentes a sair de si mesmo e ir ao encontro das pessoas onde estivessem, como o Bom Pastor que arrisca deixar as noventa e nove ovelhas para procurar a perdida.

Prosseguindo seu pronunciamento e referindo-se ao mo-mento da Igreja, o Papa Francisco afirmou: Hoje, “queridos irmãos, temos uma ovelha e noventa e nove estão desaparecidas. Vamos buscá-las! É mais fácil ficar em casa com uma ovelha, escová-la e acariciá-la... mas o Senhor nos quer pastores e não escovadores de ovelhas...”.

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34. Necessitados de uma especial alegria

Uma das sérias observações feitas ao nosso tempo e à nossa sociedade pós-moderna, refere-se ao roubo da alegria de viver. Também aqui não são nomeados assaltantes. Eles não têm rosto, nem armas, mas subliminarmente agem sem ação, tiram sem ter mãos e passam sem ter pés. O roubo da alegria parece ser um dos mais sérios prejuízos à convivên-cia humana. Por que andamos assim, tão sérios, com rostos fechados? Por que os humoristas não ensinam o Bom humor? O que nos rouba a alegria?

Como um raio de luz no meio da noite, o Papa Francisco presenteou à humanidade um programa de vida para a Igreja de nosso tempo com a exortação apostólica “A Alegria do Evangelho”. Já de início ele alerta: “O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais da consciência isolada... Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida” (AE n. 2).

Logo em seguida a esta advertência, o Papa Francisco nos convida a nos deixarmos encontrar pelo Senhor: “Da alegria trazida pelo Senhor, ninguém é excluído... Quem arrisca, o Senhor não o desilude” (AE n. 3). Esta é a alegria de base que o mundo não pode tirar. Para cultivá-la e garanti-la necessitamos de uma luta paciente, perseverante e teimosa, pois as ofertas de alegrias passageiras invadem a nossa superficialidade e querem se tornar agentes de uma alegria imediata, mas fugaz.

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Ser uma pessoa alegre e ter apenas algumas alegrias, é o que faz a diferença.

Temos o sagrado direito da alegria! Esta é um reflexo de uma vida rica de sentido, de poder andar em caminhos abertos, de horizontes amplos e esperançosos. É a alegria de sentir-nos habitados e não solitários na aventura da vida. Encontrar o Cristo é o mesmo que encontrar o verdadeiro mestre da ale-gria. O sermão da montanha abre-se com a solene proclama-ção da alegria dos pobres, dos pacientes, dos aflitos, dos que têm fome e sede de justiça, dos misericordiosos, dos puros de coração, dos que promovem a paz e dos perseguidos por causa da justiça.

“Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito, alegrai-vos!” (Fl 4,4). O que nos intriga nas palavras de Paulo é a palavra “sempre”. Algum tempo de alegria e algumas experiências rápidas acontecem, mas “sempre” é a questão. Em sua ex-periência com o Senhor, Paulo se dá o direito de dizer que é possível cultivar sempre este tipo de alegria de base.

Ao pensarmos em Francisco de Assis e sua definição da “perfeita alegria”, ficamos admirados quando nos diz ser possível vivê-la no desconforto total da rejeição até mesmo dos próprios confrades. Creio que seu cântico das criaturas, verdadeira explosão de alegria, seja a maior prova daquela alegria que ele sempre cultivou na raiz de seu ser redimido. No meio da dor proclamou e compôs o mais significativo hino de amor e de alegria.

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35. Os cansaços do caminhoHá uma exclamação que circula em todos os cantos deste

planeta. É dita por anciãos, adultos, jovens e até crianças: “estou cansado(a)!”. Ouvir isso de um atleta depois de uma desafiadora e complicada partida, parece muito normal. Escutar um operário, depois de um dia de intenso trabalho, dizer que está cansado, é um desabafo consequente e justo. Um jovem estudante aplicado, ao chegar ao fim de um semestre e dizer que o estudo foi cansativo, revela uma realidade de sua vida. Não causa estranheza ouvir crianças, de quem muito é exigido, desabafarem seu cansaço.

Estes cansaços, seja do trabalho, do estudo, do esporte e do cotidiano agitado, são naturais e decorrentes da vida. Nada melhor do que uma noite bem dormida para recuperar as energias e começar de novo. Um Domingo tranquilo e um passeio descontraído podem refazer as forças para começar uma ótima semana de atividades e compromissos.

Porém, quando se ouve alguém dizer, com rosto triste e voz abafada: “estou cansado(a) de viver!” ali, a questão se complica. Neste mundo dos humanos, não é difícil ouvir este clamor dramático. São pessoas que já não conseguem mais levar nos ombros certos pesos, nem guardar mais o acúmulo de mágoas e ferimentos.

Cansam de viver as vítimas da indiferença que se sentem rejeitadas da família e da sociedade, as pessoas espoliadas em sua dignidade, que ao já não conseguem se identificar como humanos, as pessoas que passam de mão em mão e vão ficando descartáveis como objetos, os escravizados do trabalho forçado, os decepcionados da vida, que recorrem às drogas e aos traficantes que os conduzam à morte.

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Não é tão difícil “cansar de viver”, nem tão estranho o re-curso dramático do suicídio, onde se procura uma saída para uma vida que não consegue vislumbrar seu futuro. Certamente, foi para esta multidão de humanos, ameaçados pelo cansaço de viver, que Jesus Cristo dedicou sua especial atenção: “Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por eles, porque eram como ovelhas que não têm pastor” (Mc 6,34).

É bem dentro desta caminhada humana, sempre exposta ao cansaço de viver, que Jesus Cristo chega e proclama: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso de vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu peso é leve” (Mt 11,28-30).

Na medida que aumentam os riscos do cansaço de viver, também somos chamados a aperfeiçoar a responsabilidade do cuidado. E o cuidado mais eficiente e eficaz é o cultivo da fé em Jesus Cristo. É ele que nos garante o encontro da fonte para nossas sedes, do caminho para nosso peregrinar, da verdade para nossas ansiosas buscas e da vida para nossa história.

Não há como tornar-se pessoa realizada sem o “mais e o melhor” que a fé nos proporciona. “Não tenham medo de Cristo, ele não tira nada e nos dá tudo” (Bento XVI).

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36. O primeiro homem livre da história

Chama atenção o título deste artigo, mas quem o confir-ma é Santo Irineu de Lion, nos primórdios do cristianismo. “Jesus foi o primeiro homem livre da história”. A liberdade é um bem supremo. Poder desfrutá-la torna a pessoa realmente ela mesma.

Sabemos como é difícil ser livre. Muitos são os condiciona-mentos que criam barreiras à possibilidade de optar e escolher. Sabemos quantos condicionamentos de ordem econômica, psicológica e, sobretudo, moral, interferem em nosso cami-nho de liberdade. Porém, o que mais impede o desabrochar de nossa liberdade são os preconceitos e compromissos de conveniência.

Jesus não tinha nenhum preconceito e nenhum compromisso de conveniência, a não ser com a vontade do Pai. Jesus não tinha preconceito nem mesmo contra os fariseus. Dialogava com eles e até frequentava suas casas. Não tinha compromisso de conveniência com ninguém a não ser compromisso com o Pai. O maior elogio dado a Jesus, quem o deu foi um doutor da lei: “Mestre, sabemos que és franco e que ensinas o caminho de Deus com lealdade, sem te preocupares com quem quer que seja, pois não olhas a posição das pessoas” (Mt 22,16).

Por ser assim livre, Jesus podia enfrentar com absoluta independência, o poder religioso e político de sua nação. Esta liberdade de espírito ele a confirmou, sobretudo na hora de sua paixão. Não perdeu, em momento algum, a sua dignida-de, como não fez concessão nem resistência alguma a quem o julgava e nem a seus algozes. Diante das autoridades, o

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Sumo Sacerdote o questionou sobre a sua doutrina e sobre seus discípulos e Ele respondeu: “Eu falei abertamente ao mundo, sempre ensinei nas sinagogas e no Templo, onde todos os judeus se reúnem, e não disse nada em segredo. Por que me interrogas? Interroga os que ouviram o que lhes falei. Eles bem sabem o que eu disse” (Jo 18,19-21).

Um dos algozes repreendeu Jesus e lhe deu uma bofetada: “É assim que respondes ao sumo sacerdote?”. Impassível, Jesus respondeu: “Se falei mal, mostra o que lhe disse de mal. Mas se falei bem, por que me bates?” (Jo 18,22-23). Eviden-temente, Jesus é livre e paciente, mas não é covarde. Preso e amarrado, reivindica a liberdade de expressão.

É impressionante a postura do Homem mais livre da história diante de Pilatos: “Tu és Rei?”. Jesus responde: “Sim, tu o dizes. Eu sou Rei” (Jo 19,37). Confirmou que veio ao mundo para dar testemunho da verdade. Pilatos pergunta, mas não espera resposta: “O que é a verdade?”. Busca clarear com os acusadores motivo de sua raiva e percebe que Jesus se dizia “Filho de Deus” e isto deixou Pilatos inquieto. A verdade é que o governador nunca ouvira um acusado com tanta dignidade. Sua independência absoluta foi manifesta sobretudo na corte do Rei Herodes (Lc 23,8-12). Há muito tempo Herodes queria conhecê-lo. Tinha curiosidade de ver algum milagre. Mas a Herodes, Jesus não disse sequer uma palavra. Seu silêncio o levou a silenciar na cruz, mas a proclamar a liberdade absoluta em sua ressurreição.

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37. Os primeiiros e os últimos

Não é difícil tornar antipático o que deveria ser mais simpático. Não é estranho pintar como temível o que é mais amável. Não é novidade fazer guerra em nome da paz. Quan-do se passa uma ideia errada de Deus, complica-se o direito mais sagrado do coração humano e da humanidade. Nossas relações andam muito conforme a ideia que temos referente a quem nos relacionamos.

Um deus à medida humana, produz humanos desumanos, oprimidos e opressores. Quando se pensa a justiça de Deus à maneira dos homens, faz-se do justo um fabricante de in-justiças. A doutrina da retribuição põe barreiras ao perdão, antecipa condenados e seleciona os justos, com quem Deus não sabe bem o que fazer.

A gratuidade é a marca maior do amor de Deus. A me-dida deste amor é amar sem medida. No coração de Deus a primazia é dada à bondade. Bem que o profeta Isaías dizia aos deportados que sonhavam vingança sobre os inimigos de outrora. Diz o Senhor: “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os meus caminhos não são os vossos caminhos” (Is 55,8).

Jesus nos deixa claro que Deus não age com os critérios da justiça e igualdade que nós imaginamos. Mais do que ficar medindo méritos das pessoas, como os humanos facilmente o fazem, Deus sempre procura responder a partir de sua bon-dade, humanamente incompreensível.

É lamentável quando se imagina um Deus ocupado em anotar cuidadosamente os pecados e os méritos dos humanos,

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para retribuir um dia exatamente, a cada um conforme o que mereceu. A lógica de Deus é diferente, e às vezes até oposta à lógica humana.

Em geral o que para os humanos é lucro, para Deus é perda; o que para nós está em primeiro lugar, para Deus está em últi-mo. Os primeiros serão os últimos e os últimos, os primeiros. Felizes são os que choram; os verdadeiros ricos são os pobres em espírito; quem quer salvar a vida a perde. Nosso Deus faz mais festa pela ovelha perdida e reencontrada do que pelas noventa e nove que estão na segurança.

Não existe nenhuma categoria humana que possa capturar a Deus em proveito próprio. Ele escapa a qualquer definição e revela continuamente novos aspectos do seu mistério. Crer no Deus amigo incondicional da vida, é a experiência mais libertadora que se possa ter, a força mais vigorosa para o bem viver e o bem morrer. Ao contrário: quando se cultiva uma falsa ideia de um Deus justiceiro e ameaçador, possibilita-se a neurose mais perigosa e destruidora da pessoa.

Por incrível que pareça, quanto mais se tenta negar a Deus e endeusar o ser humano e criar ídolos, mais a humanidade sente a verdadeira e nostálgica saudade do Deus que nos ha-bita, mesmo que dele nos pensemos distantes. São Frei Pio costumava dizer: “Não acreditas? Não te preocupes: é Deus quem acredita em ti”. Diante do Deus Bom, revelado em Jesus, a única coisa que nos cabe é a confiança.

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38. Onde vão parar os idosos?

No cenário de nossas famílias e da sociedade há uma rea-lidade que chama atenção, diante da qual não podemos ficar indiferentes. Trata-se do futuro das pessoas idosas. É compro-vado que na população, em geral, o número de pessoas idosas está aumentando rapidamente. Prevê-se que nos próximos dez anos venha a duplicar. Até 2050 chegue a 2 bilhões de pessoas na terceira idade.

A longevidade parece sempre mais favorável com a ajuda da ciência e a evolução de muitos meios favoráveis. Porém, está sendo mais do que comprovado que, não é suficiente o aumento de tempo da vida humana. Para quem considera a qualidade global da vida, não basta garantir mais anos à vida. Quanto se vive, é importante, mas é muito mais importante o “como se vive”.

Há alguns anos tive a graça de visitar um Kibutz em Israel. Neste tipo de fazenda economicamente independente, na qual tanto o trabalho, como a administração é coletiva, comprovam--se experiências humanas inspiradoras. Dentre elas, a que mais me chamou atenção é o modo como são vistos e tratados os idosos. Na partilha igualitária, que garante a sobrevivência, os idosos recebem como todos os trabalhadores, porque são considerados os sábios do Kibutz. Sua contribuição na comu-nidade é a partilha da experiência de vida e a sabedoria. Em nosso mundo ocidental, tudo é muito calculado em termos de impacto econômico e produtividade. Esta visão limitada se torna sempre mais uma ameaça aos direitos das pessoas idosas. Lamenta-se que a sociedade dita “eficiente” dos nossos dias

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empurre para a marginalização as pessoas mais vulneráveis, incluindo na linha de frente as pessoas de idade avançada, como se fossem um peso e um problema para a sociedade.

