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Este documento é um texto de apoio gentilmente disponibilizado pelo seu autor, para que possa auxiliar ao estudo dos colegas. O autor não pode de forma alguma ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes. Este documento não pretende substituir o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questão. A Universidade Aberta não tem quaisquer responsabilidades no conteúdo, criação e distribuição deste documento, não sendo possível imputar-lhe quaisquer responsabilidades. Copyright: O conteúdo deste documento é propriedade do seu autor, não podendo ser publicado e distribuído fora do site da Associação Académica da Universidade Aberta sem o seu consentimento prévio, expresso por escrito. Antropologia Geral I Apontamentos de: Jorge Loureiro E-mail: [email protected] Data: 07.04.2008 Livro: Antropologia Geral (Armindo dos Santos) Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007/2008

Antropologia Geral I - aauab.pt · 2 1. O contexto geral da antropologia social e cultural 1.1. Noção geral de sociedade O domínio de estudo da antropologia social diz respeito

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Este documento é um texto de apoio gentilmente disponibilizado pelo seu autor, para que possa auxiliar ao estudo dos colegas. O autor não pode de forma alguma ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes. Este documento não pretende substituir o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questão. A Universidade Aberta não tem quaisquer responsabilidades no conteúdo, criação e distribuição deste documento, não sendo possível imputar-lhe quaisquer responsabilidades. Copyright: O conteúdo deste documento é propriedade do seu autor, não podendo ser publicado e distribuído fora do site da Associação Académica da Universidade Aberta sem o seu consentimento prévio, expresso por escrito.

Antropologia Geral I Apontamentos de: Jorge Loureiro E-mail: [email protected] Data: 07.04.2008 Livro: Antropologia Geral (Armindo dos Santos) Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007/2008

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1. O contexto geral da antropologia social e cultural

1.1. Noção geral de sociedade O domínio de estudo da antropologia social diz respeito ao universo da actividade social e cultural do ser humano no seio da sociedade. Uma primeira definição geral de sociedade pode ser dada como correspondendo a um conjunto de indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades, agregados de forma mais ou menos permanente e submetidos a um tipo de civilização comum. Mas esta definição parece insuficiente a Guy Rocher, o qual afirma (tal como Durkheim antes dele nas Regras do Método Sociológico em 1985) que uma sociedade não é uma simples “soma de indivíduos” unidos necessariamente por um determinado contrato ou entendimento. Certos sociólogos referem que uma sociedade consiste num grupo de seres humanos com capacidade para auto-reproduzir a sua existência colectiva, em função de um sistema de regras para a acção cuja duração de vida ultrapassa a dos indivíduos que a elas se submetem. É de notar que ambas as definições são parciais e têm um carácter geral. Porém, não se contrariam forçosamente, antes se completam e significam que uma sociedade é algo de tão complexo que outros elementos de definição são indispensáveis para a tornar o mais abrangente possível. Para tal, é necessário notar que as sociedades globais que podemos considerar para efeitos de análise como super-sistemas, englobam sistemas dotados por sua vez de subsistemas que não estando forçosamente em contacto directo interagem no entanto indirectamente, de certo modo em forma de cadeia. Por outras palavras, as comunidades das várias aldeias (ou colectividades para usar a terminologia de H. Mendras [1983], dado que segundo ele nem tudo ser comum numa aldeia), ou as formas de organização social das vilas e cidades de Portugal, representam assim sistemas sociais dotados de subsistemas próprios interrelacionando-se no seio de um super-sistema englobante, neste caso o país. Só assim se pode compreender o alcance geral dado pelas definições expostas e estas serem susceptíveis de se verificarem em cada um dos universos sociais referidos, simultaneamente parciais e globais, segundo o ponto de vista da análise. Dito isto, é necessário agora referir outros elementos fundamentais dos sistemas sociais como os pequenos grupos, ou «grupos elementares », para ter uma ideia de como se estruturam as sociedades. Tal, não significa tratar-se de grupos cujas principais características sejam apenas as suas pequenas dimensões – aliás teríamos as maiores dificuldades em fixar o número de indivíduos que indicasse essa qualidade. Este único aspecto não é suficiente para os classificar como pequenos grupos sociais, mas sim e fundamentalmente o facto de existir no seu seio um certo tipo de relações entre os seus membros e o modo como se articulam com o resto da sociedade. Nos casos de um certo número de pessoas que espera o autocarro numa paragem, quando nele viajam juntas, quando tomam café numa cafetaria ou um grupo de mulheres que se encontra a lavar roupa num lavadouro estamos em presença de grupos informais que de modo algum constituem grupos básicos permanentes. É necessário que ele se organize, como vimos,

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na base de existência de relações com determinado carácter relativamente permanente. A este propósito, vale a pena citar a definição dada por Henry Mendras que me parece interessante, de «grupo elementar» – ou do seu equivalente «grupo primário », (termo forjado pelo sociólogo americano Cooley): “por grupos primários, entendo aqueles que se caracterizam pela associação e a colaboração íntima, de homem a homem. Eles são primários em vários sentidos, mas sobretudo no sentido em que eles são fundamentais para formar a natureza e os ideais sociais do indivíduo. Talvez a maneira mais simples de descrever este sentimento de uma totalidade seja dizer que o grupo é um «nós». A definição de sociedade, referida inicialmente, é bastante significativa nos casos habitualmente estudados pelos antropólogos – na forma de pequenas comunidades. Ou seja, no caso de pequenas sociedades compostas por um reduzido efectivo de indivíduos vivendo num território por eles apropriado, geralmente de pequenas dimensões e subdividido num certo número de grupos básicos, de características idênticas, como os grupos domésticos . De facto, para os antropólogos o grupo doméstico é um elemento constitutivo da sociedade mas evidentemente não representa por si só uma sociedade. Visto que os homens estão proibidos de se acasalarem com as suas irmãs, terão de procurar uma esposa fora do grupo onde se encontram e realizar alianças com outros grupos domésticos. Nestes termos, o mesmo é dizer que ao parentesco cabe a possibilidade de uma sociedade existir, na medida em que está na base de qualquer sociedade com duração no tempo e no espaço. Todavia os princípios fundamentais que regulam a vida social são vários nas sociedades classicamente estudadas pelos antropólogos, os mais importantes destes princípios são para além do parentesco (cuja importância é variável e relativa segundo a sociedade), o sexo e a idade . O sexo , é um elemento determinante na medida em que não divide unicamente a sociedade em dois grupos no domínio da procriação, relativamente aos cuidados devidos às crianças, ou das tarefas domésticas, mas igualmente em relação ao trabalho, à religião, ao poder político, etc. Nas referidas sociedades, a divisão das tarefas faz-se geralmente segundo a divisão sexual do trabalho (ou seja, as tarefas não são intercambiáveis entre indivíduos de sexo diferente). Por exemplo, em certas sociedades, os homens são caçadores enquanto as mulheres cultivam o solo; noutras, os homens são ferreiros e as mulheres oleiras; noutras ainda, os homens pescam enquanto as mulheres comercializam o produto da pesca, etc. Relativamente à idade , todos os povos distinguem as diferentes etapas do desenvolvimento do indivíduo, mas não as distinguem de modo idêntico. Em certas sociedades, é velho quem for avô (tenha 40 ou 70 anos). Na Irlanda camponesa, o indivíduo de sexo masculino não é considerado um homem adulto mas um rapaz (“boy” em inglês) enquanto não tiver herdado do seu pai. O parentesco, em numerosas sociedades, é o princípio activo que regula todas as relações sociais ou a maior parte delas. Na sociedade dos Nuers, segundo Evans-Prichard os direitos, privilégios, obrigações, tudo é determinado pelo parentesco. No caso das sociedades europeias, industrialo-urbanas, este peso do parentesco apresenta contornos menos precisos e a sua função encontra-se bastante diminuída na medida em que o parentesco está em concorrência com outros aspectos; contudo não deixa de ter um papel social relevante.

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Tal como o sexo ou a idade, a família biológica existe em todas as sociedades, mas segundo Lévi-Strauss o que confere ao parentesco o carácter de facto social não é o que ele deve à natureza mas a maneira como se separa dela. E esta maneira é muito diversificada. As sociedades humanas contemporâneas são múltiplas, de grandes e pequenas dimensões, existindo nas mais variadas condições geográficas (do deserto árido à floresta densa, passando pelas regiões geladas, encontram-se seres humanos naturalmente organizados socialmente), segundo os tipos mais originais de organização social e infinitas formas culturais. Sociedades, muitas delas em locais dos mais recônditos do planeta mas perfeitamente viáveis nos seus modelos actuais, sobretudo se em numerosos casos (para não dizer em quase todos) forças exógenas adversas não interviessem e causassem desequilíbrios de toda a ordem, conduzindo à sua miséria material e destruição cultural, quando não a autênticos etnocídios como, por exemplo, em muitas situações da floresta amazónica.