O fenômeno da longevidade da vida, deveria se tornar um motivo de contentamento social e familiar. Porém, para assegurar esta positividade do fenômeno precisamos pensar criativamente em novas estratégias políticas, econômicas e sociais. A própria Igreja se vê desafiada, não só a oferecer momentos de oração, mas também oportunizar espaços de ocupação e convivência, de sadio lazer, comunicação e cui-dado favorável à dignidade humana dos idosos.

É louvável o movimento da terceira idade, como possibili-dade favorável à ocupação e socialização dos idosos. Porém, não podemos ignorar os riscos de certas organizações que exploram as carências afetivas de muitos idosos solitários, como pretexto para expô-los a doenças contagiosas e com-prometer suas economias.

Outra realidade em relação ao processo de crescente enve-lhecimento é o aumento de geriatrias. Muitos idosos procuram este recurso para assegurarem-se melhores cuidados. Outros são internados por familiares que não conseguem garantir qualidade de vida, mas não os abandonam à solidão. Porém, não faltam os que são deixados em ambientes desumanos para viverem na amargura o resto de seus dias. “Não faças aos outros o que não queres que os outros façam a ti!”, ou venham a fazer por ti.

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39. Os sinos voltaramNuma Paróquia deste Brasil havia uma torre com um conjun-

to de sinos importados da Alemanha. Era costume acioná-los na hora da Ave-Maria e nos domingos, antes das Missas. A cidade se orgulhava dos sinos e de sua rara harmonia. Quando passava algum visitante, era espontâneo o elogio aos ditos sinos. As crianças cresciam marcadas com estes sons que despertavam para a beleza, o senso do sagrado e chamavam o povo para a oração.

O dito “progresso”, porém, veio entrando na cidade e trazendo novas indústrias, novos costumes, novos valores e até novas e requintadas exigências. Não demorou muito, que um grupo de ilustres novos moradores se reuniu e solicitou ao poder público, a suspensão do toque dos sinos, pois estes atrapalhavam sua rotina de trabalho e de sossego.

Os sinos da paz e da oração começaram se tornar argumento de conflito e desencontro. Para os moradores nativos o som dos sinos fazia parte, não apenas da paisagem da cidade, mas de sua própria vida. Um idoso chegou a dizer que a batida dos sinos já estava em sintonia com as batidas do seu coração. Mas para quem vinha com a fúria do progresso, os sinos eram estorvo à sua mente ocupada e nada acrescentavam às suas vidas. Eram um corpo estranho. Pouco ou nada falavam.

Entre dores e clamores, lamentos e acusações, finalmente foi decretada a suspensão do toque dos sinos. A cidade parecia não ser mais a mesma. A população habituada a entender-se com os sinos e se sentir convocada para a oração, parecia perdida e abandonada.

No meio desta sentida ausência, uma criança perguntou à mãe: “mãe, onde foram os sinos?”. E a mãe respondeu: “Foram

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embora!”. E a criança inocente perguntou ainda: “Mas, quem os levou?”. A mãe respondeu: “Foram os que não gostavam deles que os enterraram no silêncio!”. “Então, os sinos mor-reram?”, perguntou o menino. “Não, meu filho, eles foram mortos!”, respondeu a mãe. O diálogo continuou, motivado pela perda e na mesma proporção da tristeza do povo.

Os novos habitantes da cidade se tornaram malvistos e rejeitados. A situação foi se tornando sempre mais grave, causando-lhes um mal-estar pior do que o estorvo dos sinos. Foi então que decidiram rever sua posição e começar um diálogo com a comunidade. O diálogo foi clareando a realidade e esta começou suscitar o respeito pela história e pelas tradições dos habitantes nativos. Não demorou muito que os sinos voltaram a tocar, ou então ressuscitaram para o menino preocupado.

Ignorar a história, ou ser indiferente a ela, constitui-se um dos grandes pecados, não só para a tradição judaica, mas para toda a pessoa educada. O respeito pela memória e sua evoca-ção, também faz parte da fé cristã que valoriza a história de uma comunidade, com seus símbolos e sinais. Os sinos vol-taram! Tantas vezes dar um passo atrás é sinal de sabedoria e capacidade de resgate daqueles valores que muito contribuem com a harmonia e o futuro de um povo.

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40. Outro jeito de ouvir a Palavra

Existem pessoas que conhecemos por ver repetidas vezes, por saudações formais e até amistosas ou por ouvir falar. Mas o tempo pode ir se encarregando de revelar surpresas agradáveis e propiciar lições de vida e santidade, quando a própria pessoa se manifesta. É o caso de uma humilde senhora de noventa anos que participa da comunidade em serviços voluntários e nas Missas do primeiro horário dominical, às 7h30.

A mencionada anciã chegou na igreja por primeira, num destes domingos do tempo comum, e mostrou-me o aparelho auditivo, afirmando estar quase surda. Dizia-me: “Embora não escute quase nada, preciso participar porque minha fé me traz até aqui! Desde que começou a diminuir a minha audição, comecei a assinar alguma revista que traz a liturgia de cada domingo. Acordo cedo e me coloco a par das três leituras do dia e leio alguns comentários. Enquanto estou lendo, sinto que Deus me fala. Então vou para a Missa com a Palavra no coração, mesmo que os ouvidos não escutem”.

Pela primeira vez me dei conta que a pessoa de fé também se torna capaz de ouvir com os olhos. A fé revitaliza e integra todo o ser da pessoa e se irradia também na convivência co-munitária. Este diálogo revelador é mais uma confirmação que a pessoa envelhece conforme vive e também morre carregada da herança que sempre cultivou no terreno do seu coração.

Sempre ouvi falar que uma pessoa cega desenvolve outros sentidos, capacitando-se para enfrentar cenários que não vê com os olhos, mas sente e situa-se para poder andar com segurança. Agora a nossa vovó garante que ouve através dos

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olhos a fala de Deus, quando lê a sua Palavra. Realmente, mais do que os sentidos, a fé garante o olhar e a escuta do coração. Esta escuta e este olhar parecem ser os mais verdadeiros e mais amplos.

O que estamos falando, confirma a capacidade incrível do ser humano adaptar-se e administrar os limites que o percurso natural da vida vai apresentando. Quando se fecha uma porta, abrem-se janelas. Quando um caminho apresenta barreiras, outros caminhos se abrem. Se, ao natural acontecem reações e ajustes, quanto mais com a força motivadora da fé.

A fé é um recurso sobrenatural que nos é dado, para po-dermos ir trilhando o percurso da vida com dignidade e res-ponsabilidade, mesmo que nossa aparência exterior traga as marcas de nossas perdas. A fé, cultivada no dia a dia da vida, vai acendendo luzes para chegarmos iluminados na travessia das sombras da morte até a plenitude da ressurreição.

É sempre mais feliz a pessoa que vai se aproximando do ocaso da vida, quando esta foi sendo tecida com os recursos vislumbrados pelo olhar e a escuta do coração. Sempre somos mais do que aquilo que os olhos veem e os ouvidos ouvem. Nosso tamanho certo, conforme a medida da fé, é sempre maior do que nossos frágeis recursos humanos nos mostram. Podemos nos ver sempre melhores do que uma possível ava-liação estética exterior.

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41. Passar de ano, desejo de todos

Há uma expressão popular consagrada, que parte do mun-do escolar com suas etapas de ensino e formação: “Passar de ano”, não é apenas um desejo dos pais que querem ver seus filhos progredindo, e investem financeiramente em meios favoráveis. “Passar de ano” é também uma razão forte de todos os alunos conscientes e responsáveis, tanto crianças como jovens e adultos.

A reprovação escolar é sempre traumática, independente-mente da causa. “Passar de ano”, não é apenas uma sensação de alívio, mas uma perspectiva que se abre para outra etapa favorável a uma ascensão formativa, educacional e profissio-nal. “Passar de ano” é desejo de todos, porque nosso viver é dinâmico e impelido por grandes sonhos. Quando a pessoa já não aspira passar de ano e deixa de sonhar o novo, facilmen-te renuncia ao potencial que traz consigo, pondo em risco a capacidade de ser sujeito da história.

“Passar de ano” não é apenas um desejo dos frequentadores de escola. É também uma prática quase espontânea, de quem vai tirando, ou riscando as folhas do calendário de cada mês, até chegar ao fim de ano e substituí-lo por outro calendário do novo ano, ou por outra agenda. Assim vamos confirman-do que todos passamos pelo tempo, mas com esta passagem desejamos que a etapa seguinte seja sempre melhor.

Dar um passo em frente é próprio de quem caminha. Não é normal para os humanos andarem de ré. “Passar de ano” tem um preço que se chama responsabilidade e corresponsabilida-de. Geralmente, acionamos mecanismos de passividade e de

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acomodação. Desejamos que o ano novo seja feliz e melhor, porém tendemos imaginar que isto depende dos outros, ou da sorte e pouco de nós. Um novo ano necessita ser encarado como um dom de Deus, porque Ele é o Senhor do tempo e da eternidade. Torna-se também um dom real, quando tantos investem os seus dons e seu tempo, para que nós possamos alcançar e usufruir meios favoráveis ao nosso viver cotidiano. Nesta certeza e com esta experiência real, em contrapartida, somos chamados a arregaçar as mangas e fazer a nossa parte pessoal.

O que redime o tempo vivido de cada ano novo é a since-ridade do amor. E amor só existe quando se aprende a tomar a iniciativa. Se ficarmos esperando que os outros mudem, que os outros façam, que os outros se empenhem e cruzamos nossos braços, o nosso viver vai se atormentando pelos sonhos que nós mesmos atraiçoamos. Amar a vida, amar o tempo e acolher o novo com a alegria da responsabilidade já é uma vitória antecipada e alcançada.

Não temos certezas dos resultados do que investimos agora, para o dia de amanhã, mas temos certeza de que o melhor de nós que investirmos hoje, amanhã nos deixará mais seguros e felizes, por termos feito o que devíamos fazer. Vamos passar de ano, com certeza, se não na escola institucional, ao menos na escola da vida, pois vida que é vida será um permanente aprendizado de amor.

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42. Passo a passo o caminho se faz

Apesar dos mais sofisticados meios de locomoção e os no-vos recursos para encurtar distâncias, não podemos dispensar os passos do caminho. Os passos pequenos das crianças ou os grandes passos dos atletas e gigantes fazem parte do di-namismo humano que não nos permite parar. Uma das mais esperadas e agradáveis surpresas das crianças para seus pais, são os primeiros passos. Mesmo que exijam maiores cuidados, são a expressão de uma vida saudável a desabrochar.

A capacidade de dar passos é própria do reino animal. As pedras não andam, nem as árvores saltam quando são amea-çadas. Nós pertencemos ao reino animal, porém sabemos que o animal anda ao rumo que lhe é imposto pelos instintos. Para nós, humanos, não basta dar passos, ou caminhar. No coti-diano da vida somos chamados a ter consciência dos passos que damos, a fim de dar passos certos na direção certa. Antes dos pés se movimentarem, a mente precisa saber o rumo, a consciência deve discernir o caminho melhor. Então nossos passos andam movidos por nossas decisões livres, conscientes e responsáveis.

Às vezes, a impaciência de chegar, a ansiedade de estar no lugar em tempo e a pressa dificultam a valorização dos passos que damos. Bom é poder acordar e dar-nos conta que “passo a passo o caminho se faz”. Aprender a valorizar os passos revela a grandeza do coração humilde que vive a caminho, sem a pretensão de já ter chegado. Aliás, a cada provisória chegada, há sempre um novo horizonte que nos chama a prosseguir. Só

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chegamos quando nossos pés se tornarem imóveis e a vida no amor será o passo para a eternidade.

O salmista sabe utilizar a realidade simbólica dos passos como uma experiência religiosa decisiva nos caminhos da vida. O Senhor que é todo segurança firma os nossos passos! “Fizeste-me avançar em largos passos, meus tornozelos não vacilam” (Sl 18,37). “O Senhor firma os passos do homem, sustenta aquele, cujo caminho lhe agrada... A lei do Senhor está no seu coração e seus passos não vacilam” (Sl 37,23.31). “O Senhor tirou-me da fossa da morte, do barro do pântano, colocou meus pés sobre a rocha, deu segurança a meus passos” (Sl 40,3). “Examinei meus caminhos, voltei meus passos para teus testemunhos” (Sl 119,59).

Certo dia uma senhora cadeirante me dizia: “Eu sei que sou paraplégica por causa de um acidente. Não poderei mais andar com meus pés, mas meu espírito caminha sempre ao encontro daqueles que eu amo e dos meus sonhos que não estão paralisados.

Meu maior desejo seria voltar a andar. Hoje eu andaria di-ferente e daria um imenso valor a cada passo que eu pudesse dar. Mas, a estas alturas já estou integrando a minha situação de cadeirante. Com a graça de Deus estou aprendendo a ca-minhar de outro jeito, pois a vida não para e nem se esgota com alguns passos”.

Finalmente, fica o convite para que lembremos o valor do passo a passo, de um caminho já percorrido e o breve ou longo caminho que temos ainda a percorrer.

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43. Parece demais, mas é realidade

No curso de formação e experiência cristã, que vem se desenvolvendo na Comunidade Paroquial, um dos encontros tratava de clarear referenciais que ajudam a pessoa a entender--se com a vida. Na realidade, trazendo às claras um pouco do que somos, ficamos espantados, surpreendidos e continua-mos curiosos a nosso respeito. No final da aula, uma jovem participante avaliou os conteúdos estudados e disse: “Parece demais, mas é realidade!”. O que foi dito para se chegar a esta conclusão? Vou citar alguns elementos expostos, pois como pessoas temos características inigualáveis:

Somos únicos e irrepetíveis! Cada um, ou cada uma de nós pode dizer com segurança e sinceridade: “Como eu não houve ninguém. Eu sou único(a) e irrepetível na história da humanidade e no todo do universo”. Nem os gêmeos univite-linos, por mais parecidos que sejam, não são iguais. Quem os tem em família sabe disso. Parece incrível que a criatividade de Deus seja assim! Por sermos únicos, portadores de dons especiais e também defeitos diferenciados, somos também responsáveis e não podemos viver sempre de carona. O vo-lante de nossa liberdade nos chama permanentemente à nossa responsabilidade.

Somos insubstituíveis! As coisas são substituíveis. Se algo não serve mais, faz-se necessário substituir por algo melhor. Em nossos tempos, bem sabemos como a evolução técnica joga com o descartável. O que parece ser a melhor máquina de hoje, amanhã já está desatualizada e pedindo substituição

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devido ao jogo da eficiência e às vezes, empurrados pelo capitalismo selvagem.

A pessoa humana, ao invés, justamente por ser única e ir-repetível, também se torna insubstituível, não intercambiável. Às vezes, motivados pelo jogo da omissão e da acomodação, facilmente dizemos: “Ninguém é insubstituível”. Na verdade torna-se uma bela fórmula de desvalorização da pessoa “como si própria e como parte” da comunidade.

A cultura do descartável que se desencadeia na sociedade de consumo, não para apenas na rápida substituição de máqui-nas e objetos, mas ronda também no uso das pessoas, como se fossem coisas intercambiáveis, como simples corpo. Este tipo de cultura vai aumentando a massa sobrante da multidão dos solitários do mundo.

Somos intransferíveis! Posso transferir-me geograficamen-te. Posso transferir o meu título eleitoral e até passar procura-ção a alguém confiável, para fazer algum negócio importante em meu nome. Porém, jamais poderei pensar em transferir a responsabilidade do meu viver e do meu destino para quem quer que seja. Cada um de nós é o que é diante de Deus.

Isto tudo o que foi dito deve-se à grandeza da pessoa que vale mais do que todo o universo, por ser o máximo valor encontrado na terra. A estima, o respeito e o amor devotado aos humanos são um ato moralmente tão nobre que pode ser superado somente pelo amor para com Deus. Parece demais, mas é realidade!

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44. Qual poder vencerá?O mundo é um cenário agitado, onde os humanos são atores

dos mais diferentes poderes. Todo o poder anda em busca de vitórias. Então nos perguntamos como participantes deste ce-nário: “Qual poder vencerá?”. Esta pergunta, humanamente é procedente porque, dificilmente alguém quer se situar no lado dos derrotados. Vou apenas citar alguns poderes que lutam no cenário do mundo.

Existe o poder econômico que, possivelmente desponta na sociedade com maior força condicionadora da luta pela vida. Este tipo de poder divide os humanos em pobres e ricos; classifica a sociedade; cria dominados e dominadores, luxo e miséria, status social e exclusão, violentos e violentados, refugiados e ditadores etc. Este poder, que lida com a riqueza de alguns, reduz à pobreza multidões que povoam as periferias do mundo e confirma que, a pior pobreza vem pelo dinheiro.

Há o poder ideológico, como um instrumento de dominação. Este age por meio do convencimento e da persuasão, alienan-do a consciência humana. Marx afirmava que a ideologia da classe dominante tinha como objetivo, manter os mais ricos no controle da sociedade. Servia-se deste argumento para justificar a luta de classe. Em todos os tempos despontam novas ideologias sempre necessitadas de atenção e senso crítico. Citamos a ideologia fascista, comunista, capitalista, conservadora, anarquista, nacionalista, de gêneros etc.

Também pode nos surpreender o poder político, onde se garante a promoção do bem comum com propostas ideoló-gicas, projetos sociais e econômicos e soluções embrulhadas em sonhos que, muitas vezes, terminam em pesadelos de uma sociedade.

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Em nosso momento histórico desponta também um poder de alto risco, que entra pela porta do religioso. O poder re-ligioso, quando manipulado pelos humanos desconectados do divino, movimenta fanatismos, cria ídolos e idolatrias, canoniza os santos do mercado e, em lugar de promover a vida, aliena multidões.

Não convém esquecer o poder institucional de quem está à frente de uma família, uma escola, uma instituição religiosa ou social. Tanto como os outros, este poder também tem seus riscos como: incorrer no autoritarismo, no personalismo ou até mesmo entrar no mundo dos privilégios. Qual poder vencerá?

Nós cristãos temos absoluta certeza de que o único poder decisivo e definitivamente vitorioso, é o poder da cruz. “O último inimigo a ser vencido é a morte, pois Deus pôs tudo debaixo de seus pés” (1Cor 15,26). A mesma carta continua: “A morte foi absorvida na vitória! Ó morte, onde está tua vitória?” (1Cor 15,54-55).

Concluímos que o único poder vitorioso, já confirmado na história, é o poder do serviço, do amor, da doação e da cruz, do Crucificado-Ressuscitado. Este poder não vem da força humana e nem das possíveis tramas de dominação, mas vem do Espírito. Aquele mesmo que esteve presente no início da criação, que tirou a vida da morte e continua agindo pela força criadora e redentora do amor.

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45. Quando as opiniões ajudam

Há momentos e situações da vida, onde a espera por mui-tas opiniões pode se tornar o caminho da ruína e da morte. Opiniões partilhadas, com sabedoria e corresponsabilidade, podem ser a estratégia para situações melhoradas. Opiniões partilhadas por ideologias interesseiras e vaidades pessoais, pode ser o começo das obras paralisadas.

Creio ser do conhecimento de todos, aquela velha história de duas crianças que estavam brincando num lago congelado. O gelo criava uma crosta em todo o lago, a ponto da crian-çada poder brincar com alegria e segurança sobre ele. Num inesperado momento, uma das crianças resvalou e caiu num vazio e foi para baixo da crosta na água congelada. A colega, num ímpeto de criatividade, agarrou uma pedra e pôs-se a bater no gelo para libertar sua amiga que estava se afogando. Conseguiu romper o gelo, agarrou-a pelo braço e a salvou.

Ao redor do lago havia umas pessoas que viram o fato. Um dos curiosos ficou encantado com a presteza da menina que havia salvo a colega e perguntou: “Como foi que conseguiste salvá-la de forma tão rápida?”. E a criança respondeu: “Porque ninguém estava aqui para dar opiniões!”.

Um outro fato real aconteceu num momento em que se fazia necessário pintar a Igreja Matriz de uma comunidade. Quando foi feita uma consulta popular apareceram tantas opiniões cruzadas que foi necessário suspender a reforma para não dividir e complicar a comunidade. Bastou a opinião de uma arquiteta, entendida em arte sacra, para efetivar uma pintura harmônica e condizente com o espaço celebrativo.

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Creio que a elegância democrática exija a partilha de opi-niões. Creio que a participação das pessoas nas decisões, é sempre um caminho de comprometimento para concretizá-las. Creio que a soma positiva de opiniões possa resultar numa qualificada e mais segura decisão. Creio também que muitas cabeças pensam melhor do que uma só.

As opiniões ajudam, quando apresentam o melhor, quando unem pessoas nos objetivos comuns e favorecem a integração dos saberes, a afetivação do que é comum e a cooperação nas decisões que liberam o justo progresso. As opiniões ajudam quando se consegue valorizar também a opinião dos outros, sem achar que a própria opinião é a única.

Porém, a espera de muitas opiniões pode levar a lugar ne-nhum, quando há decisões urgentes a serem tomadas. Quando o circo está incendiando não há como ficar discutindo opiniões, a não ser apagar o fogo. Num restaurante, em Porto Alegre, uma pessoa engasgou-se ao comer um churrasco e estava se asfixiando. Um médico hábil, que estava no restaurante, perfurou a garganta com uma caneta e conseguiu salvar o paciente sem esperar opiniões.

Ninguém é dono da verdade, mas todos têm um pouco de verdade a oferecer para construir. Deus nos livre de achar que democracia é somar ignorâncias e nivelar por baixo as opiniões de um povo. A liberdade de opinião tem limite e será sempre mais livre, na medida da aproximação da verdade que liberta.

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46. Quando Deus quis se revelar

Diz o povo e dizem os entendidos que, enquanto a hu-manidade inventa grandes progressos, também cria grandes complicações. Geralmente isto acontece porque se começa a desconhecer o que é simples, pequeno e próximo. A cultura do encontro “coração a coração” se vê substituída por interfe-rências que, subliminarmente vão distanciando e esvaziando as relações mais humanas e humanizantes.

Com Deus acontece o contrário. Sendo rico se faz pobre; sendo divino se faz humano; sendo Senhor, se faz servo. Na verdade, quando Deus quis se revelar em pessoa, o que se apresentou foi uma face humana. “Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do homem”. Tamanha simplicidade revelou-se no rosto de uma criança. “Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido, envolto em faixas e deitado numa manjedoura” (Lc 2,12), disse o Anjo aos pastores. Partindo desta revelação tão próxima, o cristianismo se acha indissoluvelmente ligado à nossa condição humana... “Cris-to manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação” (Gaudium et Spes, n. 22). Jesus trouxe ao mundo uma nova compreensão da vida hu-mana. Esta compreensão é um convite a viver profundamente a nossa existência.

No momento em que nós, humanos de nosso tempo, des-cobrirmos toda a dimensão antropológica do acontecimento Jesus Cristo, nos deixaremos seduzir, irresistivelmente por ele. Fascinados pela liberdade; afeiçoados às nossas conquistas e sedentos de uma global qualidade de vida, ao descobrir “quem

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é esse homem” e qual é sua proposta de vida e convivência, nos encantaremos por encontrar o Cristo, capaz de compreen-der e assegurar com êxito, até o fim, a aventura que é a vida humana na terra.

É lamentável, quando nos damos conta que vivemos e convivemos num mundo que treina viver sem Deus e, con-sequentemente, vai criando vazio de sentido para a vida e aumentando a cultura do medo na convivência social. Em grande parte, isto se deve a uma reação contra um Deus sem homem e sem mundo que, muitas vezes nos foi e nos é apre-sentado. “A resposta para as dificuldades que detêm muitos de nossos contemporâneos no caminho da fé e na escolha do ateísmo, exige entre outras coisas, que manifestemos sempre o impacto humano das coisas de Deus” (Yves Congar).

Todas as obras de Deus têm necessariamente uma ressonân-cia humana. Deus não se revelou para si, mas para os humanos a fim de confirmar o que desejava ser para eles. O Reino que Deus inaugura na terra, em Cristo, é o Reino para o homem a quem sacrificou, de certo modo, a sua divindade. “Ele que era de condição divina não reteve ciosamente a posição que o igualava a Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se semelhante aos homens. E, reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais obe-decendo até à morte e morte de cruz” (Fl 2,6-8).

Tamanha proximidade de Deus, torna-se o argumento mais convincente de nossa proximidade a ele. Em Cristo, o rosto da misericórdia do Pai encontramos a razão para a verdadeira promoção da dignidade humana.

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47. Recuperando a esperança

Conta-se que numa pequena aldeia do Oriente, uma doença rara se difundiu desastrosamente. O contágio foi rápido e de-sesperador. A esperança adoeceu e o desespero tomou conta da população. A estiagem de um ano se repetiu no ano seguinte e o cenário global parecia um deserto sem vida. Os animais morriam e a produção de grãos desapareceu das lavouras.

Neste violento ataque à esperança, as pessoas já não conse-guiam se comunicar a não ser se agredir no desespero. Nesta epidemia os laços familiares rompiam-se de muitos jeitos. Os jovens fugiam para outras terras sem rumo, mas em busca de algum sinal de esperança saudável. Os mais velhos não tinham força de reagir e nem coragem de se aventurar. As autoridades da aldeia não tinham poder de decretar leis para salvar a esperança.

Depois de um tempo onde os olhares se cruzavam em lágri-mas e o vocabulário das conversas era reduzido a palavras de desalento, um jovem decidiu convocar uma assembleia para ver se era possível encontrar um remédio à esperança enferma. As pessoas mais desesperadas se negaram a participar por não acreditarem na possibilidade de cura.

Um grupo significativo, mesmo com olhares suspeitos, decidiu participar, pois achavam que não tinham mais nada a perder. Ali, sem receitas mágicas, começaram a surgir algumas sugestões de remédios para a esperança. Um pai de família sugeriu aos homens da aldeia a retirarem as barbas de luto e cortarem os cabelos, recuperando o semblante da normalida-de perdida. Uma idosa pede para as mulheres vestirem suas

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melhores roupas. Um cego convidou um paraplégico a montar em seu pescoço garantindo-lhe as pernas para andar enquanto contava como seus olhos sãos para enxergar o caminho.

As crianças da aldeia também combinaram voltar à pra-ça para brincar e sorrir. Donas de casa decidiram reunir os punhados de farinha que ainda restava para fazerem o pão e partilharem entre vizinhos. Todos decidiram mudar o discurso do desespero por palavras de encorajamento como: “Tudo vai passar!”. “Amanhã será melhor!” “Se no passado era bom, no futuro ainda mais!”

As pequenas decisões positivas foram se tornando um mi-lagroso remédio a curar a esperança enferma. Dos pequenos gestos de esperança, o que parecia impossível foi tecendo uma nova história. Até a chuva chegou para confirmar a transformação. Não demorou muito, que a aldeia passou da enfermidade para uma convivência saudável e feliz.