1.2. A Antropologia social e cultural no contexto das ciências sociais

Neste ponto da exposição, pode dizer-se, de modo geral, que a antropologia social tem por fundamento não o estudo do Homem como mero ser humano – na prática esta preocupação é dividida com outras ciências humanas –, mas as formas e modos de organização social imanentes à sua condição humana. Refira-se ainda que a prática da antropologia social se desenrola ao lado do campo científico histórico, no âmbito da contemporaneidade das sociedades actuais – o que não significa que este estudo não considere o peso social da longa duração e não tenha consciência da fugacidade sincrónica. A utilização da história como instrumento apto a constatar a mudança e susceptível de a explicar não é evitável. Porém, a inscrição da antropologia social na contemporaneidade, prende-se com o facto metodológico derivado da necessidade de compreender como funciona uma sociedade no presente, e não exactamente de perceber o que ela é, pelo que deve, ou não deve, ao seu passado. Esta afirmação tem por convicção que as sociedades actuais não são meras continuidades lineares do passado. Na realidade, acontecem rupturas históricas, mais ou menos profundas, dando recorrentemente lugar a inovações que cortam radicalmente com o passado e as quais devem ser compreendidas no presente. Claude Lévi-Strauss, coloca o problema das relações entre a antropologia social e a história da forma seguinte: “ou [a nossa ciência adere] à dimensão diacrónica dos fenómenos, quer dizer à sua ordem no tempo, e são incapazes de fazer a sua história; ou tentam trabalhar à maneira do historiador, e a dimensão do tempo escapa-lhes. Pretender reconstituir um passado do qual se é impotente para atingir a história, ou querer fazer a história de um presente sem história, drama da etnologia num caso, da etnografia noutro, tal é, em qualquer dos casos, o dilema ao qual o seu desenvolvimento, no decorrer dos últimos 50 anos, pareceu muitas vezes encurralar uma e outra”. Constatando na obra de Franz Boas quanto é decepcionante «procurar saber como é que as coisas se tornaram no que são», o autor conclui dizendo ser necessário renunciar a fazer história no estudo das culturas do presente e

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privilegiar uma análise sincrónica das relações entre os seus respectivos elementos. Fica no entanto claro que a noção de funcionamento remete estritamente para a ideia de interdependência relativa entre os factos sociais, na medida em que as relações entre eles não representam necessariamente relações de determinação (causa a efeito) ou leis de funcionamento. Não é possível excluir do processo cultural histórico de um país o menor elemento, seja ele o mais modesto, graças a um conceito redutor e pouco científico como o de “aldeias históricas”. Para que tal não continue a provocar os piores estragos patrimoniais em todo o país (Aliás seria bom não esquecer que a Convenção de Haia de 1954 estipula que os crimes contra o património cultural são também crimes contra a Humanidade), é da maior urgência introduzir um conceito mais abrangente, como o de património etnológico. A questão da história não se põe do mesmo modo nas sociedades sem escrita e, desde logo, sem memória escrita dos factos notáveis passados (o que não significa serem sociedades sem história mas tão somente o seu esbatimento sob a forma limitada da memória colectiva e da sua repetição), onde o historiador possa recorrer para tentar reconstituir e compreender uma situação social anterior. No entanto, não deixa de ser desejável neste tipo de sociedade, a intervenção especializada do arqueólogo, na esperança de encontrar no solo elementos que informem sobre factos anteriores [Leroi-Gouhran: 1975]. Nas sociedades de língua escrita, e em particular nas de tipo ocidental, onde o uso da história é permanente e mesmo motor de mudança, historiadores e antropólogos criaram, graças à redefinição de alguns dos seus campos respectivos, as condições de intercâmbio entre as suas especialidades e enriquecimento mútuo. As razões são várias, como as que se prendem – para além da heterogeneidade dos campos de pesquisa – com as condições particulares em que se realiza a investigação propriamente antropológica. São fundamentalmente, o escasso financiamento para estadas de longa duração no terreno, a pouca aptidão pessoal para se integrar num grupo observado e a inerente capacidade necessária para afrontar situações constringentes de sociabilidade (tive pessoalmente a oportunidade de constatar algumas tentativas de integração falhadas). Mas ainda, por que não dizer, o desconforto das condições físicas a que, na maioria das vezes, o antropólogo está sujeito aquando da realização da sua investigação. Às circunstâncias acabadas de referir, acresce a fraca visibilidade da antropologia na sociedade a que pertence o antropólogo, tem igualmente conduzido a disciplina na direcção da literatura culturalista, na esperança de suscitar a atenção de um público alargado (em certos autores, designadamente portugueses, tal rumo deverá ser interpretado mais por razões de vocação literária do que pela análise sociológica). Em alguns casos, o desvio é visível nos próprios títulos dados às obras científicas, na tentativa de atrair o interesse de um maior número de leitores, não particularmente especialista. Aceder a um largo público, seria perfeitamente louvável se não se tratasse de pura lógica de rentabilidade financeira (para o editor) ou de tentar imprimir originalidade artificial à obra científica. A actual tendência, conduz à elaboração de títulos de forte efeito comercial e polissémico (actualmente a

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tendência de alguns editores e autores franceses é caricatural neste aspecto) que não traduzem minimamente o conteúdo do livro que intitulam (o que necessariamente deveria ser feito de forma precisa, concisa e clara). É certo que a clareza literária da narrativa é das mais desejáveis para a compreensão de fenómenos precisos e rigorosos; ela é tão útil e necessária em antropologia como em física. O que me parece não poder afirmar-se como meio de justificação para seguir a referida deriva é dizer-se – como já tenho ouvido – que, seja como for, cada uma das experiências etnológicas representa um mero ponto de vista pessoal. Este tipo de afirmação significa uma deliberada e total subjectividade ou a mera transposição de uma representação social do real (no sentido do meramente recriado pelo pensamento, segundo a interpretação, experiência ou julgamento pessoal), e não este como coisa concreta na sua inteligibilidade humana. Ou seja o real definido no sentido do que existe como existem as coisas factuais, é susceptível de ser apreendido inteligivelmente pelo ser humano e eventualmente reproduzível de forma e modo semelhantes. Deve insistir-se neste importante aspecto, reafirmando que a experiência pessoal de terreno não é, nem pode ser redutível a um simples ponto de vista pessoal sobre a realidade observada; mas que ela corresponde decisivamente aos fundamentos sobre os quais repousa a metodologia antropológica. Assim, a experiência de terreno corresponde fundamentalmente à mediação entre o real, o observado e o descrito, na prática do antropólogo e, quase inevitavelmente, na perspectiva da sua sociedade de origem. É verdade que, pelo facto da mediação, o relato etnográfico da realidade dada a observar é susceptível de perder alguma intensidade informativa pelo caminho mas nunca poderá pressupor o inexistente, sem correr o risco de invalidar a fiabilidade da informação. Na realidade, esta mediação, transposta com rigor, (tal como ela se apresenta concretamente à normal percepção do observador) entra na categoria do compreensível e é susceptível, designadamente em aspectos corpóreos, de ser reproduzida em condições muito semelhantes às da realidade e produzir eventualmente efeitos semelhantes. Porque não hajam ilusões, só é susceptível de ser totalmente descrito aquilo que se teve a capacidade de observar atentamente. Se não houver a capacidade de bem observar uma determinada realidade, esta não poderá ser bem descrita nem simplesmente descrita. Voltando à questão do próprio papel social da antropologia, é de referir que no caso português, a situação tem ainda outros contornos para além dos já evocados. E quem pensa possuir algum conhecimento (espontâneo) sobre as questões sociais (o que é muito natural em consequência das prenoções e representações que os indivíduos têm acerca do social) tende a atribuir uma maior valência ao que espera ser a sociologia. Precisamente, o raciocínio é inverso nos países de longa tradição de prática sociológica, como por exemplo em França onde desde há algum tempo esta última disciplina sofre – fora do meio estritamente académico – as consequências de um certo desencanto – apesar de injusto – em benefício da antropologia. Para o senso comum em Portugal, a sociologia, em comparação com a antropologia, parece ser uma ciência social mais “moderna” e, desde logo, mais adaptada à compreensão das sociedades modernas, como se pensa ser a actual fase da sociedade portuguesa. Inversamente, a ciência antropológica – por sinal com uma escola de longa tradição em Portugal – é vista como qualquer coisa que trata, no melhor dos casos, de assuntos exóticos, bizarros

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e sem interesse e, no pior, aqueles aspectos arcaicos próprios da vida das aldeias dos campos que também já não representam utilidade para alguém. Será uma evidência dizer que o desconhecimento do assunto e a amálgama entre sociologia e antropologia é generalizado, mas não cabe neste livro fazer a história comparada das duas disciplinas nem evidenciar a metodologia sociológica (bastante útil quando não cede à tentação de uma mera abordagem ideológica). No entanto, não se pode deixar de reafirmar, muito rapidamente, que a antropologia não é uma actividade de antiquário, de coleccionador de objectos antigos e preciosos, nem uma actividade confinada na mera curiosidade do tido por arcaico, exótico ou primitivo e incomodativo para algum pensamento português dotado de uma estranha concepção sobre a “modernidade”. É esta concepção comum que geralmente se tem do etnólogo no terreno europeu, e em particular no português. Necessitar de fazer (pelo que me é dado interpretar) afirmações de carácter tão geral, é por si só revelador do reduzido grau de compreensão em Portugal das ciências sociais em geral e da antropologia social em particular. Não esquecendo no entanto que, até há pouco tempo, os antropólogos centravam mais tipicamente a sua atenção sobre um certo género de sociedades e se dedicavam particularmente ao estudo de sociedades sem escrita e sem maquinismo (relativo). Sociedades habitualmente assim referidas eufemisticamente para evitar a designação de primitivas, dado que o termo se tornou pejorativo em consequência da concepção errada que tinham destas sociedades os autores evolucionistas do século XIX. Resta, contudo, dizer ser uma evidência que nenhuma metodologia permite a um único cientista abarcar a globalidade do social ou das culturas de uma sociedade. Essa tentativa foi durante muito tempo vã ao aparecer sob a forma de monografias pretensamente exaustivas.