Quando li esta narrativa lembrei-me do que o Novo Cate-cismo da Igreja Católica diz a respeito da esperança cristã: “A virtude da esperança responde à aspiração de felicidade colocada por Deus no coração de todo o homem; assume as esperanças que inspiram as atividades humanas; purifica-as, para ordená-las ao Reino dos céus; protege contra o desânimo; dá alento em todo o esmorecimento; dilata o coração...preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade” (1818).

Com razão dizia o Papa Francisco aos jovens no Rio de Janeiro: “Não deixem que vos roubem as esperanças!”.

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48. Recuperando o senso de humanidade

O senso de humanidade sempre foi uma marca original do Criador, impressa no coração de cada homem e de cada mulher. Não é por nada que o livro do Gênesis proclama que, após ter criado o homem e a mulher, “Deus viu que tudo o que tinha feito era muito bom” (Gn 1,31). Porém, a tentação da liberdade humana, sempre buscou e busca desenhar cenas e cenários de pretensa autonomia. Este endeusamento falso foi e continua sendo causador dos maiores prejuízos ao senso de humanidade.

Dizem que a evidência dos fatos é mais do que uma possí-vel teoria. A realidade se antecede a um sonho que desejamos desfrutar. Digo isso, porque a todo instante comprovamos em todos os ambientes, não só a dificuldade sentida, mas a realidade vivida de uma acentuada perda do senso de huma-nidade. A espontaneidade de conviver, até mesmo em família, deixa-se subjugar por aparelhos de televisão e redes sociais. Quando se transforma um meio em fim, o que deveria ser um fim passa a ser meio. Assim a pessoa, facilmente passa a ser um estorvo em nosso caminho.

A perda do senso de humanidade vai se tornando um ca-minho favorável à idolatria dos animais, achando que são mais do que os humanos. Não parece ser de outro planeta ver pessoas que viram dependentes de gatos e cachorros. Até já vi, em programa de televisão, uma família de classe média, centrando toda a atenção num porco de estimação, dando-lhe trato de príncipe, vestindo-o com roupas finas e dormindo com o cão. O problema não é tratar bem os animais! O problema

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não é utilizar os novos meios que a capacidade humana nos põe à disposição! A desgraça é a perda do senso de humani-dade que reverte e subverte o valor de tudo. E quando um ser humano é subestimado, rejeitado e coisificado, cedo ou tarde reage de forma desumana para cobrar o que lhe era merecido e não lhe foi dado.

Nestas alturas, gostaria de virar a medalha, deixando de evocar a escuridão, lembrando as possíveis luzes da recupera-ção do senso de humanidade. Tudo começa quando a pessoa deixa de se endeusar e consegue, a partir de Deus, olhar a si, os outros e o mundo, naquela dignidade e responsabilidade original. “Deus viu que tudo era bom!” Só podemos recuperar o senso de humanidade quando reaprendemos a olhar, pensar e tratar o humano a partir do divino que está em cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus.

A recuperação do senso de humanidade é possível, sem-pre que cultivarmos a alegria do Evangelho. “O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista, que brota da busca desordenada de prazeres superficiais da consciência isolada.

Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros... já não se ouve a voz de Deus... Convido todo o cristão a renovar o seu encontro pessoal com Jesus Cristo... Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor infinito e inabalável nos confere” (Francisco, “A Alegria do Evangelho”, n. 2).

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49. Santificados e santificadores

João Paulo II, santo já! Quem não lembra aquela cena emocionante dos primeiros dias de abril de 2005, quando a multidão gritava na Praça de São Pedro, declarando a santi-dade do Papa que marcou a humanidade com a presença, a palavra e os gestos de proximidade e amor? A rapidez de sua beatificação e sua canonização, comprovam a passagem de um homem santificado e santificador, num tempo de comple-xidade e acentuado secularismo.

Numa de suas visitas ao Brasil, quando beatificou a Madre Paulina, em Florianópolis, João Paulo II dizia que o Brasil precisa de santos. Naquela época li o comentário de um jor-nalista, referente a esta afirmação do Papa. Dizia ele que, a princípio, achava estranha a afirmação, mas depois começou a pensar e compreendeu o porquê da necessidade de santos. Escrevia então que, se o Brasil tivesse mais homens e mulhe-res santos e santas, haveria menos corrupção, mais bondade, justiça e senso de humanidade. Concluía seu artigo dizendo: “O Papa tinha razão!”.

Como imaginamos homens e mulheres santificados? Co-meço dizendo que são gente da nossa gente que honra e dig-nifica a condição humana. Não são anjos, nem super-homens, nem supermulheres, mas pessoas tão humanas que se deixam possuir pelo divino, permanecendo na terra, caminhando ao nosso lado. Quanto mais se aproximam de Cristo, mais se aproximam dos humanos sem fugir do cenário de nossas realidades mais contraditórias.

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Santificados, sim! Porque a santidade não é resultado mate-mática de nossos esforços e artifícios. Quem santifica é Deus Pai. Ele é o santo e a fonte de toda a santidade. É ele que nos envia seu Filho como medida correta para nossa verdadeira santidade. Seu Espírito Santo, agindo em nós, nos faz santos. Honrar os santos significa, antes de tudo, honrar a Deus Pai, o todo santo. As pessoas podem ser chamadas “santas” enquanto souberam imitar, apesar de suas debilidades, a santidade de Deus. “Sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2).

Na verdade, os santos e santas são o melhor fruto da Páscoa de Jesus Cristo, o “Santo de Deus”: ouviram a sua palavra, procuraram praticá-la e foram aprendendo seu estilo de vida. Honrar os santos é festejar e celebrar o êxito de Cristo e da dignidade humana a que somos chamados. Todos os santifi-cados são também santificadores. Seu exemplo de vida, sua capacidade de superação, seu jeito de ser e se relacionar, suas ações benéficas e sua fé traduzida em obras, liberam um contágio estimulante a tantos que buscam uma vida me-lhor. Referindo-se a João Paulo II, seu ex-secretário, Cardeal Stanislaw Dziwisz afirma: “João Paulo II continua sendo um líder espiritual para muitas pessoas e os ensinamentos dele inspiram uma vida melhor”.

Agostinho de Hipona, em seu processo de conversão procurava conhecer a vida e as obras dos santos e dizia: “Se tantos e tantas venceram, por que não haverei de vencer!”. Aproximando-nos dos santos, aprendemos melhor o caminho para Cristo ressuscitado, nosso princípio e nossa meta.

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50. Será que ainda vale a pena?

Há uma pergunta no ar de nossa cultura atual, que vem inquietando crianças, jovens, adultos e anciãos. Não se esca-pam, desta angústia, os camponeses, os habitantes das grandes cidades, os analfabetos e os que andam pelos corredores das universidades: “Será que ainda vale a pena?”. Gramatical-mente, a pergunta está correta e clara. Existencialmente e cristamente, a pergunta pode ser perigosa.

Perguntar-se sobre o que ainda vale a pena, pode ser uma expressão de sabedoria e resultado oportuno de discernimento. Na verdade, há muitas coisas na vida e na história que não valem a pena. Não só se perde tempo em dar-lhe importân-cia, como se tornam tremendamente prejudiciais quando nos ocupam e nos preocupam.

O perigo desta pergunta se dá, quando começa minar as decisões mais importantes da vida e até o próprio sentido da vida. Quando se começa indagar se vale a pena investir na família; quando jovens despertam animados para um estado de vida, começam andar e, em breve se deixam contagiar pela desmotivação e desistem; quando se faz um juramento de fidelidade por toda a vida e, com o passar dos dias, se deixa a rotina tomar conta; quando já não se investe mais em criativi-dade e garra e começam as acomodações na “medida baixa da vida”; quando se insiste em questionar se a vida tem sentido e se ainda vale a pena viver, então este tipo de pergunta, em lugar de nos fazer crescer, nos vai levando para a morte lenta.

Será que ainda vale a pena? Este tipo de pergunta, também perigosa, pode surgir quando passamos a nos medir pelos

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outros. Porque vemos tantos casais se separando, a tendência é jogar a culpa no casamento e questionar sua validade. Quando vemos religiosos e religiosas se complicando e abandonando seu compromisso, logo se questiona a validade da vida con-sagrada. Quando um Padre erra e deixa seu ministério, não se demora a questionar a validade do sacerdócio. Quando numa cidade aumenta a onda de suicídios, não é de estranhar que se coloquem dúvidas sobre o sentido da vida.

No coração da vida, fazer-se perguntas é sempre benéfico. Aliás, não podemos esquecer que a fé é sempre esta aventura movida a perguntas que nos impelem para frente, mesmo em terreno desconhecido. Porém, quando se vive minando tudo de dúvidas e não se arrisca mais; quando a dúvida passa a ser um método mórbido de viver, de agir e conviver; quando tudo o que é sólido vai se desmanchando no ar e não se investe mais em construir algo bom, verdadeiro e belo, então as eter-nas dúvidas nos jogam para um viver depressivo e perigoso.

Diante deste tema, tão sério para uma vida rica de sentido, sugiro que se leia a Parábola dos talentos de Mateus 25,14-30. É possível que os três personagens tenham se questionado se “valia a pena” investir ou não. Dois arriscaram e tiveram sucesso. O que menos recebeu, se envolveu de medo, não arriscou e se deu mal. Conclusão: Se alguém não se arrisca por medo de errar, já errou por não arriscar!

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51. Se o ruim pode piorar, o bom pode melhorar

Num momento crítico de nossa nação, onde as boas ma-nifestações e reivindicações se chocaram com destruições e vandalismos, certa jornalista escrevia um artigo com este título: “Nada é tão ruim que não possa piorar”. Por ter achado uma afirmação sábia e verdadeira, pensei em refleti-la com os leitores “no coração da vida”.

É mais do que comprovado que um mal nunca vem sozinho. Ao natural, o ruim tende a piorar. Ouvindo e vendo, quase diariamente, lamentos e dramas de pessoas, comprova-se que a crise econômica gera crise de relacionamentos, a crise de relacionamentos provoca separações e brigas, as separações aumentam a multidão dos solitários e a solidão se torna agente de abandonos, depressões e frustrações. Porém, quando se forma um círculo vicioso há sempre um alerta que aponta para a possibilidade de efetivar um círculo virtuoso.

Para estancar a piora do ruim, e sanar este retrocesso humano e social, são necessários muitos recursos, ajudas e reações. A primeira delas é a pessoa admitir que isto seja possível. Quando a mente humana se auto convence da possibilidade de uma virada para melhor, o que parecia o fim pode se transformar em novo começo. Se o melhor da autoestima se juntar a soli-dariedade, o círculo vicioso vai se transformando em virtuoso.

O Papa Francisco, em sua visita à Comunidade de Varginha clama às autoridades públicas e às pessoas de boa vontade pela cultura da solidariedade: “Não se cansem de trabalhar por um mundo mais justo e mais solidário!... Cada um, na medida das próprias possibilidades e responsabilidades, saiba dar a sua

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contribuição para acabar com tantas injustiças sociais! Não é a cultura do egoísmo, do individualismo, que frequentemente regula nossa sociedade, aquela que constrói e conduz a um mundo mais habitável, mas sim a cultura da solidariedade”.

Se é verdade que o ruim pode piorar, também é verdade que o bom pode melhorar. Ouvi há muitos anos, uma frase que dizia: “Os ruins não são bons, porque os bons não são melhores”. Claro, aqui há um perigo de ficar pensando e classificando: quem são os ruins e quem são os bons!? A tentação do maniqueísmo ainda não passou. Geralmente nos colocamos no lado dos bons. Neste caso, ao menos devemos nos perguntar: “Como, e em que eu posso ser melhor para estimular os outros?

O bom e o bem sempre podem melhorar. Desde as coisas mais simples de nosso uso diário, nossos bens mais valiosos e, acima de tudo a nós mesmos, sempre necessitamos dedi-car cuidado e cultivo. Para melhorar e otimizar a vida e as relações o argumento mais consistente nos vem da fé. Pois a fé nos abre para o recurso do sobrenatural, onde se encontra a fonte inesgotável da beleza, do bem, da verdade e da reli-gião. Nossa verdadeira imagem não se encontra em nenhuma oficina especializada, mas no coração de Deus que nos fez à sua imagem e semelhança. Em Cristo revela-se o projeto de pessoa perfeita no qual podemos nos adequar sem medo de errar. Nele os ruins encontram a cura e os bons podem se santificar.

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52. Superando as crises da vida

Sabe-se bem, que a palavra crise nunca caiu da moda. Aliás, é das mais usadas e atuais, como indicativo de um fenômeno real e possível, mas também indesejável. A crise não poupa ninguém, nem mesmo as instituições mais seguras e sagradas. O difícil é encará-la com simpatia e transformá-la em matéria prima de crescimento e mudança.

A crise perpassa todos os níveis da existência humana. Há crises biológicas, começando pelo parto. Outras tantas podem nos atacar inesperadamente no caminho, atingindo partes de nosso físico. Há crises passageiras e crônicas, diante das quais buscamos os recursos da medicina e dispensamos os mais diversos cuidados. E, finalmente acontece a grande crise do segundo parto que é a morte.

Em nossa vida, podemos ser abatidos por crises psicoló-gicas que alteram nosso emocional e nosso sistema nervoso, provocando reações de risco. Também podemos vivenciar crises espirituais que são as mais profundas e, às vezes, as mais angustiantes porque atingem o sentido de nossa vida e comprometem o ajuste de todas as nossas relações.

Além das crises pessoais e existenciais, existem as crises familiares, grupais, sociais, institucionais, históricas, políticas, econômicas etc... Na verdade, crises não faltam. Toda a questão é como superá-las e torná-las matéria prima de crescimento e maturidade. A medicina pode nos ajudar, a psicologia pode nos oferecer luzes de compreensão de nossos comportamentos, de integração e superação. Porém, a espiritualidade, continua

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sendo a reserva mais autorizada, para integrar e transformar o que parece negativo em esperança.

Para cada crise há necessidade de um trato especial, com diagnóstico especial e tratamento adequado. Certamente não são as crises que deverão comandar a história pessoal e social, mas a busca de saídas e as decisões práticas que são fruto da nossa capacidade solidária e da parceria com Deus, para quem “nada é impossível”.

É bem sugestiva a parábola da casa sobre a rocha do Evan-gelho de Mateus. Pode vir a chuva, o temporal e o vento forte e se abater contra a casa, mas esta não cai, porque está edifi-cada sobre a rocha. A vontade do Pai, expressa na sua palavra, quando levada a sério, torna-se o recurso inquestionável na superação da crise. Aquele que assim falou, na Cruz, passou pela pior das crises, chegando a gritar: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste!”.

Na entrega à vontade do Pai, Jesus atravessou o vale da morte para garantir a palavra final à vitória da vida. Huma-namente temos dons e possibilidades mil para ir superando as crises do caminho. Mesmo assim podemos fracassar em nossas tentativas. Porém, na fé, no dinamismo da esperança e no investimento do amor, até mesmo nossos aparentes fra-cassos podem se transformar em sucessos e vitórias.

Fica bem concluir confirmando um dito popular: “Não digas a Deus que tens crises, mas diga às crises que tu tens um Deus”.

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53. Superando a mesmice pela criatividade

A vida ensina que a mesmice é o caminho para a rotina e a rotina é o túmulo da esperança. Um segundo, um minuto, uma hora, um dia e uma semana depois da outra, pode dar a impressão de que estejamos dentro de uma roda que gira e nos devolve sempre no mesmo lugar.

Afinal, o que faz acontecer a mesmice na vida de alguém? Na verdade, esta palavra não é bem-vinda! Ela traduz uma experiência negativa de quem vive de forma automática e age como se fosse um robô sem alma, nem sentimentos e sem consciência do que é, do que diz e do que faz.

A mesmice pode ser revelada nas palavras que falamos, nos atos que fazemos e até mesmo nos relacionamentos cotidianos. Por exemplo: quando alguém fala sempre a mesma coisa e não consegue falar de outro assunto a não ser do tempo, das doenças e das desgraças, isto é mesmice.

Mesmice é a teimosia de quem acha que nada de novo tem a inventar e nada tem a acrescentar. Mesmice é bater o pé sempre no mesmo chão e achar que não há mais caminho a percorrer. Mesmice é achar que já sabemos tudo e fechamos a mente e o coração para qualquer aprendizado.

Quero deixar claro que a mesmice não se confunde com fazer as mesmas coisas, nem em repetir as mesmas palavras ou frases, nem mesmo percorrer sempre os mesmos caminhos. O que faz a diferença são as motivações e o conteúdo interior que se cultiva para que tudo o que repetimos seja sempre resultado de renovadas intenções e profundas convicções.

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O que deprecia a vida é estagnar na mesmice e não ousar fazer mais nada a não ser o que está estabelecido como obri-gação. Há pessoas que trabalham em fábricas e só fazem a mesma coisa há muitos anos, mas conseguem ser criativas dedicando tempo para leitura, trabalhos artesanais e até mesmo no cuidado da horta, do jardim e de sua propriedade.

Conheço operários que se ocupam na mesma atividade durante oito horas por dia e acionam a criatividade para outros cuidados domésticos, transformando sua propriedade em verdadeiros cartões de visita. Os inconformados com a mesmice procuram sempre novas maneiras de ocupar-se. Felizmente, aumenta em nossos dias o número dos volun-tários e voluntárias que somam ajudas em obras sociais, em movimentos que defendem e promovem a vida e não cedem à tentação da rotina.

Em todas as nossas regiões, há histórias de pequenas em-presas de família que iniciaram de forma muito primária e artesanal. Mesmo produzindo os mesmos produtos e vivendo nos mesmos espaços conseguiram fazer caminhos de criati-vidade e se tornando grandes empresas de sucesso.

O melhor da criatividade não é fazer sempre e tudo novo. A boa criatividade é aquela que consegue atualizar, qualificar e aprimorar a partir do chão de nossas conquistas já obtidas.

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54. Superando os medosHá um fenômeno curioso que parece aumentar cada dia em

todos os recantos do mundo, mas principalmente no íntimo das pessoas. Esse fenômeno está impregnando todo o tecido social e até mesmo o ar que respiramos. Trata-se do fenômeno medo. Não se sabe bem de onde vem e nem para onde vai. A raiz do medo permanece velada, mas, ao mesmo tempo se revela na agressividade, na desconfiança, no autoritarismo, na insegurança e em todos os segmentos onde os humanos atuam.

Hoje, o medo vai além de uma sensação momentânea. Está se tornando uma cultura, confirmada nos muros, nas cercas eletrônicas, nos espirais de arame farpado, nos condomínios fechados, nos mais diferentes tipos de monitoramento, nos alarmes sofisticados, nos cadeados e chaves e, acima de tudo, na insegurança generalizada.

Há medos de sair e medos de voltar. Há medos de falar e medos de calar. Há medos das multidões e medos da solidão. Há medos na rua e medos no ambiente de trabalho. Há medos dos outros e medos de si mesmo. Há medos do presente e me-dos do futuro. Há medos das evidências e medos do mistério. Há medos das promessas milagreiras e medos de quem nada promete e se dispõe a fazer. Não precisamos mais elencar tantos tipos de medos para não causar ainda mais medo.

Além de pesquisar as causas do medo, que são tantas, seja em desfavor do indivíduo, como da sociedade, também seria importante evidenciar as consequências reais de tantos medos. Sabe-se muito bem, que a pior e mais danosa é a paralisação dos talentos pessoais, dos recursos institucionais, das espe-ranças criativas e de um novo horizonte a ser alcançado.

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Porém, o que deve interessar, mesmo, é o título do artigo: “Superando os medos”. Mas você, leitor, pode perguntar: “Ainda é possível isso?”. A partir de nós mesmos, pode parecer impossível, mas para Deus, tudo é possível. Aqui lembrei-me de um simples fato ocorrido no rancho de um pobre, mas sábio mendigo. Numa única peça ele tinha um velho fogão, uma cama e uma mesa. A mesa, de quatro pernas de madeira, estava sendo devorada polos cupins. Num dia quebrou uma perna da mesa, em seguida quebrou uma segunda e outras duas estavam também comprometidas.

O mendigo sábio, vendo a mesa sem pernas, decidiu pendurá--la, com arame, no teto da casa. E concluiu: “quando não dá no chão, o jeito é garantir por cima!”. Sem Deus, a mesa do banquete da vida vai comprometendo as pernas pelos cupins da cultura do medo, da desconfiança e da indiferença. No final da vida, um célebre filósofo ateu, interrogado por um jornalista sobre o futuro, respondeu: “Só Deus poderá salvar a humanidade!”.

No mar da vida, Cristo é nossa segurança. “A barca, longe da terra, era agitada pelos ventos... Jesus veio até os discípu-los andando sobre o mar... apavorados de medo disseram: ‘É um fantasma!’ Jesus logo lhes disse: ‘Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!’”. À nossa frente, ao nosso lado, acima de nós, dentro de nós, no meio de nós, está o Ressuscitado que nos diz: “Sou eu! Não tenhais medo!”.

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55. Superando os ranços da vida

Cada pessoa tem sua história de vida e convivência. Há o que faz parte da existência pessoal e herdamos gratuitamente, sem a nossa intervenção. Na raiz a vida pessoal é sempre um dom daquele que nos pensou. O profeta Jeremias confirma esta realidade primeira quando diz: “Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já te conhecia, antes de saíres do ventre, eu te consagrei...” (Jr 1,5).

Na medida em que vamos crescendo e tomando consci-ência, também vamos percebendo que o dom recebido vai nos chamando à responsabilidade e à corresponsabilidade. O amor criador do Pai não seria amor se fosse paternalista e nos tirasse a responsabilidade e a corresponsabilidade da vida. Se o risco do amor de Deus é nos criar livres, o risco de nosso viver é o assumir ou não a nossa responsabilidade.

Neste caminho de relações de responsabilidades e corres-ponsabilidades da vida, nem tudo vai acontecendo do melhor modo. Certamente existem muitos acertos e êxitos, mas também tantos erros e fracassos. Não tarda no ser humano, que vai avançando em idade, o surgimento de mecanismos de acomodação e autodefesa. Geralmente, estes reagem e se protegem com acusações. Eu me defendo acusando os outros, os fatos, a história etc.

Na medida em que vou colecionando “ranços do passado”, para me justificar e me proteger, vão se avolumando agres-sividades, insatisfações e azedumes. Numa das homilias, na Casa Santa Marta, o Papa Francisco fala dos cristãos que parecem pimentões em conserva de vinagre. Esses humanos

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colecionadores de ranços impedem a comunicação do evan-gelho da alegria e, dificilmente alguém procura conviver com esses tipos. A vida não anda de ré, mas é um projeto para frente.

Se na estrada da vida encontramos trechos acidentados e complicados não resolvemos a viagem nos fixando no retrovi-sor, mas olhando em frente e reunindo energias de esperança para prosseguirmos e chegarmos bem. Se existe um nobre atestado de envelhecimento, sua marca é “ternura”. Quem não se sente bem junto a um idoso, ou mesmo um enfermo carregado de ternura e gratidão?

Ao contrário, mesmo nas comunidades religiosas mais san-tas, qual delas faz questão de ter alguém sempre insatisfeito, em estado de permanente vômito de ranços de um passado mal resolvido? Então, como superar os ranços da vida? Se aqui na terra passou alguém com todas as razões humanas para colecionar ranços, teria sido Jesus Cristo. Desde sua encarnação até à cruz, sempre encontrou ameaças, rejeições, zombarias e negações. Porém, sempre seguiu o seu caminho sem ranços e com total liberdade e grandeza.

Quem de nós é herdeiro de uma história feita somente de êxitos? Quem de nós nunca falhou em sua liberdade respon-sável? Quem de nós nasceu num berço de ouro de pai, mãe, professores, formadores e amigos plenamente corresponsáveis por nós que nunca se enganaram? O melhor remédio para nossos ranços é a capacidade de perdoar a história e fazer o melhor com a luz da fé no futuro da vida que nos é dado.

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56. Superando o desânimoA quem consultamos para nos entender com o desânimo?

Este estado de espírito é tão complexo, que não temos uma chave automática de entendimento e menos ainda de solução. Muitas causas podem comprometer nosso ânimo, não só para a ação e o aprendizado, mas também para o ânimo de viver e conviver. Há indivíduos oprimidos pelo desalento, grupos e instituições contagiadas pelo vírus do desânimo, que vão arriscando as mais diversas falências. Um sábio pensador afirmou: “Quando uma porta se fecha, outra se abre. Mas, muitas vezes, ficamos por muito tempo olhando desanimados e tristes a porta fechada, que nem notamos ter-se aberto outra melhor para nós”.

A necessidade de recuperar o ânimo dos desanimados, não é só um benefício para a pessoa, mas para todos os que com ela convivem, seja para a família, para o mundo do trabalho, para a comunidade ou para a história. O próprio Moisés, sabendo que não entraria na terra prometida, foi convidado pelo Senhor, a dar ânimo a Josué para que assumisse a tarefa de conduzir o povo à posse da terra. “Dá instruções a Josué, infunde-lhe ânimo e fortaleza, porque é ele que vai atravessar o rio à frente do povo, ele lhes distribuirá em herança a terra que tu só podes avistar” (Dt 3,28).

O ânimo não é só o segredo dos bons empreendedores, mas faz parte fundamental de quem quer cultivar uma vida rica de sentido. Cultivar um ânimo que vem de dentro e se fundamenta na fé, não significa caminhar na ilusão de que, em tudo e sempre, seremos bem-sucedidos. Aliás, o verdadeiro ânimo nutre-se sempre do difícil a ser superado, do desafio a

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ser enfrentado, da tarefa a ser cumprida e de um viver a ser assumido com responsabilidade.

Ânimos e desânimos, muitas vezes, fazem o ritmo da vida. Porém, a autenticidade da fé sempre tem um argumento imbatível para o resgate do ânimo e da coragem. O próprio Cristo viveu momentos dramáticos de angústia, seja diante de Jerusalém que o rejeita, seja no Getsêmani e, pior ainda, na Cruz, quando se sentiu abandonado por todos e até pelo Pai.

A sensação de desânimo vai piorando, na medida em que nos fechamos e nos vemos sem recursos de profundidade. Porém, ao chegar o desânimo, nada melhor do que abrir-nos aos outros e, especialmente a Deus, para quem nada é impos-sível. Um dos quadros mais eloquentes de desânimo é o dos discípulos de Emaús, cuja reação foi a de regredir e fechar-se. A abertura na comunicação com o Ressuscitado fazia seus corações arder de novo até reconhecê-lo ao partir o Pão.

Assim como é complexa a entrada do desânimo em nos-so viver, também é a sua saída. Porém, uma coisa é certa. Na medida em que o desânimo chega, o melhor remédio é enfrentá-lo a partir da própria decisão de sair de si, seja pela comunicação, pela boa ocupação e pelo exercício de relações globais: consigo, com os outros, com as coisas e com Deus. “Tende ânimo, eu venci o mundo!” (Jo 16,33).

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57. Superando o “mais ou menos”

Tantos diálogos do cotidiano começam com perguntas como estas: Como vai a vida? Como está sua saúde? Como anda a família? E o seu trabalho vai bem? Tantas são as perguntas que abrem longas conversas de amigos, vizinhos e até pessoas desconhecidas que aparecem em nosso caminho.