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2. A antropologia uma ciência integrante

2.1. Cinco campos de estudo Qual será a vantagem de evocar campos de estudo que não parecem dizer directamente respeito aos antropólogos sociais, fazendo correr o risco de tornar mais nebuloso o que já não é simples? O panorama científico da própria antropologia social e cultural poderia parecer de facto nebuloso se não fosse elucidado o lugar que ocupa no conjunto antropológico mais vasto. Sobretudo, quando a antropologia social e cultural se designa imperialmente pelo termo genérico de antropologia , induzindo a ideia de que ocupa todo o espaço dos diferentes campos de estudo antropológico. Na realidade, a ciência antropológica é uma ciência integrante a qual no seu desenvolvimento inicial não fazia a distinção entre os diferentes domínios de conhecimento, considerados na perspectiva de uma problemática teórica geral sobre o Homem. De facto, no passado, a sua designação genérica antropologia (conceito de origem etimológica grega: antropos, homem; e logos, discurso, utilizado pela primeira vez em 1795 no sentido de «história natural do homem») cobria grosso modo no mínimo – e continua a integrar mas de forma independente – cinco domínios de estudo fundamentais: 1) a antropologia biológica (que substitui a antiga antropologia física), 2) a antropologia pré-histórica , 3) a antropologia psicológica , 4) a antropologia linguística , 5) e finalmente o que actualmente se designa de antropologia social e

cultural . O desenvolvimento desta ciência geral desde o século passado e a consequente crescente acumulação de uma complexidade considerável de conhecimentos sobre cada um dos referidos domínios, fez com que seja hoje impossível, a um simples investigador, abarcar todos eles e todas as suas múltiplas subdivisões disciplinares. É, no entanto, verdade que a maioria deles de tão preocupados com a especialidade perdem facilmente de vista o objecto final da antropologia como ciência integrante: o Homem social e cultural na sua complexidade total. Mas também é verdade que no plano da necessária interdisciplinaridade entre especialidades, com preocupações comuns em alguns aspectos – interdisciplinaridade que sem constituir um campo de conhecimento específico pretende por vezes erigir-se em domínio embora na maioria das vezes não se vislumbre o mínimo campo epistemológico, a não ser o das generalidades –, o fio condutor da especialidade faz sempre eminentemente falta. A antropologia social e cultural é uma especialidade que recorre constantemente à integração de diferentes saberes. O que se pretende dizer é que a interdisciplinaridade não deve ser uma panaceia para a ausência de especialização (conducente à profunda compreensão dos fenómenos), a única que permite aceder, graças à minúcia e à concentração da atenção, à compreensão de fenómenos profundos. Colocadas estas reservas, a interdisciplinaridade, mais ou menos abrangente, é metodologicamente desejável como passo de convergência científica e

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passo potencial de síntese dos diferentes saberes, sem o qual não existiria real generalização e possibilidade de universalização dos conhecimentos. Fechando este parêntese, o que acaba de ser dito pretende unicamente chamar a atenção para as limitações actuais da interdisciplinaridade, que de modo algum constitui, por enquanto, um campo de conhecimento em si, assim como para o excesso de especialização que impede uma visão alargada dos problemas.

2.1.1. A antropologia biológica (antiga antropologia física)

No século XIX e nos princípios do século XX, a palavra antropologia era empregue exclusivamente no sentido de antropologia física , ciência cujo objecto se centrava em especial nos caracteres biológicos dos homens segundo a noção de raça, a hereditariedade, etc. A antropologia física designa-se hoje de antropologia biológica e não se preocupa especialmente com as raças e a sua anatomia comparada (com as formas e mensurações dos crânios e esqueletos, da cor da pele, dos olhos e do cabelo). A antropologia biológica, diz essencialmente respeito ao estudo das variações dos caracteres biológicos do homem no espaço e no tempo. Por outras palavras, esta ciência debruça-se sobre o estudo das relações entre o património genético humano e o meio geográfico e social, relacionando as particularidades morfológicas e fisiológicas com o contexto ambiental e com a evolução destas particularidades. O actual domínio da antropologia biológica, na sua contribuição mais directa para evidenciar a relação entre factores sócio-culturais e caracteres biológicos do homem, debruça-se em particular sobre a genética das populações e participa, cada vez mais – directa ou indirectamente –, no debate sobre o derivado do inato e o dependente do adquirido assim como sobre a sua contínua interacção. Certos exageros e aproveitamentos de alguma ingenuidade são regularmente cometidos por entidades, na maioria dos casos, exteriores à comunidade científica. A “feromona” é uma substância odorante segregada por um animal que produz, nos indivíduos da mesma espécie, efeito à distância, influenciando o seu comportamento, como por exemplo o estímulo sexual. Nas conclusões algo redutoras de alguns biologistas, não são consideradas a complexidade cultural da variabilidade e relatividade temporal e espacial do odor, e menos ainda as diferenças comportamentais próprias das várias classes sociais e da história particular dos indivíduos. Não é difícil entender que a simples tomada em consideração destas realidades sociais seria cientificamente importante para encarar o fenómeno biológico do odor, não só de forma menos exclusiva mas também, mais objectivamente, do ponto de vista biológico. O caso em que uma mulher estéril desenvolve o seu ovulo fecundado pelo seu marido recorrendo ao útero de outra; ou o caso em que se recorre a um banco de esperma (anónimo ou não, segundo os países) para, em substituição de um marido estéril, criar in-vitro um embrião, que será em seguida desenvolvido no útero da esposa. Tanto numa situação

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como noutra, um dos cônjuges não tem uma relação biológica com o futuro filho o que não o impedirá de ser considerado como tal socialmente. O 3º exemplo, mais discreto, diz respeito aos casamentos consanguíneos e ao facto das leis civis europeias autorizarem casamentos entre primos direitos e proibi-los entre um meio-irmão e uma meia-irmã – quando em ambas as situações o coeficiente de consanguinidade é idêntico, no cálculo dos geneticistas. Esta distinção introduzida pelas sociedades, sublinha o carácter “artificial” da construção social do parentesco. Os três exemplos demonstram que não é necessária a existência de uma relação de consanguinidade real para que se constitua e afirme uma relação de parentesco.

2.1.2. A antropologia histórica A antropologia histórica corresponde a um vasto programa de investigação sobre o passado das sociedades desaparecidas e das actuais. A ela pode acrescentar-se a antropologia pré-histórica e a etno-história. A antropologia pré-histórica estuda a existência do homem num passado muito remoto, relativamente ao qual não existem documentos escritos. Pelo que acaba de ser dito se pode compreender que a antropologia pré-histórica tem por finalidade a reconstituição das sociedades desaparecidas nos seus diferentes aspectos. Como é fácil de perceber, o aspecto do interesse pelas organizações sociais é certamente o mais problemático e representa um objectivo espinhoso, na medida em que os vestígios sociais têm um grau de materialidade difícil de reconstituir na sua forma complexa antiga. Tanto o projecto da antropologia pré-histórica como a da etno-história resultam do confronto com a antropologia social . Porém se ambas se têm debruçado sobre o passado das sociedades exteriores ao tempo histórico das sociedades ocidentais, a diferença entre a etno-história e a antropologia pré-histórica reside no facto de o etno-historiador trabalhar directamente com o tempo da oralidade local e o antropólogo pré-historiador recolher o seu material de investigação em escavações feitas no solo. Porém, como o tempo presente não diz directamente respeito à história e muito menos à pré-história, tanto na antropologia pré-histórica como na etno-história a antropologia está subjacente, na medida em que conjuga o tempo da oralidade com o tempo do historiador ou do pré-historiador. A palavra etno-história foi criada pelos etnólogos americanos para referir os seus trabalhos relativos às tentativas de reconstituição da história dos índios, a partir das tradições e factos recolhidos. Por esta altura, era corrente dizer-se que onde não havia documentos escritos não havia história. É assim que, durante algum tempo, os historiadores deixaram a cargo dos antropólogos os povos sem arquivos históricos escritos e as culturas camponesas aos folcloristas. Porém, informação de um outro tipo foi encontrada pelos etnógrafos (na forma de récitas, sagas, mitos, objectos) mas não correspondiam ao que os historiadores mais conservadores consideravam habitualmente como documentos históricos, donde a emergência de um campo de estudo conjugando a etnologia e a história.

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Para Leroi-Gouhran [1911-1986], a etno-história é história com os seus métodos aplicáveis a qualquer terreno de tradição escrita, transpostos para um fundo de tradições orais. Por outro lado, para o autor, a própria etnologia seria portadora de vocação histórica, na medida em que qualquer facto actual estaria induzido pelo seu passado. Assim, o método etno-histórico corresponderia à aplicação das regras da crítica histórica aos elementos ainda vivos na memória dos indivíduos. Por outras palavras, a etno-história apresentar-se-ia em continuidade com os métodos da história escrita, podendo assimilar qualquer tipo de documentos escritos que iriam inserir-se num quadro oral de idêntica origem sociológica [A. Leroi-Gouhran, 1975]. Nesta mesma ordem de ideias, seria possível fazer intervir a arqueologia na medida em que os vestígios e as ruínas encontradas no subsolo são um contributo que, em certos casos, se podem combinar com a história escrita e as tradições orais. O tempo processa-se em séries contínuas e descontínuas, dando lugar a um tempo sincrónico complexo onde se misturam a longa duração, mais ou menos profunda, mas também rupturas, anomias (o termo de anomia foi introduzido em sociologia por Emile Dürkheim para referir uma situação de “patologia social” resultante da desintegração ou destruturação de uma sociedade tradicional, ou de uma crise social passageira. A anomia traduz-se pela ruptura de solidariedade entre indivíduos e conduz à ausência de laços inter-individuais, por falta de regras de comportamento social reconhecíveis e aceites por todos) e inovações sem relação com o passado. Por exemplo, quando se tenta perceber em que circunstâncias as alianças matrimoniais actuais, numa dada comunidade, poderão estar ou não relacionadas com anteriores. No presente exemplo, o investigador não pode deixar de remontar no tempo, o estritamente necessário, até reencontrar o reencadeamento que lhe permite perceber que um determinado casamento é fruto, ou não, de situações anteriores de mesma ordem. Este tipo de abordagem não deixa de apresentar alguma semelhança com o método histórico regressivo (método que vai das consequências aos princípios) defendido por Marc Bloch e posto em prática no seu estudo do parcelário agrário da França [1976]: o método da história “aos recuos”. «A embriologia é uma ciência admirável mas só faz sentido uma vez conhecido em primeiro lugar, mesmo sumariamente, o ser adulto. Uma instituição como a servidão, é, sobretudo, no momento do seu pleno desenvolvimento que convém abordá-la; caso contrário fica-se sujeito a investigar as premissas de coisas que nunca existiram». Para concluir, nas sociedades em que determinados estudos o justificam, a antropologia histórica, ou a etno-história, conjuga o tempo antropológico e o tempo histórico naquilo que é estritamente necessário para a compreensão do presente, como finalidade antropológica e não histórica.

2.1.3. A antropologia linguística Este domínio corresponde ao confronto entre a antropologia e a linguística (A linguística é a ciência que estuda a estrutura, as funções e valor significativo da linguagem.) enquanto ciência que estuda a linguagem como

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parte integrante do património cultural de uma sociedade. Sem o estudo da língua não seria possível compreender como os indivíduos pensam o que vivem e sentem, ou seja não poderíamos compreender as suas categorias afectivas e cognitivas, as quais constituem precisamente o campo de estudo da etno-linguística . Segundo Claude Lévi-Strauss [1958], a linguagem pode ser encarada, nas suas relações com a cultura, segundo três aspectos. Todos eles são fundamentados na observação e levantam problemas particulares, para além de constituírem o ponto de partida de concepções explicativas sobre as relações entre a linguagem e a cultura: 1) a linguagem corresponde a um dos aspectos da cultura (as suas

implicações metodológicas são as mais importantes); 2) a linguagem é igualmente uma produção cultural, na medida em que

reflecte, pela natureza e projecção dos seus sistemas simbólicos, certas características de uma cultura);

3) finalmente, a linguagem corresponde a uma condição da cultura. É um facto observado que a linguagem assume, totalmente ou em parte, a permanência de certos aspectos da cultura.

Num plano teórico, ela própria é uma cultura se a considerarmos um sistema de comunicação privilegiado que fornece a chave de acesso aos sistemas particulares de comunicação como aos diversos aspectos da cultura. A antropologia e a linguística são disciplinas autónomas, facto que explica que a atracção de uma pela outra não tenha sido recíproca e que os benefícios retirados da relação entre ambas não sejam equivalentes, mas a favor da antropologia. Contudo esta relação desigual, mas fascinante, entre as duas disciplinas, ainda não foi realmente capaz de abordar e, desde logo, compreender a natureza dos interfaces entre a linguagem e a cultura. Apesar de se considerar a oralidade como apenas a ausência de escrita, ela é ao mesmo título que a escrita uma técnica de comunicação. A oralidade, sob a forma de expressão da memória colectiva, revela uma forma de comunicação cuja função é idêntica à da escrita. Através do estudo da língua é possível esperar compreender, por exemplo, as categorias mentais do parentesco, cristalizadas nas nomenclaturas dos termos de parentesco e reconstituir as sagas genealógicas que permitem retraçar as histórias familiares e identificar as categorias parentais operatórias. O estudo da língua na forma oral (transcrita foneticamente, designadamente em locais onde esta não tem uma correspondência escrita), é o único meio obrigatório que o investigador tem para aceder à sociedade e à cultura em observação.

2.1.4. A antropologia psicológica Aos três primeiros eixos de investigação que acabei de invocar, habitualmente considerados como sendo os principais eixos constitutivos (com a antropologia social e cultural, o domínio que nos diz principalmente respeito e que é o objecto deste livro) do campo global da

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antropologia, não se pode deixar de acrescentar o domínio da antropologia psicológica – estudo dos mecanismos do psiquismo humano, na sua interacção com a permanência social.

2.1.5. A antropologia social e cultural Começo por dizer que por razões de economia de linguagem, a tendência é utilizar apenas o termo genérico de antropologia para mencionar os campos da antropologia social e cultural (ou etnologia , segundo as diferentes opções nacionais). Aliás, é nestes termos que deve ser tomado o título do livro; ou seja, no sentido Geral da antropologia social e cultural. De igual modo, quando falar de antropólogos é a especialistas do domínio social e cultural que me refiro. Apesar desta designação genérica, não devemos tomar a parte pelo todo esquecendo que a antropologia social e cultural é um ramo da Antropologia no seu todo. Contudo, como tivemos a ocasião de explicar no início do livro, a antropologia social e cultural é um ramo vastíssimo e complexo. Porém estes aspectos, enquanto meras categorias cujo conteúdo resulta da actividade social dos indivíduos, tal como a definimos na introdução, não podem ser considerados como elementos independentes uns dos outros. Ao contrário, deverão ser entendidos nas suas relações, a fim de compreender o sentido de cada uma dessas categorias e finalmente a sociedade na sua globalidade lógica (não se tratando aqui de coerência nem coesão dos sistemas sociais à priori, mas fundamentalmente de relações de dependência e interdependência ou de ruptura). Realizámos uma breve revista dos principais domínios da ciência antropológica, no seu sentido mais geral, para situar com uma maior precisão o lugar da antropologia social e cultural no conjunto do projecto integrante da Antropologia e constatar que nenhum dos domínios anunciados é inteiramente exclusivo. As fronteiras dos seus respectivos campos não são estanques e em muitos casos transvazam para fora dos seus limites, como sempre acontece com todas as ciências e muito especialmente nas ciências sociais.

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3. O projecto da antropologia social e cultural

3.1. Etnologia ou antropologia ? O termo etnologia , cuja etimologia significa o estudo das etnias (etno = etnia, logia = estudo) foi empregue em países cujas preocupações estavam essencialmente voltadas para o estudo das etnias, no sentido das diferenças culturais entre povos. No início do século XIX, era sinónimo de “Ciência da Classificação das Raças” (ramo da antiga antropologia física) e designava o conjunto das ciências sociais que estudam as sociedades tidas como primitivas e o homem fóssil. No seu sentido restrito, durante muito tempo, a etnologia incluiu basicamente os estudos sintéticos e conclusões teóricas elaboradas a partir de documentos etnográficos , orientados em particular para os problemas de origens , de reconstituição do passado , de contactos , de difusão . É neste sentido que os britânicos empregam desde há muito o termo ethnology . Todavia, estas distinções estão longe de ser claras e unânimes em muitos países. Em França, o termo antropologia designou inicialmente, e durante algum tempo, o ramo da antropologia física unicamente. Entretanto em França, o emprego e o sentido do termo ethnologie passou a ter um conteúdo semelhante ao de antropologia social anglo-saxónica. As perspectivas eram sensivelmente as mesmas embora para designações diferentes. A maioria dos trabalhos de etnologia publicados neste país, mesmo os elaborados trinta anos atrás, seriam considerados como sendo de antropologia social se fossem editados nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. No decurso dos últimos anos, o vocábulo ethnologie teve tendência para ser gradualmente substituído pelo de anthropologie sociale (actualmente o vocábulo ethnologie é unicamente empregue nas licenciaturas, enquanto na investigação é preferido o termo de antropologia social). Por sua vez, os alemães deram ao termo etnologia (ethnologie em alemão) o mesmo sentido geral que os franceses e trabalharam de forma semelhante, preferindo no entanto utilizar a expressão etnografia (Völkerkunde ) para qualificar os seus ensinos universitários. Tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos, o termo social anthropology vingou desde há muito para referir o que os franceses designavam com o termo ethnologie , contudo o termo social anthropology pressupõe as vertentes social e cultural, com uma diferença entre britânicos e americanos. Os britânicos foram uma potência colonial (como foram outros países com preocupações coloniais mais ou menos idênticas, segundo os casos: França, Holanda, Portugal) o que os conduziu à necessidade de tentar perceber os povos que colonizavam, particularmente no sentido de harmonizar, na medida do possível, a prática do direito privado local com o direito público colonial. Inversamente, os americanos não tendo sido uma potência colonial, encerram no entanto, no seu seio, numerosas minorias culturais que estão na base da formação nacional dos Estados Unidos. Por