Se há uma resposta a tantas perguntas formuladas que mais se ouve é esta: “Mais ou menos!”. É bem possível que seja dita mais como um chavão, do que como uma real avaliação do fato questionado. Porém, não podemos esconder o possível efeito que este tipo de resposta vai causando na pessoa que afirma e naqueles que ouvem.

“Mais ou menos!” tende mais para a depreciação do que para a valorização, mais para o risco da queda do que para o reerguimento, mais para o desânimo do que para o encora-jamento, mais para a acomodação do que para a superação. “Mais ou menos!” parece ser a água morna, nem quente nem fria. Neste tipo de costume a tendência do “mais”, sempre tende a se tornar “menos”.

No Evangelho de Mateus, Cristo insiste: “Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não. O que passa disso vem do maligno” (Mt 5,37). No livro do Apocalipse, São João escreve à Igre-ja de Laodiceia: “Conheço a tua conduta. Não és frio, nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas porque és morno, nem frio, nem quente, estou para vomitar-te da minha boca” (Ap 3,15-16).

Creio que a maioria teve, ou tem a graça de conhecer e acompanhar pessoas, portadoras de uma força sobrenatural

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incontida. Na comunidade cristã, são frequentes as pessoas assim. Já acompanhei, e acompanho de perto, pacientes com câncer, em tratamento intensivo de quimioterapia e/ou radioterapia que, ao serem interrogadas sobre seu estado de saúde, respondem: “Estou muito bem e tenho certeza que vou melhorar”.

Conheço pessoas de fé que vivem verdadeiros dramas familiares e administram a vida com uma surpreendente es-perança. Ao comunicarem sua avaliação das situações, nunca dizem: “Mais ou menos!”. Mas afirmam: “Está difícil! Mas a turbulência vai passar”. O saber jogar para frente e para cima é que vai desenhando o sonho da superação e da vitória.

Na verdade, não fica bem encarar situações nos critérios do “mais ou menos”. Na vida humana e na convivência, tudo é possível: o ótimo e o péssimo, o bom e o ruim, o melhor e o pior. A nossa fé cristã nos ensina que o pior já se tornou melhor, o péssimo já se fez ótimo. Cristo venceu a morte pela vida e nesta vitória básica está o princípio de toda a esperança. Não somos filhos do “mais ou menos”.

O mesmo se diga de nossa identidade e missão. Não podemos admitir amor “mais ou menos”, nem profissionais “mais ou menos”, nem pais, nem religiosos, nem sacerdotes, nem bispos ou Papa “mais ou menos”. Ou se é ou não se é. Na hora em que alguém se imagina neutro, já não é mais o que deve ser. Sempre é possível nos avaliar em nossa comunicação, para podermos superar o que pode nos levar, subliminarmente, a um insuperável pessimismo.

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58. Superando a indiferença

Não nascemos indiferentes, mas podemos nos tornar indiferentes, assim como ninguém nasce mau, mas pode se tornar. Há situações que acompanharam a nossa concepção ou gestação que podem marcar nossa personalidade, mas tudo na vida pode ir se potencializando conforme os rumos de nossos caminhos. É grande a influência dos modos de vida, cultivados no cotidiano, daqueles de quem dependemos na infância e dos que convivemos na adolescência e na fase adulta da vida.

A indiferença é esse estado de insensibilidade humana, e negação silenciosa e subliminar na relação com Deus. Bem na raiz da indiferença há um mecanismo de defesa errado, de quem se fecha imaginando sobreviver no seu mundo como se fosse o tudo diante das relações negadas. O indiferente não diz, mas poderia dizer: “Meu EU e meu tudo”. Em contra-partida, São Francisco foi aprendendo a superar toda a forma de indiferença, desde que começou a proclamar: “Meu Deus e meu tudo!”.

Sendo sinceros conosco mesmos, podemos afirmar que todos corremos o risco de nos tornar indiferentes, pois o somos em potencial. Porém, um dia depois do outro, podemos treinar a superação da indiferença pelo exercício da sensibilidade. Há uma norma ética reconhecida universalmente que o próprio Cristo nos ensinou: “Tudo quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o vós a eles. Isto é a lei e os profetas” (Mt 7,12).

Um bom exercício de superação da indiferença pela solida-riedade é aprender a nos colocar no lugar do outro, imaginando como nós gostaríamos de ser vistos e tratados se estivéssemos

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em seu lugar. Não é por nada que ao responder a pergunta do Doutor da lei sobre o que era o mais importante na lei, Jesus disse ser o amor a Deus, acima de tudo, e do próximo como a si mesmo.

A indiferença nas relações humanas pode ser causa de in-diferença no exercício das demais relações, desde o descaso ecológico como o pior modo de ateísmo. A indiferença tam-bém não é neutra. Não vale aqui a avaliação do “tanto faz”. A indiferença é sempre prejudicial e nociva, tanto ao indiferente como aos desconsiderados.

Quanto à indiferença na relação com Deus, lembro-me de um fato que ajudou a um jovem superá-la. Ele sofria por não crer, mas não se animava a crer. Num dia resolveu visitar um sábio ancião que residia no interior. Lá falou-lhe de sua indiferença religiosa. O Ancião o tomou pela mão e foi em direção a um açude. Ambos iam entrando na água até o lugar mais profundo. Ali agarrou o pescoço do jovem e o afundou, mantendo-o por um tempo imerso na água. O jovem esperneava e se debatia até que o ancião o retirou. Ao sair, o sábio perguntou: “Do que estavas necessitando debaixo da água?”. O jovem respondeu: “De ar!”. Conclusão: “Até não te dares conta de que Deus é a vida de tua vida, dificilmente vais superar a indiferença!”.

Na verdade, é mergulhando nas profundezas da existência humana que iremos encontrar o argumento mais lógico e evi-dente para empreendermos a superação da indiferença, tanto humana como religiosa. Não podemos negar a nós mesmos!

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59. Surpreendidos pelo deslumbramento

Por conhecer seus escritos e saber desta pessoa tão sábia e santa que foi Carlo Maria Martini (1927-2012), chamou-me atenção o lançamento de um livro seu, após a morte, intitu-lado: “Colti da Stupore” (Tomados pelo deslumbramento). Cardeal Martini foi uma das vozes mais amadas e seguidas, não apenas no mundo católico, mas também no mundo de todos os que procuram a Deus de coração sincero. Jesuíta, não só se aprofundou no conhecimento bíblico, mas, acima de tudo, procurou viver animado pela Palavra de Deus e, por isso, sempre se via surpreendido pelo deslumbramento das muitas formas de comunicação do amor divino.

Numa sociedade confusa e facilmente desorientada como a nossa, a Palavra de Deus é fonte de vida para todos, porque fala ao coração de cada pessoa, ajudando-a a descobrir os próprios desejos e a compreender a grandeza e a profundidade da própria existência. O Cristianismo é para nós oportunidade de contínua descoberta e alegria.

Mal comparando, quem tem coragem de ir se envolvendo na experiência da fé cristã, é como aquela criança que, pela primeira vez, fixa seus olhos nas torrentes de um riacho onde os peixes e as aves aquáticas desfilam com sua beleza e encan-tamento. A autenticidade da fé, animada pela Palavra de Deus, é capaz de transformar o olhar humano diante da realidade que nos cerca. Nossa existência humana desprovida de fé, vai criando ao nosso redor a opacidade, a frieza e a indiferença.

Nas biografias de São Francisco, de modos diferentes, registra-se que até os vinte e cinco anos seu olhar estava

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voltado para dentro de seu mundo pessoal, de suas vaidades e aventuras. Passava diante das mais encantadoras paisagens e nenhuma beleza conseguia perceber; utilizava a água e nada mais sentia a não ser o conforto para si; corria com seu cavalo elegante à luz do sol e na claridade da lua; servia-se das estrelas para enfeitar suas festas juvenis.

Aos vinte e cinco anos começou a mudar a raiz de seu olhar. Antes imaginava ter luz própria e sua vida ia se tornando obscura. Quando acolheu a “luz da luz” e por ela se deixou iluminar, tudo ao seu redor começou a provocar a surpresa do encantamento. O Cântico das Criaturas, além de ser um dos mais elegantes poemas da humanidade, registrou a mais sincera confissão de um olhar convertido.

Surpreendido pelo deslumbramento, Francisco deixou es-crito no seu testamento: “... quando estava nos pecados, para mim era amargo demais VER leprosos!... Mas o próprio Senhor levou-me para o meio deles, e eu pratiquei a misericórdia com eles... aquilo que me parecia amargo tinha sido transformado em doçura para minha alma e meu corpo”.

Voltando a evocar a figura do Cardeal Martini, no final de sua vida, provado pela doença já não conseguia mais pronunciar suas homilias com desenvoltura. Nas últimas, apenas citava algumas passagens bíblicas. Assim testemunhava que, mesmo se a voz humana perde o vigor até a quietude, é só a Palavra de Deus que pode explicar-se por si e nos surpreender além de qualquer situação ou tempo.

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60. Tão humano assim, só Deus!

Entre os humanos, há uma real dificuldade de começar o caminho da fé crendo na divindade de Jesus Cristo. Mesmo para quem se considera cristão, parece difícil descobrir as dimensões reais da humanidade de Jesus. Um Deus fazer-se um de nós, tão familiar e tão semelhante em tudo, menos no pecado, parece forte demais. Talvez o imaginário se encarregue de desenvolver um certo pudor, imaginando Deus correndo o risco de se sujar ao entrar em contato íntimo com a matéria.

Este tipo de miopia faz com que a figura de Jesus adquira aspectos lendários e perca a dimensão do homem do cotidiano. Aliás, é bom salientar que uma das primeiras barreiras à fé cristã foi a negação da humanidade de Jesus. Isto aconteceu desde os tempos apostólicos. Alguns cristãos daquele tempo pregavam publicamente que Jesus tinha apenas uma aparência humana. Combatendo este erro, São João escrevia na primeira carta: “Nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo aquele que confessa que Jesus Cristo veio na carne (tornou-se homem), é de Deus; e todo aquele que não confessa a Jesus, não procede de Deus, mas do anticristo” (1Jo 4,2-3).

O popular e conhecido Santo Antônio também enfrentou grupos heréticos que negavam a humanidade de Jesus, conven-cidos de que não era possível Deus ter se apequenado tanto e se ter envolvido com tanta miséria humana. A eles dizia esta frase que ressoa com tanta atualidade: “Ele (Cristo) veio para ti, para tu poderes ir a ele”.

A verdade é que a nossa fé em Jesus Cristo passa necessa-riamente por sua humanidade. O nosso encontro com Deus,

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começa a ser o encontro com o Homem Jesus. Como nós, Jesus tinha pai, mãe e parentes que todos conheciam na sua aldeia. Em Nazaré, “onde se tinha criado” (Lc 4,16), antes de sua vida pública, vivera como qualquer um de seus habitantes.

Durante o seu ministério, não o vemos bancar o herói ou o santo. Continua vivendo como todos e nada do que era hu-mano lhe era estranho. Sentia fome (Mt 4,2); tinha sede (Jo 18,28); cansado, adormece no canto de um barco (Mc 4,37); irado, toma o chicote e expulsa os vendilhões do templo (Jo 2,15). Diante do sepulcro do amigo Lázaro não conteve suas lágrimas. Chorou, vencido pela emoção.

Por onde passava dedicava toda a atenção ao que havia de mais humano nas pessoas. As carências e os sofrimentos mais diversos eram o cenário de sua incansável ocupação, a ponto de não ter tempo nem para comer. Para escândalo dos fariseus deixou-se acompanhar por algumas mulheres que o ajudavam materialmente. Enfim, ele quis experimentar até mesmo o ingênuo triunfo em sua entrada messiânica em Jerusalém.

Nada nos revela melhor o Homem Jesus do que seus senti-mentos diante da morte. Ele não ignorava de que morte devia morrer. “O Filho do Homem será entregue aos pontífices e aos escribas que o condenarão à morte e o entregarão aos gentios para ser escarnecido, flagelado e crucificado” (Mt 20,18-19). Um Deus apaixonado pela missão, enfrenta as tentações, a resistência humana da agonia e continua o seu caminho na fidelidade total. Tão humano assim, só Deus!

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61. Tempo da medicina, mais do que doutrina

Existe um modo de falar que pode incorrer no risco de ser mal-entendido. Um deles é o que aparece no título acima: “Tempo de medicina, mais do que doutrina”. Trata-se aqui da preocupação da Igreja de nossos tempos. Sem deixar o cuidado indispensável pela doutrina, hoje precisamos investir incansavelmente na medicina. Mas, qual medicina?

No dia 11 de outubro de 1962, o então Papa São João XXIII, abrindo o Concílio Vaticano II, deixou bem claro que a maior preocupação do momento e do futuro da Igreja não era tanto com a doutrina, pois esta já estava estabelecida e bastante conhecida. Assim se pronunciou: A Igreja “resistiu aos erros de todas as épocas e com frequência também os condenou, em certas ocasiões até com bastante severidade. Hoje, pelo contrário, a esposa de Jesus Cristo prefere empregar a medicina da misericórdia, antes de empunhar a arma da severidade”.

Não apenas no discurso de abertura, mas todo o Concílio Vaticano II, procurou acentuar uma pastoral da Igreja atenta às feridas da humanidade e a necessária pastoral da compaixão e da misericórdia. Há uma comprovação que brota da realidade e que afirma ser o sofrimento no mundo o argumento de maior peso do ateísmo moderno. Portanto, a atenção e preocupação pela medicina, mais do que a doutrina, certamente será uma grande porta que se abre para o diálogo da nova evangelização.