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outras palavras, o que transparece em primeira linha, na orientação científica americana da investigação de si própria, não serão tanto as questões sociais que o país encerra, problemáticas ou não, como em qualquer outra sociedade, mas essencialmente a complexidade das descontinuidades culturais internas e as suas relações com o fundo cultural comum americano. Do ponto de vista anglo-saxão, a etnologia estaria principalmente preocupada com classificações, não dos tipos sociais mas das questões de difusão e de origem dos fenómenos culturais. Ou seja, com preocupações de carácter histórico. Radcliffe-Brown [1958] refere como sendo questões tipicamente etnológicas, aquelas que se interrogam sobre como e quando os Paleo-índios entraram na América e como desenvolveram as diferenças culturais e linguísticas que apresentavam na altura da chegada dos europeus. Inversamente, a antropologia social coloca-se questões do género: qual é a natureza do direito ou da religião? Para o referido autor (tal como para outros antropólogos sociais), as questões históricas não tinham sido bem colocadas pela etnologia, porque partiam de postulados pouco apropriados e não demonstráveis, como as questões colocadas sobre as origens e o desenvolvimento das sociedades humanas, o que o levou a afastar-se da história e a afirmar que esta não dizia respeito à antropologia social. Radcliffe-Brown e outros autores de mesma opinião limitavam-se a colocar o assunto entre parênteses e a pensar ser indispensável dividir o trabalho entre os etnólogos, enquanto historiadores das etnias e das civilizações, e os antropólogos preocupados pelo estudo não temporal dos fenómenos sociais. Por outras palavras, aqueles autores optavam por separar os diferentes domínios e considerar ser necessário formar especialistas diferenciados, por não ser possível fazer várias coisas ao mesmo tempo. Efectivamente, como resultado, devemos à antropologia social a introdução das importantes noções de função , de sistema de relações sociais assim como a noção de estrutura social . Porém, necessário será dizer que esta atitude repousa sobre uma separação artificialmente marcada, ou seja forçada, como já referimos atrás, entre o passado e o presente das sociedades, entre a sua real dinâmica e a aparência estática. Em suma, a separação entre passado e presente é sobretudo de carácter metodológico, na medida em que é necessário “parar” artificialmente o tempo para poder realizar o instantâneo de uma determinada sociedade. Uma espécie de fotografia a dar conta de um momento preciso situado no presente que sabemos ser mais ou menos fugaz. É graças a estes instantâneos que a antropologia, comparando diferentes monografias locais, pode proceder à comparação de contemporaneidades particulares e tentar tirar conclusões de ordem geral. Esta disparidade de designações para uma mesma ciência resulta, provavelmente, do facto desta ciência ser uma disciplina relativamente recente, de se ter desenvolvido lentamente, com diferenças profundas segundo as épocas e os países onde estas designações se foram enraizando no seio das suas escolas nacionais. Por exemplo na linguagem comum as palavras sociedade, cultura, estrutura, função, etc. são entendidas por cada um de nós segundo sentidos diferentes. Ora, são estes mesmos vocábulos comuns que pertencem igualmente ao vocabulário científico antropológico, com as imprecisões que tal implica. Em França, o termo ethnologie tem vindo a sofrer uma nova redefinição. À etapa etnológica de estudo antecedendo a da antropologia social propriamente

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dita, estão reservados os estudos locais monográficos ou temáticos sobre uma determinada sociedade ou grupo mais restrito e não pretende a universalidade ou emitir leis gerais como a antropologia social e cultural. A interrogação sobre as diferenças de designação da disciplina e consequente definição do seu objecto segundo os países, leva-nos imediatamente a outra. Conduz-nos à questão de saber se aceite a designação de antropologia esta deve ser social ou cultural ou contemplar necessariamente ambas as dimensões. Os antropólogos culturais consideram em primeiro lugar as técnicas materiais ou intelectuais, tal como o modo de vida, as crenças, as atitudes para chegar a uma espécie de super técnica que é a actividade social e política. O social e o cultural são dimensões inseparáveis da actividade humana. Não desaparece a dimensão social ao privilegiarem-se os aspectos culturais, dado ser precisamente o social que está na base da manifestação cultural. Tanto é assim que ficou aliás acordado, durante um colóquio de Chicago no fim dos anos 40, que a disciplina deveria designar-se preferencialmente por antropologia social e cultural , a fim de contemplar explicitamente os diferentes aspectos da complexidade dos fenómenos de sociedade. A dimensão cultural não é de facto dissociável do social, ela é um dos seus aspectos intrínsecos e mesmo o modo tangível pelo qual se exprime o social. Dou um exemplo: nas relações do dia a dia é socialmente aconselhável, em certas ocasiões, cumprimentar alguém de modo mais formal. A forma cultural escolhida por muitas sociedades é o “aperto de mão”. Nestas, se tivéssemos a ideia de proceder de outra forma como, por exemplo, esfregar o nosso nariz no do interlocutor (como se faz em certas culturas) a nossa atitude seria considerada incongruente e não reconhecida como a resposta social adequada ao comportamento cultural normal esperado. De resto, se uma pessoa se negar a “apertar a mão” a quem normalmente o deveria fazer, o seu comportamento será interpretado como a recusa de relacionamento com esta outra pessoa e, por consequência, a manifestação da existência de qualquer perturbação no relacionamento entre as pessoas em causa: conflito declarado ou simplesmente não reconhecimento da relevância social de uma das pessoas em relação à outra – o que naturalmente representa uma afronta para ela. Pode dizer-se assim que o “aperto de mão”, como comportamento cultural, é dotado de significação social, porque funciona como símbolo de comportamento adequado a uma determinada situação social, e como tal informa sobre a situação, imprimindo-lhe simultaneamente existência e continuidade. A fim de exemplificar a noção de relativismo cultural e função social , Evans-Prichard [1951] refere a diferença de comportamentos religiosos entre católicos e muçulmanos nos seus templos respectivos. Resulta do que acaba de ser dito que a própria imposição social de venerar um Deus, reflecte em si uma atitude cultural particular. De facto, podia não ser o caso e estarmos perante sociedades animistas (Não é aqui empregue no sentido que Tylor lhe dava ao pretender que o primeiro estado da evolução religiosa da humanidade teria consistido na crença que tudo na natureza possui uma alma. Afastado este tipo de interpretação que de facto releva da história conjectural, o conceito é, no entanto, útil para referir sociedades ou grupos bem reais onde a religião não é praticada – tal como ela é definida pelos dogmas das principais religiões – e onde, inclusivamente, se atribui o maior poder à natureza

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(como no Japão, por exemplo).), ou seja onde não há na sua visão cosmogónica do universo a existência de um Deus. O que a ser assim, os comportamentos acima referidos não poderiam ser observados. Seria possível multiplicar, sem fim, exemplos desta natureza e evidenciar a dificuldade que vela a tentativa de dissociação entre o social e o cultural. Fica no entanto claro que é possível privilegiar uma destas duas dimensões – social ou cultural – da vida em sociedade. E é o que ressalta das diferentes tradições nacionais de investigação cujo exemplo evidente nos é dado pelas etnologias britânica e francesa por um lado e americana por outro, como já foi dito. Mas seja qual for a vertente privilegiada, trata-se sempre de estudar as sociedades humanas, e a tudo quanto foi dito anteriormente poderia acrescentar a ideia de Raymond Firth quando define a antropologia como o estudo comparado dos processos da vida social, a qual pressupõe implícita e igualmente as suas formas de expressão cultural. Por outras palavras, é tida em consideração a diversidade e originalidade das sociedades (ou das culturas) humanas. As quais, uma vez admitidas, já não permitem pensar existir um tipo padrão absoluto de sociedade cujo modelo seria representado pela sociedade ocidental. Se assim não fosse, tal atitude corresponderia a um julgamento de carácter etnocêntrico . Ou seja, pensar os outros (no confronto com a alteridade) segundo as nossas normas, os nossos valores, a partir do que se induziria não só a diferença como uma hierarquia, na qual nos colocaríamos inevitavelmente no topo, recusando a diferença dessa diferença. A definição de antropologia social como sendo o estudo das relações sociais, das estruturas ou dos sistemas sociais, poderia corresponder à definição de sociologia. Será aliás sobretudo na perspectiva do estudo da vertente social da antropologia que tomará preferencialmente o rumo deste livro.

3.2. Como definir a antropologia social Ao longo do capítulo foram dados, gradualmente, os principais elementos de definição da antropologia social no seu sentido mais geral, permitindo agora avançar para uma perspectiva mais completa e específica da disciplina. Ficou também claro que desde o seu início esta ciência se interessou pelo estudo das sociedades “primitivas” contemporâneas, caracterizadas, como tal, essencialmente pelas suas pequenas dimensões , e na maioria dos casos pela ausência de Estado e escrita , mas igualmente sem maquinismo e de desenvolvimento tecnológico rudimentar . De facto, não havendo escrita, o único método concebível que se impunha ao estudo de um determinado contexto social vivido no momento, era a observação directa no terreno, (em rigor, o método referido não se opõe totalmente à falta de escrita mas designadamente ao inquérito por entrevista). Estes três aspectos – objecto, método e um determinado tipo de questionamento – davam à antropologia uma certa originalidade no seio das ciências sociais permitindo que esta se constituísse em disciplina autónoma.

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Porém, de modo geral, o universo tradicional de investigação tem vindo a alterar-se devido à aceleração do movimento histórico de globalização mundial que conduz a disciplina a uma ruptura com o seu domínio de investigação inicial (o mundo exótico) e a confrontar-se crescentemente com sociedades (como as sociedades em vias de desenvolvimento) cujas preocupações são também cada vez mais semelhantes à sociedade do antropólogo. A inevitável diversificação e reorientação actuais do olhar antropológico demonstra que a originalidade do seu saber não está determinado pela natureza dos objectos geográficos de análise: o exclusivo universo exótico. Pelo contrário, o Minho, o Yorkshire ou o Texas, por exemplo, são tão etnológicos como qualquer sociedade africana, sul-americana, etc. Sendo assim, a antropologia não é susceptível de ser definida pelo tipo de sociedades estudadas. Por outro lado, se também a disciplina não pode definir-se pelos métodos empregues na análise (os procedimentos utilizados na recolha do material científico não servem para caracterizar uma ciência), estes são no entanto importantes para avaliar o grau de rigor dos procedimentos de validação ou invalidação postos em prática por uma ciência. Esta característica da antropologia é de facto muito importante e C. Lévi-Strauss ao definir a disciplina como “uma ciência social do observado” [1958], releva, indirectamente, o aspecto do método ao sustentar a ideia implícita de que a sua abordagem se faz pela observação, do ponto de vista do observador . Apesar da heterogeneidade científica e de algumas rupturas teóricas ao longo do desenvolvimento da disciplina, esteve sempre presente uma perspectiva específica da antropologia sobre o real. Na prática, os estudos pouco ultrapassaram os particularismos, procederam à comparação ou foram capazes de enunciar aspectos universais e leis gerais. Pelo contrário, é precisamente pelos particularismos locais que necessariamente se inicia a investigação etnológica, antes de proceder à comparação e pensar a universalidade antropológica. É este projecto que corresponde à finalidade fundamental e permanente da antropologia social e cultural. No fundo, do ponto de vista cultural, é necessário evidenciar e relacionar saberes e discursos culturais particulares com saber global e discurso geral sobre a humanidade. Porém, para tanto, não é desejável encerrar a disciplina na classificação de costumes estranhos ou culturas em vias de desaparecimento em sociedades distantes ou próximas, embora esta actividade corresponda a uma necessidade evidente de registo e arquivo, na lógica de uma etnografia e etnologia ditas de urgência. Tal, dando maior importância – na perspectiva da autonomia do social, segundo os autores Durkheim e Mauss – a um quadro teórico independente da explicação histórica (na perspectiva evolucionista); da explicação geográfica (na perspectiva difusionista); da explicação biológica (na perspectiva funcionalista de Malinowski); da explicação psicológica (do ponto de vista do estudo dos comportamentos). Por outras palavras, a antropologia na sua vertente social apresenta-se como uma ciência autónoma que estuda as relações das relações sociais , a partir de contextos etnológicos locais metodologicamente adequados, tal como foi referido anteriormente. Entretanto, apesar destas alterações, parece ser pertinente colocar algumas interrogações a este propósito. Será que o fenómeno de globalização