Significativa foi a entrevista feita na revista italiana La Civiltá Cattolica pelo Padre Spadaro ao Papa Francisco, em 2013. A uma das perguntas sobre suas preocupações pastorais respondia: “Vejo com clareza de que aquilo que a Igreja mais

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precisa, hoje, é a capacidade de curar as feridas e de aquecer os corações dos fiéis pela proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar as suas feridas, depois procurar falar de tudo o resto. Curar as feridas... Curar as feridas... É necessário começar de baixo”.

Nesta afirmação da necessidade de começar de baixo vem à lembrança a Parábola do Samaritano que, em atitude diversa à do Levita e do Sacerdote, que se colocavam acima, inclinou--se ao chão para socorrer o caído à beira do caminho. Curar feridas das multidões que experimentam a dura realidade das periferias existenciais e sociais é, sem dúvida, o jeito certo de corresponder ao discipulado daquele Mestre que veio, não para ser servido, mas para servir; sendo rico se fez pobre; tornou-se pecado para nos redimir; veio para que todos tenham vida e vida em abundância.

Uma postura humana da Igreja compassiva e misericor-diosa, certamente a tornará mais divina e mais favorável à boa acolhida do Evangelho da vida. Em tempos de evidentes evoluções dos meios, precisamos nos aproximar de forma humana no que há de mais humano e divino que é o amor.

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62. Um Deus apaixonadoNo coração da vida, há um fenômeno causado pela tendência

natural da pessoa e dos grupos humanos: desistir quando não se é correspondido; distanciar-se quando não se é procurado; abandonar quem era amigo, quando uma amizade entra em crise e romper relações quando se é traído. O modo humano de amar é muito frágil. Facilmente rompemos a barreira e terminamos no campo do egoísmo, ou no fechamento.

Não é estranho ao mundo atual o aumento rápido dos que somam a multidão dos solitários. Ressoam mal, dentro de um cenário mundial de fantásticos progressos, expressões como estas: “Estou desiludido! Decepcionei-me! Não era isto que eu esperava! Vou fechar-me e curtir a solidão! Não confio mais em ninguém! etc.”.

Expressões assim não são estranhas nem aos casados, nem aos religiosos e nem a Ministros Ordenados. Na verdade, as relações e compromissos, dentro de nossa cultura, facilmente se desmancham no ar. Dentro deste cenário da atualidade ressoa como urgente o apelo a situarmos referenciais e argumentos que nos tornem fortes e perseverantes naquilo que é o mais importante da vida.

O tempo de preparação ao Natal pode ser acolhido como oportunidade especial e favorável para rever a qualidade de nossos compromissos. Neste acontecimento inconfundível, podemos encontrar a razão que venha resgatar a grande paixão para curar nossas humanas decepções, para retomar o sentido da vida e voltar a acreditar no milagre do amor.

Em tempo de Natal, os olhos poderão encontrar cenários de encanto com o jogo de luzes a enfeitar nossas praças, edi-fícios e árvores. Os ouvidos poderão saborear a nostalgia das

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músicas natalinas. De mãos em mãos poderão passar presentes e mensagens. Nas mesas preparam-se fartas ceias de Natal. Tudo poderá ter sua justa importância. Porém, se não acontecer um encontro maior, um “dar-se conta” da atualidade atuante de um Deus apaixonado, tudo terminará segundo a durabili-dade de cada fenômeno, de cada momento e de cada objeto.

Um Deus apaixonado, é o Deus da história, paciente, mi-sericordioso e sempre fiel. Para o amor, sempre criativo, de Deus não há dias de festa, nem feriados que sejam diferentes de um dia de trabalho ou um tempo de duras provações. Deus não oferece menos ou mais oportunidades em dia de domingo, ou numa segunda-feira. A medida do amor de Deus é amar sempre e sem medida!

Um Deus apaixonado assumiu em tudo a condição humana, fazendo-se em tudo igual a nós, menos no pecado, para entrar no coração da história sem jamais se retirar. Aquele que nas-ceu em Belém, um dia afirmou: “Eis que eu estarei convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20).

Para Deus não há decepções, nem greves, nem retirada. O cansaço do amor não atinge o coração de Deus. Nem mesmo as piores rebeldias humanas o poderão abalar. Cada Natal renova esta certeza: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1,14). Mesmo rejeitado pelos seus, há mais de dois mil anos, ele está no meio de nós!

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63. Um lírio no meio do lixoNo lixão de uma grande cidade, amontoavam-se restos

de tudo o que se possa imaginar. Dali emanava um cheiro horrível de podridão. Era o cenário da desordem e do caos. Num recanto deste espaço abominável nasceu um lírio de es-pécie rara, cresceu e floresceu para encanto de quem passava. Parecia que toda a feiura do lixo a céu aberto era amenizada por esta flor.

Um dia, um mendigo chegou e sentou-se ao lado do lírio encantador e foi ficando por ali, como se fosse um guarda desta beleza. Um casal, que sempre passava nas proximidades, vendo o mendigo perguntou o que estava fazendo ao lado do lírio. O mendigo respondeu: “Eu sempre fui desprezado por todos. Agora, achei um jeito de ser valorizado. Esta pequena e bonita flor está dando beleza para o lixo e para mim também. O pessoal que passa, quer levá-la embora, mas eu não deixo. Se ela sair daqui ninguém mais vai me dar valor. Eu cuido da flor e a flor cuida de mim”.

Ao saber desta simples história, meditei-a e fui tirando al-gumas conclusões. A primeira refere-se ao caos. Geralmente o encaramos como símbolo do fim de tudo. Caos é lembrado como resultado da desordem, aparentemente irremediável. Po-rém, vale aqui evocar o livro do Gênesis 1, que vê neste vazio obscuro do caos o espaço que precede a geração do mundo. Assim o Deus Poderoso no amor e ardente de vida, faz surgir do caos toda a criação. Hoje, o potencial que Deus confiou aos humanos, sua imagem e semelhança, pode transformar o caos dos lixões em verdadeiros jardins e do que parece abominável, o sustento para tantas vidas que acreditam na solidariedade.

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A segunda conclusão refere-se à lei dos contrastes. Um lírio em canteiros de lírios é um lírio comum. Nada de novo a não ser a beleza do jardim. Um lírio nascido e florido no meio do lixo contrastou com o cenário de morte, destacando a beleza da vida e o encanto que atrai os olhares dos transeuntes. Dizem que, na vida cotidiana, aprendemos a valorizar tudo o que é verdadeiro, belo e bom, na medida em que experimentamos a lei dos contrastes. Acordamos para o valor da luz quando nos vemos nas trevas. Lutamos pela saúde quando a doença nos abate. A terceira conclusão é a lição do mendigo que proclama uma das verdades mais bonitas da criação. Somos seres entrelaçados na mútua dependência. Somos chamados a contribuir com a vida de todos os seres, assim como todos os seres podem contribuir com a nossa vida. Um cão de guar-da pode defender da morte uma família a ser assaltada, e a família pode cuidar do cão garantindo-lhe sustento e saúde. Um lírio pode promover a autoestima de um mendigo des-prezado e um mendigo pode proteger o lírio a ser destruído pela insensibilidade.

A ecologia, para ser humana, não se pode fixar no que é mínimo, mas no máximo e no global dos cuidados. “Deus viu que tudo era bom.” Vale aqui ler e meditar o Cântico das Criaturas de São Francisco, patrono da Ecologia.

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64. Um hino ao cotidiano da beleza

O Livro do Gênesis nos afirma que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo dia descansou. Na medida em que as obras de suas mãos iam sendo criadas, confirmava-se o encantamento do próprio Criador. O canto inaugural da Bí-blia ao cosmos apresenta-se dominado pelo sentimento de admiração de um mundo belo. “Deus viu que a luz era boa... Deus viu que isto era bom...” etc. Mas, sobretudo, aparece o apreço pela beleza na criatura humana, tanto masculina, como feminina. O primeiro poema de Adão diante de sua mulher, é inspirado pelo sentimento da beleza.

A beleza não é um contato especulativo e teórico, como nas ciências, mas um contato emotivo, “estético”, que consegue sintonizar intuitivamente no mistério da realidade. A intuição da beleza acontece num ser concreto e determinado, ou numa experiência-acontecimento do cotidiano de nosso viver. Ali se faz a experiência da harmonia. Por isso, a dimensão da beleza é essencial no encontro do amor, como nas expressões simbólicas dos sentimentos mais profundos da existência.

Ao longo da história, a captação e a expressão da beleza sempre estiveram unidas aos fatos reais e experiências mais profundas da humanidade. Estamos rodeados de bondade e de beleza, porém, nossas distrações e superficialidades voam tão rapidamente que temos dificuldades de percebê-las e nos encantar. Geralmente somos mais afeitos a perceber a feiura e a maldade, porque estas nos agridem. Assim nos tornamos menos sensíveis e tantas vezes pessimistas. Como faz bem ouvir o hino ao cotidiano da beleza, expresso assim:

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• que beleza ver uma família unida, onde todos se empe-nham pelo sustento e partilham o alimento na mesa do encontro e do amor;

• que beleza ver no rosto de uma criança a alegria por ser amada e amparada por pais responsáveis e amorosos;

• que beleza ver jovens cultivando sonhos bons e se de-dicando com responsabilidade ao trabalho, ao estudo e semeando agora para colher um amanhã digno e feliz;

• que beleza ter a graça da fé, que nos faz viver com um sentido maior e ter a certeza que Deus sempre nos ama primeiro;

• que beleza saber que há pessoas dedicadas ao cuidado da criação, não permitindo a devastação das florestas e a poluição dos rios;

• que beleza conhecer pessoas que se envolvem no mundo da política com o objetivo claro de promover o bem comum;

• que beleza, para o mundo e para a Igreja, ter um Papa hu-milde e próximo, como um “Pastor com cheiro de ovelha”;

• que beleza vivermos numa comunidade cristã que se organiza para dar conta da caridade organizada; das ce-lebrações vivas e envolventes e da educação da fé para todas as idades.

Certamente uma lista interminável pode continuar sendo elaborada pelos leitores. Um hino ao cotidiano da beleza, poderia ser um exercício de otimismo e esperança que muito nos ajudaria e ler os fatos com um novo olhar e um novo coração. Bem que o Papa Francisco dizia aos Cardeais, logo após a sua eleição: “Chega de pessimismo!”.

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65. Um gabarito para o vestibular da vida

Sabe-se quanto um vestibular é importante para quem o faz. Além de ser um sonho, geralmente profissional, é também um teste de empenho, dedicação e capacidade. Vestibular não é só uma aventura pessoal, mas coloca a família e amigos em estado de espera e torcida. Vestibular é confronto com o saber, mas também com outros tantos fatores reais.

Para muitos, um vestibular vira um jogo da sorte, para outros, é uma atividade que vai motivando todo o processo escolar. Geralmente, os melhores aprovados, que melhor se sucedem no futuro, são os que não perdem tempo e investem na seriedade do estudo desde a infância. São os que imaginam e treinam o gabarito no dia a dia de seus estudos.

Um jovem inteligente, na caminhada pré-vestibular, foi interrogado por um jornalista que lhe fez esta pergunta: “Qual seria a melhor contribuição, que alguém poderia te oferecer para a preparação do vestibular de medicina na Federal?”. Sem hesitar, o jovem respondeu: “Não tenho dúvida. Eu pediria que me passasse o gabarito antecipado. Assim eu teria toda a segurança e certamente, o êxito”. Obviamente, esse desejo não lhe foi respondido.

Para o grande teste de aprovação da vida e o êxito do amor, já temos o gabarito na mão. Este foi passado para a humani-dade, aproximadamente há dois mil anos por Jesus Cristo, e está escrito no Evangelho de Mateus 25,31-46. A declaração da aprovação: “Vinde, benditos”, é decorrente dos critérios vividos no caminho da história: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era estrangeiro e me

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recebestes em casa; estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar”. Este é o gabarito de aprovação.

Os reprovados também serão surpreendidos por um tipo de gabarito que não imaginavam ser matéria de prova: “não me destes de comer, não me destes de beber, não me vestistes, não me recebestes em casa, não me visitastes etc.”. No final das contas, tanto os aprovados como os desaprovados fazem a mesma pergunta: “Senhor, quando foi que te vimos...?”.

Com sua resposta, Cristo desfaz todas as nossas categorias pré-fabricadas de uma religião formalista e ritualista. Todos passaremos pelo mesmo teste: o amor em atos e em verdade. O juízo desenrola-se segundo um único critério universal, válido para todos. Na realidade, o ateu pode percorrer as ruas do mundo sem encontrar, aparentemente a Deus, mas não pode deixar de cruzar-se com o próximo mais pobre, menos livre, mais oprimido e mais só.

Tendo sempre o gabarito em mãos para a grande prova da vida, o nosso viver pode ser ajustado a cada dia e nos garantir o êxito final do projeto de vida. Quem ama os irmãos sem fins interesseiros, para Deus é justo. Diante do juízo de Deus, não há como apresentar um “curriculum vitae” com belos títulos de celebridade. Seremos julgados pelo amor.

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66. Uma escola para o bom senso

Não fica bem viver de saudades, mas sim de esperanças. Porém, é bom olhar para o passado para entendermos um pouco melhor o presente. Num passado recente, aprendia-se a viver numa sociedade simples onde as escolas do bom senso eram poucas e bem determinadas: a família, a Igreja e a escola. Neste ambiente, as instâncias de influência na formação, falavam a mesma linguagem, passavam critérios de discernimento para o bom senso das opiniões, decisões e atitudes.