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económica conduzirá inevitavelmente à uniformização cultural e social? Se tal for o caso, será esta total? Sabemos que as sociedades não são estáticas nem esperam umas pelas outras relativamente à mudança, manifestam sobretudo aptidões de criatividade na elaboração constante de diferenças. O movimento de imposição de um modelo de desenvolvimento universal (com a introdução de relações comerciais, monetárias e capitalistas na generalidade das sociedades), conduziu a antropologia a integrar a modernidade no seu campo de análise habitual; ou seja, a considerar igualmente – para além das sociedades “primitivas” – o estudo do espaço da nossa vida quotidiana ocidental, as nossas condutas sociais correntes. Se tomarmos em consideração as sociedades europeias, constatamos que a situação é muito desigual no domínio da investigação antropológica: a par de países com centros de grande actividade científica, existem outros em que as escolas de antropologia ou são inexistentes ou têm uma actividade e importância reduzidas. Acresce ainda que alguns destes países, apesar de possuírem núcleos de estudo etnológico, nunca tiveram, pelo menos de forma significativa, uma experiência exótica. Ora, depreende-se de tudo quanto foi dito até aqui, que o projecto antropológico não pode corresponder ao exclusivo conhecimento dos outros mas igualmente ao conhecimento de si – e para o qual contribui pela mesma ocasião o dos outros. Assim, a antropologia é necessariamente uma ciência comparativa, na medida em que se impõe ao investigador a tarefa de elaborar uma teoria geral da vida em sociedade . No entanto, só com o fim dos colonialismos a antropologia refluiu para a Europa incluindo-a – com as reticências que são conhecidas – na sua área de conhecimento. Esta visão, resulta da ideia de que a distância cultural obtida pela distância geográfica é absolutamente indispensável do ponto de vista metodológico e epistemológico. Juntamente com algum etnocentrismo, leva ainda a considerar implicitamente que em alguns países do Sul as suas sociedades camponesas estariam mais perto das condições etnológicas anteriormente conhecidas, no universo extra europeu. Pode dizer-se para concluir que a ciência antropológica tem sido uma ciência de prática desigual desde a origem. De facto, os investigadores do Sul têm-se confinado ao olhar de si próprios, partilhando o seu espaço com outros sem ousar alargar o seu campo de intervenção a outras regiões que não as suas – é uma prática alienada da antropologia europeísta que impede por natureza a comparação. Segundo a perspectiva referida, Portugal, por exemplo, seria hoje ainda – para alguns observadores, como cheguei a ouvir – um conservatório desses mundos desaparecidos ou em vias de desaparecimento. Não é cientificamente correcto considerar Portugal, nem outros países em condições semelhantes, como um conservatório de um passado imutável e, por essa razão, não pode constituir refúgio para etnólogos passadistas que pensam ser apanágio da etnologia o estudo exclusivo de sociedades arcaicas. Mais rapidamente do que há uma vintena de anos atrás, Portugal acelera a sua plena integração no modelo de sociedade de massa ocidental (de modo desigual segundo as zonas do país, é certo, mas o seu caso não é o único) e é nesta perspectiva

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dinâmica que deve ser incluído no campo da antropologia, tal como deve ser incluída toda a Europa. Com efeito, na medida em que queremos atender aos objectivos gerais da disciplina, enunciados mais atrás, não é possível reservar zonas geográficas especiais ao estudo antropológico e excluir do seu campo de estudo outras tantas sob o pretexto, vão, de que as primeiras seriam o conservatório de particularismos tradicionais, desaparecidos nas segundas. Sejam quais forem as variantes sociais de sociedade, a sociedade industrial moderna, cuja origem é europeia mas que se estende actualmente por uma grande parte do planeta, repousa onde quer que seja em estruturas semelhantes e desenvolve, em todo o lado, mais ou menos o mesmo tipo de relações. Em contrapartida, as diferenças entre, por exemplo, as sociedades tropicais da América do Sul e o Japão moderno são diferenças mais profundas, são diferenças de espécie.

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4. Princípios metodológicos

4.1. A invariante: o método A investigação é o resultado de um conjunto de procedimentos metodológicos assentes especialmente: 1) numa boa informação bibliográfica; 2) num ponto de partida teórico em forma de hipótese ou de um conjunto de

questionamentos; 3) num método geral e métodos específicos em função dos quais se

organizam os protocolos de investigação, segundo um plano concreto de observação e respectiva ordem de execução no terreno;

4) em diferentes materiais e técnicas auxiliares. Assim, à partida, no início da etapa etnográfica , o estudo de uma sociedade ou de um segmento temático relativo a esta, requer uma preparação teórica prévia apurada, designadamente pela aquisição de informação bibliográfica. Tal, principalmente se o estudo em causa não for inédito e entretanto houver publicações sobre o tema. Uma vez esta informação teórica adquirida, será possível levantar eventuais hipóteses teóricas ou mais modestamente questões sobre o que se pretende investigar. No caso de se querer elaborar uma monografia sobre a globalidade de uma determinada sociedade, é corrente partir-se para o terreno sem grandes á priori, emergindo interrogações mais profundas posteriormente. Quanto ao método geral praticado pelos antropólogos, na fase etnográfica , este consiste necessariamente na observação directa no terreno , por impregnação longa e pessoal, relativamente a um determinado contexto social e resulta de diferentes aspectos específicos à disciplina. Resulta, em primeiro lugar, indirectamente, da dificuldade geral inerente às ciências sociais ao colocar o investigador na posição simultânea de observador e objecto de observação de mesmo carácter que ele. Esta dificuldade é por natureza inerente à ciência antropológica dado o seu método consistir na observação directa das práticas sociais de outros seres humanos, desde logo de mesma índole que o observador. Assim, a dualidade, necessária à objectivação dos fenómenos observados é praticamente nula e implica introduzir uma separação metodológica artificial entre os dois termos, a qual se traduziu durante muito tempo pelo estudo de um determinado tipo de sociedades, com as características enunciadas no capítulo anterior, ou seja as sociedades ditas primitivas. Pode dizer-se que, no seio das ciências sociais, a especificidade do método empregue é muito próprio da antropologia social e cultural, de certo modo à semelhança das ciências ditas exactas. Mas contrariamente a estas últimas, onde o objecto observado é nitidamente exterior ao observador, ou à história, onde a distância entre o observador e o objecto de estudo é obtido através do tempo que separa o historiador do assunto que estuda, em antropologia a natureza da dualidade necessária implica – para obter as mesmas condições – a introdução de uma distância metodológica artificial entre os dois termos. E esta separação foi – e ainda o é hoje embora menos exclusivamente, como já referi – obtida graças à distância geográfica que pressupõe a distância cultural necessária entre o observador e o objecto observado. Por outras palavras,

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distância obtida pela introdução de uma dualidade fundadora: a pressuposta diferença cultural (pressuposta, na medida em que é possível existirem continuidades culturais separadas por descontinuidades espaciais). De facto, a distância geográfica introduzida, ao eleger como objecto de estudo sociedades distantes da do investigador, é suposta oferecer (actualmente, cada vez menos dada a mundialização de modelos idênticos de desenvolvimento) um universo de observação social e culturalmente diferente da sociedade do observador. É também verdade que, em alguns contextos, certos acontecimentos passados podem ser conservados sob outras formas que não a oral nem a escrita: gravados em monumentos, objectos diversos, na própria natureza, etc. Porém, apesar de conservarem alguma memória sob a forma material, o seu alcance histórico é, como se pode imaginar, reduzido. Todavia, repita-se, a antropologia social é uma ciência do Homem no seu todo que para atingir o seu objectivo se debruça especialmente sobre a contemporaneidade das sociedades, mas inclui naturalmente a sua dimensão histórica. Somente, dadas as características destes agrupamentos humanos sem escrita, a dimensão histórica é posta entre parênteses, incidindo a investigação quase exclusivamente na actualidade dessas sociedades, através da observação directa. Retomando a ideia da dualidade necessária à objectivação dos fenómenos observados, é conveniente dizer que a distância “geográfico-cultural” não intervém com a mesma acuidade no caso da antropologia europeísta e em particular quando efectuada por etnólogos autóctones. Estou no entanto convencido, por experiência própria, que, na maioria dos casos das etnologias domésticas, a aconselhável distância cultural é obtida, numa certa medida, pela distância social, a qual induz uma dualidade propícia à objectivação da realidade estudada. O observador e os observados são de origens suficientemente diferentes para induzir uma certa distância metodológica necessária à objectivação da realidade. Todas estas questões de metodologia são muito importantes, a ponderar caso a caso, e das quais depende a validação ou invalidação da investigação. Em certas circunstâncias de proximidade geográfica, será possível proceder preliminarmente a uma observação exploratória, a partir da qual se dará início à elaboração do primeiro plano de observação no terreno. Plano de exposição – sumário de uma obra já terminada (temas tratados num livro) correspondente aos resultados de uma investigação. Plano de observação – conjunto das interrogações que o antropólogo se coloca a propósito do objecto de estudo em causa, traduzidas em múltiplos aspectos a observar, segundo um determinado protocolo a seguir no terreno. Os aspectos a considerar não devem ser elaborados ao acaso mas respeitar uma certa coerência e lógica relacionada com os objectivos da pesquisa. Naturalmente, não há planos de observação definitivos, estes são susceptíveis de serem constantemente alterados em resultado de sucessivas novas observações e consequentes interrogações. Porém, os planos devem ser minuciosamente organizados. É sabido que por norma só se encontra aquilo que se procura.

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Em função da problemática, é feita a escolha do local de observação e esta deve ser justificada pela sua pertinência em relação aquela. De preferência procura-se residir em casa de um habitante. Para tal, será necessário que este último reuna algumas condições adequadas ao papel de anfitrião. Ou seja, no mínimo, não se encontrar no centro de conflitos que possam limitar a acção do investigador e, de preferência, usufruir de alguma influência ou prestígio junto dos outros membros do grupo. Enfim, todos estes aspectos gerais a respeitar dependem do facto de se tratar de sociedades extra-europeias ou europeias, sendo a situação nestas últimas naturalmente diferente. No caso de comunidades locais europeias deve evitar-se ser alojado por autarcas ou outros notáveis para não, pelas suas posições e opiniões exclusivas, privilegiar relações que possam condicionar o seu julgamento e limitar a sua liberdade de movimentos. Para além destas prescrições a cumprir, o resto do comportamento do observador no terreno é uma questão de carácter pessoal, bom senso, adaptabilidade às condições do meio ambiente, aptidão para o relacionamento social. Não é raro antropólogos neófitos falharem a sua tentativa de inserção no terreno por inexistência de um mínimo de capacidade de adaptação a um meio estranho ao seu. Reunidas as condições, o investigador procurará constituir um grupo pertinente de informantes . Seria um erro incluir no referido grupo exclusivamente homens, mulheres ou jovens. Ambos os sexos deverão estar representados segundo as respectivas classes etárias, não só em função da idade mas também das diferentes categorias de significado social local. No caso português, em certos contextos sociais, seria um erro imaginar estar-se perante um indivíduo com estatuto de adulto pelo simples facto deste ser casado. Na realidade não é exactamente assim, é corrente no nosso país, em meio rural tradicional, este estatuto só ser plenamente adquirido aquando do nascimento do primeiro filho. Desde logo, no presente exemplo, a idade (até certos limites desta, naturalmente) e o simples estatuto de indivíduo casado não são critérios suficientes para fazer parte de um grupo de adultos, sendo igualmente necessário a condição de progenitor. A representatividade do grupo de informantes depende de todo um conjunto de variáveis cuja lista não é possível elaborar à priori e respectiva pertinência só o cientista pode avaliar em função da especificidade do terreno onde trabalha. Mas qual é a utilidade de um grupo de informantes? Em rigor, este grupo deveria designar-se preferencialmente grupo privilegiado de observados . De facto, para além de informar, os membros que o constituem representam um grupo de indivíduos onde o investigador se integra de forma a poder observar à vontade, de modo privilegiado, o que nem sempre é fácil fazer com todos os restantes. Ou seja, poder observar o que não é praticado em público mas na esfera mais ou menos privada. No entanto, também é verdade que este grupo informa igualmente e de maneira directa, dado o investigador os poder interrogar acerca do que pretende e as informações obtidas orientarem e acelerarem o processo de investigação. O protocolo de andamento no terreno deve obedecer a uma programação quotidiana e depender o menos possível do acaso de eventuais acontecimentos, embora estes possam naturalmente ser sempre bem-vindos. As informações são anotadas a cada instante, à medida que vão acontecendo, mas no fim do dia deverão ser estruturadas em cadernos de triagem e

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preservadas de eventuais extravios. Mais tarde poderão ser organizadas em fichas, como gostam de fazer certos autores, para uma utilização mais fácil. À aptidão de integração e adaptação pessoal do investigador no terreno, junta-se a necessidade de capacidade de observação a qual é, como facilmente se compreende, extremamente importante para a condução da investigação e o rigor da descrição. No caso de não se possuírem as competências necessárias para tal, será preciso recorrer a um especialista no assunto. Esta necessária atitude de rigor é fundamental para a reconstituição ou reabilitação de patrimónios em vias de desaparecimento. Realizar levantamentos técnicos exactos, é a única forma de conservar testemunhos patrimoniais sob a forma de descrições e assim possibilitar posteriormente a sua reprodução em termos idênticos. Resumindo, a fase denominada etnografia consiste na observação directa e na descrição dos factos reais, tais como eles sobressaem no inquérito de terreno. A etnografia constitui a primeira etapa da investigação que em seguida é desenvolvida através da síntese etnológica . De facto, as observações directas, as descrições, a experiência pessoal, não são suficientes. É necessário explicar e sintetizar. No passado, e num passado mais recente, na Europa sobretudo, considerou-se ser insuficiente esta síntese (foi o caso da etnologia alemã). Porém, hoje cabe à antropologia social e cultural realizar esta terceira etapa da síntese e visar conclusões válidas para todas as sociedades, como já foi referido. Desde logo, facilmente se percebe que, segundo o assunto tratado ou tipo de problema que se procura investigar, é possível situar-se ora ao nível etnológico ora ao nível da antropologia social e cultural e na maioria das vezes situar-se nos dois ao mesmo tempo. Antes de terminar, gostaria de levantar a questão da interpretação dos fenómenos observados . É necessário notar que a interpretação de determinados factos pode representar uma tarefa mais difícil do que parece. A razão deriva de nem sempre ser suficiente e adequado interpretar um certo fenómeno unicamente à luz da observação directa. A observação do ajuntamento de um grande número de pessoas numa praia pode levar automaticamente a pensar que se essas pessoas se juntam de forma excessiva é porque não os incomoda uma boa dose de promiscuidade humana e assim revelarem um forte grau de comportamento gregário. Ora, o sentido da interpretação é susceptível de não passar da simples aparência. De facto, não é incongruente pensar que as razões podem ser múltiplas. Por outras palavras, observar unicamente não é suficiente na maioria das vezes. Procedendo deste modo, é eventualmente possível que se chegue a uma conclusão diametralmente oposta à que aparentava uma determinada situação. No exemplo da praia, o grande número de pessoas amontoadas poderá dever-se ao caso de esta ser a única do local, de reunir condições únicas, a isto ou aquilo (praia guardada, águas calmas, cafés e restaurantes, etc.).

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A necessidade de maior ou menor utilização de material depende do trabalho de campo a realizar e a região onde é efectuado. Mas quer se trate de uma aldeia transmontana ou um lugar em qualquer parte recôndita do planeta, o material será sempre, mais ou menos, todo necessário. Naturalmente, se for questão de um inquérito com o simples fim de estabelecer genealogias de parentesco por exemplo, alguns instrumentos não serão obviamente necessários. Até este momento utilizei sempre a expressão observação directa para referir o procedimento do antropólogo no terreno. Sendo esta a definição, os leitores perguntarão se existe outra forma de observar senão directamente e, de facto, têm razão. Colocada a questão de modo geral, a observação é sempre directa caso contrário não haveria observação. Mas acontece porém que, graças às relativamente novas técnicas, é possível actualmente, sem grandes abusos de linguagem, proceder a algumas observações de forma indirecta como prolongamento da observação directa. Com efeito, a observação indirecta torna-se possível pela existência de técnicas tais como as fotografias e em particular as realizadas com aparelhos motorizados permitindo a decomposição dos movimentos, em sequências de várias imagens por segundo. Soma-se a tal, o registo de som de alta definição que embora não seja dado à observação (mas no terreno também não) fica disponível para uma análise indirecta (sobre música, oralidades diversas). No registo de imagens será aconselhável anotar a sensibilidade das películas (medida em asas ou dines), a data, a hora do dia e sempre que possível a que distância do objecto foram tomadas, para além de outros elementos de identificação da imagem. A anotação da distância é importante na medida em que é susceptível de ajudar a determinar aproximadamente a escala e assim permitir medições em situação de laboratório. As fotografias aéreas , em especial, representam um precioso documento de análise do terreno como também de vista de conjunto e síntese em situação de laboratório, tanto antes da ida como após o regresso do terreno. A foto-interpretação , realizada graças aos diferentes parâmetros registados aquando da realização da fotografia aérea: como o sentido do voo, a altitude do avião, a hora do dia, o mês, o ano, as condições geográficas do terreno, etc., permitem visualizar à distância uma quantidade de aspectos existentes no local da fotografia. Para além disso, a fotografia aérea transposta para o papel, segundo certas convenções, a partir de grelhas de interpretação preexistentes, permite a elaboração de pequenos mapas à escala que são da maior utilidade. Esta fonte de observação indirecta é – quando disponível – das mais ricas e um preciosíssimo documento para um bom andamento no terreno. A cartografia de campo, uma imagem do terreno onde são distribuídos os dados de que dispõe o investigador, é um documento informativo à distância dos mais importantes. Em regiões onde a cartografia já existe, as diferentes cartas geográficas elaboradas segundo várias escalas e outras convenções, são de uma grande precisão quanto à representação da morfologia geográfica e sócio-geográfica. Mas nas regiões, zonas ou locais, onde esta cartografia não existe, o próprio investigador poderá ver-se obrigado a elaborar cartas demográficas e etno-sociológicas de diferentes tipos: como mapas de densidade (de população), cartogramas (acerca de diferentes características etnológicas, sociológicas, etc. susceptíveis de caracterizar uma região, uma zona ou um pequeno local).