Em nossos dias, a nova socialização ampliou as escolas do comportamento e das decisões humanas. A família, a Igreja e a escola reduziram ao mínimo seu poder de persuasão, no que se refere a valores de vida e sua autoridade educativa. Outras escolas passaram a ensinar e condicionar comportamentos e decisões: os meios de comunicação social, as redes sociais, as amizades, a mentalidade competitiva do mercado, a sociedade de consumo, os poderes econômicos e os grupos políticos etc.

Os critérios do bom senso e os valores que garantem rela-ções justas e humanas, estão envoltos em névoa espessa na mente das multidões. Rotula-se com facilidade o “errado” como certo e o “certo” como errado. A justa medida passa por uma crise em todas as dimensões da vida pessoal e relacional. Não estamos aparelhados para indicar uma verdadeira escola de bom senso na sociedade atual, com suas crises e surpresas.

Tudo o que é sólido parece continuar se desmanchando no ar. As instituições e estruturas continuam sendo fragilizadas. A insegurança nos invade, não somente ao nosso redor, mas tam-bém profundamente, dentro de nós. No entanto, continuamos

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acreditando que é neste ambiente tumultuado que ainda há lugar para uma escola do bom senso. Administrando as crises de nosso precioso tempo, vamos nos convencendo que ainda precisamos valorizar o que é fundamental.

Nós cristãos, sabemos que o Mestre do bom senso, da justa medida e do jeito certo de opinar e decidir favoravelmente, é Jesus Cristo. Paulo ensina em sua primeira carta aos Corín-tios 3,10-17 que Cristo é o único fundamento sobre o qual construímos com solidez e bom senso. Porém, cada um, com sua liberdade, precisa cuidar para não se enganar no material utilizado. Pode-se construir com ouro, prata, pedras precio-sas, madeira ou feno. O tempo vai se encarregar de provar a obra de cada um. O fogo provará a verdade e a qualidade de nossas escolhas.

Estamos em tempo oportuno para orar ao Pai, como filhos em tempos difíceis e atrapalhados critérios de bom senso: “Ó Deus, tornai claros todos aqueles pedaços de coração que estão na obscuridade; ordenai nossos confusos sentimentos; dai-nos a inquietação positiva para administrarmos nossas decisões e relacionamentos com bom senso e justa medida! Dai-nos vossa luz para ver, julgar e agir conforme a verdade que nos liberta, e assim nos tornemos pessoas luminosas e não obscuras”. Amém!

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67. Uma Igreja de amores ou favores

Sabemos bem que a Igreja, como instituição, reflete com evidência o seu lado humano. É neste lado que transitam ideias corretas e ideias erradas, sentimentos nobres e sentimentos pobres, visões abertas e visões fechadas, ações gratuitas e ações interesseiras.

Quando pesa mais o lado humano e institucional, incorremos no perigo de dar à Igreja uma Identidade errada, onde os mes-mos critérios e leis do mercado, ou as ideologias comandam seus rumos. Desde o primeiro momento do seu pontificado, o Papa Francisco vem insistindo que a Igreja não é uma ONG (Organização não governamental), nem uma cooperativa, ou um sindicato. A Igreja é “Uma mãe de coração aberto” (Francisco), cujo fundamento é Jesus Cristo.

Por causa do horizonte para o qual aponta a Igreja, ou ao qual está a serviço, isto é: o Reino de Deus, não há como pensá-la, nem vivê-la, a não ser como uma Igreja de amores. Jesus Cristo não passou pelo mundo de favores, mas gratui-tamente passou fazendo o bem. Ele veio inaugurar o Reino da vida e do amor. Por este motivo, após um milagre aconte-cido, sempre insistia que não contassem a ninguém. Ele veio despertar discípulos do amor e não fanáticos.

Quando dedicamos o tempo todo da vida, ou algum tempo no serviço à Igreja, não cabe a ideia de que estamos fazen-do favores, ou vivendo de favores. Mesmo que a dimensão institucional e estrutural da Igreja necessite investimentos econômicos, organizações e planejamentos, é indispensável que a alma animadora das iniciativas e atividades seja o amor

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e não o favor. Quando uma comunidade Igreja põe sua pri-meira atenção no sucesso numérico e visível, na sofisticação estrutural e na autorreferencialidade, a carroça passará à frente dos bois e não andará.

Ao falar de amores, é sempre admirável quando os respon-sáveis primeiros de comunidades sabem se ocupar com garra e determinação, mais pensando no povo a servir do que em desejar ser servido pelo povo. São dignos de admiração aqueles leigos e leigas, que mesmo se ocupando em sua profissão e no cuidado da família, transbordam de amores por sua Igreja e encontram tempo para se dedicar em pastorais e serviços.

Quando os amores movimentam a Igreja encontra-se um jeito de manter a chama da criatividade, não desanimar quando fracassa uma iniciativa e cultivar o mútuo apoio no caminho de renovação. Uma Igreja de amores é uma Igreja missionária, capaz de convocar os velhos amigos e as ovelhas gordas para abrir os olhos e situar as ovelhas perdidas. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (Papa Francisco, “A Alegria do Evangelho”, n. 49).

Quando substituímos os favores pelos amores, a alegria de quem ama redobra e o serviço prestado se confirma em acertos e fecundidade. Quem vive com a mentalidade de estar fazendo favor, sempre estará exposto a melindres, descontentamentos e propenso a abandonar tudo por não ser reconhecido. Quem ama é fiel sempre.

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68. Uma iniciativa de mãe que deu certo

Geralmente, a ideia de que “o pior” do que acontece entre os humanos deva ser notícia, repetida, comentada e sensacio-nalmente dramatizada. É tão frequente essa insistência, em notificar o pior da humanidade, que a onda de descrédito vai se ampliando e desmotivando pessoas lutadoras e a credibi-lidade de instituições sérias e responsáveis.

Assim como o desencanto é contagiante e faz estragos a tantos projetos, o encantamento e a capacidade de investir credibilidade, pode criar contágios de imensos benefícios em favor de muitos desalentados pela sorte. Vou situar uma ini-ciativa simples, mas de grande significado que me foi narrada por Dona Beatriz, hoje apoiadora desta obra.

Num Bairro humilde, povoado de crianças, a moradora Marlene deixou-se tocar pela realidade das muitas crianças, que lá frequentavam a escola, brincavam e deixavam trans-parecer carências e necessidades. Dona Marlene tinha poucas posses. Não tinha muito estudo, mas era sensível e compassiva. Vendo a realidade, sentia que precisava fazer algo em favor da qualidade de vida da criançada.

Motivada pela bondade e sensibilidade, Dona Marlene começou a reunir crianças em sua casa para repartir um suco, uma bolacha e muito carinho. Com a força do afeto maternal, preocupou-se em acompanhar os temas e tarefas escolares e verificar seus cadernos. Junto com a ternura de um coração de mãe, misturava o vigor de cobrar capricho e dedicação e despertar a responsabilidade no aprendizado.

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Tudo começou com o que lhe era possível e com muita humildade, mas os efeitos positivos iam se tornando notáveis, tanto no rendimento da escola, quanto nas relações familiares e sociais. O carisma de Dona Marlene foi irradiando contágio de encantamento e as ajudas foram aumentando. Hoje uma pequena semente, cultivada no coração de uma mulher, foi germinando e produzindo frutos. Assim começou o “Movi-mento por uma Infância Melhor”.

Com este exemplo de credibilidade, podemos confirmar que uma boa obra é sempre resultado de pessoas que acreditam e sabem que o futuro depende do presente, assumido com generosa responsabilidade. Por acreditar, começa-se investir e transformar, mesmo com pouco, e de modo simples. “Passo a passo, o caminho se faz” Quando uma grande ideia e uma justa motivação for respondida, pode-se mudar cenários de-primentes e tristes, em espaços de esperanças e alegria.

Dona Marlene confirma que existem dois elementos in-dispensáveis para garantir e favorecer o processo educativo e formativo na vida das pessoas: a ternura e o vigor. Só ternura pode acomodar a pessoa em seu nicho afetivo e egoísta. Só vigor pode gerar legalismo, intolerância e poder. Ternura e vigor se complementam e vão dando a justa medida para que a pessoa vá se tornando sujeito de seu projeto de vida e ação. Dona Marlene fez bem começar dando suco e bolachas, abraços e acolhida, mas fez melhor quando uniu a ternura ao vigor da sadia cobrança nos temas a serem feitos e nos cadernos a serem cuidados.

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69. Vida agitada e silêncio criador

A realidade de nosso viver cotidiano nos mostra como es-tamos sempre envolvidos, chamados e ocupados para fora e para dentro, entre o material e o espiritual. A vida que é vida, é dinâmica e sempre necessitada de movimento, seja exterior ou interior. Quando nosso interior está povoado de ruídos e nossos sentidos ávidos de curiosidade e agitação, criamos um desequilíbrio sempre prejudicial à nossa saúde global.

Sem a retirada da pessoa para sua própria interioridade, sem uma reflexão solitária, a vida não se desenvolverá em sua fecundidade criadora e comunicadora. A história nos comprova que os grandes mestres da espiritualidade, da ciência, da arte e da pesquisa investiram muito tempo e cuidado à reflexão, à solidão e à meditação. Jesus Cristo retira-se para o deserto. Francisco de Assis vai ao Monte Alverne e aos eremitérios. Neewton, antes de elaborar seu sistema científico com tanta exatidão, vivia “Noite e dia incubando”, como ele próprio afirmou.

A verdade religiosa, científica e estética se revela a quem tem paciência de esperar e a capacidade de acolhida e de escuta. Sem um treino mental que faça calar os ruídos e tranquilizar a agitação é difícil encontrar o fundamental da vida, a escutar a voz da natureza e a Palavra de Deus que fala ao coração.

O silêncio ativo e cultivado está povoado de promessas elo-quentes e criatividade fecunda. Por este motivo, o silêncio é o melhor instrumento da autêntica comunicação. A experiência deste tipo de silêncio e solidão é a terra fecunda donde brota a verdadeira palavra e a mais profunda relação.

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Um recente professor de filosofia de Madrid, A. Muñoz Alonso, dizia que “As palavras são a excelência da razão; o silêncio é a genuflexão da inteligência. Ao silêncio e em silêncio as coisas se revelam no que verdadeiramente são: silêncio sonoro de Deus nas pessoas”.

Não podemos andar condenando os agitados e agitadores. Porém não podemos concordar que a agitação arranque de nós a interioridade e entremos num vazio que nos coloque à beira da loucura. Palavras e superpalavras, ações e superações sem cultivo do silêncio interior constroem uma fábrica de taga-relas e estressados que se tornam indesejáveis na companhia das pessoas. A pessoa que não é capaz de mandar calar seus lábios, sua fantasia, seu coração e sua mente, nunca chegará a escutar as verdades mais profundas e significantes da vida. Dificilmente entenderá a grandeza do destino humano.

No dia a dia da vida necessitamos nos ocupar com o “fa-zer”. Nossas atividades são parte da vida. Por nossas ações aprendemos também a nos fazer. Porém, necessitamos impe-riosamente, num momento ou no outro, entrar no caminho do silêncio para percebermos a voz de nosso ser. O muito fazer sem a percepção de nosso ser nos faz virar máquina no risco de sucatear o que há de mais precioso que é a nossa existência.

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70. Voltou-se a falar de alegria

Ao percebermos algo importante, em retirada na vida, volta--se a falar e, com insistência, se mostra o desejo de ver a sua volta, provando que é necessário e possível. Mas não basta provar que seja possível. Precisamos encontrar o caminho e o modo como isto possa acontecer. Um destes componentes atuais de nosso viver e conviver em retirada, de que muitos necessitamos, é a alegria.

O primeiro sinal que denuncia a carência de alegria está estampado no rosto das multidões de homens e mulheres, jovens e crianças que correm dia e noite pelas cidades, carre-gados de preocupações, limites e angústias. Dizem que nosso povo brasileiro gosta muito de se divertir e até se exceder nos limites, mas não prova ser um povo alegre. Certamente não é só o povo brasileiro. O Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica “A Alegria do Evangelho”, afirma:

O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza indi-vidualista que brota do coração comodista e mesqui-nho, da busca desordenada de prazeres superficiais da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros. Já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem (AE, n. 2).

A psicologia nos confirma que a intensidade da alegria é uma expressão que pode variar de pessoa a pessoa, segundo a

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diversidade de temperamentos. Porém, a alegria é um direito e um dever de todos. Uma pessoa que cultiva a alegria tem trânsito livre em todos os setores da vida e da atividade huma-na. Além de ser um benefício para a pessoa, cultivar a alegria é também um benefício social. Tudo flui com mais leveza e espontaneidade. Onde há alegria, diz um antigo pensador, até as paredes aprendem a sorrir.

Há motivos passageiros que suscitam alegria: é uma boa notícia que recebemos; é um êxito obtido; é um elogio sincero que nos é dado; é um encontro festivo que promovemos etc... Há incontáveis razões para a alegria. Mas há uma alegria que nem o mundo pode nos tirar. É a alegria garantida por Cristo. Ele não só nos garante esta alegria, mas se torna nosso mestre.

Parece estranho pensar em Jesus Cristo – o perseguido e crucificado, o austero profeta da interioridade, da renúncia e da cruz – como mestre da alegria. Sua vida e sua mensagem é a “jubilosa novidade” do Reino. Geralmente a tristeza nasce em nós, porque nos sentimos sozinhos ou porque provamos a esterilidade do nosso trabalho e o vazio de nossa vida. Mas, com sua vinda a nós e para nós, Jesus preenche o vazio; existe a cruz pascal para fecundar e dar importância ao trabalho.

Desde o começo, Cristo nos convida a sermos alegres. O sermão da montanha abre-se à solene proclamação da alegria dos pobres, dos pacientes, dos aflitos, dos que têm fome e sede de justiça, dos misericordiosos, dos puros de coração, dos que promovem a paz, dos perseguidos por causa da justiça.