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Outros tipos de representação gráfica, cuja finalidade é fornecer uma informação quantificada, podem ser igualmente necessários, segundo os diferentes métodos de apresentação de dados: como os gráficos , diagramas de barras (a fim de representar uma grandeza numérica segundo barras alongadas em que o comprimento destas é proporcional à grandeza representada), diagramas de sectores (estes diagramas são particularmente utilizados na construção das pirâmides por grupos etários), diagramas de parentesco (para representar genealogias concretas ou modelos de parentesco). Nos casos em que são indispensáveis, não só permitem, através de uma espécie de observação à distância, a análise aprofundada dos diferentes dados recolhidos no terreno – segundo certos parâmetros de medição e quantificação – como sobretudo ilustrar e demonstrar as conclusões retiradas; enquanto condição absoluta de validação de qualquer investigação. Não é de admirar que os investigadores europeístas se encontrem por vezes face a situações para as quais estão mal preparados, tentando fazer encaixar realidades em teorias elaboradas sobre outras existências. Apropriadamente, os diferentes instrumentos de metodologia e análise devem ser, e felizmente têm-no sido pouco a pouco, repensados em função dos novos terrenos de observação, se queremos obter resultados fiáveis (como é o caso, por exemplo, em matéria de devolução dos bens de partilha e respectiva tipologia).

4.2. Em busca de objectividade A distância cultural é suposta permitir dar conta da novidade das práticas sociais e culturais e dispor de uma posição de maior objectividade comparadamente com as condições de estudo na sua própria sociedade. Nesta, a dificuldade de objectivação resulta do facto do mais habitual dos comportamentos sociais e culturais dos seus conterrâneos serem susceptíveis de parecerem banais e passarem despercebidos, tanto eles fazem parte das suas próprias práticas habituais. As informações fornecidas pelos informantes podem resultar de simples representações de práticas a que não correspondem, a não ser à ideia que os indivíduos fazem delas. O investigador pode ainda constatar eventuais hiatos entre o que é afirmado por um indivíduo ou um grupo de indivíduos, enquanto representação social colectiva, e o que na realidade é praticado.

4.3. Pontos de método fundamentais Um outro aspecto importante inerente ao método, consiste na fundeação da pesquisa no infinitamente pequeno para, graças a uma construção indutiva poder explicar o geral: ou seja, importa partir do particular para o geral . (O raciocínio indutivo consiste em construir um termo geral a partir de factos particulares.) Obviamente, esta construção opõe-se ao andamento dedutivo. (O raciocínio dedutivo consiste em retirar de uma ou várias proposições (enunciado verbal susceptível de ser dito verdadeiro ou falso) outras, segundo leis lógicas próprias.) A abordagem etnológica , pela sua natureza, autoriza, graças ao método etnográfico , a tomada em consideração dos factos mais humildes da actividade humana, os pormenores do quotidiano que regra geral escapam ou interessam menos o observador comum. Este ponto é mais que evidente no domínio europeu, quando se tratam de factos que ninguém se digna consignar

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por não representarem fenómenos de importância nacional ou não implicarem grupos sociais dominantes. Na realidade, uma sociedade é constituída por várias partes ou componentes que, em muitos aspectos, se articulam umas com outras ou se influenciam mutuamente e dão forma a um todo; facto sociológico que conduz à necessidade de percepção das totalidades sociais . Mas estas não devem ser confundidas com a soma dos diferentes elementos que constituem cada todo social. É de facto vão imaginar poder contabilizar tudo quanto existe numa sociedade, tentando fazer uma descrição supostamente exaustiva e somar as partes para tentar obter a totalidade social. Na prática, em consequência da impossibilidade em revelar a articulação dos diferentes elementos que nele operam (devido à orientação inicial dada à investigação), dificilmente é possível vislumbrar o sistema e a sua lógica (a lógica do sistema não deve ser entendida no sentido de coerência social mas de um sistema de relações mais ou menos interdependentes). De facto, dar importância à percepção da lógica que preside às relações entre componentes de um sistema social é extremamente relevante para a perspectiva comparativa que a antropologia se propõe realizar. Sobretudo se atendermos que as respectivas funções de um mesmo facto social existente em sociedades distintas podem ser diferentes em cada uma delas. (A definição geral de E. Durkheim [1987] é a seguinte: “Facto social é toda a maneira de fazer, fixa ou não, susceptível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais.” A dinâmica interna, onde se produz uma menor integração social e concomitantemente uma maior tensão social, é susceptível de se sobrepor à tomada de consciência da pena que se torna remota e abstracta em relação à imediação do acto em vias de ser praticado. Nestas condições, ao compararem-se elementos ou factos sociais entre sistemas é também necessário, e sobretudo, compararem-se lógicas globais. Noutros termos, é necessário compararem-se relações e respectivos usos sociais para entender as razões de ser de um determinado facto. A conceptualização de fenómeno social total foi elaborada a partir dos contributos fornecidos pelas obras de Bronislaw Malinowski, os Argonauts of the Western Pacific [1922], e de Marcel Mauss, o Essai sur le don, forme archaïque de l’échange [1923]. As duas obras completam-se na medida em que M. Mauss, para elaborar a sua teoria, era suposto conhecer os materiais recolhidos por Malinowski e a recolha do material por este tinha subjacente a teoria que o primeiro veio a formular. No Essai sur le Don, a partir de uma tentativa de explicação da “Kula”, Mauss elabora o conceito de “fenómeno social total ”, um dos mais interessantes da sua obra, e realça assim a importância de não se poder apreender os factos da vida social a um só nível . (Para analisar a maioria dos fenómenos sociais é necessário realizar um levantamento significativo da totalidade que cada um deles representa. A realidade destes níveis não passa de uma existência metodológica e não devem ser confundidos com a realidade, porque efectivamente não passam de pontos de vista.) Para o autor, “[os factos sociais] põem em movimento, em certos casos, a totalidade da sociedade e

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das suas instituições [...] e noutros casos, somente um grande número de instituições, [...] todos estes fenómenos são ao mesmo tempo jurídicos, económicos, religiosos, e mesmo estéticos, morfológicos, etc. [...] São “todos”, sistemas sociais inteiros [...]. Por outras palavras, são «factos sociais totais», segundo Mauss [1950: 274-275]. No mesmo sentido concorre o exemplo da cerimónia de ostentação do potlach , a qual Mauss interpreta como uma “prestação total de tipo agonístico ” em consequência do sistema troca-dádiva que ela implica. (A cerimónia do potlach era praticada pelas populações da costa setentrional do Pacífico, na América do Norte. Porém, este tipo de comportamento é verificável, sob outras formas, noutras partes do mundo, designadamente em Portugal e em particular durante as bodas de casamento onde se investem avultadas somas de dinheiro em prestações de prestígio exacerbado.) A cerimónia era competitiva com outros participantes que concorriam num espírito de grande rivalidade e desafio, obrigando e humilhando os rivais. No caso de distribuição de prendas, o donatário não podendo recusar a prenda que lhe era feita, encontrava-se na obrigação de fazer uma contra dádiva, tanto quanto possível superior, (o dobro segundo Franz Boas [1899] sob pena de admitir a sua incapacidade de retribuição e, assim, a sua inferioridade social. No extremo limite da fundamentação de Mauss, emerge a ideia de que só o facto social total corresponde a uma realidade, na medida em que a actividade social constitui um sistema em que todos os aspectos estão interligados entre si. As sociedades “primitivas” deixam de ser consideradas como organizações “particulares”, ao atribuir-se-lhes arbitrariamente “originalidade” e “elementaridade” (quando se consideram separadamente as suas instituições), para passarem a ser concebidas como sociedades dotadas de uma “complexidade”, simplesmente diferente da que caracteriza as sociedades de tipo ocidental. Todos os aspectos que acabei de referir ao longo do presente capítulo, são elementos de metodologia a ponderar no seu conjunto aquando de uma investigação, na medida em que conduzem a uma atitude indispensável no terreno que condiciona a análise posterior. Fica igualmente claro que nenhuma afirmação poderá ser validada sem a demonstração da prova concreta ou mesmo teórica. Sempre que possível os elementos recolhidos no terreno deverão ser quantificados, para estabelecer eventuais modelos reduzidos de formas complexas e impossíveis de representar segundo modelos mecânicos. Os elementos de comparação não podem ser arbitrários na medida em que só se pode comparar o que é comparável, ou seja o que é de natureza idêntica. Além disso, a comparação e a síntese podem ser apreendidas a diferentes níveis de universalidade. Os estudos comparativos de Lévi-Strauss, tiveram o mérito, para além de toda a novidade revelada, recolocar no centro da actividade da antropologia social e cultural a finalidade dos seus objectivos, os quais na maioria das vezes são perdidos de vista.

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Naturalmente, este autor não foi o único a ter a preocupação comparativa, antes dele outros investigadores tiveram este objectivo, designadamente os evolucionistas. Quando num artigo comparei as diferentes formas de atribuição do nome na Europa, tendo como referência o modelo português foi uma forma de comparação, classificação e síntese que procurei realizar [A. dos Santos, 1999]. Pode concluir-se, dizendo que, nos casos referidos, estão exemplificados os diferentes níveis de comparação, do mais geral ao médio e deste ao relativamente pequeno e local, repetindo contudo que o objectivo central da antropologia reside nas características gerais do género humano.

FIM